DISSERTAÇÃO Daniella Sotero de Barros Pinangé PDF

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UNIVERSIDADE FEDERAL DE PERNAMBUCO

CENTRO DE FILOSOFIA E CIÊNCIAS HUMANAS


DEPARTAMENTO DE PSICOLOGIA
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM PSICOLOGIA

DANIELLA SOTERO DE BARROS PINANGÉ

ARTETERAPIA “ENTRE MULHERES”: por outras possibilidades de expressão e


elaboração de sofrimento(s)

Recife
2018
DANIELLA SOTERO DE BARROS PINANGÉ

ARTETERAPIA “ENTRE MULHERES”: por outras possibilidades de expressão e


elaboração de sofrimento(s)

Dissertação apresentada ao Programa de Pós-


Graduação em Psicologia da Universidade
Federal de Pernambuco, como requisito parcial
para a obtenção do título de Mestre em
Psicologia.

Área de concentração: Psicologia.

Orientador: Profª. Drª. Jaileila de Araújo Menezes.

Recife
2018
Catalogação na fonte
Bibliotecária Maria do Carmo de Paiva, CRB4-1291

P645a Pinangé, Daniella Sotero de Barros.


Arteterapia “entre mulheres” : por outras possibilidades de expressão e
elaboração de sofrimento / Daniella Sotero de Barros Pinangé. – 2018.
102 f. : il. ; 30 cm.

Orientadora: Profª. Drª. Jaileila de Araújo Menezes.


Dissertação (mestrado) - Universidade Federal de Pernambuco, CFCH.
Programa de Pós-Graduação em Psicologia, Recife, 2018.
Inclui referências, apêndices e anexos.

1. Psicologia. 2. Saúde mental. 3. Sofrimento – Aspectos psíquicos. 4.


Arteterapia. 5. Feminismo. I. Menezes, Jaileila de Araújo (Orientadora). II. Título

150 CDD (22. ed.) UFPE (BCFCH2019-118)


DANIELLA SOTERO DE BARROS PINANGÉ

ARTETERAPIA “ENTRE MULHERES”: por outras possibilidades de expressão e


elaboração de sofrimento(s)

Dissertação apresentada ao Programa de Pós-


Graduação em Psicologia da Universidade
Federal de Pernambuco, como requisito
parcial para a obtenção do título de Mestre
em Psicologia.

Aprovada em: 28 / 06 / 2018 (data da defesa)

BANCA EXAMINADORA:

________________________________________
Profª. Drª. Jaileila de Araújo Menezes (Orientadora)
Universidade Federal de Pernambuco

________________________________________
Profª. Drª. Karla Galvão Adrião (Examinadora interna)
Universidade Federal de Pernambuco

________________________________________
Profª. Dr.ª Ana Lúcia Francisco (Examinadora Externa)
Universidade Católica de Pernambuco

________________________________________
Andréa Graupen (Parecerista técnica)
Traços Estudos em Arteterapia
Dedico este trabalho à todas as mulheres - todas elas.
AGRADECIMENTOS

“Primeiramente...”, agradeço à energia vital (que as pessoas costumam chamar de


Deus), que me alimentou de força, coragem e perseverança para trilhar esse caminho
turbulento e fecundo.
Ao Programa de Pós-Graduação em Psicologia da Universidade Federal de
Pernambuco pela oportunidade de trocar conhecimento e crescer enquanto pessoa e
profissional. À Fundação de Amparo à Ciência e Tecnologia de Pernambuco (FACEPE), pela
aposta em meu estudo e apoio financeiro.
À minha orientadora, Jaileila, por ter sido chão-guia: pela paciência, pela
sensibilidade, pela água de coco e caminhada no campus da UFPE num dia difícil. Pelo
respeito, pelo afeto, pelo óleo essencial de gerânio, pelos ensinamentos e, sobretudo, por ter
acreditado em mim quando eu mesma estava tendo dificuldade.
Ao GEPCOL, por me introduzir às leituras sobre feminismo decolonial, o qual me fez
tanto sentido. Pelas trocas tão ricas e pelos momentos de descontração.
À mamãe, pela coragem de ser essa mulher real que ela é, me mostrando a liberdade
de que também posso buscar ser quem eu quiser e puder. Por todo o amor e cuidado, pela
água de flor de laranjeira. Sem ela eu não seria.
Aos meus irmãos, por me darem tanto orgulho. A Teta, por me mostrar que quando a
gente decide mudar ou seguir algo que deseja, a gente busca força dentro de si. A Diedinho,
por ser meu respiro, ser meu melhor amigo e por ser um lugar seguro no mundo.
À família Sotero, especialmente Tia Nilza, minha segunda mãe, pelo apoio
incondicional, desde que me entendo por gente. A Bárbara, pelas trocas diárias de memes e
mensagens de incentivo nas horas de aperreio. A Belinha, pelos desabafos, risadas e,
sobretudo, pela melhor playlist para estudar.
Aos meus professores e colegas de mestrado, por tantas trocas, provocações e
companheirismo. A Giovana (presente do mestrado), por segurar na minha mão e estar
comigo nos momentos de angústia e crises de riso. A Bruno, pelo teto-colo durante boa parte
da escrita. A Adelle, pela força de mulher que ela me mostrou ter. A Gabi, pelo gigante afeto
e por apostar em mim, me incentivando tanto.
Às mulheres participantes do grupo, por aceitarem fazer parte da minha pesquisa. Pela
oportunidade de dividir vida com elas, por seguirem comigo, em mim. Pelas lágrimas, pelos
sorrisos e abraços, pelo mergulho profundo compartilhado. Por nutrir comigo gritos e
silêncios de cor.
A Karla e Drica, por me acolherem com tanto carinho no grupo arteterapêutico. Pela
tamanha disponibilidade, cuidado e competência; pela responsabilidade sensível e
profissionalismo humanizado; e, sobretudo, pela presença, pois elas estavam ‘inteiras o tempo
inteiro’, sendo testemunhas e cúmplices.
A Deca, pelo colo no olhar, sem precisar dizer nada. Pelas milhões de indicações de
leituras potentes (e por me apresentar Grada Kilomba!). Por ser a arteterapeuta-inspiração que
ela é pra mim.
A Mari Borelli, por ter sido mais do que uma revisora, ter sido uma torcedora, amiga e
por ter me fortalecido tanto, principalmente na reta final - quando mais precisei.
A Ana, Nanda, Rá, Edna e Aida: minhas amigas, companheiras e sócias da Entrelaços.
Por tanta potência, acolhimento, carinho, troca. Pelo fôlego que me dão e são; pelo óleo de
alecrim, que tanto me ajudou.
A Carol, pelos tantos anos de amor e por ser a maior encorajadora na minha busca em
enfrentar e acolher minha sombra.
Aos amigos que tenho na vida. A Teresa, por ser minha dose diária de força. A Mari,
por me mostrar a liberdade de ser. A Heitor, pela cumplicidade, sobretudo por ter me ajudado
a acordar para fazer a prova da seleção do mestrado. A Robertinha, por tanta troca simbólica
(tanta, que só ela vai entender). A Lara, Camila, Brandão, Caio e Lucas, pelas cervejas e
dançadas de funk. A Arthur, pelo braço estendido antes mesmo de eu pedir. A Diogo, por ter
sido tão companheiro, me incentivando tantos anos, pelo carinho e cuidado que seguimos
tendo um pelo outro. A André e Richard, pelas madrugadas fecundas e pulsantes, pela
profundidade de conversas gritantes e silenciosas. A Denizá, pela surpresa de uma amizade
recente e por tantas ideias que temos pra pôr em prática. À trupe do barulho (Edgar, Clari,
Mari, Louzão e Pedrada) pela presença carinhosa constante durante todo o percurso e por me
ensinarem que tem hora pra tudo.
Às músicas, poesia e à arte como um todo, pois sem esse alimento-combustível nada
disso faria sentido. E, por fim, a tudo e a todos que não citei aqui (não por falta de desejo),
mas por motivos de “preciso terminar essa parte antes que vire outra dissertação”, por tecer
comigo esta jornada torta e linda.
RESUMO

A Lei 8080/90 do Ministério da Saúde objetiva prestar assistência psiquiátrica visando


a integralidade e singularidade dos/as usuários/a (BRASIL, 1990). Isto alia o tratamento
medicamentoso à participação coletiva, possibilitando ao/à usuário/à se perceber enquanto
sujeito ativo e de direitos A partir dessa ampliação, o trabalho arteterapêutico, substanciado
por Philippini (2013), possibilita que conteúdos desconhecidos possam chegar à consciência,
influenciando a estruturação da personalidade e subjetividade. O objetivo geral deste estudo
foi compreender as possíveis contribuições da Arteterapia, conforme a abordagem junguiana,
para expressão e elaboração de sofrimento psíquico de mulheres acolhidas no grupo “Entre
Mulheres: histórias e tecituras de corpos e desejos pulsantes”. Especificamente, identificar e
analisar os sentidos construídos por mulheres acolhidas nesse grupo às suas experiências de
sofrimento; investigar os sentidos construídos por essas mulheres às suas experiências de
silenciamento; e analisar os deslocamentos subjetivos produzidos acerca das suas experiências
de silenciamento e sofrimento. O plano epistêmico-metodológico, sustentado por Paulon
(2005), baseou-se na pesquisa-intervenção; e a inserção no campo, sob a ótica de Minayo
(2011), ocorreu a partir de observação participante. O corpus analisado constituiu-se pelas
produções plásticas e pelo diário de campo da pesquisadora, organizando-se através da
inspiração na análise temática, a partir de três eixos. O tema trabalhado no grupo
arteterapêutico perpassou a questão da condição de ser mulher a partir do cuidado com o
“corpo casa” - diante do processo de integração da sombra, seguindo a ideia de Jung (2008).
Finalmente entendeu-se que o processo arteterapêutico realizado com as mulheres possibilitou
a expressão; a tomada de consciência de conteúdos subjetivos causadores de sofrimento, sua
elaboração e transformação, ultrapassando o caminho hegemônico da fala.

Palavras-chave: Arteterapia. Feminismo Decolonial. Saúde Mental. Sofrimento Psíquico.


ABSTRACT

The goal of law 8080/90 from Ministry of Healthy is to provide psiquiatric assistence
to people, aiming their integrity and singularity. It combines drug treatment with collective
participation, enabling the users to perceive themselves as subjects active and of rights. From
this combination, the art therapeutic work, substantiated by Philippini (2013), allows that
unknown contents can arrive at the conscience, influencing the structuring of the personality
and subjectivity. The main objective of this work was to understand the possible contributions
of Art Therapy, according with Jungian approach, for the expression and elaboration of
psychic suffering of women housed in the group "Among Women: Stories and tetitions of
bodies and pulsing desires”. Specifically, identify and analyze the feelings built by women to
their experiences of suffering; investigate the senses built for those women in their
experiences of silencing and analyze the subjective displacements about their experiences of
silencing and suffering. The epistemic-methodological plan, supported by Paulon (2005), was
based on a research-intervention; and the insertion in the field, from the perspective of
Minayo (2011), occurred from participant observation. The corpus analyzed consisted of the
plastic productions and the researche’s field notes, being organized based on thematic analysis
from three axes. The subject worked on the art therapeutic group crossed the question of the
condition of being a woman from the care of the body/house - in front of the process of
integration of the shadow, following Jung´s idea (2008). Finally, it was understood that the
anatomical process performed with women made possible the expression; the awareness of
subjective contente, causers of suffering, its elaboration and transformation, surpassing the
hegemonic path of speech.

Keywords: Art therapy. Decolonial feminism. Mental health. Psiquic Suffering.


LISTA DE FIGURAS

Figura 1 – Produção do corpo e seu entorno de Borboleta ........................... 64


Figura 2 – Destaque do corpo produzido por Borboleta................................ 64
Figura 3 – Destaque da frase do corpo produzido por Borboleta.................. 65
Figura 4 – Produção do corpo e seu entorno de Girassol............................... 66
Figura 5 – Destaque do corpo produzido por Girassol.................................. 67
Figura 6 – Destaque da produção do corpo feita por Ana: flor na garganta
escrito “dor”.................................................................................. 70
Figura 7 – Destaque da produção do corpo e seu entorno, feita por Flora:
“vazio, silêncio”............................................................................ 71
Figura 8 – Destaque da produção do corpo feita por
Soledade........................................................................................ 71
Figura 9 – Produção da casa, feita por Flora.................................................. 75
Figura 10 – Sol deitada na produção do seu corpo.......................................... 75
Figura 11 – Primeira parte da produção “integração de luz e sombra” de
Sol................................................................................................. 76
Figura 12 – Segunda parte da produção “integração de luz e sombra” de
Sol................................................................................................. 77
Figura 13 – Máscara produzida por Girassol................................................... 78
Figura 14 – Jacques Arago: “Escrava Anastácia”, 1817-18............................ 79
Figura 15 – Rosto de argila e máscara feita por Mar....................................... 81
Figura 16 – Imagem de Sofia após intervenção com carvão........................... 82
Figura 17 – Corpo produzido por Lakshimi..................................................... 83
Figura 18 – Construção coletiva das produções das casas das participantes
conectadas por linha..................................................................... 85
Figura 19 – Destaque da produção do corpo e entorno de Ana....................... 86
SUMÁRIO

1 INTRODUÇÃO .............................................................................................. 12
2 FUNDAMENTAÇÃO TEÓRICA ................................................................ 17
2.1 LOUCURA, SAÚDE MENTAL E O PROCESSO DE
DESINSTITUCIONALIZAÇÃO ..................................................................... 17
2.2 ARTE ENQUANTO FERRAMENTA TERAPÊUTICA: DO ENFORMAR
E INFORMAR AO TRANSFORMAR ............................................................. 21
2.3 ARTETERAPIA, FEMINISMOS E DECOLONIALIDADE: TECENDO
FIOS DE ENFRENTAMENTO À VIOLÊNCIA EPISTÊMICA .................... 28
3 OBJETIVOS ................................................................................................... 35
3.1 OBJETIVO GERAL......................................................................................... 35
3.2 OBJETIVOS ESPECÍFICOS............................................................................ 35
4 METODOLÓGIA ……………………………………….............................. 36
4.1 TERRENO METODOLÓGICO……………………………........................... 36
4.2 PASSOS METODOLÓGICOS......................................................................... 38
4.3 CAMINHO DE ANÁLISE .............................................................................. 41
4.4 ASPECTOS ÉTICOS........................................................................................ 44
4.4.1 Riscos e benefícios .......................................................................................... 44
4.5 CONTEXTUALIZANDO O CAMPO ............................................................. 45
4.5.1 Encontros arteterapêuticos ............................................................................ 49
4.5.1.1 Primeiro encontro.............................................................................................. 50
4.5.1.2 Segundo encontro.............................................................................................. 51
4.5.1.3 Terceiro encontro.............................................................................................. 52
4.5.1.4 Quarto encontro................................................................................................. 53
4.5.1.5 Quinto encontro................................................................................................. 53
4.5.1.6 Sexto encontro................................................................................................... 55
4.5.1.7 Sétimo encontro................................................................................................. 56
4.5.1.8 Oitavo encontro................................................................................................. 57
5 ADENTRANDO O TERRENO DE ANÁLISE............................................ 60
5.1 SENTIDOS CONSTRUÍDOS POR MULHERES ACOLHIDAS NO
GRUPO “ENTRE MULHERES” ÀS SUAS EXPERIÊNCIAS DE
SOFRIMENTO............................................................................................... 61
5.2 SENTIDOS CONSTRUÍDOS POR MULHERES ACOLHIDAS NO
GRUPO “ENTRE MULHERES” ÀS SUAS EXPERIÊNCIAS DE
SILENCIAMENTO........................................................................................ 68
5.3 DESLOCAMENTOS SUBJETIVOS PRODUZIDOS ACERCA DAS
EXPERIÊNCIAS DE SILENCIAMENTO E SOFRIMENTO DAS
MULHERES ACOLHIDAS NO GRUPO “ENTRE MULHERES”, A
PARTIR DO PROCESSO ARTETERAPÊUTICO........................................ 73
6 CONSIDERAÇÕES FINAIS........................................................................ 87
REFERÊNCIAS............................................................................................. 91
APÊNDICE A – TERMO DE CONSENTIMENTO LIVRE E
ESCLARECIDO.............................................................................................. 96
APÊNDICE B – ROTEIRO PARA A OBSERVAÇÃO.............................. 98
APÊNDICE C – TERMO DE AUTORIZAÇÃO DE USO DE IMAGEM
E DEPOIMENTO........................................................................................... 99
ANEXO A – CONVITE DO GRUPO ARTETERAPÊUTICO “ENTRE
MULHERES”.................................................................................................. 100
ANEXO B – QUADRO DE IDENTIFICAÇÃO/APRESENTAÇÃO
DAS PARTICIPANTES DO GRUPO........................................................... 101
ANEXO C – DESENHOS CRIADOS PELA ARTISTA E
TATUADORA NATHALIA QUEIROZ ESPECIALMENTE PARA AS
MULHERES DO GRUPO “ENTRE MULHERES” TATUAREM........... 102
12

1 INTRODUÇÃO

Começo o presente estudo a partir de mim mesma. O que quero dizer com isso? Quero
dizer que antes de trazer as referências bibliográficas e chegar em minha pergunta de
pesquisa, penso ser necessário e coerente me apresentar, situando meu lugar de fala. Eu sou
mulher, jovem, branca, classe média, natural do Recife, psicóloga, arteterapeuta, adoro dançar
e misturar doce com salgado. Quando concluí a graduação em Psicologia, fazer mestrado não
estava nos planos, visto que eu me incomodava com certas questões: sentia que queria um
pouco mais de liberdade e sentia a academia como sendo o lugar “só” de pensar, onde a
palavra (perfeitamente bem articulada, diga-se de passagem) é a forma preconizada. Assim,
quando percebi tais inquietações, passei a buscar outras formas de poder expressar, ser e estar
no mundo. Nessa busca acabei encontrando a Arteterapia em meu trajeto, a qual me abriu
possibilidades diversas.
Em minha experiência profissional pude provocar e ser provocada a partir do contato
com usuários(as) de serviços que lançavam mão da Arteterapia, utilizando a arte enquanto
recurso expressivo – através da qual conteúdos subjetivos ultrapassavam o caminho exclusivo
da palavra e eram expressos, significados e ressignificados a partir das diversas
possibilidades. Muitas pessoas traziam o desejo de expressar algo que estavam sentindo, mas
que, por vezes não o sabiam fazer através das palavras. Chegando no mestrado, fui me
aproximando da discussão feminista, sobretudo a partir da perspectiva decolonial1 - que vem
questionar o que está posto e propor, apontar um caminho de desconstrução do saber
colonizado.
Durante toda a produção desse estudo e tempo do mestrado, me questionei muito sobre
o por que continuar, já que era algo que me fazia entrar em contato com vários fantasmas e
medos - foi um processo extremamente doloroso. Então por que eu escolhi fazer mestrado?
Por que, mesmo com tanto sofrimento, escolhi ir até o fim, mesmo tendo entendido que eu
tinha medo da escrita? Porque eu precisava resistir e ocupar esse espaço. Aproximar o
estranhamento da produção acadêmica com a familiaridade do terreno da arte me fez sentido:
a busca pelo encontro da arte com a academia.
A escolha de iniciar este texto por mim encontra terreno na epistemologia feminista e,

1 Não é um consenso no campo o uso dos termos “decolonial” ou “descolonial”. Utilizo o termo “decolonial” por
compreender que se trata de uma luta constante contra a colonialidade do poder e do saber; e, assim, não
pressupor a ‘descolonização’, que seria a superação do colonialismo. No entanto, algumas autoras que utilizo
usam o termo “descolonial” (LUGONES, 2014; COSTA 2014) e assim o utilizarei quando discorrer sobre as
mesmas.
13

corroborando com essa questão, Scott (1999) fala da não neutralidade do(a) pesquisador(a),
isto é, que a própria historicização da minha experiência enquanto pesquisadora se faz
importante. Da mesma maneira, a categoria que escolho analisar não está isenta dessa
historicidade. Em entrevista, Michelle Fine situa reflexividade como a atitude de refletir sobre
“quem sou eu” e “por que estou fazendo estas ou aquelas perguntas”, ou seja, pensar
profundamente quem sou eu na pesquisa (ADRIÃO, 2015). É válido situar que durante o
texto houve flexão dos pronomes pessoais: ora falo em primeira pessoa do singular (quando
parto de minha experiência e posicionamento), ora no plural (entendendo que minha
orientadora fala comigo), ora em terceira pessoa (ao narrar aspectos teóricos e descritivos).
É importante destacar que o terreno da Psicologia Social vem abrindo espaço para os
paradoxos e singularidades, não se atendo apenas às abstrações gerais da Ciência. É possível
perceber isso, por exemplo, na maneira como a revista Psicologia & Sociedade, que reúne
produções acadêmicas da Associação Brasileira de Psicologia Social (ABRAPSO), abrange
vozes minoritárias, trazendo uma proposta diferente de tudo o que vinha sendo hegemônico
na psicologia tradicional. De acordo com um estudo realizado acerca de trabalhos publicados
na referida revista, nos últimos trinta anos, a academia vem produzindo cada vez mais estudos
envolvendo Arte e Campo Social. Isto ocorre devido à mudança de perspectiva no que
concerne a ideia de produção de conhecimento e modo de conceber a ciência: abrindo espaço
para uma nova Psicologia. Amplia-se o entendimento acerca do pensamento - sendo ele
pertencente não apenas à esfera da filosofia, mas de distintos tipos de saber, inclusive da arte.
(COSTA, ZANELLA, FONSECA, 2016).
O marcador de gênero se fez presente em minha inquietação na medida em que pude
observar (e sentir, enquanto mulher), sofrimento diante deste lugar de silenciamento em que
as/nós mulheres foram/fomos, historicamente, postas. Zanello, Fiuza e Costa (2015)
corroboram nesse quesito, em um estudo onde se buscou identificar os principais pontos
trazidos por mulheres enquanto geradores de sofrimento psíquico. Tais questões estavam,
sobretudo, relacionadas à maternagem, ao âmbito doméstico e ao lugar de silenciamento em
que as mulheres se viam, segundo as participantes deste estudo. O tema “silêncio” apareceu
em 100% das entrevistas desta pesquisa, com sentidos distintos, sendo o principal (em 85,7%
das respostas) a condição da existência enquanto mulher e o consequente caminho de
sofrimento/adoecimento.
Em meu percurso na clínica em psicologia pude observar como o desejo de expressão
por parte de mulheres e a falta de espaços para tal pode causar dor e sofrimento. Pude
perceber, ainda, como muitas acabam, por vezes, lançando mão da arte enquanto caminho de
14

resistência e criação de espaços de fala. Trago aqui um breve recorte de um caso que penso
ilustrar o que acabo de dizer e que corrobora com a inquietação que me trouxe a esse estudo.
Uma mulher branca, de classe média, que trabalha com cinema: ela ao longo do seu processo
psicoterapêutico trouxe, por vezes, a dor que sentia diante da dificuldade de encontrar espaços
de fala e de como foi se utilizando do cinema enquanto veículo para tal. Trouxe, em algumas
ocasiões, o cansaço diante de ainda assim sentir ser difícil adentrar nesse terreno, tendo
algumas dificuldades em ter seus trabalhos aceitos em editais e festivais de cinema. Ao
mesmo tempo em que relatava dor, sofrimento, cansaço (e de algumas vezes questionar a
possibilidade de desistir), ela trazia também o desejo de resistir e ocupar os lugares que queria
- e se expressar - criando, para além de “filmes-denúncia”2, meios de os expor, mesmo
quando não aceitos em tais festivais e editais. Sua inquietação perante a falta de espaços para
que as mulheres se expressassem foi mola propulsora para criar condições de fala às demais
(sobretudo as que se encontram em condições de menos ou nenhum privilégio, como as
negras, pobres e encarceradas, por exemplo), convidando-as para falar com ela - seja em
debates sobre os filmes, seja para protagonizá-los em cena e/ou na criação de roteiro.
Assim, entendendo que esse desejo de expressão não passa apenas pelo caminho da
palavra e voltando para a questão da Arteterapia enquanto um espaço propício para tal,
Maciel e Carneiro (2012) contribuem com a presente pesquisa quando defendem que a
psicoterapia “clássica” vem se deparando com alguns limites, especialmente no que tange ao
trabalho com crianças, pessoas portadoras de deficiências mentais ou, ainda, pessoas que
tenham dificuldade (ou até são impossibilitadas fisicamente, como no caso de mudez) de se
expressar verbalmente. Assim, elas apontam para a importância de se criar novas
possibilidades de comunicação - que não dependam exclusivamente do discurso, da fala -
como uma forma de facilitar o acesso ao universo simbólico e imaginário.
As culturas nortecêntricas e sua linguagem marcada pelo discurso (sobretudo)
masculino é denunciada por Anzaldúa (2009), quando a mesma aponta para a primazia do
discurso enquanto linguagem expressa em palavras, bem como para a questão da desigualdade
de gênero. Historicamente a mulher teve dificuldades e poucos espaços de fala. Segundo
Michelle Perrot (2005), a mulher não gozava de lugar nos espaços públicos. Os espaços destas
se restringiam à esfera privada e seus registros de fala e escrita estavam circunscritos ao lar.
Suas (nossas) falas eram passadas de geração em geração e seus (nossos) registros escritos

2 Me refiro aos seus roteiros como “filmes-denúncia”, pois ela tinha como forte motivação em seus trabalhos, a
busca por denunciar silenciamentos, opressão e condições de invisibilidades de pessoas marginalizadas
socialmente.
15

(geralmente em seus/nossos diários) eram os que lhes (nos) era possível.


