Direito Constitucional e Garantias Constitucinais
Direito Constitucional e Garantias Constitucinais
Direito Constitucional e Garantias Constitucinais
Garantias Constitucionais
Brasília-DF.
Elaboração
Gustavo Rabay
Georges Carlos F. M. Seigner
Coordenação do Curso de Direito
Produção
Apresentação.................................................................................................................................. 4
Introdução.................................................................................................................................... 7
Unidade i
Introdução à Teoria da Constituição.......................................................................................... 13
Capítulo 1
Constitucionalismo e Constituição................................................................................ 13
Capítulo 2
Poder Constituinte e Poder de Reforma.......................................................................... 30
Capítulo 3
Evolução Histórica do Pensamento Constitucional.................................................... 47
Capítulo 4
Constituições Brasileiras................................................................................................... 56
Unidade iI
Interpretação e Aplicação da Constituição............................................................................... 67
Capítulo 1
Constituição de 1988: Princípios Fundamentais.............................................................. 67
Capítulo 2
Teoria das Normas Constitucionais................................................................................. 83
Capítulo 3
Interpretação Constitucional.......................................................................................... 97
Unidade iII
Garantias e Princípios Constitucionais, Materiais, Institucionais e Processuais.................... 105
Capítulo 1
Garantias Sociais, Jurisdicionais, Materiais e Processuais.......................................... 105
CAPÍTULO 2
A QUESTÃO DOS DIREITOS FUNDAMENTAIS NAS RELAÇÕES PRIVADAS.................................... 114
Referências................................................................................................................................. 127
Apresentação
Caro aluno
A proposta editorial deste Caderno de Estudos e Pesquisa reúne elementos que se entendem
necessários para o desenvolvimento do estudo com segurança e qualidade. Caracteriza-se pela
atualidade, dinâmica e pertinência de seu conteúdo, bem como pela interatividade e modernidade
de sua estrutura formal, adequadas à metodologia da Educação a Distância – EaD.
Pretende-se, com este material, levá-lo à reflexão e à compreensão da pluralidade dos conhecimentos
a serem oferecidos, possibilitando-lhe ampliar conceitos específicos da área e atuar de forma
competente e conscienciosa, como convém ao profissional que busca a formação continuada para
vencer os desafios que a evolução científico-tecnológica impõe ao mundo contemporâneo.
Elaborou-se a presente publicação com a intenção de torná-la subsídio valioso, de modo a facilitar
sua caminhada na trajetória a ser percorrida tanto na vida pessoal quanto na profissional. Utilize-a
como instrumento para seu sucesso na carreira.
Conselho Editorial
4
organização do Caderno
de Estudos e Pesquisa
Para facilitar seu estudo, os conteúdos são organizados em unidades, subdivididas em capítulos, de
forma didática, objetiva e coerente. Eles serão abordados por meio de textos básicos, com questões
para reflexão, entre outros recursos editoriais que visam a tornar sua leitura mais agradável. Ao
final, serão indicadas, também, fontes de consulta, para aprofundar os estudos com leituras e
pesquisas complementares.
A seguir, uma breve descrição dos ícones utilizados na organização dos Cadernos de Estudos
e Pesquisa.
Provocação
Textos que buscam instigar o aluno a refletir sobre determinado assunto antes
mesmo de iniciar sua leitura ou após algum trecho pertinente para o autor
conteudista.
Para refletir
Questões inseridas no decorrer do estudo a fim de que o aluno faça uma pausa e reflita
sobre o conteúdo estudado ou temas que o ajudem em seu raciocínio. É importante
que ele verifique seus conhecimentos, suas experiências e seus sentimentos. As
reflexões são o ponto de partida para a construção de suas conclusões.
Praticando
Atenção
5
Saiba mais
Sintetizando
Exercício de fixação
Atividades que buscam reforçar a assimilação e fixação dos períodos que o autor/
conteudista achar mais relevante em relação a aprendizagem de seu módulo (não
há registro de menção).
Avaliação Final
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Introdução
A presente Apostila de Direito Constitucional e Garantias Constitucionais fará um estudo inicial do
Direito Constitucional, bem como sobre a Teoria Geral das Garantias Constitucionais.
A leitura anterior de que a Constituição nada mais é do que uma “carta de intenções”, calcada nas
estruturas políticas do Estado, deve ceder espaço à pré-compreensão de que o Texto Constitucional
possui força normativa e conteúdo irradiador das normas de decisão projetadas em cada caso
concreto, no seio da vida social.
Desde a teoria kelseniana da norma hipotética fundamental, que coloca a constituição como
fundamento de validade do próprio sistema jurídico, e da contribuição de Konrad Hesse, acerca da
vontade constitucional e sua potencialidade jurídico-normativa, os estudiosos do Direito Público
(e muito recentemente do Direito Privado) redescobrem os horizontes esquecidos da teoria do
Estado, da carga de positividade que encerram os princípios de uma constituição e do feixe de
possibilidades que as normas constitucionais podem representar no cotidiano dos direitos. Se antes
se falava em Era dos Códigos, hoje se está presenciando a Era da Constituição (é a reflexão de Paulo
Bonavides) e, consequentemente, dos Direitos Fundamentais (análoga à Era dos Direitos propalada
por Norberto Bobbio). Afinal, as normas do Estatuto Político Fundamental do Estado comportam
preceitos de conteúdo absoluto e que, em virtude de sua natureza principiológica e dialética relação
com a moral, devem constituir o ponto de partida para a realização do primado democrático que
norteia os Estados ocidentais.
7
No século XXI, o grande desafio é dar vida aos preceitos inscritos na Constituição, assegurando
uma expansiva concretude aos direitos fundamentais e humanos salvaguardados pelo Texto Maior.
Não há espaço para sonhos dogmáticos. Mas também não é mais possível se conceber a passividade
daqueles que interpretam algumas normas constitucionais e lhes atestam a inoperância em virtude
da suposta baixa densidade de seus conteúdos (identificadas como normas constitucionais de
eficácia limitada, tais como as normas programáticas). Ao praticante do Direito, não se pode mais
(so)negar uma visão hermeneuticamente engajada, construtiva e possibilista.
O constitucionalismo, com sua riqueza histórica e sofisticada evolução ao longo dos últimos dois
séculos, jamais foi sondado com a profundidade que hoje dedicam estudiosos do mundo todo
(Maurizio Fioravanti, Peter Häberle, Horst Dippel) e, em especial, do Brasil (Paulo Bonavides, José
Afonso da Silva, Menelick de Carvalho Netto, entre outros). A contextual transição de paradigmas
do Estado pós-moderno, em que avulta o signo do multiculturalismo, desencadeado pela integração
de países e o surgimento de mercados comuns, fenômenos assinalados de forma reducionista pela
expressão “globalização”, exige rupturas interpretativas do modelo de Estado moderno, posto que
a soberania não mais se reveste de força absoluta no cenário internacional, nem se pode entender
o poder constituinte como a ocorrência da força política, social e/ou econômica de uma nação,
dissociado do próprio contexto planetário. Daí a emergência do estudo do Direito Constitucional
sob a ótica do Direito Internacional e a necessária formulação de análises comparativas.
Ao lado de todas essas novas perspectivas que auxiliam na própria resignificação dos direitos postos
a salvo pelo paradigma do constitucionalismo, exsurge a necessidade de se interpretar a Constituição
como uma tarefa cotidiana do jurista, em especial no caso brasileiro, em que se reconhece a existência
de uma Constituição expansiva e de alta densidade analítica.
Nessa busca por uma melhor sintonia entre a teoria e a práxis jurídica, verdadeira e necessariamente
compatibilizadas com os novos marcos teóricos identificados, a disciplina será desenvolvida em duas
unidades temáticas. Na primeira, estudaremos as bases do constitucionalismo e os fundamentos
do Direito Constitucional, enquanto teoria e dogmática, englobando, ainda, a questão da teoria do
poder constituinte e da mudança constitucional. Compreende a primeira parte, ainda, o estudo
da evolução histórica do pensamento constitucional e das constituições brasileiras. Na segunda,
trataremos dos princípios fundamentais identificados no horizonte da Constituição de 1988, da
Teoria das Normas Constitucionais e do problema da Interpretação Constitucional.
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Para uma melhor aprendizagem do Direito Constitucional, faz-se extremamente necessário que
o aluno tenha o domínio sobre a Teoria Geral das Garantias Constitucionais, visto que tal ramo
incide sobre todo o ordenamento jurídico, principalmente por abordar: i) as Garantias e Princípios
Constitucionais, Materiais, Institucionais e Processuais; ii) Garantias Sociais, Jurisdicionais,
Materiais e Processuais; e iii) a questão dos direitos fundamentais nas relações privadas.
Há certo desconforto em se definir direitos fundamentais, pois, assim como ocorre com a expressão
“direitos do homem”, a maior parte das tentativas resulta em definições tautológicas.
Costuma-se referir, dogmaticamente, aos direitos fundamentais como questão essencial que
se confunde com a própria noção de Estado Constitucional, na medida em que assim assinala a
disposição da Declaração Francesa de 1789: “toda sociedade na qual a garantia dos direitos não é
assegurada, nem a separação dos poderes determinada, não possui Constituição”.
Nessa dimensão, tais direitos cumprem o papel de legitimação do poder estatal, e se traduzem em
“funções estruturais de suma importância para os princípios conformadores da Constituição”, como
salienta Segado, após se remeter à opinião de Hans-Peter Schneider, para quem constituem conditio
sine qua non do Estado Constitucional Democrático. Gilmar Mendes, referindo-se ao pensamento
de Konrad Hesse, afirma que pelos direitos fundamentais não são apenas assegurados direitos
subjetivos, mas também os princípios objetivos da ordem constitucional e democrática.
Esse pensamento se coaduna com a observação de que, no caso do nosso Direito (Constitucional)
Positivo, os princípios e as normas constantes do Título II da Constituição Federal de 1988 (Dos
Direitos e Garantias Fundamentais) apresentam uma interdependência para com aqueles princípios
estruturantes do Título I do texto constitucional (Dos Princípios Fundamentais).
A concepção de uma área intangível de direitos, que caracteriza as liberdades públicas negativas de
limitação da atuação do Estado, provém, solenemente (e, de maneira prospectiva, constitucionalizada)
da citada declaração de direitos e corresponde a uma primeira vertente de direitos fundamentais.
São os chamados direitos de defesa.
Por seu turno, a segunda concepção diz respeito ao clamor da intervenção estatal, por meio de
prestações assistenciais fulcradas nas necessidades da coletividade, com apoio nos ventos socialistas
do século XIX.
São, por assim dizer, mecanismos de imposição de prestação, por parte do Poder Público, de
providências de índole social.
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Na segunda metade do século XX, cunhou-se uma terceira etapa de desenvolvimento na concepção
dos direitos fundamentais, associando-os aos direitos humanos, como atributos inerentes a toda
humanidade.
Dessa maneira, são identificadas três dimensões de direitos fundamentais, confiadas de acordo com
a etapa de positivação nas esferas constitucional e internacional:
Transferindo essa titularidade à proteção de grupos humanos, enquadram-se como direitos coletivos
e difusos (meio ambiente, relações de consumo etc.) e vinculam-se à proteção da dignidade humana.
Pode ser referida, ainda, uma quarta dimensão de direitos fundamentais, ainda não consagrada
definitivamente, que, no dizer de Ingo Sarlet, corresponde à ideia de direitos fundamentais
globalizados, tendenciais à democracia direta, à informação e ao pluralismo, defendida por Paulo
Bonavides. Inclui-se na pauta de discussão dessa nova visão o chamado biodireito, em que se
destacam as posições de direitos relacionados à manipulação genética, à mudança de sexo, entre
outros.
Esse é, no entanto, o paradigma básico de uma abordagem teorética dos direitos fundamentais. Um
approach mais amplo e qualificado demanda a adoção de certos modelos referenciais formulados pela
doutrina, em que várias perspectivas de focalização tem espaço, entre elas a filosófica, a histórica, a
ética, a jurídica e a política, como aponta Bobbio. Apesar de a opção pela visão da dogmática jurídica
ser a solução mais funcional para a abordagem do assunto, decerto, outros pormenores, oriundos
de campos de formulação diversos, serão empregados na busca de uma contextualização que torne
aptos os resultados, ao final, pretendidos.
Com efeito, alerta-se, ainda, para o fato de que os limites objetivos do estudo não comportam
um cabedal de informações suficientemente profundo para esgotar os pontos e contrapontos
aqui centrados, não raras vezes, afeiçoados de imensa complexidade, que inviabilizaria, inclusive
fisicamente, o seu exaurimento temático, até mesmo em obras que cuidam, exclusivamente, do
assunto, como é o caso confessional do magistral e multicitado trabalho de Ingo Wolfgang Sarlet.
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Como sabemos, os direitos e garantias funcionam como freios e limitadores ao poder do Estado ante
as pessoas e entre elas, umas com as outras.
O rol de direitos e garantias inserido nesse tópico baliza e estrutura o convívio social, além de,
ao mesmo tempo, por ser consagrado constitucionalmente, apresentar-se como marco perene a
obstacular injusta investida do Estado ou de outro particular contra a liberdade, a segurança
ou o patrimônio de outrem. O rol é constituído de direitos explícitos e implícitos. Estes últimos
são “decorrentes do regime e dos princípios por ela [a constituição] adotados ou dos tratados
internacionais em que a República Federativa do Brasil seja parte”. Os explícitos, por sua vez, são
de cinco categorias, cujos objetivos imediatos são a vida, a igualdade, a liberdade, a segurança e a
propriedade, já que o objeto mediato de todas é sempre a liberdade.
Assim dispostos, temos a proibição da pena de morte (inciso XLVII); a proteção à dignidade
humana (inciso III), direitos que se referem à proteção do direito à vida. Por seu turno, o princípio
da isonomia (art. 5o, caput e inciso I) constitui proteção ao direito à igualdade.
Há que se destacar, também, os direitos que visam assegurar a liberdade, tais como a liberdade de
locomoção (incisos XV e LXVIII); de pensamento (incisos IV, VI, VII, VIII e IX); de reunião (inciso
XVI); de associação (incisos XVII a XXI); de profissão (inciso XIII) e de ação (inciso II).
Não obstante tais considerações, por uma questão de didática, sistematizaremos o nosso estudo
na sequência apresentada, a fim de permitir que o aluno tenha um melhor entendimento sobre o
estudo do Direito Constitucional e da Teoria Geral das Garantias Constitucionais.
Bons estudos!
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Objetivos
»» Compreender Direito Constitucional como disciplina que ultrapassa a simples carga
dogmática da Constituição vigente, a partir de modulações sobre o constitucionalismo,
seu sentido na história e seus limites e possibilidades contemporâneos.
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Introdução
à Teoria da Unidade i
Constituição
Capítulo 1
Constitucionalismo e Constituição
Seu primordial objeto de análise é a constituição de um determinado Estado, e todos os demais fatos
correlacionados à ordem constitucional de um ordenamento jurídico.
Tendo-se firmado como disciplina acadêmica autônoma, em 1834, na Faculdade de Direito de Paris,
o Direito Constitucional é o principal ramo do Direito Público Interno e estuda a lei definidora
e regulamentadora da estrutura jurídico-política de um Estado; essa norma fundacional do Estado
recebe o nome genérico de Constituição (BESTER, 2005).
13
UNIDADE I │ Introdução à Teoria da Constituição
visão subjetiva dos intérpretes, nela objetivamente se encontram (BARROSO, 2001). Sobre esse
tema, estudaremos na última unidade, a Teoria das normas constitucionais e os princípios
e métodos da Interpretação Constitucional.
O Direito Constitucional determina o rumo a ser seguido pelo Direito Administrativo e pelo Direito
Processual, ramos que regem a estrutura e ação dos órgãos do Estado, em especial sua porção
designada como jurisdição.
Por outro lado, dispõe sobre importantes normas de Direito Penal (presunção de inocência, princípio
da legalidade) e de Direito Tributário (capacidade contributiva, vedação ao confisco).
Outros ramos alcançados pela Constituição Federal de 1988: Direito Eleitoral, Direito Previdenciário
(Seguridade Social), Direito Ambiental, Direito do Consumidor, Direito Econômico, Direito da
Infância e da Adolescência, Direito das Telecomunições, Direito Sanitário, entre outros.
Na linha de raciocínio de Hermann Heller (s/d), o direito constitucional é o ramo dogmático que se
dedica ao estudo da Constituição do Estado “juridicamente normada”. Trata-se, portanto, de focalizar
o direito constitucional positivo de um Estado, ou seja, o estudo de uma constituição peculiar.
14
introdução à tEoriA dA ConStituição │ unidAdE i
(2003, p.1) “não esta ou aquela Constituição em separado, mas enquanto fenômeno jurídico-positivo
comum à experiência dos povos que a exercitaram, com êxito, a própria soberania”.
Com relação a essa perspectiva, é preciso ter em conta que o direito constitucional pertence à
teoria jurídica, mas não se restringe a ela. Percorre, também, o ambiente da política, da sociologia
e da antropologia. Há espaço, ainda, para conjugações econômicas do fenômeno constitucional,
conduzindo, assim, à reflexão de que o objeto primordial do direito constitucional – a constituição
– tem múltiplas significações para o estudioso. E para racionalizar o estudo, faz-se mister uma
adequada pré-compreensão do contexto histórico em que uma determinada ordem jurídica está
envolvida, seus precedentes, outros modelos que a inspiram etc. É o que o Professor Gomes
Canotilho (2007, p.40-48) denomina de o “mundo ambiente circundante/estruturante do político
e da constituição”.
“...a constituição não deve ser estudada isoladamente. Pelo contrário, ela
conexiona-se com outras categorias políticas e conjuntos sociais (Estado,
sistema político, sistema jurídico, ordenamento, instituição), de relevante
significado para a captação do mundo circundante/estruturante do político.
Isto aponta para imprescindibilidade de algumas ideias básicas sob essas
categorias e conjuntos”.
15
UNIDADE I │ Introdução à Teoria da Constituição
Constitucionalismo
Antes mesmo de estudarmos o que vem a ser constituição, faz-se necessário a compreensão da
Teoria da Constituição. Enquanto antecâmara do saber propriamente jurídico, o tratamento teórico
dos problemas constitucionais representa um olhar multidisciplinar sobre os diversos fatores que
concorreram para o surgimento do pensamento constitucional.
Mas, como veremos, a compreensão do fenômeno é recente, do ponto de vista conceitual e histórico,
e as transformações pelas quais passou o constitucionalismo demonstram que não se pode falar
hoje em um só constitucionalismo, mas em modelos e etapas do constitucionalismo.
Se considerarmos sua base conceitual em etapas, é possível refletir que o constitucionalismo surgiu
do ponto de vista prático, com a experiência inglesa dos séculos XVII e XVIII, mas só foi devidamente
depurado teoricamente no final do século XVIII, com a Revolução Francesa, e a partir da instituição
da Constituição Norte-Americana (1787), considerada a primeira constituição escrita do mundo.
Trata-se do período das experiências clássicas, em que brota o constitucionalismo liberal.
16
Introdução à Teoria da Constituição │ UNIDADE I
O constitucionalismo assume, assim, a forma de teoria (ou ideologia) que ergue o princípio do
governo limitado, indispensável à garantia dos direitos, em dimensão estruturante da organização
político-social de uma comunidade. Nas palavras de Matteuci: “uma técnica específica de limitação
do poder com fins garantísticos”.
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UNIDADE I │ Introdução à Teoria da Constituição
a legitimação da ordem política: surge o constitucionalismo de cunho social, em que o Estado não
apenas deve se abster de violar as liberdades individuais fundamentais, mas prover possibilidades
de equalização econômica e cultural para todos os membros da sociedade.
O constitucionalismo, nesse segundo ciclo, passa por uma resignificação que remete ao princípio da
igualdade, em que todos devem ter assegurado o mínimo de dignidade. O bem-estar social passa
a ser meta do Estado constitucional e suas normas devem assegurar direitos sociais, econômicos
e culturais a todos os cidadãos. O foco de proteção sai do indivíduo e passa para os grupos sociais
menos favorecidos.
Assim, é possível perceber que o fenômeno constitucional não se resume à perspectiva jurídica
apenas, posto que o constitucionalismo é um movimento pela instalação e permanência do Estado
constitucional, reconhecido como “ordenação sistemática e racional da comunidade política através
[sic] de um documento escrito no qual se declaram as liberdades e os direitos e se fixam os limites
do poder político”. (CANOTILHO, 2007, p.46).
Concepção primordial
Em uma primeira digressão, é preciso referir que a essência conceitual da constituição associa-
se à sua função e ao que preconiza o constitucionalismo: trata-se de um sistema de normas que
consubstancia a forma jurídico-política do Estado, conferindo-lhe a estrutura, definindo seus limites
de ação e fazendo-o assegurar os direitos fundamentais dos cidadãos.
Para a Ministra Carmen Lúcia, do Supremo Tribunal Federal – STF (1997, p.14), a “Constituição é o
ato normativo jurídico primário e fundamental de uma sociedade, que forma e conforma um Estado
segundo uma idéia de Justiça posta à realização”.
18
Introdução à Teoria da Constituição │ UNIDADE I
O conteúdo afirmado por uma constituição traduz essa relevância política, que estrutura o Estado e
assegura os direitos dos indivíduos, desde a Revolução Francesa. É o que anuncia a Declaração dos
Direitos do Homem e do Cidadão, de 1789, in litteris: “Art. 16. Toda sociedade na qual a garantia
dos Direitos não é assegurada nem a separação dos poderes determinada, não tem constituição”.
Não se deve, entretanto, confundi-la com a Norma Fundamental de que fala Kelsen (1999). Essa
é a norma hipotética fundamental, que estudaremos a partir da concepção eminentemente
jurídica formulada pelo citado jusfilósofo austríaco.
19
UNIDADE I │ Introdução à Teoria da Constituição
A supremacia formal resulta dessa hierarquia superior consagrada à constituição e a ela fortalece
ainda mais, pois conduz ao princípio implícito da rigidez. A rigidez constitucional decorre da maior
dificuldade para a modificação da Constituição (pela via da produção de emendas) do que as demais
normas jurídicas. Por isso não podem ser alteradas como leis ordinárias ou qualquer outra norma
infraconstitucional.
Assim, o princípio da supremacia constitucional é reforçada pelo princípio da rigidez, que se afigura
à face formal da própria noção de supremacia da Constituição.
Surge, então, o princípio central que é o da constitucionalidade das normas (leis e atos
administrativos). Em uma relação de compatibilidade vertical, as normas infraconstitucionais
devem se ajustar à letra e ao espírito da constituição, como condição sine qua non de validade. De
tal sorte, a lei ordinária ou o ato administrativo que colidir, no todo ou em parte, com um preceito
constitucional expresso ou implícito poderá se declarado inconstitucional.
CONSTITUIÇÃO
Leis complementares, leis ordinárias, leis delegadas,
decretos legislativos e resoluções, medidas provisórias
Há uma distinção clássica da doutrina e que aqui merece nossa atenção, que classifica as normas
entre materialmente constitucionais e formalmente constitucionais.
Assim, a constituição será material quando revela os princípios básicos da formação e conformação
de uma sociedade politicamente organizada (Estado), assegurando os direitos dos cidadãos. Mas,
1 Como previsto na CF/88, Art. 59. “O processo legislativo compreende a elaboração de: I – emendas à Constituição; II – leis
complementares; III – leis ordinárias; IV – leis delegadas; V – medidas provisórias; VI – decretos legislativos; VII – resoluções.
20
Introdução à Teoria da Constituição │ UNIDADE I
no caso de se apresentar como um documento escrito, essa constituição poderá ser conhecida por
todos por um ângulo formal, tendo em vista que se está diante de um diploma normativo, com força
de vincular sua observância a todos.
Note-se que, ao tempo em que podem existir normas constitucionais materiais (reconhecidas pela
dignidade de seu conteúdo político-estruturante) sem que haja um texto jurídico formal, como é o
caso notório do Reino Unido, por outro lado, pode ocorrer de se inscreverem em uma constituição
formal (texto normativo escrito) diversas normas jurídicas sem a dignidade temática de uma
constituição eminentemente material. É exemplo disso é o art. 93, I, da CF/88, com a redação que
lhe conferiu a Emenda Constitucional nº 45, de 2004, que afirma: “O ingresso na carreira, cujo cargo
inicial será o de juiz substituto, mediante concurso público de provas e títulos, com a participação da
Ordem dos Advogados do Brasil em todas as fases, exigindo-se do bacharel em direito, no mínimo,
três anos de atividade jurídica e obedecendo-se, nas nomeações, à ordem de classificação”.
Mas esse exemplo é apenas um entre tantos, que comprovam a existência de diversas normas nas
constituições que apresentam atributos estranhos àqueles relacionados ao Estado e sua formação.
Já é recorrente entre os doutrinadores fazer menção ao art. 242, § 2º, da CF/1988, relacionada à
localização do Colégio Dom Pedro II no Rio de Janeiro, embora permaneça na órbita federal.
21
UNIDADE I │ Introdução à Teoria da Constituição
Concepção jurídico-positiva
Deve-se a concepção jurídico-positiva de constituição a Hans Kelsen (1998), jurista austríaco que
elaborou a Teoria Pura do Direito (Reine Rechtslehre) e que apresentou graficamente a ordem
jurídica como uma pirâmide (estrutura escalonada de normas), em cujo ápice situa-se a constituição.
Na verdade, essa pirâmide normativa foi elaborada por Adolf Merkel.
Segundo Kelsen, a constituição é norma jurídica suprema e, como tal, possibilita a experiência
jurídica, pois se torna o fundamento de validade de todas as outras normas ou outros atos
normativos. Ou seja, os atos normativos têm direta e indiretamente seu substrato na Constituição.
Enquanto lex legum, a constituição dita o modo de produção das outras normas e impõe regras
processuais ou substanciais a serem seguidas na elaboração de normas e na prática de atos do
direito dogmaticamente organizado.
E qual é o fundamento de validade da constituição? Kelsen afirma ser uma norma hipotética, a
chamada norma fundamental (Grundnorm), pressuposta enquanto elemento factual anterior à
criação do sistema jurídico.
Kelsen (apud MENDES; COELHO; BRANCO, 2008, p.2) acabou admitindo que essa norma é
uma ficção, um artifício da teoria jurídica, que serve como regra de clausura, “de natureza lógico-
transcendental, para fundamentar não apenas a validade da primeira constituição, mas também,
a partir desta, a validade de todas as normas que integram o ordenamento jurídico, normas que,
de resto, se entrelaçam precisamente pelo conceito de validade, formal e derivativa, que cada uma
recebe da que lhe é superior”.
Apesar das ferrenhas críticas quanto à neutralidade do conteúdo determinante de uma constituição,
é possível verificar a simetria entre a norma hipotética fundamental (como fundamento
extradogmático) e o exercício do poder constituinte. Esse raciocínio será mais aprofundado por
ocasião do estudo do conceito de poder constituinte.
Décadas após a teoria de Kelsen, o professor alemão Konrad Hesse (1991) passou a ser a principal
referência no que toca à concepção jurídico-positiva da constituição, com seu célebre livro “A força
normativa da constituição”, que discutiremos em seguida.
22
Introdução à Teoria da Constituição │ UNIDADE I
Concepção sociológica
Em 1862, Ferdinand Lassale proferiu, numa associação de Berlim, sua conferência sobre a essência
da Constituição. Sofrendo grande influência de Karl Marx, Lassale (1998) afirma que o direito
integrava a superestrutura e a superestrutura é integralmente condicionada pela infraestrutura.
Na sua ótica, questões constitucionais não são questões jurídicas, mas sim políticas, uma vez que
a constituição de um país expressa as relações de poder nele dominantes (de ordem militar, social,
econômica, intelectual etc.).
