Rosana GLAT 2018
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Rosana GLAT2
RESUMO: As políticas públicas de inclusão representam um grande desafio para os profissionais da Educação Especial, pois
demandam uma ressignificação dessa área como campo de saber e atuação, não mais se restringindo apenas ao atendimento
especializado a pessoas com deficiência em espaços restritos como escolas e classes especiais. A Educação Especial contemporânea
configura-se como um sistema de recursos que visa, prioritariamente, dar suporte à aprendizagem de alunos com deficiências
incluídos em turmas comuns. Para tal, é fundamental o estabelecimento de uma parceria efetiva entre professores especialistas e
os do ensino comum. Este texto discute a cultura de colaboração entre os professores sob a perspectiva das representações sociais
estereotipadas e a função dos educadores frente à escolarização de alunos com deficiências. Defende-se que as representações docentes
precisam ser revistas, em um processo interno de conscientização, para que possam ser estabelecidas práticas colaborativas, que
resultem em uma transformação da dinâmica curricular das escolas, garantindo, assim, a inclusão, a participação e a aprendizagem
de todos os alunos.
PALAVRAS-CHAVE: Inclusão escolar de alunos com deficiências. Representações sociais. Colaboração docente.
ABSTRACT: Public policies of inclusion represent a great challenge for Special Education professionals, because they demand a
resignification of this area as field of knowledge and practice, no longer restricted to specialized services to people with disabilities
in the restricted spaces such as special schools and classrooms. Contemporary Special Education is configured as a resource
system that aims, primarily, to give support for learning of students with disabilities included in regular classes. For this, it is
fundamental the establishment of an effective partnership between specialized and regular education teachers. This text discusses
the collaboration culture among teachers in the perspective of the stereotyped social representations and the educator’s role in the
schooling of students with disabilities. It is argued that teachers’ representations must be revised, in an internal awareness process,
so that collaborative practices can be established, which result in a transformation of curriculum dynamic of the schools, thereby
ensuring inclusion, participation and learning for all students.
KEYWORDS: School inclusion of students with disabilities. Social representations. Teachers’ collaboration.
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http://dx.doi.org/10.1590/S1413-65382418000400002
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Pesquisadora CNPq e FAPERJ. Diretora e professora associada da Faculdade de Educação da Universidade do Estado do Rio de
Janeiro (UERJ), onde atua no Programa de Pós-Graduação em Educação e no Curso de Pedagogia, Rio de Janeiro – RJ, Brasil.
[email protected].
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Uso aqui a expressão “tratamento” em ambos os sentidos: atendimento e interação social.
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Para efeito desta discussão, estou utilizando a expressão “especialista” de forma ampla; embora reconheça que nem todo professor
que atua no atendimento educacional especializado ou outras modalidades de Educação Especial pode ser considerado, de fato,
um especialista.
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Sem entrar no mérito desta questão, que extrapola o tema deste artigo, vale destacar que há uma contradição inerente nas políticas
públicas brasileiras que pregam uma escola aberta para a diversidade e a avaliam com base no desempenho dos alunos em exames
e índices nacionais padronizados (Carvalho, 2017; Glat, 2018).
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No primeiro caso, verifica-se que os professores regulares não têm experiência com esse tipo de
alunado, e mal dão conta, em suas classes lotadas, de um número grande de alunos que, embora
não tenham deficiências específicas, apresentam inúmeras dificuldades de aprendizagem e/ou
comportamento. Os professores especializados, por sua vez, vêm construindo sua competência
com base no conhecimento das dificuldades específicas do alunado que atendem, dando ênfase
à diminuição ou compensação dos efeitos de suas deficiências (Glat & Pletsch, 2004, p. 2).
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Essa atitude pode ser observada tanto em professores das salas de recursos quanto os que prestam suporte na própria turma em
que o aluno está matriculado.
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Um exemplo dessa situação é a dependência das escolas (tanto privadas quanto públicas), cada vez mais frequente, da presença
de um “mediador de aprendizagem” (estagiário ou professor) para atender e acompanhar individualmente alunos com deficiências
na sala de aula e demais espaços. Embora “sua principal função é dar suporte pedagógico às atividades do cotidiano escolar – sem
com isso, substituir o papel do professor regente” (Glat & Pletsch, 2012, p. 24), na prática, todo o trabalho de escolarização destes
alunos acaba ficando sob sua responsabilidade.
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Apesar de pequenas diferenças de definição, de modo geral, essa modalidade de atendimento educacional especializado “caracteri-
za-se pelo trabalho colaborativo entre o professor regente da turma e um professor de apoio da educação especial (...), trabalhando
juntos na classe comum, dividindo a responsabilidade de planejar, avaliar e organizar as práticas pedagógicas para atender às de-
mandas colocadas pela inclusão de alunos com necessidades educacionais especiais” (Glat & Pletsch, 2012, p. 24).
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independentemente do nível de ensino, tornou-se apto para receber em sua classe alunos com
diferentes peculiaridades de desenvolvimento, inclusive com comprometimentos de ordem
sensorial, cognitiva, psicológica e/ou motora.
É inegável que as licenciaturas, de modo geral, vêm incorporando em seus currículos
(mais por exigência legal, do que opção político pedagógica) disciplinas voltadas à inclusão
escolar de alunos com necessidades educacionais especiais. Entretanto, estas são, via de regra,
consideradas matérias complementares da área de Educação Especial, mesmo quando obriga-
tórias (Cruz & Glat, 2014). De fato, a Pedagogia e os demais cursos de formação de professores
ainda têm um viés dicotômico. Nas disciplinas que tratam do processo ensino, aprendizagem e
desenvolvimento em geral, como alfabetização, didática, educação infantil, educação de jovens
e adultos, currículo e psicologia, etc., dificilmente são incluídos conteúdos programáticos que
abordem questões relativas a esses sujeitos.
Não se trata de negar as especificidades de nossa área, muito pelo contrário! Diria
até que nos últimos anos perdemos um grande espaço de formação inicial com a descontinui-
dade das habilitações em Educação Especial10. E os cursos de formação continuada, inclusive
em nível de especialização, que proliferam pelo país, em sua maioria apresentam a Educação
Especial de forma abrangente, oferecendo pouca capacitação técnica para lidar com as especifi-
cidades de nosso público-alvo11, desenvolver planos educacionais individualizados e propostas
de diferenciação pedagógica (Glat & Pletsch, 2013).
Para fazer frente à demanda da escola inclusiva contemporânea, a matriz e a orga-
nização curricular dos cursos de formação docente precisam ser articuladas de tal forma que,
garantindo as especificidades dos diferentes saberes e temáticas, haja uma interface e diálogo
entre as disciplinas, em uma perspectiva de diversidade humana como padrão.
Quando se discutem as dificuldades de implementação da Educação Inclusiva, o
foco, geralmente, recai sobre o despreparo técnico e emocional dos professores em receber
alunos com deficiências e outras condições atípicas em suas classes. No entanto, o problema,
ou melhor dizendo, o desafio, como já comentado, não é só do ensino comum. Muito pelo
contrário, nós da Educação Especial também temos grande resistência (se não no discurso,
certamente, na prática) em abrir mão do “monopólio” de atender aos alunos com deficiências e
desenvolver um trabalho de colaboração de forma equitativa com os demais docentes da escola.
Assim, não são só os professores do ensino comum ainda os reconhecem como “os alunos da
Educação Especial” ou “os alunos da inclusão”, como vêm sendo chamados. Nós também con-
tinuamos pensando neles (consciente ou inconscientemente) em termos dos “nossos alunos” –
não os alunos do professor regente da classe, a quem devemos dar suporte. Essa visão dualista e
estereotipada do espaço psicopedagógico dos alunos com deficiência é, para mim, a verdadeira
barreira para inclusão escolar.
