DISSERTAÇÃO Daniella Sotero de Barros Pinangé PDF
DISSERTAÇÃO Daniella Sotero de Barros Pinangé PDF
DISSERTAÇÃO Daniella Sotero de Barros Pinangé PDF
Recife
2018
DANIELLA SOTERO DE BARROS PINANGÉ
Recife
2018
Catalogação na fonte
Bibliotecária Maria do Carmo de Paiva, CRB4-1291
BANCA EXAMINADORA:
________________________________________
Profª. Drª. Jaileila de Araújo Menezes (Orientadora)
Universidade Federal de Pernambuco
________________________________________
Profª. Drª. Karla Galvão Adrião (Examinadora interna)
Universidade Federal de Pernambuco
________________________________________
Profª. Dr.ª Ana Lúcia Francisco (Examinadora Externa)
Universidade Católica de Pernambuco
________________________________________
Andréa Graupen (Parecerista técnica)
Traços Estudos em Arteterapia
Dedico este trabalho à todas as mulheres - todas elas.
AGRADECIMENTOS
The goal of law 8080/90 from Ministry of Healthy is to provide psiquiatric assistence
to people, aiming their integrity and singularity. It combines drug treatment with collective
participation, enabling the users to perceive themselves as subjects active and of rights. From
this combination, the art therapeutic work, substantiated by Philippini (2013), allows that
unknown contents can arrive at the conscience, influencing the structuring of the personality
and subjectivity. The main objective of this work was to understand the possible contributions
of Art Therapy, according with Jungian approach, for the expression and elaboration of
psychic suffering of women housed in the group "Among Women: Stories and tetitions of
bodies and pulsing desires”. Specifically, identify and analyze the feelings built by women to
their experiences of suffering; investigate the senses built for those women in their
experiences of silencing and analyze the subjective displacements about their experiences of
silencing and suffering. The epistemic-methodological plan, supported by Paulon (2005), was
based on a research-intervention; and the insertion in the field, from the perspective of
Minayo (2011), occurred from participant observation. The corpus analyzed consisted of the
plastic productions and the researche’s field notes, being organized based on thematic analysis
from three axes. The subject worked on the art therapeutic group crossed the question of the
condition of being a woman from the care of the body/house - in front of the process of
integration of the shadow, following Jung´s idea (2008). Finally, it was understood that the
anatomical process performed with women made possible the expression; the awareness of
subjective contente, causers of suffering, its elaboration and transformation, surpassing the
hegemonic path of speech.
1 INTRODUÇÃO .............................................................................................. 12
2 FUNDAMENTAÇÃO TEÓRICA ................................................................ 17
2.1 LOUCURA, SAÚDE MENTAL E O PROCESSO DE
DESINSTITUCIONALIZAÇÃO ..................................................................... 17
2.2 ARTE ENQUANTO FERRAMENTA TERAPÊUTICA: DO ENFORMAR
E INFORMAR AO TRANSFORMAR ............................................................. 21
2.3 ARTETERAPIA, FEMINISMOS E DECOLONIALIDADE: TECENDO
FIOS DE ENFRENTAMENTO À VIOLÊNCIA EPISTÊMICA .................... 28
3 OBJETIVOS ................................................................................................... 35
3.1 OBJETIVO GERAL......................................................................................... 35
3.2 OBJETIVOS ESPECÍFICOS............................................................................ 35
4 METODOLÓGIA ……………………………………….............................. 36
4.1 TERRENO METODOLÓGICO……………………………........................... 36
4.2 PASSOS METODOLÓGICOS......................................................................... 38
4.3 CAMINHO DE ANÁLISE .............................................................................. 41
4.4 ASPECTOS ÉTICOS........................................................................................ 44
4.4.1 Riscos e benefícios .......................................................................................... 44
4.5 CONTEXTUALIZANDO O CAMPO ............................................................. 45
4.5.1 Encontros arteterapêuticos ............................................................................ 49
4.5.1.1 Primeiro encontro.............................................................................................. 50
4.5.1.2 Segundo encontro.............................................................................................. 51
4.5.1.3 Terceiro encontro.............................................................................................. 52
4.5.1.4 Quarto encontro................................................................................................. 53
4.5.1.5 Quinto encontro................................................................................................. 53
4.5.1.6 Sexto encontro................................................................................................... 55
4.5.1.7 Sétimo encontro................................................................................................. 56
4.5.1.8 Oitavo encontro................................................................................................. 57
5 ADENTRANDO O TERRENO DE ANÁLISE............................................ 60
5.1 SENTIDOS CONSTRUÍDOS POR MULHERES ACOLHIDAS NO
GRUPO “ENTRE MULHERES” ÀS SUAS EXPERIÊNCIAS DE
SOFRIMENTO............................................................................................... 61
5.2 SENTIDOS CONSTRUÍDOS POR MULHERES ACOLHIDAS NO
GRUPO “ENTRE MULHERES” ÀS SUAS EXPERIÊNCIAS DE
SILENCIAMENTO........................................................................................ 68
5.3 DESLOCAMENTOS SUBJETIVOS PRODUZIDOS ACERCA DAS
EXPERIÊNCIAS DE SILENCIAMENTO E SOFRIMENTO DAS
MULHERES ACOLHIDAS NO GRUPO “ENTRE MULHERES”, A
PARTIR DO PROCESSO ARTETERAPÊUTICO........................................ 73
6 CONSIDERAÇÕES FINAIS........................................................................ 87
REFERÊNCIAS............................................................................................. 91
APÊNDICE A – TERMO DE CONSENTIMENTO LIVRE E
ESCLARECIDO.............................................................................................. 96
APÊNDICE B – ROTEIRO PARA A OBSERVAÇÃO.............................. 98
APÊNDICE C – TERMO DE AUTORIZAÇÃO DE USO DE IMAGEM
E DEPOIMENTO........................................................................................... 99
ANEXO A – CONVITE DO GRUPO ARTETERAPÊUTICO “ENTRE
MULHERES”.................................................................................................. 100
ANEXO B – QUADRO DE IDENTIFICAÇÃO/APRESENTAÇÃO
DAS PARTICIPANTES DO GRUPO........................................................... 101
ANEXO C – DESENHOS CRIADOS PELA ARTISTA E
TATUADORA NATHALIA QUEIROZ ESPECIALMENTE PARA AS
MULHERES DO GRUPO “ENTRE MULHERES” TATUAREM........... 102
12
1 INTRODUÇÃO
Começo o presente estudo a partir de mim mesma. O que quero dizer com isso? Quero
dizer que antes de trazer as referências bibliográficas e chegar em minha pergunta de
pesquisa, penso ser necessário e coerente me apresentar, situando meu lugar de fala. Eu sou
mulher, jovem, branca, classe média, natural do Recife, psicóloga, arteterapeuta, adoro dançar
e misturar doce com salgado. Quando concluí a graduação em Psicologia, fazer mestrado não
estava nos planos, visto que eu me incomodava com certas questões: sentia que queria um
pouco mais de liberdade e sentia a academia como sendo o lugar “só” de pensar, onde a
palavra (perfeitamente bem articulada, diga-se de passagem) é a forma preconizada. Assim,
quando percebi tais inquietações, passei a buscar outras formas de poder expressar, ser e estar
no mundo. Nessa busca acabei encontrando a Arteterapia em meu trajeto, a qual me abriu
possibilidades diversas.
Em minha experiência profissional pude provocar e ser provocada a partir do contato
com usuários(as) de serviços que lançavam mão da Arteterapia, utilizando a arte enquanto
recurso expressivo – através da qual conteúdos subjetivos ultrapassavam o caminho exclusivo
da palavra e eram expressos, significados e ressignificados a partir das diversas
possibilidades. Muitas pessoas traziam o desejo de expressar algo que estavam sentindo, mas
que, por vezes não o sabiam fazer através das palavras. Chegando no mestrado, fui me
aproximando da discussão feminista, sobretudo a partir da perspectiva decolonial1 - que vem
questionar o que está posto e propor, apontar um caminho de desconstrução do saber
colonizado.
Durante toda a produção desse estudo e tempo do mestrado, me questionei muito sobre
o por que continuar, já que era algo que me fazia entrar em contato com vários fantasmas e
medos - foi um processo extremamente doloroso. Então por que eu escolhi fazer mestrado?
Por que, mesmo com tanto sofrimento, escolhi ir até o fim, mesmo tendo entendido que eu
tinha medo da escrita? Porque eu precisava resistir e ocupar esse espaço. Aproximar o
estranhamento da produção acadêmica com a familiaridade do terreno da arte me fez sentido:
a busca pelo encontro da arte com a academia.
A escolha de iniciar este texto por mim encontra terreno na epistemologia feminista e,
1 Não é um consenso no campo o uso dos termos “decolonial” ou “descolonial”. Utilizo o termo “decolonial” por
compreender que se trata de uma luta constante contra a colonialidade do poder e do saber; e, assim, não
pressupor a ‘descolonização’, que seria a superação do colonialismo. No entanto, algumas autoras que utilizo
usam o termo “descolonial” (LUGONES, 2014; COSTA 2014) e assim o utilizarei quando discorrer sobre as
mesmas.
13
corroborando com essa questão, Scott (1999) fala da não neutralidade do(a) pesquisador(a),
isto é, que a própria historicização da minha experiência enquanto pesquisadora se faz
importante. Da mesma maneira, a categoria que escolho analisar não está isenta dessa
historicidade. Em entrevista, Michelle Fine situa reflexividade como a atitude de refletir sobre
“quem sou eu” e “por que estou fazendo estas ou aquelas perguntas”, ou seja, pensar
profundamente quem sou eu na pesquisa (ADRIÃO, 2015). É válido situar que durante o
texto houve flexão dos pronomes pessoais: ora falo em primeira pessoa do singular (quando
parto de minha experiência e posicionamento), ora no plural (entendendo que minha
orientadora fala comigo), ora em terceira pessoa (ao narrar aspectos teóricos e descritivos).
É importante destacar que o terreno da Psicologia Social vem abrindo espaço para os
paradoxos e singularidades, não se atendo apenas às abstrações gerais da Ciência. É possível
perceber isso, por exemplo, na maneira como a revista Psicologia & Sociedade, que reúne
produções acadêmicas da Associação Brasileira de Psicologia Social (ABRAPSO), abrange
vozes minoritárias, trazendo uma proposta diferente de tudo o que vinha sendo hegemônico
na psicologia tradicional. De acordo com um estudo realizado acerca de trabalhos publicados
na referida revista, nos últimos trinta anos, a academia vem produzindo cada vez mais estudos
envolvendo Arte e Campo Social. Isto ocorre devido à mudança de perspectiva no que
concerne a ideia de produção de conhecimento e modo de conceber a ciência: abrindo espaço
para uma nova Psicologia. Amplia-se o entendimento acerca do pensamento - sendo ele
pertencente não apenas à esfera da filosofia, mas de distintos tipos de saber, inclusive da arte.
(COSTA, ZANELLA, FONSECA, 2016).
O marcador de gênero se fez presente em minha inquietação na medida em que pude
observar (e sentir, enquanto mulher), sofrimento diante deste lugar de silenciamento em que
as/nós mulheres foram/fomos, historicamente, postas. Zanello, Fiuza e Costa (2015)
corroboram nesse quesito, em um estudo onde se buscou identificar os principais pontos
trazidos por mulheres enquanto geradores de sofrimento psíquico. Tais questões estavam,
sobretudo, relacionadas à maternagem, ao âmbito doméstico e ao lugar de silenciamento em
que as mulheres se viam, segundo as participantes deste estudo. O tema “silêncio” apareceu
em 100% das entrevistas desta pesquisa, com sentidos distintos, sendo o principal (em 85,7%
das respostas) a condição da existência enquanto mulher e o consequente caminho de
sofrimento/adoecimento.
Em meu percurso na clínica em psicologia pude observar como o desejo de expressão
por parte de mulheres e a falta de espaços para tal pode causar dor e sofrimento. Pude
perceber, ainda, como muitas acabam, por vezes, lançando mão da arte enquanto caminho de
14
resistência e criação de espaços de fala. Trago aqui um breve recorte de um caso que penso
ilustrar o que acabo de dizer e que corrobora com a inquietação que me trouxe a esse estudo.
Uma mulher branca, de classe média, que trabalha com cinema: ela ao longo do seu processo
psicoterapêutico trouxe, por vezes, a dor que sentia diante da dificuldade de encontrar espaços
de fala e de como foi se utilizando do cinema enquanto veículo para tal. Trouxe, em algumas
ocasiões, o cansaço diante de ainda assim sentir ser difícil adentrar nesse terreno, tendo
algumas dificuldades em ter seus trabalhos aceitos em editais e festivais de cinema. Ao
mesmo tempo em que relatava dor, sofrimento, cansaço (e de algumas vezes questionar a
possibilidade de desistir), ela trazia também o desejo de resistir e ocupar os lugares que queria
- e se expressar - criando, para além de “filmes-denúncia”2, meios de os expor, mesmo
quando não aceitos em tais festivais e editais. Sua inquietação perante a falta de espaços para
que as mulheres se expressassem foi mola propulsora para criar condições de fala às demais
(sobretudo as que se encontram em condições de menos ou nenhum privilégio, como as
negras, pobres e encarceradas, por exemplo), convidando-as para falar com ela - seja em
debates sobre os filmes, seja para protagonizá-los em cena e/ou na criação de roteiro.