Lassale afirma que tais relações de poder constituem os chamados fatores reais do poder, que
consubstanciam a constituição real. Uma constituição escrita, se identificada em dessincronia com a
realidade social, não é nada mais que uma folha de papel (Stuck Papier) e que sucumbirá sempre
à constituição real. Eis a lição básica do jurista:
Trata-se de, como aduz Honrad Hesse (1991), uma visão reducionista e maniqueísta porque se é
fato indiscutível que a realidade social influi sobre o direito, por outro lado o direito também influi
e condiciona a realidade social, operando comandos normativos com força de concretização plena
em situações específicas. Esse autor revisita a obra de Lassale para contestar-lhe e dizer que, ao
reconhecer a vontade constitucional de uma nação, é exigível ao Estado dotar a ordem jurídica de
mecanismos que assegurem concreta aplicação dos preceitos constitucionais.
O contraponto de Hesse não contraria, no entanto, o pensamento de Lassale. No diálogo entre os dois
constitucionalistas, podemos extrair que a constituição não configura apenas a expressão do modo
de ser do Estado, mas também um dever ser dirigido à sociedade como um todo. Ao lado da força
condicionante da realidade, encontramos a normatividade da constituição. A “Constituição real” e
a “Constituição jurídica” condicionam-se mutuamente, mas não guardam relação de dependência
uma com a outra (COELHO, 1998).
Apesar das ressalvas importantes à concepção sociológica, certo é que prossegue muito útil a leitura
de Lassale quanto aos fatores múltiplos que determinam o avanço (ou retrocesso) da realidade
institucional de um Estado.
23
unidAdE i │ introdução à tEoriA dA ConStituição
Concepção política
Por último, temos a concepção política ou decisionista. Para Carl Schmitt, a constituição não é outra
coisa senão uma decisão política fundamental. Em outras palavras, “uma decisão de conjunto sobre
o modo e a forma da unidade política” (BULOS, 2007, p.31).
Essa tendência ao decisionismo político ficou bem remarcada na obra Teoria da Constituição
(Verfassungslehre), de 1928, em que Schmitt radica todo o substrato do ordenamento constitucional
no sentido “positivo” de constituição, cuja característica mais acentuada seria o reconhecimento
de que constituição emerge do poder constituinte como uma decisão. Assim, a constituição tem,
conforme Carl Schmitt (1996, p.104), “a determinação consciente da concreta forma de conjunto
pela qual se pronuncia ou decide a unidade política”, sendo assim substancialmente uma decisão
política do titular do poder constituinte.
Toda a teoria constitucional de Schmitt repousa nesses signos de “ordem total”, “ordem concreta”,
“direito-situação”, “constituição-decisão”, como forma de dar suporte à ideologia nacional-
socialista do nazismo. O Estado não detém mais o monopólio político, ele é “apenas um órgão do
líder comandante [Fuhrer] do movimento” (SCHMITT, apud MACEDO JUNIOR, 2001, p.216).
Consoante os ensinamentos de Walber Agra (2007, p.33), Schmitt não se preocupa com o teor
dessa decisão política, a valoração desse conteúdo jusfundamental; o “que interessa é se as normas
infraconstitucionais são compatíveis com a decisão política tomada pela Constituição”.
Em tempos recentes, a teoria de Schmitt passou a ser de fundamental interpretação, sobretudo para
os estudiosos do Direito Constitucional e da Filosofia Política contemporâneos. Não são poucos os
grandes embates doutrinários realizados à luz da polêmica discussão de Schmitt com Hans Kelsen
sobre quem deveria ser o guardião da constituição, enquanto titular do exercício da jurisdição
constitucional. Para o autor da Teoria Pura do Direito, não restam dúvidas que o papel de
guarda da Constituição incumbe ao Tribunal Constitucional (KELSEN, 1999). Para Schmitt (1983,
p. 83), no entanto, o legítimo defensor e, por conseguinte, detentor do poder último de controle de
constitucionalidade das normas, seria o Fuhrer, que detém a “competência das competências”. Esse
possui o “direito e a força para fundar um novo Estado e uma nova ordem”, “O Fuhrer protege o
direito, pois ele cria o direito sem medições, por força da sua liderança como Juiz Supremo”.
Referências:
HESSE, Konrad. A força normativa da Constituição. Trad. Gilmar Ferreira
Mendes. Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris, 1991.
LASSALLE, Ferdinand. O que é uma Constituição. Rio de Janeiro: Lumen
Juris, 1998.
[Há uma versão eletrônica da obra, que é de domínio público, disponível em: <http://
www.ebooksbrasil.org/eLibris/constituicaol.html>].
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Introdução à Teoria da Constituição │ UNIDADE I
A tipologia tradicional que se apresenta na doutrina é mais um desses esquemas, posto à disposição
do neófito para facilitar-lhe a percepção das diversas formas de constituição eventualmente
existentes. Em uma visão aprofundada, a classificação das constituições cumpre a função específica
de introduzir elementos complexos na teoria da constituição, apresentando modelos e paradigmas
que possam conduzir a novos modos de pensar o fenômeno constitucional.
As constituições podem ser classificadas de acordo com diversos fatores e critérios. Estabelecemos
prioritariamente o estudo tipológico da:
»» Origem da constituição.
»» Função da constituição.
Quanto à forma, as constituições são escritas ou não escritas. Escritas são aquelas que
consolidadas em um texto formal e solene, inspiram a proteção jurídica direta do Estado. As não
escritas se baseiam em usos e costumes, convenções e textos esparsos, e são assim consideradas
por alguns como consuetudinárias ou costumeiras. Vale lembrar, no entanto, que a existência
de documentos jurídicos esparsos e construções jurisprudenciais fazem com que, no mosaico de
normas constitucionais de um Estado, uma parte da normativa constitucional ostente forma escrita.
É o caso bem conhecido do Reino Unido (GALINDO, 2003).
Aliás, parece que essa classificação tem, como disciplina Gilmar Mendes, Coelho e Branco (2008,
p.15), utilidade de divulgar “a singularidade da experiência constitucional inglesa”. Apesar disso, há
registros, conforme Gisela Bester (2005, p.81), de outros países que possuiriam uma estrutura não
escrita similar: Hungria e Nova Zelândia.
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UNIDADE I │ Introdução à Teoria da Constituição
promulgada em uma Assembleia Nacional Constituinte, composta por membros eleitos pelo voto
direto da população, possui arranhões de práticas antidemocráticas. É que havia senadores eleitos
em 1982 – ainda no período de exceção, portanto –, cujos mandatos só expiraram em 1990 e que
participaram do processo constituinte como se tivessem sido eleitos pelo povo.
Em que pese esse eventual “déficit” de legitimidade popular, as constituições promulgadas são bem
diferentes das constituições outorgadas. Estas são impostas arbitrariamente por um ditador,
por um monarca ou mesmo por um grupo político que se encontra no poder. Aqui não há que se falar
em participação popular. Mas há quem defenda um subtipo originário com segundas intenções: as
chamadas constituições cesaristas. Em invocação à figura imperial do César, na Roma Antiga,
essas constituições são outorgadas, mas teriam sua validade condicionada à aprovação do povo, por
meio de plebiscito ou referendo.
Não precisamos ir muito longe para saber que se trata de uma fraude ao poder constituinte do povo:
no Chile, Pinochet impôs uma constituição de modo autoritário e a submeteu à vontade popular que
logicamente a aprovou, para não colidir com a força militar que respaldava o ditador sul-americano.
Em síntese, como afirma ironicamente Inocêncio Mártires Coelho (2008, p.15), são “constituições
outorgadas as decorrentes do arbítrio de governantes iluminados...”
Foi exatamente isso que aconteceu com a antiga União Soviética: a cada novo momento político-
institucional, uma nova constituição foi elaborada.
Por fim, merece registro a constituição dirigente, noção extremamente franca ao pensamento
constitucional contemporâneo e ardorosamente defendida por Canotilho. É o texto constitucional
que se projeta a dirigir a ação governamental do Estado, traçando-lhe metas e compromissos para
a consecução futura de toda a máquina de Estado. Tem a marca indelével da ideologia socialista,
pois estabelece programas de ação futura voltados à conformação da sociedade política em face a
necessárias transformações de ordem social. (CANOTILHO).
As constituições rígidas apresentam um processo dificultoso para sua reforma, em que rituais
específicos tomam lugar para que o poder político possa cogitar a modificação do seu texto. Assim,
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introdução à tEoriA dA ConStituição │ unidAdE i
distancia-se do processo legislativo comum, pois exigem iniciativa reservada a alguns atores
políticos e procedimentos solenes para a aprovação do texto modificativo. No caso do Brasil, em
que é possível a alteração da Constituição via emendas, tal como previsto no seu art. 60, apenas os
parlamentares, o presidente da República e os Estados-membros podem apresentar proposta de
modificação da Norma Ápice, tendo em conta limitações procedimentais formais, tais como votação
em dois turnos no Congresso Nacional, por maioria qualificada de 3/5 dos membros do Parlamento.
As constituições ditas flexíveis, ao contrário, são aquelas que podem ser modificadas ordinariamente,
tal como se mudam as leis em geral, ou cujo texto se altera quando são promulgadas disposições
legais em contrário.
Por seu turno, as constituições semirrígidas apresentam uma parte rígida e outra “flexível”. O setor
rígido da constituição exigiria o processo formal e solene de modificação via emenda constitucional,
ao passo em que o segmento flexível encerraria menos rigor para modificação, uma vez que se trata
de matéria meramente formal posta na constituição. Tal ocorreu com a Constituição brasileira
de 1824, para a qual se estabeleceu rito especial de revisão para a parte dita constitucional (que
dizia respeito aos limites e atribuições respectivas dos poderes políticos e aos direitos políticos e
individuais dos cidadãos) e “que tudo o mais, ou seja, aquilo que não fosse constitucional, poderia
ser alterado pelas legislaturas ordinárias”. (MENDES; COELHO; BRANCO, 2008, p.16).
Outra classificação relevante é a que toma em consideração a essência da constituição, ou, como
afirmou Karl Loewestein, sua real aplicabilidade face às necessidade de uma sociedade. Trata-se
de uma análise ontológica da constituição, em que esse autor identifica três tipos de constituições
conforme o grau de correspondência entre a pretensão normativa dos seus preceitos e a realidade
do processo do poder: as normativas, as nominalistas e as semânticas.
As constituições normativas, como explica Uadi Lammego Bulos (2007, p.39), seriam “aquelas
perfeitamente adaptadas ao fato social. Além de juridicamente válidas, estariam em total consonância
com o processo político”. Em linguagem clara e objetiva: o que está na constituição é cumprido.
As constituições nominais, por fim, são aquelas que revelam princípios e intenções de
conformação político-constitucional legítimas, mas cuja força normativa é débil e, por isso, não
corresponde ao plano político real. Ou seja, está em dessincronia com a realidade social.
Em síntese, com base em Jorge Miranda (1983, p.21), enquanto as constituições normativas limitam
efetivamente o poder e as nominais, embora não o façam, ainda têm essa finalidade, as constituições
ditas semânticas apenas servem para estabilizar e eternizar a intervenção dos dominadores de fato.
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unidAdE i │ introdução à tEoriA dA ConStituição
A Constituição real
Ferdinand Lassale
Colhem-se estes fatores reais de poder, registram-se em uma folha de papel, se lhes
dá a expressão escrita e, a partir desse momento, incorporados a um papel, já não
são simples fatores reais do poder, mas que se erigiram em direito, em instituições
jurídicas, e quem atentar contra eles atentará contra a lei e será castigado.
[...]
[...]
De nada serve o que se escreve numa folha de papel se não se ajusta à realidade, aos
fatores reais e efetivos do poder.
[...]
Quando podemos dizer que uma Constituição escrita é boa e duradoura? A resposta
é clara é parte logicamente de quanto temos exposto: Quando essa Constituição
escrita corresponder à Constituição real e tiver suas raízes nos fatores do poder
que regem o país. Onde a Constituição escrita não corresponder à real, irrompe
inevitavelmente um conflito que é impossível evitar e no qual, mais dia menos
dia, a Constituição escrita, a folha de papel, sucumbirá necessariamente, perante a
Constituição real, a das verdadeiras forças vitais do país.
[...]
Quando os meus ouvintes saibam que um partido político tem por lema o grito
angustioso “de cerrar fileiras em torno da Constituição!”, que devemos pensar?
Fazendo essa pergunta, não faço um apelo aos vossos desejos, não me dirijo à vossa
vontade. Pergunto, simplesmente, como a homens conscientes: Que devemos
pensar de um fato desses? Estou certo de que sem serdes profetas respondereis
prontamente: essa Constituição está nas últimas; podemos considerá-la morta, sem
existência; mais uns anos e terá deixado de existir. Os motivos são muito simples.
Quando uma Constituição escrita responde aos fatores reais do poder que regem
um país, não podemos ouvir esse grito de angústia. Ninguém seria capaz de fazê-lo,
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Introdução à Teoria da Constituição │ UNIDADE I
E se isto acontecer, se esse divórcio existir a Constituição escrita está liquidada; não
existe Deus nem força capaz de salvá-la. Essa Constituição poderá ser reformada
radicalmente, virando-a da direita para a esquerda, porém mantida integralmente,
nunca. Somente o fato de existir o grito de alarme que incite a conservá-la é uma
prova evidente da sua caducidade para aqueles que saibam ver com clareza. Poderão
encaminhá-la para a direita, se o Governo julgar necessária essa transformação para
opô-la à Constituição escrita, adaptando-a aos fatores reais do poder, isto é, ao poder
organizado da sociedade. Outras vezes, é o poder inorgânico desta que se levanta
para demonstrar que é superior ao poder organizado. Neste caso, a Constituição
se transforma virando para a esquerda, como anteriormente o tinha feito para a
direita; mas, num como noutro caso, a Constituição perece, está irremediavelmente
perdida, não pode salvar-se.
FONTE: Fragmentos de LASSALE, Ferdinand. O que é uma Constituição. Trad. Walter Stönner. São
Paulo: Edições e Publicações Brasil, 1933. [Versão digital gratuita disponível em:
<http://www.ebooksbrasil.org/eLibris/constituicaol.html>].
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Capítulo 2
Poder Constituinte e Poder de Reforma
Para Carlos Ayres Britto (2003, p.1), o poder constituinte é a própria soberania de um povo, que
se manifesta de modo inicial ou primário: “Se falamos assim de primariedade expressional da
soberania, é porque o povo-nação, já imerso no seu Estado, atua em outros momentos em que o
Direito Positivo costuma etiquetar como expressão de ‘soberania popular’”. É, assim, o poder que
tudo pode, pois emana da soberania do povo, substrato de uma nação.
É o caso da Constituição brasileira de 1988, cujo art. 14 faz dos institutos do sufrágio universal,
do voto, do plebiscito, do referendo e da iniciativa das leis pelos cidadãos uma forma de exercício,
justamente, da soberania (BRITTO, 2003, p.1).
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Introdução à Teoria da Constituição │ UNIDADE I
– é a própria lei”. Em sua visão, a nação é um corpo de associados que vivem sob uma lei comum
e representados pela mesma legislatura.
Walber Agra (2007, p.33) examina da seguinte maneira tais características: “Inicial porque,
teoricamente, seria a primeira lei do ordenamento jurídico”. Eis que (...) “a Constituição irá
representar ou a base da legitimação do ordenamento, em uma perspectiva sociológica, ou a fonte
de validade de todas as demais normas, em uma perspectiva normativista”. De outra sorte, é
autônomo porque “inexiste norma que possa influenciá-lo. Como marco zero da produção jurídica,
não há norma que o legitime – muito pelo contrário, ele é que serve de base de validade para as
demais leis”. E, por fim, ilimitado, “porque seu conteúdo não padece de impedimentos jurídicos”.
Ou seja, a Lei Fundamental do Estado pode dispor sobre qualquer assunto, de forma normativa,
sem nenhuma limitação.
A doutrina se divide entr e a natureza política e a natureza jurídica: a primeira doutrina assevera
que a constituição foi criada pela ingerência de um emaranhado de fatores sociais, expressando
uma decisão política, ou seja, a base da Lei Maior estaria radicada em fatos sociais. Para a segunda
doutrina, a base da Constituição estaria calcada em outra norma – a norma hipotética fundamental
–, inexistindo qualquer interferência de fatores sociológicos.
Para alguns autores como George Burdeau, Manoel Gonçalves Ferreira Filho e o próprio Sièyes, o
poder constituinte decorre do direito natural.
Em outra linha, Carl Schmitt (1996, p.104) acentua que o poder constituinte é poder de fato,
transcendendo ao direito positivo. Pelo que até estudamos (vide capítulo 1), é compreensível que
ele adote esse posicionamento.
Paulo Bonavides (2003) defende a natureza política do poder constituinte. Esse poder precede o
processo de criação das normas do Estado, sendo correspondente ao momento de materialização da
norma hipotética fundamental de Kelsen.
Assim, é lícito crer em uma preponderância da perspectiva política, uma vez que, apenas sob a lente
de Kelsen, calcado no pressuposto de validade do sistema jurídico, caríssimo à sua Teoria Pura do
Direito, poder-se-ia atestar a natureza essencialmente jurídica do poder constituinte.
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UNIDADE I │ Introdução à Teoria da Constituição
Quanto à titularidade do poder constituinte, Pinto Ferreira (1993) afirma que somente o povo tem a
competência para exercer os poderes de soberania. A Assembleia Constituinte, quando reunida para
a promulgação de constituições em um contexto de variável conformação popular/democrática,
é apenas o corpo representativo escolhido a fim de criar o texto constitucional. A titularidade é
sempre do povo, daí o termo soberania popular.
Aqui vale reprisar a advertência heraclitiana de Gomes Canotilho (2007, p.46): “Nenhuma
Constituição pode parar o vento com as mãos, nenhuma lei constitucional evita o ruir dos muros
dos processos históricos”. A partir da aceitação das mudanças na constituição, pôde a doutrina
desenvolver concepções acerca do poder de reforma, sua atuação, suas limitações, sua oportunidade
e exercício.
A titularidade do poder reformador pertence ao parlamento, que exerce então duas funções: a
função legislativa e a função reformadora, ambas com sede constitucional. A função legislativa
deriva do Poder Legislativo, porquanto a função reformadora resulta do Poder de Reforma, no
exercício excepcionalíssimo do poder constitucional atribuído ao Congresso Nacional. Cada poder
tem uma função e um fundamento jurídico distinto, necessitando também de diferentes graus de
legitimidade. Ao contrário do poder constituinte, o poder de reforma constitucional é derivado,
pois corresponde a um 2º grau do poder de criação constitucional, é condicionado e é limitado
juridicamente pelo próprio poder constituinte, como veremos a seguir. Trata-se mais propriamente
de um poder constituído.
Ao passo que o poder constituinte tem natureza política, o poder reformador possui essência
eminentemente jurídica, formulada dentro dos moldes legais da própria Constituição. Para
modificar a norma estruturante do Estado, dentro de parâmetros jurídicos traçados no próprio
texto da constituição, sua natureza, inexoravelmente, tem de ser jurídica3. (SAMPAIO, 1954)
3 Cf., nesse sentido, o insuperável texto de SAMPAIO, Nelson de Souza. O Poder de Reforma Constitucional. Bahia: Livraria
Progresso, 1954.
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Introdução à Teoria da Constituição │ UNIDADE I
O poder de reforma se manifesta por meio das emendas à Constituição. No nosso modelo
constitucional, a emenda é prevista no art. 60, da CF/1988.
Enquanto poder condicionado e derivado do poder constituinte, o poder reformado está sujeito a
diversos limites. Na hipótese de ser apresentada Proposta de Emenda Constitucional (PEC) e uma
comissão de parlamentares que a estude conclua que ela é contrária à Federação, ou à República, essa
PEC pode ser declarada inconstitucional. Esse limite é jurídico, pois assim expressa a Constituição
(art. 60, IV). Trata-se de um limite material explícito, comumente denominado de cláusula pétrea.
Vejamos, pois, quais são os limites jurídico-constitucionais ao poder de reforma. São quatro
categorias: (i) os limites materiais (explícitos e implícitos); (ii) os limites formais; (iii) os limites
temporais; e (iv) os limites circunstanciais.
Os limites materiais explícitos são as chamadas cláusulas pétreas. Como de geral conhecimento,
recebem esse nome os dispositivos que legislador constituinte elege como de magna dignidade, para
restarem imodificáveis por qualquer eventual mudança do texto constitucional. Assim, tornam-
se vedadas as propostas de emendas constitucionais tendentes a abolir qualquer um dos valores
expressamente consignados no Texto Maior, consoante a dicção do art. 60, § 4º, incisos I a IV
da Carta Maior. São eles: (i) a forma federativa do Estado; (ii) o voto direto, secreto, universal e
periódico; (iii) a separação dos poderes; e (iv) os direitos fundamentais.
Nessa altura, cabe destacar que não é toda matéria associada a algum dos valores identificados
como cláusulas pétreas que lhes arranha seu conteúdo. Só aquelas tendentes a abolir ou a subverter
a extensão dos bens constitucionais salvaguardados é que devem ser configuradas como propostas
tendentes a desfigurar a substância constitucional intangível. Como exemplo, a Associação dos
Magistrados do Brasil (AMB) se insurgiu contra a proposta de criação do Conselho Nacional de
Justiça (CNJ), no bojo da denominada Reforma do Judiciário (Emenda Constitucional nº 45, de
2004). Alegava a AMB que a instituição do denominado “controle externo do Poder Judiciário”
malferiria a cláusula da divisão do poder do Estado. Em que pese o órgão de controle resultar
em alguma mitigação da margem de liberdade da magistratura nacional, em momento algum a
instituição do CNJ significou desvirtuamento da cláusula pétrea ventilada.
Outra questão que assume grande relevância diz respeito ao inciso IV do § 4º, do art. 60, cujo
dispositivo inscreve apenas os direitos e garantias individuais como cláusulas pétreas. Será que essa
dicção exclui os direitos sociais e econômicos, restringindo-se, assim, a proteção àqueles direitos
clássicos de 1ª dimensão, que encerram um dever de abstenção do Estado e não um dever de o
Estado assegurar condições de vida por meio de prestações positivas?
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UNIDADE I │ Introdução à Teoria da Constituição
Tal entendimento é sustentado pela construção jurisprudencial do Supremo Tribunal Federal, que
pode ser considerada uma mutação constitucional, como veremos a seguir. O STF (1999) já decidiu
no seguinte sentido: “a proposta de emenda tendente a abolir a licença maternidade a que se refere
o art. 7º, inc. XVIII, da CF não será objeto de deliberação”. Trata-se, portanto, da extensão da
proteção constitucional máxima a um direito social das trabalhadoras.
Devemos mencionar, também, a existência de limites materiais implícitos. Será que além das
cláusulas pétreas elencadas pelo próprio constituinte, seria possível descobrir-se outras limitações
de ordem material ao poder de reforma?
Segundo Nelson de Souza Sampaio (1995), há que se concordar que algumas normas constitucionais
estão fora do alcance do poder revisor: (i) as relativas aos direitos fundamentais – como já se entendeu
a partir da própria interpretação conforme do art. 60, § 4º, IV; (ii) as concernentes ao titular do
poder constituinte (art. 1º, parágrafo único); (iii) as referentes ao titular do poder reformador; e (iv)
as relativas ao processo da própria emenda ou revisão constitucional.
A nossa Constituição impõe, também, limites formais. São aqueles relacionados à própria
forma, ao próprio processo de alteração da Constituição. Podem ser chamadas, também, de limites
procedimentais. Toda constituição rígida necessariamente deve conter limites formais ao poder
de modificação dos seus dispositivos. Se ela não contiver limites formais não é rígida e pode ser
alterada da mesma forma como se edita uma lei infraconstitucional. Então, os limites formais são
relacionados ao processo de mudança da Constituição.
De acordo com § 2º do art. 60 da CF/88, a PEC “será discutida e votada em cada Casa do Congresso
Nacional, em dois turnos, considerando-se aprovada se obtiver, em ambos, três quintos dos votos
dos respectivos membros”. Como condição procedimental, deve se observar a deliberação bicameral,
nas duas casas separadamente e, em cada uma delas, duas votações, sempre atingindo o quórum de
3/5 dos membros. Na Ordem Constitucional anterior (1967-69) o quorum era de 2/3.
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Introdução à Teoria da Constituição │ UNIDADE I
prevê 2/3 do Poder Legislativo Federal, em primeiro plano e, depois, a submissão à aprovação por
4/5 das Assembleias Legislativas dos Estados ou por plebiscito nos Estados.
Enfim, apesar da suposta rigidez trazida com a ideia de um processo solene com quorum especial e
dois turnos de votação, o Brasil já conta com 56 emendas constitucionais e 6 emendas constitucionais
revisionais, desde 1988. Daí a recorrente brincadeira que contam alguns constitucionalistas de
que, ao solicitarem um exemplar da CF/88 nas livrarias, recebem uma negativa do vendedor: “Não
trabalhamos com periódicos”.
Mudar a Constituição é o mesmo que promover a reforma do Estado e de suas fundações políticas,
tanto maior o abalo se a matéria modificada tiver viés sociopolítico e conteúdo jusfundamental. O
pior é que as emendas sequer são aprovadas com o consenso relativo entre as forças políticas mais
relevantes presentes num determinado momento, pois a maioria exigida não é tão difícil de ser
conseguida, ao passo em que a oposição resta desarticulada.
Outro ponto relevante é a questão da iniciativa para a PEC. Os incisos do caput do art. 60, da
CF/88, estabelecem que só os seguintes atores podem apresentar proposta de emenda: (i) um terço,
no mínimo, dos membros da Câmara dos Deputados ou do Senado Federal; (ii) o Presidente da
República; e (iii) o consórcio da maioria simples dos Estados-membros, manifestando-se, cada um
deles, pela maioria relativa de seus deputados estaduais.
Ou seja, apesar de o poder constituinte ser legitimamente emanado do povo, em virtude dos
contornos procedimentais do art. 60, não existe a possibilidade de PEC de iniciativa popular, o que
é duramente criticado por Paulo Bonavides (2007):
Os denominados limites temporais ao poder de reforma são aqueles que instituem um lapso
temporal durante o qual a constituição não poderá ser emendada. Ela pode estipular, por exemplo,
que alguns dos seus dispositivos ou todos eles só poderiam ser modificados a partir de uma
4 No ano passado, o constitucionalista paraibano, radicado no Ceará e professor doutor honoris causae pela Universidade de
Lisboa, deflagrou uma campanha de âmbito nacional, com o objetivo de ampliar a democracia participativa na vida política do
País. Ele considera que um dos mais significativos passos da campanha, segundo ele, é a necessidade de introdução de um inciso
(o IV) ao art. 60 da CF/88, fixando a possibilidade de o texto constitucional ser emendado também mediante iniciativa popular.
A OAB nacional já criou, inclusive, Comissão Especial de Apoio à Emenda Constitucional de Iniciativa Popular, cujo presidente
é o próprio Bonavides. A Comissão é integrada, ainda, pelos constitucionalistas Paulo Lopo Saraiva, Ruy Samuel Espíndola,
Flavia Cristina Piovesan e Luiz Alberto David Araújo.
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unidAdE i │ introdução à tEoriA dA ConStituição
determinado interregno, a partir de uma determinada data. Foi o caso da Constituição Política do
Império do Brasil (1824), a única da história constitucional pátria a prever algo do gênero: o art.
174 demarcava vedação expressa a qualquer modificação do texto constitucional no período de 4
(quatro) anos após a outorga do Estatuto Político do Império. Eis o teor do citado dispositivo: “Se
passados quatro annos, depois de jurada a Constituição do Brazil, se conhecer, que algum dos seus
artigos merece reforma, se fará a proposição por escripto, a qual deve ter origem na Câmara dos
Deputados, e ser apoiada por terça parte delles”.
revisão Constitucional
O art. 3º do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias (ADCT), da Constituição de 1988,
determinou a realização de uma revisão constitucional após cinco anos da promulgação do texto em
destaque, pelo voto da maioria absoluta dos membros do Congresso Nacional, em sessão conjunta.