Spivak (2012) afirma que estudos que propõem se situar no terreno pós-
colonial/decolonial precisam refletir sobre a questão da subalternidade. Para ela, “Subalterno”
se refere às camadas sociais que estão excluídas e marginalizadas no que tange à
representação política e legal dominante. Esta autora é ainda mais enfática quando traz a
subalternidade somada à questões de gênero. Ou seja, se o discurso do subalterno é
negligenciado, o da mulher subalterna é ainda mais. Desta forma, é importante destacar nosso
posicionamento e escolha por incluir também autoras (sobretudo mulheres) em nossa pesquisa
que não sejam, necessariamente, hegemônicas.
Podemos dizer que o presente estudo se propôs, dentre outros objetivos destrinchados
a seguir, a refletir sobre as possíveis contribuições que a Arteterapia pode trazer para que
mulheres possam quebrar possíveis silenciamentos, expressando e elaborando sofrimento(s).
Lopes (2012), em seu livro “Memórias da pele: arteterapia como intervenção na depressão”,
discorre acerca da vida psíquica feminina em sofrimento, sendo explorada e transformada
através da ação criativa: “O desbloqueio da força criadora contribuiu para estabilizar a tensão
psíquica causada pela depressão, ampliando a consciência em relação a aspectos da
personalidade” (p. 174). E, ainda, sobre a potência do grupo arteterapêutico realizado com
mulheres, a autora conclui: “Uma vez atravessado o pântano, o caminho segue por um terreno
de consolidação de novos hábitos. O grupo de mulheres se percebe agora mais vibrante,
criativo e atuante frente às escolhas da vida” (p. 165).
O caminho do autoconhecimento favorece o fortalecimento da autoconfiança para as
mulheres serem e estarem no mundo, lhes dando mais coragem para ocupar os espaços que
desejarem (inclusive seus próprios corpos). Em que medida, então, o trabalho com
Arteterapia, para além do seu caráter terapêutico, não é também uma ferramenta de
resistência?
Assim, este estudo pretende reivindicar o espaço de outras formas de expressão (a
partir da Arteterapia), como possibilidade de criar condições de mulheres falarem em outras
modalidades linguísticas e elaborarem seu sofrimento, por vezes silenciado. Tem como
objetivo geral compreender as possíveis contribuições da Arteterapia na expressão e
elaboração de sofrimento psíquico de mulheres acolhidas no grupo “Entre Mulheres: histórias
e tessituras de corpos e desejos pulsantes”. Como específicos: 1) identificar e analisar os
sentidos construídos por mulheres acolhidas no grupo Entre Mulheres, às suas experiências de
sofrimento; 2) investigar os sentidos construídos por mulheres acolhidas no grupo “Entre
Mulheres”, às suas experiências de silenciamento; 3) analisar os deslocamentos subjetivos
16

produzidos acerca das experiências de silenciamento e sofrimento das mulheres acolhidas no


grupo “Entre Mulheres”, a partir do processo arteterapêutico.
O percurso trilhado nesse texto iniciou com as referências teóricas acerca da esfera da
Saúde Mental e Processo de Desinstitucionalização; Arteterapia; e Feminismo Decolonial. Em
seguida, traçamos um diálogo entre esses três eixos teóricos, apresentando um desenho do que
se pretendeu discutir, bem como os objetivos aqui propostos. Depois, no campo
metodológico, temos: 1) o aporte epistêmico-metodológico com o qual trabalhamos nesta
pesquisa; 2) os passos metodológicos, onde discorremos a respeito de como me inseri no
campo e como o mesmo se deu; e 3) o caminho de análise, onde explicitamos a forma como
organizei e me debrucei no material a ser analisado/discutido. A análise foi dividida em três
eixos, tendo como base os objetivos já mencionados desta pesquisa. Por fim, trazemos as
considerações finais.
17

2 FUNDAMENTAÇÃO TEÓRICA

Este capítulo versará sobre as questões teóricas que baseiam e dão suporte a esta
pesquisa. Primeiramente, discorrerei sobre o processo de desinstitucionalização da saúde
mental, como contraponto à lógica biomédica e hospitalocêntrica, que manteve o foco na
doença mental e não na integralidade dos sujeitos. O processo de desinstitucionalização
oferece possibilidades para uso de práticas de cuidado que não somente as tradicionais, como
a Arteterapia, sobre a qual discorrerei no tópico posterior. Nesse sentido, viso contextualizar e
apresentar a Arteterapia como ferramenta terapêutica, assim como seus possíveis efeitos de
transformação de sentidos e sujeitos. Por fim, busco relacionar a Arteterapia com os
feminismos e a perspectiva decolonial, diálogo este que tem como objetivo o enfrentamento
da violência epistêmica no processo de construção de conhecimento.

2.1 LOUCURA, SAÚDE MENTAL E O PROCESSO DE DESINSTITUCIONALIZAÇÃO

Em meados do século XX deu-se início uma crise do Paradigma da Ciência Moderna,


no qual a mesma passou a ser questionada (FERREIRA, CALVOSO, GONZALES, 2002). É
nesse contexto de rupturas e mudanças que o campo da saúde mental passa por
transformações e que se dá o surgimento da Psiquiatria. A loucura era assunto dos filósofos e
a influência da religião em sua concepção era forte, visto que se entendia que a pessoa
acometida pela loucura era alguém possuído por demônios. Ou seja, a loucura pertencia ao
âmbito do sobrenatural (PAIN, 2009).
No século XVII, o Rei da França cria o Hospital Geral que, de acordo com Foucault
(2009) – o qual também denomina esse momento como “A Grande Internação” - foi de
extrema influência no que tange ao deslocamento do lugar da loucura e do louco na sociedade
ocidental, onde o hospital passa a ter a função de controle social. De acordo com Amarante
(1996), diante da possibilidade de os médicos realizarem um acompanhamento sistemático
das pessoas internadas no hospital, os mesmos passaram a assumi-lo, transformando-o em
uma instituição médica. Este acompanhamento permitiu que os médicos agrupassem as
doenças, classificando e produzindo um saber sobre elas baseado no modelo epistemológico
das ciências naturais.
É importante perceber que, na medida em que a instituição hospitalar muda, o conceito
e o lugar da loucura na sociedade também passam por transformações, numa relação dialética.
Amarante (2007) conclui, dessa maneira, que este saber médico sobre as doenças,
18

possibilitado pela apropriação do hospital, era um saber sobre uma doença institucionalizada.
Ou seja, a mesma era analisada de forma isolada, em estado puro (como nas ciências
naturais), sendo assim uma doença manipulada, produzida e transformada pela própria
intervenção médica.
Essa institucionalização da doença é protagonizada pelo médico Phillippe Pinel3, que
ficou conhecido como o pai da psiquiatria, sucessora do Alienismo, ciência pioneira a tratar
da questão dos transtornos mentais.
Pinel consolidou o conceito de alienação mental e a profissão do alienista, que
entendia a loucura como um distúrbio das paixões, o qual desequilibra a harmonia da mente e
impossibilita o indivíduo de perceber a realidade de forma objetiva. No sentido comum do
termo, “alienação” é estar fora da realidade, fora de si, fora do mundo, é estar sem
autocontrole. Desta forma, o alienado era visto como alguém que representava periculosidade
para a sociedade (AMARANTE, 2007). Pinel compreende que a alienação é responsável pela
destituição da liberdade e que sua causa estava no convívio com o meio social. Assim, em sua
concepção, para que o alienado pudesse ter de volta sua liberdade, ele precisava se submeter a
um tratamento - moral - e, embora ele tenha tirado as correntes dos internos, os mesmos
deveriam permanecer asilados, em completo isolamento desta sociedade (AMARANTE,
2007).
Amarante (2007) afirma que no período pós Segunda Guerra Mundial surgem os
questionamentos acerca da solidariedade e crueldade humana. A atenção se volta para a
qualidade do acolhimento das pessoas internadas nos hospitais psiquiátricos. Somado a este
fator, os hospitais se encontravam cada vez mais lotados e a qualidade dos atendimentos cada
vez piores - o que corroborou para o enfraquecimento da credibilidade nestas instituições.
Trata-se do primeiro movimento em direção às reformas psiquiátricas.
Cada vez mais o fortalecimento da luta pela cidadania foi direcionando o olhar e a
atenção para o doente mental (alienado) que era desprovido de direitos (jurídicos, políticos e
civis), o que o tornava um ‘não-cidadão’. Entretanto, os movimentos que defendiam a
desinstitucionalização que surgiram nesse período de reforma, não foram homogêneos.
Amarante (1996) descreve três momentos desse processo que serão destacados a seguir: a
desinstitucionalização como desospitalização, como desassistência e como desconstrução.
A noção de desinstitucionalização surge nos Estados Unidos da América (EUA)
através do Plano de Saúde Mental do Governo Kennedy. Nesse primeiro momento, a

3
Participante ativo do movimento da Revolução Francesa - marcada por transformações econômicas, sociais e
políticas - que influenciou a medicina e o campo da saúde.
19

desinstitucionalização é organizada em torno da desospitalização, visto que não critica o


paradigma psiquiátrico (enquanto saber), mas sim o seu sistema hospitalocêntrico. A partir
deste ponto de vista, não é o sistema e o saber psiquiátrico que está em questão, mas o seu uso
e arranjo inadequado. Desta forma, este momento da reforma consiste no rearranjo
administrativo e no uso “correto” das técnicas e saberes psiquiátricos.
A noção de desinstitucionalização enquanto desassistência surgiu a partir de uma
tendência que se opôs ao movimento da reforma, por entender que se tratava do simples
esvaziamento dos hospitais, sem, contudo, oferecer serviços substitutivos, deixando de prestar
a assistência necessária.
O paradigma da ciência moderna e sua lógica positivista de causa e efeito começa a
ser questionado e, concomitantemente, ganha força a crítica epistemológica ao saber médico.
Tal desinstitucionalização como desconstrução, como uma fase de transição e rupturas,
influenciou o Movimento pela Reforma Psiquiátrica brasileira e teve forte influência das
ideias do psiquiatra italiano Franco Basaglia.
Segundo Barros (1994), em 1961 esse movimento de reforma ganhou força e
visibilidade com a transformação dos hospitais psiquiátricos de Gorizia e Trieste, ambas
protagonizadas por Basaglia. O processo de desinstitucionalização revelou o hospital como
sendo o local que legitima e é legitimado pelo saber psiquiátrico e assim sendo, sua
transformação e desconstrução se faz necessária, embora seu alcance tenha repercussão para
além dos muros hospitalares.
Esta mesma autora, ao trazer que o processo de desinstitucionalização como
desconstrução vai para além da transformação dos hospitais, afirma que Basaglia questionava
o fato de que a psiquiatria sempre colocou o homem entre parênteses preocupando-se
“apenas” da doença. Ele inverte essa ordem colocando a doença entre parênteses e se voltando
para o sujeito em sua integralidade. A preocupação, assim, para além dos muros dos
manicômios, era com o lugar da doença mental e da loucura na sociedade. Trata-se, desta
forma, de “desinstitucionalizar a doença mental e os aparatos que a sustentam, começando
pelo paradigma problema-solução” (BARROS, 1994, p. 190).
Deste modo, o lugar da doença mental na sociedade, a lógica biomédica da doença
mental e o tratamento diante da crise passam por mudanças. Passa-se a entender que a crise (e
seu tratamento) não decorre exclusivamente da doença, de forma isolada, mas sim de uma
complexidade de fatores e atores que fazem parte da experiência e história do sujeito. Assim,
é necessário um serviço de atenção psicossocial para dar conta de tal complexidade. Nesse
20

tipo de serviço, a relação deixa de ser médico-doença e se passa a voltar a atenção para uma
rede de relações entre sujeitos (AMARANTE, 2007).
Com a criação dos Centros de Atenção Psicossocial (CAPS), o Ministério da Saúde,
através da Lei nº 8080/90 (BRASIL, 1990), define uma nova política de atenção à saúde, com
o objetivo de prestar assistência psiquiátrica de forma mais ampla, visando a integralidade e
singularidade dos usuários - rompendo com o modelo hospitalocêntrico e o foco na doença.
Ou seja, o cuidado oferecido nos CAPS alia o tratamento medicamentoso com a troca e
construção coletiva, que possibilita o usuário se perceber enquanto sujeito em sua
complexidade (PEREIRA, FIRMINO, 2010).
Nesse ínterim, é importante destacar que recentemente o Ministério da Saude
desenvolveu a Política Nacional de Práticas Integrativas e Complementares (PNIPIC) como
mais um processo de implementação do Sistema Único de Saúde (SUS). A PNIPIC corrobora
com o princípio de integralidade e tem o objetivo de integrar ações e serviços do SUS, bem
como ampliar, no espaço público, possibilidades de acesso aos serviços que até então vem se
restringindo ao âmbito privado (BRASIL, 2006). A respeito do uso de recursos artísticos,
estes passam a ser utilizados nos Serviços de Saúde Mental, ancorados nas diretrizes
propostas pela lei nº 10.216/2001, que trata dos direitos de pessoas acometidas por sofrimento
mental e os tipos de assistência a elas prestadas (BRASIL, 2001). Pereira e Firmino (2010)
sinalizam a potência das oficinas e da utilização de arte como terapia, situando-os enquanto
dispositivos que podem vir a somar ao acompanhamento medicamentoso e possibilitar ruptura
com práticas de cuidados tradicionais, na medida em que tais oficinas buscam promover e
acolher o sujeito em sua integralidade, considerando aspectos psíquicos e sociais.
É importante, aqui, destacar o que estas mesmas autoras trazem a respeito do que estão
chamando de arte como terapia: trata-se da arte enquanto recurso que possibilita ao sujeito
estabelecer reflexão e construção de sentidos. Lopes (2012) realiza um trabalho relevante a
respeito do papel da arte no cuidado e atenção a pessoas em sofrimento psíquico. Em seu
estudo, o qual teve mulheres como sujeitas, a autora lança mão de recursos da arte enquanto
ferramenta terapêutica (Arteterapia), com o objetivo de intervir na depressão, tendo resultados
positivos nesse sentido. O Código de Ética do(a) profissional Psicologia afirma que a prática
desta área de conhecimento não pode ser vista como imutável, necessitando estar sempre em
reflexão, aprimoramento e diálogo com diversas áreas de conhecimento, a fim de olhar o
sujeito em sua integralidade. Assim, a aproximação e diálogo entre a Arteterapia e a
Psicologia aponta para um terreno fecundo (CONSELHO FEDERAL DE PSICOLOGIA,
2005).
21

2.2 ARTE ENQUANTO FERRAMENTA TERAPÊUTICA: DO ENFORMAR E


INFORMAR AO TRANSFORMAR

A Arteterapia e a discussão sobre a Reforma Psiquiátrica se articulam na medida em


que ambas se constituem por um convite à criação, nos seus processos constitutivos. Se
pensarmos a Reforma como inacabada, somos convidados(as) a criar uma ou várias maneiras
de cuidar. A Arteterapia e sua proposta ampla (e não rígida) no seu fazer está, assim, afinada
ao modo de cuidar preconizado pela reforma.
Dentro desse contexto, este estudo pretende discutir acerca das contribuições da
Arteterapia no cuidado de mulheres acolhidas em um grupo arteterapêutico, e, para tanto, faz-
se necessário conceituar e historicizar esta área de saber/fazer. Philippini (2013) afirma que
esta área se trata de uma confluência de muitos saberes e que a tentativa de conceituá-la é
difícil e acaba por restringi-la, dada a sua abrangência, uma vez que se trata de uma ação
holística e transdisciplinar.
Contudo, destaco uma dentre as formas possíveis de situá-la: trata-se de processo
terapêutico que se dá através da utilização de arte. É importante sinalizar que, nesse contexto,
“Arte” é entendida enquanto “Processo Expressivo”, ou seja, como um ‘expressar-se de tal
forma’ que não se está em foco a forma correta, estética ou técnica de fazer. O foco está na
livre expressão, utilizando-se das mais variadas modalidades expressivas, dando forma, cor,
volume, movimento ao que se expressa (PHILIPPINI, 2013).
A tarefa de situar historicamente e epistemologicamente a Arteterapia traz consigo a
necessidade de se voltar para a história da Arte, bem como a sua relação com a loucura
durante os tempos. A arte aparece, na história da humanidade, há cerca de 25 mil anos, na pré-
história, onde já se tem registros de pinturas nas paredes das cavernas (BARREIRA, BRASIL,
2012). É importante ressaltar que as expressões artísticas, durante todo o tempo e história da
humanidade, denunciam o contexto social, político e ideológico de cada época e cultura
(OSTROWER, 1977).
Barreira e Brasil (2012) localizam e contextualizam a arte em cada época histórica no
livro “Arteterapia e a história da arte: Técnicas expressivas e terapêuticas”. Segundo estas
autoras, é possível perceber que a arte possibilitava uma visibilidade à questões significativas
que refletiam a sociedade, seja ratificando os seus valores, seja rompendo com eles. Dessa
forma, o fluxo dos temas, técnicas utilizadas e das questões abordadas pela arte foram (e são)
bem dinâmicos, contingentes.
22

O século XX, período que compreende a Arte Moderna, foi marcado por fortes
transformações sociais e políticas refletidas e problematizadas através da arte. Nesse período,
a arte começa a ter influência de Sigmund Freud e seus estudos sobre inconsciente, passando
a dar lugar aos impulsos inconscientes e irracionais das pessoas - o que demarca um processo
importante no desenvolvimento da criatividade, rompendo com amarras e rigidez que
aprisionava a possibilidade de uma criação livre. A arte estava liberta de um produto, isto é, o
produto final vai deixando de ser o foco principal e o processo, a ideia e o ato de produzir, foi
ganhando protagonismo.
Desde as últimas décadas do século XX, a arte do período atual, Pós-Moderno,
continua refletindo e representando o contexto social, político, econômico, cultural e
ideológico. Esse movimento de constantes rupturas e representações do contexto vivido é
contínuo e não tem fim. A arte, assim como o sujeito, é contingente.
No que se refere às funções que a arte desempenhou e desempenha historicamente,
Bottom e Armstrong (2014) afirmam ser as seguintes: a) Rememoração - como forma de
preservar experiências vividas (como por exemplo as pinturas na cavernas na Pré-História); b)
Esperança - como uma maneira de lidar com as frustrações da realidade; c) A função de
ensinar o ser humano a lidar com o sofrimento; d) Reequilíbrio - que dialoga com as
necessidades e contingências de cada um e o que justifica as diferentes obras em diferentes
contextos e épocas; e) Crescimento - ao possibilitar que o ser humano se depare com
elementos novos, com os quais dificilmente teriam contato na vida cotidiana; f) Apreciação -
como um convite para o estranhamento, ressignificação e olhar atento para o mundo; e g)
Compreensão de si - uma função que possibilita o desenvolvimento do autoconhecimento,
sendo uma maneira de transmitir conteúdos para as outras pessoas, quando partilhá-los através
do discurso, por vezes, pode parecer difícil - função que dialoga diretamente com o fazer da
Arteterapia.
Desde o século XVI a arte é utilizada com os acometidos por sofrimento psíquico.
Salienta-se, a título de exemplo, dois grandes artistas que passaram por internação nos
hospitais psiquiátricos e que, através da arte, superaram o isolamento, violência e
encarceramento experienciados: o pintor Van Gogh (1853 - 1890) e o teatrólogo Antonin
Artaud (1896 - 1948). O alemão Hans Prinzhorn (1886 -1933) reuniu obras de hospitais
psiquiátricos e sanatórios da Alemanha, Áustria, Suíça, Itália, Holanda, Estados Unidos e
Japão (AMARANTE, CAMPOS, 2012). Ademais, outra experiência importante nesse
sentido, foi o trabalho desenvolvido, bem como o próprio processo pessoal em que Jung se
23

debruçou – o Livro Vermelho, por exemplo, reúne várias das ideias do mesmo que apontam
para esse diálogo com a arte (JUNG, 2016).
Nesse contexto, estes mesmos autores situam a arte como um recurso que vem sendo
utilizado para desmistificar esta relação que a sociedade estabeleceu com a loucura há muito
tempo através da psiquiatria. Ressaltam o crescimento das atividades envolvendo arte e
cultura com pessoas em experiência de sofrimento psíquico.
No Brasil, destaca-se a experiência de Nise da Silveira no Rio de Janeiro, que
incomodada com os métodos utilizados e a ênfase dada à medicalização no cuidado aos
pacientes psiquiátricos, abre espaço para o trabalho com arte. Em 1956, esta fundou a Casa
das Palmeiras – primeiro hospital-dia do país – onde atividades com arte já eram utilizadas
com as pessoas em sofrimento psíquico. Assim, as atividades nas quais os pacientes
trabalhavam livremente com desenho, pintura e modelagem eram as que mais revelavam, por
vários indícios, fenômenos enigmáticos do inconsciente (SILVEIRA, 1981). A partir da
experiência de Nise da Silveira, Amarante e Campos (2012) trazem que, ao se trabalhar com
produção plástica, o indivíduo não expressa somente a si mesmo, mas também cria algo novo.
Esta produção tem efeitos tanto na realidade psíquica, quanto na realidade compartilhada. É
nesse sentido que podemos situar a relação dialética da arte com a sociedade, em diferentes
contextos históricos.
Pain (2009) afirma que a arte só pôde ser utilizada com fins terapêuticos na medida em
que houve mudanças significativas na clínica psicoterapêutica e na visão da sociedade para
com a doença mental. É nesse contexto de transformações da sociedade e da arte e sua
consequente libertação e rompimento com a rigidez e regras impostas ao processo criativo,
que foi possível o desenvolvimento da criatividade e uma maior autonomia expressiva,
terreno fértil para a chegada da Arteterapia4.
A Arteterapia dialoga com qualquer escola artística. Destaco aqui o estilo da arte
contemporânea, visto que é a partir desse estilo que se pode abandonar a perspectiva de que a
arte precisa atender a uma expectativa de criação de um produto e que o fazer artístico deve,
impreterivelmente, ser precedido de uma ideia e planejamento. A partir desse estilo, o
processo - o “fazer arte” - ganha protagonismo e é onde reside o caráter terapêutico da arte e
onde a mesma é entendida na Arteterapia (PAIN, 2009).

4
Abordarei o tema ao longo do texto enquanto “Arteterapia”, visto que estou falando a partir da abordagem
junguiana. Entretanto, é importante atentar de que esse campo de conhecimento, não se esgotando nessa
abordagem, aponta para diferentes perspectivas – podemos, assim, falar em “Arteterapias”.
24

Desta forma, a Arteterapia surge diante da ruptura da arte com a expectativa


mercadológica e capitalista, em que se espera um produto final que precisa ser belo e no qual
a estética está acima de tudo. Essa lógica, segundo Pain (2009), fruto de uma sociedade
industrial, informatizada e de urgência, resulta em um mal estar disparador de sintomas
patológicos em que a medicação é legitimada e ganha um status de poder. Em reação à
hegemonia da medicalização surge a antipsiquiatria, que utiliza a arte como ferramenta para
possibilitar mudanças no olhar das pessoas para com sujeitos em sofrimento psíquico.
Alguns nomes como Florence Cane, Margareth Naumburg e Edith Kramer nos EUA,
Adrian Hill na Inglaterra, Ulisses Pernambucano e Nise da Silveira no Brasil, abriram espaço
para a Arte como nova possibilidade terapêutica. Especificamente no Brasil, esse trabalho foi
possível após o período conhecido como “Anos de Chumbo” (1964-1985) em que a liberdade
de expressão, a possibilidade de criar e fazer arte foi reconquistada. A matéria prima utilizada
no processo arteterapêutico é a criatividade (PHILIPPINI, 2013).
Criatividade, segundo Ostrower (1977), é entendida como uma potencialidade cuja
realização é uma necessidade humana. A potencialidade criativa, entretanto, não se restringe
ao âmbito artístico. Criar é dar forma, forma esta que é carregada de significação e que -
quando ordenada – expressa, comunica e transforma conteúdo subjetivo. O processo criativo,
quando adequadamente ativado, possibilita o resgate, liberação e reorganização do fluxo de
energia psíquica a favor do bem-estar e expressividade - visto que na vida cotidiana,
frequentemente o fluxo dessa energia é bloqueado, oprimido e regredido, gerando sintomas
tais como desânimo, fadiga, apatia, entre outros (PHILIPPINI, 2011).
Dar forma em Arteterapia é, de acordo com Philippini (2013), organizar para
compreender e transformar. Depois de enformar (mediante pintura, colagem ou modelagem,
por exemplo), este conteúdo informa algo que, ao deixar o inconsciente e ser compreendido
pela consciência, tem a potencialidade de transformar - de transcender a forma. Assim,
através do trabalho expressivo, é possível que conteúdos obscuros e desconhecidos possam,
gradativamente, ir chegando à consciência e influenciando diretamente na estruturação da
personalidade e da subjetividade.
O campo transdisciplinar de atuação arteterapêutica está se ampliando cada vez mais,
podendo acontecer em diferentes contextos, assim como há diversas possibilidades de
público-alvo e locais, sendo ainda, de caráter individual ou grupal. Destacando o caráter
grupal do processo arteterapêutico, este será aqui abordado à luz da Teoria Junguiana. Assim,
25

se faz importante destacar, brevemente5, alguns conceitos relevantes ao presente estudo,


discutidos pelo psicólogo e psiquiatra suíço Carl Gustav Jung (1875 - 1961).
O primeiro ponto importante a ser destacado passa pelo que este autor entende por
inconsciente: a totalidade dos fenômenos psíquicos que escapa à consciência. Dessa maneira,
ele entende que a psique ultrapassa os limites da consciência. Ele diferencia duas naturezas
desse inconsciente: pessoal e coletivo. A esfera pessoal do inconsciente funciona como
receptáculo dos conteúdos subjetivos que não atingiram o limite consciente (como lembranças
perdidas ou conteúdos reprimidos, mas ainda assim, de caráter individual). Já o inconsciente
coletivo diz respeito a conteúdos herdados, universais e uniformes (JUNG, 2011). Acerca
desse quinhão coletivo, Jung (2008, p. 83) vai nos falar sobre o conceito de arquétipos (ou
imagens primordiais): “uma tendência a formar essas mesmas representações de um motivo -
representações que podem ter inúmeras variações de detalhes - sem perder a sua configuração
original”.
Mas é importante frisar que isso não quer dizer que o inconsciente se trata meramente
de um depósito do passado, pois há também potência e possibilidade de criação, onde novas
ideias, pensamentos e imagens podem surgir do mesmo (JUNG, 2008). Ele vai nos dizer,
ainda, que:

Quando alguma coisa escapa da nossa consciência, essa coisa não deixou de
existir, do mesmo modo que um automóvel que desaparece na esquina não
se desfez no ar. Apenas o perdemos de vista. Assim como podemos, mais
tarde, ver novamente o carro, também reencontramos pensamentos
temporariamente perdidos (p.35).

