Vorcaro - Construção Do Caso Clínico em Instituições
Vorcaro - Construção Do Caso Clínico em Instituições
Vorcaro - Construção Do Caso Clínico em Instituições
Angela Vorcaro
Nathane Miranda
Bárbara Souto
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A pesquisa congrega, além dos professores de universidades, estagiários e a instituição de acolhimento-
dia Freud-Cidadão. É coordenada conjuntamente por Angela Vorcaro (UFMG) e Aline A. Mendes Vilela
(PUCMINAS), doutoranda do PPG da UFMG. A pesquisa é financiada pelo CNPq.
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Cf. “Investigação dos efeitos discursivos da capsização: avaliação qualitativa do modelo CAPS, relatório
final, Belo Horizonte, UFMG, 2009, 189 ps.”
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Tecendo a rede: uma proposta de formação no campo da saúde mental a partir da articulação entre
universidade, serviço e comunidade em um Centro de Atenção Psicossocial (CAPSi), Belo Horizonte,
Pucminas, 2011, pp. 360-374.
Pautados por essa perspectiva universalizante, os clínicos generalizaram as
práticas regidas pelo ideal de abranger a todos. Para tanto, o acúmulo dos saberes
sustentadores das práticas profissionais não podia responder, pois, comportando
definições advindas de horizontes epistemológicos diferentes, como sublinha Pereira
(2000), resultava em confusões terminológicas e em incompreensões de graus diversos.
É ainda nesse contexto que, diante das contestações quanto a sua legitimidade científica,
a psiquiatria vem, desde os anos 1960, refinando um Manual Diagnóstico e Estatístico
dos Transtornos Mentais (DSM) que a Associação Psiquiátrica Americana promove
como “a-teórico” e limitado a fatos clínicos observáveis e contestáveis. Assim, em
consonância com a racionalidade das políticas públicas, o DSM vem sendo instalado
como eixo paradigmático de práticas clínicas em instituições públicas. Propondo-se a
organizar concepções científicas do sofrimento mental, prioriza o plano neurobiológico
em detrimento de dimensões históricas, culturais, subjetivas e existenciais do
padecimento humano (PEREIRA, 2000).
Entretanto, tal universalização esgarça a cada vez em que os clínicos são – e
essa é uma constante – tensionados pela condição de singularidade de cada um dos
pacientes. Afinal, manifestações subjetivas de um usuário podem desconcertar um
aparato aparentemente organizado, constrangendo a ilusão de que a contratação de uma
composição de ações de diferentes disciplinas, figuradas no que se convencionou
chamar “equipe multiprofissional”, teria ali vigência plena.
Sustentamos, com Foucault (1986), que o saber clínico não responde aos
critérios formais da ciência. Este saber clínico é uma prática discursiva regular que
comporta um conjunto de elementos, apenas organizado, de observações empíricas, de
tentativas e de resultados, de prescrições terapêuticas e de regulamentações
institucionais. Portanto, só o recolhimento de suas ocorrências perturbadoras
discerníveis por seus detalhes podem constituir obstáculo à decisão interpretativa
imediata dos clínicos que as testemunham, problematizando a estabilidade de conceitos
já categorizados, para não fazer, da clínica, um dispositivo de obturação do
desconhecido (VORCARO, 1999).
Ao contrário da hegemonia de um modo de categorização consideramos que a
dialética singular/universal insistente nesses aparelhos clínicos pode interseccionar e
imiscuir efetivamente os diferentes campos disciplinares presentes nas práticas de seus
agentes. Trata-se, enfim, de interrogar a experiência e deslocar questões constituindo os
meios para que a singularidade do caso possa ser apreendida na consideração do
detalhe do caso para a reelaboração do saber clínico: “O método clínico torna-se, nessa
perspectiva, tributário da consideração do caso como constituindo um método próprio
de inscrição de um sujeito na linguagem” (VORCARO, 1999, p. 107). Enfim, a
estranheza e a resistência que a clínica impõe à compreensão imediata são fundamentos
irredutíveis da psicanálise.
A despeito dos psicanalistas terem, por longo período, privilegiado a doutrina e a
prática individual que a origina, apostamos na potência do método psicanalítico como
modalidade possível de orientação de uma modalidade de prática que sustenta a tensão
singular/universal, partindo da escuta dos agentes da clínica, em instituições.
A presença da psicanálise nas instituições não tem se mostrado tarefa simples.