Trata-se de instituto decorrente do poder reformador, mas que guarda características próprias. Do
que se extrai do teor do dispositivo e do que efetivamente ocorreu em 1993 (de forma açodada e
desprestigiada), trata-se de um fenômeno que possibilita a mudança do texto constitucional com
muito menos rigor do que seria se provocado pelo processo convencional previsto no art. 60 da
CF/88.
A revisão constitucional estava prevista para corrigir eventuais mudanças no cenário institucional do
Estado brasileiro, tendo em conta o plebiscito sobre o sistema de governo e o regime político adotados,
nos termos do art. 2º do ADCT. Concluída com apenas seis modificações no texto constitucional
(emendas constitucionais de revisão), não há que se falar mais em revisão constitucional no Brasil.
Mas tramita silenciosamente uma proposta de emenda à Constituição que desencadeou o debate
em torno de uma nova revisão da Constituição de 1988. Trata-se da PEC 157/2003, apresentada
pelo Deputado Luiz Carlos Santos (DEM-SP), com substitutivo redigido pelo Deputado Michel
Temer (PMDB-SP), já aprovada na Comissão de Constituição e Justiça da Câmara dos Deputados e
aguardando votação em Plenário desde 2006.
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Introdução à Teoria da Constituição │ UNIDADE I
Consoante explicam Menelick de Carvalho Netto e Cristiano Paixão (apud MOLINARO et al., 2007),
a PEC 157/03 propõe a
Na senda crítica desses dois autores, que são professores da Universidade de Brasília, nota-se que
movimentos como a citada PEC transformam a Carta em “um obstáculo a ser removido”– e com
isso fica subaproveitada a riquíssima experiência do processo constituinte”. Em outra passagem
provocam:
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UNIDADE I │ Introdução à Teoria da Constituição
Alguns juristas portugueses, como Jorge Miranda, defendem essa possibilidade, partindo da
premissa de que o titular do poder constituinte é o povo e a vontade popular é transbordante a ponto
de se preferir a dupla revisão a uma radical ruptura com a ordem institucional.
Edmund Burke costumava dizer que a constituição não é receita de pudim. Vale dizer, nem tudo o que
é válido num contexto cultural diverso pode ser transferido acriticamente para nosso ordenamento.
No País do “jeitinho” e do “mensalão”, temos que ter cuidado com propostas como a PEC 157/2003,
que, silenciosamente, podem emplacar argumentos como o utilizado pelo então Ministro do STF e
ex-parlamentar constituinte Nelson Jobim, de que a revisão seria como “uma lipoaspiração” para
retirar as gorduras do Texto Constitucional; e conduzir, quem sabe, a expedientes deletérios como
o duplo poder de revisão.
Em nossa opinião, propostas de revisão constitucional como a PEC 157 e, até piores, como a de uma
constituinte exclusiva, são fraudes visíveis ao momento constitucional vivido, que podemos assinalar
como experiência única. Por isso, concordamos com Lenio Streck, quando afirma que, em quase 18
anos, “passamos por crises econômicas, uma revisão constitucional, reformas constitucionais e um
impeachment. E na mais plena normalidade. Como agora. E tudo isto acontece – com transmissão
ao vivo – exatamente porque existe democracia”.
Não devemos desperdiçar a experiência constitucional que vivenciamos: é preciso dar aplicabilidade
à Constituição, promover sua evolução, não retalhá-la, conforme interesses setoriais ilegítimos, que
surgem exatamente em meio a crises éticas. (RABAY, 2008).
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introdução à tEoriA dA ConStituição │ unidAdE i
Você concorda com a revisão constitucional, nos termos propostos pela PEC 157?
Opine com fundamento na teoria constitucional.
Consoante explica Walber Agra (2007, p.14-15), o poder decorrente é “legatário” da forma de Estado
federativa e existe em nossa tradição constitucional desde os albores da República. “A Constituição
de 1988 determinou que cada Assembléia Legislativa, com poderes plenipotenciários, elaborasse as
respectivas Constituições estaduais, no prazo de um ano, contada da data da promulgação da Lex
Mater, respeitando as prerrogativas de repetição obrigatória desta”.
Para os doutrinadores tradicionais, trata-se de uma espécie do gênero “poder constituinte derivado”.
Mas preferimos denominá-lo espécie do gênero poder constituinte de 2º grau, do qual também é
espécie o poder reformador e a revisão constitucional.
Mutação Constitucional
Ao lado da reforma constitucional, existe o que se chama mudança constitucional. Pode a Constituição,
sem uma reforma solene, sofrer mudanças graduais constantemente. São os chamados processos
informais de mudança da constituição, sintetizados na expressão mutação constitucional
(verfassungsaenderung). Alguns doutrinadores denominam esses processos informais de
vicissitudes constitucionais tácitas, transições constitucionais ou processos oblíquos.
Uadi Lammêgo Bulos (1997), autor de uma tese de doutorado sobre o tema, sob a orientação da
Professora Anna Cândida Ferraz, identifica a mutação constitucional como uma outra “etapa” do
poder constituinte. Seria fruto de um poder constituinte “difuso”, noção peculiar que merece atenção
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UNIDADE I │ Introdução à Teoria da Constituição
por parte dos estudiosos do Direito Constitucional: “enquanto o poder originário é a potência, que
faz a constituição, e o poder derivado, a competência, que a reformula, o poder difuso é a força
invisível que a altera, mas sem mudar-lhe uma vírgula sequer” (BULOS, 2007).
Em seu voto-vista no julgamento da Reclamação 4.335-5-AC, o Min. Eros Grau sintetiza importantes
lições sobre o tema:
A construção constitucional que gera mutação é inspirada na prática conhecida como construction,
oriunda da Suprema Corte dos EUA. Trata-se, na inteligência de BULOS (2007, p.320), de
“expediente supletivo que permite ao Poder Judiciário elaborar e, até, recompor o direito a ser aplicado
no caso concreto”. Na já mencionada Reclamação Constitucional 4.335-5/AC, o Min. Gilmar Mendes,
relator, sugere a ocorrência de mutação do art. 52, inc. X, da Constituição, atribuindo ao Senado
Federal competência privativa para dar publicidade à suspensão da execução de lei declarada
inconstitucional, no todo ou em parte, por decisão definitiva do Supremo Tribunal Federal. A dicção
normativa textual é a seguinte: “compete privativamente ao Senado Federal suspender a execução,
no todo ou em parte, de lei declarada inconstitucional por decisão definitiva do Supremo Tribunal
Federal”. Segundo o Min. Gilmar Mendes, a própria decisão do Supremo conteria força normativa
5 Assim, “o conceito de casa estende-se ao escritório de empresa comercial” (STF, RE 331.303 AgRg-PR, Rel. Min. Sepúlveda
Pertence, publicado no Diário da Justiça de 10 fev. 2004).
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introdução à tEoriA dA ConStituição │ unidAdE i
bastante para suspender a execução da lei declarada inconstitucional. Trata-se de uma construção
constitucional a gerar autêntica modificação informal no Texto de 1988.
Por fim, resta mencionar as convenções, usos e costumes constitucionais: “no Brasil tivemos as
práticas parlamentaristas do Segundo Império, inteiramente à margem e até mesmo contra
dispositivos da Carta Política de 1824, que dava ao Imperador o poder de nomear e demitir
livremente seus ministros. Na França [...] a atrofia do direito de dissolução do Presidente diante do
Parlamento, anulando norma expressa na Constituição, provocou uma mudança difusa, através de
um uso constitucional”.
A Nação existe antes de tudo, ela é a origem de tudo. Sua vontade é sempre legal, é
a própria lei. Antes dela e acima dela só existe o direito natural. Se quisermos ter uma
idéia exata da série de leis positivas que só podem emanar de sua vontade, vemos,
em primeira linha, as leis constitucionais que se dividem em duas partes: umas
regulam a organização e as funções do corpo legislativo; as outras determinam a
organização e as funções dos diferentes corpos ativos. Essas leis são chamadas de
fundamentais não no sentido de que se podem tornar independentes da vontade
nacional, mas porque os corpos que existem e agem por elas não podem tocá-
las. Em cada parte a Constituição não é obra do poder constituído, mas do poder
constituinte. Nenhuma espécie de poder delegado pode mudar nada nas condições
de sua delegação. É neste sentido que as leis constitucionais são fundamentais. As
primeiras, as que estabelecem a legislatura, são fundadas pela vontade nacional
antes de qualquer constituição; formam seu primeiro grau. As segundas devem ser
estabelecidas por uma vontade representativa especial. Deste modo todas as partes
do governo dependem em última análise da Nação.
41
unidAdE i │ introdução à tEoriA dA ConStituição
A temática do poder constituinte tem sido objeto de reflexão por parte de cientistas
políticos, juristas e sociólogos desde a sua concepção, esboçada na prática constituinte
norte-americana e elaborada por Sièyes no século XVIII no curso da Revolução
Francesa. Teoria de cunho claramente iluminista, afirma a possibilidade de se criar uma
ordem jurídico-política do novo, rompendo totalmente com o passado, inaugurando
o futuro pelo próprio ato presente da ruptura política. Embora diretamente tributário
dessa pretensão racional iluminista excessiva, foi precisamente esse o cerne da teoria
mantido intacto ao longo de mais de dois séculos de experiência constitucional.
42
Introdução à Teoria da Constituição │ UNIDADE I
43
UNIDADE I │ Introdução à Teoria da Constituição
Para que uma sociedade seja de fato democrática, seus membros devem levar a
sério o direito. A práxis constitucional que atualiza o direito não se faz somente por
meio das instituições estatais.
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introdução à tEoriA dA ConStituição │ unidAdE i
45
UNIDADE I │ Introdução à Teoria da Constituição
Em síntese, essa proposta de revisão prevista na PEC 157 é apenas mais uma
manobra escusa para encobrir a ausência de enfrentamento sério que reforçasse a
crença em instituições vigorosas neste país. O desvio proposto encobre o aspecto
parcial e insuficiente das condenações havidas no Conselho de Ética, por exemplo,
deslocando o foco das atenções para um suposto problema de texto normativo. Na
verdade, não há nada que possa ser abertamente apresentado ao debate público
como uma justificativa para a ruptura institucional que se propõe, seja através de
uma assembléia constituinte exclusiva, seja mediante uma revisão não autorizada
pela própria Constituição. O outro do constitucionalismo foi historicamente o Ancien
Régime, a sociedade de castas, o absolutismo; e hoje nos revisita sob a capa do
argumento da governabilidade, expressando o saudosismo dos governos absolutos
monocráticos e unitários. Aliás, usar o ícone povo contra a democracia é hoje uma
prática constitucionalmente inadmissível, até pelo saber acumulado a partir das
experiências históricas que já vivenciamos. Buscando novamente socorro em Marx:
os eventos históricos se dão como tragédia, mas se repetem como farsa. Com as
tragédias, podemos e devemos aprender; com as farsas, apenas nos iludir.
Numa palavra: não se dissolve um regime democrático porque ser quer fazer outro
(como seria esse “outro”?). A Constituição é coisa séria, fruto de uma repactuação
(“we the people...”). E nela colocamos cláusulas pétreas e forma especial de elaborar
emendas. Portanto, alto lá! Paremos de brincadeiras. Não se pode fazer política
e vender falsas ilusões em cima daquilo que é a substância das democracias
contemporâneas: o constitucionalismo.
FONTE: Fragmentos de STRECK, Lenio Luiz, et al. de. Revisão é golpe! Porque ser contra a
proposta de revisão constitucional. Jus Navigandi.
46
Capítulo 3
Evolução Histórica do Pensamento
Constitucional
Como já referiu Bäumlin (apud CANOTILHO, 1993, p.248): “A história das constituições é a história
apaixonada dos homens”.
Esclarece Gisela Bester (2005, p.32-33) os horizontes da democracia constitucional grega, a partir
da lição de Karl Loewestein:
O sentido que identifica a constituição como norma jurídica começa a surgir na Inglaterra e em outros
países da Europa na Baixa Idade Média. Nos reinos de Leão e Castela, havia a prática dos chamados
juras et libertatis – juramento que no momento da coroação os reis faziam, comprometendo-se a
respeito de certos direitos de seus súditos. A partir dessa prática, começou a se formar o conceito
de limitação do poder estatal e a ideia em torno da qual a constituição e o constitucionalismo vão
gravitar.
47
UNIDADE I │ Introdução à Teoria da Constituição
Esse conceito vai assumir um contorno mais definido na Inglaterra depois da Magna Charta
Libertatum, em 1215. Essa Magna Carta, em verdade, não corresponde a uma constituição, posto
que ela foi apenas um pacto foral que o rei John Lackland (João Sem Terra) celebrou com os nobres
e com o clero. Ele propôs esse pacto visando obter o apoio dos nobres, para que eles aceitassem a sua
soberania prestando-lhe vassalagem em troca de benefícios que ele lhes daria, durante seu reinado.
Com o passar dos anos, a Magna Carta começou a ser usada pelos outros cidadãos ingleses que
não pertenciam ao alto clero e a nobreza. Em meados do século XVII, por influência de Sir Edward
Coke, intérprete do célebre Pacto, surgiu uma nova visão do significado político liberal da proto-
constituição, qual seja, a de ampliação das garantias preconizadas a todos os cidadãos da Grã
Bretanha. Ainda no século XVII, uma série de outros documentos constitucionais ingleses foi
elaborada com essa inspiração:
Contudo, não havia nesses documentos ingleses algo visceral ao conceito de constituição, a ideia
de que por meio daquele documento está se fundando o Estado, constituindo-se uma organização
sociopolítica regrada na lei. Nelson Saldanha (2000, p.52-53) ressalta, entretanto, que, com a
edição da Bill of Rights e do Act of Settlement, a Inglaterra insculpiu em definitivo o paradigma
constitucional: “Com a revolução de 1688, sobretudo através do Bill of Rights e do Act of Settlement,
a Inglaterra revelou ao mundo ocidental o parlamentarismo (tão difícil de ser imitado) e deu o
modelo das listas-de-direitos que estadeiam reivindicações e restruturam o Estado”
Os britânicos davam aos seus documentos constitucionais uma natureza declaratória, a cristalização
de certos valores anteriores. A ideia era restabelecer direitos anteriores que o monarca atual estava
descumprindo, porém não se criava nada. Além das liberdades eclesiásticas, das regras do Tribunal
do Júri e do esboço de um sistema de responsabilização dos reis perante os súditos, a Inglaterra legou
também o brocardo no taxation without representation – “nenhuma taxação sem representação
parlamentar”. (BESTER, 2005, p.40)
Para Nelson Saldanha (2000, p.54), a singularidade do constitucionalismo inglês deve-se ao fato de
que, diferente do que se passou na França, não houve no Reino Unido
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Introdução à Teoria da Constituição │ UNIDADE I
Apesar de não possuir até os dias atuais uma constituição escrita, em razão da precedência histórica
da Magna Carta e da Bill of Rights¸ que continua sendo a mais importante lei constitucional da
Inglaterra, diz-se que “o constitucionalismo é um invento britânico, ou mais concretamente inglês”
(CLAVERO, 1997 apud BESTER, 2005).
Desse modo, sedimenta Gisela Bester (2005, p.46): “Já no século XVIII transcendia a notícia de que
uma ilha guardava o apreciado tesouro da Happy Constitution: da Constituição afortunada!”
Uma coisa é certa: foi a experiência constitucional inglesa que permitiu o surgimento da proteção
aos direitos fundamentais com garantias processuais e a tendência de necessária tutela judicial
efetiva.
Esse movimento, segundo Karnal (2003, p.135-137), contemplou duas etapas: a Convenção
e Declaração da Colônia da Virgínia, proclamada em 20 de julho de 1776 – que consagrou
os direitos individuais fundamentais nos moldes do que chamamos hoje de direitos civis – e a
Declaração da Independência das Colônias Norte-Americanas, ocorrida aos quatro dias de
julho do mesmo ano.
Nesse sentido, as circunstâncias históricas nas quais o movimento aconteceu fizeram com que
a noção de participação popular fosse instaurada na consciência da sociedade norte-americana.
Assim, em razão da inexistência de um Parlamento ou mesmo de uma nobreza que fizesse oposição
ao absolutismo, o governo era exercido pelo próprio povo, na figura de um homem comum, simples
e honesto. A situação era, pois, propícia à instauração de um governo democrático, inspirado na
igualdade natural entre os homens e na ideia de governo cujo poder é consentido pelos governados.
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UNIDADE I │ Introdução à Teoria da Constituição
A Constituição dos Estados Unidos data de 1787. É, ao menos em termos formais, a primeira
constituição escrita do mundo, portanto. E o mais surpreendente: continua em vigor com seus
apenas sete artigos originais e suas 27 emendas.
A riqueza dessa Carta Política é incontestável: “Nela, pela primeira vez, se via a superação do Estado
pela sociedade civil, operando-se a afirmação do princípio da soberania popular, eis que em sua
célebre frase de abertura se vê: We the people (‘nós, o povo’)” (BESTER, 2005, p.47).
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Introdução à Teoria da Constituição │ UNIDADE I
A Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão de 1789, em seu art. 16, deixa clara a presença
ineliminável do constitucionalismo: “Art. 16. Toda sociedade na qual a garantia dos Direitos não é
assegurada, nem a separação dos poderes determinada, não tem constituição”.
A sociedade civil e o Estado passaram a buscar limites jurídicos para dirigir a atuação do governo.
Condicionar o Estado ao Direito passa a ser a grande revolução copernicana da sociedade burguesa.
O lema revolucionário francês (“liberdade, fraternidade e igualdade”) serviu de “esteio
à configuração de Estado não-interventor nos negócios individuais; sociedade política mera
espectadora do que se sucedia no torvelinho das relações sociais”.
Por um lado, o constitucionalismo liberal vai criar uma determinada arquitetura de organização do
poder que é erigida com finalidade específica de moldar a mínima intervenção do Estado e com isso
impedir que ele conspurque os direitos do homem.
Por outro, as Constituições vão passar a garantir certas liberdades públicas, certas barreiras
que protegem a autonomia privada do indivíduo, impedindo uma intervenção estatal em certos
domínios. Esses diretos, via de regra, vão se traduzir na exigência de abstenção do poder estatal,
como, por exemplo, a liberdade de religião, na medida em que o Estado se abstém de impor uma
religião oficial e obrigatória ou de perseguir quem professe um determinado credo contrário ao
dominante. Daí o termo liberdades negativas, cunhado para caracterizar os chamados direitos de
defesa, correspondentes ao constitucionalismo liberal clássico (CANOTILHO, p.536).
Deve-se, entretanto, a John Locke (1998), a pioneira ideia de limitação do poder político estatal.
O governo, dizia Locke, deve apenas regular e preservar a propriedade privada, sendo ainda
dividido em poder legislativo, poder executivo e poder federativo, que, posteriormente, veio a
ser denominado de legislativo, executivo e judiciário por Montesquieu no livro O espírito das leis
(MONTESQUIEU, 1979).
A Revolução Francesa, promovida por uma população descontente, capitaneada pela burguesia – e
sob a inspiração das Revoluções Inglesa e Americana –, apresentou ao mundo não uma constituição,
mas uma declaração jusnaturalista.
51
unidAdE i │ introdução à tEoriA dA ConStituição
que os Direitos Humanos foram positivados em forma de documento legal. Apesar de seu caráter
restritivo, posto que contemplava sobremaneira os interesses dos cidadãos, ela se constitui como
um marco decisivo para a expansão e consolidação dos direitos fundamentais. Ela reinstaura a
figura do cidadão e de seus direitos de uma maneira clara e inalienável. Além de contemplar os
direitos naturais, próprios à condição humana, a Declaração francesa estabeleceu os direitos civis e
a exigência de o Estado os respeitar, bem como os direitos políticos que asseguravam a participação
dos cidadãos nas decisões do governo.
Com efeito, a figura do cidadão está presente tanto nos preceitos referentes aos direitos civis quanto
no que diz respeito aos direitos políticos. Nesse sentido, a ideia de cidadania está consignada na
relação do indivíduo com o Estado, exigindo que este garanta a fruição das liberdades civis e assegure
o exercício das prerrogativas políticas de participação popular na condução do governo. O Estado de
que se trata é o Estado-Nação do qual o indivíduo faz parte como membro, tornando-se, a partir de tal
reconhecimento, portador do estatuto de cidadania.
o Constitucionalismo Social
Essa etapa do pensamento constitucional, caracterizada pelo surgimento das primeiras
constitucionais socialistas do mundo – a Constituição Mexicana de 1917 e a Constituição Alemã
de 1919 –, corresponde a uma nova viragem no papel da constituição, consistente na proteção dos
direitos sociais.
O absenteísmo do laisser faire laisser passer não mais se justificava. O constitucionalismo social é,
assim, marcado pela consagração das chamadas liberdades positivas e não meramente negativas.
Em outras palavras, o Estado adota uma nova postura com relação aos cidadãos, passando a intervir
nos domínios da economia e demais relações sociais, de modo a equalizar desigualdades, em
reconhecimento àquilo que Ricardo Lobo Torres denominou mínimo existencial.
Tal qual orienta Patrícia Curi (2005. p.86), “percebeu-se que não bastava a não-interferência nas
liberdades individuais dos jurisdicionados, sendo necessária, também, a atitude positiva do Estado,
no sentido de garantir, por meio de ações, os direitos mínimos e imprescindíveis à existência digna
do ser humano”.
52
introdução à tEoriA dA ConStituição │ unidAdE i
o neoconstitucionalismo
Vivendo a condição pós-moderna, marcada por aceleradas transições de paradigmas, a
sociedade hipercomplexa busca no Direito uma ferramenta para neutralização das crises e
indefinições da nova Era. Reconhecidamente inoperante, a dogmática jurídica tradicional
não consegue apresentar as alternativas necessárias para o tão almejado equilíbrio societal.
A nova era da constituição corresponde, como demonstra Streck (2003), ao momento metodológico
da chamada “Nova Crítica do Direito”, de um novo horizonte argumentativo e hermenêutico em
que se busca compatibilizar a eticidade, o humanismo, o principio democrático e a segurança das
relações sociais. No dizer de Barroso (2005):
Com isso, avulta o papel da denominada jurisdição em matéria constitucional, abrindo sendas
para uma maior concretização da vontade expressa na Carta Política, farol inobliterável das
garantias cidadãs. E o desenvolvimento dessa passa pelo estudo comparado de outros sistemas
constitucionais de nosso tempo e do passado.
http://jus2.uol.com.br/doutrina/texto.asp?id=7547
53
unidAdE i │ introdução à tEoriA dA ConStituição
Assim sendo, muito embora todos os avanços ocorridos nas últimas décadas,
é inegável que o paradigma do Estado Democrático de Direito ainda não foi
devidamente compreendido e a Constituição ainda está por se concretizar. Dito de
outro modo, o próprio constitucionalismo brasileiro encontra-se em um estado de
incertezas, haja vista a atual dicotomia verificada entre o estático discurso sustentado
pela doutrina e a vertiginosa velocidade com que se transformam as relações sociais
no mundo pós-moderno.
54
introdução à tEoriA dA ConStituição │ unidAdE i
Todavia, seria ingênuo pretender, com esta edição, esgotar todas as variantes e
peculiariedades que envolvem a temática a que nos propomos trazer a público.
Trata-se, na verdade, apenas de uma estratégia que visa incitar a reflexão e o debate,
tendo em vista o novo paradigma constitucional que se impõe – e mostra-se
inevitável – à atual realidade jurídica.
FILMES:
55
Capítulo 4
Constituições Brasileiras
Razão de Ordem
Constituições, como diria Barroso (1996), “não nos faltaram”; “nesta matéria teremos pecado mais
pelo excesso do que pela escassez”, complementa. Como habitualmente se estuda, em 180 anos
de Independência e 100 anos de República, oito Constituições foram editadas: (i) em 1824, com a
primeira Carta, ainda no Império; (ii) em 1891, a primeira da República; (iii) em 1934, a incursão
social-populista de Getúlio Vargas; (iv) em 1937, uma Constituição antidemocrática, que veio a
lume com o golpe perpetrado pelo próprio Vargas; (v) em 1946, um avanço para o exercício dos
direitos políticos; (vi) em 1967, o retrocesso de uma nova ditadura (golpe militar de 1964); e (vii)
em 1988, com a Constituição dita cidadã, como cediço, em vigor. A oitava constituição que se pode
referir concerne ao texto com que passou a vigorar na Constituição de 1967, após 17/10/1969, que,
embora formalmente alterado pela Emenda Constitucional nº 1, traduz-se, materialmente, em uma
nova Constituição, como frequentemente assinala a doutrina mais autorizada.
A Carta de 1824
Como pondera Barroso, a “história constitucional brasileira inicia-se sob o símbolo da outorga. A
ulterior submissão da Carta de 1824 à ratificação das províncias, ao contrário da indulgente avaliação
de autores ilustres, não permite se lhe aponha o selo da aprovação popular, por mais estreitos que
sejam os critérios utilizados para identificá-la”.
56
Introdução à Teoria da Constituição │ UNIDADE I
»» a existência de sufrágio censitário, sendo vedado o direito de voto àqueles que não
tiverem renda líquida anual de cem mil réis por bens de raiz, indústria, comércio,
ou empregos e, em relação à capacidade eleitoral passiva, ou seja, o direito de ser
eleito para ocupar algum cargo político também havia necessidade de comprovação
de renda mínima proporcional ao cargo pretendido;
57
UNIDADE I │ Introdução à Teoria da Constituição
»» O habeas corpus previsto, no art. 72, § 22: “dar-se-á o habeas corpus, sempre que
o indivíduo sofrer ou se achar em iminente perigo de sofrer violência ou coação por
ilegalidade ou abuso de poder”.
»» A separação entre a Igreja e o Estado, não sendo mais assegurada à religião católica
o status de religião oficial. Desse modo, foi estabelecido o direito de culto externo a
todas as religiões.
Foram instituídos o Tribunal de Contas e o Supremo Tribunal Federal, nos moldes do sistema
americano de judicial review.
A Constituição de 1934
Para compreender a exata dimensão do que representou a Constituição de 1934 no cenário político-
institucional brasileiro, mister se faz a análise de seu contexto histórico. Os fatos que antecederam
essa Constituição ajudam a entender o seu surgimento, como narra, em acertada síntese, Alkimim
Pimenta (2007, p.37)):
58
Introdução à Teoria da Constituição │ UNIDADE I
A Revolução de 1930 trouxe abaixo a primeira República. Com a tomada do Poder realizada por
Getúlio Vargas, o qual tinha como ideológica política as questões socioeconômicas, em confronto
com a política liberal, promulga-se uma Constituição com diretrizes sociais, que apresenta as
principais características em questão:
Apesar das conquistas que representou, em especial no que toca aos direitos sociais, a Constituição
de 1934 teve curtíssima consistência, como explica Alkimim Pimenta (2007, p.238):
59
UNIDADE I │ Introdução à Teoria da Constituição
das eleições marcadas para 1938, Vargas institui uma ditadura constitucional, engenhosamente
denominada de Estado Novo, que iria durar até 1945. Pedra angular do regime ditatorial, a
Constituição de 1937, denominada Constituição Polaca, em alusão às pretensas semelhanças com
a Carta ditatorial polonesa de 1935, foi elaborada pelo jurista e então Ministro da Justiça Francisco
Campos, o famoso “Chico Ciência”.
Em sua análise, Barroso (1996, p.22-23) destaca que se trata de uma anticonstituição e que sequer
teria existido, pois Francisco Campos previu um plebiscito popular, condicionante da vigência do
Texto, que nunca ocorreu:
Durante todo o período, Vargas esteve à frente da ditadura constitucional que instalou, legislando e
promovendo desmandos irrefletidos na sua imperial forma de governar.