Desta forma, parte do conteúdo inconsciente diz respeito a uma profusão de imagens,
pensamentos e impressões provisoriamente ocultos, que, mesmo fora do alcance imediato,
continua a exercer influências em nossas mentes conscientes.
No que diz respeito à estrutura pessoal do inconsciente, Jung vai falar do aspecto da
sombra - conceito muito importante para este estudo. Esta não é a totalidade do inconsciente,
mas uma parte desconhecida ou pouco conhecida do ego - podendo também ser consciente
(von FRANZ, 2008). A sombra, em geral, tem conteúdos caros e necessários à consciência,
mas que existem de tal forma que é de difícil integração na vida consciente. Ou seja, é difícil
entrar em contato com a própria sombra. Entretanto, von Franz (2008, p. 229) diz que
“depende muito de nós mesmos a nossa sombra tornar-se nossa amiga ou inimiga”. E ainda
completa que a mesma só se torna hostil ao passo que é ignorada ou incompreendida.

5 Não foi feita uma explanação da Teoria Junguiana como um todo, mas destaques sucintos acerca de conceitos
que entendemos como importantes para a discussão aqui proposta.
26

Assim, a função da sombra seria representar o outro lado do ego, bem como traços que
mais detestamos nos outros. Poderíamos nos perguntar então porque não simplesmente e
facilmente encarar e assumir nossas sombras, integrando-a à nossa personalidade consciente
fazendo essa escolha honesta e racional. Entretanto, integrar a sombra não é algo tão simples:
há um impulso demasiadamente forte na nossa sombra que o racional não consegue vencer.
Então por que buscamos integrar a sombra? Porque, ao contrário do que se pensa, ela também
contém forças vitais e positivas (como talentos, por exemplo) que devemos assimilar e não
reprimir. É preciso que o ego aceite se deparar com aspectos negativos para que se possa,
inclusive, porventura, encontrar aspectos positivos desconhecidos. Assim, “é preciso coragem
para levar o inconsciente à sério e enfrentar os problemas que ele desperta” (von FRANZ,
2008).
Aqui chegamos a outro conceito importante: o processo de individuação, que leva em
conta os componentes coletivos da psique humana (inconsciente coletivo), tendo seu caminho
o tornar-se si mesmo, ser único. Dentre os passos existentes nesse processo, destaco aqui dois:
o primeiro seria o desnudamento da persona6 e o segundo seria o confronto com a sombra
(JUNG, 2011).
Um outro conceito importante neste estudo é o de símbolo: um termo, um nome ou
mesmo uma imagem que, mesmo sendo familiar na vida cotidiana, pode conter conotações
especiais - para além do significado convencional e evidente. O símbolo é algo que vai além
de seu significado manifesto e imediato e, sendo assim, implica algo vago, desconhecido ou
oculto para nós. Este conteúdo simbólico possui um aspecto “inconsciente” que não é
inteiramente explicado ou precisamente definido (JUNG, 2008).
Tendo dado essa breve situada em alguns conceitos da abordagem junguiana, voltemos
para o debate da Arteterapia. Philippini (2011) afirma que, de modo geral, o grupo
arteterapêutico acontece em um determinado território (setting arteterapêutico), em dia e
horário regularmente acertado, com duração previamente definida e onde se realizam
atividades com certos objetivos. Nas abordagens breves (foco do presente estudo), o grupo
costuma durar cerca de seis a oito meses, com frequência semanal, sendo cada sessão com
duração de pelo menos 1h30 (uma hora e trinta minutos). Esse ritual e frequência tem sua
importância harmonizadora, pois implica ritmos e metabolismos saudáveis, individuais e
coletivos.

6
O modo pelo qual o indivíduo se apresenta ao mundo, uma forma de lidar com o exterior com o objetivo de
adaptar-se a ele. Apesar de ter também uma função protetora, a persona age também como uma máscara, que
esconde aspectos da psique (JUNG, 2011).
27

É de suma importância que o(a) arteterapeuta, durante todo o processo grupal, vá


guardando cuidadosamente todas as produções para que, ao fim do mesmo, os(as)
participantes possam revisitar toda a construção narrativa e seu caminho expressivo, a fim de
uma melhor compreensão do campo simbólico comunicado (PHILIPPINI, 2011).
O processo arteterapêutico permite, assim:

Acompanhar o processo da travessia do portal para o próprio imaginário,


mediado pelas atividades plásticas e expressivas, criando narrativas
imagéticas, que revelam aos participantes dos grupos notícias de seu mundo
interior e trilhas de saída de seus próprios labirintos (PHILIPPINI, 2011).

Os benefícios do processo criativo a partir do grupo arteterapêutico são diversos e


tangenciam esferas distintas, tais como: ativação do imaginário e de ampliação e
fortalecimento da saúde; transformação pessoal, comunitária e social; ampliação dos
potenciais de comunicação e expressão; bem como possibilidade de apropriação do direito de
expressão e de criação enquanto um direito do cidadão, através do fortalecimento de
identidade (PHILIPPINI, 2011).
São diversos os locais em potencial para formação de grupos arteterapêuticos. Neste
estudo, entretanto, será dado ênfase para a possibilidade de atuação em grupo formado pelo
marcador de gênero: dedicado a trabalhar temas pertinentes às questões existenciais
envolvendo o debate deste marcador.
Em suma, a Arteterapia, diante de suas possibilidades de rompimento e ampliação7 do
que está posto (nos mais diversos âmbitos), diante de um não-lugar - ou melhor, de um entre-
lugar - a partir de seu pressuposto básico da transdisciplinaridade (e por que não
“indisciplinar”?)8, somado ao recorte de gênero dado na presente pesquisa, oferece-nos fios a
serem tecidos com o debate dos feminismos e decolonialidade.

7 Adiante falarei mais sobre o que estou entendendo como rompimento e ampliação do que está posto.
8
Termo discutido pela Linguística Aplicada, que implica no questionamento da noção de transdisciplinaridade -
propondo o exercício da desconstrução (SCHMITZ, 2008). Este termo nos provoca a pensar a
transdisciplinaridade enquanto, ainda, engendrada na perspectiva de uma disciplinaridade hegemônica.
28

2.3 ARTETERAPIA, FEMINISMOS E DECOLONIALIDADE: TECENDO FIOS DE


ENFRENTAMENTO À VIOLÊNCIA EPISTÊMICA

“Até a desordem que tira do eixo, é o chão do


equilíbrio que logo virá”

(FERRO, 2014a, n.p.).

O autor Nikolas Rose (2011) nos provoca através de uma pergunta extremamente
importante, a qual deveríamos fazer em relação às demais esferas do conhecimento: “Como se
faz a história da Psicologia?” (p.65). Para responder a tal pergunta, ao longo de todo o texto, o
autor propõe pensarmos em uma história crítica. Por história crítica, afirma ser aquela que nos
possibilita refletir acerca das condições sob as quais se estabelece aquilo que tomamos como
verdade e pensar sobre que verdade estamos falando.
A história crítica, segundo Rose (2011), permite que pensemos para além do presente
e nos convida a explorar horizontes e possibilidades. Assim, a partir desse convite, podemos
questionar as maneiras pelas quais as histórias nos são contadas. A partir de quais pontos de
vista essas histórias vêm sendo contadas? O autor traz o que o epistemólogo Canguilhem
(1904 - 1995) vai chamar de “histórias recorrentes” para se referir a tais maneiras pelas quais
as disciplinas científicas lançam mão para retratar a história e os fatos. Tais histórias
recorrentes, diante do privilégio ancorado no status de “cientificidade”, acabariam por
ratificar o presente ao passo que “separa o joio do trigo”, ou seja, omitem fatos que se
contrapõem ao que se pretende afirmar.
Desta forma, podemos entender que a história é contada a partir de uma perspectiva
(versão ocidentalizada), enquanto textos, fatos, versões e autores/as são negligenciados/as,
desconhecidos/as. Assim, podemos lançar mão do termo “história sancionada” - quando
utiliza-se do passado para sedimentar regimes de verdade que sejam contemporâneos tendo,
ao mesmo tempo, a função de policiar o presente e modelar o futuro através dos critérios de
inclusão e exclusão (ROSE, 2011).
Em meados dos anos 70, feministas criticaram e questionaram a Ciência e seu
enviesamento androcêntrico (NOGUEIRA, 2001). De antemão, é importante situar que no
presente texto se falará em “feminismos” - no plural - diante da compreensão crítica de que
não há uma visão única do que é ser mulher, mas sim, que há eixos que, interrelacionados,
ajudam a construir o que podemos entender a respeito de gênero (NOGUEIRA, 2017).
29

Conceição Nogueira discorre a respeito de tais feminismos e de seus respectivos


posicionamentos epistemológicos, ao passo que se posiciona a favor de que o movimento
como um todo deve ser transnacional (na medida em que não negligencia as assimetrias e
vicissitudes culturais, de capital, bem como do processo de globalização), interdisciplinar (na
medida em que questiona, critica e desafia as barreiras rígidas das práticas metodológicas do
saber posto) e interseccional (onde o gênero não deve ser analisado isoladamente de outros
eixos de significação).
Porém, antes de chegar a este ponto, se faz necessário retomar um pouco a discussão,
lançando mão do supracitado olhar crítico para a história que nos foi contada (imposta).
Segundo Quijano (2005), a Europa Ocidental protagonizou a dominação do capitalismo
mundial sendo detentora do poder e responsável pela incorporação de diferentes e
heterogêneas histórias culturais dentro do que veio a denominar “sistema-mundo”. Em outras
palavras:

[...] a Europa [...] concentrou sob sua hegemonia o controle de todas as


formas de controle da subjetividade, da cultura, e em especial do
conhecimento, da produção do conhecimento (QUIJANO, 2005, p. 110).

Ao agir de tal forma, consolidou-se o que GROSFOGUEL (2016) vem chamar de


racismo/sexismo epistêmico ou epistemicídio. Ou seja, a repressão e descarte de toda forma
de produção de conhecimento, dos padrões de formação de sentido, do universo simbólico,
das formas de expressar e objetificar a subjetividade, que não fossem os/as hegemônicos/as.
Lugones (2014) afirma que as dicotomias (lógica categorial hegemônica) humano/não
humano e homem/mulher, surgiram na modernidade colonial. Os colonizadores entendiam os
colonizados enquanto não humanos, como animais selvagens, como o Outro. O homem
humano era o branco europeu, burguês, colonial, moderno, agente ativo no processo de
decisão, heterossexual, cristão, sujeito de mente e razão. Enquanto a mulher era branca,
europeia, burguesa e vista não como ativa, mas como passiva em seu lugar de reprodução de
raça e capital - estando atada ao lar e ao homem.
Sobre tal condição de reprodutora de raça e capital, Rubin (1993) situa a mulher como
condição sine qua non para o capitalismo, na medida em que é a responsável tanto pela
satisfação das “necessidades básicas” dos homens, quanto pelo trabalho doméstico -
viabilizando alimentação, vestuário e administração da casa - para que os trabalhadores
possam exercer sua força de trabalho em condições favoráveis de rendimento máximo e, por
conseguinte, obtenção da mais valia: matéria-prima do capitalismo.
É importante fazer mais um adendo e adiantar um ponto que será retomado mais
30

adiante: o detalhe de como a mulher aqui foi descrita, ou seja, de que ainda que se aborde a
opressão das mulheres diante do sistema capitalista (feminismo marxista), isso se faz a partir
apenas do recorte de gênero. Dito isto, é possível notar que se fala de uma parcela específica
de mulheres - as que gozavam, ainda de algum(ns) privilégio(s) - diferentemente das que se
encontravam em outras condições, as quais o feminismo negro vem a problematizar
(NOGUEIRA, 2017).
O processo de subjetificação opressiva a que os/as colonizados/as foram sujeitados/as
está sendo constantemente renovado. Entretanto, é possível perceber sempre a mesma lógica
dicotômica de gênero (humano e não humano, inclusive) operando na construção da
normativa social.
O que não se encaixava nesse modelo normativo da visão do colonizador, era tido
como esse “outro” não humano. Desta forma:

A transformação civilizatória justificava a colonização da memória e,


consequentemente, das noções de si das pessoas, da relação intersubjetiva,
da sua relação com o mundo espiritual, com a terra, com o próprio tecido de
sua concepção de realidade, identidade e organização social, ecológica e
cosmológica (LUGONES, 2014, p. 938).

Entretanto, é importante enfatizar que os povos colonizados não são destituídos de


história, cultura, política e saberes. Sendo assim, ao invés de o epistemicídio realizado pelo
colonizador (ou seja, da substituição e apagamento de tais saberes), o que deveria ter
acontecido era a troca, a negociação, o diálogo, o tensionamento e seu entrecruzamento
(LUGONES, 2014).
O processo de transculturação é justamente esse jogo de negociação intercultural que
resultam em saberes plurais. Os saberes são construções híbridas resultantes das mais diversas
forças existentes nas relações assimétricas de poder e são apropriados, traduzidos,
significados e distribuídos de forma que se contrapõem à lógica binária do “Ocidente e os
outros” (COSTA, 2014). É importante destacar aqui a importância de se incluir, no debate
decolonial, o lugar complexo da tradução e seu papel de mediação.
Prada (2014 apud COSTA, 2014) traz a noção de tradução enquanto um processo
complexo, seletivo e estratégico, que envolve fatores linguísticos, mas vai além: remete-se à
posicionamento de fala, de escolhas que, por conseguinte, trazem o risco de traições e
apagamentos possíveis. Assim, a resistência à colonialidade do poder implica, também, em
uma resistência linguística e tradutória.
Quijano (2005) afirma que é a partir do conceito de raça que se decorre tal lógica de
dominador/dominado. Grupos que eram diferenciados em termos de espaço geográfico,
31

passam a representar id-entidades que, então, começam a ter conotação racial (primeiro modo
básico de classificação) situando hierarquias, papéis e lugares sociais.
Lugones (2014) lança mão do termo “colonialidade” trazido por Aníbal Quijano, com
a intenção de chamar atenção para esse processo de redução ativa das pessoas e
desumanização das mesmas ao classificá-las em uma sujeitificação - mas traz o foco para o
debate de gênero. Afirma que diferentemente da colonização, a colonialidade de gênero
permanece presente na intersecção entre gênero/raça/classe, como base para o sistema de
poder capitalista e situa a resistência à essa colonialidade de gênero a partir da diferença
colonial. A análise dessa opressão racializada e capitalista é definida por esta mesma autora
de “colonialidade de gênero” e propõe que o “feminismo descolonial” é possibilidade de
superar tal colonialidade.
Desta forma, defende que é preciso descolonizar o gênero:

É decretar uma crítica da opressão de gênero racializada, colonial e


capitalista heterossexualizada visando uma transformação vivida do social.
Como tal, a descolonização do gênero localiza quem teoriza em meio a
pessoas, em uma compreensão histórica, subjetiva/intersubjetiva da relação
oprimir ← → resistir na intersecção de sistemas complexos de opressão
(LUGONES, 2014, p. 940).

Costa (2013) afirma ser importante refletir sobre o lugar de enunciação das/os que
produzem conhecimento no que concerne o poder hegemônico e normas ocidentalizadas, bem
como os meios utilizados para traduzi-los. A título de exemplo, historicamente, feministas e
teorias feministas foram sendo traduzidas de forma a reduzi-las a movimento de resistência,
negligenciando suas potencialidades enquanto produtoras de conhecimento outros. Assim, se
faz necessário trazer o debate feminista para o terreno pós-colonial e, assim, descolonizá-lo.
A perspectiva pós-colonial, ainda que tenha algumas afinidades, se diferencia dos
estudos decoloniais visto que este afirma que mesmo no chamado “pós” ainda há
colonialidade de poder, através das categorias de gênero, raça e classe. Costa (2014, p. 930)
diz, ainda:

[...] a descolonialidade busca em seu projeto um desligamento das


epistemologias eurocêntricas ao salientar a importância dos diferentes saberes
(e paradigmas outros) sendo produzidos em diversos contextos geopolíticos,
questionando assim cânones e métodos autorizado

Assim, não é possível falar em decolonização do conhecimento enquanto o ponto de


partida for o saber ocidental - é necessário o movimento de “desaprender” para “reaprender”.
Os estudos pós-coloniais e decoloniais ao denunciarem a colonialidade da produção de
conhecimento e o regime eurocêntrico do saber (BERNARDINO-COSTA; GROSFOGUEL,
32

2016), sugerem um redirecionamento na crítica cultural, mudando o posicionamento


dicotômico para a abertura de espaço, para o entrelugar. Ou seja, privilegia o lugar do saber
fronteiriço - o qual surge da exterioridade estruturada pela colonialidade, no momento em que
esta última é entendida enquanto interioridade (COSTA, 2013).
Lugones (2014) defende, assim, que se nos propomos a questionar a lógica
dicotômica, precisamos colocar o gênero entre colchetes, isto é, ter cuidado sempre que
utilizarmos o termo “homem” ou “mulher”. Desta forma, em vez de pensar em ser
dicotômico, ela propõe que pensemos em ser-em-relação (ente relacional). Afirma, ainda, que
a resistência à colonialidade de gênero se dá a partir da diferença colonial. É a partir da
diferença colonial que o lócus se encontra fraturado, que se dá espaço para o entrelugar - essa
é a proposta do feminismo descolonial. Para que, de fato, se rompa com a lógica da
colonialidade de gênero, temos que estar atentos/as às diferenças coloniais. Dessa maneira, o
giro descolonial se dá através do movimento de olhar para este entrelugar, mais do que buscar
lugares específicos, situados independentemente de um todo.
Segundo Nogueira (2017), a noção de diferença começa a ser problematizada quando
surge o feminismo negro e a denúncia de que a luta feminista se tratava de uma luta de
mulheres brancas, ao passo que as negras não se sentiam representadas. Neste momento a
dicotomia de gênero cede lugar nos questionamentos à questão das desigualdades entre as
próprias mulheres. É nesse contexto que se problematiza: será que é mesmo possível falar só
(e isoladamente) de gênero e esquecer das outras pertenças identitárias, tais como raça, classe,
orientação sexual, por exemplo?
Assim, a discussão da Interseccionalidade surge, ao passo que se entende que gênero
não é um ingrediente isolado de identidade pessoal, mas que se funde e se inter-relaciona com
outras identidades. Lançando mão da metáfora do alimento, Nogueira (2017) diz que, como
em uma receita, os ingredientes são misturados de tal forma que estão todos na comida, mas
nenhum é reconhecido isoladamente.
A tarefa de uma postura que se ancora no feminismo descolonial - que resiste à
colonialidade de gênero na diferença colonial, é o de aprender umas com as outras, é ver o
mundo de forma renovada e não a partir de meios privilegiados, engendrados, hegemônicos e
reducionistas. Mas como, de fato, conseguir fazer isso? Como conhecer umas às outras, se
entrecruzar, sem cair no controle? Como realmente traçar um diálogo pautado na diferença
colonial? Como saber se é isso mesmo que se está fazendo? (LUGONES, 2014).
Marilda Ciribelli (2006), em seu livro Mulheres singulares e plurais: sofrimento e
33

criatividade”, escolhe oito9, dentre tantas mulheres que marcaram a(s) histórias(s) - recorrente
e sancionada - para demonstrar como cada uma, em suas singularidades e pluralidades,
lidaram com dor e sofrimento a partir da criatividade (e Arte).
A convergência com essa proposta de conhecer umas às outras a partir dos seus
lugares de enunciação, se dá pela forma como esta autora constrói sua linha narrativa. Ela, ao
falar das obras e feitos de cada mulher, sempre reforça a importância de se buscar
compreender o contexto histórico, social e político vivido por cada uma, bem como conhecer
suas histórias de vida. Assim, Ciribelli (2006) constrói um “mini-perfil” de cada mulher para,
então, se debruçar nas obras e feitos de cada uma, por entender que só assim se conseguiria ter
uma melhor dimensão dos fatos.
É importante destacar que o principal caminho de colher tais informações foram em
cartas íntimas dessas mulheres - o espaço de fala (esfera privada) permitido para as mulheres
na época. A autora buscou conhecer essas mulheres se aproximando de seus lugares de
enunciação, ao invés de lançar mão de conteúdos já conhecidos por caminhos hegemônicos.
No capítulo que ela fala sobre Camille Claudel, a importância de se debruçar nas cartas fica
mais evidente, quando ela afirma que, embora na história fosse trazido versões a respeito da
suposta loucura de Claudel, suas cartas mostram bastante coerência e lucidez em seus
posicionamentos.
Ademais, é importante ressaltar o lugar da criatividade no que diz respeito à luta,
resistência e quebra de silenciamento(s) em que as mulheres eram (são) sujeitas. Para Cecília
Meireles, por exemplo, sua poesia era “o grito que rompia o silêncio em que psicologicamente
sempre esteve imersa”, uma forma de ser entendida em seu “silêncio falante” (CIRIBELLI,
2006, p.54). Nesse ínterim, Nise da Silveira jogou luz para o fato de que tal quebra de
silêncio(s) não acontece apenas por meio da palavra e, ainda, que a função pensamento10 não
era a única existente. Diante da dificuldade de se comunicar com seus clientes a partir da fala,
lançou mão de outras formas de expressão, tais como artesanato, jardinagem, pintura,
modelagem, entre outros. Faz-se importante, ainda, dar um destaque ao papel de Nise no que
tange ao movimento de confronto com práticas hegemônicas da Psicanálise, rompendo com o

9 Camille
Claudel, Cecília Meireles, Clarice Lispector, Frida Kahlo, Marie Curie, Nise da Silveira, Nísia Floresta
e Simone de Beauvoir foram as mulheres abordadas em cada capítulo do referido livro.

10
Jung discorre a respeito de quatro tipos psicológicos que dizem respeito à “formas evidentes pelas quais a
consciência se orienta em relação a experiência”. Seriam esses quatro tipos: sensação: percepção sensorial e
nos diz que algo existe; pensamento: nos mostra o que é esse algo; sentimento: nos diz se esse algo é agradável
ou não; e intuição: nos diz de onde vem esse algo e pra onde irá. Jung faz uma ressalva, ainda, sobre tais
critérios ao afirmar que são apenas pontos de vista e não há nada de dogmático a respeito dos mesmos (JUNG,
2008).
34

estabelecido e abrindo novos caminhos do fazer terapêutico.


A Arteterapia vem, cada vez mais, solidificando sua inserção em espaços distintos de
atuação, ampliando seu público-alvo, construindo novas abordagens, bem como abrindo e
ocupando espaço na produção científica (PHILIPPINI, 2011). Diante disso, somado ao fato de
ser um campo que propõe situar-se em um entre-lugar (dialogando com diversos campos de
conhecimento e diversas modalidades expressivas), podemos encontrar fios potentes para
tecer diálogos com a perspectiva decolonial, no sentido de abertura de novos rumos e
possibilidades, no que concerne à produção de conhecimento (de si e do mundo).
35

3 OBJETIVOS

3.1 OBJETIVO GERAL:

Compreender as possíveis contribuições da Arteterapia na expressão e elaboração de


sofrimento psíquico de mulheres acolhidas no grupo “Entre Mulheres: histórias e tessituras de
corpos e desejos pulsantes”.