Assim, entendendo que esse desejo de expressão não passa apenas pelo caminho da
palavra e voltando para a questão da Arteterapia enquanto um espaço propício para tal,
Maciel e Carneiro (2012) contribuem com a presente pesquisa quando defendem que a
psicoterapia “clássica” vem se deparando com alguns limites, especialmente no que tange ao
trabalho com crianças, pessoas portadoras de deficiências mentais ou, ainda, pessoas que
tenham dificuldade (ou até são impossibilitadas fisicamente, como no caso de mudez) de se
expressar verbalmente. Assim, elas apontam para a importância de se criar novas
possibilidades de comunicação - que não dependam exclusivamente do discurso, da fala -
como uma forma de facilitar o acesso ao universo simbólico e imaginário.
As culturas nortecêntricas e sua linguagem marcada pelo discurso (sobretudo)
masculino é denunciada por Anzaldúa (2009), quando a mesma aponta para a primazia do
discurso enquanto linguagem expressa em palavras, bem como para a questão da desigualdade
de gênero. Historicamente a mulher teve dificuldades e poucos espaços de fala. Segundo
Michelle Perrot (2005), a mulher não gozava de lugar nos espaços públicos. Os espaços destas
se restringiam à esfera privada e seus registros de fala e escrita estavam circunscritos ao lar.
Suas (nossas) falas eram passadas de geração em geração e seus (nossos) registros escritos
2 Me refiro aos seus roteiros como “filmes-denúncia”, pois ela tinha como forte motivação em seus trabalhos, a
busca por denunciar silenciamentos, opressão e condições de invisibilidades de pessoas marginalizadas
socialmente.
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2 FUNDAMENTAÇÃO TEÓRICA
Este capítulo versará sobre as questões teóricas que baseiam e dão suporte a esta
pesquisa. Primeiramente, discorrerei sobre o processo de desinstitucionalização da saúde
mental, como contraponto à lógica biomédica e hospitalocêntrica, que manteve o foco na
doença mental e não na integralidade dos sujeitos. O processo de desinstitucionalização
oferece possibilidades para uso de práticas de cuidado que não somente as tradicionais, como
a Arteterapia, sobre a qual discorrerei no tópico posterior. Nesse sentido, viso contextualizar e
apresentar a Arteterapia como ferramenta terapêutica, assim como seus possíveis efeitos de
transformação de sentidos e sujeitos. Por fim, busco relacionar a Arteterapia com os
feminismos e a perspectiva decolonial, diálogo este que tem como objetivo o enfrentamento
da violência epistêmica no processo de construção de conhecimento.
possibilitado pela apropriação do hospital, era um saber sobre uma doença institucionalizada.
Ou seja, a mesma era analisada de forma isolada, em estado puro (como nas ciências
naturais), sendo assim uma doença manipulada, produzida e transformada pela própria
intervenção médica.
Essa institucionalização da doença é protagonizada pelo médico Phillippe Pinel3, que
ficou conhecido como o pai da psiquiatria, sucessora do Alienismo, ciência pioneira a tratar
da questão dos transtornos mentais.
Pinel consolidou o conceito de alienação mental e a profissão do alienista, que
entendia a loucura como um distúrbio das paixões, o qual desequilibra a harmonia da mente e
impossibilita o indivíduo de perceber a realidade de forma objetiva. No sentido comum do
termo, “alienação” é estar fora da realidade, fora de si, fora do mundo, é estar sem
autocontrole. Desta forma, o alienado era visto como alguém que representava periculosidade
para a sociedade (AMARANTE, 2007). Pinel compreende que a alienação é responsável pela
destituição da liberdade e que sua causa estava no convívio com o meio social. Assim, em sua
concepção, para que o alienado pudesse ter de volta sua liberdade, ele precisava se submeter a
um tratamento - moral - e, embora ele tenha tirado as correntes dos internos, os mesmos
deveriam permanecer asilados, em completo isolamento desta sociedade (AMARANTE,
2007).
Amarante (2007) afirma que no período pós Segunda Guerra Mundial surgem os
questionamentos acerca da solidariedade e crueldade humana. A atenção se volta para a
qualidade do acolhimento das pessoas internadas nos hospitais psiquiátricos. Somado a este
fator, os hospitais se encontravam cada vez mais lotados e a qualidade dos atendimentos cada
vez piores - o que corroborou para o enfraquecimento da credibilidade nestas instituições.
Trata-se do primeiro movimento em direção às reformas psiquiátricas.
Cada vez mais o fortalecimento da luta pela cidadania foi direcionando o olhar e a
atenção para o doente mental (alienado) que era desprovido de direitos (jurídicos, políticos e
civis), o que o tornava um ‘não-cidadão’. Entretanto, os movimentos que defendiam a
desinstitucionalização que surgiram nesse período de reforma, não foram homogêneos.
Amarante (1996) descreve três momentos desse processo que serão destacados a seguir: a
desinstitucionalização como desospitalização, como desassistência e como desconstrução.
A noção de desinstitucionalização surge nos Estados Unidos da América (EUA)
através do Plano de Saúde Mental do Governo Kennedy. Nesse primeiro momento, a
3
Participante ativo do movimento da Revolução Francesa - marcada por transformações econômicas, sociais e
políticas - que influenciou a medicina e o campo da saúde.
19
tipo de serviço, a relação deixa de ser médico-doença e se passa a voltar a atenção para uma
rede de relações entre sujeitos (AMARANTE, 2007).
Com a criação dos Centros de Atenção Psicossocial (CAPS), o Ministério da Saúde,
através da Lei nº 8080/90 (BRASIL, 1990), define uma nova política de atenção à saúde, com
o objetivo de prestar assistência psiquiátrica de forma mais ampla, visando a integralidade e
singularidade dos usuários - rompendo com o modelo hospitalocêntrico e o foco na doença.
Ou seja, o cuidado oferecido nos CAPS alia o tratamento medicamentoso com a troca e
construção coletiva, que possibilita o usuário se perceber enquanto sujeito em sua
complexidade (PEREIRA, FIRMINO, 2010).
Nesse ínterim, é importante destacar que recentemente o Ministério da Saude
desenvolveu a Política Nacional de Práticas Integrativas e Complementares (PNIPIC) como
mais um processo de implementação do Sistema Único de Saúde (SUS). A PNIPIC corrobora
com o princípio de integralidade e tem o objetivo de integrar ações e serviços do SUS, bem
como ampliar, no espaço público, possibilidades de acesso aos serviços que até então vem se
restringindo ao âmbito privado (BRASIL, 2006). A respeito do uso de recursos artísticos,
estes passam a ser utilizados nos Serviços de Saúde Mental, ancorados nas diretrizes
propostas pela lei nº 10.216/2001, que trata dos direitos de pessoas acometidas por sofrimento
mental e os tipos de assistência a elas prestadas (BRASIL, 2001). Pereira e Firmino (2010)
sinalizam a potência das oficinas e da utilização de arte como terapia, situando-os enquanto
dispositivos que podem vir a somar ao acompanhamento medicamentoso e possibilitar ruptura
com práticas de cuidados tradicionais, na medida em que tais oficinas buscam promover e
acolher o sujeito em sua integralidade, considerando aspectos psíquicos e sociais.
É importante, aqui, destacar o que estas mesmas autoras trazem a respeito do que estão
chamando de arte como terapia: trata-se da arte enquanto recurso que possibilita ao sujeito
estabelecer reflexão e construção de sentidos. Lopes (2012) realiza um trabalho relevante a
respeito do papel da arte no cuidado e atenção a pessoas em sofrimento psíquico. Em seu
estudo, o qual teve mulheres como sujeitas, a autora lança mão de recursos da arte enquanto
ferramenta terapêutica (Arteterapia), com o objetivo de intervir na depressão, tendo resultados
positivos nesse sentido. O Código de Ética do(a) profissional Psicologia afirma que a prática
desta área de conhecimento não pode ser vista como imutável, necessitando estar sempre em
reflexão, aprimoramento e diálogo com diversas áreas de conhecimento, a fim de olhar o
sujeito em sua integralidade. Assim, a aproximação e diálogo entre a Arteterapia e a
Psicologia aponta para um terreno fecundo (CONSELHO FEDERAL DE PSICOLOGIA,
2005).
21
O século XX, período que compreende a Arte Moderna, foi marcado por fortes
transformações sociais e políticas refletidas e problematizadas através da arte. Nesse período,
a arte começa a ter influência de Sigmund Freud e seus estudos sobre inconsciente, passando
a dar lugar aos impulsos inconscientes e irracionais das pessoas - o que demarca um processo
importante no desenvolvimento da criatividade, rompendo com amarras e rigidez que
aprisionava a possibilidade de uma criação livre. A arte estava liberta de um produto, isto é, o
produto final vai deixando de ser o foco principal e o processo, a ideia e o ato de produzir, foi
ganhando protagonismo.
Desde as últimas décadas do século XX, a arte do período atual, Pós-Moderno,
continua refletindo e representando o contexto social, político, econômico, cultural e
ideológico. Esse movimento de constantes rupturas e representações do contexto vivido é
contínuo e não tem fim. A arte, assim como o sujeito, é contingente.
No que se refere às funções que a arte desempenhou e desempenha historicamente,
Bottom e Armstrong (2014) afirmam ser as seguintes: a) Rememoração - como forma de
preservar experiências vividas (como por exemplo as pinturas na cavernas na Pré-História); b)
Esperança - como uma maneira de lidar com as frustrações da realidade; c) A função de
ensinar o ser humano a lidar com o sofrimento; d) Reequilíbrio - que dialoga com as
necessidades e contingências de cada um e o que justifica as diferentes obras em diferentes
contextos e épocas; e) Crescimento - ao possibilitar que o ser humano se depare com
elementos novos, com os quais dificilmente teriam contato na vida cotidiana; f) Apreciação -
como um convite para o estranhamento, ressignificação e olhar atento para o mundo; e g)
Compreensão de si - uma função que possibilita o desenvolvimento do autoconhecimento,
sendo uma maneira de transmitir conteúdos para as outras pessoas, quando partilhá-los através
do discurso, por vezes, pode parecer difícil - função que dialoga diretamente com o fazer da
Arteterapia.
Desde o século XVI a arte é utilizada com os acometidos por sofrimento psíquico.
Salienta-se, a título de exemplo, dois grandes artistas que passaram por internação nos
hospitais psiquiátricos e que, através da arte, superaram o isolamento, violência e
encarceramento experienciados: o pintor Van Gogh (1853 - 1890) e o teatrólogo Antonin
Artaud (1896 - 1948). O alemão Hans Prinzhorn (1886 -1933) reuniu obras de hospitais
psiquiátricos e sanatórios da Alemanha, Áustria, Suíça, Itália, Holanda, Estados Unidos e
Japão (AMARANTE, CAMPOS, 2012). Ademais, outra experiência importante nesse
sentido, foi o trabalho desenvolvido, bem como o próprio processo pessoal em que Jung se
23
debruçou – o Livro Vermelho, por exemplo, reúne várias das ideias do mesmo que apontam
para esse diálogo com a arte (JUNG, 2016).
Nesse contexto, estes mesmos autores situam a arte como um recurso que vem sendo
utilizado para desmistificar esta relação que a sociedade estabeleceu com a loucura há muito
tempo através da psiquiatria. Ressaltam o crescimento das atividades envolvendo arte e
cultura com pessoas em experiência de sofrimento psíquico.
No Brasil, destaca-se a experiência de Nise da Silveira no Rio de Janeiro, que
incomodada com os métodos utilizados e a ênfase dada à medicalização no cuidado aos
pacientes psiquiátricos, abre espaço para o trabalho com arte. Em 1956, esta fundou a Casa
das Palmeiras – primeiro hospital-dia do país – onde atividades com arte já eram utilizadas
com as pessoas em sofrimento psíquico. Assim, as atividades nas quais os pacientes
trabalhavam livremente com desenho, pintura e modelagem eram as que mais revelavam, por
vários indícios, fenômenos enigmáticos do inconsciente (SILVEIRA, 1981). A partir da
experiência de Nise da Silveira, Amarante e Campos (2012) trazem que, ao se trabalhar com
produção plástica, o indivíduo não expressa somente a si mesmo, mas também cria algo novo.