Após a II Guerra Mundial, no entanto, era visível o desgaste do sistema de exceção vigente,
incompatível com a nova onda principiológica que aportou na Europa e no mundo, em que a
Constituição voltava a ser o documento máximo da liberdade. Não havia mais espaço para a ditadura
e Vargas sabia disso. Sob forte pressão, o próprio ditador institui, por meio da Lei Constitucional nº
60
Introdução à Teoria da Constituição │ UNIDADE I
Em outubro de 1945, antes mesmo das eleições, previstas para dezembro daquele ano, Vargas foi
deposto.
O desfecho melancólico dessa ditadura constitucional é captado por Barroso (1996, p.25):
Após a queda de Getúlio Vargas e o fim do Estado Novo, incide um período de redemocratização
que irá culminar na promulgação da Constituição de 1946, que apresentava como principais
características:
Sobre esse importante Texto Constitucional pátrio, destaca Barroso (1996, p.26):
61
UNIDADE I │ Introdução à Teoria da Constituição
A partir do golpe de 1964, a Constituição de 1946 sofreu múltiplas emendas e suspensão de vigência
de muitos de seus artigos, em virtude da edição dos Atos Institucionais do governo militar, que se
instaurou com a nova revolução.
Para Carvalho (2001), o golpe pode ser divido em três fases: (i) de 1964 a 1968, durante o governo do
general Castelo Branco e o primeiro ano de presidência do general Costa e Silva; (ii) de 1968 a 1974,
compreendendo os anos mais truculentos da ditadura, sob o governo do general Garrastazu Médici,
escolhido presidente após o impedimento do general Costa e Silva, por motivo de doença; e (iii) de
1974 a 1985, iniciando essa fase com a posse do general Ernesto Geisel, passando pelo governo do
general João Batista de Figueiredo (1979-1985), e, enfim, alcançando o processo de redemocratização.
Na primeira fase, os direitos civis e políticos sofreram profundas restrições, especialmente em razão
dos Atos Institucionais editados pelos presidentes militares. O primeiro, editado em 09/04/1964,
determinou a cassação dos direitos políticos, pelo período de 10 (dez) anos, de grandes lideranças
políticas e sindicais e de inúmeros intelectuais e militares. Outro mecanismo utilizado foi o da
aposentadoria compulsória de funcionários públicos civis e militares, ao passo que diversos
sindicatos, associações de classe e entidades representativas da sociedade civil foram invadidas e
até proibidas de atuar, tal como ocorreu com a União Nacional dos Estudantes (UNE).
Em 27/10/1965 foi promulgado o Ato Institucional nº 2, que, entre outras medidas, ampliou, direta
ou indiretamente os poderes dos militares, aboliu a eleição direta para presidente da República e
dissolveu os partidos políticos criados a partir de 1945, estabelecendo, assim, o bipartidarismo.
Com a Emenda Constitucional nº 9, em 27/07/1964, o mandato do Presidente Castelo Branco foi
prorrogado até 15/03/1967. Após a edição de tão “farta legislação revolucionária”, na expressão
de Luís Roberto Barroso (1996, p.35), “a manutenção da Constituição de 1946, desfigurada e
irreconhecível, já não tinha razão de ser”. Com o Decreto nº 58.198, de 15/04/1966, o governo
6 Para uma melhor compreensão crítica do turbulento período que antecedeu o golpe, cf. CARVALHO, José Murilo de. Cidadania
no Brasil: o longo caminho. 5. ed. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2004, p. 126-153; e 157-170.
62
Introdução à Teoria da Constituição │ UNIDADE I
constitui uma Comissão Especial integrada pelos juristas Levi Fagundes, Themístocles Cavalcanti e
Seabra Fagundes para elaborar um anteprojeto de Constituição. O trabalho preliminar foi rejeitado
e outro anteprojeto foi apresentado em seu lugar, desta feita, pelas mãos do então Ministro da
Justiça, Carlos Medeiros Silva.
Ato contínuo, com a proximidade do término da legislatura, em 31/01/1967, e desejoso por aprovar
o novo texto constitucional antes do fim de seu mandato como presidente, Castelo Branco procedeu,
por força do Ato Institucional nº 4, de 07/12/1966, a convocação extraordinária do Congresso
Nacional para votar, até 24/01/1967, o anteprojeto de Constituição remetido por aquele Governo.
Estava consumado o retrocesso constitucional, como bem delimita o professor Luís Roberto Barroso
(1996, p.36), in litteris:
A concentração do poder político nas mãos do governo militar – como se é de esperar do perfil
histórico aqui enfrentado – é o traço marcante da Constituição de 1967. Ao passo que os Estados-
membros e Municípios tiveram suas competências e receitas profundamente esvaziadas face
à hipertrofia da União Federal, esta tinha toda sua primazia deslocada para o âmbito do poder
executivo, especialmente pela subtração da iniciativa do processo legislativo ao Congresso em todas
as matérias de relevância.
Os pequenos avanços sentidos foram tão somente de ordem formal, como, em caráter meramente
ilustrativo, autorizou a Carta de 1967 o processo de desapropriação, para fins de reforma agrária,
mediante pagamento de indenização por títulos da dívida pública, ao tempo em que “definiu com
maior amplitude os direitos dos trabalhadores”(BARROSO, 1996).
Com a posse de Costa e Silva, o regime continuou firme e inabalável. Nas eleições para o Congresso
Nacional, em 1966 (como também em 1970), houve uma exemplar manifestação de descontentamento
popular, com grandes índices de abstenção (cerca de 23%) ou anulação dos votos, apesar de ser o
voto obrigatório e a legislação eleitoral prever punições aos faltosos (CARVALHO). No entanto,
as tímidas esperanças de que “o movimento militar tivesse esgotado o ciclo discricionário para
institucionalizar-se em um estado de direito frustrou-se em seguida” (BARROSO, 1996). O Ato
Institucional nº. 5 veio a lume para radicalizar a estrutura ditatorial instalada no país, em 13/12/1968.
63
UNIDADE I │ Introdução à Teoria da Constituição
O cenário dantesco tornou-se ainda mais aterrorizante com a chegada do General Emílio Garrastazu
Médici ao poder, em 30/10/1969. Em meio à resistência armada ao golpe, conclamada por diversos
segmentos indigitados subversivos, em especial a classe estudantil universitária, bem como das
disputas internas do próprio militarismo, fruto da politização das Forças Armadas, Médici ascende
amparado por duros golpes contra as migalhas que restavam do jogo democrático.
O Presidente Costa e Silva sofrera um infarte, em 1969, sendo o seu substituto legal o Vice-Presidente
Pedro Aleixo, um civil da extinta União Democrática Nacional (UDN). Só que uma Junta Militar,
composta por três Ministros, edita o Ato Institucional nº 12, de 31/08/1969 e impede que Aleixo
assuma o governo, investindo-se, de forma inobliteravelmente ilegítima, nas funções governativas.
Mais outro golpe militar é perpetrado. O General Médici é escolhido sucessor do Presidente
Costa e Silva e seu nome é referendado pelo Congresso Nacional, que até então estava de recesso,
convocado pela Junta governativa, com o exclusivo fito de referendar a escolha do novo Presidente
(CARVALHO, 1996).
Nova lei se segurança nacional foi introduzida, incluindo a pena de morte por fuzilamento. A pena
de morte tinha sido abolida após a proclamação da República, e mesmo no Império já não era mais
aplicada.
No início de 1970, como bem esclarece Carvalho (1996), foi introduzida a censura prévia em jornais,
livros e outros meios de comunicação. Isso significava que qualquer publicação ou programa de
rádio e televisão tinha que ser submetido aos censores do governo, antes de ser levado ao público.
Jornais, rádios e televisões foram obrigados a conviver com a presença do censor. Com frequência,
o governo mandava instruções sobre assuntos que não podiam ser comentados e nomes de pessoas
que não podiam ser mencionados.
64
Introdução à Teoria da Constituição │ UNIDADE I
O fim do Governo Médici se dá com a eleição do General Ernesto Geisel, em 15/01/1974, e marca o
início do “processo ´lento e gradual´ de refluxo do poder ditatorial”(BARROSO, 1996).
Com a Emenda Constitucional nº 11, em 13/10/1978, o Presidente Geisel revoga os Atos Institucionais
e Atos Complementares, no que contrariavam a Constituição Federal. Foi por seu intermédio,
de igual quilate, o combate à tortura pelos organismos militares, cujo ponto culminante foi a
exoneração do Comandante do II Exército, em São Paulo, apontado como o responsável pela morte
do jornalista Wladimir Herzog, nas dependências daquela unidade militar. Também foi exonerado o
então Ministro do Exército, em desdobramento à crise gerada pelo caso Herzog (BARROSO, 1996).
Dentro desse cenário de transição, a população mobilizou-se nas ruas pela luta por eleições diretas
para a escolha do presidente da República, em 1985, entretanto, o Congresso rejeitou a emenda
constitucional que restabelecia esse sistema, frustrando, em parte, o empenho popular. Nesse
momento, sem a indicação de um militar para ocupar o cargo, firmou-se como vitorioso o candidato
oposicionista Tancredo Neves. Este, porém, faleceu antes que pudesse assumir o mandato, sendo
substituído por seu vice José Sarney, que também era civil (BARROSO, 1996).
Nesse panorama, como observa José Murilo de Carvalho, podemos afirmar que “a avaliação dos
governos militares, sob o ponto de vista da cidadania, tem, assim, que levar em conta a manutenção
do direito do voto combinada com esvaziamento de seu sentido e expansão dos direitos sociais em
momento de restrição de direitos civis e políticos”.
Sob esse novo cenário ocorreu o processo de redemocratização no Brasil, a partir da instalação
da Assembleia Nacional Constituinte, em 1987, que veio pôr fim à antiga Constituição autoritária,
demasiadamente presa aos ideais do capitalismo, e que centralizava o poder político por meio de
instrumentos de repressão, os quais tornavam meras formalidades as práticas que deveriam ser
garantias democráticas. À essa época, os grandes constitucionalistas brasileiros bradavam pela
necessidade de uma convocação popular da Assembleia Nacional Constituinte livre e representativa,
cujos membros seriam eleitos essencialmente para essa missão, fazendo surgir uma Constituição
autêntica, legítima, bem elaborada e eficaz. (DALLARI, apud SADER, 1986).
65
unidAdE i │ introdução à tEoriA dA ConStituição
Todavia, como bem observa Barroso (1996), “optou-se pela fórmula insatisfatória de delegação dos
poderes constituintes ao Congresso Nacional, a funcionar, temporariamente, como constituinte,
inclusive com a participação da esdrúxula figura dos Senadores acunhados de biônicos”. Mesmo
assim, a promulgação da Constituição de 1988 por essa Assembleia representou uma reconquista
dos direitos fundamentais, notadamente no que diz respeito ao exercício da cidadania.
Nossa atual Carta Constitucional devolveu ao povo um poder que já lhe pertencia, mas que lhe fora
extirpado durante décadas.
Ao afirmar que a República Federativa do Brasil é um Estado Democrático de Direito, que tem como
fundamentos: (i) a soberania, (ii) a cidadania, (iii) a dignidade da pessoa humana, (iv) os valores
sociais do trabalho e livre iniciativa, e que todo o poder emana do povo, que o exerce por meio
de representantes eleitos, há um resgate dos princípios fundamentais que nortearam as ideias de
cidadania e democracia, os quais, como descrevemos, foram se constituindo ao longo do processo
histórico.
66
Interpretação
e Aplicação da Unidade iI
Constituição
Capítulo 1
Constituição de 1988: Princípios
Fundamentais
Os sinais dessa nova etapa do pensamento, que alguns chamam simplesmente de pós-positivismo,
investem contra o padrão estratificado da dogmática jurídica, em especial nos planos epistemológico
e interpretativo, inspirando, assim, diversas vertentes de revigoramento da Filosofia e da Teoria
Geral do Direito:
7 ÁVILA, Humberto. Teoria dos Princípios – da definição à aplicação dos princípios jurídicos. 3. ed. São Paulo: Malheiros,
2004, p. 15; Fábio Corrêa Souza de Oliveira assinala o emprego de outras designações congêneres, tais como “Estado
principialista” (Paulo Bonavides), “Hermenêutica de Princípios” (Inocêncio Mártires Coelho), “Compreensão principial
da Constituição” (Gomes Canotilho), “principiologia jurídico-constitucional” (Willis Santiago Guerra Filho), “dogmática
principialista” (Clèmerson Merlin Clève) e “jurisprudência de princípios” (García de Enterría). OLIVEIRA, Fábio Corrêa Souza
de. Por uma teoria dos princípios – o princípio constitucional da razoabilidade. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2003, p. 10.
8 Para uma visão introdutória do tema, cf. RABAY, Gustavo. O direito racional e o retorno ao argumento: as teses do direito
argumentativo (Tópica, Retórica e Discurso Racional Procedimental) como canais para um pós-positivismo jurídico factível.
Revista da Faculdade de Direito de Caruaru. Caruaru, n. 34, p. 165-190, 2003.
67
UNIDADE II │ Interpretação e Aplicação da Constituição
Como recurso lógico de suporte comum a todas essas inflexões por que passam a filosofia e a teoria
jurídicas contemporâneas, exsurge o primado da normatividade e hermenêutica dos princípios.
Com um artigo publicado em 1967, denominado The model of rules10, Ronald Dworkin (2002), provoca
uma ampla discussão internacional acerca da qualidade de norma jurídica aludida aos princípios,
suscitando, assim, um “ataque geral contra o positivismo” (general attack on positivism), como bem
lembra Luís Afonso Heck (apud LEITE, 2003). Nas palavras do autor norte-americano, os princípios
desempenham um papel fundamental na argumentação de sustentação das decisões judiciais.
No sentir de Ruy Samuel Espíndola (1998), os princípios contêm o caráter mesmo de norma
jurídica, possuindo, assim, “positividade, vinculatividade, caráter obrigatório” e que comportam
“eficácia positiva e negativa sobre comportamentos”, contribuindo, assim, para a “interpretação
e a aplicação de outras normas, como as regras e outros princípios derivados de princípios de
generalizações mais abstratas”.
9 Esta expressão designa, no intento de uma Crítica Jurídica, o conjunto de pressupostos conceituais (princípios, dogmas,
verdades, crenças, valores) sobre o qual se assenta a cultura e a epistemologia jurídica predominantes/tradicionais, sendo
tal conjunto desprovido de legitimidade ideológico-social Cf. WARAT, Luis Alberto. Introdução geral ao Direito: o direito não
estudado pela teoria jurídica moderna. Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris, 1997.
10 O texto foi republicado como capítulo de destaque da obra Taking rights seriously, sob o título The model of rules I (“O modelo de
regras I”). Cf. DWORKIN, Ronald. Levando os direitos a sério. Trad. Nelson Boeira. São Paulo: Martins Fontes, 2002, p. 23-72.
68
Interpretação e Aplicação da Constituição │ UNIDADE II
Partindo da teoria atualmente considerada padrão acerca dos princípios jurídicos, consubstanciada
nas teses conjugadas de Alexy e Dworkin, chegou-se à firme convicção de que os princípios, assim
como as regras, possuem a natureza de norma jurídica, posição também defendida por Bobbio
(1999, p.160), para quem os “princípios gerais são normas como todas as outras”.
Todo sistema jurídico compõe-se, portanto, de regras e princípios, conquanto não se pode crer
na existência de um ordenamento composto exclusivamente por regras de direta aplicação, como
elucida Eros Grau (2002). Os princípios, como se verá, cumprem a essencial função de fecundar,
fundamentar e articular outras diretrizes normativas do ordenamento, sejam elas regras ou, até
mesmo, outros princípios.
Cabe esclarecer que a noção em construção encontra eco na remota concepção dos princípios
gerais do direito, até hoje difundida nas academias jurídicas e na tradição jurídica moderna11,
mas que deve ser devidamente esclarecida.
A expressão “princípios gerais do direito” ora equivale a uma concepção axiomática, de valores
absolutos e universais, derivados do jusnaturalismo racionalista, ora deduz-se ponto de vista positivista,
porquanto valores subjacentes à norma escrita (aqui como noção reducionista de regra jurídica), com
função meramente supletiva das lacunas jurídicas (TAVARES, apud LEITE, 2003, p.28).
Esse segundo entendimento é francamente explorado pela tradição jurídica romanista, à vista da
formação do direito europeu continental, em que se privilegiou a codificação do direito. Assim,
erigiu-se uma definição contemporânea do que seriam os princípios gerais do direito, identificando-
os como regras de direito positivo, “expressas ou não nos textos mas aplicadas pela jurisprudência
e dotadas de um caráter suficiente de generalidade” (BELGEL, 2001).
Para alguns autores, esses valores absolutos (princípios gerais) ligam-se a alguns ramos dogmáticos
e permitem, tão somente, a colmatação de eventuais lacunas da ordenação legal.
De modo contrário, a concepção mais sofisticada de princípios jurídicos conduz a outra forma
de pensar sua aplicação, não os restringindo à mera função de integrar a ordem jurídica, mas,
essencialmente, guiar toda e qualquer argumentação normativa, assumindo, assim, plúrima
funcionalidade: (i) condensar valores, à conta de seu nítido viés axiológico; (ii) dar unidade ao sistema,
enquanto elemento agregador de interpretação; e (iii) condicionar e possibilitar a racionalidade
da interpretação. Ademais, surgem hodiernamente diversas classificações dos princípios jurídico-
positivos, as quais especulam a existência de princípios, subprincípios, sobreprincípios, princípios
setoriais, princípios na ordem infraconstitucional etc., de sorte a ensejarem extensa funcionalidade.
11 Também estampada na legislação em vigor, diga-se de passagem. É o caso do art. 4º da Lei de Introdução ao Código Civil.
69
UNIDADE II │ Interpretação e Aplicação da Constituição
A distinção entre regras e princípios pode ser entelada partindo-se da noção de que esses últimos
constituem a “expressão primeira” dos valores fundamentais do ordenamento e que informam
as demais normas (diferenciação material) e, ainda, com respeito à forma de apresentação
(diferenciação formal) e consequente densidade semântico-normativa, de acordo com o alto grau
de abstração ou generalidade ao qual adere o princípio, em detrimento da especificidade em relação
ao caso concreto que flexiona a regra.
Se uma determinada regra jurídica, textualmente construída, choca-se com outra, de igual grau
hierárquico, temporalização ou endereçamento, tem-se que uma delas não pode ser válida, trata-
se, pois de uma antinomia, a ser solucionada mediante emprego dos critérios solucionadores da
Teoria Geral do Direito (hierárquico, cronológico e especial). As regras jurídicas ou são aplicáveis
por completo ou são totalmente inaplicáveis, desempenhando a função de “tudo ou nada” (all-
or-nothing-fashion), na concepção de Dworkin (1977). No caso de existência de duas regras que
dispõem sobre a mesma situação, de maneira diversa, verifica-se uma antinomia jurídica, que
deverá ser resolvida a partir de critérios previstos no próprio ordenamento.
O princípio, em contraponto, não se visualiza como conectivo de uma só realidade, mas como uma
orientação geral e abstrata que vincula a compreensão da norma, ao qual Dworkin atribui o significado
de standard (padrão). Com isso, esclareceu Alexy (1998), se um princípio mostra-se incompatível
com outro, ambos continuarão válidos, pois haverá apenas a ponderação de funcionalidade dos
valores contrapostos, no sentido de equalizar o referencial normativo a ser empregado, de modo que
toda colisão entre princípios pode expressar-se como uma colisão de valores, ao passo em que o
choque de valores antagônicos também redunda em um choque de princípios. No dizer de Gomes
Canotilho (2007), “princípios coexistem, as regras antinômicas excluem-se”.
Tratando-se a Constituição do ambiente natural dos princípios jurídicos , estes constituem a síntese
dos valores principais da ordem jurídica.
70
Interpretação e Aplicação da Constituição │ UNIDADE II
Manoel Jorge e Silva Neto (2006) destaca a importância do estudo dos Princípios Fundamentais,
vez que no Brasil a cultura constitucional ainda não está sedimentada, pois a sociedade infelizmente
prescinde ações vitais que visem a preservação da vontade constitucional, a efetivação das normas
da Constituição e disseminem o conhecimento a respeito do texto constitucional.
Além disso, a despeito de sua posição privilegiada no início da Constituição, decorrente da dignidade
de seu conteúdo e da relevância que assumem face à ordem jurídica, os princípios político-
constitucionais têm sido cada vez mais empregados como artifícios retóricos.
Segundo Gilmar Mendes et al. (2008), são os próprios Fundamentos do Estado de Direito – embora
ultrapassem a singela noção de Rechtstaat e assumam a dimensão de Estado Democrático de
Direito, como veremos –, porquanto princípios estruturantes da ordem política.
Princípio Republicano
Trata-se de forma de governo contraposta à monarquia e termo designativo de coletividade política.
Para José Afonso da Silva, república e monarquia são formas institucionais do Estado.
Para Maquiavel, existem duas formas básicas: o principado e a república. Na primeira forma, o
príncipe ou o monarca possuem total ascendência sobre as decisões políticas fundamentais,
podendo lançar todo e qualquer expediente que o perpetue no poder. Na república, ao contrário,
não há confusão entre o público e o privado, devendo o representante político fazer tudo aquilo que
o aproxime da coletividade, em detrimento de seus interesses particulares.
A erosão do sentido republicano não pode desfigurar, no entanto, seu primado básico que é a ideia
da imprescindibilidade da alternância do poder político e, fundamentalmente, a possibilidade de
responsabilização dos atores políticos e sociais. São valores francos ao pensamento republicano a
soberania popular e a submissão do administrador à vontade da lei.
12 Cf. BOBBIO, Norberto. A teoria das formas de governo. 10. ed. Brasília: UnB, 1998, p. 55.
71
UNIDADE II │ Interpretação e Aplicação da Constituição
Em nossa história constitucional, a República foi instaurada em 1889, com a proclamação pelos
militares, ato sintetizado na figura do Marechal Deodoro da Fonseca, sendo a Constituição de 1891 a
primeira formatação jurídica do princípio. Em mais de um século de desenvolvimento institucional,
o princípio republicano passou por altos e baixos em nossa dramática história institucional.
Existem três tipos de democracia, segundo a forma pela qual o povo participa do poder:
»» Direta
A Democracia direta é aquela na qual o povo exerce, por si, os poderes governamentais, fazendo leis,
administrando e julgando.
Na democracia indireta, o povo, fonte primária do poder, outorga as funções de governo aos seus
representantes, eleitos periodicamente. O povo assim o faz porque não possui condições de dirigir
as ações do Estado de modo direto, face à complexidade do desenho institucional do Estado e de
problemas de ordem geográfica, espacial e prático-racional.
72
Interpretação e Aplicação da Constituição │ UNIDADE II
Como advertem Canotilho e Vital Moreira (1984, v.1, p.73), há grande complexidade nesse terreno:
O Estado de Direito, mais do que um conceito jurídico, é um conceito político que vem à tona no
curso das revoluções liberais em oposição ao Estado de Polícia, conforme estudamos no capítulo 3.
Trata-se do primado do rule of law e a ideia do Rechstaat alemão.
Com a instituição dos governos civis, o Estado de Direito tornou-se sinônimo de segurança jurídica,
embora apenas os mais influentes pudessem usufruir das prerrogativas jurídicas que marcaram a
passagem do mundo feudal para uma sociedade politicamente organizada.
Os movimentos políticos do final do século XIX, início do XX, transformam o velho e formal
Estado de Direito num Estado Democrático, no qual, além da mera submissão à lei, deveria haver a
submissão à vontade popular e aos fins propostos pelos cidadãos.
73
UNIDADE II │ Interpretação e Aplicação da Constituição
O princípio do Estado Democrático de Direito enseja na atual ordem constitucional; traduz-se nos
seguintes valores:
»» A previsão de eleições livres, periódicas e pelo povo, com a garantia do voto secreto.
Princípio Federativo
Sem dúvida, o federalismo é o mais importante elemento político-constitucional do Estado
brasileiro, podendo ser suas consequências práticas notadas no cotidiano.
O federalismo ou “pacto federativo” é uma cooperação entre membros que participam de uma
estrutura político-organizativa, dando uma feição descentralizada ao Estado, que, embora reconheça
as autonomias regionais e locais dos demais membros dessa “união”, não se destitui do elemento
denominado soberania. Daí porque Dalmo de Abreu Dallari afirmar que “os Estados que ingressam
na federação perdem sua soberania no momento mesmo do ingresso, preservando, contudo, uma
autonomia política limitada”.
A ideia de federação surgiu nos Estados Unidos da América, como forma antagônica do modelo de
Estado Unitário, que constitui radical aparato de centralização administrativa e política.
A etimologia de “federal” decorre das expressões latinas foedus e foederis, que designam uma
estrutura central (feudo). A indissolubilidade do laço federativo é expressamente aludido pelo art.
1º da Norma Política, inspirada no direito de secessão norte-americano. Aliás, o sistema federal
brasileiro foi diretamente inspirado na Constituição dos EUA, de 1787.
74
Interpretação e Aplicação da Constituição │ UNIDADE II
Celina Souza (2005, p.106) situa historicamente a forma federativa do Estado brasileiro:
São corolários da estrutura federal do Estado os seguintes princípios, conforme a valiosa enumeração
de Alexandre de Moraes (2003), à qual acrescentamos uma última consideração:
»» Nacionalidade única.
75
UNIDADE II │ Interpretação e Aplicação da Constituição
Separação de Poderes
Como aponta Walber Agra (2007), a terminologia adotada pelo art. 2º da Constituição da República
foi errônea, pois o poder estatal é uno, sendo divisíveis apenas suas funções. Correto seria falar-se
em “divisão do poder” ou “separação das funções do Estado”. De igual sorte, a expressão “tripartição
dos poderes” não se encontra atual, tornando-se, na prática, bastante imprecisa.
Trata-se, portanto, de uma divisão segundo o critério funcional, que, como explica Moraes (2003,
p.266),
No Brasil, a noção de separação das funções segue o modelo norte-americano dos “freios e
contrapesos” (checks and balances), por meio do qual órgãos político-administrativos têm
mecanismos de intervenção e controle recíproco sobre os outros. A CF/88 prevê vários desses
mecanismos, como, por exemplo, a nomeação direta dos ministros dos Tribunais Superiores pelo
Presidente da República, com a sabatina e aprovação, em Plenário, das indicações no Senado
Federal, além da necessidade de aprovação do orçamento do Poder Judiciário pelo Legislativo e
pelo Presidente da República.
A divisão dá-se em razão de funções precípuas, porém não absolutas. Assim, é tradicionalmente
desenhada a divisão das funções estatais: Poder Executivo, Poder Legislativo e Poder Judiciário.
Cada um dos poderes exercendo uma função precípua. O que não significa que um deles não possa
exercer atos relacionados às outras funções.
Ocorre que ao lado das funções primordiais de cada parcela de atuação estatal, coexistem outras
funções, ditas atípicas, como, por exemplo, o papel administrativo tipicamente associado ao
Executivo, que também faz parte das atribuições do Legislativo e do Judiciário. O Executivo, por
sua vez, pode – excepcionalmente – legislar; daí a faculdade conferida ao Presidente da República
de editar medidas provisórias e decretos, entre tantos outros conhecidos exemplos.
76
Interpretação e Aplicação da Constituição │ UNIDADE II
O Judiciário não é apenas o poder que se limita a aplicar a lei, “dizendo o Direito”. Como vimos no
Capítulo 2, deste Caderno, se o STF tem poderes interpretativos tão amplos que chegam ao ponto
de declarar a existência de mutações constitucionais, não seria estranho falar-se, também, em juízes
legisladores. A primazia do Judiciário surge ao lado da própria doutrina dos freios e contrapesos,
nos Estados Unidos, a partir do trabalho O Federalista, em que se reconhece à função judicial o
papel de revisar sob a lente da Constituição, os atos dos demais poderes.
»» a soberania;
»» a cidadania;
»» o pluralismo político.
Por seu turno, o art. 3º, também integrante desse núcleo de princípios estruturantes do Estado
brasileiro, apresenta os Objetivos Fundamentais da República. São eles:
»» promover o bem de todos, sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e
quaisquer outras formas de discriminação.
Soberania
A soberania constitui um dos atributos inerentes à ideia de Estado. Todo Estado-nação é soberano.
Esse atributo corresponde ao poder incontrastável de impor a vontade nacional no plano interno e
internacional. Aliás, essa é a doutrina de Jean Bodin, pioneiro na fundamentação do fenômeno Estado:
“A soberania é o poder absoluto da República”. Para Bodin, o termo absoluto não remete ao governo
ilimitado (do absolutismo), mas ao poder incondicionado da Nação, cujo substrato é o povo. A soberania
popular, no espírito do constitucionalismo, é o fator de progresso e pedra de toque da liberdade.
77
UNIDADE II │ Interpretação e Aplicação da Constituição
Muito embora seja intuitivamente fácil perceber o respeito ao primado da soberania, ainda estamos
distantes de um verdadeiro contexto de salvaguarda da integridade nacional, pois, como lembra Gisela
Bester (2005), a soberania é violada toda vez que se comercializam espécies de fauna, flora e florestas
brasileiras, “em que são cedidos por ninharias recursos estratégicos da nossa biodiversidade”.
Cidadania
Cidadania é outro fundamento do Estado. Deve ser entendida em sentido amplo, não abarcando
o mero conceito político, que identifica o detentor dos direitos de votar e de ser votado (direitos
políticos ativos e passivos). Aqui, é preciso, sobremaneira, deslocar a ideia de cidadania para a
fruição de todos os direitos inerentes à pessoa que convive em sociedade. Conforme explica Bester
(2005), ela (a cidadania) “é filha do Iluminismo e das revoluções burguesas, tendo sido instituída
pela primeira vez no seio da Constituição norte-americana de 1787, mais especificamente no seu
Preâmbulo, sob a seguinte fórmula: ´Nós, o povo dos Estados Unidos...’”
Atualmente buscamos integrar a cidadania ao campo dos direitos sociais, pois, como já defendeu T. H.
Marshall (Citizenship and Social Class), só por meio da proteção dessa categoria de direitos, ao lado
dos direitos individuais e dos direitos políticos, é que a democracia poderá se efetivar de modo pleno.
78
Interpretação e Aplicação da Constituição │ UNIDADE II
A dignidade da pessoa humana pode e deve ser vista sob uma ótica instrumental-axiológica, como
uma lente, por meio da qual enxergamos os Direitos Fundamentais. A dignidade humana, portanto,
não é um fim em si, não é um direito ou um objetivo, mas um meio, um instrumento que nos
permitirá interpretar os Direitos Fundamentais. Ela existe como qualidade inerente de um indivíduo
– cidadão. Ao entendermos dessa forma, atribuímos ao significado jurídico da dignidade um viés
histórico e cultural, que são inegáveis.
Nessa linha, Gisela Bester (2005) esclarece que, para a efetividade do princípio da dignidade
humana, é preciso fiel observância ao seguinte:
»» Respeito à vida.
No Supremo Tribunal Federal (1994), a preservação da dignidade da pessoa humana foi um dos
fundamentos invocados para liberar réu em ação de investigação de paternidade da condução
forçada para submeter-se a exame de DNA:
79
UNIDADE II │ Interpretação e Aplicação da Constituição
Esclarece Manoel Jorge e Silva Neto (2006) que a expressão “valores sociais” é aplicável tanto ao
trabalho quanto à livre iniciativa, devendo-se observância ao postulado da concordância prática, em
busca ao equilíbrio dos bens constitucionais postos no dispositivo.
Pluralismo político
Trata-se da chancela oficial do Estado à livre opção político-ideológica do cidadão. Mas não radica
apenas na ideia de uma liberdade “político-partidária”. Lembrando que a Constituição é estatuto
político do Estado, há que se considerar o espectro político circundante de toda e qualquer atividade
humana.
80
Interpretação e Aplicação da Constituição │ UNIDADE II
Objetivos fundamentais
A doutrina constitucional costuma distinguir os objetivos fundamentais da República (art. 3º da
CF/88) dos Fundamentos previstos no seu art. 1º que seriam prospecções de conquistas progressivas
às quais a ordem política se projeta.
Parte desse conteúdo plasmado no art. 3º pode ser mesmo chamado de horizonte utópico das
promessas constitucionais. Em um país sem tradição de respeito à cidadania, alguns objetivos
se reduzem à mera intenção programática, cuja concretude demandará gerações de juristas e
pensadores sociais.
Como lembra Alexandre de Moraes (2003), a edição da Emenda Constitucional n° 31, em 2000,
atende ao objetivo insculpido no inc. III do art. 3º, pois criou o Fundo de Combate e Erradicação da
Pobreza, com vigência pelo período de 10 anos.
No mesmo espírito dessa Emenda, os programas governamentais “Bolsa Família”, “Bolsa Salário” e
“Fome Zero” são exemplos de políticas públicas orientadas à consecução do programa de erradicação
da pobreza/mitigação das desigualdades (PIMENTA, 2007).
Outro objetivo que cumpre ressaltar é o consignado no inc. IV do art. 3º. Trata-se da determinação
de promoção do bem de todos, sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras
formas de discriminação. Esse conteúdo articula-se claramente com o disposto no art. 5º, caput e
incisos XLI e XLII, inspirando uma das mais relevantes funções dos direitos fundamentais: a função
de não discriminação.
»» independência nacional;
»» não intervenção;
81
unidAdE ii │ intErPrEtAção E APliCAção dA ConStituição
» defesa da paz;
No parágrafo único do art. 4º, a Constituição estabelece que a “República Federativa do Brasil buscará
a integração econômica, política, social e cultural dos povos da América Latina, visando à formação
de uma comunidade latino-americana de nações”.
Outro princípio importante é o relativo ao asilo político. Consoante explica Alexandre de Morais
(2003, p.53), a concessão de asilo político a estrangeiro é ato de soberania estatal, de competência
do Presidente da República. Esse autor ressalta, ainda, que
82
Capítulo 2
Teoria das Normas Constitucionais
Embora seja uma lei (em sentido lato, é claro), e como tal deva ser interpretada, a Constituição
merece uma apreciação destacada dentro do sistema, à vista do conjunto de peculiaridades
que singularizam suas normas. Quatro delas merecem referência expressa: a) a superioridade
hierárquica; b) a natureza da linguagem; c) o conteúdo específico; d) o caráter político13.
As normas constitucionais possuem uma estrutura complexa à conta de suas características genéticas.
Afinal, elas nascem do fato político-social (o exercício do poder constituinte e da soberania popular)
e para regulamentá-lo existem e se transformam.
Cabe, assim, assinalar, que são normas que dão suporte aos direitos fundamentais e, como vimos no
item “principiologia constitucional”, ora correspondem a simples regras jurídicas, ora se revestem
da natureza de princípios, isto é, normas de textura aberta e voltadas para uma função de integração
do sistema constitucional, com maiores possibilidades de resignificação e aplicação prática.
Assim, uma das inovações positivas da contemporânea teoria constitucional foi a renovação dos
paradigmas de interpretação constitucional, apoiada na reformulação conceitual da estrutura
normativa de uma norma jurídica, gênero cujas espécies podem ser regras e princípios.
Como lembra Regina Ferrari (2001, p. 239), quando a Constituição Federal afirma que todos devem
ter direito ao bem social correspondente à moradia, é preciso enxergar que tal não investe o seu
titular numa condição de exigibilidade plena, pois “seria impossível admitir (...) que a todo indivíduo
que demonstrasse não possuir moradia caberia ação contra o Poder Público para recebê-la (...)”.
13 Cf. BARROSO, Luís Roberto. Interpretação e aplicação da constituição: fundamentos de uma dogmática constitucional
transformadora. 3. ed. São Paulo: Saraiva, 1999.
83
UNIDADE II │ Interpretação e Aplicação da Constituição
Na visão tradicional, o ambiente constitucional encerra a existência de três tipos de normas, com
diferentes graus de eficácia e aplicabilidade, como refere-se Barroso (2001, p.91), remetendo à lição
de José Afonso da Silva:
Daí, a classificação utilizada por Michel Temer de normas de eficácia restringível e redutível, pois a
regra posta na Lei Maior poderá ter seu campo de atuação reduzido ou restringido pela lei comum.
Frise-se, por oportuno, que enquanto não sobrevier a legislação ordinária regulamentando ou
restringido a norma de eficácia contida, ela terá eficácia plena e total, já que, nesses casos, as normas
de eficácia restringível apenas admitem norma infraconstitucional regulamentado-as.
Como exemplo de norma de eficácia contida temos o art. 5º, incisos VII, VIII, XV, XXIV, XXV,
XXVII, XXXIII; art. 15, IV; art. 37, I.
A eficácia jurídica das regras de efeito limitado está em impedir que o legislador ordinário elabore
leis que contrariem o disposto em corpo, mesmo que esse corpo dependa de regra ordinária.
14 Maria Helena Diniz traz, ainda, outra classificação que são as normas de eficácia absoluta, ou seja, intocáveis, a não ser pelo
poder constituinte originário, pois no caso das normas de eficácia absoluta, não há possibilidade de modificação, nem mesmo
por Emenda Constitucional, como é o caso do artigo 60, § 4º da Carta Magna, que prescreve as denominadas cláusulas pétreas.
84
Interpretação e Aplicação da Constituição │ UNIDADE II
Maria Helena Diniz denomina tais regras de normas de eficácia relativa complementável ou dependente
de complementação legislativa. Tais regras são subdivididas em normas de princípio institutivo e
normas de princípio programático:
»» Normas de princípio institutivo: são aquelas que a Constituição traça como esquemas
gerais de estruturação e atribuições de órgãos, entidades ou institutos para que o
legislador ordinário determine “como” serão implementados em definitivo, por meio
de atuação futura (ex.: arts. 18, § 2º; 22, parágrafo único; 25, § 3º; 33; 37, inciso XI).
Essa teoria, baseada na clássica lição de José Afonso da Silva, ainda é dominante. Mas muitas
críticas podem ser oferecidas a ela.
Esse tema recebeu diversas manifestações doutrinárias que, ante uma grande variação classificatória,
oscilou do tradicional ensinamento de Rui Barbosa acerca da carga de autoexecutoriedade15 das
normas constitucionais até o modelo proposto por Celso Antonio Bandeira de Melo, que se refere à
eficácia jurídico-constitucional com vista à justiça social. 16
Após breve contextualização dessas classificações, Barroso (2001, p.93-94) propõe uma nova
forma de sistematização, com o intuito de reduzir a “discricionariedade dos poderes públicos” na
aplicação da Constituição e fomentar um “critério mais científico à interpretação constitucional pelo
Judiciário”, em especial no que pertine à manifesta omissão do Executivo e do Legislativo, quanto à
concretização das normas desprovidas de autoaplicabilidade.
15 “Segundo o magistério de Rui Barbosa, as disposições constitucionais, em sua maioria, não são auto-aplicáveis, porque a
Constituição não se executa a si mesma, antes impõe ou requer a ação legislativa, para lhe tornar efetivos os preceitos, o que
não quer dizer, entretanto, que a Lei Maior possua cláusulas ou preceitos a que se deva atribuir o valor moral de simples
conselhos, avisos ou lições, até porque todos têm a força imperativa de regras, ditadas pela soberania nacional ou popular aos
seus órgãos”. Cf. MENDES, Gilmar Ferreira; COELHO, Inocêncio Mártires; e BRANCO, Paulo Gustavo Gonet. Curso de Direito
Constitucional. 2. ed. São Paulo-Brasília: Saraiva-IDP, 2008, p. 21.
16 Esse modelo triparte as normas constitucionais em três categorias: (i) Normas concessivas de poderes jurídicos; (ii) Normas
concessivas de direitos; e (iii) Normas meramente indicadoras de uma finalidade de ser atingida. MELLO, Celso Antonio
Bandeira. Eficácia das normas constitucionais sobre a justiça social. IX Conferência Nacional da Ordem dos Advogados do
Brasil. Florianópolis, 1982 apud BARROSO, Luís Roberto.O direito constitucional e a efetividade de suas normas, cit., p. 92-93.
85
UNIDADE II │ Interpretação e Aplicação da Constituição
Alguns autores reduzem seu campo de visão à classificação conforme o grau de executoriedade das
normas constitucionais. Assim, existiram dois tipos básicos apenas: (i) as normas constitucionais
operativas; e (ii) as normas constitucionais programáticas. Essa é a lição de Mendes, Coelho e
Branco (2008, p.20):
Como explicita Barroso, apesar da “dicção ambígua” do dispositivo em comento, que faz referência
ao direito à saúde e ao dever do Estado, mas configura-se como norma programática, “fala em
políticas sociais e econômicas que não estão especificadas”, não podendo ser entendida como norma
autoaplicável.
86
Interpretação e Aplicação da Constituição │ UNIDADE II
Tais ideias deveriam servir de baliza aos legisladores, antes que eles, movidos por devaneios ou por
motivações inefáveis, passassem a criar normas de alcance universal, mas de efeito concreto nulo.
Com isso, a realidade salta aos olhos: muitos dos direitos de cidadania amplamente garantidos por
nossa Lei Maior não são realmente efetivados.
São os abismos gnoseológicos que pululam o cotidiano político-jurídico e que impedem o diálogo
da experiência social com as normas de cidadania orientadas pelo Texto Superior; desconectam o
sentido “real-racional” perseguido pelo legislador constituinte e o relegam ao discurso dos “limites
e possibilidades”, objetificando o “real” como “limite” e o “racional” como “aquilo que é possível”.
Ou seja, antes mesmo de se pré-compreender, já se interpreta e se alcança a compreensão de
ultima ratio, qual seja, as normas definidoras de direitos sociais encerram eficácia
limitada, carecedoras que são de uma atuação futura (eventual e incerta) do legislador
infraconstitucional e do sistema político!
Nessa senda, Lenio Streck (2004, p.30) lembra que os magistrados “costumam-se jactar-se do fato de
que, primeiro decidem (chegam à conclusão), e só depois justificam/fundamentam o que “antes foi
decidido” [sic]. Com isto, pensam ter encontrado uma espécie de atalho no processo de conhecimento,
por meio do qual imaginam poder ultrapassar o abismo gnoseológico que tem angustiado a humanidade
desde que o logos suplantou o mito. Assim, acreditam – e esse pensamento e ainda dominante no seio
da comunidade jurídica – na possibilidade de alcançar uma cognição livre de (inter)mediações. É
como se fosse possível alcançar a outra margem desse “abismo” e só depois “construir” a ponte que
possibilitou essa travessia...!
João Maurício Adeodato (2002, p.288) oferece uma depuração filosófica do que vem a ser o tal
abismo gnoseológico, reduzindo-o a incompatibilidades recíprocas entre: (i) evento real; (ii) ideia
(ou “conceito”, “pensamento”); e (iii) expressão linguística (ou “simbólica”), porquanto essas
“são as três unidades componentes do conhecimento humano, as quais não podem ser reduzidas
uma à outra”.
Aqui, interessa de perto referir à incompatibilidade entre os dois primeiros dados e a linguagem,
que ficaria desempenhando – no terreno da interpretação jurídica tradicional – um papel
secundário, “como se fosse apenas um veículo de conceitos que carregam o sentido das coisas (...)
que se interpõe entre um sujeito (o intérprete do direito) e um objeto (a ´realidade´)”, ou, se preferir,
invertendo a equação, o dado linguístico-expressivo projeta-se como um algo entre o evento real e
a ideia ou conceito (STRECK, 2004).
O abismo gnoseológico, conforme Adeodato (2002, p.288), conduz a outros, tal como o axiológico.
E algumas estratégias poderiam ser estabelecidas para evitar esse problema original, como aponta
o autor, à vista dos predicados compreensivos da realidade em Max Weber:
87
UNIDADE II │ Interpretação e Aplicação da Constituição
Mas essa breve sugestão (como denominada pelo autor do trecho acima transcrito) comporta outros
desenvolvimentos que serão objeto de outro esforço, mais associado à perspectiva etnometodológica
para uma sociologia do direito 17.
Com o que até aqui foi exposto, merece reprodução o pensamento de Lenio Streck (2003), para
quem é preciso romper com a “hermé(nêu)tica jurídica tradicional-objetifivante prisioneira do
(idealista) paradigma epistemológico da filosofia da consciência”, com o que se recuperaria o
“sentido-possível-de-um-determinado-texto e não a re-construção do texto advindo
de um significante-primordial-fundante. Assim, por exemplo, não há um dispositivo
constitucional que seja, em si e por si mesmo, de eficácia contida, de eficácia limitada
ou de eficácia plena”.
Vale lembrar que o sentido e o alcance de uma determinada norma constitucional (e também
infraconstitucional) terão que ser delimitados pelo intérprete, em cada situação concreta a ser
apreciada pelo aparato decisional do direito dogmaticamente organizado. Alguém já disse que não
é a norma que dá interpretação, mas a interpretação que dá a norma e, nesse sentido, válida é
a investigação da metódica estruturante de Friedrich Muller, uma possibilidade interpretativa de
concretização do direito18. Assim, também, diz Lenio Streck (2004): “evidente que não há só textos;
o que há são normas (porque a norma é o resultado da interpretação do texto). Mas também não há
somente normas, porque nelas está contida a normatividade que abrange a realização concreta do
direito”.
88
Interpretação e Aplicação da Constituição │ UNIDADE II
devem ser; de outro modo não poderiam cumprir a sua função de equilíbrio das
tensões, no interior da idéia de direito, entre igualdade, segurança jurídica e
equidade. (...) Assim, a linguagem jurídica cria direito por dois modos: através
do acto de aprovação de normas e através do acto de decisão jurídica.
Uma maior adjudicação de sentido e real penetração nas situações da vida, por parte do mundo
do direito conduz ao problema de um maior ativismo judicial ou de um fenômeno nomeado
“judicialização da política”, fator argumentativo que vem despertando crescente interesse de
pesquisa.
Se na concretização dos direitos sociais, superando-se o estágio interpretativo quanto à sua eficácia
diferida e quase sempre limitada, o Poder Judiciário reconhece sua exigibilidade e declara a
obrigação de um determinado órgão à prestação, como, por exemplo, a entrega de medicamentos
a pacientes com o vírus da Aids, como no caso a seguir apresentado: uma criança com Aids que
precisava de remédio, no Rio Grande do Sul. Foi impetrado em seu favor mandado de segurança
contra denegação do serviço de saúde. Deferida a segurança, interpôs o Estado recurso para impedir
a entrega do remédio, alegando periculum in mora (do Estado!). Na segunda instância, o relator
da matéria deferiu o pedido do Estado, sustando o fornecimento do remédio, vez que, em seu
entendimento, o art. 196 da Constituição Federal indica a saúde como dever do Estado, mas não se
pode inferir com isso que o Estado tem a obrigação de prestá-la!
[...] há que destacar a crítica que atribui às concepções clássicas uma natureza
anacrônica, desvinculada da realidade vigente, na medida em que cunhada
e aplicável apenas sob a égide das Constituições de matriz liberal, sendo,
portanto, incompatível com o constitucionalismo social, dominante em nosso
século, no qual assume relevo o caráter programático de parte das normas
constitucionais, estabelecendo uma atuação positiva aos poderes públicos
na esfera socioeconômica, além de revelar, também sob este aspecto, que
a doutrina clássica de longe não fornece a melhor e única solução para o
problema da eficácia e aplicabilidade das normas constitucionais.
89
UNIDADE II │ Interpretação e Aplicação da Constituição
exprimem, por si mesmo, um conteúdo fixo quanto à extensão de sua eficácia, se de mínima, média
ou máxima gradação, de sorte que os direitos fundamentais se cingem a – nada mais que – tarefas
constitucionais (Verfassungsaufträge).
A tarefa dos direitos sociais, esclarece Peter da Silva (2005, p.102), é “de elemento de realização
da igualdade e liberdade reais, podendo ser consideradas como fatores de consecução da justiça
social, na medida em que se encontram ligados à obrigação da comunidade para com o bem-estar
da pessoa humana”.
A dimensão jurídico-concretizante dos direitos sociais “se afirma de acordo com a situação econômica
conjuntural, isto é, sob a ´reserva do possível´, ou na conformidade de autorização orçamentária”,
segundo a sempre escorreita análise de Ricardo Lobo Torres (1989, p.41).
Os direitos sociais estariam, portanto, “reféns” de opções de política econômica do aparato estatal,
eis que a reserva do possível traduz-se em uma chancela orçamentária; trata-se de um princípio
(implícito) decorrente da atividade financeira do Estado alusivo à impossibilidade de um magistrado,
no exercício da função jurisdicional, ou, até mesmo, o próprio Poder Público, de efetivar ou desenvolver
direitos, sem que existam meios materiais para tanto, o que consequentemente resultaria despesa
orçamentária oficial. “A aferição desta disponibilidade é feita em função do orçamento. Justifica-se
que a concessão de determinadas prestações, ou seja, a realização de determinados direitos, pode
implicar a inviabilização da consecução de outros”. (THEODORO, 2002, p.120).
Segundo Bester (2005), a questão se põe como uma “desculpa” que é dada pelos governantes,
para se eximirem de cumprir o desiderato social plasmado na constituição; “Ora, se a Constituição
diz ser direito de todos um dado direito social, o Estado há de virar-se para prever tal rubrica no
orçamento, conforme as competências federal, estadual e municipal, eis que isto é um mandamento,
uma ordem, que deve ser providenciada”.
Os direitos sociais mínimos, de fato, têm consideráveis efeitos financeiros, “quando são muitos
os que o fazem valer” – adverte Robert Alexy – “Mas só isso não justifica inferir a não existência
desses direitos. A força do princípio da competência privativa do legislador não é ilimitada. Não é um
princípio absoluto. Direitos individuais podem ter mais pesos que as razões da política financeira”.
[Tradução livre]
Para alcançar as bases teóricas sustentáveis para uma resposta adequada ao caso brasileiro é
necessário, sobretudo, romper com as teses subdesenvolvidas de um direito constitucional de baixa
eficácia e com a falácia da “reserva do possível”, esta última, segundo Andreas Krell (2002), “fruto
de um direito constitucional comparado equivocado”.
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Interpretação e Aplicação da Constituição │ UNIDADE II
Esse desconforto gera nas pessoas a crença segundo a qual os direitos não existem para serem
realizados, sendo, tão-somente, adereços ou formulações abstratas inexequíveis. Esse hiato
demonstra bem que o Direito é um instrumento social que não escapa à esfera do político, ou ainda,
que “a Constituição, sem prejuízo da sua vocação prospectiva e transformadora, deve conter-se em
limites de razoabilidade no regramento das relações de que cuida, para não comprometer o seu
caráter de instrumento normativo da realidade social”. (BARROSO, 2001, p.89).
Na esteira da manifestação de Ingo Sarlet (2002, p.13), in litteris, há de se concordar que não há
mais espaço para essa resignação da escassez – o lamentacionismo constitucional, com o qual
respeitáveis estudiosos se conciliaram:
91
UNIDADE II │ Interpretação e Aplicação da Constituição
Mister lembrar que todas modalidades de direitos subjetivos representam dispêndio econômico,
inclusive os direitos cunhados pelo constitucionalismo liberal clássico: os direitos civis em geral,
que demandam a tutela judicial custam muito dinheiro (verba para segurança pública, órgãos
administrativos, a estrutura do Judiciário), assim como os direitos políticos (verba para realização
das eleições, com as urnas eletrônicas disponibilizadas no referendo do último outubro etc.).
Essa perspectiva foi desenvolvida pioneiramente pelos norte-americanos Stephen Holmes e Cass
Sunstein, na obra The Cost of Rights19.
De outra sorte, lembra Ricardo Lobo Torres que, embora o STF tenha decidido que o Executivo
não está obrigado a pagar precatório judicial, se não houver recursos disponíveis esse
entendimento não deve se estender para os casos em que se discute a garantia do “mínimo
existencial”, “que tem prevalência sobre eventuais sobras de caixa” (TORRES, apud NUNES).
O debate tem evoluído substancialmente: prova disso é que o STF já decidira, em outra ocasião,
acerca da possibilidade de controle judicial das políticas públicas, mesmo que sua formulação e
execução se presumam reservadas aos demais Poderes:
Como pondera Freire Junior (2005, p.74), como é possível suscitar a falta de recursos para a saúde
quando existem, no mesmo orçamento, recursos com propaganda de governo? “Antes de os finitos
recursos do Estado se esgotarem para os direitos fundamentais, precisam estar esgotados em áreas
não prioritárias do ponto de vista constitucional e não do detentor do poder”.
19 Nesse sentido, cf. BARCELLOS, Ana Paula de. A eficácia jurídica dos princípios constitucionais: o princípio constitucional
da dignidade da pessoa humana. Rio de Janeiro: Renovar, 2002, p. 236 ss; e GALDINO, Flávio. O Custo dos Direitos.
In: TORRES, Ricardo Lobo (org.). Legitimação dos Direitos Humanos. Rio de Janeiro: Renovar, 2002, p. 186 ss.
20 Medida Cautelar em Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental nº 45/DF. Rel. Min. Celso de Mello. Decisão
de 29/04/2004. Informativo do STF nº 345/2004. Permite-se transcrever a ementa do julgado: Ementa: Arguição de
Descumprimento de Preceito Fundamental. A questão da legitimidade constitucional do controle e da intervenção do poder
judiciário em tema de implementação de políticas públicas, quando configurada hipótese de abusividade governamental.
Dimensão política da jurisdição constitucional atribuída ao Supremo Tribunal Federal. Inoponibilidade do arbítrio estatal à
efetivação dos direitos sociais, econômicos e culturais. Caráter relativo da liberdade de conformação do legislador. Considerações
em torno da cláusula da “reserva do possível”. Necessidade de preservação, em favor dos indivíduos, da integridade e da
intangibilidade do núcleo consubstanciador do “mínimo existencial”. Viabilidade instrumental da arguição de descumprimento
no processo de concretização das liberdades positivas (direitos constitucionais de segunda geração).
92
Interpretação e Aplicação da Constituição │ UNIDADE II
positivas porque – como foi estampado na ordenação constitucional – estas representam “direito de
todos” e “dever do Estado”?21
Citando como exemplo o descaso dos poderes públicos para com os direitos dos deficientes físicos,
Luciano Maia (1999) questiona a inefetividade da Constituição e da legislação infraconstitucional
que contempla diversas garantias aos portadores de necessidades especiais físicas, auditivas e
visuais. A Constituição de 1988 institui, em seu art. 203, V, regulamentado pela Lei nº 8.742/93
e pelo Decreto 1.744/95, o direito à concessão de um salário-mínimo de benefício mensal à pessoa
portadora de deficiência que comprove não possuir meios de prover a própria manutenção ou de
tê-la provida por sua família.
Ainda na Carta vigente, encontramos, no art. 227, § 1º, II, a obrigatoriedade do Estado brasileiro
na criação de uma gama de mecanismos de integração dos portadores de alguma deficiência:
“criação de programas de prevenção e atendimento especializado para os portadores de deficiência
física, sensorial ou mental, bem como de integração social do adolescente portador de deficiência,
mediante o treinamento para o trabalho e a convivência, e a facilitação do acesso aos bens e
serviços coletivos, com a eliminação de preconceitos e obstáculos arquitetônicos”. Mais adiante,
a Constituição estabelece norma programática que constitui importante diretriz para a integração
dos portadores de necessidades especiais, a qual se permite transcrever: “Art. 244. A lei disporá
sobre a adaptação dos logradouros, dos edifícios de uso público e dos veículos de transporte coletivo
atualmente existentes a fim de garantir acesso adequado às pessoas portadoras de deficiência,
conforme o disposto no art. 227, § 2º.”