3.2 OBJETIVOS ESPECÍFICOS:

a) Identificar e analisar os sentidos construídos por mulheres acolhidas no grupo


Entre Mulheres, às suas experiências de sofrimento;
b) Investigar os sentidos construídos por mulheres acolhidas no grupo “Entre
Mulheres”, às suas experiências de silenciamento;
c) Analisar os deslocamentos subjetivos produzidos acerca das experiências de
silenciamento e sofrimento das mulheres acolhidas no grupo “Entre Mulheres”, a
partir do processo arteterapêutico.
36

4 METODOLOGIA

Neste capítulo apresento os aspectos metodológicos deste trabalho, caracterizando-o


como uma pesquisa qualitativa que tem como proposta metodológica a pesquisa-intervenção,
a qual irei apresentar e problematizar suas implicações éticas. A seguir, em “Passos
metodológicos”, apresento o grupo arteterapêutico pesquisado, seguido dos caminhos traçados
para a construção do corpus de pesquisa, assim como o percurso e inspiração analítica da
mesma.Delimito, adiante, os aspectos éticos da pesquisa e, por fim, contextualizo o campo de
pesquisa, buscando apresentar as mulheres participantes e os ciclos do grupo arteterapêutico
pesquisado, assim como breve resumo de cada encontro arteterapêutico de tal grupo.

4.1 TERRENO METODOLÓGICO

A história da ciência passou por várias mudanças ao longo dos tempos, tendo sido
questionada, criticada, ressignificada acerca da sua forma de produção de conhecimento
ancorada no paradigma positivista. Maraschin (2004) discute em seu texto, “a atividade de
pesquisa como potência instituinte, ou seja, virtualmente capaz de desestabilizar modos de
ação já recorrentes na instituição” (p. 99) - sendo esta, por exemplo, o modus operandi da
academia e caminhos de se fazer pesquisa. Segundo Paulon (2005), a partir da inquietação no
que concerne às ideias de dicotomia, tais como teoria/prática e sujeito/objeto, algumas
abordagens metodológicas que criticam este conservadorismo e objetividade do pensamento
científico foram trazendo mudanças - afastando-se da ideia da neutralidade e aproximando e
implicando o pesquisador e sua ação. Essa abordagem metodológica vem dialogar com as
ideias do psicólogo social Kurt Lewin (1980-1947):

As contribuições da fenomenologia e da Psicologia Social de Kurt Lewin


foram fundamentais [...] ao afirmar a inviabilidade do pesquisador colocar-se
“fora” do campo de investigação, mostrando as zonas de interferência entre
ambos, estas abordagens dos fenômenos sociais produziram rupturas
significativas no que se instituíra como lógica científica até então
(PAULON, 2005, p.18-19).

É nesse terreno que o presente estudo se situa, a partir da perspectiva da pesquisa-


intervenção, onde a construção de conhecimento é dinâmica e pensa o processo envolvendo
os/as participantes nele. Valoriza o conhecimento popular e dinamiza a produção de dados em
pesquisa ativando a criatividade dos/das participantes e suas diversas dimensões de
expressividade. O grupo de Arteterapia é entendido aqui enquanto campo de construção de
37

conhecimento de si (ao narrar-se a partir de recursos da arte), podendo esta narrativa ser
assumida também como narrativa da pesquisadora sobre a construção de conhecimento de si
das participantes.
Segundo Maraschin (2004), a pesquisa-intervenção vem romper padrões acadêmicos
ao propor outras formas de participação, investindo na multiplicidade de sentidos e abrindo
espaço para as singularidades autorais ao criar territórios de subjetivação. Assim, os efeitos
desse tipo de pesquisa colocam em movimento: conhecimento, intervenção e autoria. A partir
desta perspectiva, os fenômenos sociais presentes no campo de pesquisa, não estão isentos de
jogos de interesses e de poder. Entende-se, assim, que o próprio investigar constitui um ato
político e a própria subjetividade do pesquisador é levada em consideração como categoria
analítica - apontando as bases do conceito institucionalista de implicação.
A partir desta perspectiva, a intervenção não é entendida como uma intromissão
agressiva e sem fundamento, mas é voltada para a produção de acontecimentos. O olhar não é
direcionado para um determinado ponto de partida ou um alvo a ser atingido necessariamente,
visto que a intervenção é entendida justamente como o “vir entre”, o “interpor-se” - ou seja,
lança-se o olhar para as contingências, metamorfose, movimentos, processos de diferenciação
e criação de um novo espaço-tempo. É no momento em que a pesquisa e intervenção estão
sendo realizadas, que ocorrem tanto a produção teórica, do objeto de pesquisa, bem como
daquele que investiga (PAULON, 2005). Dessa maneira, este aporte teórico-metodológico nos
faz sentido para lançar o olhar sobre a Arteterapia, na medida em que o trabalho
arteterapêutico valoriza o processo como um todo - e não necessariamente apenas o produto.
Diante desse lugar do/a pesquisador/a no campo, Paulon (2005) nos fala sobre o
conceito-ferramenta da análise de implicação, em que para conhecer, o/a pesquisador/a
precisa implicar-se - é realizar e aceitar que realizem a análise dessa sua própria implicação.
Desta forma, é papel deste/a estar atento/a ao lugar que ocupa nas relações sociais como um
todo, com sua história (e não apenas no contexto da investigação/intervenção). Sendo assim,
ao se aproximar do campo de pesquisa, o investigador/a deve analisar o impacto em que os
acontecimentos suscitados pela intervenção têm em sua própria história e sobre o sistema de
poder que legitima os sistemas de verdades (instituído enquanto “saber-poder”) em que se
encontra engendrado.
Outro ponto importante que esta autora traz é a questão do lugar de passividade que os
sujeitos participantes eram situados nos estudos convencionais, a partir do distanciamento
estabelecido entre os sujeitos envolvidos no ato da pesquisa. O referencial do modo de
produzir conhecimento aqui utilizado, pelo contrário deste entendimento de passividade,
38

entende a subjetividade do sujeito pesquisado como um elemento a ser considerado:

Alavancada pelas pesquisas motivacionais a partir de 1930, pelas


intervenções psicossociológicas no campo organizacional e pelos trabalhos
sociométricos de Moreno, a pesquisa social ganha espaço no cenário
acadêmico-científico e retira a categoria da subjetividade do rol de
“variáveis intervenientes”, outorgando-lhe um papel muito mais protagonista
no processo de investigação (PAULON, 2005, p.19).

Assim, este estudo se configura como uma pesquisa de caráter qualitativo, visto que se
propõe a pensar sobre as relações que as pessoas estabelecem entre suas ações e o que pensam
e interpretam acerca destas. Ou seja, a pesquisa qualitativa permite o se debruçar sobre os
significados, motivos, aspirações, crenças, valores e atitudes das pessoas (MINAYO, 2011).
A implicação ética deste modo de fazer pesquisa, de acordo com Maraschin (2004),
está em questionar o modo como nos inserimos no campo enquanto observadores e em buscar
deixar explícito os mecanismos utilizados para gerar conhecimento:

Então essa atividade explicativa implica em escolhas, conscientes ou não, e


essas mesmas escolhas podem ser passíveis tanto de decisões estéticas
quanto éticas. Toda autoria é, ao mesmo tempo, exercício de autonomia e de
implicação, de responsabilidade pelo que se cria (MARASCHIN, 2004, p.
104).

Este caminho metodológico, diante deste lugar do acontecimento e da contingência -


em que não há uma garantia de serem apreendidas fidedignamente a partir de uma técnica -
trabalha no sentido de criar e/ou identificar dispositivos/eixos analisadores que possibilite a
produção de conhecimentos. Dispositivos estes, que são reveladores de contradições de
determinado espaço-tempo, que permite acessar uma realidade não instituída, mas sim
fragmentada, contingente e parcial (PAULON, 2005).

4.2 PASSOS METODOLÓGICOS

Tendo discutido acerca do terreno teórico-metodológico adotado nesta pesquisa,


passamos agora a situar os passos metodológicos traçados. O campo ocorreu no grupo
arteterapêutico “Entre Mulheres: histórias e tecituras de corpos e desejos pulsantes”, que
contou com a participação total de 12 mulheres11 (sem contar com a pesquisadora e
facilitadoras), mediado pela dupla de estágio, Karla Galvão e Adriana Ayub, como requisito
da formação pela “Traços, estudos em Arteterapia”. A forma como me situei no campo foi a
partir de observação participante:

11
Apresentadas mais adiante.
39

Um processo pelo qual um pesquisador se coloca como observador de uma


situação social, com a finalidade de realizar uma investigação científica. O
observador, no caso, fica em relação direta com seus interlocutores no
espaço social de pesquisa, na medida do possível, participando da vida social
dele, no seu cenário cultural, mas com a finalidade de colher dados e
compreender o contexto da pesquisa. Por isso, o observador faz parte do
contexto sob sua observação e, sem dúvida, modifica esse contexto, pois
interfere nele, assim como é modificado pessoalmente (MINAYO, 2011, p.
69).

Assim, enquanto observadora participante, estive presente em todos os encontros,


participando ativamente das atividades propostas e atenta ao processo como um todo.
Inicialmente ia escrevendo durante o encontro mas, posteriormente, percebi que esse caminho
não estava sendo facilitador. Então passei a mergulhar nos encontros e registrar as
observações ao fim de cada dia. Dito isto, percebi ter havido em alguns momentos, alterações
de “figura-fundo” no que tange minha inserção no campo: ora me percebia observadora
participante, ora como “participante observadora”. Segundo Marques e Genro (2016),
Boaventura de Souza Santos chega a propor que pensemos acerca da “participação
observada”, onde se entende que algo parecido ao que acontece em relação aos sujeitos(as)
pesquisados(as), se dá também com o(a) pesquisador(a).
Além das anotações feitas no diário de campo, ao fim de cada encontro, fotografei
todas as produções feitas pelas mulheres do grupo e posteriormente realizei uma seleção
dessas imagens e produções. O critério de escolha de tais produções foi dar destaque aos
materiais que fomentaram o desenvolvimento da linha narrativa proposta neste estudo,
buscando atender seus objetivos. É importante destacar que o processo observado e aqui
discutido foi para além das imagens e produções “finais” - visto que o processo em si, o
momento de produzir, reações e performances também trouxeram elementos de reflexão,
como veremos mais adiante.
O recorte discutido no presente estudo foi o segundo ciclo12 do referido estágio.
Chamado de “Estímulos Geradores”, diz respeito ao ciclo em que a questão da psicodinâmica
central de um grupo arteterapêutico é desdobrada, investigada e validada - dando continuidade
à trajetória iniciada no ciclo anterior (PHILIPPINI, 2011). A escolha por esse ciclo justifica-se
exatamente pelo fato de o mesmo se situar no meio do processo grupal - em que o tema

12
O primeiro ciclo (Diagnóstico) tem o objetivo de promover o desbloqueio e ativação do processo criativo. Para
tanto, são utilizados materiais dos mais diversos e se observa como o grupo reage a eles, como interagem entre
si e qual a temática predominante nas produções. O terceiro e último ciclo (Processos Autogestivos) diz
respeito à quando o grupo começa a dar indícios de autonomia criativa (PHILIPPINI, 2011).
40

simbólico do grupo já está mais definido e começa a ser amplificado13, transformado. É onde,
geralmente, o grupo começa a fortalecer os vínculos, a conhecer mais do processo e dar
retorno do mesmo.
Foram, no total, oito encontros com duração de aproximadamente três horas. Cada
encontro seguiu um roteiro consistindo, basicamente, de três etapas: 1) uma primeira de
relaxamento/aquecimento; 2) um segundo momento para a produção plástica propriamente
dita; e 3) um último momento de fechamento, compartilhamento de impressões e avaliação.
A despeito da vivência em Arteterapia, bem como destas etapas que citei acima é
importante situar que “O espaço arteterapêutico é um espaço gerador de possibilidades de
criatividade e expressividade, em que se combinam experiências psíquicas referentes às
dimensões primárias, secundárias e vivenciais” (PHILIPPINI, 2011, p. 18). Por dimensões
primárias, secundárias ou vivenciais, a autora afirma que se refere às memórias afetivas
primordiais; ao contexto das normas, regras e leis no que tange o convívio com a sociedade; e
ao que é expressivo e criativo das atividades arteterapêuticas, respectivamente.
No que diz respeito à primeira etapa do grupo, o rito de abertura, esta mesma autora
afirma que é um momento imprescindível para a preparação, concentração e desbloqueio no
fluxo criativo. Entendendo que o processo arteterapêutico trabalha, prioritariamente, com
aspectos não verbais, o ritual de início, meio e fim se faz importante.
A segunda etapa, da produção plástica, é entendida como o “miolo” do encontro, a
atividade propriamente dita. Philippini (2011, p.96) afirma que a utilização de estímulos
geradores favorece que conteúdos latentes explicitem-se, podendo assim, ser “confrontados,
elaborados e transformados”. Assim, a partir da utilização de tais estímulos geradores (visto
que estamos falando a respeito do segundo ciclo), são disponibilizados materiais expressivos
(tinta, colagem, argila, sucata, por exemplo) para as participantes do grupo produzirem
plasticamente o tema suscitado.
Por fim, sobre a última etapa, o rito de fechamento:

As atividades de conclusão devem preparar os participantes do grupo


para retornar da sessão arteterapêutica, rumo às suas atividades
cotidianas sem maiores rupturas de sentido, uma vez que alguns
processos mobilizam vivências emocionais muito profundas, sendo
vital propiciar estes espaços de organização e centramento antes da
saída. Neste contexto, é possível solicitar ao grupo pequenas escritas,

13Por “amplificação simbólica”, Jung diz ser uma forma de analisar conteúdos por meio de comparação das
imagens e paralelos entre elas, e símbolos primitivos e históricos. É como se olhássemos um objeto sob vários
ângulos e, com isso, pudéssemos ampliar o olhar e enxergar novas partes que lhe constituem (GRINBERG,
2017).
41

o que oferece muita produtividade terapêutica, pois ajuda a ordenação


de ideias e sentimentos, facilitando a apreensão de significados de
conteúdos inconscientes (PHILIPPINI, 2011, p. 37).

Como critério de inclusão, foram sujeitas do presente estudo, mulheres a partir de 18


anos de idade, acompanhadas pelo grupo arteterapêutico "Entre Mulheres: histórias e
tessituras de corpos e desejos pulsantes" e que concordaram em participar da pesquisa.
Enquanto critério de exclusão, foram mulheres abaixo de 18 anos de idade, que não
participaram ou que tenham deixado de participar do grupo arteterapêutico "Entre Mulheres:
histórias e tessituras de corpos e desejos pulsantes".

4.3 CAMINHO DE ANÁLISE

O corpus de análise foi, em primeira instância, as produções plásticas/escritas criativas


das participantes, e em segunda, o diário de campo da pesquisadora14. A respeito do diário de
campo, busquei focar em alguns episódios do processo de produção e do encontro como um
todo, que percebi ter direta relação com aspectos expressivos e discursivos das participantes e
que possibilitaram ter acesso aos significados produzidos ao longo dos encontros, no tocante
aos temas trabalhados. Então, para tal, foram colocados em evidência, para fins de análise,
algumas produções plásticas, recortes de fala, bem como observações feitas durante a
participação do grupo, que corroborem com a linha narrativa traçada para discussão.
Se faz importante destacar que o foco da análise não será, necessariamente, o
mergulho nos conteúdos do(s) sofrimento(s)15. Por não adentrar nos conteúdos em si, este
estudo não se propôs a realizar estudos dos casos, mas sim, traçar uma linha narrativa de
discussão, um caminho para analisar em que medida a Arteterapia contribui para lançar mão
de outras possibilidades de expressão e elaboração de sofrimento por essas mulheres. É
importante localizar, também, o que estou chamando de “sair do silenciamento”, “expressão”
e “deslocamento subjetivo”. A perspectiva de quebrar o silêncio a partir da expressão,
proposto no presente estudo, denuncia que não estou entendendo o silêncio enquanto ausência
de som. Assim, não seria apenas pelo caminho da fala, da palavra, que a mulher pode sair da
condição de silenciamento.
O deslocamento subjetivo aqui entendido, passa pelo movimento de rompimento e

14
Enfatizo ainda que, embora tenha feito parte do grupo - e sido ativa na participação -, meus conteúdos
trabalhados e imagens produzidas não fizeram parte, diretamente, do recorte analisado.
15
Estamos entendendo sofrimento enquanto construção social que se dá por “um conjunto de mal-estares mais
ou menos agudos, vividos subjetivamente, mas plenamente reconhecidos em sua origem objetiva, socialmente
esperados em natureza, intensidade e momento” (SAMPAIO, 1998, p.104).
42

ampliação possibilitado pelo trabalho arteterapêutico16. Esse deslocamento ocorre na medida


em que se rompe com o que está posto: um rompimento que fala da tomada de consciência de
que algo acontece (aconteceu) e que distancia o sujeito da posição que ocupava anteriormente
- “quem eu era e qual a posição que eu ocupava?”. Por conseguinte a essa tomada de
consciência/rompimento, temos a possibilidade de ampliação: uma demanda de transformação
do que está posto, uma nova condição em processo que traz consigo uma indicação de busca
(o que fazer com o que se percebeu?). Assim, esse movimento de rompimento e ampliação do
que está posto, traz em si o que estamos chamando de deslocamento subjetivo - podendo,
assim, favorecer a elaboração de sofrimento.
O conto “Barba Azul” presente no livro de Clarissa Pinkola Estés (2014) nos ajuda a
pensar sobre isso. Neste conto, o Barba Azul (um temido homem de barba excêntrica) casa-se
com uma mulher e, ao viajar sozinho, lhe entrega um chaveiro com as chaves das inúmeras
portas do castelo, orientando que a mesma pode fazer o que desejar em sua ausência, exceto
usar uma única chave (uma pequena com um arabesco em cima). Entretanto, ao receber a
visita de suas irmãs, a esposa faz uma brincadeira para descobrir quais eram as portas para
cada chave. Ao fim do jogo, depois de usar todas as chaves, sobrou a pequenina de arabesco:
uma porta nos fundos surge e elas decidem abri-la. Quando ela a destrancou, estava muito
escuro dentro do cômodo e, com ajuda de uma vela, a esposa e suas irmãs enxergam que ali
estavam vários esqueletos empilhados. Elas decidem fechar a porta e fingir que nunca a
abriram, entretanto, a chave começa a sangrar ininterruptamente - não importava os esforços
realizados para que a chave voltasse a ser como era antes. Ou seja, depois da tomada de
consciência daquela porta e do que havia por trás dela, houve um rompimento com a condição
em que a esposa se encontrava e as coisas já não podiam voltar a ser como antes.
O Barba Azul, ao voltar de viagem e descobrir que sua esposa abriu a porta proibida,
revela que os corpos empilhados eram de todas as suas ex-esposas, que o desobedeceram e
usaram a chave de arabesco e que assim sendo, ela também morreria. Entretanto, ela pede um
tempo a sós e, depois de um tempo pensando (elaborando), constrói um caminho (o que fazer
com o que percebi?) e traça uma estratégia para não sucumbir e morrer como as outras
esposas: no fim, o Barba Azul é quem morre. Isto é, diante da condição posta, “abriu a porta
morre”, como vinha ocorrendo com as outras mulheres, ela, após um tempo de elaboração,
rompe e amplia sua condição direcionando-se no sentido de sua busca - viver.
Tendo feito essas considerações, seguimos para o caminho trilhado para analisar o

16
Conforme vimos, segundo Philippini (2013), o trabalho arteterapêutico passa pelo processo de enformar,
informar e transformar.
43

material deste estudo. No que concerne às lentes utilizadas para fins de análise, partimos,
epistemológica e teoricamente, do feminismo decolonial e do estudo da Arteterapia com
enfoque junguiano. Maciel e Carneiro (2012, p.48) situam a abordagem junguiana da
Arteterapia como um convite:

Um convite para que tenhamos coragem de sentar na beira do poço do


inconsciente, da sombra, enfrentar o medo de entrar no escuro de si mesmo
para, enfim, pescar nossa luz caída utilizando nossas próprias mãos, nosso
corpo e nossa criatividade, por meio de um universo de cores, símbolos e
descobertas, permitindo que a claridade revelada possa trazer um sentido
ainda maior à nossa história de vida.

A forma como o material foi organizado para fins de análise teve inspirações a partir
da análise temática. Gomes (2009) faz a ressalva de que a análise em uma pesquisa qualitativa
deve buscar explorar o caráter coletivo dos temas discutidos sem, contudo, negligenciar o
singular. Diz, ainda, que a própria forma de descrever e organizar o material já aponta para
um caminho de análise. Este autor discute a análise temática a partir das ideias de Laurence
Bardin: consiste em identificar núcleos de sentido (temas) em determinado material, que
possam apontar para algum caminho de diálogo e análise.
É importante ratificar que nos inspiramos na análise temática enquanto técnica para
organização do material, visto que a mesma conta com os seguintes procedimentos:
categorização, inferência, descrição e interpretação17. Ou seja, entramos em contato com o
material em busca de se obter uma leitura do seu conjunto e suas particularidades; traçamos
formas de classificá-lo (eixos); determinamos o aporte teórico que irão orientar a análise; e
em seguida, dialogamos com esse conteúdo a partir dos temas (eixos) definidos, tecendo
costuras teóricas - buscando responder aos objetivos propostos. Tais procedimentos não são
realizados necessariamente de forma sequencial, bem como o caminho trilhado pelo(a)
pesquisador(a) vai depender dos objetivos da pesquisa, do objeto a ser estudado, da natureza
do material disponível e, ainda, da perspectiva teórica utilizada (GOMES, 2009).
Assim, o percurso traçado para fins da presente análise, partiu de três eixos temáticos -
os quais tiveram como base, o roteiro de observação do campo e objetivos deste estudo. É
importante explicitar que embora não sem relevância analítica, os dois primeiros eixos
tiveram o caráter de “base” (caminho suporte) para chegar ao terceiro - ponto principal deste
trabalho. Foram eles: 1) Sentidos construídos por mulheres acolhidas no grupo “Entre
Mulheres”, às suas experiências de sofrimento; 2) Sentidos construídos por mulheres
acolhidas no grupo “Entre Mulheres”, às suas experiências de silenciamento; 3)

17
Faço novamente a ressalva acerca da inquietação diante da palavra “interpretação” e preferência por “diálogo”.
44

Deslocamentos subjetivos produzidos acerca das experiências de silenciamento e sofrimento


das mulheres acolhidas no grupo “Entre Mulheres”, a partir do processo arteterapêutico.

4.4 ASPECTOS ÉTICOS

Por se tratar de uma pesquisa que envolveu a participação de seres humanos, o


presente projeto foi devidamente encaminhado à Plataforma Brasil para ser submetido ao
Comitê de Ética da UFPE, seguindo assim, as diretrizes que trata da bioética de pesquisas em
Ciências Humanas e Sociais envolvendo seres humanos, contidas na Resolução 510/2016.
Este estudo foi iniciado somente após a autorização do comitê supracitado. Assim
sendo, as participantes assinaram o Termo de Consentimento Livre e Esclarecido (TCLE)
(Apêndice A), que informa e esclarece do que se trata a pesquisa, seus objetivos e métodos.
Ainda de acordo com a Resolução 510/2016, a participação neste estudo foi de caráter
voluntário, ou seja, as participantes foram informadas de que a qualquer momento da pesquisa
as mesmas poderiam interromper ou recusar a utilização de suas informações, bem como de
que suas identidades foram a todo momento resguardadas pela garantia do anonimato.
Para fins de observações éticas, os dados coletados e analisados da referente pesquisa
foram armazenados no computador da pesquisadora, sendo sua responsabilidade permanecer
com este material durante o período de 5 anos e deletados posteriormente.

4.4.1 Riscos e benefícios

O presente estudo não oferece riscos significativos, podendo as participantes sentir


algum incômodo ou não confortáveis para disponibilizar algum material produzido na oficina.
No entanto, as mesmas puderam desistir de participar a qualquer momento da pesquisa, sem
qualquer prejuízo. O campo já é um espaço coletivo de cuidado, entretanto, caso tivesse sido
necessário, elas seriam encaminhadas para atendimento individual - o que não precisou
ocorrer.
Quanto aos benefícios o estudo permitiu o contato e reflexões com uma temática ainda
tão pouco explorada cientificamente, como a de formas alternativas de cuidado em saúde
mental e o papel da Arteterapia nesse ínterim, que vem sendo tratada de forma ainda
insuficiente pelo poder público e pela sociedade. Abriu-se caminho para que as experiências
dessas mulheres na oficina arteterapêutica ganhem visibilidade favorecendo, assim, a
propagação parcial de conhecimentos sobre esse campo de saber/fazer e, com isso, a criação
45

de novas estratégias de cuidado e atenção à saúde mental, bem como criar um espaço de
reflexão para as próprias mulheres que se confrontam com suas trajetórias de vida e suas
relações com possíveis silenciamento(s) e sofrimento(s).