Esta produção tem efeitos tanto na realidade psíquica, quanto na realidade compartilhada. É
nesse sentido que podemos situar a relação dialética da arte com a sociedade, em diferentes
contextos históricos.
Pain (2009) afirma que a arte só pôde ser utilizada com fins terapêuticos na medida em
que houve mudanças significativas na clínica psicoterapêutica e na visão da sociedade para
com a doença mental. É nesse contexto de transformações da sociedade e da arte e sua
consequente libertação e rompimento com a rigidez e regras impostas ao processo criativo,
que foi possível o desenvolvimento da criatividade e uma maior autonomia expressiva,
terreno fértil para a chegada da Arteterapia4.
A Arteterapia dialoga com qualquer escola artística. Destaco aqui o estilo da arte
contemporânea, visto que é a partir desse estilo que se pode abandonar a perspectiva de que a
arte precisa atender a uma expectativa de criação de um produto e que o fazer artístico deve,
impreterivelmente, ser precedido de uma ideia e planejamento. A partir desse estilo, o
processo - o “fazer arte” - ganha protagonismo e é onde reside o caráter terapêutico da arte e
onde a mesma é entendida na Arteterapia (PAIN, 2009).
4
Abordarei o tema ao longo do texto enquanto “Arteterapia”, visto que estou falando a partir da abordagem
junguiana. Entretanto, é importante atentar de que esse campo de conhecimento, não se esgotando nessa
abordagem, aponta para diferentes perspectivas – podemos, assim, falar em “Arteterapias”.
24
Quando alguma coisa escapa da nossa consciência, essa coisa não deixou de
existir, do mesmo modo que um automóvel que desaparece na esquina não
se desfez no ar. Apenas o perdemos de vista. Assim como podemos, mais
tarde, ver novamente o carro, também reencontramos pensamentos
temporariamente perdidos (p.35).
Desta forma, parte do conteúdo inconsciente diz respeito a uma profusão de imagens,
pensamentos e impressões provisoriamente ocultos, que, mesmo fora do alcance imediato,
continua a exercer influências em nossas mentes conscientes.
No que diz respeito à estrutura pessoal do inconsciente, Jung vai falar do aspecto da
sombra - conceito muito importante para este estudo. Esta não é a totalidade do inconsciente,
mas uma parte desconhecida ou pouco conhecida do ego - podendo também ser consciente
(von FRANZ, 2008). A sombra, em geral, tem conteúdos caros e necessários à consciência,
mas que existem de tal forma que é de difícil integração na vida consciente. Ou seja, é difícil
entrar em contato com a própria sombra. Entretanto, von Franz (2008, p. 229) diz que
“depende muito de nós mesmos a nossa sombra tornar-se nossa amiga ou inimiga”. E ainda
completa que a mesma só se torna hostil ao passo que é ignorada ou incompreendida.
5 Não foi feita uma explanação da Teoria Junguiana como um todo, mas destaques sucintos acerca de conceitos
que entendemos como importantes para a discussão aqui proposta.
26
Assim, a função da sombra seria representar o outro lado do ego, bem como traços que
mais detestamos nos outros. Poderíamos nos perguntar então porque não simplesmente e
facilmente encarar e assumir nossas sombras, integrando-a à nossa personalidade consciente
fazendo essa escolha honesta e racional. Entretanto, integrar a sombra não é algo tão simples:
há um impulso demasiadamente forte na nossa sombra que o racional não consegue vencer.
Então por que buscamos integrar a sombra? Porque, ao contrário do que se pensa, ela também
contém forças vitais e positivas (como talentos, por exemplo) que devemos assimilar e não
reprimir. É preciso que o ego aceite se deparar com aspectos negativos para que se possa,
inclusive, porventura, encontrar aspectos positivos desconhecidos. Assim, “é preciso coragem
para levar o inconsciente à sério e enfrentar os problemas que ele desperta” (von FRANZ,
2008).
Aqui chegamos a outro conceito importante: o processo de individuação, que leva em
conta os componentes coletivos da psique humana (inconsciente coletivo), tendo seu caminho
o tornar-se si mesmo, ser único. Dentre os passos existentes nesse processo, destaco aqui dois:
o primeiro seria o desnudamento da persona6 e o segundo seria o confronto com a sombra
(JUNG, 2011).
Um outro conceito importante neste estudo é o de símbolo: um termo, um nome ou
mesmo uma imagem que, mesmo sendo familiar na vida cotidiana, pode conter conotações
especiais - para além do significado convencional e evidente. O símbolo é algo que vai além
de seu significado manifesto e imediato e, sendo assim, implica algo vago, desconhecido ou
oculto para nós. Este conteúdo simbólico possui um aspecto “inconsciente” que não é
inteiramente explicado ou precisamente definido (JUNG, 2008).
Tendo dado essa breve situada em alguns conceitos da abordagem junguiana, voltemos
para o debate da Arteterapia. Philippini (2011) afirma que, de modo geral, o grupo
arteterapêutico acontece em um determinado território (setting arteterapêutico), em dia e
horário regularmente acertado, com duração previamente definida e onde se realizam
atividades com certos objetivos. Nas abordagens breves (foco do presente estudo), o grupo
costuma durar cerca de seis a oito meses, com frequência semanal, sendo cada sessão com
duração de pelo menos 1h30 (uma hora e trinta minutos). Esse ritual e frequência tem sua
importância harmonizadora, pois implica ritmos e metabolismos saudáveis, individuais e
coletivos.
6
O modo pelo qual o indivíduo se apresenta ao mundo, uma forma de lidar com o exterior com o objetivo de
adaptar-se a ele. Apesar de ter também uma função protetora, a persona age também como uma máscara, que
esconde aspectos da psique (JUNG, 2011).
27
7 Adiante falarei mais sobre o que estou entendendo como rompimento e ampliação do que está posto.
8
Termo discutido pela Linguística Aplicada, que implica no questionamento da noção de transdisciplinaridade -
propondo o exercício da desconstrução (SCHMITZ, 2008). Este termo nos provoca a pensar a
transdisciplinaridade enquanto, ainda, engendrada na perspectiva de uma disciplinaridade hegemônica.
28
O autor Nikolas Rose (2011) nos provoca através de uma pergunta extremamente
importante, a qual deveríamos fazer em relação às demais esferas do conhecimento: “Como se
faz a história da Psicologia?” (p.65). Para responder a tal pergunta, ao longo de todo o texto, o
autor propõe pensarmos em uma história crítica. Por história crítica, afirma ser aquela que nos
possibilita refletir acerca das condições sob as quais se estabelece aquilo que tomamos como
verdade e pensar sobre que verdade estamos falando.
A história crítica, segundo Rose (2011), permite que pensemos para além do presente
e nos convida a explorar horizontes e possibilidades. Assim, a partir desse convite, podemos
questionar as maneiras pelas quais as histórias nos são contadas. A partir de quais pontos de
vista essas histórias vêm sendo contadas? O autor traz o que o epistemólogo Canguilhem
(1904 - 1995) vai chamar de “histórias recorrentes” para se referir a tais maneiras pelas quais
as disciplinas científicas lançam mão para retratar a história e os fatos. Tais histórias
recorrentes, diante do privilégio ancorado no status de “cientificidade”, acabariam por
ratificar o presente ao passo que “separa o joio do trigo”, ou seja, omitem fatos que se
contrapõem ao que se pretende afirmar.
Desta forma, podemos entender que a história é contada a partir de uma perspectiva
(versão ocidentalizada), enquanto textos, fatos, versões e autores/as são negligenciados/as,
desconhecidos/as. Assim, podemos lançar mão do termo “história sancionada” - quando
utiliza-se do passado para sedimentar regimes de verdade que sejam contemporâneos tendo,
ao mesmo tempo, a função de policiar o presente e modelar o futuro através dos critérios de
inclusão e exclusão (ROSE, 2011).
Em meados dos anos 70, feministas criticaram e questionaram a Ciência e seu
enviesamento androcêntrico (NOGUEIRA, 2001). De antemão, é importante situar que no
presente texto se falará em “feminismos” - no plural - diante da compreensão crítica de que
não há uma visão única do que é ser mulher, mas sim, que há eixos que, interrelacionados,
ajudam a construir o que podemos entender a respeito de gênero (NOGUEIRA, 2017).
29
adiante: o detalhe de como a mulher aqui foi descrita, ou seja, de que ainda que se aborde a
opressão das mulheres diante do sistema capitalista (feminismo marxista), isso se faz a partir
apenas do recorte de gênero. Dito isto, é possível notar que se fala de uma parcela específica
de mulheres - as que gozavam, ainda de algum(ns) privilégio(s) - diferentemente das que se
encontravam em outras condições, as quais o feminismo negro vem a problematizar
(NOGUEIRA, 2017).
O processo de subjetificação opressiva a que os/as colonizados/as foram sujeitados/as
está sendo constantemente renovado. Entretanto, é possível perceber sempre a mesma lógica
dicotômica de gênero (humano e não humano, inclusive) operando na construção da
normativa social.
O que não se encaixava nesse modelo normativo da visão do colonizador, era tido
como esse “outro” não humano. Desta forma:
passam a representar id-entidades que, então, começam a ter conotação racial (primeiro modo
básico de classificação) situando hierarquias, papéis e lugares sociais.
Lugones (2014) lança mão do termo “colonialidade” trazido por Aníbal Quijano, com
a intenção de chamar atenção para esse processo de redução ativa das pessoas e
desumanização das mesmas ao classificá-las em uma sujeitificação - mas traz o foco para o
debate de gênero. Afirma que diferentemente da colonização, a colonialidade de gênero
permanece presente na intersecção entre gênero/raça/classe, como base para o sistema de
poder capitalista e situa a resistência à essa colonialidade de gênero a partir da diferença
colonial. A análise dessa opressão racializada e capitalista é definida por esta mesma autora
de “colonialidade de gênero” e propõe que o “feminismo descolonial” é possibilidade de
superar tal colonialidade.
Desta forma, defende que é preciso descolonizar o gênero:
Costa (2013) afirma ser importante refletir sobre o lugar de enunciação das/os que
produzem conhecimento no que concerne o poder hegemônico e normas ocidentalizadas, bem
como os meios utilizados para traduzi-los. A título de exemplo, historicamente, feministas e
teorias feministas foram sendo traduzidas de forma a reduzi-las a movimento de resistência,
negligenciando suas potencialidades enquanto produtoras de conhecimento outros. Assim, se
faz necessário trazer o debate feminista para o terreno pós-colonial e, assim, descolonizá-lo.
A perspectiva pós-colonial, ainda que tenha algumas afinidades, se diferencia dos
estudos decoloniais visto que este afirma que mesmo no chamado “pós” ainda há
colonialidade de poder, através das categorias de gênero, raça e classe. Costa (2014, p. 930)
diz, ainda:
criatividade”, escolhe oito9, dentre tantas mulheres que marcaram a(s) histórias(s) - recorrente
e sancionada - para demonstrar como cada uma, em suas singularidades e pluralidades,
lidaram com dor e sofrimento a partir da criatividade (e Arte).
A convergência com essa proposta de conhecer umas às outras a partir dos seus
lugares de enunciação, se dá pela forma como esta autora constrói sua linha narrativa. Ela, ao
falar das obras e feitos de cada mulher, sempre reforça a importância de se buscar
compreender o contexto histórico, social e político vivido por cada uma, bem como conhecer
suas histórias de vida. Assim, Ciribelli (2006) constrói um “mini-perfil” de cada mulher para,
então, se debruçar nas obras e feitos de cada uma, por entender que só assim se conseguiria ter
uma melhor dimensão dos fatos.
É importante destacar que o principal caminho de colher tais informações foram em
cartas íntimas dessas mulheres - o espaço de fala (esfera privada) permitido para as mulheres
na época. A autora buscou conhecer essas mulheres se aproximando de seus lugares de
enunciação, ao invés de lançar mão de conteúdos já conhecidos por caminhos hegemônicos.
No capítulo que ela fala sobre Camille Claudel, a importância de se debruçar nas cartas fica
mais evidente, quando ela afirma que, embora na história fosse trazido versões a respeito da
suposta loucura de Claudel, suas cartas mostram bastante coerência e lucidez em seus
posicionamentos.
Ademais, é importante ressaltar o lugar da criatividade no que diz respeito à luta,
resistência e quebra de silenciamento(s) em que as mulheres eram (são) sujeitas. Para Cecília
Meireles, por exemplo, sua poesia era “o grito que rompia o silêncio em que psicologicamente
sempre esteve imersa”, uma forma de ser entendida em seu “silêncio falante” (CIRIBELLI,
2006, p.54). Nesse ínterim, Nise da Silveira jogou luz para o fato de que tal quebra de
silêncio(s) não acontece apenas por meio da palavra e, ainda, que a função pensamento10 não
era a única existente. Diante da dificuldade de se comunicar com seus clientes a partir da fala,
lançou mão de outras formas de expressão, tais como artesanato, jardinagem, pintura,
modelagem, entre outros. Faz-se importante, ainda, dar um destaque ao papel de Nise no que
tange ao movimento de confronto com práticas hegemônicas da Psicanálise, rompendo com o
9 Camille
Claudel, Cecília Meireles, Clarice Lispector, Frida Kahlo, Marie Curie, Nise da Silveira, Nísia Floresta
e Simone de Beauvoir foram as mulheres abordadas em cada capítulo do referido livro.