Por seu turno, a legislação federal já contemplou inúmeros avanços na proteção dos direitos dos
deficientes, como é o caso da Lei nº 7.853, de 24/10/1989 (Lei de apoio às pessoas portadoras de
deficiência), da Lei nº 8.899, de 29/06/1994 (concessão de passe livre às pessoas portadoras de
deficiência no sistema de transporte coletivo interestadual), entre diversas outras.
Apesar de todo esse aparato técnico-legal e dos preceitos constitucionais irradiadores de direitos,
acima vistos, é possível, ainda, deparar-se com situações iníquas e injustificáveis como a narrada por
Luciano Maia (1999): em recente pleito eleitoral, uma eleitora que, impossibilitada de se locomover
e, por conseguinte, municiada de sua consentânea cadeira de rodas, foi impedida de ter acesso à sua
seção eleitoral, localizada no 1º andar de um prédio público sem rampa e sem elevador. A princípio,
quiseram os servidores da Justiça Eleitoral convencê-la a desistir de votar, recomendando-lhe
que justificasse sua ausência. Impedida de votar, demonstrou sua irresignação aos prantos, o que,
comovendo outros eleitores, fez com que esses a conduzissem nos braços, para que, enfim, votasse.
A questão conduz a refletir sobre quantos logradouros e prédios públicos estão devidamente
adaptados para o usuário portador de deficiência. Muito pouco se fez, em verdade, para minimizar
as dificuldades enfrentadas por esse segmento de cidadãos. A norma não opera a realidade por si
21 E mais uma vez a lucidez de Lenio Streck: “(...) a pretensão é que os mecanismos constitucionais postos à disposição do cidadão e
das instituições sejam utilizados, eficazmente, como instrumentos aptos a evitar que os poderes públicos disponham livremente
da Constituição. A Constituição não é simples ferramenta; não é uma terceira coisa que se ´interpõe´ entre o Estado e a
Sociedade. A Constituição dirige; constitui. A força normativa da Constituição não pode significar a opção pelo cumprimento ad
hoc de dispositivos “menos significativos” da Lei Maior e o descumprimento sistemático daquilo que é mais importante – o seu
núcleo essencial-fundamental. É o mínimo a exigir-se, pois!”. STRECK, Lenio Luiz. A baixa constitucionalidade e a inefetividade
dos direitos fundamentais-sociais em Terrae Brasilis. Revista Brasileira de Direito Constitucional. São Paulo, jul-dez. 2004, p.
280.
93
UNIDADE II │ Interpretação e Aplicação da Constituição
No contexto do exemplo suscitado, a própria democracia e, por conseguinte, a cidadania plena, são
portadoras de deficiência. Como diria O´Donnell (apud MENDEZ et al., 2000), é tão constante
a violação de direitos e, por conseguinte, ineficaz a ordem jurídica, nos países latino-americanos,
que vários autores chegam a questionar se é adequado denominá-los democráticos.
Sob a ótica de um Direito Constitucional de luta e resistência, Paulo Bonavides (apud BONAVIDES,
2003) sentencia que só será possível institucionalizar um efetivo poder democrático no Brasil
se houver, sobretudo, correspondência da Constituição com a realidade social. Em seu preclaro
entendimento, a “Constituinte e a Constituição são componentes de um todo indissociável – a
sociedade brasileira [...]”.
O referido dispositivo, antes de ser revogado pela Emenda Constitucional nº 40, de 29/5/2003,
estipulava que a proibição do anatocismo22, isto é, a proibição de cobrança de taxas de juros
reais superiores a doze por cento ao ano, caso em que a cobrança acima deste limite configuraria
crime de usura23. Ocorre que a citada norma, assim como o seu próprio caput, eram desprovidas
de autoaplicabilidade, vez que sugeriam futura regulamentação via ulterior lei complementar.
Transcorridos quase 15 anos da Constituição de 1988, a norma continuava sem a prometida
regulação infraconstitucional, até que todo o dispositivo foi revogado, com a promulgação da
22 Expressão que designa a cobrança de juros sobre juros. Nesse tipo de operação, corriqueiramente praticada pelas instituições
de crédito, aplica-se o fator compensatório várias vezes sobre um único valor, de forma que o valor inicial sofra uma excessiva
onerosidade.
23 Eis a redação da referida cláusula constitucional, antes do novo teor inserido com a EC nº 40/2003, in litteris: “Art. 192. O
sistema financeiro nacional, estruturado de forma a promover o desenvolvimento equilibrado do País e a servir aos interesses
da coletividade, será regulado em lei complementar, que disporá, inclusive, sobre: (..) § 3º - As taxas de juros reais, nelas
incluídas comissões e quaisquer outras remunerações direta ou indiretamente referidas à concessão de crédito, não poderão ser
superiores a doze por cento ao ano; a cobrança acima deste limite será conceituada como crime de usura, punido, em todas as
suas modalidades, nos termos que a lei determinar.”
94
Interpretação e Aplicação da Constituição │ UNIDADE II
Ao tempo em que se fala de democracia e participação efetiva dos cidadãos na tomada das decisões
políticas e iniciativas legiferantes – inclusive nesse caso expressamente determinado pela Carta –, os
bancos e demais instituições financeiras operam silenciosamente, exercendo grande pressão junto
aos setores que efetivamente definem os rumos do ambiente social em que todos estão inseridos e,
portanto, legitimados a opinar. Nessa mesma senda, enquanto milhões de pessoas não têm o mínimo
atendimento médico, como no caso aqui exposto, uma vez que o art. 196 da “Constituição Cidadã”
não vincula o Estado ao dever de pronta prestação social, consoante entendimento jurisprudencial
do Superior Tribunal de Justiça e realçado por inúmeros “constitucionalistas” pátrios, “o governo
gastou, para salvar o Banco Bamerindus, o montante de 6 bilhões de reais, afora outros 20 bilhões
gastos com outras instituições bancárias”. (STRECK, 2003).
Ademais, se a cidadania é um dos fundamentos do nosso Estado de Direito, como pode o próprio Estado
desrespeitá-la e não a realizar a contento? O fato é que os atores sociais se sentem vilipendiados
em seus direitos fundamentais e continuam a percorrer a estrada ressequida do desencanto, sem
saber se o que dispõe a nossa Constituição é uma simples emanação de um ideal irrealizável ou
se, ao contrário, é o acesso e o usufruto de seus direitos de cidadania que têm sido deliberado e
sistematicamente conspurcados.
24 Em palestra proferida no VI Simpósio Brasileiro de Direito Constitucional, em Curitiba-PR, aos 8 out. 2004, o prof. Lenio Streck
trouxe reflexão colhida a partir do filme “Amém”, de Costa Gravas, acerca dos dilemas e inquietudes daquele que sabe que
sabe... Em suas palavras: “Paz para poucos não é paz. Não há paz sem justiça social, assim como não há paz sem justiça (legal).
Sei que você já sabia de tudo isto. Sei, sei. Mas, como no filme mais recente de Costa Gravas, a mais angustiante angústia é estar
diante do seguinte problema: o que fazer quando se sabe que sabe...!”
95
unidAdE ii │ intErPrEtAção E APliCAção dA ConStituição
Gisela Bester aponta para a existência de certos mecanismos jurídicos “disponíveis para o caso de
não efetivação das normas constitucionais”. São elas as seguintes:
» o mandado de injunção;
A propósito, confira a entrevista do Presidente do STF, Min. Gilmar Mendes, sobre o papel do STF
na efetivação da constituição, em que ele afirma:
Os senhores podem me dizer: mas há casos que o Legislativo fica inerte por
anos a fio! Um tema que foi objeto de decisão recente do STF: o Mandado de
Injunção sobre a greve. Aí parece-me razoável que o Tribunal decida esse tema.
O Tribunal optou por um modelo minimalista. O que o Tribunal fez: mandou
aplicar a lei de greve existente. Portanto, respeitou a decisão do Congresso
Nacional e confiou ao judiciário a adaptação dessa lei para casos concretos. O
Tribunal não fez, ele próprio, uma lei, mas aproveitou o trabalho já existente. E
disse: até que venha a lei do Congresso Nacional, vingue a lei que era aplicável
à greve dos serviços privados.
Os primeiros anos do paradigma constitucional democrático não devem ser desperdiçados. Incumbe
manobrar, agora, o novo eixo reflexivo de combate à inação. Esperou-se demais. Mas sempre é
tempo, quando se espera com esperança!
HOLMES, Stephen; SUNSTEIN, Cass R. The Cost of Rights: why liberty fepends on
taxes. Nova Iorque: Norton & Co, 1999.
96
Interpretação e Aplicação da Constituição │ UNIDADE II
Capítulo 3
Interpretação Constitucional
A Constituição é uma norma jurídica. Mas enquanto norma jurídica, a Constituição tem uma série de
peculiaridades, pois, como já estudamos, ela regulamenta o fenômeno político. Então, é inevitável
que a interpretação constitucional, de alguma maneira, acabe permeada por política.
Um outro aspecto que, de alguma maneira, torna peculiar a interpretação constitucional, é o fato de
que as constituições, pela sua própria natureza, são compostas de normas que são expressas numa
linguagem muito aberta, muito abstrata, muito vaga, e que, por isso mesmo, franqueiam um amplo
espaço para valorações subjetivas de parte daquele que as aplica. Por exemplo, uma Constituição
como a brasileira, que contém normas que empregam conceitos como “moralidade administrativa”,
“dignidade da pessoa humana”, “cidadania”, “devido processo legal”, entre inúmeras outras, permite
uma grande abertura interpretativa para a aplicação dos casos concretos.
Uma outra característica importante das constituições, que, também, se reflete na sua
hermenêutica, é o fato de serem norma suprema. Como norma jurídica, é superior a todas as
demais. Ora, quando interpretamos um decreto, podemos colher subsídios da lei, da qual aquele
decreto decorre; quando interpretamos uma lei, temos a Constituição para apontar certos
parâmetros. Agora, quando interpretamos a Constituição, do ponto de vista jurídico-formal, não
podemos recorrer a nada mais. Isso amplia, indubitavelmente, essa margem de subjetivismo que
caracteriza a posição e a obra do intérprete.
97
UNIDADE II │ Interpretação e Aplicação da Constituição
É preciso se ter em mente que, na verdade, a Constituição não é pura norma. É texto normativo. E
como tal, precisa ser concretizado, transformando-se em norma sustentável para um determinado
problema concreto.
Infelizmente, ainda persiste na tradição brasileira a ideia praxiológica de direito positivo calcado no
primado da lei. A dificuldade de dissociação entre norma x lei ou mesmo norma x texto é injustificável
na “era cibernética”.
Mas quando mencionamos um determinado artigo da Constituição, não estamos diante de uma
norma constitucional, mas de um dispositivo textual da Constituição, que só se tomará a acepção
de norma após a interpretação de sua manifestação literal ou factual diante de um determinado
contexto, determinado pelo caso concreto. O dispositivo constitucional invocado seria, na linguagem
de Müller, uma “norma-texto” (preferimos “texto da norma”) e a melhor solução para o caso, de
acordo com o sistema jurídico e a finalidade que ele guarda ao caso, seria a “norma-decisão”.
25 Cf. MULLER, Friedrich. Métodos de Trabalho do Direito Constitucional. 3. ed. Rio de Janeiro: Renovar, 2005; MULLER,
Friedrich. Direito, linguagem, violência: elementos de uma teoria constitucional, I. Trad. Peter Neuman. Porto Alegre: Sergio
Antonio Fabris, 1995, p. 42 ss; GALINDO, Bruno. Direitos Fundamentais – Concretização jurídica. Curitiba: Juruá, 2003;
ADEODATO, João Maurício. Ética e retórica – para uma teoria da dogmática jurídica. São Paulo: Saraiva, 2002, p. 221-259;
Em um contexto paralelo ao aqui desenvolvido, cf. BISOL, Jairo. O mito das três heurísticas. Revista de Direito UPIS. Brasília,
n. 1, p. 189-200, 2003.
98
Interpretação e Aplicação da Constituição │ UNIDADE II
99
UNIDADE II │ Interpretação e Aplicação da Constituição
A noção principiológica de força normativa da constituição, de que tanto nos fala Konrad Hesse,
transmuta-se em princípio de interpretação, “para que os aplicadores da constituição, na solução
dos problemas jurídico-constitucionais, procurem dar preferência àqueles pontos de vista que,
ajustando historicamente o sentido das suas normas, lhes confiram maior eficácia”.
100
Interpretação e Aplicação da Constituição │ UNIDADE II
Aponta, igualmente, com Vital Moreira e Canotilho (1991, P.73), a necessidade de delimitação do
âmbito normativo de cada norma constitucional, vislumbrando-se sua razão de existência, finalidade
e extensão. Os dois autores citados dão o seguinte exemplo: “não há conflito entre a liberdade de
expressão e o direito ao bom nome em caso de difamação, dado que não está coberto pelo âmbito
normativo-constitucional da liberdade de expressão o direito à difamação, calúnia ou injúria”.
Sobre esse importante princípio metodológico, assim como faremos com o princípio da interpretação
conforme a constituição, empreenderemos análise separada.
O princípio da razoabilidade também tem sua origem e desenvolvimento ligados à garantia do devido
processo legal, em especial, de cunho substantivo. Sobremaneira, a doutrina mais autorizada
credita ao art. 5º, LIV, da Constituição de 1988, a sedes materiae do princípio da proporcionalidade
no direito positivo vigente, constituindo-se, portanto, previsão implícita, decorrente do próprio due
process of law (BUECHELE, 1999).
De outra parte, Willis Santiago (2001) lembra a sinonímia e origem comum, na matemática, dos
termos “razão” e “proporção”, radicados nas formas latinas ratio e proportio, respectivamente. E
reforça, na mesma linha, de forma magistral, Luís Roberto Barroso: “[...] a jurisprudência, assim
na Europa continental como no Brasil, costumam [sic] fazer referência, igualmente, ao princípio
da proporcionalidade, conceito que em linhas gerais mantém uma relação de fungibilidade com o
princípio da razoabilidade”.
26 BARROS, Suzana de Toledo. O princípio da proporcionalidade e o controle de constitucionalidade das leis restritivas de
direitos fundamentais. 2. ed. Brasília: Brasília Jurídica, 2000, p. 72; “Nos Estados Unidos, onde é denominado Princípio da
Razoabilidade, o Princípio da Proporcionalidade foi fruto da grande liberdade de criação do Direito que o sistema federal-
republicano norte-americano concede, até hoje, aos seus juízes”. Cf. BUECHELE, Paulo Armínio Tavares. op. cit., p. 137.
101
UNIDADE II │ Interpretação e Aplicação da Constituição
Gomes Canotilho (s/d) destaca sua aplicabilidade dogmática em dois sentidos: (i) princípio da
proporcionalidade em sentido amplo, equivalente ao princípio da proibição de excessos
(Übermassverbot), consagrada na Constituição Portuguesa de 1976; e (ii) princípio da
proporcionalidade em sentido restrito (Verhältnismässigkeit), que seria um dos subprincípios
do princípio da proibição de excessos ou princípio da proporcionalidade em sentido amplo.
Acentua Buechele (1999, P.146), com relação ao princípio em sentido estrito: “[...] o aspecto-chave
é a ponderação, a relação ‘custo-benefício’, ou seja a verificação das vantagens e desvantagens
resultantes para o cidadão, a partir dos meios utilizados pelo legislador com vistas à obtenção dos
fins perseguidos pela norma constitucional”.
Nesse subprincípio, meios e fins são colocados em equação mediante um juízo de ponderação,
com o objetivo de avaliar se o meio empregado é ou não proporcional à finalidade última da medida
em questão ou, em um só esforço, trata-se do princípio da “justa medida” (CANOTILHO). Nesse
diapasão, proporcionalidade em sentido estrito é um parâmetro de valoração dos atos do Poder
Público, aplicável para aferir se eles estão informados pelo critério de justiça, que deveria ser o valor
superior a todo o ordenamento jurídico (BARROSO).
Guerra Filho (2001), baseado no direito alemão, alude que essa perspectiva de proporcionalidade, em
sentido estrito, também denomina-se “máxima de sopesamento” (Abwägungsgebot), e integra,
ao lado de outros dois subprincípios, quais sejam, o “princípio da adequação” e o “princípio da
exigibilidade” ou da “máxima do meio mais suave” (Gebot des mildesten Mittels), o conteúdo do
próprio princípio da proporcionalidade em sentido lato (“proibição de excessos”).
Por sua vez, o subprincípio da “exigibilidade”, também designado por “máxima do meio mais
suave”, e ainda, princípio da “necessidade”, parte do exame de ser o meio eleito para a consecução
do fim proposto o mais aconselhável, não se esquecendo, pois, que o princípio da proporcionalidade
em sentido lato, “contempla o exame da norma legal no plano intrínseco, ou seja, sob a
ótica da sua conexão material entre meios e fins,” como salientado por Barros (2000, p.79).
Em síntese, pode ser focalizado como o princípio que avalia se a medida adotada seria mesmo exigível
ou necessária, face à sua repercussão real. É como se houvesse a necessidade de se ministrar uma
vacina e se constatasse que os efeitos colaterais seriam nocivos e até mesmo perigosos, em certas
circunstâncias. Aqui, a colateralidade reside no perigo de desrespeito aos direitos fundamentais dos
cidadãos.
Complementando essa ideia, enfatiza Gomes Canotilho que o referido subprincípio “coloca a
tônica na ideia de que o cidadão tem direito à menor desvantagem possível”, na qual se
102
Interpretação e Aplicação da Constituição │ UNIDADE II
conclui que se deve exigir, sempre, a comprovação de que não era possível a adoção de outros meios
menos onerosos para o cidadão, senão aquele escolhido.
Em caso que contrapôs a Igreja Universal do Reino de Deus e a Prefeitura de Diadema, decidiu a 1ª
Câmara do Tribunal de Justiça de São Paulo: “A liberdade de exercício de culto religioso assegurada
pelo art. 5º, VI, da Constituição Federal, não autoriza o abuso na utilização de instrumentos sonoros
a desrespeitar o repouso da coletividade e normas municipais. [...] Os vizinhos têm também o direito
à intimidade (art. 5º, X, da CF) e, também, à liberdade de consciência e de crença (art. 5º, VI, da
CF), prejudicados estes direitos fundamentais pelo som da apelante”.
103
unidAdE ii │ intErPrEtAção E APliCAção dA ConStituição
Como bem advertem Barroso e Ana Paula Barcellos (2003), o princípio tem aspecto dúplice:
104
Garantias e
Princípios
Constitucionais, Unidade iII
Materiais,
Institucionais e
Processuais
Capítulo 1
Garantias Sociais, Jurisdicionais,
Materiais e Processuais
À luz da interpretação sistêmica que se confere ao art. 5o e ao próprio princípio da dignidade humana,
seria inconcebível que uma lei viesse admitir a prática de eutanásia ou a instituição de pena de morte
no Brasil.
“O aborto também é vedado pelo ordenamento jurídico, salvo nos casos escetuados pela legislação penal
– abortos terapêuticos (quando a gravidez gera risco à saúde da gestante) e humanitário ou sentimental
(quando a gestação é decorrente de violência sexual), e no caso de fetos anencefálicos, conforme recente
decisão do STF, na ADPF 54.”
105
UNIDADE III │ Garantias e Princípios Constitucionais, Materiais, Institucionais e Processuais
Da mesma forma que aquela, não está sujeita à censura prévia, porém se sujeitam algumas delas
à regulamentação por lei específica, nos termos do art. 220, § 3o, que prevê o estabelecimento de
critérios para espetáculos e diversões públicas, bem como para programação de rádio e televisão.
106
Garantias e Princípios Constitucionais, Materiais, Institucionais e Processuais │ UNIDADE III
A título de exemplo, para se exercer a profissão de advogado, exige a lei que o candidato possua
graduação no curso de Direito, aprovação no Exame de Ordem da OAB, inscrição naquela instituição
como advogado, tenha efetuado o pagamento de taxas à instituição etc. Já para a profissão de
engraxate, como não há lei a instituir regras para o exercício da atividade, nenhuma qualificação
se exige de alguém que queira praticar tal ofício. Com isso, é possível exercê-la de forma irrestrita,
pautando-se, basicamente, na liberalidade da Norma Ápice.
Noutro plano, há que se considerar o direito de entrar ou sair do território nacional com os seus
bens. Nessa hipótese há a possibilidade de outras restrições de natureza infraconstitucional, como a
concessão ou não de visto de entrada e permanência, além da tributação desses bens.
107
UNIDADE III │ Garantias e Princípios Constitucionais, Materiais, Institucionais e Processuais
Por isso, se observa que, enquanto o inciso XXII dispõe que “é garantido o direito de propriedade”, o
inciso imediatamente seguinte o restringe, estabelecendo que “a propriedade atenderá a sua função
social”. O conceito de função social está insculpido nos art. 182, § 2o e 186 da Norma Maior.
Outra limitação a tal direito é a possibilidade de desapropriação por interesse público. Nesse
caso, a propriedade particular é transferida, por ato de exclusiva vontade do Estado, ou para ele
próprio, ou para entidade de caráter público, sempre que haja necessidade ou interesse público ou
social. Essa transferência, porém, há de ser indenizada pelo justo valor, caso contrário configura
confisco. Apresenta natureza mais identificada com os princípios da ordem econômica do que de
direito individual.
O direito de petição, mais específico, pode ser utilizado tanto para reclamar providências da
Administração quanto para denunciar ilegalidade ou abuso de poder. Assim, por exemplo, pode
prestar-se para denunciar uma atividade poluente praticada por dada indústria ou para cobrar o
conserto de uma rede de esgoto que transborda.
Liebman define jurisdição como “a atividade dos órgãos do Estado destinada a formular e atuar
praticamente a regra jurídica concreta que, segundo o direito vigente, disciplina determinada
108
Garantias e Princípios Constitucionais, Materiais, Institucionais e Processuais │ UNIDADE III
situação jurídica”. Significa isso que o Estado chamou para si, como atividade privativa do Poder
Judiciário, a atribuição de dizer o direito, com vistas à solução dos conflitos. Por esse motivo, não
poderá lei restringir ou dificultar o acesso ao Poder Judiciário porque assim agindo estaria o Estado
furtando-se ao cumprimento de um dever que é manifestação da sua própria soberania.
Exceção parcial a essa regra é a hipótese contida no art. 217, que prevê que as matérias de natureza
desportiva, antes de chegarem ao Judiciário, deverão ser apreciadas pela Justiça Desportiva.
Não se confunde com o direito de petição, pois enquanto este está voltado para o exercício da
cidadania, em que não é necessário demonstrar lesão ou ameaça a direito, o direito de ação antevê,
de pronto, a lesão ou ameaça ao direito praticada por pessoa certa e determinada.
Tanto as relações jurídicas quanto as decisões judiciais necessitam da garantia de que não serão
modificadas no futuro, a despeito de uma das partes, para prejudicá-la, afinal, o que foi acertado
ou decidido deve ter caráter definitivo. Balizada nesse ideal, estabeleceu a Constituição o direito
adquirido, o ato jurídico perfeito e a coisa julgada.
Quanto à coisa julgada, não há necessidade de maiores questionamentos, pois seu conceito é
simples: trata-se de decisão judicial da qual não caiba mais recurso. As dúvidas permeiam o campo
conceitual do que seria direito adquirido e ato jurídico perfeito.
Há ainda outro conceito que advém da Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro trazido
pelo art. 6o, § 2o, que considera adquiridos “os direitos que o seu titular, ou alguém por ele, exercer,
como aqueles cujo começo do exercício tenha termo pré-fixo, ou condição estabelecida inalterável,
a arbítrio de outrem”.
Ato jurídico perfeito, por sua vez, é o ato já consumado segundo a lei vigente ao tempo em que se
efetuou. Não se trata aqui de direito consumado, situação consumada, que, segundo José Afonso da
Silva, também é inatingível pela lei nova, por ser “direito mais do que adquirido, direito esgotado”.
A diferença do direito adquirido para o ato jurídico perfeito é que, no caso do primeiro, o direito é
gerado pela lei, enquanto no segundo o direito deriva de um negócio jurídico formado de acordo
com a lei. Assim, o ato jurídico perfeito é aquele ato jurídico que preencheu todos os seus requisitos
de existência.
109
UNIDADE III │ Garantias e Princípios Constitucionais, Materiais, Institucionais e Processuais
Ambos os incisos visam caracterizar o denominado juízo natural ou, em outras palavras, o juízo
ou tribunal pré-constituído, há tempos já consubstanciado na Declaração Universal dos Direitos
Humanos como garantia da independência e imparcialidade das decisões. Com isso, pretende-se
afastar oportunismos ou conveniências políticas de mau agouro a pretender decisões convenientes,
seja pela severidade seja pela benevolência do julgamento.
110
Garantias e Princípios Constitucionais, Materiais, Institucionais e Processuais │ UNIDADE III
Visa, sobretudo, assegurar às partes o exercício de suas faculdades e poderes processuais na defesa
dos seus direitos em juízo, bem como o regular exercício da jurisdição estatal. É o direito a um
procedimento adequado e inerente a todas as pessoas, indistintamente.
Princípios intimamente relacionados com o princípio do devido processo legal são os da ampla
defesa e do contraditório, insculpidos no inciso LV. Visam assegurar às partes o direito de opor-se
(contraditar) aos argumentos apresentados pelo ex-adverso, bem como a oportunidade de apresentar
a sua versão dos fatos para a adequada avaliação (julgamento) pelo Judiciário. O exercício da ampla
defesa está relacionado à plena produção probatória, ou seja, à utilização de todos os meios de prova
em direito admitidos.
Em tese, não será admitida no processo a prova obtida por vias ilícitas (inciso LVI). Em outras
palavras, há provas que são tidas como ilícitas para o processo em geral, todavia, em se tratando de
ação penal, a plenitude do direito de defesa admitirá tais provas como lícitas, segundo jurisprudência
do Supremo Tribunal Federal.
Determina a CF que deve ser posto em liberdade aquele que, mesmo preso em flagrante, ainda não
foi julgado pelo crime do qual é acusado, desde que atenda a algumas prerrogativas estabelecidas
em lei. Genericamente falando, essas prerrogativas levam em conta a primariedade do acusado
e a potencialidade ofensiva do delito praticado. Assim sendo, verifica-se que o encarceramento é
pretendido como resultado de pena pela prática de delito. Esse é o motivo de não se admitir a prisão
por dívida, que tem natureza civil.
111
UNIDADE III │ Garantias e Princípios Constitucionais, Materiais, Institucionais e Processuais
No sentir de Gilmar Mendes, Paulo Gonet e Inocêncio Mártires Coelho, esses direitos seriam
designados como direitos fundamentais de caráter judicial e garantias constitucionais
processuais, expressões análogas àquela empregada pela doutrina alemã (Justizgrundrechte).
Certo é que o sistema de garantias constitucionais consagrado pela Constituição de 1988 transcende
o âmbito de proteção judicial e engloba quatro grandes grupos: I) as garantias materiais; II) as
garantias jurisdicionais; III) as garantias processuais e IV) as garantias tributárias. Interessa-nos
mais de perto os três primeiros grupos, que serão identificados por exemplos.
Constitui, também, garantia constitucional material a proibição das seguintes penas: de morte,
salvo em caso de guerra declarada; de caráter perpétuo; de trabalhos forçados; de banimento e as
consideradas cruéis.
112
Garantias e Princípios Constitucionais, Materiais, Institucionais e Processuais │ UNIDADE III
controle do Poder Judiciário; a proibição dos tribunais de exceção; o julgamento pelo tribunal do
júri em crimes dolosos contra a vida; o princípio do juiz natural ou do juiz competente; o princípio
do promotor natural e o dever de motivação das decisões judiciais.