Constatamos, nas diversas práticas já em exercício há mais de vinte anos, a preferência
por uma forma complicada de sustentar um diálogo da psicanálise com os serviços de
saúde e educação. Geralmente, a presença do psicanalista é sustentada pela oferta de um
novo saber aos demais. Posiciona-se e/ou é colocado pelos auditores no lugar de
mestria, inviabilizando a efetiva transmissão da psicanálise: por seu ato.
Muitos são os técnicos que, por esse meio, encontram o caminho de dirigir-se
efetivamente ao estudo da psicanálise e ao próprio tratamento psicanalítico. Entretanto,
noutras vezes, esse encontro intensifica a impotência dos técnicos, que comparece de
duas maneiras: incrementando a adesão cega a especialistas que “saberiam” os
procedimentos para resolver os conflitos institucionais ou opondo-se a estes como
forma de atestarem o fracasso das tentativas de articulação entre os vários campos
disciplinares e a psicanálise. Na primeira vertente, o efeito da psicanálise é o de criar
uma promessa de saber que, longe de tornar manejável pelos técnicos, reverte-se apenas
na reprodução de alguns clichês. Se, na segunda vertente, constata-se uma feroz
oposição à psicanálise, em ambas, modos distintos de resistência à psicanálise acabam
prevalecendo.
Seria possível construir uma forma de transmissão da psicanálise capaz de
incidir na direção do reconhecimento do saber/não-saber e da responsidade4 de técnicos
ao seu saber-não-saber? Como fazer com que o espaço institucional que é um lugar, a
princípio, contrário às manifestações singulares, possa reconhecer como o usuário
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O termo responsidade, cunhado pela psicanalista Cláudia Fernandes, é aqui utilizado na acepção de
possibilidade de deixar-se afetar, concernir-se e responder. Pretende diferenciar-se de responsabilidade,
no que essa denota culpabilidade.
responde singularmente ao serviço? O que podemos depurar das metodologias de
intervenção no contexto institucional desencadeadas pela psicanálise em sua história de
articulação às instituições?
Longe de buscar uma “psicanalização” dos serviços de saúde mental, a proposta
desse trabalho se restringe a tomar a construção em psicanálise como ensinamento
de método para estabelecer um dispositivo de construção do caso clínico junto a
agentes clínicos responsáveis pelo tratamento de pacientes, que estão embaraçados
em seu savoir-faire, em serviços de saúde mental.
"Desconfiem sempre das pessoas que lhe digam – você me compreende. É sempre
para remeter vocês em outra parte que ali onde se trata de ir. é o que ela faz. Você
compreende bem – isso quer dizer que ela própria não está tão segura da
significação e que esta remete não tanto a um sistema de significação contínuo e
conciliável quanto a significação enquanto inefável, à significação básica da
realidade dela, ao seu espedaçamento pessoal"(LACAN, 1988/1955-6, p.68).
É por posicionar-se como aprendiz, que ele permitiu o ensino da psicose pelo
próprio paciente, tendo como efeito: “o ensino dos pacientes nas apresentações de
Lacan” (MILLER,1996, p.146).
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O termo em francês é mantido porque informa a presença do paciente da cena, o que difere
sobremaneira da apresentação deste por outros, situação que pretendemos aqui aprofundar.
cena de teatro, em que o público participa da criação da cena como limite não
representável “mas que tem tanta realidade quanto uma corrente de cem mil volts”
(p.31-2). Limitando a onipotência de quem interroga, atenua, para o paciente, a
onisciência do interlocutor, encarnando um terceiro que se interpõe na relação dual.
Como no chiste, o público será lugar de realização de uma intenção, a partir de algo
tomado pela palavra, sem controle prévio de nenhum dos interlocutores. Sua função
principal é, para Porge, a de reconhecimento do dizer como acontecimento
teatralizado, sem função de decifração:
A pressa emergirá sob formas diversas, a cada vez que aconteça esse jogo,
conferindo um toque trágico de urgência:
Porge ressalta ainda que o público configura uma cena, ou seja, espaço
simbólico regido por regras: onde espera-se um encontro com o inédito. Nenhum dos
que dialogam nem o público sabem do que a cena montada permitirá recolher: é uma
aposta. Os dois pontos estão separados entre si e tal separação é garantida pelo silêncio
do público que vê e escuta. Os dois estão, portanto, barrados pelo Outro: o público
assistente funciona como um terceiro, um Outro: lugar onde o chiste se realiza. O
público funciona como destinatário, mas está também, por vezes, em posição de
analista. Seu silêncio expectante do diálogo convoca os dois a falar. Entretanto,
também, todos funcionam como público na medida em que é desse lugar que recolhem
a transmissão de um intransmissível, antes incapturado pela transmissão apenas
simbólica. Assim, a existência de efeitos, que por vezes aparecem diretamente numa
melhora do paciente, podem ser indiretos, comparecendo nas maneiras de escutá-lo no
serviço em que ocorreu a apresentação.