10
Jung discorre a respeito de quatro tipos psicológicos que dizem respeito à “formas evidentes pelas quais a
consciência se orienta em relação a experiência”. Seriam esses quatro tipos: sensação: percepção sensorial e
nos diz que algo existe; pensamento: nos mostra o que é esse algo; sentimento: nos diz se esse algo é agradável
ou não; e intuição: nos diz de onde vem esse algo e pra onde irá. Jung faz uma ressalva, ainda, sobre tais
critérios ao afirmar que são apenas pontos de vista e não há nada de dogmático a respeito dos mesmos (JUNG,
2008).
34
3 OBJETIVOS
4 METODOLOGIA
A história da ciência passou por várias mudanças ao longo dos tempos, tendo sido
questionada, criticada, ressignificada acerca da sua forma de produção de conhecimento
ancorada no paradigma positivista. Maraschin (2004) discute em seu texto, “a atividade de
pesquisa como potência instituinte, ou seja, virtualmente capaz de desestabilizar modos de
ação já recorrentes na instituição” (p. 99) - sendo esta, por exemplo, o modus operandi da
academia e caminhos de se fazer pesquisa. Segundo Paulon (2005), a partir da inquietação no
que concerne às ideias de dicotomia, tais como teoria/prática e sujeito/objeto, algumas
abordagens metodológicas que criticam este conservadorismo e objetividade do pensamento
científico foram trazendo mudanças - afastando-se da ideia da neutralidade e aproximando e
implicando o pesquisador e sua ação. Essa abordagem metodológica vem dialogar com as
ideias do psicólogo social Kurt Lewin (1980-1947):
conhecimento de si (ao narrar-se a partir de recursos da arte), podendo esta narrativa ser
assumida também como narrativa da pesquisadora sobre a construção de conhecimento de si
das participantes.
Segundo Maraschin (2004), a pesquisa-intervenção vem romper padrões acadêmicos
ao propor outras formas de participação, investindo na multiplicidade de sentidos e abrindo
espaço para as singularidades autorais ao criar territórios de subjetivação. Assim, os efeitos
desse tipo de pesquisa colocam em movimento: conhecimento, intervenção e autoria. A partir
desta perspectiva, os fenômenos sociais presentes no campo de pesquisa, não estão isentos de
jogos de interesses e de poder. Entende-se, assim, que o próprio investigar constitui um ato
político e a própria subjetividade do pesquisador é levada em consideração como categoria
analítica - apontando as bases do conceito institucionalista de implicação.
A partir desta perspectiva, a intervenção não é entendida como uma intromissão
agressiva e sem fundamento, mas é voltada para a produção de acontecimentos. O olhar não é
direcionado para um determinado ponto de partida ou um alvo a ser atingido necessariamente,
visto que a intervenção é entendida justamente como o “vir entre”, o “interpor-se” - ou seja,
lança-se o olhar para as contingências, metamorfose, movimentos, processos de diferenciação
e criação de um novo espaço-tempo. É no momento em que a pesquisa e intervenção estão
sendo realizadas, que ocorrem tanto a produção teórica, do objeto de pesquisa, bem como
daquele que investiga (PAULON, 2005). Dessa maneira, este aporte teórico-metodológico nos
faz sentido para lançar o olhar sobre a Arteterapia, na medida em que o trabalho
arteterapêutico valoriza o processo como um todo - e não necessariamente apenas o produto.
Diante desse lugar do/a pesquisador/a no campo, Paulon (2005) nos fala sobre o
conceito-ferramenta da análise de implicação, em que para conhecer, o/a pesquisador/a
precisa implicar-se - é realizar e aceitar que realizem a análise dessa sua própria implicação.
Desta forma, é papel deste/a estar atento/a ao lugar que ocupa nas relações sociais como um
todo, com sua história (e não apenas no contexto da investigação/intervenção). Sendo assim,
ao se aproximar do campo de pesquisa, o investigador/a deve analisar o impacto em que os
acontecimentos suscitados pela intervenção têm em sua própria história e sobre o sistema de
poder que legitima os sistemas de verdades (instituído enquanto “saber-poder”) em que se
encontra engendrado.
Outro ponto importante que esta autora traz é a questão do lugar de passividade que os
sujeitos participantes eram situados nos estudos convencionais, a partir do distanciamento
estabelecido entre os sujeitos envolvidos no ato da pesquisa. O referencial do modo de
produzir conhecimento aqui utilizado, pelo contrário deste entendimento de passividade,
38
Assim, este estudo se configura como uma pesquisa de caráter qualitativo, visto que se
propõe a pensar sobre as relações que as pessoas estabelecem entre suas ações e o que pensam
e interpretam acerca destas. Ou seja, a pesquisa qualitativa permite o se debruçar sobre os
significados, motivos, aspirações, crenças, valores e atitudes das pessoas (MINAYO, 2011).
A implicação ética deste modo de fazer pesquisa, de acordo com Maraschin (2004),
está em questionar o modo como nos inserimos no campo enquanto observadores e em buscar
deixar explícito os mecanismos utilizados para gerar conhecimento:
11
Apresentadas mais adiante.
39
12
O primeiro ciclo (Diagnóstico) tem o objetivo de promover o desbloqueio e ativação do processo criativo. Para
tanto, são utilizados materiais dos mais diversos e se observa como o grupo reage a eles, como interagem entre
si e qual a temática predominante nas produções. O terceiro e último ciclo (Processos Autogestivos) diz
respeito à quando o grupo começa a dar indícios de autonomia criativa (PHILIPPINI, 2011).
40
simbólico do grupo já está mais definido e começa a ser amplificado13, transformado. É onde,
geralmente, o grupo começa a fortalecer os vínculos, a conhecer mais do processo e dar
retorno do mesmo.
Foram, no total, oito encontros com duração de aproximadamente três horas. Cada
encontro seguiu um roteiro consistindo, basicamente, de três etapas: 1) uma primeira de
relaxamento/aquecimento; 2) um segundo momento para a produção plástica propriamente
dita; e 3) um último momento de fechamento, compartilhamento de impressões e avaliação.
A despeito da vivência em Arteterapia, bem como destas etapas que citei acima é
importante situar que “O espaço arteterapêutico é um espaço gerador de possibilidades de
criatividade e expressividade, em que se combinam experiências psíquicas referentes às
dimensões primárias, secundárias e vivenciais” (PHILIPPINI, 2011, p. 18). Por dimensões
primárias, secundárias ou vivenciais, a autora afirma que se refere às memórias afetivas
primordiais; ao contexto das normas, regras e leis no que tange o convívio com a sociedade; e
ao que é expressivo e criativo das atividades arteterapêuticas, respectivamente.
No que diz respeito à primeira etapa do grupo, o rito de abertura, esta mesma autora
afirma que é um momento imprescindível para a preparação, concentração e desbloqueio no
fluxo criativo. Entendendo que o processo arteterapêutico trabalha, prioritariamente, com
aspectos não verbais, o ritual de início, meio e fim se faz importante.
A segunda etapa, da produção plástica, é entendida como o “miolo” do encontro, a
atividade propriamente dita. Philippini (2011, p.96) afirma que a utilização de estímulos
geradores favorece que conteúdos latentes explicitem-se, podendo assim, ser “confrontados,
elaborados e transformados”. Assim, a partir da utilização de tais estímulos geradores (visto
que estamos falando a respeito do segundo ciclo), são disponibilizados materiais expressivos
(tinta, colagem, argila, sucata, por exemplo) para as participantes do grupo produzirem
plasticamente o tema suscitado.
Por fim, sobre a última etapa, o rito de fechamento:
13Por “amplificação simbólica”, Jung diz ser uma forma de analisar conteúdos por meio de comparação das
imagens e paralelos entre elas, e símbolos primitivos e históricos. É como se olhássemos um objeto sob vários
ângulos e, com isso, pudéssemos ampliar o olhar e enxergar novas partes que lhe constituem (GRINBERG,
2017).
41
14
Enfatizo ainda que, embora tenha feito parte do grupo - e sido ativa na participação -, meus conteúdos
trabalhados e imagens produzidas não fizeram parte, diretamente, do recorte analisado.
15
Estamos entendendo sofrimento enquanto construção social que se dá por “um conjunto de mal-estares mais
ou menos agudos, vividos subjetivamente, mas plenamente reconhecidos em sua origem objetiva, socialmente
esperados em natureza, intensidade e momento” (SAMPAIO, 1998, p.104).
42
16
Conforme vimos, segundo Philippini (2013), o trabalho arteterapêutico passa pelo processo de enformar,
informar e transformar.
43
material deste estudo. No que concerne às lentes utilizadas para fins de análise, partimos,
epistemológica e teoricamente, do feminismo decolonial e do estudo da Arteterapia com
enfoque junguiano. Maciel e Carneiro (2012, p.48) situam a abordagem junguiana da
Arteterapia como um convite:
A forma como o material foi organizado para fins de análise teve inspirações a partir
da análise temática. Gomes (2009) faz a ressalva de que a análise em uma pesquisa qualitativa
deve buscar explorar o caráter coletivo dos temas discutidos sem, contudo, negligenciar o
singular. Diz, ainda, que a própria forma de descrever e organizar o material já aponta para
um caminho de análise. Este autor discute a análise temática a partir das ideias de Laurence
Bardin: consiste em identificar núcleos de sentido (temas) em determinado material, que
possam apontar para algum caminho de diálogo e análise.
É importante ratificar que nos inspiramos na análise temática enquanto técnica para
organização do material, visto que a mesma conta com os seguintes procedimentos:
categorização, inferência, descrição e interpretação17. Ou seja, entramos em contato com o
material em busca de se obter uma leitura do seu conjunto e suas particularidades; traçamos
formas de classificá-lo (eixos); determinamos o aporte teórico que irão orientar a análise; e
em seguida, dialogamos com esse conteúdo a partir dos temas (eixos) definidos, tecendo
costuras teóricas - buscando responder aos objetivos propostos. Tais procedimentos não são
realizados necessariamente de forma sequencial, bem como o caminho trilhado pelo(a)
pesquisador(a) vai depender dos objetivos da pesquisa, do objeto a ser estudado, da natureza
do material disponível e, ainda, da perspectiva teórica utilizada (GOMES, 2009).
Assim, o percurso traçado para fins da presente análise, partiu de três eixos temáticos -
os quais tiveram como base, o roteiro de observação do campo e objetivos deste estudo. É
importante explicitar que embora não sem relevância analítica, os dois primeiros eixos
tiveram o caráter de “base” (caminho suporte) para chegar ao terceiro - ponto principal deste
trabalho. Foram eles: 1) Sentidos construídos por mulheres acolhidas no grupo “Entre
Mulheres”, às suas experiências de sofrimento; 2) Sentidos construídos por mulheres
acolhidas no grupo “Entre Mulheres”, às suas experiências de silenciamento; 3)
17
Faço novamente a ressalva acerca da inquietação diante da palavra “interpretação” e preferência por “diálogo”.
44
de novas estratégias de cuidado e atenção à saúde mental, bem como criar um espaço de
reflexão para as próprias mulheres que se confrontam com suas trajetórias de vida e suas
relações com possíveis silenciamento(s) e sofrimento(s).
18
Karla Galvão é professora de Psicologia da Universidade Federal de Pernambuco (UFPE) e trabalha com
grupos a partir de uma perspectiva feminista (apresentação que ela mesma fez no convite do grupo).
19
Adriana Ayub é mãe, pesquisadora do corpo, terapeuta corporal, bailarina, professora de dança e doula
(apresentação que ela mesma fez no convite do grupo).
20
Edna Lopes é psicóloga, local trainer em Análise Bioenergética, especialista em terapia de casal e família,
arteterapeuta, sócia-diretora do Horizonte Desenvolvimento Humano, uma das coordenadoras da “Traços -
estudos em Arteterapia” e supervisionou o estágio no qual aconteceu o grupo analisado.
21
Em anexo.
22
Via de regra, no estágio em Arteterapia, após três faltas consecutivas, a pessoa deixa de fazer parte do grupo.
Entretanto, as facilitadoras refletiram junto à supervisora, os motivos de tal dificuldade de frequência: as três
são mães (Borboleta, Flor e Catarina) - e por vezes não tinham com quem deixar seus filhos - ou ainda por
questões de trabalho. Diante da vinculação das mesmas com o grupo e vice-versa, bem como levando em
consideração todas as dificuldades - inclusive abordadas no grupo - de ser mulher e de ocupar alguns espaços,
se entendeu que as mesmas poderiam continuar frequentando os encontros.