4.5 CONTEXTUALIZANDO O CAMPO

Antes de adentrarmos na análise/diálogo do campo de pesquisa, se faz necessária


algumas considerações a respeito do mesmo. O campo foi realizado no grupo arteterapêutico
“Entre mulheres: histórias e tecituras de corpos e desejos pulsantes”, facilitado por Karla
Galvão18 e Adriana Ayub19, referente ao estágio prático do curso de formação em Arteterapia
da “Traços: Estudos em Arteterapia”, sob a supervisão de Edna Lopes 20. Embora exista um
recorte de oito encontros a serem analisados nesta pesquisa, participei de todos os ciclos do
grupo, ou seja, para além dos encontros analisados. Após a divulgação do convite 21 para
participação do mesmo, o número de inscrições ultrapassou bastante o limite de vagas e as
facilitadoras utilizaram os seguintes critérios de seleção: a) ordem de inscrição; b) contar com
a maior variedade possível em termos de profissões, idades, raças e experiências em outros
grupos de mulheres e/ou arteterapêuticos.
O grupo teve início no dia quinze de setembro de 2017, porém passei a fazer parte do
mesmo a partir do segundo encontro - diante de desistências e a consequente abertura de vaga.
Até o terceiro encontro, o grupo estava aberto e diante de novas desistências, a lista de espera
era acionada. A partir do encontro seguinte, as participantes foram definidas e não entrou
mais nenhuma mulher, embora durante o período em que o grupo aconteceu algumas tenham
saído. Durante o recorte de encontros analisados, houve a saída de uma mulher e três
apresentaram dificuldade de assiduidade22, totalizando a participação de 12 mulheres - além
das duas facilitadoras e de mim, enquanto observadora participante. Para fins de discussão e

18
Karla Galvão é professora de Psicologia da Universidade Federal de Pernambuco (UFPE) e trabalha com
grupos a partir de uma perspectiva feminista (apresentação que ela mesma fez no convite do grupo).
19
Adriana Ayub é mãe, pesquisadora do corpo, terapeuta corporal, bailarina, professora de dança e doula
(apresentação que ela mesma fez no convite do grupo).
20
Edna Lopes é psicóloga, local trainer em Análise Bioenergética, especialista em terapia de casal e família,
arteterapeuta, sócia-diretora do Horizonte Desenvolvimento Humano, uma das coordenadoras da “Traços -
estudos em Arteterapia” e supervisionou o estágio no qual aconteceu o grupo analisado.
21
Em anexo.
22
Via de regra, no estágio em Arteterapia, após três faltas consecutivas, a pessoa deixa de fazer parte do grupo.
Entretanto, as facilitadoras refletiram junto à supervisora, os motivos de tal dificuldade de frequência: as três
são mães (Borboleta, Flor e Catarina) - e por vezes não tinham com quem deixar seus filhos - ou ainda por
questões de trabalho. Diante da vinculação das mesmas com o grupo e vice-versa, bem como levando em
consideração todas as dificuldades - inclusive abordadas no grupo - de ser mulher e de ocupar alguns espaços,
se entendeu que as mesmas poderiam continuar frequentando os encontros.
46

análise, a presença das facilitadoras e a minha, enquanto pesquisadora-participante, fica


implícita - não sendo necessário fazer menção direta nos registros dos encontros mais adiante.
Por motivos de ética e garantia de sigilo, as participantes foram convidadas a escolher
um nome fictício pelo qual gostariam de ser chamadas neste estudo. Este convite acerca do
nome ocorreu no fim do ciclo a ser analisado, quando o grupo já estava muito mais próximo.
Assim, apresento as mulheres participantes deste grupo23, são elas: Mar, Sol, Girassol,
Soledade, Sofia, Lakshimi, Catarina, Borboleta, Antiga, Flora, Ana e Flor. São mulheres de
diferentes idades, religiões, profissões, cores, alturas, cabelos, bairros, condições financeiras,
desejos, medos, inseguranças, seguranças e experiências de vida, que, juntas, lutam pelo
direito de “ser-sendo” mulher, ocupando os espaços que desejarem - inclusive seus próprios
corpos.
Durante o primeiro ciclo (Diagnóstico), foram utilizados diversos materiais e técnicas
corporais com o objetivo de promover a experimentação dos mesmos, a integração do grupo,
o desbloqueio criativo e “diagnóstico” do tema simbólico do grupo. Em certo momento,
posteriormente ao tema do corpo e do cuidado de si - o tema começa a ser a casa, o sair de
casa ou convivência nas casas onde cada uma mora. Algumas participantes do grupo
planejaram, inclusive, morar juntas. O grupo passou por uma fase de maior introspecção e
pouco desejo de fala, independente de orientação das facilitadoras. O desejo expresso pelas
mulheres passa a tangenciar a meditação, respiração, bem como por um movimento de pedido
de acolhimento. Uma das participantes (Flor) diz: “vamo se acolher, o mundo anda
desumano” (sic).
Nesse primeiro momento foi possível perceber que até o terceiro encontro, o momento
de fechamento dos encontros estava ultrapassando o horário estimado, por dois motivos:
atraso para o início dos encontros diante da demora de algumas participantes chegarem, bem
como, principalmente, da demanda de fala que as participantes demonstraram no que tange o
momento de compartilhar como foi o encontro - desde o aquecimento até a produção plástica
propriamente dita. Aqui se faz importante evidenciar que não estamos assumindo em nossa
pesquisa que a Arteterapia nega a palavra enquanto expressão - de forma alguma. Entretanto,
é preciso estar atento para não reduzir o processo arteterapêutico a uma ferramenta
facilitadora da fala (oral, a partir de palavras), pois, assim sendo, cairemos no erro e

23
Em anexo, segue uma tabela de identificação, com características autodeclaradas pelas participantes, a fim de
explicitar melhor a diversidade do grupo. A escolha pela autodeclaração visou com que as mesmas dissessem
como se percebiam.
47

incoerência de entender que a Arteterapia estaria a serviço da fala - mantendo essa forma de
expressão enquanto fim e, portanto, caminho hegemônico.
Com isso, não estamos partindo do pressuposto de que a fala não possa auxiliar no
processo de elaboração e integração de conteúdos inconscientes, expressos no material
plástico. A fala faz parte, mas não é e nem precisa ser, necessariamente, o fim em si. Maciel e
Carneiro (2012) nos ajuda a pensar sobre isso ao enfatizarem que “a Arteterapia não se propõe
a ser uma terapia ‘muda’” (p. 51) - a verbalização enquanto efeito de uma vivência é
estruturante e possibilita um efeito terapêutico profundo. Elas afirmam, ainda, que as
linguagens simbólica e verbal, juntas, criam um terreno fértil de informações e conteúdos que
semeiam uma nova forma de ser e estar no mundo.
Já desde o início do grupo, uma das participantes, Flora, propõe que antes do
aquecimento, no momento da chegada, acontecesse o que ela chamou de “zeramento”: fazer
uma rodada de acolhimento de falas, com objetivo de esvaziamento de algum conteúdo que,
porventura, se quisesse falar, compartilhar, dividir. Esse convite do “zeramento” me fez
lembrar um trecho da música “Me curar de mim”24 de Flaira Ferro25 que diz: “pra me encher
do que importa, preciso me esvaziar”. Isto é, antes de iniciar o encontro, onde a produção
plástica traria a possibilidade de construção e transformação, havia necessidade de um
esvaziamento consciente, através da fala. Esse convite de Flora, bem como a dificuldade de
encerrar o encontro diante da demanda de fala já nos possibilita outros pontos de reflexão. Ou
seja, em que medida essa necessidade da fala já não denuncia nossa forma colonizada de
pensar - racionalizando - onde a fala é a forma sistematizadora preconizada? E/ou em que
medida essa necessidade de fala é deflagrada na própria reivindicação de se abrir um espaço
para tal, visto que ordinariamente, no dia a dia, esse espaço-tempo não é oportunizado?
Em um curso26 promovido pelo Grupo de Estudos e Pesquisas sobre Poder, Cultura e
Práticas Coletivas (GEPCOL) da Universidade Federal de Pernambuco (o qual faço parte), se
discutiu acerca da diferença entre linguagem e discurso. Foi trazido a linguagem enquanto
potencialidade (pensamento) e discurso enquanto performance. Assim, discurso seria uma
tomada de decisão dentro da linguagem. Desta forma, se concluiu que é reducionista conceber
a palavra enquanto detentora de todo o conteúdo em potencial a ser expresso. Uma frase

24
Música do álbum “Cordões Umbilicais”. Essa música se fez presente durante todo o meu processo do
mestrado, bem como da escrita.
25
Mulher, pernambucana, feminista, artista, dançarina, compositora e cantora.
26
Curso “Colonialidades e estereotipias nas representações do Outro”, realizado em outubro de 2017 com Daniel
de Souza Leão Vieira - professor adjunto do Departamento de Antropologia e Museologia (DAM) da UFPE.
48

mencionada neste curso, corrobora e resume bem esta compreensão: “Entre o visível
percebido e o visual representado, há uma gama de possibilidades de interpretações”.
É importante destacar que embora façamos uso, há incômodo em utilizar neste estudo,
os termos “análise” das imagens “coletadas” no grupo. Os termos que nos faz mais sentido
seriam “diálogo” com as imagens “construídas”. Não tivemos a pretensão de analisar as
imagens ou conteúdos destacados nas falas/produções plásticas das participantes, por
entendermos que essa postura seria incoerente à epistemologia assumida neste estudo, bem
como com o compromisso com o debate da decolonização. Não somos nós que temos o poder
de dizer do que se trata essa ou aquela imagem, tampouco falar da experiência destas
mulheres. Assim, o caminho que nos parece coerente é o do diálogo com essas
imagens/conteúdos, através da participação (situando nosso lugar de fala). E entendemos que
se trata de construção, e não de algo a ser coletado, diante da escolha metodológica de ser
pesquisa-intervenção, a partir da observação participante.
Desde o início dos encontros, temas como “simplificar, descomplicar a vida, tempo,
natureza, acolhimento, dor, cansaço e a condição de ser mulher” já começa a se fazer
presente. O tema do cansaço da mulher diante da vida tão cheia de complexidades, opressões
e a busca por um movimento simplificador, por uma maneira menos dolorosa de viver. Aqui
fica posto o desafio social de ser mulher diante da nossa luta por igualdade, bem como diante
de tanto acúmulo de papéis e responsabilidades a nós atribuídos: ser mulher, mãe, trabalhar
fora, cuidar da casa, etc.
As facilitadoras, em um dado momento, passam a convidar as participantes a
resumirem as falas em uma frase ou palavra. Houve, ainda, encontro em que a orientação foi a
de ficar todo o tempo da atividade em silêncio, buscando ouvir o som da natureza ao redor e
do próprio corpo (nesse dia, o encontro foi no laguinho da UFPE), seguido de produção
plástica. No primeiro dia em que esse movimento foi proposto, uma das participantes chega a
dizer “sair do racional não é fácil” (sic). Outro momento que me chamou atenção, ainda no
primeiro ciclo, foi o incômodo de Antiga com sua produção, quando a mesma diz que sente
sua imagem muito aleatória e a faz lembrar de uma fala de seu pai que afirmou ter lhe
marcado e machucado: “você está muito perdida” (sic). Após a produção e compartilhamento,
a mesma conclui, juntamente com outras participantes, que “se perder também é caminho”.
Nesse momento é possível trazer à tona o que Philippini (2013) discute acerca de conteúdos
inconscientes sendo enformados e informados, possibilitando sua elaboração/transformação.
Lakshimi, ao se apresentar em um dos primeiros encontros do grupo, fala sobre o
papel da dança criativa em sua vida, e defende a importância de ampliar as possibilidades do
49

corpo e da expressão. Dá, ainda, dois exemplos de como a dança possibilitou a ressignificação
de questões, ao entrar em contato com conteúdos latentes: 1) a isquemia da avó e de como a
mesma se beneficiou em assistir aulas de dança de seu grupo; 2) o amigo que desabafou e
elaborou, através da respiração na dança, a dor da morte do pai, ocasionada por problemas no
pulmão.
Por fim, destaco a participação de uma mulher que, não trarei nome real nem fictício,
pois a mesma deixou o grupo antes mesmo do início do segundo ciclo - recorte discutido
neste estudo. Ela, em um certo encontro (por volta do meio do primeiro ciclo), desabafa que
não consegue acessar os simbolismos, sentimentos e sensações que as demais participantes
compartilhavam e comungavam durante as produções e vivências. Ela chega a dizer: “Eu
acho muito lindo tudo isso que vocês falam, fazem… Mas pra ser sincera eu não sinto nada
disso que vocês sentem não, não sinto nada.” (sic). Essa participante sempre falou com
bastante frequência antes e durante as atividades - aparentando certa dificuldade em se
concentrar e se manter em silêncio.
No entanto, ao final do encontro ocorrido no laguinho da UFPE, no qual a orientação
foi a de ficar em silêncio o tempo inteiro, ela compartilha: “Lembram aquilo que falei sobre
não sentir nada? Hoje eu senti, obrigada!” (sic). É importante dizer que esta participante,
mesmo tendo precisado sair do grupo, deixou todas as participantes provocadas à reflexão.
Não me parece aleatório que o dia em que a mesma alega sentir algo, ser justamente o dia em
que o caminho da fala foi suspenso e o convite era sentir e ampliar a possibilidade de se
expressar. Sigamos para a descrição e discussão dos encontros selecionados.

4.5.1 Encontros Arteterapêuticos

A presente pesquisa se debruçou na observação e análise de um Grupo de Arteterapia


de abordagem breve, que, segundo Philippini (2011), tem como tempo de duração, em média,
de seis a oito meses, com frequência semanal. Cada sessão (ou encontro) dura,
aproximadamente 1h30 - e é onde e quando acontecem as vivências27 arteterapêuticas. De
acordo com Philippini (2011, p.30):

A história de um grupo constrói-se e configura-se a partir das vivências que


seus participantes possam compartilhar em determinado território, e tanto

27 O termo “vivência” é aqui entendido a partir do conceito de Gadamer: como atividade que ao ser
experienciada (não somente entendidas racionalmente), condensa conteúdos subjetivos significativos,
favorecendo o diálogo e construção de sentidos (NEUBAUER, 2015).
50

quanto possível, atividades realizadas, atendendo aos objetivos, com


regularidade de horário para iniciar e terminar e com tempo de duração
previamente determinado.

Apresento, adiante, a identificação e caracterização dos oito encontros observados do


grupo “Entre Mulheres”, com os quais dialoguei para fins de análise, tendo como base o
roteiro de observação utilizado. Serão detalhados local e data do encontro/observação, as
sujeitas presentes, os materiais e recursos utilizados e o evento observado. Além disso,
apresento uma síntese do ocorrido em cada encontro.

4.5.1.1 Primeiro encontro

● Local e data da observação: Serviço de Psicologia Aplicada (SPA)28 – Universidade


Federal de Pernambuco (UFPE), 26/01/2018.
● Sujeitas presentes: Mar, Flora, Girassol, Lakshimi, Antiga, Sol, Borboleta, Catarina,
Flor e Ana.
● Materiais e recursos utilizados: Recortes de poemas xerocados, envelopes coloridos,
tesouras, colas, papel sulfite A3 e A4, lápis e canetas.
● Evento observado: Primeiro encontro analisado e início do segundo ciclo: “Estímulos
Geradores”. Aprofundamento dos temas subjetivos de cada participante, bem como
trabalho de fortalecimento de vínculo do grupo.

O encontro teve início com o zeramento, onde todas deram notícias sobre como
passaram as últimas semanas e no qual se falou sobre o retorno dos encontros, visto que foi o
primeiro depois do recesso de fim de ano. O segundo momento do encontro foi o
aquecimento: a orientação foi caminhar pela sala em diferentes direções e, a cada bater de
palmas, a direção da caminhada deveria ser alterado. Durante esta caminhada, todas foram
falando palavras que vinham em mente acerca de suas experiências e vivências do que é ser
mulher - enquanto as facilitadoras iam escrevendo tais palavras em uma cartolina fixada na
parede.
No terceiro momento do encontro foi lido o poema “Matrioska”, musicado por Sofia
Freire29 e, em seguida, com todas sentadas em círculo, se ouviu essa música. Foram
disponibilizados cartões30 para que se escolhesse um e se entrasse em contato com a imagem e

28
É importante destacar a importância dessa presença e diálogo da Arteterapia em um espaço da Psicologia -
como o SPA - visto que esta parceria denota que vem sendo ampliando o modelo de clínica tradicional e, nesse
sentido, a Psicologia vem abrindo espaços para a troca com saberes outros.
29
Sofia Freire é cantora, compositora e pianista de Recife, Pernambuco.
30
Cartas do livro “As cartas do caminho sagrado: a descoberta do ser através dos ensinamentos dos índios norte-
americanos” de Jamie Sams.
51

com seu título - como estímulo para o trabalho a ser realizado no dia. Além disso, as
facilitadoras retiraram uma carta para o grupo como um todo. Todas compartilharam os
cartões retirados - títulos e ilustrações -, e as facilitadoras compartilharam a carta do grupo:
cara pintada (carta de número 19).
Em seguida, no quarto momento, foi realizada uma escrita criativa. Para tanto, as
facilitadoras entregaram envelopes coloridos com palavras recortadas de poemas selecionados
por elas e, ainda, de produções escritas do primeiro ciclo. O comando foi escrever uma carta
para si mesma, discorrendo sobre a mulher que cada uma é, utilizando as palavras dos
envelopes e da cartolina fixada na parede, bem como todos os estímulos recebidos até aquele
momento. Após a finalização da escrita das cartas, em duplas e um trio, cada participante foi
trocando como foi o processo de escrever a carta para si, da forma que desejassem, lendo ou
não a carta. Por fim, no fechamento deste dia, todas de pé em um círculo, fez-se uma imagem
corporal que ilustrasse como sentiram a atividade realizada.

4.5.1.2 Segundo encontro

● Local e data da observação: Serviço de Psicologia Aplicada (SPA) - UFPE,


02/02/2018.
● Sujeitas presentes: Sol, Flora, Soledade, Antiga e Flor.
● Materiais e recursos utilizados: Argila, giz de cera, hidrocor, tintas (acrílica,
nanquim e guache), agulhas, retalhos de pano, tábuas de madeira para apoio/suporte,
papel A3 e A4.
● Evento observado: Segundo encontro analisado do ciclo “Estímulos Geradores”.
Realização do autorretrato de cada participante.

Neste encontro, após o zeramento, as facilitadoras leram o texto do livro “As cartas do
caminho sagrado” referente à carta retirada para o grupo no encontro anterior. No
aquecimento foi realizada a técnica retirada do Projeto ArtPad (MCCARTHY, GALVÃO,
2001), e as facilitadoras leram um texto que as mesmas fizeram, utilizando e unindo recortes
de todas as cartas que as participantes escreveram no encontro anterior. Em seguida,
apresentaram várias imagens, de diferentes artistas (conhecidos e não tão conhecidos) que
retrataram, a partir de diferentes linguagens artísticas, seu autorretrato. Após esse primeiro
momento disparador de estímulos para a produção plástica, foram disponibilizados materiais
variados para que cada participante escolhesse os que desejassem para produzirem seus
autorretratos. No fechamento, todas puderam compartilhar como foi o encontro para cada
uma.
52

4.5.1.3 Terceiro encontro

● Local e data da observação: Sala de dança do Centro de Artes e Comunicação


(CAC) - UFPE, 23/02/2018.
● Sujeitas presentes: Sol, Mar, Soledade, Flora e Flor.
● Materiais e recursos utilizados: Papel madeira (0,90 x 1,70), giz de cera, hidrocor,
tintas (acrílica, nanquim e guache), linhas, agulhas, retalhos de pano, pincéis de
variados tipos e tamanhos.
● Evento observado: Terceiro encontro analisado do ciclo “Estímulos Geradores”.
Trabalho de sensibilização do olhar para o corpo enquanto indivíduo, sendo mulher.

No acolhimento e zeramento deste encontro, foi lido um texto de autoria de uma das
facilitadoras. O aquecimento aconteceu de maneira que todas deitaram no chão e foi realizada
uma respiração/sensibilização com o objetivo de cada uma perceber a estrutura e peso do
próprio corpo. Ainda nesse momento, foi orientado que cada uma escolhesse uma cor e
imaginasse que estavam se banhando, dando contorno e buscando acessar cada parte do corpo
com a cor escolhida.
Em seguida, foi proposto que, de olhos fechados, todas dançassem e fizessem uso do
espaço da sala de dança da maneira que desejassem. A orientação foi dançar em pé, deitadas,
dançar sozinhas inicialmente e, ao se deparar com alguém, parar e respirar junto com essa
pessoa, ao passo que a dupla tocava uma na outra com as mãos, ainda de olhos fechados, para
“ver” a partir de outro sentido, do tato. Terminado esse momento, cada dupla fez uma
massagem a partir do sopro, sem usar as mãos, com o intuito de sensibilizar a pele para a
realização do contorno deste “corpo-mulher”. Feita a sensibilização em dupla, todas se
levantaram e andaram pelo espaço sendo convidadas a se perceberem: os pés no chão,
respiração, esqueleto e articulações. Foram dados diferentes comandos - oscilando entre
movimentos lentos, rápidos e pausas até parar de vez e perceber como o corpo estava.
Após o trabalho de ativação, conscientização e sensibilização corporal, foram
disponibilizados papéis de grande comprimento para que, em duplas, uma fizesse o contorno
do corpo da outra - que escolhia uma posição para ser contornada sobre o papel. Tendo o
contorno do próprio corpo, alguns materiais foram oferecidos para que cada uma realizasse o
preenchimento dos corpos desenhados - sem ultrapassar as linhas de contorno dos mesmos.
Em seguida, deu-se o momento de fechamento e compartilhamento de como foi o encontro,
bem como o processo de produção plástica.
53

4.5.1.4 Quarto encontro

● Local e data da observação: Sala de dança “Ana Regina” do Centro de Artes e


Comunicação (CAC) - UFPE, 02/03/2018.
● Sujeitas presentes: Sol, Lakshimi, Mar, Flora, Sofia, Girassol, Soledade, Antiga,
Borboleta e Ana.
● Materiais e recursos utilizados: Papel madeira (0,90 x 1,70), giz de cera, hidrocor,
tintas (acrílica, nanquim e guache), linhas, tesouras, colas, agulhas, retalhos de pano e
pincéis de variados tipos e tamanhos.
● Evento observado: Quarto encontro analisado do ciclo “Estímulos Geradores”.
Continuação do trabalho iniciado no encontro anterior, dando ênfase ao corpo
coletivo, ou seja, à exterioridade dos corpos e os contextos aos quais os mesmos estão
inseridos.

O encontro iniciou, como de costume, com o momento do zeramento e em seguida,


como estímulo disparador, foi colocada a música “Meu bordado” de Sofia Freire. Após esse
momento, o aquecimento aconteceu de modo que as participantes foram convidadas a tocarem
todo o corpo de olhos fechados. Em sequência, foi realizada uma meditação guiada tendo
como mote os temas “corpo-árvore” e “corpo-casa”.
Posteriormente, todas caminharam pela sala observando as imagens com os contornos
dos corpos - que foram retomadas do encontro anterior -, com a orientação de pararem em
frente ao desenho do seu próprio corpo, pensando o que delimita o que está dentro e fora do
mesmo. Nesse momento, foi lido o poema “Minha casa é guardiã de meu corpo” de Hilda
Hilst31.
Tendo acesso a diversos materiais e recursos, as participantes foram convidadas a dar
contexto aos seus corpos, preenchendo a parte externa dos mesmos. Ao fim do momento da
produção, os corpos em seus contextos foram dispostos no centro e cada mulher foi convidada
a fazer um passeio na sala, com o objetivo de observar os “corpos” umas das outras. Para
finalizar este encontro, todas dançaram uma música e se abraçaram compartilhando como
estavam saindo naquele dia.

4.5.1.5 Quinto encontro

● Local e data da observação: Auditório do Serviço de Psicologia Aplicada (SPA) -


UFPE, 09/03/2018.

31
Hilda Hilst, natural de Jaú - São Paulo, foi poeta, ficcionista, cronista e dramaturga reconhecida como uma das
maiores escritoras em língua portuguesa do século XX.
54

● Sujeitas presentes: Mar, Sol, Flora, Lakshimi, Soledade, Sofia, Girassol, Borboleta,
Catarina, Flor e Ana.
● Materiais e recursos utilizados: Giz, massa de modelar, colas, argila, papel kraft A4,
linhas e fita adesiva, tecido de seda azul.
● Evento observado: Quinto encontro analisado do ciclo “Estímulos Geradores”.
Aprofundamento do trabalho com o corpo coletivo, estabelecendo relação entre casa,
bairro e cidade.