113
CAPÍTULO 2
A QUESTÃO DOS DIREITOS FUNDAMENTAIS
NAS RELAÇÕES PRIVADAS
Historicamente, sempre foi de extrema relevância a separação entre o Direito Privado e o Direito
Público. A ideia de propriedade no Direito Romano chegava a ser absoluta, incluindo o domínio
do pater familiae tanto sobres os objetos como sobre as pessoas sujeitas ao seu corpo familiar. Em
uma visão mais clara, o destinatário das normas constitucionais, restritas às matérias atinentes
à estruturação do Estado, seria o legislador ordinário, a quem incumbiria disciplinar as relações
privadas por meio do Código Civil27.
Esta visão de direito começa a ser alterada no início do século XX, na Europa, e após os anos 30,
no Brasil, com maior intervenção do Estado na economia e a restrição à autonomia privada, que se
associa ao fenômeno do dirigismo contratual28.
Tal raciocínio também poderia ser incorporado à questão dos direitos fundamentais. Segundo Carl
Schmitt, os direitos fundamentais são vistos, inicialmente, como direitos do homem livre e isolado
em face do Estado29. Tal concepção, apoiada na visão liberal predominante dos séculos XVIII e XIX,
também sofre com a intervenção estatal acima mencionada, cujo principal marco foi a Constituição
de Weimar, de 1919.
No Brasil, a primeira Constituição a tratar de direitos sociais, também conhecidos como de segunda
geração, é a de 1934. Entretanto, a Constituição que mais trouxe avanços na questão dos direitos
fundamentais e suas relações privadas foi a de 1988.
Para se ter uma noção de como as relações privadas tiveram uma forte influência na questão relativa
aos direitos fundamentais, apenas para se ater no art. 5o, o constituinte tratou da matéria nos seguintes
incisos:
114
Garantias e Princípios Constitucionais, Materiais, Institucionais e Processuais │ UNIDADE III
[...]
O rol acima mencionado não inclui os direitos e garantias originários da liberdade individual ou os
relativos aos direitos do cidadão contra o Estado nem os chamados direitos sociais, cuja intervenção
passou a determinar a tendência de intersecção entre direito público e privado, mais especialmente
no direito de trabalho, hoje entendido com uma terceira via entre a dicotomia acima apontada.
Nesses incisos, percebe-se que o constituinte passa a se preocupar com determinadas consequências
advindas exclusivamente das relações privadas; consequências estas que serão abordadas de
forma mais detalhada.
Liberdade de pensamento
É livre a liberdade de pensamento, não sendo admitida censura prévia em diversões ou espetáculos
públicos. Os abusos porventura ocorridos no exercício indevido da manifestação de pensamento
sujeitam os autores à responsabilização civil e até penal.
É um dos típicos casos de colisão entre princípios o fato de a liberdade invadir a honra, a intimidade
e a privacidade, bens jurídicos igualmente assegurados constitucionalmente.
Direito de resposta
A Carta Magna em seu art. 5o, inciso V, previu um remédio contra o abuso praticado por particulares,
garantindo o direito de resposta, proporcional ao agravo, além de indenização por dano material,
moral ou à imagem. Na verdade, o constituinte evoluiu do pensamento existente na Constituição
anterior, que, no §8o do art. 153, garantia apenas o direito de resposta30.
A imprensa acabou tornando-se a maior destinatária da regra prevista no inciso mencionado. A Lei
de Imprensa (no5.250/67) teve dois artigos não recepcionados pela Constituição, conforme decisões
30 § 8o É livre a manifestação de pensamento, de convicção política ou filosófica, bem como a prestação de informação
independentemente de censura, salvo quanto a diversões e espetáculos públicos, respondendo cada um, nos termos da lei, pelos
abusos que cometer. É assegurado o direito de resposta. A publicação de livros, jornais e periódicos não depende de licença da
autoridade. Não serão, porém, toleradas a propaganda de guerra, de subversão a ordem ou preconceitos de religião, de raça ou
de classe, e as publicações e exteriorizações contrárias à moral e aos bons costumes.
115
UNIDADE III │ Garantias e Princípios Constitucionais, Materiais, Institucionais e Processuais
do Supremo Tribunal Federal. Tanto o art. 5231, que tratava da limitação da indenização, como o
5632, que versava sobre o curto prazo decadencial para ajuizamento da ação, não foram recebidos
pela Constituição sob o argumento de que o dano moral, inovação constitucional, é incompatível
com qualquer limite tarifado, segundo o que determina a Lei de Imprensa, interpretando-se, ainda,
que o disposto no inciso V não pode sujeitar-se ao prazo decadencial de três meses, conforme dispôs
o Ministro Carlos Velloso em seu voto como relator no leading case sobre a questão33.
No tocante ao direito de resposta, o Supremo Tribunal Federal entendeu que é parte ilegítima no polo
passivo o jornalista que escreve a matéria, devendo ser preenchido pela empresa de informação ou
divulgação34.
A Constituição Federal de 1988 inovou ao trazer o texto do inciso X. Nenhuma outra Constituição
brasileira versou sobre a intimidade, a vida privada, a honra e a imagem das pessoas, assegurando o
direito à indenização por dano material ou moral decorrente de sua violação. Mais do que mencionar
tais temas e elevá-los ao status de direito fundamental, o inciso X reformula a noção de dano moral,
assim como o inciso V.
Antes de 1988, o dano moral possuía previsão infraconstitucional, todavia circunscrito à questão da
indenização por algum dano causado conforme regulamentado no art. 53 da Lei de Imprensa35. Com
o dispositivo constitucional, os tribunais passaram a disciplinar o dano moral, haja vista que o Código
Civil de 1916 não tratava do assunto, que só veio a aparecer no Códex de 2002, em seu art. 186.
Um voto marcante na conceituação do dano moral foi o do relator, à época desembargador do TJRJ,
Carlos Alberto Menezes Direito, no julgamento da Apelação Cível no 3.059/1991, que recolhe vários
exemplos doutrinários sobre o dano moral:
31 “Indenização. Responsabilidade civil. Lei de Imprensa. Dano moral. Publicação de notícia inverídica, ofensiva à honra e à boa
fama da vítima. Ato ilícito absoluto. Responsabilidade civil da empresa jornalística. Limitação da verba devida nos termos do
art. 52 da Lei no 5.250/1967. Inadmissibilidade. Norma não recebida pelo ordenamento jurídico vigente. Interpretação do art.
5o, IV, V, IX, X, XIII e XIV, e art. 220, caput e § 1o, da CF de 1988. Recurso extraordinário improvido. Toda limitação, prévia e
abstrata, ao valor de indenização por dano moral, objeto de juízo de equidade, é incompatível com o alcance da indenizabilidade
irrestrita assegurada pela atual Constituição da República. Por isso, já não vige o disposto no art. 52 da Lei de Imprensa, o qual
não foi recebido pelo ordenamento jurídico vigente” (RE no 447.584, Rel. Min. Cezar Peluso, j. em 28.11.2006, DJ de 16 mar.
2007).
32 “Dano moral: ofensa praticada pela imprensa. Decadência: Lei no 5.250, de 9-2-67 — Lei de Imprensa — art. 56: não recepção
pela CF/88, art. 5o, V e X. O art. 56 da Lei no 5.250/1967 — Lei de Imprensa — não foi recebido pela Constituição de 1988, art.
5o, incisos V e X” (RE no 420.784, Rel. Min. Carlos Velloso, DJ de 25 jun. 2004). No mesmo sentido, RE no 348.827, Rel. Min.
Carlos Velloso, j. em 1o. 6. 2004, DJ de 6 ago. 2004.
33 RE no 348.827, Rel. Min. Carlos Velloso, j. em 1o. 6. 2004, DJ de 6 ago. 2004. Inteiro teor do julgamento em: <http://www.stf.
jus.br/portal/inteiroTeor/obterInteiroTeor.asp?numero=348827&classe=RE>.
34 “[...] O pedido judicial de direito de resposta previsto na lei de impressa deve ter no polo passivo a empresa de informação
ou divulgação, a quem compete cumprir a decisão judicial no sentido de satisfazer o referido direito, citado o responsável
nos termos do § 3o do art. 32 da Lei no 5.250/1967, sendo parte ilegítima o jornalista ou o radialista envolvido no fato. Falta
interesse recursal ao requerido pessoa física, já que, no caso concreto, o juiz de Direito proferiu decisão condenatória apenas no
tocante à empresa de radiodifusão. O não conhecimento da apelação do requerido pessoa física, hoje deputado federal, implica
a devolução dos autos ao tribunal de origem para que julgue a apelação da pessoa jurídica que não tem foro privilegiado no
Supremo Tribunal Federal. [...]” (Pet. no 3.645, Rel. Min. Menezes Direito, j. em 20.2.2008, DJE de 2 de maio 2008).
35 Art . 53. No arbitramento da indenização em reparação do dano moral, o juiz terá em conta, notadamente:
I - a intensidade do sofrimento do ofendido, a gravidade, a natureza e repercussão da ofensa e a posição social e política do
ofendido;
II - a intensidade do dolo ou o grau da culpa do responsável, sua situação econômica e sua condenação anterior em ação criminal
ou cível fundada em abuso no exercício da liberdade de manifestação do pensamento e informação;
III - a retratação espontânea e cabal, antes da propositura da ação penal ou cível, a publicação ou transmissão da resposta
ou pedido de retificação, nos prazos previstos na lei e independentemente de intervenção judicial, e a extensão da reparação
por esse meio obtida pelo ofendido.
116
Garantias e Princípios Constitucionais, Materiais, Institucionais e Processuais │ UNIDADE III
Dano moral. Lição de Aguiar Dias: o dano moral é o efeito não patrimonial da
lesão de direito e não a própria lesão abstratamente considerada. Lição de
Savatier: dano moral é todo sofrimento humano que não é causado por uma perda
pecuniária. Lição de Pontes de Miranda: nos danos morais a esfera ética da pessoa
é que é ofendida; o dano não patrimonial é o que, só atingindo o devedor como ser
humano, não lhe atinge o patrimônio36.
A questão se apontava com tal novidade no Direito brasileiro que o Superior Tribunal de Justiça
sumulou a possibilidade de cumulação entre dano moral e dano material decorrentes do mesmo fato37.
José de Aguiar Dias distingue o dano moral do patrimonial informando que a diferença não decorre
da natureza do direito, bem, ou interesse lesado, mas do efeito da lesão, do caráter de sua repercussão
sobre o lesado38. Ressalte-se que o dano material nunca é irreparável, pois se pode restaurar a situação
anterior, ou se pagar o equivalente pelo desfalque, enquanto no dano moral ocorre uma diversidade de
prejuízos que o envolvem e que de comum só têm a característica negativa de não serem patrimoniais,
resultando em uma confusão entre a pena a ser aplicada e a indenização a ser recebida39.
Álvaro Villaça Azevedo arrola como exemplos de bens materiais o imóvel, o animal, a soma em
dinheiro, enquanto a honra, a vida e a liberdade podem ser tachados de bens imateriais40. Assim,
se o dano se dirigir ao bem material, o dano será material, se ao bem imaterial, o dano será moral41.
Uma discussão levantada com o inciso X do art. 5o, é a de que só caberia dano moral nas hipóteses
taxativas da Constituição. A experiência jurisprudencial tem derrubado essa ideia e permitido
a aplicação de indenização por dano moral a situações além das meramente trazidas no inciso.
Entretanto, as indenizações por dano moral não se transformaram em uma possibilidade irrestrita
de aplicação, tendo os tribunais limitado a sua interpretação de acordo com o caso concreto.
O Supremo Tribunal Federal, por exemplo, entende que o dano moral é o que atinge a esfera
legítima de afeição da vítima, que agrede seus valores, que humilha ou causa dor, não se incluindo
aí meras situações desagradáveis42. Tal entendimento também está presente no Superior Tribunal
de Justiça43, que não admite a condenação por dano moral quando há simples incômodo comum,
decorrente da vida cotidiana44.
117
UNIDADE III │ Garantias e Princípios Constitucionais, Materiais, Institucionais e Processuais
Uma das maiores dificuldades na configuração do dano moral está no quantum debeatur, ou seja,
na definição do valor a ser indenizado, haja vista a falta de materialização do dano. Muitas dessas
ações acabam sendo resolvidas no Superior Tribunal de Justiça, que tem-se manifestado no sentido
de que os tribunais de segunda instância são livres para definir o valor da indenização, havendo o
cabimento de recurso especial ao STJ apenas na hipótese de o valor do dano ser determinado como
ínfimo ou excessivo45, o que impede que o dano moral seja uma força motriz para o enriquecimento
ilícito daquele que sofreu o dano46, e respeita o disposto no Código Civil, que faz essa previsão em
seu art. 94447.
“Com o julgamento da ADPF 130, em abril de 2009, o STF declarou que a lei de
imprensa (5.250/67) é incompatível com a atual ordem constitucional”.
Com a intimidade, o constituinte tratou da vida privada. Manoel Gonçalves Ferreira Filho afirma
que:
A delimitação do direito à vida privada possui uma característica complexa, haja vista a diversidade de
povos, crenças, sendo alguns comportamentos tolerados por uns e repudiados por outros. Cristiano
Chaves de Farias e Nelson Rosenvald afirmam que a vida privada é o refúgio impenetrável pela
45 “DIREITO DO CONSUMIDOR. INSCRIÇÃO NOS ÓRGÃOS DE PROTEÇÃO AO CRÉDITO. NOTIFICAÇÃO PRÉVIA. DANO
MORAL. INDENIZAÇÃO. IMPOSSIBILIDADE DE REVISÃO NO STJ. 1. A revisão de indenização por danos morais só é possível
em recurso especial quando o valor fixado nas instâncias locais for exorbitante ou ínfimo. 2. Agravo regimental desprovido”.
(RCDESP no Ag. no 1.028.443/RJ, Rel. Min. João Otávio de Noronha, 4a Turma, j. em 18.12.2008, DJe de 2 fev. 2009).
46 “CIVIL E PROCESSUAL. RESPONSABILIDADE CIVIL. DISPOSITIVOS PROCESSUAIS. PREQUESTIONAMENTO.
AUSÊNCIA. APOSENTADO. VEDAÇÃO DE ACESSO A EDIFÍCIO QUE ABRIGA ENTIDADE BANCÁRIA. DANO MORAL. ATO
ILÍCITO SUFICIENTE PARA GERAR INDENIZAÇÃO. REEXAME DOS FATOS. QUANTUM RESSARCITÓRIO EXCESSIVO.
REDUÇÃO. SÚMULAS N. 282 E 356-STF E 7-STJ. I. As questões federais não enfrentadas pelo tribunal estadual recebem o
óbice das Súmulas n. 282 e 356 do C. STF, não podendo, por falta de prequestionamento, ser debatidas no âmbito do recurso
especial. II. A conclusão de que o ato lesivo é suficiente para consubstanciar dano moral indenizável depende do reexame do
conteúdo fático da causa, vedado pela Súmula n. 7-STJ. III. Constatado flagrante excesso na fixação do valor da indenização
concedida a título de reparação, impõe-se a sua redução a patamar razoável, afastado o enriquecimento sem causa. IV. Recurso
especial conhecido em parte e, nessa extensão, parcialmente provido”. (REsp no 628.490/PA, Rel. Min. Aldir Passarinho Junior,
4o Turma, j. em 7.8.2007, DJ de 8 out. 2007, p. 287).
47 Art. 944. A indenização mede-se pela extensão do dano.
Parágrafo único. Se houver excessiva desproporção entre a gravidade da culpa e o dano, poderá o juiz reduzir, equitativamente,
a indenização.
48 FERREIRA FILHO, Manoel Gonçalves. Comentários à Constituição brasileira de 1988. 2. ed. São Paulo: Saraiva, 1997,
p. 35.
118
Garantias e Princípios Constitucionais, Materiais, Institucionais e Processuais │ UNIDADE III
coletividade, é o direito de viver a própria vida em isolamento, não sendo submetido à publicidade
que não provocou, nem desejou49.
Com esse pensamento, o Superior Tribunal de Justiça condenou empresa jornalística ao pagamento
de dano moral por ter divulgado o nome completo e o bairro onde morava uma determinada vítima
de estupro50. Da mesma forma, o STJ entendeu cabível indenização contra empresa telefônica
por divulgação, sem autorização, de anúncio comercial de serviços de massagem em suas páginas
amarelas51.
No esteio do raciocínio do conceito acima mencionado, não há ofensa ao direito à intimidade quando
a própria pessoa provocou ou desejou a situação. Se alguém se coloca de topless em uma praia, não
pode pedir indenização por danos morais em razão de divulgação de sua foto na imprensa52.
Todavia, a vida privada não se resume ao direito à intimidade, podendo ser entendida como gênero
composto pelas espécies direito à intimidade e direito ao sigilo.
O direito ao sigilo é, sem dúvida, um dos grandes desafios constitucionais. O constituinte apenas
tratou expressamente dos sigilos de correspondência, dados, telegráfico e telefônico no inciso XII
do art. 5o. Todavia, como esses sigilos são mais relacionados ao direito público, não será feita a
devida abordagem no presente estudo. Ressalte-se que o inciso disciplina a quebra instantânea e
não meramente eventuais registros telefônicos, com as informações das ligações efetuadas, cujo
tratamento também fica adstrito ao inciso X53.
Além dos sigilos acima mencionados, estão presentes outros segredos implícitos, que ganharam
corpo com a evolução da interpretação constitucional, entre eles o sigilo bancário e o sigilo fiscal.
49 FARIAS, Cristiano Chaves de; ROSENVALD, Nelson. Direito civil: teoria geral. 7. ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2008, p.
147.
50 “DANO MORAL. DIVULGAÇÃO. NOME. NOTICIÁRIO. Trata-se de ação de indenização por dano moral pela divulgação, em
noticiário de rádio, do nome completo e do bairro onde residia a vítima de crime de estupro. Ressalta a Min. Relatora que há
limites ao direito da imprensa de informar, isso não se sobrepõe nem elimina quaisquer outras garantias individuais, entre
as quais se destacam a honra e a intimidade. Afirma que, no caso dos autos, a conduta dos recorrentes não reside na simples
divulgação de um fato verídico criminoso e de interesse público, vai muito além, ao divulgar o nome da autora: sua intimidade
e sua honra foram violadas. Por isso, foram condenados a compensá-la pelos danos morais no valor de R$ 40.000,00.
Outrossim, o prazo prescricional em curso quando diminuído pelo novo Código Civil só sofre a incidência de sua redução a
partir de sua entrada em vigor. Assim, a decisão a quo está de acordo com a jurisprudência deste Superior Tribunal. Com essas
considerações, entre outras, a Turma não conheceu do recurso. Precedentes citados: REsp no 717.457-PR, DJ 21 de maio 2007;
REsp no 822.914-RS, DJ de 19 jun. 2006; REsp. no 818.764-ES, DJ de 12 mar. 2007; REsp no 295.175-RJ, DJ de 2 abr. 2001, e
REsp no 213.811-SP, DJ 7/2/2000. REsp no 896.635-MT, Rel. Min. Nancy Andrighi, j. em 26.2.2008.
51 “RESPONSABILIDADE CIVIL. DANO MORAL. VIOLAÇÃO. DIREITOS DA PERSONALIDADE. INTIMIDADE. VEICULAÇÃO.
LISTA TELEFÔNICA. ANÚNCIO COMERCIAL EQUIVOCADO. SERVIÇOS DE MASSAGEM. 1. A conduta da prestadora de
serviços telefônicos caracterizada pela veiculação não autorizada e equivocada de anúncio comercial na seção de serviços de
massagens, viola a intimidade da pessoa humana ao publicar telefone e endereço residenciais. 2. No sistema jurídico atual, não
se cogita da prova acerca da existência de dano decorrente da violação aos direitos da personalidade, entre eles a intimidade,
imagem, honra e reputação, já que, na espécie, o dano é presumido pela simples violação ao bem jurídico tutelado. 3. Recurso
especial parcialmente conhecido e provido”. (REsp 506.437/SP, Rel. Min. Fernando Gonçalves, 4a Turma, j. em 16.09.2003, DJ
de 6 out 2003, p. 280).
52 “DIREITO CIVIL. DIREITO DE IMAGEM. TOPLESS PRATICADO EM CENÁRIO PÚBLICO. Não se pode cometer o delírio
de, em nome do direito de privacidade, estabelecer-se uma redoma protetora em torno de uma pessoa para torná-la imune de
qualquer veiculação atinente a sua imagem. Se a demandante expõe sua imagem em cenário público, não é ilícita ou indevida
sua reprodução pela imprensa, uma vez que a proteção à privacidade encontra limite na própria exposição realizada. Recurso
especial não conhecido”. (REsp no 595.600/SC, Rel. Min. Cesar Asfor Rocha, 4a Turma, j. em 18.03.2004, DJ de 13 set. 2004,
p. 259).
53 “[...] VII - A quebra do sigilo dos dados telefônicos contendo os dias, os horários, a duração e o números das linha chamadas e
recebidas não se submete à disciplina das interceptações telefônicas regidas pela Lei no 9.296/1996 (que regulamentou o inciso
XII do art. 5o da Constituição Federal) e ressalvadas constitucionalmente tão somente na investigação criminal ou instrução
processual penal. [...]”(RMS no 17.732/MT, Rel. Min. Gilson Dipp, 5a Turma, j. em 28.6.2005, DJ de 01 ago. 2005, p. 477).
119
UNIDADE III │ Garantias e Princípios Constitucionais, Materiais, Institucionais e Processuais
A primeira discussão acerca desses sigilos está na sua limitação. O Supremo Tribunal Federal já
decidiu que tais sigilos não são absolutos, devendo ceder aos interesses público, social e da Justiça,
sendo observados os ditames legais e as regras de razoabilidade54.
A Suprema Corte também decidiu que tanto o sigilo bancário como o fiscal só podem ser quebrados
por via judicial, o que impossibilita a atuação meramente administrativa55. O juiz, no momento
da decretação deve estipular claramente os limites da quebra, a fim de que não haja invasão à
privacidade do indivíduo56.
A última questão polêmica acerca do direito à intimidade e à vida privada está na possibilidade
de serem realizadas gravações ambientais, sejam elas de áudio ou de vídeo. Discute-se a hipótese
de tais gravações estarem invadindo a privacidade do indivíduo e, com isso, ofende o art. 5o, X,
da Constituição Federal. As câmeras são exemplos disso. Elas são cada vez mais comuns em
estabelecimentos comerciais e começam a ser utilizadas pelas autoridades públicas, seja para coibir
infrações de trânsito, seja para prevenir e reprimir a prática de crimes. Com acessibilidade cada
vez maior aos meios de gravação, mais e mais pessoas se utilizam de tais métodos para comprovar
determinadas situações ou, até mesmo, para se defender de eventuais ameaças.
A pergunta que se faz é: isso é legal? O STF entende plenamente constitucional a gravação ambiental
realizada por um dos interlocutores, podendo ser usada como meio de prova57. Do mesmo modo,
não há ilegalidade nas gravações clandestinas, tão comumente mostradas nos telejornais58, podendo
ser feitas tranquilamente em lugares de frequentação comum, não sendo possível a gravação dentro
da residência do indivíduo sem sua autorização59.
54 “O sigilo bancário, espécie de direito à privacidade protegido pela Constituição de 1988, não é absoluto, pois deve ceder diante
dos interesses público, social e da Justiça. Assim, deve ceder também na forma e com observância de procedimento legal e com
respeito ao princípio da razoabilidade. Precedentes” (AI no 655.298-AgR, Rel. Min. Eros Grau, j. em 4.9.2007, DJ de 28 set.
2007).
55 “Possibilidade de quebra de sigilo bancário pela autoridade administrativa sem prévia autorização do Judiciário. Recurso
extraordinário provido monocraticamente para afastar a aplicação do art. 8o da Lei no 8.021/1990 (‘Iniciado o procedimento
fiscal, a autoridade fiscal poderá solicitar informações sobre operações realizadas pelo contribuinte em instituições financeiras,
inclusive extratos de contas bancárias, não se aplicando, nesta hipótese, o disposto no art. 38 da Lei no 4.595, de 31 de dezembro
de 1964’) e restabelecer a sentença de primeira instância. A aplicação de dispositivo anterior em detrimento de norma
superveniente, por fundamentos extraídos da Constituição, equivale à declaração de sua inconstitucionalidade” (RE no 261.278-
AgR, Rel. para o acordão Min. Gilmar Mendes, j. em 1o. 4.2008, DJE de 1o ago. 2008).
56 “A quebra de sigilo não pode ser manipulada, de modo arbitrário, pelo Poder Público ou por seus agentes. É que, se assim não
fosse, a quebra de sigilo converter-se-ia, ilegitimamente, em instrumento de busca generalizada e de devassa indiscriminada
da esfera de intimidade das pessoas, o que daria ao Estado, em desconformidade com os postulados que informam o regime
democrático, o poder absoluto de vasculhar, sem quaisquer limitações, registros sigilosos alheios. Doutrina. Precedentes. Para
que a medida excepcional da quebra de sigilo bancário não se descaracterize em sua finalidade legítima, torna-se imprescindível
que o ato estatal que a decrete, além de adequadamente fundamentado, também indique, de modo preciso, entre outros dados
essenciais, os elementos de identificação do correntista (notadamente o número de sua inscrição no CPF) e o lapso temporal
abrangido pela ordem de ruptura dos registros sigilosos mantidos por instituição financeira. Precedentes” (HC no 84.758, Rel.
Min. Celso de Mello, j. em 25.5.2006, DJ de 16 jun. 2006).
57 “É lícita a gravação ambiental de diálogo realizada por um de seus interlocutores. Esse foi o entendimento firmado pela
maioria do Plenário em ação penal movida contra ex-prefeito, atual deputado federal, e outra, pela suposta prática do delito
de prevaricação (CP, art. 319) e de crime de responsabilidade (Decreto-Lei no 201/1967, art. 1o, XIV) [...]. Asseverou-se que a
gravação ambiental, feita por um dos fiscais municipais de trânsito, de uma reunião realizada com a ex-secretária municipal,
seria prova extremamente deficiente, porque cheia de imprecisões, e que, dos depoimentos colhidos pelas testemunhas, não se
poderia extrair a certeza de ter havido ordem de descumprimento do CTB por parte do ex-prefeito [...]. Vencidos, no que tange
à licitude da gravação ambiental, os Ministros Menezes Direito e Marco Aurélio, que a reputavam ilícita” (AP 447, Rel. Min.
Carlos Britto, j. em 18.2.2009, Plenário, Informativo no 536).
58 “Paciente denunciado por falsidade ideológica, consubstanciada em exigir quantia em dinheiro para inserir falsa informação de
excesso de contingente em certificado de dispensa de incorporação. Gravação clandestina realizada pelo alistando, a pedido de
emissora de televisão, que levou as imagens ao ar em todo o território nacional por meio de conhecido programa jornalístico.
[...] A questão posta não é de inviolabilidade das comunicações e sim da proteção da privacidade e da própria honra, que não
constitui direito absoluto, devendo ceder em prol do interesse público” (HC no 87.341, Rel. Min. Eros Grau, j. em 7.2.2006, DJ
de 3 mar. 2006).
59 “AÇÃO PENAL ORIGINÁRIA. RECEBIMENTO DA DENÚNCIA. GRAVAÇÃO AMBIENTAL REALIZADA POR UM DOS
INTERLOCUTORES SEM O CONHECIMENTO DO OUTRO. INVESTIDA CRIMINOSA NÃO CONFIGURADA. ILICITUDE
120
Garantias e Princípios Constitucionais, Materiais, Institucionais e Processuais │ UNIDADE III
Honra
A honra tem estreita ligação com a privacidade. Enquanto esta resguarda o que compõe a intimidade,
aquela protege a pessoa humana contra falsos ataques que podem macular sua boa fama social.
Dessa forma, a honra é a soma dos conceitos positivos que cada pessoa goza na vida em sociedade60.
A honra se divide em honra objetiva e a honra subjetiva. Enquanto a objetiva diz respeito à reputação
que a coletividade dedica a alguém, a subjetiva trata do próprio juízo valorativo que determinada
pessoa faz de si mesmo61.
Ambas as formas de violação da honra são admitidas, ensejando eventual indenização pelo fato.
Ressalte-se que a ofensa à honra pode ensejar, inclusive, a persecução criminal pela prática da injúria.
A proteção à honra fez com que o legislador, na edição do Código Civil, previsse em seu art. 20 o que
segue:
O direito à proteção da honra também entra em conflito ao ser analisado com a liberdade de
imprensa, também elevada ao status de garantia constitucional. O Superior Tribunal de Justiça já
decidiu que a crítica a uma pessoa pública não significa ataque à honra62.
DA PROVA. AFRONTA À PRIVACIDADE (ART. 5o, X, CF). INVESTIGAÇÃO. MINISTÉRIO PÚBLICO. INQUÉRITO CIVIL E
CRIMINAL. ART. 33, PARÁGRAFO ÚNICO, DA LOMAN. CONJUNTO PROBATÓRIO INSUFICIENTE PARA SUSTENTAR O
RECEBIMENTO DA EXORDIAL ACUSATÓRIA. ART. 6o DA LEI NO 8.038/1990. I – A análise da licitude ou não da gravação
de conversa por um dos interlocutores sem a ciência do outro deve ser verificada caso a caso. II – Quando a gravação se refere
a fato pretérito, consumado e sem exaurimento ou desdobramento, danoso e futuro ou concomitante, tem-se, normalmente
e em princípio, a hipótese de violação à privacidade. Todavia, demonstrada a investida criminosa contra o autor da gravação,
a atuação deste – em razão, inclusive, do teor daquilo que foi gravado – pode, às vezes, indicar a ocorrência de excludente de
ilicitude (a par da quaestio do princípio da proporcionalidade). A investida, uma vez caracterizada, tornaria, daí, lícita a gravação
(precedente do Pretório Excelso, inclusive, do c. Plenário). Por outro lado, realizada a gravação às escondidas, na residência do
acusado, e sendo inviável a verificação suficiente do conteúdo das degravações efetuadas, dada a imprestabilidade do material,
sem o exato delineamento da hipotética investida, tal prova não pode ser admitida, porquanto violadora da privacidade de
participante do diálogo (art. 5o, X, CF). III – A atuação do Ministério Público no inquérito civil tem previsão legal (art. 8o, § 1o,
Lei no 7.347/1985). Tal não se confunde com a situação do inquérito criminal envolvendo magistrado de segundo grau (art. 33,
parágrafo único, LOMAN). IV – No processo penal, a exordial acusatória deve vir acompanhada de um fundamento probatório
mínimo apto a demonstrar, ainda que de modo indiciário, a efetiva realização do ilícito penal por parte do denunciado. Se não
houver uma base empírica mínima a respaldar a peça vestibular, de modo a torná-la plausível, inexistirá justa causa a autorizar
a persecutio criminis in iudicio. Tal acontece, como in casu, quando a situação fática não está suficientemente reconstituída.
V – Acolhida a primeira preliminar relativa à ilicitude da prova obtida mediante gravação clandestina. Rejeitada a segunda
preliminar referente à alegada usurpação da função da polícia judiciária pelo Ministério Público. Denúncia rejeitada por falta
de justa causa” (Apn no 479/RJ, Rel. Min. Felix Fischer, Corte Especial, j. em 29.6.2007, DJ de 1o out. 2007, p. 198).
60 FARIAS; ROSENVALD, op. cit., p. 149.
61 Idem, ibidem.
62 “RECURSO ESPECIAL. RESPONSABILIDADE CIVIL. DANOS MATERIAIS E MORAIS. ENTREVISTA DE ADVOGADO.
REFERÊNCIA A JULGADOS. 1. O dano moral deve ser visto como violação do direito à dignidade, estando nela inseridos a
inviolabilidade da intimidade, da vida privada, da honra e da imagem. Dessa forma, havendo agressão à honra da vítima, é
cabível indenização. 2. Críticas à atividade desenvolvida pelo homem público, in casu, o magistrado, são decorrência natural
da atividade por ele desenvolvida e não ensejam indenização por danos morais quando baseadas em fatos reais, aferíveis
121
UNIDADE III │ Garantias e Princípios Constitucionais, Materiais, Institucionais e Processuais
Até mesmo as imunidades previstas em lei e pela Constituição não são absolutas se ofendem a
honra do indivíduo. Advogado que ofende juiz ou promotor de Justiça responde pelos seus atos65,
tanto civil como criminalmente, mesmo com a imunidade prevista no Estatuto dos Advogados
e a inviolabilidade constitucional do art. 133.66 A mesma regra se dá aos deputados e senadores,
concretamente. 3. Respaldado nas disposições do § 2o do art. 7o da Lei no 8.906/1994, pode o advogado manifestar-se, quando
no exercício profissional, sobre decisões judiciais, mesmo que seja para criticá-las. O que não se permite, até porque nenhum
proveito advém para as partes representadas pelo advogado, é crítica pessoal ao juiz. 4. Recurso especial de Sérgio Bermudes
conhecido e provido. Recurso especial da empresa CRBS S/A Cuiabana conhecido em parte e provido”. (REsp no 531.335/MT,
Rel. Min. Nancy Andrighi, Rel. para acórdão Min. João Otávio de Noronha, 3a Turma, j. em 2.9.2008, DJe de 19 dez. 2008).
63 “RECURSO ESPECIAL – AÇÃO DE INDENIZAÇÃO – DANOS MORAIS – PUBLICAÇÃO DE MATÉRIA JORNALÍSTICA
OFENSIVA À HONRA DE ADVOGADO – LIBERDADE DE INFORMAÇÃO E DE INFORMAÇÃO – DIREITOS RELATIVIZADOS
PELA PROTEÇÃO À HONRA, À IMAGEM E À DIGNIDADE DOS INDIVÍDUOS – VERACIDADE DAS INFORMAÇÕES E
EXISTÊNCIA DE DOLO NA CONDUTA DA EMPRESA JORNALÍSTICA – REEXAME DE PROVAS – IMPOSSIBILIDADE
– APLICAÇÃO DO ENUNCIADO N. 7 DA SÚMULA/STJ – QUANTUM INDENIZATÓRIO – REVISÃO PELO STJ –
POSSIBILIDADE – VALOR EXORBITANTE – EXISTÊNCIA, NA ESPÉCIE – RECURSO ESPECIAL PARCIALMENTE
PROVIDO. I – A liberdade de informação e de manifestação do pensamento não constituem direitos absolutos, sendo
relativizados quando colidirem com o direito à proteção da honra e da imagem dos indivíduos, bem como ofenderem o princípio
constitucional da dignidade da pessoa humana. II – A revisão do entendimento do tribunal a quo acerca da não veracidade
das informações publicadas e da existência de dolo na conduta da empresa jornalística, obviamente, demandaria revolvimento
dessas provas, o que é inviável em sede de recurso especial, a teor do disposto na Súmula 7/STJ. III – É certo que esta Corte
Superior de Justiça pode rever o valor fixado a título de reparação por danos morais, quando se tratar de valor exorbitante
ou ínfimo. IV – Recurso especial parcialmente provido” (REsp no 783.139/ES, Rel. Min. Massami Uyeda, 4a Turma, j. em
11.12.2007, DJ de 18 fev. 2008, p. 33).
64 “Civil. Recurso especial. Compensação por danos morais. Ofensa à honra. Político de grande destaque nacional que, durante
CPI relacionada a atos praticados durante sua administração, é acusado de manter relação extraconjugal com adolescente, da
qual teria resultado uma gravidez. Posterior procedência de ação declaratória de inexistência de relação de parentesco, quando
demonstrado, por exame de DNA, a falsidade da imputação. Acórdão que afasta a pretensão, sob entendimento de que pessoas
públicas têm diminuída a sua esfera de proteção à honra. Inaplicabilidade de tal tese ao caso, pois comprovada a inverdade da
acusação.
– A imputação de um relacionamento extraconjugal com uma adolescente, que teria culminado na geração de uma criança –
fato posteriormente desmentido pelo exame de DNA – foi realizada em ambiente público e no contexto de uma investigação
relacionada à atividade política do autor.
– A redução do âmbito de proteção aos direitos de personalidade, no caso dos políticos, pode em tese ser aceitável quando a
informação, ainda que de conteúdo familiar, diga algo sobre o caráter do homem público, pois existe interesse relevante na
divulgação de dados que permitam a formação de juízo crítico, por parte dos eleitores, sobre os atributos morais daquele que
se candidata a cargo eletivo.
– Porém, nesta hipótese, não se está a discutir eventuais danos morais decorrentes da suposta invasão de privacidade do
político a partir da publicação de reportagens sobre aspectos íntimos verdadeiros de sua vida, quando, então, teria integral
pertinência a discussão relativa ao suposto abrandamento do campo de proteção à intimidade daquele. O objeto da ação é,
ao contrário, a pretensão de condenação por danos morais em vista de uma alegação comprovadamente falsa, ou seja, de
uma mentira perpetrada pelo réu, consubstanciada na atribuição errônea de paternidade – erro esse comprovado em ação
declaratória já transitada em julgado.
– Nesse contexto, não é possível aceitar-se a aplicação da tese segundo a qual as figuras públicas devem suportar, como ônus de
seu próprio sucesso, a divulgação de dados íntimos, já que o ponto central da controvérsia reside na falsidade das acusações
e não na relação destas com o direito à intimidade do autor. Precedente. Recurso especial conhecido e provido” (REsp no
1.025.047/SP, Rel. Min. Nancy Andrighi, 3a Turma, j. em 26.6.2008, DJe de 05 ago. 2008).
65 “Direito civil e processual civil. Indenização por danos morais. Correição parcial. Ofensa a juiz. Imunidade profissional do
advogado. Caráter não absoluto. Valor dos danos morais. A imunidade profissional, garantida ao advogado pelo Estatuto da
Advocacia, não é de caráter absoluto, não tolerando os excessos cometidos pelo profissional em afronta à honra de quaisquer
das pessoas envolvidas no processo, seja o juiz, a parte, o membro do Ministério Público, o serventuário ou o advogado da
parte contrária. Precedentes. A indenização por dano moral dispensa a prática de crime, sendo bastante a demonstração do ato
ilícito praticado. O advogado que, atuando de forma livre e independente, lesa terceiros no exercício de sua profissão responde
diretamente pelos danos causados. O valor dos danos morais não deve ser fixado em valor ínfimo, mas em patamar que
compense de forma adequada o lesado, proporcionando-lhe bem da vida que aquiete as dores na alma que lhe foram infligidas.
Recurso especial provido. Ônus sucumbenciais invertidos” (REsp no 1.022.103/RN, Rel. Min. Nancy Andrighi, 3a Turma, j. em
17.4.2008, DJe de 16 maio 2008).
66 “EMENTA: Advogado: imunidade judiciária (CF, art. 133; C. Penal, art. 142, I; EAOAB, art. 7o, § 2o): não compreensão do crime
de calúnia. 1. O art. 133 da Constituição Federal, ao estabelecer que o advogado é ‘inviolável por seus atos e manifestações no
exercício da profissão’, possibilitou fosse contida a eficácia desta imunidade judiciária aos ‘termos da lei’. 2. Essa vinculação
expressa aos ‘termos da lei’ faz de todo ocioso, no caso, o reconhecimento pelo acórdão impugnado de que as expressões contra
terceiro sejam conexas ao tema em discussão na causa, se elas configuram, em tese, o delito de calúnia: é que o art. 142, I, do
C. Penal, ao dispor que ‘não constituem injúria ou difamação punível [...] a ofensa irrogada em juízo, na discussão da causa,
pela parte ou por seu procurador’, criara causa de ‘exclusão do crime’ apenas com relação aos delitos que menciona – injúria e
difamação –, mas não quanto à calúnia, que omitira: a imunidade do advogado, por fim, não foi estendida à calúnia nem com
a superveniência da L. 8.906/1994, – o Estatuto da Advocacia e da OAB –, cujo art. 7o, § 2o, só lhe estendeu o âmbito material
122
Garantias e Princípios Constitucionais, Materiais, Institucionais e Processuais │ UNIDADE III
cuja imunidade material não permite que a ofensa ultrapasse os limites naturais de seu trabalho
parlamentar67.
Assim, sendo, a honra, cuja proteção já existia antes da Constituição Federal, por meio da Lei de
Imprensa, conforme visto anteriormente, continua tendo a proteção dos tribunais, que cada vez
mais delimitam a forma de como ela deve ser tratada no meio jurídico.
Imagem
De todos os direitos de personalidade tratados pela Constituição, o direito à imagem foi aquele
que mais evoluiu, principalmente em face dos avanços tecnológicos, seja pelos novos meios de
comunicação, seja pelo exponencial crescimento da televisão.
A proteção a esse direito adentrou também no tratamento dos direitos autorais, haja vista que o
artista depende muitas vezes da sua imagem para manter-se ligado ao sucesso. Paralelo ao direito
de imagem, tem-se o chamado direito de arena, que é o direito de transmissão e retransmissão de
evento esportivo, não se confundindo com o direito de imagem69. A separação pela jurisprudência
determina, inclusive, que o titular de direitos de arena não pode utilizá-los para divulgação da
imagem de jogador, haja vista a diferença entre as situações70.
– além da injúria e da difamação, nele já compreendidos conforme o C. Penal –, ao desacato (tópico, contudo, em que teve a
sua vigência suspensa pelo tribunal na ADInMC no 1.127, 5.10.94, Brossard, RTJ 178/67)” (HC no 84.446, Rel. Min. Sepúlveda
Pertence, 1a Turma, j. em 23.11.2004, DJ de 25 fev. 2005, PP-00029, EMENT. VOL-02181-01, PP-00130, RTJ VOL-00192-03,
PP-00974, LEXSTF, v. 27, n. 316, 2005, p. 439-449, RMDPPP, v. 1, n. 4, 2005, p. 124-131).
67 “EMENTA: I. Imunidade parlamentar material: extensão. 1. Malgrado a inviolabilidade alcance hoje ‘quaisquer opiniões,
palavras e votos’ do congressista, ainda quando proferidas fora do exercício formal do mandato, não cobre as ofensas que,
pelo conteúdo e o contexto em que perpetradas, sejam de todo alheias à condição de deputado ou senador do agente (Inq.
no 1.710, Sanches; Inq. no 1.344, Pertence). 2. Não cobre, pois, a inviolabilidade parlamentar a alegada ofensa a propósito
de quizílias intrapartidárias endereçadas pelo presidente da agremiação – que não é necessariamente um congressista –
contra correligionário seu. II. Crime contra a honra: inexistência em entrevista que não ultrapassa as raias da crítica à atuação
partidária de alguém” (Inq. no 1.905, Rel. Min. Sepúlveda Pertence, Tribunal Pleno, j. em 29. 4.2004, DJ de 21 maio 2004, PP-
00033, EMENT. VOL-02152-01, PP-00011, RTJ VOL 00192-01, PP-00050).
68 FARIAS, de; ROSENVALD, op. cit., p. 140.
69 “INDENIZAÇÃO. DIREITO À IMAGEM. JOGADOR DE FUTEBOL. ÁLBUM DE FIGURINHAS. ATO ILÍCITO. DIREITO DE
ARENA. É inadmissível o recurso especial quando não ventilada na decisão recorrida a questão federal suscitada (Súmula
no 282-STF). A exploração indevida da imagem de jogadores de futebol em álbum de figurinhas, com intuito de lucro, sem
o consentimento dos atletas, constitui prática ilícita a ensejar a cabal reparação do dano. O direito de arena, que a lei atribui
às entidades desportivas, limita-se à fixação, transmissão e retransmissão de espetáculo esportivo, não alcançando o uso da
imagem havido por meio da edição de ‘álbum de figurinhas’. Precedentes da Quarta Turma. Recursos especiais não conhecidos”
(REsp no 67.292/RJ, Rel. Min. Barros Monteiro, 4a Turma, j. em 3.12.1998, DJ de 12 abr. 1999, p. 153).
70 “DIREITO À IMAGEM. DIREITO DE ARENA. JOGADOR DE FUTEBOL. ÁLBUM DE FIGURINHAS. O DIREITO DE ARENA
QUE A LEI ATRIBUI ÀS ENTIDADES ESPORTIVAS LIMITA-SE À FIXAÇÃO, TRANSMISSÃO E RETRANSMISSÃO DO
ESPETÁCULO DESPORTIVO PÚBLICO, MAS NÃO COMPREENDE O USO DA IMAGEM DOS JOGADORES FORA DA
SITUAÇÃO ESPECÍFICA DO ESPETÁCULO, COMO NA REPRODUÇÃO DE FOTOGRAFIAS PARA COMPOR ‘ÁLBUM DE
FIGURINHAS’. LEI No 5.989/1973, ARTIGO 100; LEI No 8.672/1993” (REsp no 46.420/SP, Rel. Min. Ruy Rosado de Aguiar, 4a
Turma, j. em 12.9.1994, DJ de 5 dez. 1994, p. 3.3565).
123
UNIDADE III │ Garantias e Princípios Constitucionais, Materiais, Institucionais e Processuais
O dano à imagem também protege a pessoa jurídica no que diz respeito aos seus atributos, sendo
passível indenização para reparação do dano71. Nesse caso, a imagem não tem caráter pessoal,
analisa-se a imagem que aquela empresa possui diante de seus sócios ou consumidores.
O direito ao uso da imagem pode, sem qualquer problema, ser autorizado pelo seu titular, seja de
forma expressa, seja de forma implícita. Esta última se dá, por exemplo, quando uma pessoa se deixa
fotografar ou filmar em evento, sabendo que a câmera é de uma rede de televisão pela logomarca
estampada ou pela identificação do fotógrafo de uma revista qualquer72. Todavia, tal imagem não
pode ser desvirtuada, quando, por exemplo, um artista posa para uma determinada revista e sua
imagem é utilizada para outro fins, como propaganda73.
Até mesmo fotos de pessoas comuns utilizadas sem autorização para fins comerciais ensejam direito
à indenização por dano moral74. Fotos de multidão, seja em passeata, eventos esportivos, festas,
desfiles, mesmo que permitam identificar o indivíduo, não ensejam indenização, salvo se o foco da
imagem está centralizado no indivíduo75.
O último aspecto relevante ao direito de imagem está no tratamento dado às pessoas públicas, mais
conhecidas como celebridades. Nesse ponto, o art. 20 do Código Civil, já mencionado, estabelece
alguns limites, aplicáveis tanto à honra, como ao direito à imagem. Seria um absurdo que uma
autoridade ou uma celebridade viesse a ter indenização por ter seu nome e sua imagem expostos
pela mídia, haja vista a condição pública da pessoa e a própria liberdade de imprensa. É óbvio que
tal situação deve ser vista sem abuso de direito, como, por exemplo, os papparazzi que invadem a
intimidade da celebridade, que, mesmo sendo uma pessoa pública, tem direito, em sua residência,
a manter um grau mínimo de privacidade.
A regra do art. 20 abre exceção ao direito de imagem no caso de interesse público e da administração
da justiça, como, por exemplo, a revelação da foto de um foragido da justiça, uma vez que há
interesse social na sua captura. Entretanto, caso haja divulgação equivocada da imagem ou a própria
investigação chegue à conclusão de que o indivíduo não foi o autor do fato, tem-se direito claro à
indenização, como foi o conhecido caso da Escola Base em São Paulo76.
71 “Direito empresarial. Dano moral. Divulgação ao mercado, por pessoa jurídica, de informações desabonadoras a respeito de
sua concorrente. Comprovados danos de imagem causados à empresa lesada. Dano moral configurado. Fixação em patamar
adequado pelo tribunal a quo. Manutenção. Para estabelecer a indenização por dano moral, deve o julgador atender a certos
critérios, tais como nível cultural do causador do dano; condição socioeconômica do ofensor e do ofendido; intensidade do dolo
ou grau da culpa do autor da ofensa; efeitos do dano, inclusive no que diz respeito às repercussões do fato. Na hipótese em que se
divulga ao mercado informação desabonadora a respeito de empresa-concorrente, gerando-se desconfiança geral da clientela,
agrava-se a culpa do causador do dano, que resta beneficiado pela lesão que ele próprio provocou. Isso justifica o aumento da
indenização fixada, de modo a incrementar o seu caráter pedagógico, prevenindo-se a repetição da conduta. O montante fixado
pelo tribunal a quo, em R$ 400.000,00, mostra-se adequado e não merece revisão” (REsp no 883.630/RS, Rel. Min. Nancy
Andrighi, 3a turma, j. em 16.12.2008, DJe de 18 fev. 2009).
72 FARIAS; ROSENVALD, op. cit., p. 143.
73 FARIAS; ROSENVALD, op. cit., p. 144.
74 “Dano moral: fotografia: publicação não consentida: indenização: cumulação com o dano material: possibilidade. Constituição
Federal, art. 5o, X. Para a reparação do dano moral não se exige a ocorrência de ofensa à reputação do indivíduo. O que acontece
é que, de regra, a publicação da fotografia de alguém, com intuito comercial ou não, causa desconforto, aborrecimento ou
constrangimento, não importando o tamanho desse desconforto, desse aborrecimento ou desse constrangimento. Desde que
ele exista, há o dano moral, que deve ser reparado, manda a Constituição, art. 5o, X” (RE no 215.984, Rel. Min. Carlos Velloso, j.
em 4.6.2002, DJ de 28 jun. 2002).
75 FARIAS; ROSENVALD, op. cit., p. 144.
76 Ver: <http://www.conjur.com.br/2002-set-03/stj_rever_indenizacao_escola_base>.
124
Garantias e Princípios Constitucionais, Materiais, Institucionais e Processuais │ UNIDADE III
O Direito Constitucional de livre reunião teve sua origem no art. 16 da Declaração da Pensilvânia,
de 1776. A Constituição brasileira de 1891 foi a primeira a versar sobre esse direito, ainda, à época,
mesclado com o direito de livre associação, só havendo a separação dos conceitos na Constituição
de 193477.
Ressalte-se que a liberdade de reunião pacífica não necessita de autorização, exigindo-se apenas
prévio aviso à autoridade competente, a fim de que se impeça eventual frustração de outra reunião
na mesma localidade.
A liberdade de associação não se estende às pessoas jurídicas, principalmente quando lei ordinária
determina a necessidade de filiação79. Tanto é assim que as confederações, formadas pelo conjunto
de associações, não possuem os mesmos direitos destas, sendo, por exemplo, parte ilegítima para
a propositura de ação direta de inconstitucionalidade, haja vista serem meros organismos de
77 “A primeira Constituição política do Brasil a dispor sobre a liberdade de associação foi, precisamente, a Constituição republicana
de 1891, e, desde então, essa prerrogativa essencial tem sido contemplada nos sucessivos documentos constitucionais
brasileiros, com a ressalva de que, somente a partir da Constituição de 1934, a liberdade de associação ganhou contornos
próprios, dissociando-se do direito fundamental de reunião, consoante se depreende do art. 113, § 12, daquela Carta Política.
Com efeito, a liberdade de associação não se confunde com o direito de reunião, possuindo, em relação a este, plena autonomia
jurídica [...]. Diria, até, que, sob a égide da vigente Carta Política, intensificou-se o grau de proteção jurídica em torno da liberdade
de associação, na medida em que, ao contrário do que dispunha a Carta anterior, nem mesmo durante a vigência do estado de
sítio se torna lícito suspender o exercício concreto dessa prerrogativa. [...] Revela-se importante assinalar, neste ponto, que a
liberdade de associação tem uma dimensão positiva, pois assegura a qualquer pessoa (física ou jurídica) o direito de associar-se e
de formar associações. Também possui uma dimensão negativa, pois garante, a qualquer pessoa, o direito de não se associar, nem
de ser compelida a filiar-se ou a desfiliar-se de determinada entidade. Essa importante prerrogativa constitucional também possui
função inibitória, projetando-se sobre o próprio Estado, na medida em que se veda, claramente, ao Poder Público, a possibilidade
de interferir na intimidade das associações e, até mesmo, de dissolvê-las, compulsoriamente, a não ser mediante regular processo
judicial” (ADI no 3.045, voto do Min. Celso de Mello, j. em 10.8.2005, Plenário, DJ de 1º jun. 2007).
78 “Art. 2o, IV, ‘a’, ‘b’ e ‘c’, da Lei no 10.779/2003. Filiação à colônia de pescadores para habilitação ao seguro-desemprego [...].
Viola os princípios constitucionais da liberdade de associação (art. 5o, XX) e da liberdade sindical (art. 8o, V), ambos em sua
dimensão negativa, a norma legal que condiciona, ainda que indiretamente, o recebimento do benefício do seguro-desemprego
à filiação do interessado à colônia de pescadores de sua região” (ADI no 3.464, Rel. Min. Menezes Direito, j. em 29.10.2008,
Plenário, DJe de 6 mar. 2009).
79 “Liberdade negativa de associação: sua existência, nos textos constitucionais anteriores, como corolário da liberdade positiva
de associação e seu alcance e inteligência, na Constituição, quando se cuide de entidade destinada a viabilizar a gestão coletiva
de arrecadação e distribuição de direitos autorais e conexos, cuja forma e organização se remeteram à lei. Direitos autorais e
conexos: sistema de gestão coletiva de arrecadação e distribuição por meio do ECAD (Lei no 9.610/1998, art. 99), sem ofensa do
art. 5o, XVII e XX, da Constituição, cuja aplicação, na esfera dos direitos autorais e conexos, hão de conciliar-se com o disposto
no art. 5o, XXVIII, ‘b’, da própria Lei Fundamental. Liberdade de associação: garantia constitucional de duvidosa extensão às
pessoas jurídicas” (ADI no 2.054, Rel. para o acórdão. Min. Sepúlveda Pertence, j. em 2.4.2003, Plenário, DJ de 17 out. 2003).
125
unidAdE iii │ gArAntiAS E PrinCíPioS ConStituCionAiS, MAtEriAiS, inStituCionAiS E ProCESSuAiS
coordenação de entidades sindicais, não podendo ser admitidas como hierarquicamente superiores
às associações80.
As associações, como instrumentos de interesses comum entre seus participantes, não podem
nem devem sofrer interferência estatal, sendo essa admitida apenas em casos extremos, quando a
finalidade das associações for ilícita81, situação que autoriza a sua suspensão ou até a sua dissolução
compulsória, nos moldes do inciso XIX do art. 5o da Constituição Federal.
80 “Confederações como a presente são meros organismos de coordenação de entidades sindicais ou não [...], que não integram
a hierarquia das entidades sindicais, e que têm sido admitidas em nosso sistema jurídico tão só pelo princípio da liberdade de
associação” (ADI no 444, Rel. Min. Moreira Alves, j. em 14.6.1991, Plenário, DJ de 25 out. 1991).
81 “Cabe enfatizar, neste ponto, que as normas inscritas no art. 5o incisos XVII a XXI da atual Constituição Federal, protegem as
associações, inclusive as sociedades, da atuação eventualmente arbitrária do legislador e do administrador, uma vez que somente
o Poder Judiciário, por meio de processo regular, poderá decretar a suspensão ou a dissolução compulsória das associações.
Mesmo a atuação judicial encontra uma limitação constitucional: apenas as associações que persigam fins ilícitos poderão
ser compulsoriamente disolvidas ou suspensas. Atos emanados do Executivo ou do legislativo que provoquem a compulsória
suspensão ou dissolução de asssociações, mesmo as que possuam fins ilícitos, serão inconstitucionais” (ADI no 3.045, voto do
Min. Celso de Mello, j. em 10.8.2005, plenário, DJ de 1o de jun. 2007).
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