46
23
Em anexo, segue uma tabela de identificação, com características autodeclaradas pelas participantes, a fim de
explicitar melhor a diversidade do grupo. A escolha pela autodeclaração visou com que as mesmas dissessem
como se percebiam.
47
incoerência de entender que a Arteterapia estaria a serviço da fala - mantendo essa forma de
expressão enquanto fim e, portanto, caminho hegemônico.
Com isso, não estamos partindo do pressuposto de que a fala não possa auxiliar no
processo de elaboração e integração de conteúdos inconscientes, expressos no material
plástico. A fala faz parte, mas não é e nem precisa ser, necessariamente, o fim em si. Maciel e
Carneiro (2012) nos ajuda a pensar sobre isso ao enfatizarem que “a Arteterapia não se propõe
a ser uma terapia ‘muda’” (p. 51) - a verbalização enquanto efeito de uma vivência é
estruturante e possibilita um efeito terapêutico profundo. Elas afirmam, ainda, que as
linguagens simbólica e verbal, juntas, criam um terreno fértil de informações e conteúdos que
semeiam uma nova forma de ser e estar no mundo.
Já desde o início do grupo, uma das participantes, Flora, propõe que antes do
aquecimento, no momento da chegada, acontecesse o que ela chamou de “zeramento”: fazer
uma rodada de acolhimento de falas, com objetivo de esvaziamento de algum conteúdo que,
porventura, se quisesse falar, compartilhar, dividir. Esse convite do “zeramento” me fez
lembrar um trecho da música “Me curar de mim”24 de Flaira Ferro25 que diz: “pra me encher
do que importa, preciso me esvaziar”. Isto é, antes de iniciar o encontro, onde a produção
plástica traria a possibilidade de construção e transformação, havia necessidade de um
esvaziamento consciente, através da fala. Esse convite de Flora, bem como a dificuldade de
encerrar o encontro diante da demanda de fala já nos possibilita outros pontos de reflexão. Ou
seja, em que medida essa necessidade da fala já não denuncia nossa forma colonizada de
pensar - racionalizando - onde a fala é a forma sistematizadora preconizada? E/ou em que
medida essa necessidade de fala é deflagrada na própria reivindicação de se abrir um espaço
para tal, visto que ordinariamente, no dia a dia, esse espaço-tempo não é oportunizado?
Em um curso26 promovido pelo Grupo de Estudos e Pesquisas sobre Poder, Cultura e
Práticas Coletivas (GEPCOL) da Universidade Federal de Pernambuco (o qual faço parte), se
discutiu acerca da diferença entre linguagem e discurso. Foi trazido a linguagem enquanto
potencialidade (pensamento) e discurso enquanto performance. Assim, discurso seria uma
tomada de decisão dentro da linguagem. Desta forma, se concluiu que é reducionista conceber
a palavra enquanto detentora de todo o conteúdo em potencial a ser expresso. Uma frase
24
Música do álbum “Cordões Umbilicais”. Essa música se fez presente durante todo o meu processo do
mestrado, bem como da escrita.
25
Mulher, pernambucana, feminista, artista, dançarina, compositora e cantora.
26
Curso “Colonialidades e estereotipias nas representações do Outro”, realizado em outubro de 2017 com Daniel
de Souza Leão Vieira - professor adjunto do Departamento de Antropologia e Museologia (DAM) da UFPE.
48
mencionada neste curso, corrobora e resume bem esta compreensão: “Entre o visível
percebido e o visual representado, há uma gama de possibilidades de interpretações”.
É importante destacar que embora façamos uso, há incômodo em utilizar neste estudo,
os termos “análise” das imagens “coletadas” no grupo. Os termos que nos faz mais sentido
seriam “diálogo” com as imagens “construídas”. Não tivemos a pretensão de analisar as
imagens ou conteúdos destacados nas falas/produções plásticas das participantes, por
entendermos que essa postura seria incoerente à epistemologia assumida neste estudo, bem
como com o compromisso com o debate da decolonização. Não somos nós que temos o poder
de dizer do que se trata essa ou aquela imagem, tampouco falar da experiência destas
mulheres. Assim, o caminho que nos parece coerente é o do diálogo com essas
imagens/conteúdos, através da participação (situando nosso lugar de fala). E entendemos que
se trata de construção, e não de algo a ser coletado, diante da escolha metodológica de ser
pesquisa-intervenção, a partir da observação participante.
Desde o início dos encontros, temas como “simplificar, descomplicar a vida, tempo,
natureza, acolhimento, dor, cansaço e a condição de ser mulher” já começa a se fazer
presente. O tema do cansaço da mulher diante da vida tão cheia de complexidades, opressões
e a busca por um movimento simplificador, por uma maneira menos dolorosa de viver. Aqui
fica posto o desafio social de ser mulher diante da nossa luta por igualdade, bem como diante
de tanto acúmulo de papéis e responsabilidades a nós atribuídos: ser mulher, mãe, trabalhar
fora, cuidar da casa, etc.
As facilitadoras, em um dado momento, passam a convidar as participantes a
resumirem as falas em uma frase ou palavra. Houve, ainda, encontro em que a orientação foi a
de ficar todo o tempo da atividade em silêncio, buscando ouvir o som da natureza ao redor e
do próprio corpo (nesse dia, o encontro foi no laguinho da UFPE), seguido de produção
plástica. No primeiro dia em que esse movimento foi proposto, uma das participantes chega a
dizer “sair do racional não é fácil” (sic). Outro momento que me chamou atenção, ainda no
primeiro ciclo, foi o incômodo de Antiga com sua produção, quando a mesma diz que sente
sua imagem muito aleatória e a faz lembrar de uma fala de seu pai que afirmou ter lhe
marcado e machucado: “você está muito perdida” (sic). Após a produção e compartilhamento,
a mesma conclui, juntamente com outras participantes, que “se perder também é caminho”.
Nesse momento é possível trazer à tona o que Philippini (2013) discute acerca de conteúdos
inconscientes sendo enformados e informados, possibilitando sua elaboração/transformação.
Lakshimi, ao se apresentar em um dos primeiros encontros do grupo, fala sobre o
papel da dança criativa em sua vida, e defende a importância de ampliar as possibilidades do
49
corpo e da expressão. Dá, ainda, dois exemplos de como a dança possibilitou a ressignificação
de questões, ao entrar em contato com conteúdos latentes: 1) a isquemia da avó e de como a
mesma se beneficiou em assistir aulas de dança de seu grupo; 2) o amigo que desabafou e
elaborou, através da respiração na dança, a dor da morte do pai, ocasionada por problemas no
pulmão.
Por fim, destaco a participação de uma mulher que, não trarei nome real nem fictício,
pois a mesma deixou o grupo antes mesmo do início do segundo ciclo - recorte discutido
neste estudo. Ela, em um certo encontro (por volta do meio do primeiro ciclo), desabafa que
não consegue acessar os simbolismos, sentimentos e sensações que as demais participantes
compartilhavam e comungavam durante as produções e vivências. Ela chega a dizer: “Eu
acho muito lindo tudo isso que vocês falam, fazem… Mas pra ser sincera eu não sinto nada
disso que vocês sentem não, não sinto nada.” (sic). Essa participante sempre falou com
bastante frequência antes e durante as atividades - aparentando certa dificuldade em se
concentrar e se manter em silêncio.
No entanto, ao final do encontro ocorrido no laguinho da UFPE, no qual a orientação
foi a de ficar em silêncio o tempo inteiro, ela compartilha: “Lembram aquilo que falei sobre
não sentir nada? Hoje eu senti, obrigada!” (sic). É importante dizer que esta participante,
mesmo tendo precisado sair do grupo, deixou todas as participantes provocadas à reflexão.
Não me parece aleatório que o dia em que a mesma alega sentir algo, ser justamente o dia em
que o caminho da fala foi suspenso e o convite era sentir e ampliar a possibilidade de se
expressar. Sigamos para a descrição e discussão dos encontros selecionados.
27 O termo “vivência” é aqui entendido a partir do conceito de Gadamer: como atividade que ao ser
experienciada (não somente entendidas racionalmente), condensa conteúdos subjetivos significativos,
favorecendo o diálogo e construção de sentidos (NEUBAUER, 2015).
50
O encontro teve início com o zeramento, onde todas deram notícias sobre como
passaram as últimas semanas e no qual se falou sobre o retorno dos encontros, visto que foi o
primeiro depois do recesso de fim de ano. O segundo momento do encontro foi o
aquecimento: a orientação foi caminhar pela sala em diferentes direções e, a cada bater de
palmas, a direção da caminhada deveria ser alterado. Durante esta caminhada, todas foram
falando palavras que vinham em mente acerca de suas experiências e vivências do que é ser
mulher - enquanto as facilitadoras iam escrevendo tais palavras em uma cartolina fixada na
parede.
No terceiro momento do encontro foi lido o poema “Matrioska”, musicado por Sofia
Freire29 e, em seguida, com todas sentadas em círculo, se ouviu essa música. Foram
disponibilizados cartões30 para que se escolhesse um e se entrasse em contato com a imagem e
28
É importante destacar a importância dessa presença e diálogo da Arteterapia em um espaço da Psicologia -
como o SPA - visto que esta parceria denota que vem sendo ampliando o modelo de clínica tradicional e, nesse
sentido, a Psicologia vem abrindo espaços para a troca com saberes outros.
29
Sofia Freire é cantora, compositora e pianista de Recife, Pernambuco.
30
Cartas do livro “As cartas do caminho sagrado: a descoberta do ser através dos ensinamentos dos índios norte-
americanos” de Jamie Sams.
51
com seu título - como estímulo para o trabalho a ser realizado no dia. Além disso, as
facilitadoras retiraram uma carta para o grupo como um todo. Todas compartilharam os
cartões retirados - títulos e ilustrações -, e as facilitadoras compartilharam a carta do grupo:
cara pintada (carta de número 19).
Em seguida, no quarto momento, foi realizada uma escrita criativa. Para tanto, as
facilitadoras entregaram envelopes coloridos com palavras recortadas de poemas selecionados
por elas e, ainda, de produções escritas do primeiro ciclo. O comando foi escrever uma carta
para si mesma, discorrendo sobre a mulher que cada uma é, utilizando as palavras dos
envelopes e da cartolina fixada na parede, bem como todos os estímulos recebidos até aquele
momento. Após a finalização da escrita das cartas, em duplas e um trio, cada participante foi
trocando como foi o processo de escrever a carta para si, da forma que desejassem, lendo ou
não a carta. Por fim, no fechamento deste dia, todas de pé em um círculo, fez-se uma imagem
corporal que ilustrasse como sentiram a atividade realizada.
Neste encontro, após o zeramento, as facilitadoras leram o texto do livro “As cartas do
caminho sagrado” referente à carta retirada para o grupo no encontro anterior. No
aquecimento foi realizada a técnica retirada do Projeto ArtPad (MCCARTHY, GALVÃO,
2001), e as facilitadoras leram um texto que as mesmas fizeram, utilizando e unindo recortes
de todas as cartas que as participantes escreveram no encontro anterior. Em seguida,
apresentaram várias imagens, de diferentes artistas (conhecidos e não tão conhecidos) que
retrataram, a partir de diferentes linguagens artísticas, seu autorretrato. Após esse primeiro
momento disparador de estímulos para a produção plástica, foram disponibilizados materiais
variados para que cada participante escolhesse os que desejassem para produzirem seus
autorretratos. No fechamento, todas puderam compartilhar como foi o encontro para cada
uma.
52
No acolhimento e zeramento deste encontro, foi lido um texto de autoria de uma das
facilitadoras. O aquecimento aconteceu de maneira que todas deitaram no chão e foi realizada
uma respiração/sensibilização com o objetivo de cada uma perceber a estrutura e peso do
próprio corpo. Ainda nesse momento, foi orientado que cada uma escolhesse uma cor e
imaginasse que estavam se banhando, dando contorno e buscando acessar cada parte do corpo
com a cor escolhida.
Em seguida, foi proposto que, de olhos fechados, todas dançassem e fizessem uso do
espaço da sala de dança da maneira que desejassem. A orientação foi dançar em pé, deitadas,
dançar sozinhas inicialmente e, ao se deparar com alguém, parar e respirar junto com essa
pessoa, ao passo que a dupla tocava uma na outra com as mãos, ainda de olhos fechados, para
“ver” a partir de outro sentido, do tato. Terminado esse momento, cada dupla fez uma
massagem a partir do sopro, sem usar as mãos, com o intuito de sensibilizar a pele para a
realização do contorno deste “corpo-mulher”. Feita a sensibilização em dupla, todas se
levantaram e andaram pelo espaço sendo convidadas a se perceberem: os pés no chão,
respiração, esqueleto e articulações. Foram dados diferentes comandos - oscilando entre
movimentos lentos, rápidos e pausas até parar de vez e perceber como o corpo estava.