No zeramento desse encontro as participantes trouxeram o desejo de falar mais e


comentar acerca dos encontros anteriores, visto que nos últimos encontros houve pouca
expressão através da fala. Após esse momento se ouviu, em silêncio e deitadas, a música
“Insubmissa” de Maíra Baldaia32. Foram disponibilizados tecidos de seda azul com os quais
as participantes dançaram, de olhos fechados, as músicas “Cumadre” de Céu 33, “Mergulho
interior” e “Água” de Anelis Assumpção34.
No instante em que as músicas findaram, a proposta foi revisitar os corpos produzidos
nos encontros anteriores, os quais estavam novamente dispostos ao redor da sala, a partir do
mesmo mote de reflexão: “o que delimita o dentro e o fora do meu corpo?”. Depois, com os
tecidos azuis no chão, foi feito uma espécie de “ninho” onde todas deitaram abraçadas para
ouvir a música “Jardim Secreto” de Sofia Freire. Importante destacar a pertinência da escolha
da música, visto que seu conteúdo tangencia temas como árvores, floresta, casas, bairros,
cidade - metaforicamente, a cidade daquelas mulheres.
Antes de iniciar a produção plástica deste dia, se ouviu a música “Nossa casa” de
Arnaldo Antunes35. Ao fim da mesma, foi distribuído papel kraft tamanho A3 e giz e
solicitado que cada uma desenhasse sua casa ou bairro. Em um segundo momento da
produção, as mulheres foram convidadas a fazer uma intervenção (com massa de modelar ou
argila) nos desenhos, de modo ao mesmo ficar tridimensional. As produções, após finalizadas,
foram dispostas no centro da sala e as participantes caminharam ao redor com o intuito de
observar o que foi feito por todas. Em seguida, todas sentadas em círculo, apresentam suas
imagens e, na medida em que isso era feito, iam colocando as mesmas na sala de modo a
montar um mapa dessas casas e bairros - formando a cidade dessas mulheres. Após a
montagem da “cidade”, foram convidadas a entrelaçarem cada produção com linhas coloridas,
afim de que todas as casas e bairros se conectassem. Antes de encerrar o encontro, foi

32
Maíra Baldaia, natural de Minas Gerais, é cantora, compositora e atriz.
33
Céu, natural de São Paulo, é cantora e compositora.
34
Anelis Assumpção, natural de São Paulo, é cantora e compositora.
35
Arnaldo Antunes, natural de São Paulo, é músico, poeta, compositor, DJ e artista visual.
55

colocada a música “Quis mudar” de Tim Bernardes36 e todas se abraçaram, entrelaçando-se, e


se despediram uma das outras.

4.5.1.6 Sexto encontro

● Local e data da observação: Serviço de Psicologia Aplicada (SPA) - UFPE,


16/03/2018.
● Sujeitas presentes: Mar, Flora, Soledade, Sofia, Sol, Lakshimi, Girassol, Antiga,
Borboleta, Catarina, Flor e Ana.
● Materiais e recursos utilizados: Bacias com água, hidratante, panos, papel kraft A4 e
giz de diferentes cores.
● Evento observado: Sexto encontro analisado do ciclo “Estímulos Geradores”.
Trabalhar o contraste entre sombra e luz, buscando acessar, acolher e integrar luz e
sombra.

Foi realizado o zeramento, no qual as participantes dividiram questões que as estavam


angustiando naquele dia. É importante situar que este encontro ocorreu um dia após as
notícias do assassinato de Marielle Franco37 e da retirada do ar do videoclipe “Coisa mais
bonita” de Flaira Ferro, que aborda a sexualidade feminina - tendo sido dois dos temas
abordados pelo grupo nesse momento.
Após o zeramento foi colocada a música “Coisa mais bonita” de Flaira e o convite foi
que todas dançassem, iniciando o aquecimento. Em seguida, cada participante buscou um
espaço na sala para sentar/deitar confortavelmente e foi colocada a música “me curar de mim”
da mesma artista. Ao fim deste momento, em duplas, foi realizado um escalda pés seguido de
massagem.
Depois do cuidado com os pés, a orientação foi realizar massagem na cabeça, nuca e
rosto - ainda em dupla. Ao final desse momento de cuidado, da cabeça aos pés, foi
disponibilizado papel kraft A3 e giz para que, em curto espaço de tempo (enquanto durasse
uma música), passar para o papel como cada uma estava se sentindo. Para fechar esse
encontro, foi colocada música e todas dançaram livremente.

36
Tim Bernardes, natural de São Paulo, é músico, compositor, produtor musical e multi-instrumentista.
37
Marielle Franco era mulher negra, socióloga, feminista, militante dos direitos humanos e política brasileira,
além de vereadora do Rio de Janeiro - 2017/2020. Assassinada na madrugada do dia 14/03/2018 a tiros.
56

4.5.1.7 Sétimo encontro38

● Local e data da observação: Centro de Capoeira São Salomão, 17/03/2018.


● Sujeitas presentes: Mar, Flora, Soledade, Sofia, Sol, Girassol, Lakshimi e Ana.
● Materiais e recursos utilizados: Produções realizados no dia anterior, grafite de
carvão vegetal, bacias com água, ataduras gessadas, tesouras, plástico filme, vaselina,
panos, papel sulfite A4, velas, fósforos, giz de cera, suporte de madeira, tintas
(acrílica, nanquim e guache), linhas, recortes de revistas, argila, areias coloridas, cola
branca e cola de contato.
● Evento observado: Sétimo encontro analisado do ciclo “Estímulos Geradores”. Dar
continuidade e aprofundamento ao trabalho do contraste entre sombra e luz, buscando
acessar, acolher e integrar luz e sombra.

Em detrimento dos recessos de fim de ano e de carnaval, alguns encontros não


aconteceram. Desta forma, foi acordado em grupo que ao final, tanto do segundo quanto do
terceiro ciclo, haveria um encontro de maior duração, que se desdobraria em dois dias: sexta
(no horário normal) e sábado (manhã e tarde). Nesta data, além das vivências, ficou acordado
que o sábado terminaria - para quem pudesse ir - no espetáculo “Três mulheres e um bordado
de sol”39.
O encontro iniciou com o zeramento, como de costume. Em seguida, aconteceu um
momento de respiração e aquecimento com música e dança. Após essa etapa, a imagem
produzida no dia anterior foi devolvida para as participantes e foi orientado que se fizessem
uma intervenção na mesma com carvão e ao final, realizassem uma escrita criativa acerca do
processo. E, como última atividade da manhã, em dupla, foi feita uma máscara de gesso no
rosto de cada uma.
Na parte da tarde, após aquecimento com música, foram disponibilizados papel e velas
para que se utilizasse fogo para intervir no papel, seja com manchas e/ou cinzas. Depois de
utilizar o fogo enquanto intervenção direta no papel, foi disponibilizado giz de cera para
derreter com a vela e intervir na imagem iniciada com o fogo/cinzas. Após essa produção,
com as máscaras já secas, foi orientado que cada participante intervisse em suas máscaras,
utilizando os materiais disponibilizados e/ou utilizando quaisquer materiais encontrados no
ambiente - como flores, por exemplo.

38
Este encontro, por ter sido mais longo (pois durou manhã e tarde) e mediante exigências acerca de carga
horária, foi contabilizado pela dupla de estágio como sendo três encontros. Entretanto, para fins de organização
e reflexão neste texto, estou chamando de “sétimo encontro”, visto que fala de um dia observado. Contudo,
ainda, sem deixar de destacar sua distinção de tempo dos demais encontros.
39
Espetáculo criado pela Compassos Cia. de Dança, sua montagem se inspira nas obras de três mulheres artistas:
Clarice Lispector, Edith Piaf e Frida Kahlo. Dirigido pelo bailarino e coreógrafo Raimundo Branco.
57

Por fim, com as máscaras prontas, a etapa seguinte foi “vestir” e “dar vida” às
mesmas, de forma livre e espontânea. Cada uma protagonizou uma performance com suas
máscaras da maneira que desejaram. É importante destacar que o encontro terminou neste
momento, porém, foi combinado - com quem tivesse disponibilidade - de ir juntas para o
espetáculo mencionado acima: Três mulheres e um bordado de sol - e assim aconteceu.

4.5.1.8 Oitavo encontro

● Local e data da observação: Serviço de Psicologia Aplicada (SPA) - UFPE,


23/03/2018.
● Sujeitas presentes: Mar, Flora, Lakshimi, Sofia, Antiga e Ana.
● Materiais e recursos utilizados: Datashow, computador, som, fotos selecionadas das
produções do segundo ciclo, papel ofício A4, canetas e lápis.
● Evento observado: Oitavo e último encontro analisado do ciclo “Estímulos
Geradores”. Fechamento do ciclo revisitando as produções e construção de história
coletiva.

Durante o zeramento deste último encontro a ser analisado, as facilitadoras fizeram um


resgate do segundo ciclo e sinalizaram que no encontro seguinte se daria início ao terceiro: o
Processo Autogestivo. Neste terceiro ciclo, é possível perceber o maior protagonismo das
participantes, no que diz respeito ao direcionamento dos encontros. Nessa fase é possível
identificar os caminhos que o próprio grupo, ainda com a mediação das facilitadoras, começa
a traçar.
Alguns dos caminhos esboçados foram: uma participante (Lakshimi) sugeriu criar uma
célula coreográfica em grupo, outra participante (Mar), fotógrafa, propôs que ela fotografasse
cada mulher do grupo e, ainda, se começou a cogitar, nesse encontro, a fazer uma tatuagem
coletiva, escolhendo e/ou produzindo juntas o desenho a ser tatuado40.
Após o zeramento - em que as participantes demonstraram demanda de fala,
compartilhando sonhos e um fim de relacionamento -, foi orientado que todas encontrassem
um lugar na sala e uma posição confortável para deitar. Foi projetado na parede um conjunto
de fotos de momentos e produções do grupo, como uma retrospectiva. Enquanto cada uma ia
vendo essas imagens, foi solicitado que, munidas de papel e lápis, elas fossem escrevendo o
que lhes ocorressem à mente, a partir de escrita criativa.

40Tal ideia da tatuagem coletiva acabou sendo concretizada pelo grupo. Essa decisão despertou nas mulheres a
referência à música Tatuagem de Chico Buarque, quando a mesma diz “pra te dar coragem de seguir viagem”.
As imagens, produzidas pela artista e tatuadora Nathalia Queiroz para que o grupo realizasse a tatuagem, estão
em anexo.
58

Em seguida, foi realizada uma contação de história coletiva sobre aquelas mulheres,
de forma oral - uma pessoa começava a história com uma frase e a outra seguia, de forma que
todas contribuíam, complementavam. Após esse momento, em duplas e trio, a orientação foi
escrever a história do grupo utilizando o que haviam escrito durante a exposição das fotos e,
em seguida, fazer uma imagem congelada ao mesmo tempo em que foi lida a história
produzida.

As histórias produzidas nos três grupos foram as seguintes:

Sem título

“Um dia, 14 corações se encontraram numa sala


Cabeças de diferentes realidades conectadas
Corações sangrando por diferentes lutas
Corações, músculos, ossos, rostos, mãos, pés que se tocaram
Partes de corpos inteiros, vibrando, na intenção de
Renascer, viver, sobreviver
Juntas e também separadas, sabendo que fazem parte de um todo:
Um todo que sofre, que é oprimido, mas que também possui forças
Para encontrar na loucura, seus pontos de equilíbrio.
E talvez, outro dia, esses 14 corações poderão dar
Força e sentido a outros corações.
Mais do que já buscam fazer.
Talvez um dia, também, esses corações consigam ainda mais - e mais - forças para continuar
buscando equilíbrio,
Juntas ou separadas.
E mesmo que tenha a sensação de que vai
Enlouquecer, mas sabem que basta aterrar,
Respirar, esvaziar o pensamento, ou apenas,
Abraçar seus corpos
Que tudo se dilui
No círculo do carinho e do cuidado que
ALIMENTA!”

“Um florescimento de mulheres

Você mulher, com todas as suas sombras, sangue e sabedoria,


Transmuta-se na lua, luz e energia.
Sangue em movimento, tenha coragem
Selvagem, corra sentindo o vento.
Suas luzes trazem a força do brilho, o reflexo e a intensidade
Que jamais vista. E dentro de tanta força e abraços
Dos braços que as une, olham para dentro mergulha,
Nas suas dores e aceitam seu sangue.
Nós, que sagramos e bebemos o próprio sangue, lavamos nossas
59

Dores com ele, pra lembrar de que são feitas.


Banhamos as irmãs.
Abraçamos o do cuidado.
Criamos o cuidado mor: O autocuidado!”

“R- Evolução

Era um vazio não preenchido


Habitado por um engasgo de dor
Pulsa o silêncio no círculo sagrado
Uma fala hemorrágica,
Mistura de sangues
Nutrindo um grito de cor!
Nasce um novo espaço nunca habitado.”
60

5 ADENTRANDO O TERRENO DE ANÁLISE

Buscou-se discutir, neste estudo, os sentidos que as mulheres deste grupo construíram
acerca de suas experiências de sofrimento, de silenciamento e os sentidos construídos pelas
mesmas, no que concerne às contribuições da Arteterapia em seus processos de expressão e
deslocamentos subjetivos acerca de suas experiências de sofrimento. Diante do que foi
discutido até aqui, foi possível constatar a potência do trabalho com arte no campo da saúde
mental, bem como o aspecto do silenciamento que, historicamente, as mulheres sofreram - e
sofrem.
A Arteterapia é uma das possibilidades terapêuticas de comunicação e expressão que
não se ancora exclusivamente no discurso e tem como objetivo facilitar, por meios
alternativos, o acesso ao universo imaginário e simbólico. A partir da criação expressiva, a
exploração de instâncias imaginativas é favorecida e, através da materialização das mesmas, o
confronto e atribuição de significados de conteúdos inconscientes se tornam possíveis,
corroborando para uma maior elaboração psíquica e consequente ampliação dos limites da
consciência (MACIEL, CARNEIRO, 2012).
Tendo feito a contextualização do grupo e das participantes, partimos para os recortes
analisados: os encontros do segundo ciclo - Estímulos Geradores. Durante o primeiro ciclo, a
partir das experimentações com os materiais plásticos - e na medida em que o grupo foi se
vinculando -, os temas simbólicos compartilhados começaram a surgir nas produções e falas
das mulheres. Philippini (2011) afirma que independente das especificidades dos(as)
participantes, o grupo apresenta um tema simbólico comum, uma psicodinâmica central.
Assim, o tema simbólico constelado no grupo, que passa a ser amplificado durante o segundo
ciclo, passou por questões do ser mulher e do cuidado com o corpo/casa - a partir do processo
de integração da sombra41 (JUNG, 2008).

41
Conceito junguiano que será abordado mais adiante.
61

5.1 SENTIDOS CONSTRUÍDOS POR MULHERES ACOLHIDAS NO GRUPO “ENTRE


MULHERES” ÀS SUAS EXPERIÊNCIAS DE SOFRIMENTO

“Mas se eu não tiver coragem pra enfrentar os


meus defeitos, de que forma, de que jeito eu vou
me curar de mim?
Se é que essa cura há de existir. Não sei, só sei
que a busco em mim”

(FERRO, 2014b, n.p)

A partir do tema constelado no grupo, as mulheres foram acessando conteúdos


subjetivos, adentrando em pontos tanto pessoais quanto coletivos. Nos dois primeiros eixos de
análise, foi possível dialogar com conteúdos que tangenciam questões acerca das experiências
de sofrimento e silenciamento - tanto nas produções plásticas e em suas falas, bem como em
observações feitas durante minha participação no grupo arteterapêutico.
No primeiro encontro do segundo ciclo, na carta que escreveram para a mulher que
são, destaco os temas simbólicos comungados em todas as cartas (ou “carta-vida”, como
chamou Catarina). Temas como a busca por se reencontrar; renascimento; se reafirmar; ser
livre; medo; dor; curar a mulher que foi, é e será; solidão; mudança; se reconstruir;
transformação; ressignificar; romper as amarras que prendem; aprisionamento e o ouvir a
intuição, se fizeram presentes enquanto expressão de dor e busca das mulheres do grupo. Essa
busca passa pelo desejo de autonomia e, a partir da criação expressiva, sob formas, cores e
símbolos, o sujeito tem a possibilidade de se recriar, ao ressignificar e reconfigurar sua
relação consigo e com o mundo (MACIEL, CARNEIRO, 2012).
É importante destacar que temos no grupo mulheres universitárias, solteiras, casadas,
mães, de diferentes realidades financeiras, diferentes idades e cores, diferentes orientações
sexuais, diferentes desejos, sonhos e dores. Assim, as experiências de sofrimento desse grupo,
apesar de um tema simbólico constelado coletivamente, tocam e são vividas a partir de formas
e lugares distintos. Os coletivos feministas, a partir de várias pautas e bandeiras de luta,
discutem sobre as dores acerca da condição da mulher na sociedade. Destaco aqui nesse
estudo, o Centro Feminista de Estudos e Assessoria (CFEMEA) - fundado em 1989 e com
62

sede em Brasília - DF. Este centro realiza um trabalho em prol do autocuidado e cuidado entre
as ativistas como forma de fortalecimento entre as mulheres.
Sol, que no início dos encontros não se expressava muito a partir da fala, esteve
sempre muito disponível para produzir plasticamente. Paulatinamente ela começa a trazer,
inclusive, posteriormente também na fala, conteúdos que afirmou lhe causar dor e sofrimento.
Ela, em dado momento, afirma sentir dor por ser mulher negra - trazendo exemplos de
opressão em sua vida pessoal e ampliando para contextos sociais. Sol, que usava tranças afro,
pretas e roxas, ao se falar sobre fotos tiradas por outra participante do grupo (Mar), chegou a
dizer, em um dos momentos do zeramento, que foi difícil olhar para tais fotos. Ela diz: “Foi
difícil pra mim, ver minhas fotos. Boa parte do tempo não gostei de me ver. Isso dói, porque
não tô gostando do que eu tô vendo, e não é só externo” (sic). Fala, ainda, sobre “a dor e
resistência que é viver e sobreviver” (sic).
Destaco brevemente recortes do caminho percorrido por esta participante, entendendo
que ele ilustra, em alguma medida, o processo do grupo como um todo (embora saibamos que
ele é vivido de formas distintas), no que concerne a busca de olhar para si, para quem se é e
para seu lugar no mundo. No primeiro encontro analisado, em que foi proposto que se
escrevesse uma carta para si mesmo, enquanto mulher, Sol escreve:

“Tudo o que falo não é meu, disseram.


Mas o que é nosso? Nada?
Não quero que o meu, o nosso seja deles,
O que é nosso é nosso.
Tentam, me arrancam o que é meu,
Mas, só porque foi me arrancado que não é meu?
Mesmo o que me tomam deveria ser meu.
É meu!!!
Me tomam meu corpo, mas é meu,
Me tomam minha liberdade, mas é minha,
Me tomam meus direitos, mas é meu.
É tudo meu, mas não tenho NADA”.
Seu texto é uma denúncia. É um grito que reivindica sua voz, seu lugar, seu corpo,
seus direitos e liberdade de ser - seu cabelo. Em sua “carta-manifesto”, Sol joga luz na sua dor
e na sua busca de retomada, de reencontro consigo mesma. Aqui convido Grada Kilomba -
natural de Lisboa, mulher negra, psicóloga, escritora, teórica e artista que produz
conhecimento a partir da perspectiva decolonial, tecendo relações entre gênero, raça e classe.
A carta de Sol me remeteu a um trecho do texto “Enquanto eu escrevo” de Kilomba, visto que
é possível constatar em ambos os textos a intersecção gênero-raça. No texto a seguir a autora
aponta para o processo colonizador e sua busca pela retomada de si:
63

Às vezes eu temo escrever. A escrita se transforma em medo, para que eu


não possa escapar de tantas construções coloniais. Nesse mundo, eu sou vista
como um corpo que não pode produzir conhecimento, como um corpo fora
do lugar. Eu sei que, enquanto escrevo, cada palavra escolhida por mim será
examinada, e, provavelmente, deslegitimada. Então, por que eu escrevo? Eu
tenho que fazê-lo eu estou incrustada numa história de silêncios impostos, de
vozes torturadas, de línguas interrompidas por idiomas forçados e
interrompidas falas. Estou rodeada por espaços brancos onde, dificilmente,
eu posso adentrar e permanecer. Então, por que eu escrevo? Escrevo, quase
como na obrigação, para encontrar a mim mesma. Enquanto eu escrevo, eu
não sou o Outro, mas a própria voz. Não o objeto, mas o sujeito. Torno-me
aquela que descreve, e não a que é descrita. Eu me torno autora, e a
autoridade, em minha própria história. Eu me torno a oposição absoluta ao
que o projeto colonial predeterminou. Eu retorno a mim mesma. Eu me
torno: existo42 (KILOMBA, 2016).

Antiga, mulher branca, em alguma medida comunga desse manifesto quando, em sua
carta, diz: “já fizeram de ti objeto de poesia, mas ser objeto basta?”; “Aceita que tu é intuição
e que o mundo dos homens simplesmente não é pra tu. Essa bosta de racionalidade, de razão e
sobriedade que um dia te disseram ser tu. Tu é muito além disso” e “É falar de mim, ouvir de
mim”. Parafraseando Chico Buarque43, elas falam do desejo de “ter voz ativa, no nosso
destino mandar”.
Mar, por sua vez, que não falava quase nada durante boa parte dos encontros do
primeiro ciclo, passou a se arriscar a cada zeramento, falando e se expressando cada vez mais.
Inicia falando sobre sua dificuldade em falar em público e confiar nas pessoas. Depois, o tema
passou por sua relação difícil com os pais - sobretudo com o pai - e sobre o
tratamento/educação diferente que recebe pelo fato de ser mulher. Sua dor passou pela busca
da aceitação de si, pelo mundo e sobretudo por si.
Destaco a imagem dos corpos produzido por Borboleta e Girassol, em que as mesmas
advogam pelo direito de ser quem se é, pela própria identidade.

42 Tradução do vídeo “While I Write”, do “The desire project” apresentado por Kilomba, na 32ª Bienal de São
Paulo (2016), no Brasil. Tradução disponível em: <http://www.pretaenerd.com.br/2015/10/escrita-como-
resistencia-e-assentamento.html>. Acesso em 28 mai 2018.
43
Francisco Buarque de Hollanda (Chico Buarque) é músico, dramaturgo, escritor e ator brasileiro.
64

Figura 1 - Produção do corpo e seu entorno de Borboleta

Fonte: Banco de fotografias do grupo “Entre Mulheres”

FIGURA 2 - Destaque do corpo produzido por Borboleta

Fonte: Banco de fotografias do grupo “Entre Mulheres”


65

Figura 3 - Destaque da frase do corpo produzido por Borboleta

Fonte: Banco de fotografias do grupo “Entre Mulheres”

Nessas imagens, Borboleta traz figuras que tangenciam vários dos temas supracitados,
entretanto, destaco o texto que ela usa para compor seu corpo, que diz: “Ser diferente não é
fácil. Exige coragem. O movimento passa por várias etapas de aceitação até atingir graus em
que a diferença possa ser valorizada a ponto de se transformar em identidade”. Maciel e
Carneiro (2012) afirmam que o processo de cura passa pela tomada de consciência da própria
dinâmica psíquica, ressignificando e distanciando-se das expectativas e compromissos de se
atingir padrões “ideais”, que traz adoecimento e sofrimento. A criação expressiva seria, assim,
uma possibilidade de se reapropriar do íntimo, de recuperar a individualidade perdida. É
possível observar que a mesma traz o mundo em seu entorno. Entretanto, ela coloca o sol na
altura de seu peito - estrela central do sistema solar-, sendo ela mesma e o que ela sente, o seu
centro. Me chamou atenção, ainda, o local e posição onde a mesma coloca a frase destacada:
entre o mundo e sua garganta - chakra44 da expressão, voz. Este, segundo Leadbeater (2012),
de cor predominantemente azul, é o quinto chakra e diz respeito à comunicação e expressão45.

44
Chakra é uma palavra sânscrita que significa roda. Diz respeito a uma série de vórtices que se assemelham a
rodas que existem na superfície do duplo etérico (parte invisível) do corpo. Os chakras, ou centros de força,
são pontos de conexão pelos quais flui a energia de um a outro veículo ou corpo humano. São sete, os
principais chakras: o primeiro, raiz ou básico (Muladhara), na base da espinha dorsal; o segundo, baço
(Swadhisthana), na vizinhança dos órgãos genitais; o terceiro, umbigo (Manipura), sobre o plexo solar; o
quarto, coração (Anahata), sobre o coração; o quinto, laríngeo (Vishuddha), na frente da garganta; o sexto,
frontal (Ajna), entre as sobrancelhas e sétimo, coronário (Sahasrara), no alto da cabeça (LEADBEATER,
20012).
45
Não poderia deixar de registrar a dificuldade que tive em encontrar artigos e estudos sobre a teoria dos
chakras, para aqui referenciar - o que nos mostra que este campo de conhecimento, não oriundo do Ocidente, é
pouco explorado (por que não dizer negligenciado, subalternizado?).
66

Corroborando, ilustrando e concluindo esta reflexão, Girassol, mulher negra, preenche


o entorno do seu corpo com sua mão. Dentre tantas possibilidades de reflexão que este
símbolo no entorno de seu corpo nos permite, destacamos alguns pontos que corroboram com
nossa linha de diálogo aqui traçada. Essas mãos ao redor de seu corpo nos fez pensar sobre
barreiras de proteção e segurança, sobre delimitação de espaço. Outro caminho que nos foi
possível, foi o de dizer respeito a uma denúncia: quantas mãos, historicamente, já tocaram
esse corpo? Nas mãos estão nossas digitais, estão a impressão de nossa “identidade”,
individualidade. São caminhos de reflexão que não se excluem, pois diante da tomada de
consciência de um corpo manipulado por tantas mãos outras, em que medida não há uma
necessidade de delimitar esse espaço, protegê-lo e reconfigurá-lo, transformá-lo a partir de si?

Figura 4 - Produção do corpo e seu entorno de Girassol

Fonte: Banco de fotografias do grupo “Entre Mulheres”


67

Figura 5 - Destaque do corpo produzido por Girassol

Fonte: Banco de fotografias do grupo “Entre Mulheres”

O trabalho arteterapêutico realizado nesses encontros em que se delimitou o contorno


do próprio corpo e de seu contexto, buscou favorecer o diálogo entre o interno e o externo, o
conhecido e o desconhecido, em que o sujeito cria condições de transformar seu estado
emocional e seu comportamento diante do mundo, adaptando-se a ele, integrando-se
consciente e inconsciente (MACIEL, CARNEIRO, 2012). Jung (2010) afirma que o sujeito só
tem condições de responder satisfatoriamente ao mundo externo se estiver em harmonia com
seu mundo interno e, inversamente, só estabelece essa harmonia consigo, se adaptado ao
mundo externo.
Diante do que foi relatado até aqui, podemos ter ideia dos sentidos que as mulheres
deste grupo atribuem às suas experiências de sofrimento e junto dessa tomada de consciência,
vem uma busca por uma ressignificação. Essa busca passa pelo que Jung (2011) vai chamar
de caminho de individuação:

Individuação significa tornar-se um ser único, na medida em que por


“individualidade” entendemos nossa singularidade mais íntima, última e
incomparável, significando também que nos tornamos o nosso próprio si-
mesmo. Podemos pois traduzir “individuação” como “tornar-se si mesmo”
(Verselbstung) ou “o realizar-se do si-mesmo” (Selbstverwirklichung)
(JUNG, 2011, pág. 63).
68

5.2 SENTIDOS CONSTRUÍDOS POR MULHERES ACOLHIDAS NO GRUPO “ENTRE


MULHERES” ÀS SUAS EXPERIÊNCIAS DE SILENCIAMENTO

“Silenciar: Silensinar. Falar, falar, falar, falar”

(FERRO, 2014c, n.p)

De início, me pareceu uma tarefa árdua distinguir os eixos que falam de sofrimento e
experiências de silenciamento - pois entendo que uma experiência acaba nos dizendo muito da
outra. Entretanto, cheguei à conclusão que não se tratou de “distinguir”, mas de me
aprofundar na reflexão acerca do silenciamento (como uma das facetas do sofrimento). Mas,
antes de nos debruçarmos nas produções e narrativas do processo arteterapêutico, avalio ser
importante fazer algumas ressalvas. Primeiramente, quero situar o que eu mesma, enquanto
mulher, entendo por experiências de silenciamento. Entendo que podemos ser silenciadas de
diversas maneiras: da impossibilidade à obrigatoriedade de fala. Desejar falar e não gozar de
espaços em que isso seja possível, silencia. Querer expressar por caminhos outros, que não
exclusivamente a palavra, e não ter condições que favoreçam, silencia. Escolher expressar,
sem dizer nada, e ser colocada em situação de “obrigatoriedade” de fala, também silencia.
Sobre este último exemplo, gostaria de trazer uma vivência que tive e que me fez
entender isso desta forma: em uma roda de conversa (onde a pauta era feminista!), tinham
várias mulheres que puxavam a discussão e outras que, apesar de não verbalizar nada,
expressavam de maneiras outras: estando lá o sábado inteiro, se emocionando com o que
ouviam, ocupando aquele lugar. Entretanto, em certo momento, uma mulher chega a falar
“vocês que estão aqui, mas não estão dizendo nada, vejo que estão se emocionando e com
certeza se fortalecendo com o que estão ouvindo aqui. Falem também, do mesmo jeito que
vocês, nós que estamos falando também queremos ouvir e crescer com isso”. (sic). Após essa
fala, foi possível perceber que o grupo teve um certo esvaziamento e ficou nítido pra mim o
motivo, quando uma fala baixinho e constrangida pra mim: “É por isso que eu não consigo
participar dessas reuniões. Eu sinto que ainda preciso me fortalecer ouvindo pra ter o que
falar, mas quando me sinto encurralada tendo que falar, quero ir embora” (sic).
É um movimento histórico tão cruel e arraigado (colonizador) que, se não estivermos
atentas, o reproduzimos mesmo quando a intenção é outra(!). Acredito muito que o que a
mulher disse foi no sentido de convidar e motivar a fala de quem ainda não tinha usado sua
69

voz. Acredito ainda que, por vezes, as mulheres que não usam sua voz, não o fazem porque
não desejam - há toda uma construção social em que se encontram engendradas, a qual é um
processo desconstruir e entender que elas podem (se quiserem) falar. O posicionamento da
mulher acabou por gerar um sentimento de dívida e culpa (sofrimento) de quem ainda não se
sentia fortalecida para falar - ou mesmo queria. Isso para não apontar, novamente, para o
lugar da palavra entendida como sendo a principal forma de expressão - pois reitero que todas
as mulheres que ali se encontravam, estavam se expressando sim: com seus corpos, emoções,
ouvidos, falas, gestos, olhares e, sobretudo, presenças.
Por que as mulheres são silenciadas? Quem ou o que desqualifica suas vozes? Por que
a posição de subalternidade? Como vimos, historicamente, houve uma divisão social
(desigual) de lugares entre homens e mulheres. Aos homens, sempre esteve o lugar da
produção, espaços públicos, de fala e sobretudo da razão. Às mulheres, foi imposto o lugar da
reprodução, de espaços privados e ligadas ao campo da emoção e do sentir (PERROT, 2005).
As mulheres foram, assim, entendendo que não podiam (nem querer) falar, pois este lugar de
ter algo “digno” de ser posto/dito na esfera pública não cabia a elas. Entender isso e
passarmos para o lugar de fala tem sido um longo processo de luta e requer tempo, é um salto.
Dito isto, eu não poderia deixar de mencionar sobre alguns dos desdobramentos
(macropolíticos) desse processo: a pouca representatividade de nós mulheres nos Poderes
Legislativo e Executivo, o golpe sofrido por Dilma Rousseff46, o silenciamento brutal e fatal
de Marielle Franco47, dentre tantos outros exemplos, que vem reafirmar esse ferimento às
vozes públicas de todas nós. Com isso quero dizer que esse estudo foi realizado em tempos de
golpe e interrupção de fala de mulheres que “ousaram” ocupar espaços públicos.
Partindo para o recorte deste estudo, apresento a seguir algumas imagens que
selecionei para ilustrar e dialogar com esta reflexão.

46
Filiada ao Partido dos Trabalhadores, Dilma Rousseff foi presidente do Brasil, tendo exercido o cargo do ano
de 2011 até ter sido afastada por um processo de impeachment em 2016.
47
Como mencionado anteriormente, Marielle Franco, vereadora do Rio de Janeiro - 2017/2020 que foi
assassinada (silenciada brutalmente) na madrugada do dia 14/03/2018 a tiros.
70

Figura 6 - Destaque da produção do corpo feita por Ana: flor na garganta escrito “dor”

Fonte: Banco de fotografias do grupo “Entre Mulheres”

Essa imagem já nos é disparadora para pensar sobre essa fala que dói, situada no corpo
- o que nos confirma o que trouxe mais acima, acerca da expressão e sofrimento estarem
imbricados48. Corroborando com esta ideia, podemos ver, na imagem a seguir, o silêncio que
está posto no entorno e contexto do corpo-mulher:

48
Outro ponto que ainda ressalto aqui é a imagem de uma mulher com um livro nas mãos e a cabeça em chamas,
como que borbulhando de ideias e conhecimento.
71

Figura 7 - Destaque da produção do corpo e seu entorno, feita por Flora: “vazio, silêncio”

Fonte: Banco de fotografias do grupo “Entre Mulheres”

Do silêncio da voz engasgada e presa, ao entorno vazio preenchido de silêncio e à


compreensão de uma voz, externa (que é internalizada), que diz: “silencie” - como podemos
observar na imagem a seguir:

Figura 8 - Destaque da produção do corpo feita por Soledade

Fonte: Banco de fotografias do grupo “Entre Mulheres”


72

É importante explicitar que os sentidos que as mulheres do grupo atribuíram passa


pela diferenciação entre silenciamento e silêncio. Começam o grupo apresentando bastante
desejo de fala - conforme já discutimos. Em seguida, foram se dando conta dos silêncios
impostos que viveram e vivem - silenciamento - e por fim, constataram a importância do
“silêncio que fala”. Do silêncio por escolha e que as levam à conexão consigo mesmas.
Soledade, por exemplo, fala na importância de prestar atenção em si e ouvir o próprio corpo.
Em um dado momento, durante um convite de silêncio (meditação guiada), ela afirma ter
montado uma coreografia inteira de uma música que ela conhecia. Diz que, enquanto estava
em silêncio consigo pensou em tudo, toda a coreografia e figurino. Trouxe seu incômodo
diante de sua limitação com seu corpo, por seu pé machucado, porém disse que dançou
criativamente, internamente - que dançou com o corpo interno. Além do “silêncio ouvido”,
Soledade já aponta questões que iremos dialogar mais adiante: ela trouxe que o grupo
arteterapêutico a possibilitou ampliar as possibilidades de expressão, para além da fala e do
corpo.
Sobre isso, Maciel e Carneiro (2012, p.48) nos dizem:

A ferramenta usada para esse mergulho e resgate do que nós realmente


somos, com nossas dores e delícias, monstros e fadas, será a ARTE.
Sabemos que a dor da alma, muitas vezes, silencia o discurso, cala nossa
voz. Mas a alma continua pedindo para ser ouvida… O trabalho terapêutico
via arte promove uma amplitude de linguagem que permite e facilita ao
cliente encontrar caminhos menos dolorosos para expressar o seu universo
íntimo [...] A Arteterapia nos conduz a captar sinais silentes, a “ouvir” os
gritos de socorro implícitos nos gestos, nos traços, nas cores e nos símbolos
plasmados no encontro.
E, para concluir, sem a pretensão de encerrar aqui, trago a “carta-vida” de Mar, na
qual a mesma aponta para o silenciamento imposto de uma fala fértil-latente, para um desejo
de tomada de rédeas de si e, ainda, para o dilema/dicotomia dos papéis sociais de gênero que
nos são impostos (quando diz ser “rainha ou prostituta” - mas quem disse que se formos
rainha não podemos ser prostitutas e vice-versa?):

“Rainha ou prostituta
Com a lupa procurava
A moral da estória.
A reconstrução da prisão,
O peso da doação,
O medo da criatividade,
O silêncio da força.
Fértil, silenciada.
Não temam, cavalheiros,
É pra agora
73

O que há tempos avistaram.


Orvalhos da manhã:
Daqui me vejo, daqui eu faço”

5.3 DESLOCAMENTOS SUBJETIVOS PRODUZIDOS ACERCA DAS EXPERIÊNCIAS


DE SILENCIAMENTO E SOFRIMENTO DAS MULHERES ACOLHIDAS NO GRUPO
“ENTRE MULHERES”, A PARTIR DO PROCESSO ARTETERAPÊUTICO

“Um homem não me define, minha casa não me


define, minha carne não me define, eu sou o meu
próprio lar”

(STRASSACAPA, 2016, n.p)

As mulheres, como vimos, durante o processo do grupo foram denunciando um


sentimento de solidão, dor, medo e busca por ser quem se é. Ou seja, uma busca por poder ser
e estar no mundo a partir do próprio referencial - e não de algo imposto socialmente (e
colonizado). Elas, no decorrer do percurso arteterapêutico, foram questionando,
ressignificando e trazendo o desejo de mudança do que está posto. Manifestaram isso de
diversas maneiras, inclusive (e sobretudo), em seus corpos. Os cabelos de muitas passaram
por mudanças, umas deixando crescer, outras cortando, outra assumindo-os assim como eles
são. Suas peles, estas, também passaram por mudanças. Tatuaram conteúdos trabalhados no
grupo, como por exemplo Mar, que tatuou uma frase e o símbolo da água-viva, frutos de suas
produções.
No que diz respeito à potência do trabalho arteterapêutico, pude observar como as
mulheres iam expressando, construindo e ressignificando sentidos a partir de suas produções.
Por exemplo, Lakshimi em um dado momento estava sentindo dor de cólica e buscou
expressar isso plasticamente. Ela se emociona ao falar de sua mãe (diagnosticada como
bipolar) e relata sobre o cansaço de sempre ser cobrada a cuidar de sua mãe e pouco ser
cuidada. Diz ter trazido sua dor e cansaço em sua produção. Flor, por sua vez, diz, ao final de
uma atividade, que com sua imagem se perguntou por que não estava conseguindo ter tempo
para os seus filhos, sobretudo por conta da carga de trabalho: “Tenho sentido isso mas percebi
agora que não tenho tido tempo” (sic), culpabilizando-se em vários momentos. Guedes e
Daros (2009) fazem uma reflexão crítica, a partir de uma análise de gênero, a respeito da
74

atribuição do lugar do cuidado de maneira desigual entre homens e mulheres - sendo a mulher
a principal responsabilizada socialmente.
Foi possível perceber, durante o segundo ciclo, como as mulheres foram entrando
paulatinamente em contato com conteúdos que até então lhes era difíceis. O caminho trilhado,
essa busca delas, como já vimos, passa pelo que Jung (2008) chama de processo de
individuação. Ele afirma ser preciso se submeter, conscientemente, ao poder do inconsciente
em prol da harmonização da consciência com o núcleo psíquico - o self. E esse processo,
dentre outros estágios, passa pelo processo de integrar a sombra. Esta não é o todo
inconsciente, mas uma parte dele: representa qualidades e atributos pouco conhecidos ou até
mesmo desconhecidos por parte do ego. São aspectos que pertencem à esfera pessoal ou pode
consistir em fatores coletivos que surgem a partir de determinadas situações na vida pessoal
do indivíduo. É importante elucidar que a sombra não diz respeito apenas às omissões.
Também pode aparecer sob impulso, ou seja, antes mesmo de se pensar, se tomam atitudes
que não eram tencionadas conscientemente (von FRANZ, 2008). Possível, ainda no ciclo
diagnóstico, observar como esse tema já começa a aparecer, por exemplo, no encontro em que
uma das participantes, Flora, fica muito incomodada com a produção de sua mandala, pois
afirma que estava incompleta onde havia um espaço preto em meio às outras cores. A
facilitadora Karla, ao intervir dizendo “acolhe tua sombra” (sic), faz tanto a participante
quanto o grupo como um todo se mobilizarem bastante. No meio do segundo ciclo, no dia em
que a produção foi a própria casa, a mesma enfatiza seu quarto, coloca massa de modelar de
diversas cores e conclui: “eu saí do preto e hoje sou colorido” (sic).
75

Figura 9 - Produção da casa, feita por Flora

Fonte: Banco de fotografias do grupo “Entre Mulheres”

Sol, como já mencionado, inicia o processo com dificuldade de olhar pra si, pro
próprio corpo. No encontro de produção dos corpos, ela, após terminar sua produção, deita em
seu próprio corpo, como quem busca ocupá-lo, apropriá-lo.

Figura 10 - Sol deitada na produção do seu corpo

Fonte: Banco de fotografias do grupo “Entre Mulheres”


76

Me chamou muita atenção o processo de ressignificação e aceitação que a mesma


passou no que diz respeito ao seu cabelo. No início do grupo ela usava tranças afro, no meio
dele, a mesma passou a usar um aplique e, ao fim do segundo ciclo, Sol chega com seu cabelo
natural. Ela, que já vinha pensando e fortalecendo a ideia de usar o próprio cabelo (visto que
dizia antes ter dificuldade em gostar dele assim como era), diz que teve a certeza que o
assumiria após a produção do sétimo encontro e oitavo encontro - em que a proposta teve
como mote a integração da sombra.

Figura 11 - Primeira parte da produção “integração de luz e sombra” de Sol

Fonte: Banco de fotografias do grupo “Entre Mulheres”


77

Figura 12 - Segunda parte da produção “integração de luz e sombra” de Sol

Fonte: Banco de fotografias do grupo “Entre Mulheres”

Hooks (2005) nos mostra que Sol não está sozinha nisso e que não é de hoje que
mulheres negras enfrentam essa dificuldade. Ela discorre acerca do processo de alisamento
dos cabelos dessas mulheres como consequência do sentimento de insegurança das mesmas,
frente à opressão e hegemonia branca:

Dentro do patriarcado capitalista – o contexto social e político em que surge


o costume entre os negros de alisarmos os nossos cabelos –, essa postura
representa uma imitação da aparência do grupo branco dominante e, com
frequência, indica um racismo interiorizado, um ódio a si mesmo que pode
ser somado a uma baixa auto-estima. Durante os anos 1960, os negros que
trabalhavam ativamente para criticar, desafiar e alterar o racismo branco,
sinalavam a obsessão dos negros com o cabelo liso como um reflexo da
mentalidade colonizada (HOOKS, 2005, p. 2).

As atividades do sétimo e oitavo encontros foram caminhos de preparação para a


confecção de máscaras. Esta última foi sentida por todas como um momento forte e
importante do processo. Aqui se faz necessária algumas reflexões. Rojas-Bermudez (1970)
traz a máscara como um objeto intermediário que facilita o acesso a conteúdos subjetivos, a
entrada de contato consigo mesmo. Por objeto intermediário, este autor diz ser algo real e
78

concreto que utilizado em contexto adequado, possibilita o restabelecimento de uma


comunicação interrompida. Jung (2011) vem falar das “máscaras invisíveis” a partir do
conceito de persona - palavra derivada do latim que em português significa “máscara”. Diz
respeito à forma como nos apresentamos e nos relacionamos com o mundo a partir dos papéis
sociais. Sobre isso ele ainda diz que:

A meta da individuação não é outra senão a de despojar o si-mesmo dos


invólucros falsos da persona [...] Através da persona o homem quer parecer
isto ou aquilo, ou se esconde atrás de uma “máscara”, ou até mesmo constrói
uma persona definida, a modo de muralha protetora (JUNG, 2011, p. 64).

Assim, é importante destacar que a persona não é necessariamente negativa, dada sua
função protetora do ego e da psique. Ferreira (2015), em sua dissertação, aborda a máscara
como um símbolo de comunicação e expressão - um artefato simbólico que, em negociação
voluntária e involuntária, o sujeito revela ou oculta conteúdos ao mundo.
Na máscara de Girassol podemos ver que ela fez sua boca fechada com gesso e que
nela há uma amarra se rasgando, dando a entender que a mesma está se abrindo, que ela está
desejando falar:

Figura 13 - Máscara produzida por Girassol

Fonte: Banco de fotografias do grupo “Entre Mulheres”


79

Grada Kilomba (2010) vem discutir sobre um aspecto importante, aqui relevante, a
respeito da máscara, situando-a enquanto um instrumento real que se tornou parte do projeto
colonial europeu - a “máscara do silenciamento”. Ela faz um resgate especificamente das que
eram usadas nos negros e negras enquanto símbolo das “políticas sádicas de conquista e
dominação e seus regimes brutais de silenciamento dos(as) chamados(as) ‘Outros(as)’”
(KILOMBA, 2010, p. 172) - trazendo a imagem icônica da escrava Anastácia, como podemos
ver a seguir.

Figura 14 - Jacques Arago: “Escrava Anastácia49”, 1817-18

Fonte: Imagem retirada do Google Imagens50

Esta mesma autora faz algumas perguntas a respeito do uso deste instrumento na boca
(órgão que simboliza a fala): “Por que deve a boca do sujeito Negro ser amarrada? Por que ela
ou ele tem que ficar calado(a)? O que poderia o sujeito Negro dizer se ela ou ele não tivesse
sua boca selada? E o que o sujeito branco teria que ouvir?” (KILOMBA, 2010, p.176-177).
Ela responde tais perguntas compreendendo que esta prática seria reflexo do medo do branco
(colonizador) de ouvir o que o negro (colonizado) tinha a dizer, esse “Outro” que representa o
que o branco teme reconhecer de si mesmo, sua sombra.
Seguindo essa reflexão de rasgar as amarras que impedem a fala, Mar, que como já foi
mencionado afirmou no início do grupo ter dificuldade de se relacionar e confiar nas pessoas
(e, por conseguinte, falar sobre si), ao longo do processo foi se abrindo e se expressando mais,
plasticamente e com a voz. Em um dado momento ela discorre acerca de uma produção (cuja

49
Não há uma história oficial a respeito da mesma - o relato que predomina é o de que ela foi forçada a usar um
colar de ferro pesado, além da máscara facial que não deixava falar (KILOMBA, 2010).
50
Disponível em:
<https://www.google.com.br/search?q=escrava+anastácia&source=lnms&tbm=isch&sa=X&ved=0ahUKEwjl9d
n_weHaAhVFE5AKHXtSDnoQ_AUICigB&biw=1536&bih=759#imgrc=dIrHBVbn_tYavM>.
80

imagem não foi possível registrar): “quando a agulha explodiu o balão eu vi que ficou tão
bonito. É tão mais bonito a alegria exposta do que contida no balão”(sic). Mais adiante do
processo, Mar conta no zeramento que diante da força que encontrou no grupo, conversou
com seus pais acerca de sua orientação sexual (lésbica) e contou que estava namorando uma
mulher. Foi possível perceber nela mudanças para além do se expressar: seu cabelo, que era
raspado bem curtinho, estava maior, aparecendo cachos, passou a se maquiar e se vestir
diferente, bem como foi fazendo tatuagens (algumas fruto do processo arteterapêutico, como
água viva e a frase “tu não te moves de ti”51, mencionada em um dos encontros).
No dia da máscara, Mar não consegue construí-la em seu próprio rosto mas faz um
rosto de argila, uma máscara de recortes de revista e vai embora em seguida, antes do fim do
encontro, pois não se sentiu bem com a atividade. Esta postura nos mostra a negociação que
ela fez consigo própria, se protegendo e indo até onde lhe era possível (função protetora da
persona). Isso nos faz refletir sobre o movimento de autorregulação, de ouvir e respeitar os
próprios limites para acessar conteúdos subjetivos. Por autorregulação, Jung (2010) diz se
tratar do sistema regulador da psique (organismo vivo e dinâmico), que funciona através de
movimentos compensatórios em que mesmo conservando sua autonomia, o inconsciente
complementa ou compensa a consciência.