Atualmente só duas universidades públicas brasileiras oferecem licenciatura em Educação Especial: a Universidade Federal de São
10
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Essa visão do “nosso público-alvo” tem suas raízes na construção histórica da Educação
Especial como sistema educacional paralelo, desvinculado do ensino comum, mesmo quan-
do (no caso das classes especiais) ocupando o mesmo espaço institucional. Nesse contexto, a
Educação Especial configurou-se como um campo de conhecimento e formação (de professores
e outros profissionais) ultra especializado, o que nos conferia um saber, e, consequentemente,
um “poder” absoluto sobre a população a quem atendíamos. Como lembra Foucault (1986),
não há relação de poder sem a construção de um campo de saber, e todo saber engendra novas
relações de poder. Esse poder se manifesta de diversas maneiras:
Em termos administrativos, decidindo sobre a alocação de recursos e política institucional; em
termos clínicos, determinando o tipo de tratamento [atendimento] e os métodos educacionais
que o cliente [ou aluno] receberá; em termos acadêmicos, formulando as teorias e concepções a
respeito da natureza e causa das deficiências, assim como a formação da nova geração de espe-
cialistas (Glat, 2009, p. 25).
As políticas de inclusão escolar e as demandas sobre a Educação Especial que elas ge-
raram atingiram diretamente essa tradição profissional, frustrando expectativas e colocando em
questão nossos saberes, já que grande parte dos professores especialistas desconhecia ou estava
afastada há muitos anos da realidade do ensino comum. Como discutido, atender alunos com
um determinado tipo de deficiência12, no espaço quase que individualizado e não estruturado
da classe especial, exige competências diferentes do que as necessárias para orientar e dar supor-
te a professores que se deparam com educandos com diferentes necessidades especiais, em tur-
mas de 20 ou mais alunos, com propostas curriculares e de avaliação previamente determina-
das. Some-se a isso o fato de que alunos com deficiências, geralmente, são incluídos no ensino
comum com significativa defasagem acadêmica, e suas próprias condições internas dificultam
o acompanhamento no mesmo ritmo em que os conteúdos programáticos são trabalhados.
Fontes (2007), em um dos primeiros estudos que avaliou a implementação de uma
proposta de bidocência em uma rede pública municipal, identificou a “construção do saber do-
cente para atuar em classes inclusivas”, como uma das principais categorias de análise. Segundo
Fontes (2007, p. 159):
Compreende-se por saber docente um conjunto de conhecimentos do ofício de ensinar resul-
tante da produção social. Sob este aspecto, o contexto no qual tais saberes são construídos e
aplicados, isto é, “as condições históricas e sociais nas quais se exerce a profissão” (Nunes, 2001,
p. 34), assumem uma nova dimensão diante da perspectiva inclusiva. Numa relação dialética,
tais saberes que brotam da experiência pessoal do professor influenciam e são influenciados por
aspectos culturais e subjetivos, como mostra a reflexão:
“- Para quem está em sala de aula é complicado, porque a gente tem pré-conceitos sobre essa
questão. Não só pré-conceitos com o aluno com deficiência, mas pré-conceitos no tipo de tra-
balho que a gente vai realizar em sala de aula. A nossa formação ainda é muito voltada para
o tradicional..., para o grupo homogêneo. Mas, para a gente que tem a formação um pouco
anterior, a gente percebe que está enraizado lá, numa questão homogênea e se libertar disso é
muito complicado. É um processo interno que o professor vai ter que se trabalhar, se conscientizar”
(Entrevista com a professora da sala de recursos da escola A concedida em 31 de maio de 2006,
ênfase adicionada).
12
Até o advento da Política de Educação Especial na perspectiva da Educação Inclusiva (2008) e a configuração do AEE como sala
de recursos multifuncionais (Resolução nº 4, 2009; Decreto nº 7.611, 2011), as classes especiais e as salas de recursos, em geral,
atendiam alunos com um determinado tipo de condição, com professores especializados nessa área específica.
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A tese deste artigo é que a atualização dos saberes docentes (tanto para os “generalistas”
quanto os especialistas) e, consequentemente, a transformação das práticas pedagógicas, não é
apenas uma questão de nova abordagem teórico-metodológica ou acadêmica. Como a professora
no excerto anterior reconhece, trata-se de um processo interno de desconstrução das representa-
ções sociais sobre o papel do professor e sobre o que significa ensinar em uma escola inclusiva.
Justamente, em função dessas concepções, ainda dicotômicas e estereotipadas, a rela-
ção entre os dois grupos de profissionais é complexa e, potencialmente, conflituosa. Muitos do-
centes do ensino comum, mesmo quando acolhedores ou com discurso “politicamente correto”
a favor da inclusão, no fundo, não acreditam que alunos com deficiências pertencem às suas
turmas. É muito comum ouvirmos falas como: “eles aprenderão melhor em classes especiais”,
“terão mais atenção diferenciada lá, que eu posso dar aqui”, “a professora do AEE quer que eu
faça um trabalho diferenciado com esse aluno; mas o que eu faço, enquanto isso, com o resto da
turma?”. Além disso, muitos não apreciam o suporte que os professores especializados podem
lhes dar, porque eles “não têm ideia do que é manejar uma turma com tantos alunos, cheia de
problemas, com todas as cobranças em cima de nós!”.
Os profissionais da Educação Especial, por sua vez, também não apostam nas possi-
bilidades de desenvolvimento acadêmico desses educandos na turma regular, sem um suporte
especializado direto e constante, o que nem sempre é viável ou mesmo necessário. Vale ressaltar
que, em inúmeros casos, a inclusão escolar demanda somente mudanças na forma de estruturar
o ensino e o manejo de sala de aula, contemplando práticas diversificadas. Por exemplo, com
organização de atividades em grupos, tutoria por pares13e outras estratégias que podem favore-
cer a colaboração entre os alunos e facilitar a aprendizagem de todos.
Acrescente-se, ainda, o quadro das condições precárias de trabalho dos nossos docen-
tes, tanto da Educação Especial quanto do ensino comum. A maioria tem dupla (ou, até mes-
mo, tripla) jornada de trabalho, o que não lhes permite compartilhar um horário para discussão
de caso, preparação conjunta de materiais didáticos e adaptações curriculares. Como aponta
Carvalho (2017, p. 234), “o tempo destinado a essas atividades é irrisório e os planejamentos
se situam no nível da superficialidade”. Em pesquisa recente, a autora analisou práticas peda-
gógicas e narrativas de professoras do ensino comum e de salas de recursos multifuncionais,
identificando em ambos os grupos inúmeras dificuldades de interlocução, o que resultava em
um trabalho com o aluno fragmentado e desconectado nos dois espaços.
Em suma, a polaridade e a tensão que se desdobra na relação entre ensino comum e
Educação Especial, mais do que qualquer outro fator, representa, sem dúvida, o grande obstá-
culo para a inclusão, participação e aprendizagem de alunos com deficiências e outras necessi-
dades educacionais especiais. Certamente, há muitas escolas onde está sendo construída uma
cultura de colaboração, com os docentes revendo suas representações internalizadas, transfor-
mando sua prática pedagógica e suas interações profissionais (Glat, 2016; Oliveira, 2018).
Contudo, em grande parte dos casos, ainda é como se tratasse, para além de suas especificida-
des, de sistemas distintos e incomunicáveis, mesmo que não mais o sejam.
Tutoria por pares é uma estratégia pedagógica em que um aluno mais adiantado no processo de aprendizagem auxilia um colega
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que ainda não adquiriu ou está elaborando o(s) conceito(s) em pauta na atividade (Fontes, Pletsch, Braun, & Glat, 2015).
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