Após o trabalho de ativação, conscientização e sensibilização corporal, foram
disponibilizados papéis de grande comprimento para que, em duplas, uma fizesse o contorno
do corpo da outra - que escolhia uma posição para ser contornada sobre o papel. Tendo o
contorno do próprio corpo, alguns materiais foram oferecidos para que cada uma realizasse o
preenchimento dos corpos desenhados - sem ultrapassar as linhas de contorno dos mesmos.
Em seguida, deu-se o momento de fechamento e compartilhamento de como foi o encontro,
bem como o processo de produção plástica.
53
31
Hilda Hilst, natural de Jaú - São Paulo, foi poeta, ficcionista, cronista e dramaturga reconhecida como uma das
maiores escritoras em língua portuguesa do século XX.
54
● Sujeitas presentes: Mar, Sol, Flora, Lakshimi, Soledade, Sofia, Girassol, Borboleta,
Catarina, Flor e Ana.
● Materiais e recursos utilizados: Giz, massa de modelar, colas, argila, papel kraft A4,
linhas e fita adesiva, tecido de seda azul.
● Evento observado: Quinto encontro analisado do ciclo “Estímulos Geradores”.
Aprofundamento do trabalho com o corpo coletivo, estabelecendo relação entre casa,
bairro e cidade.
32
Maíra Baldaia, natural de Minas Gerais, é cantora, compositora e atriz.
33
Céu, natural de São Paulo, é cantora e compositora.
34
Anelis Assumpção, natural de São Paulo, é cantora e compositora.
35
Arnaldo Antunes, natural de São Paulo, é músico, poeta, compositor, DJ e artista visual.
55
36
Tim Bernardes, natural de São Paulo, é músico, compositor, produtor musical e multi-instrumentista.
37
Marielle Franco era mulher negra, socióloga, feminista, militante dos direitos humanos e política brasileira,
além de vereadora do Rio de Janeiro - 2017/2020. Assassinada na madrugada do dia 14/03/2018 a tiros.
56
38
Este encontro, por ter sido mais longo (pois durou manhã e tarde) e mediante exigências acerca de carga
horária, foi contabilizado pela dupla de estágio como sendo três encontros. Entretanto, para fins de organização
e reflexão neste texto, estou chamando de “sétimo encontro”, visto que fala de um dia observado. Contudo,
ainda, sem deixar de destacar sua distinção de tempo dos demais encontros.
39
Espetáculo criado pela Compassos Cia. de Dança, sua montagem se inspira nas obras de três mulheres artistas:
Clarice Lispector, Edith Piaf e Frida Kahlo. Dirigido pelo bailarino e coreógrafo Raimundo Branco.
57
Por fim, com as máscaras prontas, a etapa seguinte foi “vestir” e “dar vida” às
mesmas, de forma livre e espontânea. Cada uma protagonizou uma performance com suas
máscaras da maneira que desejaram. É importante destacar que o encontro terminou neste
momento, porém, foi combinado - com quem tivesse disponibilidade - de ir juntas para o
espetáculo mencionado acima: Três mulheres e um bordado de sol - e assim aconteceu.
40Tal ideia da tatuagem coletiva acabou sendo concretizada pelo grupo. Essa decisão despertou nas mulheres a
referência à música Tatuagem de Chico Buarque, quando a mesma diz “pra te dar coragem de seguir viagem”.
As imagens, produzidas pela artista e tatuadora Nathalia Queiroz para que o grupo realizasse a tatuagem, estão
em anexo.
58
Em seguida, foi realizada uma contação de história coletiva sobre aquelas mulheres,
de forma oral - uma pessoa começava a história com uma frase e a outra seguia, de forma que
todas contribuíam, complementavam. Após esse momento, em duplas e trio, a orientação foi
escrever a história do grupo utilizando o que haviam escrito durante a exposição das fotos e,
em seguida, fazer uma imagem congelada ao mesmo tempo em que foi lida a história
produzida.
Sem título
“R- Evolução
Buscou-se discutir, neste estudo, os sentidos que as mulheres deste grupo construíram
acerca de suas experiências de sofrimento, de silenciamento e os sentidos construídos pelas
mesmas, no que concerne às contribuições da Arteterapia em seus processos de expressão e
deslocamentos subjetivos acerca de suas experiências de sofrimento. Diante do que foi
discutido até aqui, foi possível constatar a potência do trabalho com arte no campo da saúde
mental, bem como o aspecto do silenciamento que, historicamente, as mulheres sofreram - e
sofrem.
A Arteterapia é uma das possibilidades terapêuticas de comunicação e expressão que
não se ancora exclusivamente no discurso e tem como objetivo facilitar, por meios
alternativos, o acesso ao universo imaginário e simbólico. A partir da criação expressiva, a
exploração de instâncias imaginativas é favorecida e, através da materialização das mesmas, o
confronto e atribuição de significados de conteúdos inconscientes se tornam possíveis,
corroborando para uma maior elaboração psíquica e consequente ampliação dos limites da
consciência (MACIEL, CARNEIRO, 2012).
Tendo feito a contextualização do grupo e das participantes, partimos para os recortes
analisados: os encontros do segundo ciclo - Estímulos Geradores. Durante o primeiro ciclo, a
partir das experimentações com os materiais plásticos - e na medida em que o grupo foi se
vinculando -, os temas simbólicos compartilhados começaram a surgir nas produções e falas
das mulheres. Philippini (2011) afirma que independente das especificidades dos(as)
participantes, o grupo apresenta um tema simbólico comum, uma psicodinâmica central.
Assim, o tema simbólico constelado no grupo, que passa a ser amplificado durante o segundo
ciclo, passou por questões do ser mulher e do cuidado com o corpo/casa - a partir do processo
de integração da sombra41 (JUNG, 2008).
41
Conceito junguiano que será abordado mais adiante.
61
sede em Brasília - DF. Este centro realiza um trabalho em prol do autocuidado e cuidado entre
as ativistas como forma de fortalecimento entre as mulheres.
Sol, que no início dos encontros não se expressava muito a partir da fala, esteve
sempre muito disponível para produzir plasticamente. Paulatinamente ela começa a trazer,
inclusive, posteriormente também na fala, conteúdos que afirmou lhe causar dor e sofrimento.
Ela, em dado momento, afirma sentir dor por ser mulher negra - trazendo exemplos de
opressão em sua vida pessoal e ampliando para contextos sociais. Sol, que usava tranças afro,
pretas e roxas, ao se falar sobre fotos tiradas por outra participante do grupo (Mar), chegou a
dizer, em um dos momentos do zeramento, que foi difícil olhar para tais fotos. Ela diz: “Foi
difícil pra mim, ver minhas fotos. Boa parte do tempo não gostei de me ver. Isso dói, porque
não tô gostando do que eu tô vendo, e não é só externo” (sic). Fala, ainda, sobre “a dor e
resistência que é viver e sobreviver” (sic).
Destaco brevemente recortes do caminho percorrido por esta participante, entendendo
que ele ilustra, em alguma medida, o processo do grupo como um todo (embora saibamos que
ele é vivido de formas distintas), no que concerne a busca de olhar para si, para quem se é e
para seu lugar no mundo. No primeiro encontro analisado, em que foi proposto que se
escrevesse uma carta para si mesmo, enquanto mulher, Sol escreve:
Antiga, mulher branca, em alguma medida comunga desse manifesto quando, em sua
carta, diz: “já fizeram de ti objeto de poesia, mas ser objeto basta?”; “Aceita que tu é intuição
e que o mundo dos homens simplesmente não é pra tu. Essa bosta de racionalidade, de razão e
sobriedade que um dia te disseram ser tu. Tu é muito além disso” e “É falar de mim, ouvir de
mim”. Parafraseando Chico Buarque43, elas falam do desejo de “ter voz ativa, no nosso
destino mandar”.
Mar, por sua vez, que não falava quase nada durante boa parte dos encontros do
primeiro ciclo, passou a se arriscar a cada zeramento, falando e se expressando cada vez mais.
Inicia falando sobre sua dificuldade em falar em público e confiar nas pessoas. Depois, o tema
passou por sua relação difícil com os pais - sobretudo com o pai - e sobre o
tratamento/educação diferente que recebe pelo fato de ser mulher. Sua dor passou pela busca
da aceitação de si, pelo mundo e sobretudo por si.
Destaco a imagem dos corpos produzido por Borboleta e Girassol, em que as mesmas
advogam pelo direito de ser quem se é, pela própria identidade.
42 Tradução do vídeo “While I Write”, do “The desire project” apresentado por Kilomba, na 32ª Bienal de São
Paulo (2016), no Brasil. Tradução disponível em: <http://www.pretaenerd.com.br/2015/10/escrita-como-
resistencia-e-assentamento.html>. Acesso em 28 mai 2018.
43
Francisco Buarque de Hollanda (Chico Buarque) é músico, dramaturgo, escritor e ator brasileiro.
64
Nessas imagens, Borboleta traz figuras que tangenciam vários dos temas supracitados,
entretanto, destaco o texto que ela usa para compor seu corpo, que diz: “Ser diferente não é
fácil. Exige coragem. O movimento passa por várias etapas de aceitação até atingir graus em
que a diferença possa ser valorizada a ponto de se transformar em identidade”. Maciel e
Carneiro (2012) afirmam que o processo de cura passa pela tomada de consciência da própria
dinâmica psíquica, ressignificando e distanciando-se das expectativas e compromissos de se
atingir padrões “ideais”, que traz adoecimento e sofrimento. A criação expressiva seria, assim,
uma possibilidade de se reapropriar do íntimo, de recuperar a individualidade perdida. É
possível observar que a mesma traz o mundo em seu entorno. Entretanto, ela coloca o sol na
altura de seu peito - estrela central do sistema solar-, sendo ela mesma e o que ela sente, o seu
centro. Me chamou atenção, ainda, o local e posição onde a mesma coloca a frase destacada:
entre o mundo e sua garganta - chakra44 da expressão, voz. Este, segundo Leadbeater (2012),
de cor predominantemente azul, é o quinto chakra e diz respeito à comunicação e expressão45.
44
Chakra é uma palavra sânscrita que significa roda. Diz respeito a uma série de vórtices que se assemelham a
rodas que existem na superfície do duplo etérico (parte invisível) do corpo. Os chakras, ou centros de força,
são pontos de conexão pelos quais flui a energia de um a outro veículo ou corpo humano. São sete, os
principais chakras: o primeiro, raiz ou básico (Muladhara), na base da espinha dorsal; o segundo, baço
(Swadhisthana), na vizinhança dos órgãos genitais; o terceiro, umbigo (Manipura), sobre o plexo solar; o
quarto, coração (Anahata), sobre o coração; o quinto, laríngeo (Vishuddha), na frente da garganta; o sexto,
frontal (Ajna), entre as sobrancelhas e sétimo, coronário (Sahasrara), no alto da cabeça (LEADBEATER,
20012).
45
Não poderia deixar de registrar a dificuldade que tive em encontrar artigos e estudos sobre a teoria dos
chakras, para aqui referenciar - o que nos mostra que este campo de conhecimento, não oriundo do Ocidente, é
pouco explorado (por que não dizer negligenciado, subalternizado?).
66
De início, me pareceu uma tarefa árdua distinguir os eixos que falam de sofrimento e
experiências de silenciamento - pois entendo que uma experiência acaba nos dizendo muito da
outra. Entretanto, cheguei à conclusão que não se tratou de “distinguir”, mas de me
aprofundar na reflexão acerca do silenciamento (como uma das facetas do sofrimento). Mas,
antes de nos debruçarmos nas produções e narrativas do processo arteterapêutico, avalio ser
importante fazer algumas ressalvas. Primeiramente, quero situar o que eu mesma, enquanto
mulher, entendo por experiências de silenciamento. Entendo que podemos ser silenciadas de
diversas maneiras: da impossibilidade à obrigatoriedade de fala. Desejar falar e não gozar de
espaços em que isso seja possível, silencia. Querer expressar por caminhos outros, que não
exclusivamente a palavra, e não ter condições que favoreçam, silencia. Escolher expressar,
sem dizer nada, e ser colocada em situação de “obrigatoriedade” de fala, também silencia.
Sobre este último exemplo, gostaria de trazer uma vivência que tive e que me fez
entender isso desta forma: em uma roda de conversa (onde a pauta era feminista!), tinham
várias mulheres que puxavam a discussão e outras que, apesar de não verbalizar nada,
expressavam de maneiras outras: estando lá o sábado inteiro, se emocionando com o que
ouviam, ocupando aquele lugar. Entretanto, em certo momento, uma mulher chega a falar
“vocês que estão aqui, mas não estão dizendo nada, vejo que estão se emocionando e com
certeza se fortalecendo com o que estão ouvindo aqui. Falem também, do mesmo jeito que
vocês, nós que estamos falando também queremos ouvir e crescer com isso”. (sic). Após essa
fala, foi possível perceber que o grupo teve um certo esvaziamento e ficou nítido pra mim o
motivo, quando uma fala baixinho e constrangida pra mim: “É por isso que eu não consigo
participar dessas reuniões. Eu sinto que ainda preciso me fortalecer ouvindo pra ter o que
falar, mas quando me sinto encurralada tendo que falar, quero ir embora” (sic).
É um movimento histórico tão cruel e arraigado (colonizador) que, se não estivermos
atentas, o reproduzimos mesmo quando a intenção é outra(!). Acredito muito que o que a
mulher disse foi no sentido de convidar e motivar a fala de quem ainda não tinha usado sua
69
voz. Acredito ainda que, por vezes, as mulheres que não usam sua voz, não o fazem porque
não desejam - há toda uma construção social em que se encontram engendradas, a qual é um
processo desconstruir e entender que elas podem (se quiserem) falar. O posicionamento da
mulher acabou por gerar um sentimento de dívida e culpa (sofrimento) de quem ainda não se
sentia fortalecida para falar - ou mesmo queria. Isso para não apontar, novamente, para o
lugar da palavra entendida como sendo a principal forma de expressão - pois reitero que todas
as mulheres que ali se encontravam, estavam se expressando sim: com seus corpos, emoções,
ouvidos, falas, gestos, olhares e, sobretudo, presenças.
Por que as mulheres são silenciadas? Quem ou o que desqualifica suas vozes? Por que
a posição de subalternidade? Como vimos, historicamente, houve uma divisão social
(desigual) de lugares entre homens e mulheres. Aos homens, sempre esteve o lugar da
produção, espaços públicos, de fala e sobretudo da razão. Às mulheres, foi imposto o lugar da
reprodução, de espaços privados e ligadas ao campo da emoção e do sentir (PERROT, 2005).
As mulheres foram, assim, entendendo que não podiam (nem querer) falar, pois este lugar de
ter algo “digno” de ser posto/dito na esfera pública não cabia a elas. Entender isso e
passarmos para o lugar de fala tem sido um longo processo de luta e requer tempo, é um salto.
Dito isto, eu não poderia deixar de mencionar sobre alguns dos desdobramentos
(macropolíticos) desse processo: a pouca representatividade de nós mulheres nos Poderes
Legislativo e Executivo, o golpe sofrido por Dilma Rousseff46, o silenciamento brutal e fatal
de Marielle Franco47, dentre tantos outros exemplos, que vem reafirmar esse ferimento às
vozes públicas de todas nós. Com isso quero dizer que esse estudo foi realizado em tempos de
golpe e interrupção de fala de mulheres que “ousaram” ocupar espaços públicos.
Partindo para o recorte deste estudo, apresento a seguir algumas imagens que
selecionei para ilustrar e dialogar com esta reflexão.
46
Filiada ao Partido dos Trabalhadores, Dilma Rousseff foi presidente do Brasil, tendo exercido o cargo do ano
de 2011 até ter sido afastada por um processo de impeachment em 2016.
47
Como mencionado anteriormente, Marielle Franco, vereadora do Rio de Janeiro - 2017/2020 que foi
assassinada (silenciada brutalmente) na madrugada do dia 14/03/2018 a tiros.
70
Figura 6 - Destaque da produção do corpo feita por Ana: flor na garganta escrito “dor”
Essa imagem já nos é disparadora para pensar sobre essa fala que dói, situada no corpo
- o que nos confirma o que trouxe mais acima, acerca da expressão e sofrimento estarem
imbricados48. Corroborando com esta ideia, podemos ver, na imagem a seguir, o silêncio que
está posto no entorno e contexto do corpo-mulher:
48
Outro ponto que ainda ressalto aqui é a imagem de uma mulher com um livro nas mãos e a cabeça em chamas,
como que borbulhando de ideias e conhecimento.
71
Figura 7 - Destaque da produção do corpo e seu entorno, feita por Flora: “vazio, silêncio”
“Rainha ou prostituta
Com a lupa procurava
A moral da estória.
A reconstrução da prisão,
O peso da doação,
O medo da criatividade,
O silêncio da força.
Fértil, silenciada.
Não temam, cavalheiros,
É pra agora
73
atribuição do lugar do cuidado de maneira desigual entre homens e mulheres - sendo a mulher
a principal responsabilizada socialmente.
Foi possível perceber, durante o segundo ciclo, como as mulheres foram entrando
paulatinamente em contato com conteúdos que até então lhes era difíceis. O caminho trilhado,
essa busca delas, como já vimos, passa pelo que Jung (2008) chama de processo de
individuação. Ele afirma ser preciso se submeter, conscientemente, ao poder do inconsciente
em prol da harmonização da consciência com o núcleo psíquico - o self. E esse processo,
dentre outros estágios, passa pelo processo de integrar a sombra. Esta não é o todo
inconsciente, mas uma parte dele: representa qualidades e atributos pouco conhecidos ou até
mesmo desconhecidos por parte do ego. São aspectos que pertencem à esfera pessoal ou pode
consistir em fatores coletivos que surgem a partir de determinadas situações na vida pessoal
do indivíduo. É importante elucidar que a sombra não diz respeito apenas às omissões.
Também pode aparecer sob impulso, ou seja, antes mesmo de se pensar, se tomam atitudes
que não eram tencionadas conscientemente (von FRANZ, 2008). Possível, ainda no ciclo
diagnóstico, observar como esse tema já começa a aparecer, por exemplo, no encontro em que
uma das participantes, Flora, fica muito incomodada com a produção de sua mandala, pois
afirma que estava incompleta onde havia um espaço preto em meio às outras cores. A
facilitadora Karla, ao intervir dizendo “acolhe tua sombra” (sic), faz tanto a participante
quanto o grupo como um todo se mobilizarem bastante. No meio do segundo ciclo, no dia em
que a produção foi a própria casa, a mesma enfatiza seu quarto, coloca massa de modelar de
diversas cores e conclui: “eu saí do preto e hoje sou colorido” (sic).
75
Sol, como já mencionado, inicia o processo com dificuldade de olhar pra si, pro
próprio corpo. No encontro de produção dos corpos, ela, após terminar sua produção, deita em
seu próprio corpo, como quem busca ocupá-lo, apropriá-lo.
Hooks (2005) nos mostra que Sol não está sozinha nisso e que não é de hoje que
mulheres negras enfrentam essa dificuldade. Ela discorre acerca do processo de alisamento
dos cabelos dessas mulheres como consequência do sentimento de insegurança das mesmas,
frente à opressão e hegemonia branca:
Assim, é importante destacar que a persona não é necessariamente negativa, dada sua
função protetora do ego e da psique. Ferreira (2015), em sua dissertação, aborda a máscara
como um símbolo de comunicação e expressão - um artefato simbólico que, em negociação
voluntária e involuntária, o sujeito revela ou oculta conteúdos ao mundo.
Na máscara de Girassol podemos ver que ela fez sua boca fechada com gesso e que
nela há uma amarra se rasgando, dando a entender que a mesma está se abrindo, que ela está
desejando falar:
Grada Kilomba (2010) vem discutir sobre um aspecto importante, aqui relevante, a
respeito da máscara, situando-a enquanto um instrumento real que se tornou parte do projeto
colonial europeu - a “máscara do silenciamento”. Ela faz um resgate especificamente das que
eram usadas nos negros e negras enquanto símbolo das “políticas sádicas de conquista e
dominação e seus regimes brutais de silenciamento dos(as) chamados(as) ‘Outros(as)’”
(KILOMBA, 2010, p. 172) - trazendo a imagem icônica da escrava Anastácia, como podemos
ver a seguir.
Esta mesma autora faz algumas perguntas a respeito do uso deste instrumento na boca
(órgão que simboliza a fala): “Por que deve a boca do sujeito Negro ser amarrada? Por que ela
ou ele tem que ficar calado(a)? O que poderia o sujeito Negro dizer se ela ou ele não tivesse
sua boca selada? E o que o sujeito branco teria que ouvir?” (KILOMBA, 2010, p.176-177).
Ela responde tais perguntas compreendendo que esta prática seria reflexo do medo do branco
(colonizador) de ouvir o que o negro (colonizado) tinha a dizer, esse “Outro” que representa o
que o branco teme reconhecer de si mesmo, sua sombra.
Seguindo essa reflexão de rasgar as amarras que impedem a fala, Mar, que como já foi
mencionado afirmou no início do grupo ter dificuldade de se relacionar e confiar nas pessoas
(e, por conseguinte, falar sobre si), ao longo do processo foi se abrindo e se expressando mais,
plasticamente e com a voz. Em um dado momento ela discorre acerca de uma produção (cuja
49
Não há uma história oficial a respeito da mesma - o relato que predomina é o de que ela foi forçada a usar um
colar de ferro pesado, além da máscara facial que não deixava falar (KILOMBA, 2010).
50
Disponível em:
<https://www.google.com.br/search?q=escrava+anastácia&source=lnms&tbm=isch&sa=X&ved=0ahUKEwjl9d
n_weHaAhVFE5AKHXtSDnoQ_AUICigB&biw=1536&bih=759#imgrc=dIrHBVbn_tYavM>.
80
imagem não foi possível registrar): “quando a agulha explodiu o balão eu vi que ficou tão
bonito. É tão mais bonito a alegria exposta do que contida no balão”(sic). Mais adiante do
processo, Mar conta no zeramento que diante da força que encontrou no grupo, conversou
com seus pais acerca de sua orientação sexual (lésbica) e contou que estava namorando uma
mulher. Foi possível perceber nela mudanças para além do se expressar: seu cabelo, que era
raspado bem curtinho, estava maior, aparecendo cachos, passou a se maquiar e se vestir
diferente, bem como foi fazendo tatuagens (algumas fruto do processo arteterapêutico, como
água viva e a frase “tu não te moves de ti”51, mencionada em um dos encontros).
No dia da máscara, Mar não consegue construí-la em seu próprio rosto mas faz um
rosto de argila, uma máscara de recortes de revista e vai embora em seguida, antes do fim do
encontro, pois não se sentiu bem com a atividade. Esta postura nos mostra a negociação que
ela fez consigo própria, se protegendo e indo até onde lhe era possível (função protetora da
persona). Isso nos faz refletir sobre o movimento de autorregulação, de ouvir e respeitar os
próprios limites para acessar conteúdos subjetivos. Por autorregulação, Jung (2010) diz se
tratar do sistema regulador da psique (organismo vivo e dinâmico), que funciona através de
movimentos compensatórios em que mesmo conservando sua autonomia, o inconsciente
complementa ou compensa a consciência.
51
Título de um livro de Hilda Hilst, já referenciada neste texto.
81
Algumas reflexões feitas pelo grupo, nesse encontro da construção das máscaras,
foram sobre o sentimento de “vida-morte-vida”: morte ao colocar o gesso no rosto e mergulho
na “escuridão” e renascimento ao tirar a máscara. Uma reflexão de Flora e Lakshimi acerca
do processo de confecção das máscaras me chamou atenção. Elas disseram: “quanto mais
camadas, menos sentimos o outro” (sic), se referindo às camadas de gesso que eram colocadas
em seus rostos e que, na medida em que se colocava mais, menos uma sentia a pele da outra.
Seguindo com as ponderações do grupo a respeito da máscara enquanto sombra, se
falou nas funções da mesma, como por exemplo no carnaval (onde as sombras são expostas),
em que todos se fantasiam e usam máscaras “para fazer o que quiser”. Se falou, ainda, da
função protetora que as mesmas podem assumir, de esconder o que não quer se mostrar.
Diante dessa discussão Sofia relata ter sentido incômodo com a luz em seus olhos ao tirar a
máscara: “É difícil ver na escuridão, mas também é difícil ver com muita claridade” (sic). Sua
82
fala me remeteu a um curta que foi exibido na Semana Arte Mulher, evento ocorrido no
Recife no presente ano52, chamado “O amor é foda”, sob direção de Priscila Guedes, em que
relata a dor e dificuldade de José, um ex-cego, ao voltar a enxergar e ver sua amada tão
diferente do que guardava em sua memória, do tempo que ainda podia ver (chegando a tomar
uma atitude drástica de colocar veneno nos olhos para cegar novamente).
Sofia continua discorrendo sobre as facetas da sombra trazendo sua produção, depois
de intervir com o carvão: “Na minha imagem tem urubus, mas urubu se alimenta do que é
podre. Sombra também alimenta” (sic). Trago a imagem a seguir:
52
A Semana Arte Mulher é um evento promovido pelo Ministério da Cultura e pela empresa “Quem disse
Berenice”, que promove ações culturais, como oficinas, exposições, performances, debates, reflexões e
espetáculos, produzidas por mulheres. A segunda edição do evento, no Recife, ocorreu de 05 a 11 de março de
2018. Mais informações em: http://www.semanaartemulher.com/wp-content/uploads/2018/03/Revista.pdf .
83
cada participante dava um nome para as imagens produzidas: “O nome que as pessoas deram
às suas imagens dão um caminho para pensar/sentir a imagem. Se não fosse o nome, acho que
eu iria ver outras coisas”. (sic). Diante disso chegou-se ao seguinte questionamento: em que
medida a palavra, nesse caso, ajuda, norteia? E em que medida enviesa, reduz? Entendemos,
no grupo, que se trata de uma escolha, onde o outro também opta, num dialogismo infindável,
no qual as possibilidades não se esgotam. Foi entendido que as palavras podem ser (e são)
estruturantes. É importante destacar o caminho conduzido pelas facilitadoras de, por vezes,
partir da escrita e, em seguida, transformá-la em imagem por meio de produção plástica (e
vice-versa). Philippini (2011) defende a produtividade terapêutica das escritas visto que as
mesmas facilitam a ordenação de sentimentos e ideias e por conseguinte, a apreensão de
conteúdos inconscientes.
Para ilustrar esse entendimento, destaco o corpo produzido por Lakshimi, no qual a
mesma contorna todo o seu corpo com palavras:
Ao fim do segundo ciclo, antes mesmo de o grupo terminar, já foi possível perceber
que as mulheres passavam por mudanças provocadas pela experiência arteterapêutica, ou seja,
pudemos observar as contribuições da Arteterapia no que diz respeito à expressão e
elaboração de sofrimento das participantes. Elas próprias, a partir das reverberações, dos
mergulhos, das mudanças e ressignificações - indo para além do que foi manifestado em seus
corpos e produções plásticas - foram trazendo, em suas falas, o que pensavam/sentiam a
respeito do processo. Trago um recorte de fala de uma participante como exemplo, visto que
contempla os sentidos que o grupo como um todo comungou a respeito do processo. Soledade
diz: “Passei a estar atenta aos sinais, parece que eu precisava estar aqui com vocês. Sempre
algo me dizia que era pra eu escutar meu coração. E agora parece que vejo sentido. Era tudo
muito solto, agora faz sentido” (sic). Ou Mar - que inicia falando da sua dificuldade em
confiar e compartilhar vida com as pessoas e, em certo momento, diz que foi no grupo que
aprendeu que “vida, quando compartilhada, faz mais sentido” (sic).
Assim, ao final do recorte analisado, o grupo estava muito vinculado e as trocas e
compartilhamentos de processos já não aconteciam somente nas sextas-feiras. O grupo criado
em aplicativo de celular passou a ser um canal muito utilizado, bem como as participantes
passaram a sair juntas para shows de mulheres artistas que se fizeram presentes de alguma
forma nos encontros. Esta vinculação, que foi sendo construída desde o início do grupo,
ganhou muita força em um dos encontros em que produziram suas casas e ao final foram
convidadas a usar linha para conectar todas elas:
85
Figura 18 - Construção coletiva das produções das casas das participantes conectadas por linha
A seguir, trago uma última imagem que avalio resumir bem o tema constelado no
grupo, a busca de serem elas e delas:
86
Sobre esse desejo manifesto na imagem (do corpo de Ana, porém coletivo), finalizo
com as falas de duas participantes, por entender que, assim como a imagem, contemplam bem
o que todas, em alguma medida, comungam ao final do recorte analisado. Antiga conclui: “No
fim das contas eu sou um lugar onde posso morar” (sic). Flora, por sua vez, declara: “Na
verdade sempre soube que o rumo sempre esteve dentro de mim. Hoje conto minhas histórias
com um desabrochar no coração, hoje me sinto tão eu que nem eu mesma ainda consigo ser,
mas sou. Hoje não preciso que me digam o que quero ou devo ser, hoje sei quem sou, porque
sinto-me sendo” (sic).
87
6 CONSIDERAÇÕES FINAIS
Antes de qualquer coisa, chego ao fim deste trabalho entendendo que ele está longe de
ter sido esgotado em suas possibilidades. Os materiais e processos que observei e participei,
nem que eu pretendesse, acredito que conseguiria “dar conta”, esgotar. Arte e processo
arteterapêutico é de uma potência simbólica que, escrever sobre, é possível, organizador e
estruturante - mas eu preciso ter a consciência e humildade de assumir que não é possível dar
conta de “traduzir” o que foi, de fato, o processo como um todo. O que me propus, entretanto,
foi trazer reflexões de um recorte situado temporal e espacialmente. Com isso quero dizer,
também, a dificuldade que senti em selecionar as imagens e trechos a serem aqui observados -
todo o material é muito rico e aponta para diversos caminhos possíveis de diálogo.
Embora o recorte e corpus de análise tenham sido delimitados no texto, é importante
destacar que a análise foi atravessada por outros caminhos que não “só” as produções
plásticas e o diário de campo. As relações foram estabelecidas para além do “setting” de
pesquisa: saídas para show, peça de teatro e mesa de bar, bem como o grupo criado em
aplicativo de rede social, foram, sem dúvida, extensões do tempo-espaço em que os encontros
aconteciam.
O processo de tomada de consciência, elaboração e deslocamentos subjetivos das
participantes do grupo foi, sem dúvida, algo muito fecundo de acompanhar. Destaco aqui que
foi, inclusive, possível testemunhar o quanto o processo arteterapêutico reverberou, também,
nas facilitadoras. A própria postura das mesmas, no que tange a facilitação, transformou-se ao
longo do tempo. Ao passo que o vínculo do grupo ia se formando, as mesmas também iam
cada vez mais se posicionando enquanto participantes: trocando, se emocionando e
mergulhando em seus processos, junto com todas nós.
Outra questão que perpassou o trabalho todo, foi o sentimento de medo diante da
tamanha responsabilidade que é lidar com conteúdos subjetivos tão complexos e densos,
como os que me debrucei. O medo fala da minha preocupação em conseguir que as mulheres
sintam-se contempladas com o caminho de diálogo que propus - é muito delicado este lugar
de discutir acerca da experiência do outro. Mas todas as mulheres do grupo arteterapêutico
(incluindo as facilitadoras) e minha orientadora escreveram esse texto comigo - eu não estive
sozinha em nenhum momento. Ter isso em mente foi o que me fortaleceu e me fez
compreender que meu medo e insegurança falava, sobretudo, do respeito diante da
oportunidade que me deram, aceitando fazer parte desse estudo, me acompanhando.
Busquei, ao longo deste trabalho, defender a importância da Arteterapia e, apesar
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desse estudo ter sido realizado com um grupo de mulheres, essa prática é de uma potência
democrática e inclusiva. Mulheres, homens, crianças, longevos, cegos, surdos, mudos,
pessoas de todas as cores e profissões podem se beneficiar do trabalho arteterapêutico.
Philippini (2011) nos fala sobre essa diversidade de possibilidades de públicos e campos de
atuação da Arteterapia. Algo que me chamou atenção e me fez refletir acerca das mulheres
que participaram deste grupo, foi a ausência de mulheres trans e idosas - embora o convite
tenha sido extensivo para qualquer uma.
Cheguei ao fim (sem achar que findei) deste estudo, com a constatação do benefício da
dúvida: com a descoberta do incerto, contingente, parcial, situado. Eu, que durante o mestrado
senti tanto medo, hoje me arrisco mais diante dessa constatação - pois entendi que há muita
potência no processo e caminho da produção de conhecimento, e não apenas no seu produto
“final”. O medo e insegurança sempre repousou na minha própria cobrança de uma resposta
incontestável paras as minhas perguntas e, nessa busca, passei muito tempo só olhando pro
ponto de chegada dessa caminhada, me atropelando muito durante o percurso - até perceber
que antes de chegar em qualquer lugar, a gente caminha.
A Arteterapia e as mulheres que acompanhei (e me acompanharam) me ensinaram
isso. A trajetória que tive o privilégio de observar me mostrou e me fez sentir essa potência -
o próprio recorte que escolhi analisar (o ciclo do meio, o miolo do processo) já me dizia isso.
Eu poderia ter escolhido o último ciclo, onde os caminhos do processo já se encontrariam
supostamente mais sedimentados. Entretanto, optei pelo recorte do ciclo onde o processo
borbulha e acontece acontecendo - onde mais importante que ‘onde vai dar’, é viver, sentir,
estar e ir. Analisar e dialogar com as imagens selecionadas, depois de entender tudo isso, foi
muito mais possível para mim.
Mas mesmo nesse arriscar-se mais, existiu ainda algum receio - sobretudo por me
sentir constantemente transgredindo e ousando na forma de escrever. Aliás, percebo que a
“transgressão” atravessou todo o percurso: em trazer a Arteterapia, ainda tão pouco explorada
na literatura, como objeto de pesquisa; em fazer uso de referências acadêmicas pouco
conhecidas, de música e poesia; em convidar Karla Galvão (facilitadora do grupo) para fazer
parte da banca; do diálogo com uma Psicologia negligenciada e subalterna em detrimento do
que se foi entendido como hegemônico (quem contou a história da Psicologia?). Todas essas
escolhas e posturas me falam, ao final, do diálogo que busquei fazer com a perspectiva
decolonial.
Busquei, assim, dar minha contribuição para a comunidade acadêmica e, nesse
percurso, meu olhar voltou-se para caminhos outros de pesquisa, sobretudo tendo a reflexão
89
53
Associação Brasileira de Normas Técnicas.
90
silenciadas. As palavras não cabiam a nós). Meu desejo era que a voz fosse imagem, cor,
forma, movimento. Mas quem disse que não pode caber tudo isso - também - na palavra? É
preciso ressignificar a palavra, a voz. É preciso familiarizar-se com o que nos é “estranho”. A
voz pode dizer, também com as palavras - e diz.
A arte não é contrária à palavra: esse foi o maior aprendizado durante todo o processo.
Busquei, dentre outras coisas, denunciar a hegemonia da palavra. Mas percebi que, nessa
denúncia, eu travei uma guerra com ela. Por que não fui me lançar na arte que não faz,
necessariamente, o uso da palavra? Por que escolhi justamente esse caminho? Grada Kilomba
me ajudou muito a refletir sobre esses questionamentos. Em suas obras, a mesma propõe um
hibridismo entre conhecimento científico e prática artística: ao buscar decolonizar o
pensamento, Kilomba performatiza seus escritos, dando-lhes forma, corpo, voz e imagem. Foi
possível entender que fazer arte é resistência. Escrever também é. Foi possível entender que,
diante de todo o silenciamento, falar e escrever é afrontar a ordem, é possibilidade de
desconstruir, construir, ressignificar, romper silêncio, gritar, (re)descobrir quem somos, quem
sou. Santos (2008, p.83) diz que “todo conhecimento científico é autoconhecimento”. Assim,
no processo da escrita, mergulhei eu mesma, em minha própria sombra.
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___________________________________________________
(assinatura do pesquisador)
Nome: Nome:
Assinatura: Assinatura:
Responsável legal e local onde serão arquivados os dados da pesquisa: Profª. Jaileila de Araújo - Endereço: Universidade
Federal de Pernambuco (UFPE) - Centro de Filosofia e Ciências Humanas, 7º. Andar, Cidade Universitária. Recife/PE -
Telefones p/contato: 2126.8270
Comitê de ética responsável: Avenida da Engenharia, S/N - 1º andar, CEP: 50740-600, Cidade Universitária Recife - PE,
Brasil. Telefone/Fax do CEP: (81) 2126-8588 - E-mail do CEP: [email protected]
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Ao mesmo tempo, libero a utilização destas fotos/imagens (seus respectivos negativos) e/ou
depoimentos para fins científicos e de estudos (livros, artigos, slides e transparências), em
favor dos pesquisadores da pesquisa, acima especificados, obedecendo ao que está previsto
nas Leis que resguardam os direitos das crianças e adolescentes (Estatuto da Criança e do
Adolescente – ECA, Lei N.º 8.069/ 1990), dos idosos (Estatuto do Idoso, Lei N.°
10.741/2003) e das pessoas com deficiência (Decreto Nº 3.298/1999, alterado pelo Decreto Nº
5.296/2004).
________________, em _____/ ________/ __________.
____________________________________________________
Sujeito da pesquisa
_______________________________________________
Pesquisadora responsável
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O critério de seleção das categorias desta tabela foi inspirado nos requisitos avaliados pela dupla de estágio,
para a seleção das participantes, bem como no que avaliei ser relevante para o presente estudo. Este quadro não
tem a pretensão de aprofundar-se conceitualmente em tais categorias. Mas sim, dar um panorama, mesmo que
superficial, da diversidade das participantes do grupo e de como as mesmas se declaram e se percebem.
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