“uma clínica oriunda das apresentações, que aparece, desde então, como
uma clínica da apresentação, isto é, emergindo dos trajetos do significante
passando por lugares diferenciados, segundo um dispositivo afim à loucura, no
qual a transmissão da clínica é síncrona ao momento da construção de seu
objeto.”(PORGE, 2009, p. 235)
“Em psicanálise um caso é tal quando testemunha por sua vez a incidência
lógica de um dizer no dispositivo da cura e sua orientação há um tratamento real,
de um problema libidinal, de um problema de gozo. Somente ao observar a
gravitação da lógica significante no campo do gozo pode-se falar de caso no
sentido etimológico do causus latino: algo que cai contingencia em geral. A
palavra latina designava algo que caia por surpresa, de maneira desafortunada,
na mesma zona de einfall, palavra freudiana que diz o que ocorre.” (p.37)
“Esse corte vai ativar o desejo, onde ocupar aquele lugar, para aquele
sujeito, que não é garantido pelos papéis, mas que pode ser ocupado somente
com o próprio risco, com o desejo de se arriscar. Trata-se de um novo percurso
profissional que, a partir do coletivo, tem a função de motor, para lançar
novamente o desejo de cada membro da equipe, evitando inclusive a segregação
- que desta vez é das profissões – em relação àquilo que estamos autorizados
fazer (...). Isso requer uma transferência de trabalho entre os membros da equipe,
ou seja, a ideia de que seja um bem, igual para todos, produzir a verdade do
paciente.”(idem, p. 59)
“Nessa perspectiva a questão habitual: “o que fazer com esse paciente, como
fazê-lo avançar, como fazê-lo participar dessa ou daquela atividade?” Se reverte
nesta questão: que uso fazer dessa instituição em seu percurso? uma
desconstrução que permite modificar o que é prévio numa questão e não será
sem incidência na procura e elaboração de uma resposta. Aquela supõe, bem
entendido, introduzir uma certa lacuna no encontro dos imperativos que a
instituição se vê submetida, ou que impõem a elas mesmas, na perspectiva da
dita reinserção social do paciente como objetivo a atingir. Com efeito, o
propósito desse objetivo supõe muito frequentemente negligenciar a dimensão
clínica reduzindo toda a resposta institucional a reeducação funcional, a ação
sobre a causalidade muito centrada na medicação.” (ZENONI, 2012, p. 2)
A partir do impasse do que aparecia como intratável, a construção do caso
propõe um outro encontro com o saber. Não se trata mais de uma aplicação preconizada,
mas de uma elaboração viva. Trata-se de outro encontro com o saber que supõe uma
certa transferência de trabalho: todos mobilizados pelo que foi nomeado como impasse
por ter se mostrado indissolúvel. Assim, o operador intervém da posição de analisante,
na medida em que a elaboração desse saber se efetua em torno de um não saber central.
Apoiado nas proposições de Viganó, Alkmim (2003) propõe que uma maneira
de introduzir a lógica da psicanálise em uma instituição é através da construção do caso
clinico. Para ele, a construção do caso clinico permite que, independentemente do
diagnóstico clínico, podemos escutar os movimentos do sujeito em seu endereçamento
ao Outro, o que torna possível uma orientação a partir de um diagnóstico de discurso
no qual será possível encontrar o lugar no qual o sujeito, em potencial, torna-se sujeito
da palavra. Isso exige que nos coloquemos numa posição de não saber, reconhecendo o
sintoma como resposta do sujeito à relação com seu Outro para que, ao operar o ato que
cria a palavra operemos na clínica da instituição como exceção, na medida em que
tomamos a instituição enquanto lugar do Outro que pode responder de maneira diferente
e única à demanda do sujeito.