51
Título de um livro de Hilda Hilst, já referenciada neste texto.
81

Figura 15 - Rosto de argila e máscara feita por Mar

Fonte: Banco de fotografias do grupo “Entre Mulheres”

Algumas reflexões feitas pelo grupo, nesse encontro da construção das máscaras,
foram sobre o sentimento de “vida-morte-vida”: morte ao colocar o gesso no rosto e mergulho
na “escuridão” e renascimento ao tirar a máscara. Uma reflexão de Flora e Lakshimi acerca
do processo de confecção das máscaras me chamou atenção. Elas disseram: “quanto mais
camadas, menos sentimos o outro” (sic), se referindo às camadas de gesso que eram colocadas
em seus rostos e que, na medida em que se colocava mais, menos uma sentia a pele da outra.
Seguindo com as ponderações do grupo a respeito da máscara enquanto sombra, se
falou nas funções da mesma, como por exemplo no carnaval (onde as sombras são expostas),
em que todos se fantasiam e usam máscaras “para fazer o que quiser”. Se falou, ainda, da
função protetora que as mesmas podem assumir, de esconder o que não quer se mostrar.
Diante dessa discussão Sofia relata ter sentido incômodo com a luz em seus olhos ao tirar a
máscara: “É difícil ver na escuridão, mas também é difícil ver com muita claridade” (sic). Sua
82

fala me remeteu a um curta que foi exibido na Semana Arte Mulher, evento ocorrido no
Recife no presente ano52, chamado “O amor é foda”, sob direção de Priscila Guedes, em que
relata a dor e dificuldade de José, um ex-cego, ao voltar a enxergar e ver sua amada tão
diferente do que guardava em sua memória, do tempo que ainda podia ver (chegando a tomar
uma atitude drástica de colocar veneno nos olhos para cegar novamente).
Sofia continua discorrendo sobre as facetas da sombra trazendo sua produção, depois
de intervir com o carvão: “Na minha imagem tem urubus, mas urubu se alimenta do que é
podre. Sombra também alimenta” (sic). Trago a imagem a seguir:

Figura 16 - Imagem de Sofia após intervenção com carvão

Fonte: Banco de fotografias do grupo “Entre Mulheres”

Outro ponto de reflexão importante que o processo arteterapêutico suscitou (e que me


é muito caro neste estudo) foi disparado por uma fala de Soledade, ao fim do encontro em que

52
A Semana Arte Mulher é um evento promovido pelo Ministério da Cultura e pela empresa “Quem disse
Berenice”, que promove ações culturais, como oficinas, exposições, performances, debates, reflexões e
espetáculos, produzidas por mulheres. A segunda edição do evento, no Recife, ocorreu de 05 a 11 de março de
2018. Mais informações em: http://www.semanaartemulher.com/wp-content/uploads/2018/03/Revista.pdf .
83

cada participante dava um nome para as imagens produzidas: “O nome que as pessoas deram
às suas imagens dão um caminho para pensar/sentir a imagem. Se não fosse o nome, acho que
eu iria ver outras coisas”. (sic). Diante disso chegou-se ao seguinte questionamento: em que
medida a palavra, nesse caso, ajuda, norteia? E em que medida enviesa, reduz? Entendemos,
no grupo, que se trata de uma escolha, onde o outro também opta, num dialogismo infindável,
no qual as possibilidades não se esgotam. Foi entendido que as palavras podem ser (e são)
estruturantes. É importante destacar o caminho conduzido pelas facilitadoras de, por vezes,
partir da escrita e, em seguida, transformá-la em imagem por meio de produção plástica (e
vice-versa). Philippini (2011) defende a produtividade terapêutica das escritas visto que as
mesmas facilitam a ordenação de sentimentos e ideias e por conseguinte, a apreensão de
conteúdos inconscientes.
Para ilustrar esse entendimento, destaco o corpo produzido por Lakshimi, no qual a
mesma contorna todo o seu corpo com palavras:

Figura 17 - Corpo produzido por Lakshimi

Fonte: Banco de fotografias do grupo “Entre Mulheres”


84

Ao fim do segundo ciclo, antes mesmo de o grupo terminar, já foi possível perceber
que as mulheres passavam por mudanças provocadas pela experiência arteterapêutica, ou seja,
pudemos observar as contribuições da Arteterapia no que diz respeito à expressão e
elaboração de sofrimento das participantes. Elas próprias, a partir das reverberações, dos
mergulhos, das mudanças e ressignificações - indo para além do que foi manifestado em seus
corpos e produções plásticas - foram trazendo, em suas falas, o que pensavam/sentiam a
respeito do processo. Trago um recorte de fala de uma participante como exemplo, visto que
contempla os sentidos que o grupo como um todo comungou a respeito do processo. Soledade
diz: “Passei a estar atenta aos sinais, parece que eu precisava estar aqui com vocês. Sempre
algo me dizia que era pra eu escutar meu coração. E agora parece que vejo sentido. Era tudo
muito solto, agora faz sentido” (sic). Ou Mar - que inicia falando da sua dificuldade em
confiar e compartilhar vida com as pessoas e, em certo momento, diz que foi no grupo que
aprendeu que “vida, quando compartilhada, faz mais sentido” (sic).
Assim, ao final do recorte analisado, o grupo estava muito vinculado e as trocas e
compartilhamentos de processos já não aconteciam somente nas sextas-feiras. O grupo criado
em aplicativo de celular passou a ser um canal muito utilizado, bem como as participantes
passaram a sair juntas para shows de mulheres artistas que se fizeram presentes de alguma
forma nos encontros. Esta vinculação, que foi sendo construída desde o início do grupo,
ganhou muita força em um dos encontros em que produziram suas casas e ao final foram
convidadas a usar linha para conectar todas elas:
85

Figura 18 - Construção coletiva das produções das casas das participantes conectadas por linha

Fonte: Banco de fotografias do grupo “Entre Mulheres”

A seguir, trago uma última imagem que avalio resumir bem o tema constelado no
grupo, a busca de serem elas e delas:
86

Figura 19- Destaque da produção do corpo e entorno de Ana

Fonte: Banco de fotografias do grupo “Entre Mulheres”

Sobre esse desejo manifesto na imagem (do corpo de Ana, porém coletivo), finalizo
com as falas de duas participantes, por entender que, assim como a imagem, contemplam bem
o que todas, em alguma medida, comungam ao final do recorte analisado. Antiga conclui: “No
fim das contas eu sou um lugar onde posso morar” (sic). Flora, por sua vez, declara: “Na
verdade sempre soube que o rumo sempre esteve dentro de mim. Hoje conto minhas histórias
com um desabrochar no coração, hoje me sinto tão eu que nem eu mesma ainda consigo ser,
mas sou. Hoje não preciso que me digam o que quero ou devo ser, hoje sei quem sou, porque
sinto-me sendo” (sic).
87

6 CONSIDERAÇÕES FINAIS

Antes de qualquer coisa, chego ao fim deste trabalho entendendo que ele está longe de
ter sido esgotado em suas possibilidades. Os materiais e processos que observei e participei,
nem que eu pretendesse, acredito que conseguiria “dar conta”, esgotar. Arte e processo
arteterapêutico é de uma potência simbólica que, escrever sobre, é possível, organizador e
estruturante - mas eu preciso ter a consciência e humildade de assumir que não é possível dar
conta de “traduzir” o que foi, de fato, o processo como um todo. O que me propus, entretanto,
foi trazer reflexões de um recorte situado temporal e espacialmente. Com isso quero dizer,
também, a dificuldade que senti em selecionar as imagens e trechos a serem aqui observados -
todo o material é muito rico e aponta para diversos caminhos possíveis de diálogo.
Embora o recorte e corpus de análise tenham sido delimitados no texto, é importante
destacar que a análise foi atravessada por outros caminhos que não “só” as produções
plásticas e o diário de campo. As relações foram estabelecidas para além do “setting” de
pesquisa: saídas para show, peça de teatro e mesa de bar, bem como o grupo criado em
aplicativo de rede social, foram, sem dúvida, extensões do tempo-espaço em que os encontros
aconteciam.
O processo de tomada de consciência, elaboração e deslocamentos subjetivos das
participantes do grupo foi, sem dúvida, algo muito fecundo de acompanhar. Destaco aqui que
foi, inclusive, possível testemunhar o quanto o processo arteterapêutico reverberou, também,
nas facilitadoras. A própria postura das mesmas, no que tange a facilitação, transformou-se ao
longo do tempo. Ao passo que o vínculo do grupo ia se formando, as mesmas também iam
cada vez mais se posicionando enquanto participantes: trocando, se emocionando e
mergulhando em seus processos, junto com todas nós.
Outra questão que perpassou o trabalho todo, foi o sentimento de medo diante da
tamanha responsabilidade que é lidar com conteúdos subjetivos tão complexos e densos,
como os que me debrucei. O medo fala da minha preocupação em conseguir que as mulheres
sintam-se contempladas com o caminho de diálogo que propus - é muito delicado este lugar
de discutir acerca da experiência do outro. Mas todas as mulheres do grupo arteterapêutico
(incluindo as facilitadoras) e minha orientadora escreveram esse texto comigo - eu não estive
sozinha em nenhum momento. Ter isso em mente foi o que me fortaleceu e me fez
compreender que meu medo e insegurança falava, sobretudo, do respeito diante da
oportunidade que me deram, aceitando fazer parte desse estudo, me acompanhando.
Busquei, ao longo deste trabalho, defender a importância da Arteterapia e, apesar
88

desse estudo ter sido realizado com um grupo de mulheres, essa prática é de uma potência
democrática e inclusiva. Mulheres, homens, crianças, longevos, cegos, surdos, mudos,
pessoas de todas as cores e profissões podem se beneficiar do trabalho arteterapêutico.
Philippini (2011) nos fala sobre essa diversidade de possibilidades de públicos e campos de
atuação da Arteterapia. Algo que me chamou atenção e me fez refletir acerca das mulheres
que participaram deste grupo, foi a ausência de mulheres trans e idosas - embora o convite
tenha sido extensivo para qualquer uma.
Cheguei ao fim (sem achar que findei) deste estudo, com a constatação do benefício da
dúvida: com a descoberta do incerto, contingente, parcial, situado. Eu, que durante o mestrado
senti tanto medo, hoje me arrisco mais diante dessa constatação - pois entendi que há muita
potência no processo e caminho da produção de conhecimento, e não apenas no seu produto
“final”. O medo e insegurança sempre repousou na minha própria cobrança de uma resposta
incontestável paras as minhas perguntas e, nessa busca, passei muito tempo só olhando pro
ponto de chegada dessa caminhada, me atropelando muito durante o percurso - até perceber
que antes de chegar em qualquer lugar, a gente caminha.
A Arteterapia e as mulheres que acompanhei (e me acompanharam) me ensinaram
isso. A trajetória que tive o privilégio de observar me mostrou e me fez sentir essa potência -
o próprio recorte que escolhi analisar (o ciclo do meio, o miolo do processo) já me dizia isso.
Eu poderia ter escolhido o último ciclo, onde os caminhos do processo já se encontrariam
supostamente mais sedimentados. Entretanto, optei pelo recorte do ciclo onde o processo
borbulha e acontece acontecendo - onde mais importante que ‘onde vai dar’, é viver, sentir,
estar e ir. Analisar e dialogar com as imagens selecionadas, depois de entender tudo isso, foi
muito mais possível para mim.
Mas mesmo nesse arriscar-se mais, existiu ainda algum receio - sobretudo por me
sentir constantemente transgredindo e ousando na forma de escrever. Aliás, percebo que a
“transgressão” atravessou todo o percurso: em trazer a Arteterapia, ainda tão pouco explorada
na literatura, como objeto de pesquisa; em fazer uso de referências acadêmicas pouco
conhecidas, de música e poesia; em convidar Karla Galvão (facilitadora do grupo) para fazer
parte da banca; do diálogo com uma Psicologia negligenciada e subalterna em detrimento do
que se foi entendido como hegemônico (quem contou a história da Psicologia?). Todas essas
escolhas e posturas me falam, ao final, do diálogo que busquei fazer com a perspectiva
decolonial.
Busquei, assim, dar minha contribuição para a comunidade acadêmica e, nesse
percurso, meu olhar voltou-se para caminhos outros de pesquisa, sobretudo tendo a reflexão
89

da Arteterapia enquanto rompimento, ampliação, autoconhecimento e resistência. Apontou


para um desejo de alargar este terreno desbravado aqui e investigar possíveis contribuições do
trabalho arteterapêutico com outros grupos minoritários (marginalizados e, por vezes,
invisibilizados), como por exemplo, pessoas em situação de vulnerabilidade social em
decorrência do uso problemático de drogas. Essa inquietação parte do desejo de, cada vez
mais, defender a potência deste campo do fazer e reivindicá-lo, inclusive, nas políticas
públicas de saúde.
Ao fim dessa trajetória me deparei novamente com a pergunta que a epistemologia que
lancei mão me fez: mas quem sou eu nessa pesquisa? Ao chegar até aqui pude entender que
me situei, eu mesma, em um entre-lugar: entre observadora que participa e entre participante
que observa. Assim, avalio ser importante falar, brevemente, como o grupo arteterapêutico
reverberou em mim, enquanto participante, falar sobre o meu processo. Foi possível perceber
também em mim um processo de mudança, desde meu corpo (com novas tatuagens e cabelo,
por exemplo). Meu cabelo me serviu muito como metáfora de meu processo, pois a mudança
dele foi e tem sido gradual. Deixar cabelo crescer envolve tempo, espera, paciência. A
mudança não é drástica como uma pintura ou corte - em que se está de um jeito e de repente
está de outro. A mudança do meu cabelo acontece no gerúndio e, antes que ele esteja do
tamanho que eu queira, existe a cada dia, milímetros de mudança, processo.
Dito isto, da mesma forma que iniciei esse texto - situando meu lugar de fala, me
posicionando - buscarei assim finalizá-lo. Por que escrever me dói tanto? Essa pergunta me
atravessou o texto inteiro. Nesse texto tem dor. A maior inquietação nesse processo de escrita,
para além de tantos obstáculos pessoais que vivi, foi o de precisar das palavras para legitimar
as outras possibilidades de expressão que busquei me debruçar. O questionamento que me
atravessou por todo o processo de mestrado, foi perceber que, embora estivesse reivindicando
outras formas de expressão, foi através do tal modelo hegemônico de construção de
conhecimento que lancei mão para legitimar um saber. O desejo era apresentar um trabalho
artístico, de livre expressão, que não se encaixa nas normas ABNT53. Mas, também, como se
fazer entender sem as palavras? Como produzir conhecimento, como fazer ciência - dentro da
comunidade científica - querendo brigar com ela o tempo todo? Será que desconstrução é
negar o que existe?
Entendi que é preciso fazer as pazes com as palavras: elas não precisam ser inimigas
(embora tenha sido assim que, historicamente, nós mulheres lidamos com as palavras:

53
Associação Brasileira de Normas Técnicas.
90

silenciadas. As palavras não cabiam a nós). Meu desejo era que a voz fosse imagem, cor,
forma, movimento. Mas quem disse que não pode caber tudo isso - também - na palavra? É
preciso ressignificar a palavra, a voz. É preciso familiarizar-se com o que nos é “estranho”. A
voz pode dizer, também com as palavras - e diz.
A arte não é contrária à palavra: esse foi o maior aprendizado durante todo o processo.
Busquei, dentre outras coisas, denunciar a hegemonia da palavra. Mas percebi que, nessa
denúncia, eu travei uma guerra com ela. Por que não fui me lançar na arte que não faz,
necessariamente, o uso da palavra? Por que escolhi justamente esse caminho? Grada Kilomba
me ajudou muito a refletir sobre esses questionamentos. Em suas obras, a mesma propõe um
hibridismo entre conhecimento científico e prática artística: ao buscar decolonizar o
pensamento, Kilomba performatiza seus escritos, dando-lhes forma, corpo, voz e imagem. Foi
possível entender que fazer arte é resistência. Escrever também é. Foi possível entender que,
diante de todo o silenciamento, falar e escrever é afrontar a ordem, é possibilidade de
desconstruir, construir, ressignificar, romper silêncio, gritar, (re)descobrir quem somos, quem
sou. Santos (2008, p.83) diz que “todo conhecimento científico é autoconhecimento”. Assim,
no processo da escrita, mergulhei eu mesma, em minha própria sombra.
91

REFERÊNCIAS

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96

APÊNDICE A – TERMO DE CONSENTIMENTO LIVRE E ESCLARECIDO

UNIVERSIDADE FEDERAL DE PERNAMBUCO


PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM PSICOLOGIA

TERMO DE CONSENTIMENTO LIVRE E ESCLARECIDO


(PARA MAIORES DE 18 ANOS OU EMANCIPADOS)

Convidamos a Sra. para participar como voluntária da pesquisa “Arteterapia Entre


Mulheres: por outras possibilidades de expressão e elaboração de sofrimento”, que está sob a
responsabilidade da pesquisadora Daniella Sotero de Barros Pinangé, Rua Eurico de Souza
Leão, 661, apt 101, bloco A - Cordeiro - Recife - PE - CEP 50721-100, [email protected],
(81) 988613378. A orientadora e membro da equipe da referida pesquisa é Jaileila de Araújo
Menezes, [email protected] (81) 2126-8271.
Todas as suas dúvidas podem ser esclarecidas com a responsável por esta pesquisa.
Apenas quando todos os esclarecimentos forem dados e você concorde com a realização do
estudo, pedimos que rubrique as folhas e assine ao final deste documento, que está em duas
vias. Uma via lhe será entregue e a outra ficará com a pesquisadora responsável.
Você estará livre para decidir participar ou recusar-se. Caso não aceite participar, não
haverá nenhum problema, desistir é um direito seu, bem como será possível retirar o
consentimento em qualquer fase da pesquisa, também sem nenhuma penalidade.
INFORMAÇÕES SOBRE A PESQUISA:

Esta pesquisa poderá contribuir para o fortalecimento de práticas alternativas de


cuidado em Saude Mental, ao refletir sobre as possíveis contribuições que a Arteterapia pode
trazer para que mulheres possam quebrar possíveis silenciamento(s), expressando e
elaborando sofrimento(s) de formas alternativas, libertando-se do caminho hegemônico da
fala.
Este estudo buscará identificar e analisar os sentidos construídos por mulheres
acolhidas no grupo Entre Mulheres, às suas experiências de sofrimento; investigar os sentidos
construídos por mulheres acolhidas no grupo “Entre Mulheres”, às suas experiências de
silenciamento(s); bem como analisar os sentidos construídos por mulheres acolhidas no grupo
Entre Mulheres às contribuições da Arteterapia na elaboração e expressão de seu sofrimento.
Para tanto, o mesmo se realizará por meio de observação participante, durante oito
encontros, e o córpus de análise serão as produções plásticas construídas, bem como
anotações feitas no diário de campo da pesquisadora. A observação será feita pela
pesquisadora no momento do encontro, procurando interferir o mínimo possível no
andamento da atividade. A observação será registrada no diário de campo da pesquisadora,
sem utilização de vídeo ou gravador.
O presente estudo não oferece riscos significativos, podendo a participante sentir
algum incômodo ou não se sentir confortável para disponibilizar algum material produzido na
oficina. No entanto, a mesma poderá desistir de participar a qualquer momento da pesquisa
sem qualquer prejuízo. O campo já é um espaço coletivo de cuidado, entretanto, caso
necessário, será realizado encaminhamento para atendimento individual.
Quanto aos benefícios o estudo permitirá o contato e reflexões com uma temática
ainda tão pouco explorada cientificamente, como a de formas alternativas de cuidado em
Saude Mental e o papel da Arteterapia nesse ínterim, que vem sendo tratada de forma ainda
insuficiente pelo poder público e pela sociedade, abrindo caminho para que as experiências
dessas mulheres na oficina arteterapêutica ganhe visibilidade favorecendo, assim, a
97

propagação de um pouco de conhecimentos sobre esse campo de saber/fazer e com isso a


criação de novas estratégias de cuidado e atenção a saude mental, bem como criar um espaço
de reflexão para as próprias mulheres que se confrontarão com suas trajetórias de vida e sua
relação com possíveis silenciamento(s) e sofrimento(s).

Todas as informações desta pesquisa serão confidenciais e serão divulgadas apenas em


eventos ou publicações científicas, não havendo identificação dos voluntários, a não ser entre
os responsáveis pelo estudo, sendo assegurado o sigilo sobre a sua participação. Os dados
coletados nesta pesquisa (relatos, imagens produzidas e fotos), ficarão armazenados em
computador pessoal e no Google Drive, sob a responsabilidade da pesquisadora e
orientadora, no endereço acima informado, pelo período de mínimo 5 anos.
Nada lhe será pago e nem será cobrado para participar desta pesquisa, pois a aceitação
é voluntária, mas fica também garantida a indenização em casos de danos, comprovadamente
decorrentes da participação na pesquisa, conforme decisão judicial ou extra-judicial. Se
houver necessidade, as despesas para a sua participação serão assumidas pelos pesquisadores
(ressarcimento de transporte e alimentação).
Em caso de dúvidas relacionadas aos aspectos éticos deste estudo, você poderá
consultar o Comitê de Ética em Pesquisa Envolvendo Seres Humanos da UFPE no endereço:
(Avenida da Engenharia s/n – 1º Andar, sala 4 - Cidade Universitária, Recife-PE, CEP:
50740-600, Tel.: (81) 2126.8588 – e-mail: [email protected]).

___________________________________________________
(assinatura do pesquisador)

CONSENTIMENTO DA PARTICIPAÇÃO DA PESSOA COMO VOLUNTÁRIO (A)


Eu, _____________________________________, CPF _________________, abaixo
assinado, após a leitura (ou a escuta da leitura) deste documento e de ter tido a oportunidade
de conversar e ter esclarecido as minhas dúvidas com o pesquisador responsável, concordo
em participar do estudo “Arteterapia Entre Mulheres: por outras possibilidades de expressão
e elaboração de sofrimento” como voluntária. Fui devidamente informada e esclarecida pela
pesquisadora sobre a pesquisa, os procedimentos nela envolvidos, assim como os possíveis
riscos e benefícios decorrentes de minha participação. Foi-me garantido que posso retirar o
meu consentimento a qualquer momento, sem que isto leve a qualquer penalidade (ou
interrupção de meu acompanhamento/ assistência/tratamento).

Local e data __________________


Assinatura do participante: __________________________ Impressã
o digital
Presenciamos a solicitação de consentimento, esclarecimentos sobre a pesquisa
(opcional
e o aceite do voluntário em participar. (02 testemunhas não ligadas à equipe de
pesquisadores): )

Nome: Nome:
Assinatura: Assinatura:

Responsável legal e local onde serão arquivados os dados da pesquisa: Profª. Jaileila de Araújo - Endereço: Universidade
Federal de Pernambuco (UFPE) - Centro de Filosofia e Ciências Humanas, 7º. Andar, Cidade Universitária. Recife/PE -
Telefones p/contato: 2126.8270
Comitê de ética responsável: Avenida da Engenharia, S/N - 1º andar, CEP: 50740-600, Cidade Universitária Recife - PE,
Brasil. Telefone/Fax do CEP: (81) 2126-8588 - E-mail do CEP: [email protected]
98

APÊNDICE B – ROTEIRO PARA A OBSERVAÇÃO

Roteiro para a observação

1. Identificação e caracterização da situação observada

● Local e data da observação


● Evento observado
● Participantes e movimentos presentes
● Total de participantes presentes

2. Aspectos a serem observados

● Os sentidos construídos por mulheres acolhidas no grupo Entre Mulheres, às suas


experiências de sofrimento;
● Os sentidos construídos por mulheres acolhidas no grupo “Entre Mulheres”, às suas
experiências de silenciamento(s);
● Os sentidos construídos por mulheres acolhidas no grupo Entre Mulheres às
contribuições da Arteterapia na elaboração e expressão de seu sofrimento.
99

APÊNDICE C – TERMO DE AUTORIZAÇÃO DE USO DE IMAGEM E


DEPOIMENTO

TERMO DE AUTORIZAÇÃO DE USO DE IMAGEM E DEPOIMENTO

Eu, _________________________________,CPF____________, RG________________,


depois de conhecer e entender os objetivos, procedimentos metodológicos, riscos e benefícios
da pesquisa, bem como de estar ciente da necessidade do uso de imagem/produção plástica
por mim produzida e/ou depoimento, especificados no Termo de Consentimento Livre e
Esclarecido (TCLE), AUTORIZO, através do presente termo, a pesquisadora Daniella Sotero
de Barros Pinangé e Jaileila de Araújo Menezes (orientadora da pesquisa) do projeto de
pesquisa intitulado “Arteterapia Entre Mulheres: por outras possibilidades de expressão e
elaboração de sofrimento” a realizar as fotos que se façam necessárias e/ou a colher meu
depoimento sem quaisquer ônus financeiros a nenhuma das partes.

Ao mesmo tempo, libero a utilização destas fotos/imagens (seus respectivos negativos) e/ou
depoimentos para fins científicos e de estudos (livros, artigos, slides e transparências), em
favor dos pesquisadores da pesquisa, acima especificados, obedecendo ao que está previsto
nas Leis que resguardam os direitos das crianças e adolescentes (Estatuto da Criança e do
Adolescente – ECA, Lei N.º 8.069/ 1990), dos idosos (Estatuto do Idoso, Lei N.°
10.741/2003) e das pessoas com deficiência (Decreto Nº 3.298/1999, alterado pelo Decreto Nº
5.296/2004).
________________, em _____/ ________/ __________.

____________________________________________________
Sujeito da pesquisa
_______________________________________________
Pesquisadora responsável
100

ANEXO A – CONVITE DO GRUPO ARTETERAPÊUTICO “ENTRE


MULHERES”
101

ANEXO B – QUADRO DE IDENTIFICAÇÃO/APRESENTAÇÃO DAS


PARTICIPANTES DO GRUPO.54

Idade Raça Gênero Orientação Profissão Classe Estado Filhos


Sexual Social Civil
Ana 23 branca feminino heterossexual estudante média solteira não
Antiga 21 branca feminino bissexual estudante alta solo não
Borboleta 42 negra feminino heterossexual jornalista baixa união 2
estável
Catarina 37 parda feminino heterossexual Licenciada em não sabe solteira 2
dança. Atua
mensurar
em fabricação
de pães
veganos
Flor 39 parda feminino heterossexual Professora média casada 2
universitária
Flora 22 branca feminino heterossexual estudante baixa solteira não
Girassol 29 negra feminino bissexual psicóloga baixa solteira 1
Lakshimi 26 branca feminino bissexual estudante média solteira não
Mar 22 branca feminino homossexual estudante média solteira não
Sofia 27 branca feminino heterossexual estudante baixa solteira não
Sol 22 negra feminino heterossexual estudante pobre solteira não
Soledade 26 negra feminino heterossexual Professora de não solteira não
dança,
declarou
produtora e
bailarina

54
O critério de seleção das categorias desta tabela foi inspirado nos requisitos avaliados pela dupla de estágio,
para a seleção das participantes, bem como no que avaliei ser relevante para o presente estudo. Este quadro não
tem a pretensão de aprofundar-se conceitualmente em tais categorias. Mas sim, dar um panorama, mesmo que
superficial, da diversidade das participantes do grupo e de como as mesmas se declaram e se percebem.
102

ANEXO C - DESENHOS CRIADOS PELA ARTISTA E TATUADORA NATHALIA


QUEIROZ ESPECIALMENTE PARA AS MULHERES PARTICIPANTES DO
GRUPO "ENTRE MULHERES" TATUAREM

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