Vale ressaltar que esse esvaziamento de saber não se dá de qualquer modo. Ele
é antes um esvaziamento de saber que provoca o surgimento de um sujeito divido nos
técnicos uma pergunta quanto a sua própria posição ali com aquele sujeito com o qual
ele se relaciona. É nessa direção que, como vimos, Kusnierek (opus cit.) considera a
desespecialização de cada membro da equipe como capaz de produzir a rasura egóica
necessária para a destituição do saber como ponto de partida para localizar os pontos de
ancoragem do sujeito.
Não se sabe por antecipação de onde virá, nem o que será, o que poderia ter
como alcance o ato. Mas com certeza o esvaziamento de saber é necessário para manter
um desejo de saber, inexistente quando o que se diz vale para todos. Di Ciaccia (2010)
localiza sua função: “privilegiar um ganho de saber que faça objeção à emergência
universalizante da clínica do mestre e que permite ao sujeito e ao clínico de transmitir
qualquer coisa da experiência vivenciada” (p. 134)
Ao trazer um relato histórico do caso por meio do AT, adiantamos uma aposta
que permite a cada um dos presentes fazer a sua, nessa sincronia de lugares que cada um
pode ocupar: palavra dirigida a um e destinada a outro, objeto em nome do qual se fala
quando se dirige a alguém. Temperando a urgência em problematizar com a lentidão
que a escuta exige para tornar possível um diálogo entre vários, um efeito de pressa
pode emergir da fala de alguém, ou de um assentimento de alguns. Diversas pessoas em
três posições diferentes, alternadas, onde algumas facetas que visam a posição do
paciente se deixam notar, inventando novas possibilidades de localizá-lo. Surpresas da
linguagem podem manifestar a presença de sujeito, onde a urgência em falar gera a
superação da impotência, para delimitar um ponto de impossibilidade, a partir do qual
uma nova direção de tratamento pode ser suposta.
Nossa aposta é que a disposição desses três lugares que circulam, podendo ser
ocupados por todos os presentes e é regido pelas regras propostas, agenciarão efeitos,
sem que se saiba, de antemão, o que será recolhido. É nesse jogo de lugares articulados
simultaneamente uns sobre os outros, que aposta-se na produção de um encurralamento
do real. Na composição dessa cena, está suposto que algo inominado, mas esperado,
pode ser suposto: um quarto termo como efeito comum a todos: algo de real do sujeito,
que já causara efeitos até então indizíveis nos partícipes, mas que agora se decanta,
construindo seu objeto ao transmitir a clínica, como diz Porge (2009, p. 235).
Dar relevo a esse não saber, não é algo qualquer: pelo contrário, é ele que pode ,
como nos diz Zenoni ( 2012), ir ao encontro com o saber que não é de uma aplicação
mecânica, não é baseado na definição das profissões, mas numa elaboração viva.
Somente neste contexto é possível uma equipe concernida. Por isso trabalhamos com a
proposição de que a equipe não existe previamente. A construção do caso clínico pode
produzir pontualmente um efeito-equipe, em que um ou mais profissionais se orientem
pelo concernimento que a clínica do caso produziu neles.
5 – Para concluir
Opondo-se à ideia simplista de que tudo que o analista diz a seu paciente é
tomado como verdadeiro, não importando o assentimento do paciente, Freud introduz a
noção de construção, questionando e legitimando o saber extraído da experiência
analítica. Ao critério de refutabilidade, essencial à legitimidade no campo científico,
Freud escolhe situar a verdade de uma construção no que ela pode produzir como efeito
na fala do paciente, ou seja, no mecanismo propriamente significante em jogo.
(LACAN, 1958).
Faz caso na medida em que faz cair a certeza de que a aplicação do saber, ou da
soma de saberes legitimados cientificamente, seria suficiente para abarcar a
especificidade daquele sujeito. Faz caso porque interroga e recruta os técnicos a retornar
a ele, a retomá-lo e, assim, a construí-lo. E construí-lo a partir desse furo que ele causou
na rede de saber, rede com a qual se tentava abarcá-lo – mas que foi ele que fisgou a
todos. Sobre esse ponto vale lembrar que o caso não se limita ao paciente. O caso inclui
o paciente e seu tratamento pela equipe.
Esse material assim construído pelo agente é alvo de dois encontros coletivos da
equipe onde o que faz caso é retomado, numa sessão clínica. Esta sessão clínica está
sustentada em grande parte pelo que Lacan nos ensinou na subversão que instituiu à
apresentação de pacientes (Presentation de malades) e na Conversação Clínica que visa
a construção do caso.
Bibliografia: