TAYLOR, Charles - Hegel PP 155 - 396 PDF

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CAPITULO IV

A dialética da consciência

l
A /U, escrita no final do período de lena (1 806-1 807), pode ser concebida como um
tipo de introdução ao sistemade Hegel, cuja função seria tirar o leitor de onde ele está,
mergulhado nos preconceitos da consciência comum, e leva-lo até o limiar da verdadeira
ciência. Porém, isso não pode ser a história toda. A natureza mesma do sistemade pen-
samento de Hegel é que ele apresentatoda a realidade parcial como dependente de um
absoluto que, por seu turno, necessariamentegera essarealidade parcial. Desseponto de
vista, não há realidade, por mais baixa e fragmentária que seja, que possaser concebida
como excluída do sistema, e não há transição entre níveis da realidade, cuja explicitação
pudesseser consideradacomo uma espéciede óozl z/bewz,re,um aperitivo.
E isso se aplica .z#orüor/ aos modos de consciência, num sistema em que o absoluto é
espírito. O espírito chegaa conhecer a si mesmo, e os veículos desseautoconhecimento
são espíritos finitos. O curso do desenvolvimento do Geüf rumo ao autoconhecimento
passapelas conhsóes iniciais, pelas concepções equivocadas e visões truncadas dos seres
humanos. Por isso, estas não podem estar situadas cora do sistema. Ao contrário, essaobs-
curidade inicial reflete algo essencial a respeito do absoluto, a saber, que ele precisa crescer
lutando pelo autoconhecimento. Em consequência,não pode facilmente haver uma intro-
dução à ciência do absoluto que já não seja também parte dessaciência, não pode haver
mera preparaçãodo terreno que já não seja também uma construção parcial do ediHcio.
Issojá é meio caminho andado para explicar por que houve tanto debatee incerteza
sobre o siafzíi da /;E Hegel parece tê-la concebido como maneira de aceder à Lógica
e, nessesentido, como introdutória. Porém, ao mesmo tempo, ele descreveua obra na
página de rosto como a "primeira parte" de um "Sistema da Ciência". Este incluiria a Ló-
gica e aquilo que mais tarde 6oi desenvolvido como asfilosofias da natureza e do espírito,
cujas primeiras variantes ele já havia elaborado em lena. Quando ele deu a estas a sua
forma final, certascoisastratadasna /E foram retomadasna filosofia do espírito; e isso
Goiinevitável, visto que uma explicação do desenvolvimento do espírito não pode deixar
de tratar das formas da consciência. E, para aumentar a confusão, há uma seçãona parte
da Encic/cp(%áadedicada ao espírito subjetivo que foi chamada de "Fenomenologia'
Mas isso nos confiindirá somente se concebermos o sistema hegeliano como um siste-
ma per6eitamenrearrumado de acordo com uma ordem necessáriaem que tudo tem o seu
i56 PARTE ll l FENOMENOLOGIA

lugar certo. Hegel de Eito encorajou isso com sua apresentaçãoda Lógica e das filosofias
da natureza e do espírito em forma de uma grande tríade na Enc/cZapc%&azZn Cyé/zci.u
[email protected], justifica-se de alguma maneira apresentar essascomo uma tríade,
mas não setrata da ordem única e exclusivaque é consistentecom a sua posiçãofilosófica.
O ponto nevrálgicoé, antes,como descrito por nós no último capítulo, que deveríamosser
capazesde partir de qualquer lugar e recuperar o ponto de partida original. [)ependendo
de onde separte, há diferentes modos de expor o sistemada conexão necessária.
11.
l
A /;Z' propõe-se a partir de nossa consciência comum das coisas (.Zn für#cór BemzeK/-
se/n), e conduzir-nos desta para a verdadeira perspectiva do Ge/íf. A obra é chamada de

11 "fenomenologia"porque lida com o modo como as coisasaparecempara a consciência,


ou com as formas da consciência. Nesse caso, porém, "aparência" não deve ser contrasta-
da com "realidade"; o mais real de todos, o absoluto, é essencialmenteautoaparência.A
fenomenologia não é ciência de coisas menores, quc pode ser deixada para trás, mas um
caminho para acederao conhecimento absoluto, para tornar o absoluto "aparente'
Nossa consciência comum toma-nos como sujeitos finitos, individuais, postos em opo-
sição ao mundo. A perspectiva do Geísf,em contrapartida, apresenta-nos como veículos de
um espírito que também estáexpressono mundo, de modo que estemundo não é mais
distinto de nós. Porém, como podemos induzir a consciência comum a deixar a sua pers-
pectiva e assumir a mais elevada?Apenas asseverar(z,rr!/cófrn) nossaposição não servirá
H
para nada, porque não há razãopara que o ser humano comum acredite em nós. De Eito,
l qualquer argumento baseadono conhecimento do absoluto negado à consciência comum
de nada servirá, porque ele será @sa#2rlo inacessível como zzrgumezzfa
a essaconsciência.
O tipo de argumento que Hegel propõe usar aqui é bem diferente. Ê uma forma im-
l plícita em seusistema:mostrar como a consciênciacomum cuidadosamenteexaminada
l sucumbe diante da contradição e ela própria aponta para além de si mesmapara uma
forma mais adequada.E é claro que só um argumento com essaforma seria consistente
com a conclusão de Hegel. Se fossepreciso mostrar à consciênciacomum a partir de
cora o caminho até o conhecimento absoluto, se ela tivessede serinstruída por meio de
alguma informação ou noção que não pudesseobter por si mesma, então ela não estaria
Emendoparte daquela série ascendentede modos de entendimento que constituem o
autoconhecimento do Geir6 ela estaria cora do Absoluto.
Por essavia, Hegel abre a introdução à FE atacando aquelesque começam com a
crítica da nossafaculdadede conhecimentocomo uma ferramentaque usamospara
chegar à realidade ou como um meio pelo qual a realidade aparece a nós. Não se trata
só de que issotorna o problema do conhecimento insolúvel, visto que zx Zypa/mexi
não
podemos chegar à realidade como ela é em si, sem que esta seja afetada pela nossa ferra-
menta ou repetida em nosso meio. Trata-se, ademais, de que essaabordagem pressupõe
que o absoluto, o que deve serconhecido, seja algo totalmente distinto do conhecimento
que temos dele, que "o absoluto esteja de um lado e o conhecer de outro lado para si
e separadodo absoluto e mesmoassim sejaalgo real" (7U, p. 72; PÉG, p. 65). Hegel
A DIALÉTICA DA CONSCIÊNCIA i57

enfatiza que isso seria prejulgar a questão, a última coisa que ele estaria disposto a fazer
nessecaso,visto que ele quer chegara uma conclusãodiametralmenteopostaao que
comumente se assume.

O método, então, é partir da consciência comum, não importar qualquer coisa de


Gera,e fazer uma "crítica imanente", que é como esseprocedimento setornou conhecido
na tradição hegelianae marxista. Isso quer dizer que devemos acompanhar o movimento
dialético na consciência.
E importante enfatizar aqui que Hegel não está propondo o uso de um "método
dialético ou de uma "abordagem"dialética. Se quisermos caracterizarseu método po-
demos muito bem Edar dele também como "descritivo", seguindo o exemplo de Kenley
Deve.' Porque o seu objetivo é simplesmenteacompanhar o movimento do seu objeto
de estudo. A tarefa do fi]ósofo é "mergu]har essaliberdade ne]e [no conteúdo], fazer
que se mova conforme sua própria natureza" (/U, p. 61; PÉG, p. 48). Se o argumento
acompanhar um movimento dialético, então este tem de acontecer nas coisasmesmas,
não apenas no modo como raciocinamos sobre elas.
Ora, no último capítulo,vimos que há um movimento dialético nascoisasporque
elasse encontram dilaceradas pela contradição. Cada realidade parcial é posta pelo todo
ou pelo absoluto como condição necessáriada existência desseabsoluto; com efeito, esse
absoluto só pode existir como corporificado num mundo de coisasexteriores,físicase
de espíritos finitos. E, não obstante, essasrealidades parciais, exatamente por existirem
exteriormente, cada uma delas junto com as demais, aârmam constantemente uma in-
dependência que desmente seu izafzlf de veículos postos pelo rodo.
Falamos de "contradição" nessecontexto porque assim podemos conferir sentido à
linguagem da afirmação e negação quando EHamossobre coisas. Porém, podemos con-
ferir sentido a essa linguagem porque não vemos as coisas como se apenas estivessem aí,
mas asvemos como postasvisando corporificar e expressaro Ge/f/. Em outras palavras,é
o izafHf em última instância ontológico da categoria do propósito, mais exatamente, do
propósito expressivo,que confere sentido a uma teoria da contradição ontológica. Toda
a composiçãodo mundo estáaí com a finalidade de corporificar o Grisf e de manifestar
o que ele é essencialmente, a saber, espírito autocognoscente, pensamento autopensante,
pura necessidade racional.
Porém, o inescapável meio de expressãodesse pensamento é a realidade exterior, e
estanão é capazde portar a mensagemintegralmente. Ela tende a distorcê-la,simples-
mente porque essarealidadeé exterior, suaspartessão independentesumas das outras
e estão sujeitasà contingência. É por issoque a realidade exterior não expressao pen'
lamento da necessidade racional por meio de alguma concatenaçãoestávelde coisas
duráveis, mas, antes, por meio do processoem que as coisasvêm a ser e perecem. Elas
precisam perecer porque contradizem a própria base de sua existência, que é expressar a

Hege['s Phenomeno]ogica] Method". Rez,ffwafJ4erap&ysicf, vo]. XX]]], n. 4, jun. 1970


IS8 PARTEll l FENOMENOLOGIA

necessidade racional; mas ao cancelar dessemodo o que ele mesmo pâs, o espírito acaba
dizendo o que ele queria com isso. O que náo podia ser expressona existência exterior é
expresso no movimento pelo qual essesexistentes vêm a ser e perecem. A "distorção" que
a realidade exterior impôs à mensagem do espírito é corrigida por seu necessário Edeci-
mento. O espírito jamais chega a uma expressãoimutável que diz tudo, mas, no jogo de
afirmação e negação,ele manifesta do que se trata.
Logo, em última análise,é porque vemos a realidade com basena teoria de Hegel
como posta visandodizer ou manifestar algo, que podemosdizer com certezaque
suas caractensticas pervasivas e inescapáveis -- como a existência partes fxfxu .par/eJ--
sáo "distorções", que dizem algo diferente do que deviam dizer e, em consequência,
que "se contradizem"
Porém, essanoção não nos ajudará numa dialética ascendentecomo aquela, em que
estamosprestesa embarcar.Pois concordamos que a consciência comum não poderia ser
instruídaa partir de Gera;ao contrário,que teríamosde partir da consciênciacomum e
acompanharseupróprio movimento. Ao invés de mostrar como todas asrealidadesparciais
têm de ser contraditórias uma vez que aceitamos o mundo como corporificação/expressão
do Geisr,temos de começar destacando a contradição nos existentes finitos e, partindo dali,
mostrar como só se pode conferir sentido a essacontradição se virmos essascoisasfinitas
como parte da corporificação do GeísF.E, como vimos no capítulo anterior, uma dialética
ascendentedessaespécieé essencialpara a posição de Hegel, não só porque ele quer con-
vencer aspessoas,mas também porque se pressupõeque a visão racional do Geüf constitua
um tecido inteiriço de argumento racional. Não basta mostrar que o Geüf requer existentes
finitos; também temos de mostrar que estes requerem o Geisf. Examinados devidamente,
elestêm de evidenciar a sua dependência do todo. Não sendo assim, a concepção de Hegel,
que também é autoconhecimento do Geü/, figurada apenas como outra visão baseadana &
ou na plausibilidade oniabrangente; e isso é inaceitável caso o Grlst seja Razão.
Porém, como podemos descobrir contradição em coisas finitas? Tomados apenas em
si mesmos, que é como a consciência comum os vê, os objetos materiais ou os espíritos
finitos são simplesmente dados. Acabamos de constatar que, para vê-los como contradi-
tórios, temos de considera-los como postos. Porém, é justamente isso que não podemos
fazer no início sem incorrer na petição de princípio e violar nosso método. Pareceque
estamospresos num círculo vicioso. Como podemos começar?
Hegel aârmará que toda e qualquer realidadeque considerarmos,não importando
quão circunscrita e aparentemente independente ela seja, manifestará a articulação inte-
rior necessária
à contradição.Essaarticulaçãointerior, como vimos no último capítulo,
é tal que podemosdistinguir, de um lado, onde a coisacm questãoquer chegarou o
que se pretende que ela seja e, de outro, o que ela é efetivamente. Sendoassim, pode
haver discrepânciaentre a existência e6etivae o objetivo ou o padrão almejado e, em
consequência, a coisa é passívelde contradição. Por conseguinte, o objetivo que discerni-
mos não precisa necessariamente ser, em primeira linha, o de expressar o Geüf. Podemos
A DIALÉTICA DA CONSCIÊNCIA
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começarcom um padino mâJSbaixo e manifestar a contradição, mostrando que a exis-

ta B V WWÜL+
baUUZ\ra\JB

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i6o PARTE ll l FENOMENOLOGIA

De modo similar, a diabética da consciência na /;E' nos conduzirá por uma crítica das
concepçõesinadequadasdo conhecimento tidas como padrão realizado. Porém, ao mes-
mo tempo, todas asdefinições que examinámos, até mesmo as mais inadequadas,coram
consideradas verdadeiras por alguém em alguma época (incluindo a presente, no caso
de algumas pessoas).Elas, por conseguinte, necessariamentemoldaram a prática. E isso
quer dizer que a perfeição do conhecimento, onde o conhecimento do mundo coincide
com o autoconhecimento, nem sempre 6oi realizada.A prática do conhecimento, dife-
rentemente, digamos, da prática de jogar hóquei, não pode ser divorciada da concepção
que temos dela. O conhecimento é zpso#acroimperfeito se estiver errado sobre sua pró-
pria natureza. Consequentemente, o conhecimento perfeito só pode ser obtido quando
os sereshumanos alcançam uma concepção adequada dele.:
Por conseguinte,a diabéticadas teorias do conhecimento está em conexão com a
dialética das formas históricas da consciência.
Em contrapartida, quando as dialéticashistóricas tratam da contradição entre certas
formas históricas e os propósitos básicosque se buscam por meio delas,isso também está
ligado a uma contradição nas ideia humanas. De Eito, o modo como os sereshumanos
concebem os propósitos básicos da humanidade é essencial para a caracterização de qual-
quer forma histórica dada e de sua inadequação. O fato de, nos primórdios da história, os
sereshumanos não terem sido capazesde realizar o potencial humano estávinculado com
sua incapacidadede conceberadequadamente os objetivos do ser humano (e do Ge/fr).
E por serinadequadaa concepçãodos propósitos humanos básicosassociadosa uma
dada forma histórica de vida, os sereshumanos, nesse estágio, tendem a frustrar esses
propósitos. Essaconcepção inadequada, por conseguinte, é essencialpara a contradição,
porque esta não se origina do fato de que os propósitos humanos malogram, mas do
batode que os sereshumanosos frustram ao tentar cumpri-los. Assim, pode-sedizer
que, em qualquer sociedadeou civilização histórica, a contradição consiste nisto: que
os propósitos humanos básicos, concebidos nos termos dessa sociedade, estão fadados
à autofrustração. Por conseguinte, o papel desempenhado pelas concepções cambiantes
é tão essencialpara a dialética histórica quanto a mudança da realidadehistórica, e, de
Fato, uma está vinculada com a outra.
A partir disso,podemos ver quão estreitamente os dois tipos de diabéticaestão relacio-
nados na obra de Hegel. Cada um deles figura na explicação do outro A filosofia hegeliana
da história remete-nos à sua ontologia; e sua oncologia requer o desenvolvimento histórico.

z Isso não quer dizer que haja um cerco número de formas históricas do conhecimento que sãoforrei zmf/z/e
caracterizadascomo certeza,percepção, etc., sensíveis.Com efeito, as propriedades básicasdessasconcep'
ções iniciais inadequadas são que elas estão erradas a respeito delas mesmas. Ê essadiscrepância entre a
ideia que Errem de si mesmas e sua realidade eâetiva que constitui o motor da diabética. Porém, na mesma
proporção em que estão erradas,elas são distorções do conhecimento, as quais não podem ser explicadas
adequadamente nem pela imagem que têm de si mesmas nem pela concepção do conhecimento perfeito.
A DIALÉTICA DA CONSCIÊNCIA

Mencionei anteriormente que o movimento diabéticoé geradopor uma discrepância


entre um propósito ou padrão e a tentativa de concretiza-lo. Porém, do que acabou de
serdito, podemos inferir que é melhor entendê-lo como uma relaçãoque envolve não
apenasdois termos, mas três: o propósito ou padrão básico, a realidade inadequada e
uma concepção inadequada do propósito que está vinculado àquela realidade. Isso está
claro no caso da dialética histórica. Há um propósito que é frustrado pela concepção
inadequada dele que seorigina inescapavelmente de certa forma histórica de vida.
Entretanto, a dialética ontológica também envolve três termos. Começamos com
uma noção inadequadado padrão envolvido. Porém, também temos, desdeo início,
algumas noções carretas muito básicas do que é o padrão ou o propósito, algumas pro-
priedadesem forma de critérios a serempreenchidos.São essaspropriedadesem forma
de critérios que de fato nos habilitam a mostrar que uma dada concepçãodo padrão
é inadequada.Com efeito, mostramos que essaconcepçãonão pode ser realizadade
modo a preencher as propriedades tomadas como critérios e, em consequência, que essa
definição é inaceitável como deânição do padrão ou propósito concernidos. Porém,
mostramos a inadequação da fórmula ao tentar "realiza-la", isto é, ao tentar construir a
realidade de acordo com ela. É isso que produz o conflito com o padrão. A realidade é,
portanto, o nosso terceiro termo.
Podemos ilustrar esseponto e, ao mesmo tempo, mostrar por que Hegel chama esse
tipo de argumento de "dialético", olhando de relance e retrospectivamente para Platão.
Com efeito, o argumento de Platão pode, às vezes,ser entendido com basenessemo-
delo, isto é, como a descobertada contradição em fórmulas que são propostascomo
definições de certa ideia ou de certo padrão, fórmulas que são, em seguida, postas de
lado em favor de outras mais adequadas.
Por conseguinte,no capítulo l da Re?úó#ca,quando CéEdo propõe uma definição
de justiça cujo teor é dizer a verdade e restituir o que se deve, Sócratesa refuta com um
exemplo, o do homem que entregou a guarda de suas armas a outro e as pede de volta
quando é acometida de insanidade.Esseexemplo basta para pâr de lado a definição
de Céfdo. Isso ocorre porque a fórmula "diz a verdade e paga tuas dívidas" é proposta
como definição dejz/ififú. Ora, ainda não conhecemos a verdadeira definição de justiça
nesse estágio do diálogo. Porém, conhecemos algumas das propriedades que servem de
critério para ela. Sabemos,por exemplo, que um ato justo é um ato bom, um ato que
deveriaser praticado. Por isso, ao mostrar um ato que, estando em conformidade com
a fórmula mencionada, não deveria ser praticado como no caso manifesto de que não
se deve devolver as armas a um homem insano --, a fórmula torna-se insustentável como
definição de justiça; pois continuar sustentando-a seria incorrer na contradição de dizer
que o ato Hoitanto justo quanto errado.
O que Sócrateseez6oi mostrar o que significaria satisfazero padrão tal como definido
na fórmula de CéEalo,isto é, o que significaria agir com base nele de modo geral. E, a
partir desseexemplo,ele mostraque o princípio de CéEdonão pode ser cumprido de
i6z PARTE ll } FENOMENOLOGIA

modo compatívelcom aspropriedadesque servemde critério paraa justiça. Consequen-


temente, ele não pode ser uma definição de justiça.
Essadiabética, por conseguinte, envolve três termos: ela começa com (1) uma defi-
nição de justiça e (2) certas propriedadesque servemde critério para a justiça; e mostra
que estasentram em coníiito quando tentamos (3) realizar a definição numa prática ge-
ral. Devemos constatar aqui um paralelo com os argumentos diabéticosde Hegel, tanto
com os históricos quanto com os onto1(5gicos,
que sempre operam com três termos: o
verdadeiro propósito ou padrão, uma concepção inadequada dele e a realidade em que
eles se encontram e se separam.
Por conseguinte, temos condições de ver como uma dialética hegeliana pode ser ini-
ciada sem que tenhamos de aceitar de saída toda a visão de Hegel. Temos simplesmente
de encontrar um ponto de partida em que alguma realidadefinita tem de servista como
(tentativa de) realização de um objetivo ou como concretização de um padrão. Não é
necessárioque esseobjetivo ou padrão que identificamos no início seja o do espírito que
retorna a si próprio. Bastaque o propósito histórico vá além do entendimento humano
subjetivo dos seuspróprios objetivos, de modo que esteúltimo possaser apresentado
como concepção equivocada autofrustrante daquele ou que tenhamos um padrão que
compartilha com o Gefif realizadoalgumaspropriedadesque Ihe servemde critério.
Então (desde que nossosargumentos sejam válidos), pode ser posta em marcha uma
dialética, na qual nossaprimeira concepção(ou a primeira forma histórica), revelando
ser inadequada,é substituída por outra. Hegel insiste em que, uma vez que um argu-
mento dialético é posto em marcha, não há papel arbitrário nele, mas cada estágioé
determinado pelo estágioprecedente.Visto que a contradição que acta nossoprimei-
ro estágioou nossaprimeira concepçãopossui uma forma determinada, âca claro que
mudanças devem ser empreendidas para supera-la. E isso estipula a natureza do próxi-
mo estágio. Porém, essesegundo estágio mesmo pode revelar-sepresa de contradição,
porque sua realizaçãopode ser incompatível de outra maneira com aspropriedades que
Ihe servemde critério ou incorrer em contradição ao tentar corporificá-las ou frustrar
o propósito histórico à sua própria maneira. Então, a dialética move-separa um nova
estágio.Por conseguinte,Hegel afirma que acompanhar um movimento diabéticonão é
como implementar um argumento cético, no qual a prova de que uma forma incorreu
em contradição nos deixa no ar. Cada contradição possui um determinado resultado; ela
nos deixa um resultado positivo (/U, P. 76; PÉG, P. 68.)
Consequentemente, dado um ponto de partida numa realidadeque constitui um
padrão ou propósito realizado e posto que todos os argumentos funcionem, podemos
galgar de estágio em estágio até chegar à concepção do todo como Gelí&,a única que
incorpora exitosamente a contradição.
Porém, é possível que essaexplicação não nos torne muito mais confiantes nas pers'
pectivas da dialética ascendente de Hegel. Com efeito, não basta que idamos caP'zzeJ
de olhar para algo como a realizaçãode um objetivo intrínseco, não bastaque esseseja
A DIALÉTICA DA CONSCIÊNCIA l63

um modo como paderümoi olhar para ascoisas.Um ponto de partida tão problemático
poderia produzir, mediante o argumento diabético,uma visão das coisasque até pode
nos convencer por sua plausibilidade, mas não seria um argumento concludente, não
exigiria o nosso assentimentocom todo o rigor. Para ter o efeito que Hegel quer, esse
ponto de partida deveser irrefutável. E issopareceser uma tarefa difícil.
Porém,é uma tarefaque Hegel sepropõe a cumprir. Veremosmais tarde que é justa-
mente a diâculdade de sustentar essaafirmação que solapa todo o sistema. (quando seus
argumentos não funcionam, issocostuma ocorrer porque dependem de um propósito
ou padrão intrínseco putativo que não está irrefiitavelmente estabelecido.E mais adiante
perceberemosuma importante distinção a ser feita entre diferentes dialéticas em Hegel
que dependem da natureza do ponto de partida.
Entretanto, no que concerneà FZ?,Hegel pode sustentare sustentao seu ponto de
partida. Com efeito, estamos tratando da consciência. E nosso ponto de partida será o
sujeito cognoscente.Este,porém,diferentementede uma pedraou de um rio, já é algo
que tem de serdefinido em termosde propósito realizado,em termos de realização até
mesmo aos olhos da consciência "natural". "Conhecer", como também se pode dizer, é um
verbo de realização. Nesse caso, porém, nossas concepções rudimentares, ordinárias dessa
consciência podem ser os pontos de partida da dialética. Com efeito, pressupondo que
pudéssemosmostrar que o conhecimento,como elaso interpretam, é de Eito irrealizável
(por necessidade),aquilo que preencheu suasfórmulas não poderia ser chamado de conhe-
cimento nem com base em seuspróprios critérios. Teríamos desvelado,nessecaso, uma
profiinda contradição ou incoerência na visão ordinária, a qual exigiria seu melhoramento.
De bato é assim que Hegel apresentaas coisas na introdução à /;E' (p. 78-80; P»G, P 70-
73). Para testar a validade das afirmações do conhecimento, necessitamosde um parâmetro
ou padrão(714:?6zaó).Porém, violada o princípio do nosso presente procedimento se ele
viessede cora, de alguém que alegasseum conhecimento superior de como são as coisas.
No entanto, Hegel argumenta que isso não é necessário nessecaso. A consciência cognos-
cente distingue(wníezKcÉe/d'í)dentro de si mesma entre o nosso conhecer e o objeto conhe-
cido. A consciência é bipolar: ela é consciência z& algo; e isso quer dizer que seusconteúdos
não são meramente inertes, mas têm ligação com algo fora deles. Como sujeito cognoscen-
te, meus pensamentos,minhas percepções,etc. também são a@zmózfóes
do conhecimento.
Ora, não podemoscomparar o mundo-como-eu-o-vejo ou o mundo-como-eu-afir-
mo-que-o-conheçocom o mundo-em-si-mesmo,tendo estecomo parâmetro. Porém,o
que pode servir de parâmetro é a concepção que formamos sobre o que é uma afirmação
bem-sucedida, isto é, o que é conhecimento verídico. E isso implica em não apelar para
um padrão situado cora da consciência. Nós apelamos, antes, para sua própria concepção
de verdade. ' no que a consciência dec]ara dentro de si como o .4n dirá [em si] ou o
verdadeiro, temos o padrão que ela mesma estabelece para medir o seu saber" (/;E. p. 78;
/'óG, p. 71). O que nós comparamoscom ele é seu sabereEetivo.Sepudermos mostrar
que estenão conseguiriasatisÊmero seu próprio padrão, se pudermos mostrar que, ao
i64 PARTE ll l FENOMENOLOGIA

tentar satisemeressepadrão, nada podemos fazer senão produzir algo incompatível com
ele, então teremos posto a descoberto uma contradição que não tem como não mudar a
nossaconcepção do conhecimento.
Ao mostrar que o nosso saber eGetivo não consegue satisfazer o padrão estabelecido,
pode parecerque estamosmostrando uma inadequaçãodessesaber.Porém, de fato, a
crítica mais fundamental é deita ao padrão. Com efeito, se mostrarmos que ele não pode
ser satisfeito, ou o entendemoserrado ou jamais poderá haver qualquer saber.Porém,
essasegunda alternativa não pode ser acolhida por nós; estaríamos refutando essa tese
Já pelo simples Eito de formula-la. Há saber, e ele constitui uma realização,a realização
de um padrão. Se o padrão que concebemos 6or irrealizável, temos de voltar a concebê-
lo. Logo, como diz Hegel, "o exame não é só um exame do saber, mas também do seu
padrão de medida" (/U, p. 80; PÉG, P. 73).
Consequentemente, Hegel conseguiu aqui agarrar um ponto de partida que tem de
ser visto como um padrão realizado e, assim, ele é capaz de iniciar uma diabética ascen-
dente a partir da concepção mais natural e não sofisticada do sujeito cognoscente, a qual
ele chama de "certeza sensível". Ele consegue cumprir a sua promessa, pelo menos nas
partes inaugurais da obra, de não importar qualquer conhecimento ou noção de fora,
mas acompanhar unicamente o movimento da própria consciência comum. Essemovi-
mento emergira das contradições na consciência comum, que virão à tona à medida que
seus padrões forem confrontados com seu ser e6etivo.
Porém, podemos ainda estar intrigados com essaalegação de que se está Emenda uma
crítica imanente. Os filósofos que escrevem e que leem a .IZ' seguramente estão vendo
coisas que muitas pessoascomuns não veem. .4/gama coisa os diferencia da consciência
comum. O que seria isso senão alguma noção ou algum conhecimento adicional? A
respostade Hegel é que os filósofos só se distinguem nesseponto da pesco; comum
por trazerem claramenteà luz aquilo que já estáimplícito no que a consciênciacomum
reconhece. Eles não trazem nenhuma contribuição (Z#íaf, literalmente "achega", "acrés-
cimo" [/W, p. 79; PÉG,p. 72]) própria. Ou, casose prefira,suacontribuição(Zúiaf
[.fU, p. 8 1; PBG, p. 74]) é apenasmanter e interconectar, em contínuo observar,o que a
consciência comum experimenta sem interconectar.
Com efeito, essa diabética é vivida e experimentada pela consciência comum. De bato, é

assimque Hegel define o termo "experiência" na /U'. A contradição leva ao colapso de um


modo de consciênciae à sua substituiçãopor outro. Porém, o que Efta nessaexperiência
comum e está presente na explicação do âlósofo é a conexão, um saberpop' gzíe a primeira
forma entrou em colapsoe como veio a ser substituída por suasucessora.
A consciência
comum experimenta a mudança; nós, filósofos, a percebemoscomo movimento dialético.
Partindo da concepçãoordinária do conhecimento que um sujeito finito náo so-
fisticado tem de si mesmo, Hegel esperagalgar os diversosestágiosaté uma forma da
consciência que não mais será presa da contradição, mas capaz de contê-la reconciliada
dentro de si. Esseserá o conhecimento absoluto ou real.
A DIALÉTICA DA CONSCIÊNCIA :65

O itinerário até lá será a fenomenologia do espírito, na qual a consciência combaterá


e, consequentemente,superarao ponto de vista que pareceprendê-la ao que Ihe é es-
tranho ("m/f XrfmZarrfg?móeóaÚef"[/{F, p. 82; P»G, p. 75]) e passaráa ver a si própria
como o autoconhecimento do Ge/f/. A rota que passapor e vai além dessaaparência
(Sfóein) de uma existênciadependentee isolada é a fenomenologia, e seusestágiosnos
apresentam uma série de "figuras da consciência" (Griza#e 2ei .Bemzt4heizzs) .
Já deverá estar claro que essaobra terá um escopo considerável. Porém, na realidade,
ele alcança uma amplitude ainda maior do que a que estáimplicada na discussãoacima.
O alvo de Hegel não é meramente nos conduzir atravésdas várias formas da consciência
cognoscente (.Benze/íbe//z no sentido estrito); cle também precisa investigar asformas em
desenvolvimento da consciência como sujeito de ação e desejo, o sujeito como ele vê a si
mesmo ou como ele aspira ser (o que Hegel chama de "consciência de si" [SeZ&í/óemzeK/-
ie/ml). E issoé essencialpara o seu propósito; com efeito, ao tirar-nos de uma visão do
sujeito como consciência isolada para uma que o vê como veículo do autoconhecimento
do Gelsf, ele tem de fazer mais do que alterar a nossa concepção do conhecimento; ele
deve também Emer com que mudemos nossa noção do si-mesmo. Porém, algumas das
transições cruciais que produzem essatransformação não são movidas por contradições
em nossa maneira de conhecer, mas antes por aquelas que surgem das afirmações que
fazemos sobre o mundo, sobre os outros e sobre nós mesmos como agentes.
Por conseguinte, paralelamente à dialética do conhecer, a da "consciência", consta-
tamos uma dialética do desejo e da concretização, da "consciência de si". A raiz desta
última é o que Hegel chama de "certeza de si" (Sf/ói em{8%eít),um conceito rico que
designa de uma só vez a noção que temos de nós mesmose o estado que nos esforçamos
por alcançar. Esseconceito pode ser entendido sobre o pano de fiando expressionista do
pensamento de Hegel. O ser humano se esforça por alcançar uma corporiâcação exterior
que o expresse,e tem seu objetivo frustrado quando as realidades das quais ele depende
para ser refletem algo estranho a ele. Certeza de si é a convicção de que tudo aquilo
de que dependemos não é estranho, de que nela estamos "em casa" (óe/ i/ró). Pode-
-seconceberissocomo definição de nossaintegridade no sentido mais amplo possível.
Porém,visto que somosseresque vivem em relaçãocontínua com a realidadeexterior
e dependemos dela para ser (mesmo que seja só porque necessitamos respirar, comer,
estar parados sobre algo), qualquer noção da certeza de si Êazcertas afirmações sobre essa
realidade; para que essacerteza de si se realize a contento, certas coisas são requeridas do
mundo circundante. É issoque os sereshumanos baralham para produzir.
Porém, o que acontece se dada noção da certeza de si não só não se realiza, mas nem
sequer pode existir na natureza das coisas?O que acontece se a realidade circundante
não pode ratificar essanoção que temos de nós mesmos?Nesse caso, agir a partir dessa
ideia é, em certo sentido, contraditório; essa ação frustra o que deveria realizar. Nossa
'verdade" (IWaóróe/t),que é como Hegel chama essanossadifícil situação, não pode ser
coadunadacom a nossacerteza.Temos, então, uma diabéticana qual a nossacertezade
l66 PARTE ll ! FENOMENOLOGIA

si desempenha o papel de parâmetro e na qual nossa "verdade" é comparada com ela. Se


elasforem, em princípio, não congruentes,então, como ocorreu com o conhecimento
acima, o parâmetro deve mudar.
O exemplo mais famoso de uma dialética com essaforma é a do senhor e do escravo,
de que trataremos mais adiante. Tendo mostrado que o ser humano necessitado reco-
nhecimento de outros para ratificar sua certezade si(isto é, tendo mostrado a natureza
contraditória das formasde certezade si que não implicam reconhecimento),Hegel
mostra como a tentativa de consegui-lo unilateralmente é fadada ao fracasso.Com efei-
to, a luta vitoriosa para obtê-lo do outro à força termina ou com a morte ou com a
escravização desse outro, e em ambos os casos o objetivo do reconhecimento é frustrado.
Essadialética leva, por conseguinte, a um desenvolvimento da noção que temos de
nós mesmos. E, na E?morar/za/o@a, isso está entretecido com a diabética do conheci-
mento. Esta ocupa a primeira seçáo sobre a "consciência" (.BemzeÓhe/n);
aquela ocupa
a segunda seçãosobre a "consciência de si" (Se/&sfór zt4hr/n). As duas são, então, em
certo sentido, combinadas no capítulo VI sobre a razão.Ê que iniciamos de novo com
a diabéticada consciência,mas agora uma diabéticafundada na certezade que a razão
humana encontrará a si própria no mundo. E, após uma nova dialética da consciência de
si, passamosa uma síntese mais elevada na noção da individualidade, que, por sua vez,
transita para outra diabéticamuito rica, a do espírito.
Na FE, isso se refere ao que mais tarde seria chamado de "espírito objetivo", e temos
aqui uma noção do si-mesmonão mais como indivíduos isolados,masantescomo inte-
grantes da comunidade humana. Isso, por sua vez, torna possível a passagem para o espírito
absoluto na forma da religião (capítulo VII), na qual preparamos a transição para uma
noção da consciência como a consciência de si do Gelsf. Nesses dois casos, a dialética não
pode mais ser vista como simplesmente uma dialética do conhecimento ou uma diabética
da certeza e verdade, mas ela integra as duas. E a dialética que vemos operando na história.
A extraordinária tacada da /U' pode ser vista nisto: ela parte de uma teoria do conhe-
cimento imediato e culmina numa breve âlosofia da história e do desenvolvimentoda
religião. Porém, estaúltima estáimplícita no objetivo introduzido com a primeira, a saber,
percorrer as diferentes figuras da consciência humana até chegarmos a um conceito capaz
de se afirmar contra a contradição. Por isso não devemos levantar objeção se, no caminho,
descobrirmos que aquelasfiguras da consciência do ser humano que o concebem como um
indivíduo Errem radicalmente inadequadas,se tivermos de vê-lo como o veículo de uma
consciência mais ampla, a da sociedade política e, por fim, a do Ge/sf,se tivermos de desco-
brir uma forma de entendimento humano do si-mesmo e do mundo que não desabarasob
o seu próprio peso.Com efeito, Hegel afirma que a única visão consistenteda consciência
humana e do conhecimento é aquela que os enxergacomo o autoconhecimento do Gelsf.
Não há, portanto,esperança de um resultadodefensávelenquantopermanecermos com
o ser humano solitário confrontado com um mundo que é outro. Porém, uma vez que
vejamoso ser humano como o veículo de um sujeito supraindividual, como o Estado,
A DIALÉTICA DA CONSCIÊNCIA i67

algumas das transições cruciais se darão entre formas da organização do Estado e, em con-
sequênciadisso, acompanhando estas,passaremospara o terreno da filosofia da história.
Em princípio, issonão nos deveria causarsurpresa,uma vez que, como vimos com Hlegel,
não há modo de isola a fenomenologia enquanto propedêutica do corpo principal de sua
filosofia; a única coisaque pode nos surpreenderé o escopo,que torna a .IU' uma versão
abreviada de algumas das partes principais do sistema de Hegel.
Porém, issonão é tudo. Hegel tece a sua teia numa amplitude maior do que consi-
deraríamos necessário. Muitos leitores ficaram impressionados com a tendência presente
aí, como em todas as obras sistemáticas de Hegel, de aparentemente começar tudo de
novo desde o início a cada nova seção. Essaé uma das coisas que torna as transições hege-
lianas mais difíceis de acompanhar e mais questionáveis do que elas precisam ser.Tendo
l mostrado a necessidade de passar a um novo modo de encarar a questão, Hegel não per-
manece no nível de sofisticação conceptual que atingiu, mas começa apresentando esse
novo modo de abordagem em sua forma mais primitiva, apreciando refazer lentamente a
escaladae gerar uma vez mais, nessenovo domínio, a linguagem sofisticadacujo direito
de usar ele já havia conquistado.
Por conseguinte,Hegel termina a primeira seção,sobrea consciência,com um fio-
reio mostrando que a consciência seconverte necessariamenteem consciência de si. No
processo,ele havia implementado alguma coisa da linguagem de sua teoria especulativa
avançada, como, por exemplo, "infinitude", a divisão do autoidêntico, e assim por dian-
te. Contudo, ele inicia a seçãosobre a consciência de si sem se valer dessaparafernália
avançada; ele parte do começo, ou seja, com um estudo sobre a vida e o desejo. A uni-
versalidade, que se revelou como uma parte necessáriada bagagem da consciência, tem
de ser mostrada mais uma vez e de maneira nova em conexão com a consciência de si.
Ou, então, Hegel termina o capítulo sobre a razão com o conceito do indivíduo
autolegisladore transita para o espírito (objetivo) ou a vida do ser humano na comu-
nidade política. Podemos pensar que isso justiâcaria lidar com essedomínio num nível
bastante avançado. Porém, Hegel escolhe recomeçar com os gregos. No capítulo sobre a
religião, ele recua até os persas-
Pode parecer que essehábito muitos exemplos podem ser encontrados em todas
as demais obras sistemáticasde Hegel denuncie uma espéciede enciclopedismo com-
h
pulsivo. E estecertamente Eazcom que as transições de Hegel sejam menos rigorosas do
que ele àsvezespretende que sejam. Porém, há método nessespercursos aparentemente
meândricos. Não se pode perder de vista que o alvo dessesexercíciosé demonstrar, a
partir da nossaconsciência comum ou das nossascategorias cotidianas ou da existência
dascoisasfinitas (dependendoda obra em questão),que devemosterminar na noção
hegeliana do Geíff autocognoscente mediante o argumento puramente imanente, isto é,
seguindo uma dialética isenta de pressupostos.
Porém, de eito, o ponto de partida de tal demonstração é aquela coisa arbitrária
bem determinada.No final dascontas,tudo se revelarácomo emanandodo absoluto,
i68 PARTEll l FENOMENOLOGIA

mas ao dar a partida no argumento é preciso tomar algo como dado e prosseguir a par-
tir dali. Hegel escolhe como pontos de partida realidades ou categorias ou ideias tão
distantes quanto possíve[do seu ponto final como forma de reforçar o seu argumento.
Porém, essejuízo da "distância" é, antes, aproximado e intuitivo, pelo menos antes de
o sistema ter sido derivado.
Visando tornar suasdemonstraçõesconvincentes, Hegel é levado a cobrir todos os
ângulos; em vez de prosseguir pelo caminho mais curto até o objetivo, ele tende a tentar
mostrar que por qualquer ponto de partida dado é possível chegarlá. Isso é tanto mais
importante pelo fato de essademonstraçãoservir não só ao propósito de estabelecera
noção hegeliana básica, mas também de mostrar como tudo constitui parte dela. Há, por
conseguinte, uma propensão à inclusividade total nas principais obras demonstrativas de
Hegel. [)aí os frequentes e surpreendentes rodeios para aco]her a]guma ideia ou a]gum
Henõmeno de maior expressãoe, consequentemente,
a tendênciade começartudo do
princípio ao ingressarnum novo domínio.
A imagem para representar o sistema de Hegel não é um curso d'água simples, mas,
antes, um sistema Huvial; partindo da fonte, ele viaja até o primeiro afluente e, então,
em vez de continuar para a corrente principal, ele insiste em explorar essebraço de rio
desde as suas nascentes, e, assim por diante, rio abaixo, até conseguir mostrar que todas
as águasdo vasto sistemafluem para o estuário do espírito absoluto.
Porém, é claro que nenhuma obra é capazde incluir tudo. Semprehá algum prin-
cípio de seleção.E a maioria dos leitores achou desconcertantea coleção de assuntos
acolhidos na /:lF, incluindo, como é o caso, teorias do conhecimento e civilizações his-
tóricas, visões do ser humano de importância formativa para a nossacivilização, como o
estoicismo,e modismos contemporâneosum tanto absurdos,como a frenologia. Houve
quem sugerisseque o princípio de seleçãotenha sido autobiográfico: essesestágiosrepre-
sentam asteorias, as atitudes, as aspiraçõesou os períodos da história que Hegel adotou
ou sobre os quais refietiu e que o habilitaram a chegar exitosamente à sua visão madura.
Obviamente, há algum fiindamento nisso. Porém, a interpretação autobiográficapode
facilmente ser extrapolada. Não há evidência de que Hegel alguma vez tenha sido adepto
da frenologia. E, de outro lado, os ricos estudos sobre o judaísmo e a vida de Cristo estão
ausentesna FE, deixando vestígios unicamente no tema da consciência infeliz.
Uma interpretaçãomuito mais plausível seria que Hegel 6oi influenciado, quanto ao
que incluir em suas obras, pelas correntes, convicções e aspirações da época. Isso daria
sentido em relaçãoa uma obra concebida para tirar as pessoasde onde elas estavame
leva-las à perspectiva da ciência absoluta. E isso explicaria a sua preocupação com certas
posiçõesromânticase com a questãoda teoria moral kantiana.
De fato, a /U' é demasiadorica paraque a percorramosde modo sistemático,mesmo
que deixemosos detalhesde lado. Ademais, muitas seçóestocam matérias que Hegel
retomou depois. O que eu gostaria de Emeré examinar somente certasseçóesque lançam
luz sobre a sua posição e simplesmente dar a direção geral do argumento nas demais,
A DIALÉTICA DA CONSCIÊNCIA x69

visando mostrar o movimento da obra toda. Em capítulos posteriores, terei ocasião de


retomar algumas das seçóesque, a seguir, abordaremos de forma um tanto apressada.

2
l
Os argumentos iniciais da FE são uma boa ilustração da crítica imanente de Hegel.
A noção de consciênciacom a qual Hegel inicia sua crítica diabéticaé denominadapor
ele de "certeza sensível". Esta é uma visão da nossa consciência do mundo segundo a qual
l ela se encontra em seu estado mais pleno e rico quando, por assim dizer, simplesmente
abrimos nossos sentidos para o mundo e recebemos toda e qualquer impressão que cruza o
nosso caminho, antes de qualquer atividade da mente, em particular da atividade concep-
tual. "Devemos proceder também de forma /me21aznou x?ce?ffz/a,isto é, nada mudando
assim[nessa consciência] na maneira como e]a se (Z#rrrcee apreendendo as coisas ]ivres
de conceitualização" (z,andem .4ze#ãsirm .Z:zli;
.B«x?dân ózzí&aZI'rn)
(/;& p. 85 [traduzido
a partir da versão inglesas;PÉG, p. 79). Ora, de acordo com a visão chamada de certeza
sensível,supõe-seque essapura receptividade nos proporcione o conhecimento mais rico
e mais verdadeiro possível, e as duas coisas pela mesma razão, a saber, porque "do objeto
nada ainda deixou de lado, mas o tem em toda a sua plenitude diante de si" (ibidem).
Essavisão evidentemente guarda certa semelhança com o empirismo. Não é idêntica
ao empirismo, uma vez que não é de modo algum tão plenamente especificada.Porém,
a ideia da consciência como sendo primordialmente receptividade, anterior a qualquer
atividade intelectual (isto é, conceitual), é um tema reconhecidamente empirista, assim
como é a visão de que às declaraçõesdessareceptividade adere um grau de certezamaior
do que a quaisquer juízos feitos com base nela.
Ora, o modo como Hegel ingressano movimento dialético aqui é pedindo que o
sujeito da certeza sensível ziCgao que está experimentando. Podemos ver em operação a
mesma ideia básica esposadapor Herder, a de que a consciência reflexiva humana é ne-
cessariamente consciência linguística, a de que ela tem de ser expressaem signos. Porém,
sequisermos Emervaler uma tesedessetipo, não estaremosviolando o nosso método e
importando ideias, informação, teorias vindas de cora da consciência comum?
Hegel claramente não pensa assim, nesseponto. Antes, ele trata a capacidade de dizer
como uma das propriedades que servem de critério para o conhecimento. E é difícil não
concordar com ele, porque estáclaramente implícito no conhecimento, no sentido rele-
vante aqui, uma certa consciência do que se conhece. No final das contas, não estamos
lidando com Ênom-Aam,nem com perspicácia inconsciente, nem com qualquer coisa do
tipo, mas com o conhecimento que temos na experiência desperta. Se conhecemosalgo
nessesentido, devemos ser capazesde dizer o que conhecemos, e isto, mesmo que não te-
nhamos aspalavras (adequadas)para isso, mesmo que o Eormulemos de modo vacilante
e sofrível e sejamos forçados a usar palavras como "inefável". O xis da questão é apenas
que aquilo que se conhece de um objeto da consciência seja suficiente para que possamos
i7o PARTEll l FENOMENOLOGIA

encetar a tarefa de descrevê-lo. Uma experiência sobre a qual não se pudesse dizer abso-
lutamente nada, nem mesmo que foi muito difícil ou até impossível descrevê-la,estaria
abaixo do limiar de consciência que consideramos essencial para o conhecimento (no
sentido relevanteaqui, isto é, o conhecimento do que é experimentado no momento).
Ela teria sido, ou vivida, inconscientemente ou então teria sido tão periHrica que não
teríamos nem poderíamos recuperar qualquer ponto de apoio nela.
Assim, ao pedir que o sujeito da certezasensível diga o que conhece, estamospe-
dindo que ele produza uma porção de conhecimento e6etivo obtido nessemodo de
consciência.E é aqui que aflora a contradição. Supõe-seque a certezasensívelseja in-
comensuravelmente rica se comparada com a consciência conceptual porque nada ainda
foi selecionado nem abstraído nem posto numa categoria com outros fenómenos não
momentaneamente presentes. Toda a cena está presente em sua riqueza e particularida-
de. Porém, vemos, então, que, para conhecer algo, temos de ser capazesde dizer algo
sobre isso; e para dizer algo sobre isso temos de focar em uma ou outra dimensão da
realidade que temos diante de nós. A grande riqueza dessaforma da consciência revela-se
como puramente aparente: ao "apreender" a cena diante de nós, podemos erroneamente
acreditar que estamosapreendendouma riqueza inesgotável de detalhes, porque, de
fato, um número inesgotável de detalhes poderia ser dito sobre essacena. Porém, a exi-
gência de dizer o que conhecemos revela que de Eito apenastemos consciência de uma
seleção desseacervo inesgotável, porque, ao captar coisas sob algumas descrições, exclu-
ímos (naquele momento) a possibilidade de estar conscientes das que estão sob outras.
Olhando para os objetos em meu escritório sob suasdescriçõescomuns como objetos
de uso (máquina de escrever,escrivaninha, cadeiras, etc.), não sou capazde vê-los como
puras formas; ou olhando para eles como puras formas, não sou capaz de vê-los como a
Justaposiçãode diferentes materiais, e assim por diante.
Em outras palavras, asexigênciasda consciência são que toquemos em certasdimen-
sõesdos objetos diante de nós e façamos prevalecer certos modos de vê-los. A consciên-
cia que está cânscia é seletiva. Não há como isso não chorar tão logo sejamos solicitados
a dizer o que conhecemos.
Por conseguinte, diz Hegel, a certeza sensível, longe de ser a forma mais rica da cons-
ciência, seria de Fato a mais pobre, porque a sua própria Efta de seletividade a condena à
vacuidade.Ir além da seleçãonuma tentativa de "apreendertudo" só pode significar in-
correr novamentena inconsciência,num olhar fixo semelhanteao transe.(As referências
ao "puro Ser" evocam argumentos paralelos na Z,OKfca.)Por conseguinte, a tentativa de
realizar o conhecimento efetivo da certeza sensível colide com suas condições básicas. Se
houver tal estado de consciência imediata e não seletiva, então temos de pular fora dela
para chegar ao conhecimento. Consequentemente, a certeza sensívelcomo concepção
ou "parâmetro" do conhecimento é presa de contradição. Tão logo tentarmos realiza-la,
seremosforçados a ver que ela colide com certas propriedades que servemde critério
para o conhecimento. Ela é, em princípio, irrealizável.
A DIALÉTICA DA CONSCIÊNCIA r71

A certezasensívelnão só acabasendo irrealizável em sua afirmação do conhecimento


não seletivo, mastambém em sua afirmação do contado imediato com os particulares
sensíveis, sem a mediação de Lermos gerais. Se estar cônscio de algo é ser capaz de dizer
algo sobre ele, então isso implica captar os objetos diante de nós atravésde aspectos
que eles têm em comum ou poderiam ter em comum com outras coisas,mais do que
capta-losem suaprópria particularidade. Mais do que à necessidadede seleção,é a essa
impossibilidade do conhecimento bruto do particular que Hegel dedica a maior parte
da atenção nesse primeiro capítulo.
O argumento de Hegel para a necessáriamediação do conhecimento por um conceito
ou universal consiste basicamentede dois estágios: no primeiro, ele imagina o protago-
nista da certeza sensívelrespondendo à solicitação de dizer, valendo-se de puros termos
demonstrativos ("isto" ou "aqui" ou "agora"). Hege] poderia argumentar nesseponto que
essestermos necessariamentesão expressõesinadequadas daquilo de que estou cônscio,
que um termo como "isto" ou "agora", que pode ser aplicado indiferentemente a muitos
conteúdos diferentes, fiinciona, e]e próprio, como um universal e, consequentemente,
mostra que não pode haver conhecimento imediato do conhecimento do particular, isto
é, não mediada por termos gerais.Na verdade, no uso particular que Hegel Eazdo ter-
mo, essasemelhançacom a fiinção é suficiente para classificaros demonstrativoscomo
universais (que é como ele classificara também o "eu"). "Nós denominamos um z/m/z,fr-
ia/ um ta] simples que é por meio da negação;nem isto nem aquilo um /záo-if/a',
e indiferente também a ser isto ou aquilo" (.FE,p. 87; PÉG, p. 82).
Esseestágiocontinua com uma consideraçãoda possível réplica em nome da cer-
teza sensível:que podemos identificar o tempo e o lugar particulares a que se referem
;aqui" e "agora", acrescentandoque eles são o aqui e o agora que ezl estou contem-
plando. Porém,como aponta Hegel, nessecontexto, o "eu" é um "universal" tanto
quanto "isto". O eu obviamente se rí=É?re
a uma pessoaparticular, mas sou tão pouco
bem-sucedido em precisar qual a pessoaparticular ao dizer "eu", quanto em precisar
qual a coisa particular ao dizer "isto'
Porém, obviamente, isso não satisEmáo protagonista da certeza sensível. E a recém-
-discutida equiparação Editapor Hegel do "eu" aos termos demonstrativos leva o mal-
-estar ao seu auge. Não posso dizer a quem se refere "eu" ou "isto" ou "agora" de modo
acessívela qualquer pessoaindependentemente do contexto; e, pela mesma razão, sen-
tenças contendo tais palavras náo podem ser simplesmente transplantadas do seu con-
texto e reter o mesmo valor de verdade. Porém, quando digo "eu" ou "isto", sei a que me
refiro e posso moi/z#-Z04 z,acé,bastando que você se situe no mesmo contexto.
Nesse ponto, chegamos à ideia real subjacente à noção de certeza sensível. Por ser
puro contado com o particular, ela obviamente só estádisponível em seu contexto e,
por ser um conhecimento não mediado por conceitos, ela obviamente só pode ser
mostrada. Nesse segundo estágio do seu argumento, Hegel concentra-se na questão
propriamente dita:
i7z PARTE ll l FENOMENOLOGIA

Temos de fmer com que nos i/zZlgz/e [o objeto], pois a verdade dessa re]ação
imediata é a verdade 2rsif Eu, que serestringe a um agnxnou a um ag /. A verdade
desseEu não teria a mínima signiâcaçãose a captássemos pofieriarme fe ou se
ficássemos22fía z?sdela; pois Ihe teríamos retirado a imediatidadeque Ihe é
essencial.(/U, p. 90; PÉG, p. 85.)

Cruzamos aqui, em outra forma, com o tema familiar da definição ostensiva.Essaé


a essênciado argumento.
A respostade Hegel não é dissimilar à de Wittgenstein nas /nz,esfÜafóes
e seguea
linha esboçada acima. Nem sequer posso saber a que me refiro nessecontexto se tudo o
que posso dizer é "isto" ou "aqui". Com efeito, o que essestermos abarcam?Tomemos
o termo "agora": ele se refere ao instante pontual, esta hora, este dia, esta década, esta
época?Ele pode se referir a todos eles e outros mais, em diferentescontextos. Porém,
para que ele signifique algo para mim e não seja apenasuma palavravazia, deve haver
algo mais que eu possadizer para conferir uma forma, um escopo,a esse"agora", seja
um termo para um período de tempo, como "dia" ou "hora", seja alguma descrição do
evento ou processo ou ação que está chamando minha atenção e, em consequência disso,
definindo as dimensõesdo meu presente.
Sendo assim, Hegel conclui que não há conhecimento não mediado do particular. A
certeza sensívelacaba dizendo o oposto do que ela quer dizer(/;E, p. 94; P»G, p. 88), e estaé
a prova de sua natureza contraditória. Qualquer tentativa de atingir a consciência e6etivado
particular só pode serbem-sucedidasefizer uso de termos descritivos,isto é, gerais.O pura-
mente particular é "inatingível". O que restapara além da descrição como o "indizível, não é
outro que o não verdadeiro, não racional, puramente 'visado'(zZn Unzuaóx?- Uaz,emzZ/?/2i@,
óhn Grmeinzr)"(.ltE,p. 94; P%G,p 88). E, da mesmamaneira,o particular é o sujeitoda
descrição potencialmente infinda; porque qualquer que seja o ponto, m descrições em termos
geraisnão terão captado a suaparticularidade e, não obstante, não há nada que possaser deito
para expressaressaparticularidade, além de mais descrição em termos gerais.
A tese como 6oi apresentada aqui não parecerá estranha ou mesmo errada para mui-
tos filósofos contemporâneos. Porém, o argumento e sua conclusão são apresentados por
Hegel de um modo que reíletecertos temas principais particulares da sua filosofia. Por
conseguinte, a inacessibilidade ao puro particular não é meramente uma verdade episte-
mológica; ela reflete a verdade ontológica de que o particular está fadado a desaparecer
por sua própria natureza, de que ele é, em princípio, mortal. Permanente é o conceito.
Assim, a indizibilidade do particular é simplesmentea expressãodo seuizafzziontológi-
co, como aquele que não pode permanecer, que deve passar. E, reciprocamente, a exis-
tência particular exterior é impcrmanente, porque não pode ser expressaem conceitos.
E por isso que causaadmiração, diz Hegel, haver filósofos que continuam a sustentar
que a realidadesensíveldo particular é a baseúltima do conhecimento. Até mesmoos
animais são mais sábios:
A DIALÉTICA DA CONSCIÊNCIA i73

[...] pois não ficam diante das coisassensíveiscomo se existissem/zmfira, mas


desesperando dessa realidade e na plena certeza de seu nada, as agarram sem mais
e as consomem. (.IU, p. 93; P»G, p. 87.)

Porém, na oncologia de Hegel, se é verdadeiro que o particular é mortal, também é


verdadeiro que ele existepor necessidade,que o conceito, a Ideia, não pode existir cora
de sua corporificação nos (ou numa série de) particulares. O conceito revela-seno cor-
tejo dos particulares, que vêm a ser e perecem. O particular só pode ser entendido como
um veículo transitório do conceito.
Essepano de fiando teórico Emcom que Hegel apresenteo argumento em favor da
indizibilidade do particular de um modo bem peculiar dele. O argumento reflete não ape-
nas a impossibilidade do puro conhecimento não medrado do particular, mas também o
movimento subjacenteà própria experiência.Como seresparticulares sensíveis,deparamo-
-nos com coisasparticulares, cruzamos com elas, digamos, com os nossossentidos. Porém,
assim que tentamos apreendê-las, elas desaparecem, por assim dizer; podemos segura-las
unicamente subsumindo-u sob um conceito. Na linguagem hegeliana,nossatentativa
de apreender ascoisascom o conhecimento, em primeiro lugar, nega-ascomo particula-
res; em seguida, negando essanegação, nós as recuperamos, apreendendo-as mediante a
consciência conceptual mediada. O imediato é negado, mas é retido numa forma mediada.
O termo, em conexão com o qual Hegel apresenta esseargumento, é "agora"; e, em-
bora haja alguns aspectospara os quais esseexemplo particular não é representativo, o
ponto claramente visa ser geral. O "agora" da certeza sensível poderia ser entendido em
seusentido mais imediato como sedesignasseo presentepontual. Porém, assimque esteé
designado, ele já é passado, logo, passou, é "negado"; mas quando recorremos a uma des-
crição que fornece o escopo do nosso presente, digamos "hoje" ou "esta hora", o presente
fiigidio é recuperado e reintegrado no "agora" mais amplo; a primeira negação é negada.
Esseexemplo é menos esclarecedordo que deveria ser, porque não é Hcil encontrar
um equivalente para o caráter particularmente fiigidio do tempo, cujos instantespontuais
desaparecemno passado, na discussão do "aqui" ou "isto". Porém, o ponto geral parece ser
este:na experiência,encontramos particulares; só podemos apreender essascoisasparticu-
lares "indicando-as" em algum sentido, seja literalmente, seja focando numa coisa de um
modo que só podemos comunicar mediante o uso de alguma palavra demonstrativa ou
afim. Porém,a própria experiênciade indicar(Hzt&eegrn)é tal que, ao tenta apreendera
coisa, revelamos a natureza fugidia, inapreensível, do particular, e só podemos recupera-la
e segura-]a diante de nosso o]har, digamos, subsumindo-a sob um universal.
Em outraspalavras,"o indicar é o experimentarque o agoraé um z/zz/urrla/"
(zóK
'4zeAezlge#
/ff zZzsEl:#aóre/z,.Zailezzf.Ailgemeines /sr)(/;E, p. 9 1; PÉG, p 86). E com esse
;/f/" [é] final Hegel quer comunicar o seguinte ponto: que essa experiência nos ]eva à
verdade ontológica da matéria, que o particular só existe como veículo do conceito. Po-
rém, o que é pertinente do nossoponto de vista aqui é que Hegel não só argumentou a
i74 PARTE ll l FENOMENOLOGIA

impossibilidade do conhecimento não mediada de particulares e o papel necessáriodos


conceitos, mas também quis apresentar a ideia de que o argumento, como a descrição de
uma tentativa EHhade apreender o particular, reflete nossaprópria experiência, uma vez
que encontramos e buscamos os particulares e descobrimos que só podemos realmente
segura-los através dos instrumentos mediadores dos conceitos universais.
Neste primeiro capítulo, tentei expor o argumento de Hegel com algum detalhe
porque ele se encaixa muito bem na sua própria descrição de uma diabética ascendente
e parcialmente porque os pontos abordados aqui -- a necessidade de seleção, a natureza
fiigidia do particular -- são temas hegelianos básicos. Infelizmente, não há espaço para
entrar nos detalhesdo argumento nos outros dois capítulos que perEmemessaparte da
FE intitulada "consciência".Apenasindicarei o rumo geral do argumento.s
A nova forma que Hegel vislumbra aflorando da diabéticada certezasensívelconsiste
numa visão do objeto enquanto coisa que possui propriedades. Essaconcepção do ob-
jeto do conhecimento, que Hegel denomina "percepção",combina nossoentendimento
dele enquanto um particular com a noção que acabamosde obter, a saber,que ele só
pode ser apreendido por meio de descriçõesgerais.
Esseé o ponto de partida para uma nova dialética em que Hegel tenta mostrar que a
experiência definida nos termos desseobjeto se revela uma vez mais como contraditória,
porque o próprio objeto padecede uma contradição interna. Visando obter uma visão
coerentedo objeto da experiência, temos de avançarpara uma concepçãodinâmica, uma
que vê o objeto como o hcz/í da corça causal.
Hegel então começao terceiro capítulo com essanova concepçãodo objeto como o
Zofz/ida corça. O capítulo considera uma quantidade de modos de entender um objeto
dessaespécie.Com a introdução da noção de Garça,temos uma concepção do objeto em
dois planos, um deles no qual suaspropriedades externas, manifestas, podem ser vistas
como produtos de uma força interna ou de corçasinternas. Hegel percorre uma quanti-
dade de modos de conceber essarelação "interno-externo": poi: exemplo, caracterizando
a fonte interna dos 6enâmenoscomo o "suprassensível"ou entendendo essaconte em
termos de lei. Ele alega ter mostrado que todos eles colapsam e nos levam inescapavel-
mente a uma noção do objeto corno a manifestação exterior de uma necessidadeinterior
que tem de manifestar a si própria. Suas diferentes características ou propriedades, que
são conectadas por leis naturais apenas de modo contingente, revelam-se como diferen-
ciações de uma identidade interna que necessariamente diferencia a si própria.
Chegamos, por conseguinte, à noção hegeliana do Conceito, a Ideia da necessida-
de que necessariamente
póe sua própria manifestaçãoexterior. E, visto que essecon-
ceito revela ter a estrutura da subjetividade, fizemos a transição da consciência para a

3 Uma discussão da argumentação do segundo capítulo e da relação dessaseção da /E com certas argumen
taçóes contemporâneas pode ser conferida em meu ensaio "The Opening Aigumencs ofthe P%enomfn / '
In: AlasdairMaclntyre(ed.),.f;lixe/.NovaYork, 1972, p. 151-87.
A DIALÉTICA DA CONSCIÊNCIA i75

consciência de si. Ao Édar do idêntico que divide a si próprio ou da ideia que necessaria-
mente é corporificada, estamosusando fórmulas que são próprias do sujeito.
O que descobrimosem função disso foi que a estrutura do objeto conhecido e a
do sujeito sãouma só e a mesma. Nossaconsciêncianão é, por conseguinte,a de uma
realidade 6orânea, mas, antes, "a consciência de um Outro, de um objeto em geral, é
necessariamente
co iczénr/ade s/, ser refletido em si, consciênciade si mesmaem seu
ser-outro"(FE, p. 132).'
Por conseguinte,levantadaa cortina que ocultava o trans6enomênico,descobrimos
que o que havia atrás dela é idêntico ao que havia diante dela (da consciência). "Fica
patente que, por trás da assim chamada cortina, que deve cobrir o interior, nada há para
ver; a não serque /zófentremos lá dentro tanto para ver como para que haja algo ali
l
atrásque possaservisto" (.IU, p. 132).s
Esta, obviamente, é uma importante transição para Hegel. Porém, não proponho
abordar a fundo a argumentaçãoaqui por duas razões.Em primeiro lugar, porque essa
l
transição é mais bem e mais plenamente elaborada na Z(kfca, que transita dos conceitos
em dois planos da Essênciapara o Conceito. E, em segundo lugar, porque a argumen-
tação,qualquer que sejasua validade última na obra de Hegel como um todo, é apre-
sentadanesteponto de modo menosconvincente. Por conseguinte,nossavisão comum
l (influenciada por Hume) das leis naturais como correlaçõescontingentes é tida como
insatisfatória, e issodesempenha um papel importante na argumentação. Isso contradiz
o "conceito de lei" que exige uma conexão interior entre os termos conectados. As razões
de Hegel para essavisão são de que a lei, expressanum relacionamento entre diferentes
termos, deve também ser vista como a emanação de uma corça ou necessidadesingular
que está na sua base.Porém, isso de modo algum Êoi demonstrado de modo convin-
cente, e o leitor tem a sensaçãode que, nesseponto, o argumento é circular, de que a
necessidadeinterior aparecenas conclusões de Hegel a respeito da natureza do objeto
apenas porque eoi assumida como um requisito.
l Nesseponto, Hegel pareceter sido presade um dos perigos que espreitamos argu-
mentos dialéticos, o de imputar ao objeto em estudo um parâmetro ou padrão que de
Eito está aberto ao questionamento, o que nos leva inEdivelmente à nossa conclusão à
custa de prejudicar a credibilidade do ponto de partida. Nessecaso, a exigência de que
nossaconcepçãoda lei natural encontre um lugar para a noção da necessidadeinterior
parece constituir uma imputação desse tipo.
Passemos, agora, à segunda seção da FE.

\ " chs Bewu$tsein eines Anckm, eines Gegemtandes {lberhaupt, ist amar seLbstnotwendig Seibsthewuç\\se\n,
Reliektiensein in sicb, BewusJitsein seiner seLbstin seinem Anciassein' ÇPbG, p. 'tZ8h.
" Es zeigt sicb, daÍlhinter üm sogenannten Vorbange,wehber desInfere uer&cken sola,nicbts zu sebesist, menu
wü nicbt selbstdahintergellen,ebensosebr
ddmit gesebenwerü. als da$enoas dahinter sei, (hs gesehenwerün
êann" (PÓG,p. 129)
CAPÍTULO V

A consciênciade si

Na diabéticada consciência, a tensão situa-se entre certa norma do conhecimento e


aquilo que de fato somos capazesde conhecer ao tentar cumpri-la. Na consciência de si,
a dialética se daráentre nossaideia de nós mesmos, aquilo que alegamosser,e o que de
fato somos. Essessão os dois momentos que Hegel chama de certeza de si e verdade. Na
primeira dialética, a noção-chavefoi conhecimento; aqui, o centro de interessedesloca-
-se para o desejoe sua concretização. Em nossanoção de nós mesmos, o objeto da nossa
certezade si náo é algo em relaçãoao qual possamosâcar neutros; pelo contrário, esta-
mos apaixonadamente apegados a ela. Quando a nossa verdade desmente isso e nos força
a assumir outro modelo de certeza de si, a transição não acontece sem dor.
E essatransição mesma é de um tipo diferente. O fato de certa noção do si-mesmo
tornar-se insustentável e ter de ser abandonada não pode ser visto em termos intelec-
tuais. Trata-se, antes, de que uma tentativa de agir a partir de certa ideia de nós mesmos
traz consequências,nasquais a ideia original de fato é solapadaporque o objetivo não é
alcançado, mas que dá origem ao próximo estágio não tanto por rechaçar a certeza de si
prévia, e sim por criar uma nova situaçãopara o ser humano.
A dialética da consciência de si, por conseguinte, é uma dialética do anseio humano e
da aspiração humana e suas vicissitudes. (dual é a base dela? Qual é a forma da aspiração,
da certeza de si, que pode, no final das contas, ser cumprida e que levará a dialética a
uma conclusão?
O que se almeja é expressãointegral, uma consumação em que a realidade exte-
rior que nos corporifica e da qual dependemos constitui expressãoplena de nós e nada
contém de alheio. Esseobjetivo, que podemos chamar de estado de integridade total,
é identificado por Hegel com a sua concepçãode infinitude, uma condição em que o
sujeito não é limitado por coisanenhuma que estejafora dele. E esseanseiopor integri-
dade total que, para Hegel, está na base da aspiração da consciência de si, num primeiro
momento, após versõesbrutas e irrealizáveisdo objetivo, e em seguida,quando o ser
humano tiver sido educado e elevado pelo conflito e pela contradição, após a coisa real.
A coisa real só pode seratingida quando os sereshumanos chegarema ver a si pró-
prios como emanaçãodo Ge/sfuniversal. Porque só nessecasoeles não verão o universo
circundante como um limite, um outro. E visto que o serhumano dependedesseuni-
verso circundante, ele jamais poderá sentir a integridade enquanto estefor visto como
A CONSCIÊNCIADESI i77

um outro. Pelo fato de o serhumano iniciar com uma noção de si mesmoenquanto ser
finito e com uma forma de vida rudimentar e pouco desenvolvidaque remeteisso, seu
anseio por integridade está fadado à frustração até que ele possa passarpelas trans6orma-
çóesque o alçarão a uma apreensãodo universal.
A noção hegeliana do fieis/, por conseguinte, é essencial nesseponto O espírito é
necessariamente corporificado. A integridade, por conseguinte, não pode ser alcançada
medianteum recolhimentointerior, no qual a consciênciade si se desconectariado
corporal. Porém, uma vez admitindo que não sou nada à parte do meu corpo, tenho
de contar também com o Eito de que meu corpo é dependentedo mundo circundante,
que a minha vida dependede uma sériede intercâmbios com esseambiente. Ora, a in-
tegridade que Hegel póe como objetivo é a negação da dependência de algum outro, é
o reconhecimento do si-mesmo em tudo o que é essencialpara mim. Disso decorre que
não há estratégiade recolhimento que possanos proporcionar integridade; não há defi-
nição circunscrita de nós mesmos, nem apenascomo a raça humana, nem apenascomo
sereshumanos individuais, e sobretudo não como mentes puramente espirituais, dentro
da qual podemos nos sentir em plena possede nós mesmos. Ou melhor, sefizermos isso,
a sensação necessariamente será ilusória. Com efeito, como fato real, nós, definidos nes-
sestermos, somos ontológica ou factualmente dependentes de algum outro; estamosà
mercê da realidade 6orânea.Todas as soluções históricas que implicam um recolhimento
dessetipo são estigmatizadaspor Hegel como ilusões; isso seráconsiderado mais adiante
em relação ao estoicismo, por exemplo.
O que sublinha essanoção de alcance extremamente amplo de integridade é a preo-
cupação hegeliana com o destino. A oposição aparentemente mais intransponível de
todas é a que existe entre ação e destino, entre aquilo que os sereshumanos fazem deles
mesmose que tem um certo significado para eles, de um lado, e, de outro, as coisas
aparentemente sem sentido que acontecem com eles, dentre as quais a morte é a culmi-
nância última. Hegel não sedará por satisfeito enquanto essedualismo não for superado,
c é essaaspiração que o empenho pela integridade reflete.
Tendo em mente esseobjetivo e a noção hegeliana do Geüf, já podemos vislumbrar
o tipo de inadequaçõesde que podem padecer os estágios iniciais da certeza de si. Há,
em primeiro lugar, a situação complicada em que dependemos de uma realidade exterior
que não reflete o Gefff. Em segundolugar, há a situação em que estamostemporaria-
mente felizes nessaoutra dependência por não estarmos cônscios dela; temos uma visão
muito rudimentar e pouco desenvolvidade nós mesmosque não nos permite ver a
disparidade. Essaé a situação complicada do senhor na relação "senhor-escravo", o qual
refez o seu mundo para refletir a si próprio por meio do trabalho do escravo, mas que
permanece limitado em sua certezade si. Numa outra maneira, aspessoasse sentem em
casano estágio feliz da cidade-Estado grega porque ainda não viram a si mesmascomo
universais. Cedo ou tarde, essesestágiostendem a esfacelar-sedevido à contradição in-
terna de que o serhumano se senteem casacomo um ser que ele não é.
i78 PARTEll l FENOMENOLOGIA

A terceira situaçãocomplicada pode surgir em respostaa qualquer uma das duas


primeiras; trata-sedaquela baseadano recolhimento. O ser humano obtém a ilusão da
identidade consigo mesmo definindo a si próprio com um ser espiritual interior, en-
ganando a si próprio ao pensar que coincide consigo mesmo como mente ou espírito
Hegel se referea isso com frequência utilizando a fórmula fichtiana eu = eu, sendo o
erro expressoaqui precisamentea crençana simples coincidência consigo mesmo. Com
efeito, já vimos que um sujeito é necessariamenteum ser que incorpora seuoutro (sua
corporificação) e "retorna a si mesmo" através desse outro, isto é, chega à consciência de
si no seu outro. Chegar à coincidência consigo mesmo enquanto seresespirituais é, por
conseguinte, ontologicamente impossível; ou, formulado de outro modo, sua realização
só poderia ocorrer pela abolição do sujeito. Ou, ainda em outros termos, o sujeito não
é só "consciênciade si"; ele necessariamentetem também a estrutura da "consciência'
com sua inescapávelbipolaridade entre sujeito e objeto independente.
Porém, ainda assim,os sereshumanos com frequência ficaram tentados a recorrer,
no curso do seulongo desenvolvimentohistórico, a essailusão, com frequênciadevi-
do à dor provocada pela primeira situação complicada, isto é, a dependência de uma
realidade estranha. Porém, podemos também chegar a isso a partir da segunda situação
complicada, a complacência com uma expressão exterior que é inadequada a nós como
sujeitos. A primeira concretização inadequada a nós de uma certa forma de vida em que
nos sentimos em casaassume a forma de alienação de certas pessoasem relação a essa
forma; mas visto que suasvidas exteriores ainda estão amarradas a essaforma social, é
bem compreensível que elas definam sua natureza universal recém-descobertade modo
puramente espiritual, interior. Aparentemente, essesdois desenvolvimentosestão na
base do estoicismo, por exemplo.
Hegel introduz a dialética da consciênciade si com uma discussãode sua relação
com a vida. Vimos, na primeira parte, por que a consciênciade si só surgenum servivo.
Hegel pareceapresentaresseargumento, masde modo arrevesado.Ele diz que o "obJeto'
(G«?msíam.Z) da consciência de si é a coisa viva.
Essa noção de "objeto", no entanto, pode ser interpretada de duas maneiras. Na
primeira seçãoda /;E, a consciência de si surgiu de uma realidade interior que "rep'liu o
si-mesmo de si-mesmo"; e o resultado Eoiuma manifestação exterior ou um objeto exte-
rior que, por suavez, tem de ser vista/o como idêntica/o à ideia interior. Seguindoesse
raciocínio, conceberíamoso objeto exterior que a consciência de si deve superar como a
sua própria corporificação. É em conexão com uma referência que remonta a essanoção
inicial da autorrepulsão("o repelir-sede si mesmo": /U, p. 131, 137; PÉG, P. 125, 135)
que Hegel fda do conceito que "se#ncionú na oposição entre a consciência de si e a vida'
(.FU,P. 137; PÉG, P. 135).
Porém, essanoção de um objeto que tem de ser superado pela consciência de si pode
também ser aplicada a outra coisa, a saber, ao objeto do peido. E é desse ponto que parte
a famosa análise hegeliana do desejo (B(@ezzZr).
Para Hegel, a busca pela integridade é
A CONSCIÊNCIADESI i79

evidente até mesmo em formas inferiores de vida, pelo Eito de escolherem o que preci-
sam do mundo externo e devora-lo, isto é, incorpora-lo em si mesmos. Fazendo isso, eles
;anu]am scu ser-outro". Esseprocesso é essencial (em termos causais) para a continuação
de sua existência. Porém, Hegel equipara essanecessidade causal à situação complicada
ontológica de todos os sujeitos que, para existirem, têm de cancelar o ser-outro de uma
corporificaçáo exterior. E, uma vez que tenhamos assumido a integridade total como
objetivo, essaequiparação estácarreta porque não se pode dizer que estou realmente em
casa em minha existência corporal, se esta, por sua vez, 6or dependente de uma realidade
6orânea. Por conseguinte, o desejo não reflete só a necessidade Factual de um objeto, mas
também a busca fundamental pela integridade.
A consciência de si tem, por conseguinte, dois objetos: sua corporificação e o objeto
do desejo.A continuaçãode suaexistênciaimplica a suasuperaçãoou o "retorno a si
mesma a partir de" ambos. Porém, essasduas formas do retorno estão relacionadas pelo
Eito de o retorno a partir da primeira implicar a superaçãodo segundo.Ê issoque Hegel
pareceestar dizendo na seguinte passagem:

A consciência[em de agoraem diante, como consciênciade si, um duplo objeto:


um, o imediato,o objeto da certezasensívele da percepção,o qual, porém,é
marcadofamaeózcom o i/nú/ do nega/iz'o; o segundoobjeto é justamenteeü
meiga, que é a eiié/zf/úverdadeira e que, de início, só estápresente na oposição ao
primeiro objeto. A consciência de si seapresenta aqui como o movimento no qual
essaoposição é suprassumida e onde a igualdade consigo mesma vem a ser para
ela. (FE, p. 136 ss;PÓG, p. 135)

C) fato de a consciência de si existir somente nos seresvivos refiete o fato de que a


própria vida é um estágio na rota rumo ao tipo de unidade que se revela em sua for-
ma mais perfeita no sujeito. A passagemseguinte sobre a vida repercute a visão mais
antiga de Hegel, do período de Frankfurt, de acordo com a qual 6oi a vida mais do
que o sujeito que forneceu o paradigma da identidade do diferente. A vida só existe
na articulação (G/leZerwng) de formas individuais existentes (ceifa e/zZe Gei/abre/z).
Elas parecem ser independentes e, não obstante, só existem no processo da vida mes-
ma. Consequentemente,elas pereceme, em decorrência disso, perdem sua existência
independente, mas esseperecimento está vinculado à criação de novos indivíduos.
(Essapassagem se apoia na ideia hegelianade que morte e reproduçãoestãointima-
mente interligadas.)
Vida, por conseguinte, é um processoque só pode se manter pela geraçãode seresvi-
vos individuais e que, não obstante, sempre é mais que essaexistência exterior; ele nunca
é realmente coincidente com essesserese, em consequência disso, eles necessariamente
têm de perecer.Porém,visto que a vida, ainda assim,só pode existir em coisasvivas, elas
têm de ser ao mesmo tempo substituídas. Assim sendo, a manifestação mais plena da
vida ocorre no ciclo contínuo da morte e da reprodução. Como realidade interior que só
i8o PARTE ll l FENOMENOLOGIA

pode existir corporificada e, não obstante, também tem de cancelar essacorporificação


para existir, a vida é uma prefiguração do espírito.
Porém, somente uma prefiguraçáo; a vida passapor esseprocessoirreHetidamente, a
negaçãoda corporificação exterior é sofrida silenciosamente pelas criaturas vivas na sua
morte. A consciência humana, em contrapartida, pode ir além da vida do indivíduo e ex-
pressarnuma forma consciente de vida seu vínculo com o universal. Em outras palavras,
a negaçãoda corporificação exterior, o retorno ao universal a partir do particular, é e6e-
tivada de uma maneira nova pelos sereshumanos. Náo apenas no morrer, mas também
em viver conscientemente no universal. E isso engendra um tipo de constante negação,
um tipo que não abole o que é negado, como Eaza morte. Pode-sedizer que, ao viverem
no universal, os sereshumanos vivem para além da morte (este é o significado que Hegel
confere à imortalidade, que ele não aceita no sentido comum, como vimos na Parte l).
A consciência de si, cuja dialética passaremosa examinar agora, é um sujeito destinado
para essavida conscienteno universal e é também uma coisa viva. Essanaturezadual é
essencialpara a diabética.O ponto já mencionado que Hegel aparentemente não deixou
claro, ou seja, que o "objeto" da consciência de si é a coisa viva, tem de ser interpretado
com referênciaaos dois objecos.Com efeito, a consciência de si é corporificada na vida;
e, sendo um organismo vivo, seu objeto de desejo é um ser vivo; ela se alimenta da vida.
O ser humano não pode permanecer um simples "eu", simplesmente idêntico con-
sigo mesmo, porque necessitade coisasexteriores, vida exterior, para viver. Ele é um ser
de desejo. Porém, ao consumir o que deseja, ele parece superar essarealidade Gorâneae
recuperara integridade. Exceto pelo fato de essaintegridade não ser adequadaao que
ele é (conforme o padrão exposto acima referente à segunda situação complicada). Com
efeito, a negaçãodo ser-outro implicada aqui é a simples negaçãoque abole; mesmo
que fosse completa, ela simplesmente faria o ser humano retornar à identidade consigo
mesmo que é a morte da subjetividade; o fim do desejo seria o fim do ser humano. Mas
ela de fato nunca é completa, novos desejosemergem interminavelmente; assim, a vida
humana nessenível é uma alternância entre existir diante de outro que Ihe é totalmente
forâneo e, tendo incorporado este, existir diante de absolutamente nada.
O ser humano, como um ser que depende da realidade exterior, só pode alcançar a
integridade se descobrir uma realidade que possaresistir à constante negação,cujo ser-
-outro possa ser negado sem ser abolido. Porém, a negação do ser-outro sem abolição
de si mesmo é uma prerrogativa da consciência humana, não da consciência animal. De
modo que o desejo básico da consciência de si só pode ser satisfeito por outra consciên-
cia de si. "A consciência de si só alcança sua satisfação em uma outra consciência de si:
(/W, P. 141; PÉG,P. 139).
l Chegamos agora à ideia básica,que será explorada na seçãoseguinte, na dialética do
senhor e do escravo, a saber, de que os sereshumanos buscam e necessitam do reconheci-
mento dos seussemelhantes.O sujeito depende da realidade exterior. Paraque ele esteja
plenamente em casa, essarealidade exterior deve refietir para ele o que ele é. Na dialética
A CONSCIÊNCIA DESI i81

do desejo, deparamo-nos com objetos 6orâneosque então destruímos e incorporamos; o


que se precisa é de uma realidade que permanecerá e, não obstante, que terá anulado o
caráter forâneo que Ihe é próprio, uma realidade na qual o sujeito pode, apesarde tudo,
encontrar a si mesmo. E issoele encontra em outros sereshumanos, à medida que estes
o reconhecem (,4/zrréfm/zrm)como um ser humano.
Essaé a real concretização
da consciênciade si, porque elaé a real "unidadede
si-mesmaem seuser-outro" (.É7nóeir ie/ er íeZ&sf//z ie/ em.4m2erxfr/n)(/{E, p. 142; PÉG,
p- 140). E por issoque a rota rumo ao reconhecimento pelo ser humano de que o uni-
versonão é outro passapelo drama do reconhecimento mútuo, o primeiro e básicomo-
delo do reconhecimento de si-mesmo nos outros. E a rota para o reconhecimento mútuo
também passapelo reconhecimento do universal, como ainda veremos na subsequente
análise do senhor e do escravo. E é por isso que é essereconhecimento mútuo que nos
conduz à realidade do Grifo. Com efeito, o Ge/if é essa

substância absoluta que, na perfeita liberdade e independência de sua oposição, a


saber, das diversas consciências de si existentes./ãr sicó, é a unidade das mesmas:
Éb, que é N3r; ]MZf,que é Éb. A consciência tem primeiro na consciênciade si,
como no conceito do Grisr, o seu ponto de inflexão, a partir do qual se afastada
aparência colorida do aquém sensívele da noite vazia do além suprassensível,para
entrar no dia espiritual da presença.(.IU, p. 142; PÉG, p. 140)

Hegel começa a dialética da consciência de si com a famosa diabética do senhor e do


escravo. A contradição que está em sua base é a seguinte: os sereshumanos empenham-
-sepor obter reconhecimento,pois só dessemodo podem obter a integridade. Porém,
o reconhecimento tem de ser mútuo. O ser,cujo reconhecimento devotado a mim con-
ta para mim, tem de ser do tipo que eu posso reconhecercomo humano. Por isso, a
operaçãodo reconhecimentorecíproco é do tipo que efetuamosjuntos. Hegel diz que
cadaqual efetuapara si mesmoaquilo que o outro tenta eGetuarem relaçãoa ele. Meu
interlocutor me vê como um outro, mas um outro que não é eorâneo, que é uno consigo
mesmo;masessecancelamentodo meu ser-outro é algo que eu igualmentetenho de
ajudar a eEetuar.
A contradição surge quando os sereshumanos, num estágio rudimentar e pouco
desenvolvido da história, tentam obter do outro o reconhecimento à Garçae sem reci-
procidade. Isso se dá num estágioem que os sereshumanos ainda não reconhecerama
si mesmoscomo universais,porque fazer issoé perceberque o reconhecimentovoltado
para mim pelo que sou é reconhecimentodo ser humano como tal e, por isso, algo que
em princípio deveria ser estendido a todos. Porém, aqui, temos o ser humano como um
indivíduo particular (.É7/zzeZnes)
que procura se impor, obter confirmação exterior.
Isso leva à luta armada. E Hegel diz que isso é necessariamenteassim. Não se trata
meramente de que os sereshumanos são opostos, visto que cada um deles busca reconhe-
cimento unilateral; trata-setambém de que o risco que corre a vida de cada um é parte
i8z PARTE ll \ FENOMENOLOGIA

da própria demanda por reconhecimento. Vimos anteriormente que a consciência de si


é tanto um ser vivo como algo mais; algo mais porque ele não sesubmete simplesmente
a um processovital de modo inconsciente, masjá seencontra além dele em pensamento.
Então, na tentativa de obter reconhecimento uns dos outros como consciência de si, os
sereshumanos provam que se encontram além da mera vida quando mostram que não
estãoapegadosa essacoisaviva particular que são eles próprios, que seu reconhecimento
como "ser-para-si"(Fãrs/cÁieízz)
é tão importante que arriscarãosuasvidas por ele.
Essaluta facilmente pode levar à morte de um ou de ambos os combatentes. E isso
obviamenteÊmcom que edhem em alcançaro objetivo. Mesmo que eu pe'm'neça vivo
diante do meu adversário morto, não consegui qualquer reconhecimento. Minha "ne-
gação" dele terá sido uma negação natura], como diz Hege] (FE, p. 146; PÉG, P' 145),
sendo uma negaçãosimples, como vimos anteriormente, enquanto o que se eaznecessá-
rio é uma negaçãoconstante, do tipo em que o ser-outro do meu oponente é superado,
enquanto ele ainda permaneceexistindo. O problema, por conseguinte, é que, enquanto
cada um é impelido a colocar sua vida em jogo, a mostrar que está acima do mero apego
à vida, estapermaneceessencial.O único resultado da luta que adquire a aparênciade
uma solução é aquele que leva isso em conta.
E este é o caso do resultado clássico da escravização. Antes de ocorrer a morte, um
dos lados cede, reconhece seu apego à vida e sujeita-se ao outro. O vencedor poupa a
vida do vencido, visando torna-lo escravo.Nessecaso, ambos os protagonistas preservam
a vida. masde um modo muito diferente. O vencedor marcou o seuponto. O essencial
para ele é seu Xürxicósein, seu próprio sentido de si-mesmo, e a vida é subordinada a ele.
Para o escravo, no entanto, o essencial é a vida, seu sentido de si-mesmo passou a estar
subordinado a uma existência exterior que está além do seu controle.
A plena relaçãoentre senhor e escravotem de ser entendida com a ajuda de um
terceiro termo, a realidadematerial (Z)i/zgÁeir)
. O senhor se relacionacom o escravode
modo medianopor meio dessarealidade:o senhor sujeita o escravoatravésdessedo-
mínio sobre as coisas, no caso extremo, através do uso de correntes. Porém, ao mesmo
tempo, o senhor se relaciona com a realidadematerial atravésdo escravo.A relaçãodo
senhor com o que o rodeia é a de puro consumidor; a dura tarefa de transformar as coi-
sase prepara-las para o consumo é do escravo.A experiência do senhor é a da carência
da realidade sólida([/nse/ófM zziCígÉe/f)
das coisas; o escravoé aquele que experimenta a
independência e a resistência delas à medida que as trabalha.
Porém, esseresultado,embora seja melhor do que uma luta até a morte, tampou'
co tem serventia como solução. O reconhecimento é unilateral; o escravoé forçado a
reconhecer o senhor, mas não vice-versa. Porém, por isso mesmo o desfecho não vale
nada para o senhor. Seu z,!s-2-z//s
não parece ser um outro si-mesmo real, mas um que
foi reduzido à subordinação a coisas. Por isso, o reconhecimento por ele é sem valor; o
senhor não pode realmente ver a si mesmo no outro. Ao contrário, ele é reduzido à con-
dição arriscada de estar rodeado de seresque, para ele, não podem ser autoconscientes;
A CONSCIÊNCIA DESI
l83

assim sendo, o mundo circundante, do qual ele continua a depender, não pode repetir
para ele um rosto humano. Por conseguinte, a sua integridade é radicalmente solapada
justamente quando parecia assegurada.
Porém, se para o senhor esseresultado, no final das contas, é um fracasso,para o
escravoele prepara o terreno para um êxito em última instância e, no âmbito do rela-
cionamento, lentamente tem lugar uma inversão. O escravopelo menos tem diante de
sl um ser que existepor si mesmo na figura do senhor, mesmo que essesenhor não o
reconheça.Seuentorno náo é reduzido ao sub-humano, como é o casocom o senhor.
Porém, as contesimportantes da transformação do escravosão o medo da morte e o
trabalho disciplinado. A breve passagemde três páginas (/;Z. p. 149-5 1; PÉG, P. 148-50)
em que Hegel trata disso é uma das mais importantes da .ltE, porque os temasnão só são
essenciaispara a filosofia de Hegel, mas também têm uma longa carreira no marxismo,
de forma modificada. A ideia subjacente, de que a servidão, em última análise, prepara a
liberação dos escravose, na verdade, a libertação geral, é reconhecidamente preservada no
mamismo. Porém, a noção marxista do papel do trabalho também é prenunciada aqui.
Porém, o tema hegeliano que não Eoi retomado na filosofia que Ihe sucedeu é o do
papel do medo da morte. A relação deformada entre senhor e escravoorigina-se da lura
entre os sereshumanos de horizontes limitados que estão num degrau inferior da escala
do desenvolvimento. Eles ainda não têm qualquer noção de sua ligação com o universal;
com efeito, por toda a sua disposição de arriscar a sua existência exterior para impor seu
sentido de si-mesmos, essesi-mesmo que lhes é próprio ainda é o do indivíduo particu-
lar, ou seja, um si-mesmo limitado. Porém, para que cheguem a uma solução real para
essabusca de reconhecimento, os sereshumanos têm de enxergar a si próprios como
universais, como já vimos.
Para Hegel, um favor crucial na educação dos seres humanos, na transEormaçáo que
os leva ao universal,é o medo da morte. A perspectivada morte como que os livra de
todas as particularidades de suasvidas. Hegel usa aqui a imagem de uma vida que Êoi
temperada de certa forma. A ameaçada morte, então, leva a que a consciência "se dissol-
veu interiormente; em si mesma tremeu em sua totalidade; e tudo que havia de fixo nela
vacilou" (/;E, p. 149; PÉG, P 148).
A mesma ideia volta a ocorrer numa passagemda /#Zoi(Z#ado Z)ix?/fa, na qual Hegel
Edada necessidadeda guerra de tempos em tempos para Emercom que os sereshumanos
retornem ao universal.Na vida comum, eles estão táo imersos nas suaspreocupações
particulares do dia a dia, que perdem contato com a ideia universal representadapelo
Estado. A guerra e o risco de morte livram-nos dessas preocupações menores e trazem-
nos de volta ao universal. Desnecessário dizer que a passagem em nada contribuiu para
melhorar a reputação de Hegel entre os liberais seuscontemporâneos.
Porém, o papel do medo da morte não deveria causar surpresa à luz do que vimos
da filosofia de Hegel. O retorno para o Ge/íf universal implica uma superaçãoda exis-
tência exterior particular na qual ele é corporificado. É por isso que, como já vimos,
i84 PARTE ll l FENOMENOLOGIA

a morte sobrevém necessariamente às coisas vivas. E claro que a mais elevada negação
dessaexistênciaexterior é alcançadapelo ser humano em pensamento, isto é, enquan-
to ele ainda está vivo. Porém, ele é levado a essanegação interior ao defrontar-se com
l a morte, a negaçãoexterior final, porque esta revela o verdadeiro iíafwi de toda parti-
cularidade exterior em sua vida; ela a mostra como necessariamentepassageira,coma
destinada a ser negada e, por conseguinte, convida à negação em pensamento, que é o
retorno ao universal. Não se trata apenas de que a perspectiva de ser enforcado, como
disseo Dr. Johnson, eaza mente seconcentrar maravilhosamente.Trata-setambém de
que ela a boca no universal.
Ora, o início da inversãoresideaqui. É o escravoque realmentesofreo medo da
morte, porque ele estevee ainda está à mercê de outro. Assim, é ele que é liberto do
seu sentido particular do si-mesmo, ao passoque o senhor vitorioso nada mais é que
consolidado no seu. Porém, essemedo não seria suficiente, ele teria um efeito apenas
passageiro, se o escravo não transformasse a si mesmo pelo trabalho que ele é forçado a
Emer a serviço do senhor.
E isso nos traz ao tema que mais tarde se torna uma das ideias centrais do marxismo.
Vimos anteriormente que o senhor tem a vantagem de que a sua relaçãocom as coisasé
a da simples fruição (Gemi/Ó);é o escravo que experimenta a resistência e a independên-
cia das coisas. Porém, com o tempo, as vantagens se invertem. O senhor, deparando-se
com um mundo que não Ihe oferece resistência efetiva, tende a submergir novamente no
estupor da coincidência consigo mesmo. Ele seacerca do polo de estagnaçãoem que eu
: eu. Ele é simplesmente um consumidor.
O escravo,no entanto, tem de lutar com ascoisaspara transeormá-lu e, cedo ou tarde,
ele obtém o domínio sobre elas. E, Emendo isso, ele imprime suas próprias ideias nelas.
O entorno deitopelo serhumano, por conseguinte,passaa remeti-lo,é Éditode suascriações-
Por conseguinte,o trabalho desempenhaum papel crucial na luta do ser humano
por integridade. Vimos anteriormente que o problema central é que o sujeito está sem-
pre "fora de si mesmo", ele sempre depende de um universo circundante; por isso, ele
deve chegar ao ponto de reconhecer a si mesmo nessemeio que o cerca. E por isso que
a trilha principal até a integridade passapelo reconhecimento por parte do outro; no
entorno humano, um serhumano pode reconhecer-seem outros. Porém, agoravislum-
bramos outra trilha importante; o serhumano pode chegar a ver-seno entorno natural,
reEmendo-oem conformidadecom o seu próprio projeto. Com efeito, ao fazer isso,
conseguimos outra negaçãoconstante, um reflexo de nós mesmos que dura.
Conseguir a integridade implica percorrer essasduas trilhas. Em última análise, o
mais essencial é o reconhecimento mútuo. Porém, para consegui-lo, precisamos trans-
formar a nós mesmosde indivíduos limitados em corporificaçóesautoconscientes
do
universal. E isso nos traz a uma segunda importante função do trabalho: ao transformar
coisas,mudamos a nós mesmos.Criando um reflexo constante de nós mesmoscomo
seresuniversais, tornamo-nos tais seres.
A CONSCIENCIA DESI i8S

Essaideia estáprofiindamente enraizadana totalidade da visão de Hegel e em sua


noção do sujeito, que, como vimos, é fundamental para a sua filosofia. Um sujeito é
necessariamente corporificado; daí que qualquer mudança no sujeito, como o alçar-se
da individualidade limitada para a consciência universal, tem de ser mediada por uma
mudança em sua corporificação. Ê por isso que, como já vimos, em termos históricos
reais, a expansão do pensamento humano acompanha o desenvolvimento de suas for-
mas de vida, do que chamamos de civilizações. Porém, essasformas da vida implicam
diferentesentornas feitos pela máo humana. Como Hegel vê na descriçãoda relação
senhor-escravo", cada um se relaciona com o outro através da sua relação com as coisas.
Consequentemente, cada uma das formas mais elevadas de coexistência humana, que
nos aproximam mais da integridade, estão vinculadas com um modo característicode
relacionar-secom as coisas,isto é, com uma certa forma do entorno deito pelo ser hu-
mano. Por conseguinte, ambas as trilhas são complementares e ambas estão implicadas
no crescimento de formas mais elevadas de vida que corporificam o izafz/i espiritual mais
elevado do ser humano.
Por conseguinte, a noção de Hegel aqui é que o escravo consegue uma consciência
universalatravésdo seutrabalho. Tanto o medo da morte como a disciplina do serviço
são necessários.O medo da morte sozinho o teria libertado momentaneamente do par-
ticular, mas não teria constituído uma corporificação constante da consciência universal.
O trabalho sozinho, não ciente do medo da morte, teria produzido apenasaptidões
particulares (Geiróic,ê#cóêe/í),não uma consciência universal do si-mesmo.
Com efeito, o que o escravo consegue através do seu trabalho, como ficará evidente
na próxima seção,é a apreensãode si-mesmo como livre pensamento.Ele reconhece,
no poder de transformar as coisas, o poder do pensamento, o poder de reEmeras coisas
de acordo com conceitos e, por conseguinte, modelos universais.Teria sido possível
desenvolver aptidões e habilidades particulares sem despertar essaconsciência. Porém,
o escravo,já tendo sido levado ao universal pelo medo da morte, vislumbra em sua
capacidade transformadora o poder da consciência que pensa e executa, que pode criar
modelos, arquétipos e, então, mudar ascoisaspara conformar-se a elas.Por conseguinte,
ele vê no mundo dos objetos feitos por ele o reflexo de si mesmo como universal, como
ser pensante.Essapassagemmostra o quanto a filosofia hegeliana da história antecipa o
materialismo histórico. A apreensãointelectual das coisasem conceitos (palavra etimo-
logicamente relacionada com "gzasp/#msem = captar, apreender" tanto em inglês como
em alemão) é vista aqui como originando-se da moldagem física das coisasno trabalho.
O pensar conceitual origina-se da capacidade aprendida de transformar coisas.Aprende-
mos a conhecer o mundo da rea]idade materia] e, no final das contas, asnossaspróprias
mentes, ao tentar submeter essamatéria ao nosso desígnio. O pensamento conceitual
brota desse intercâmbio.

A relação"senhor-escravo"produziu, por conseguinte,uma inversão.A prerrogati-


va do senhor de ser só um consumidor leva-o a uma coincidência estagnanteconsigo
i86 PARTEll l FENOMENOLOGIA

mesmo. Enquanto isso, o escravo, que está sujeito à existência refratária da matéria,
gradualmente vira o jogo, converte essaresistência a seu favor, fazendo dela um reflexo
constante de si mesmo como consciência universal. A inversão é tanto mais completa
porque ele deve a sua transformaçãoà sua sujeição; só sob a disciplina do serviço ele
empreenderia uma obra que o elevou acima dos seus limites originais.

A dialética do senhor e do escravo resulta num estágio mais elevado, que Hegel identifi-
ca com a filosofia do estoicismo.Através do trabalho, da disciplina e do medo da morte, os
escravoschegaram ao reconhecimento do universal, do poder do pensamento conceptual.
E issojá é ter conseguidouma certa liberdade. Porque,em primeiro lugar, o serhuma-
no como ser espiritual alcançauma maior autorrealização ao tornar-se capaz de reflexão
universal.E, em segundolugar, visto que o pensamentoé a basede tudo, o serhumano
chega mais perto de superar a natureza estranha das coisas quando pensa cm categorias
universais. O pensamento conceptual, em contraposição à representação por meio de ima-
gens (WorlirZZwz(g),
é um meio que ocupamosde bom grado porque verdadeiramenteo
dominamos ("o conceito é para mim, imediatamente, mezíconceito" [/W, p. 152; PÉG,
p. 152]). Ao mesmo tempo, ele estáverdadeiramente na raiz das coisas.Por conseguinte=
"No pensar,Eu iozl#z'rr, porque não estou em um Outro, maspura e simplesmentefico
em mim mesmo(iró&cólÁÍz óei mlr se/ói/),e o objeto, que paramim é a essência,é meu
ser-para-mim(mean/ürmicóse/n),em unidade indivisa" (/U, p. 152; PÉG,P' 152).
Porém, a liberdade estoica é radicalmente incompleta, porque ainda estamostratan-
do de uma âlosofia de escravos.Através do seu intercâmbio com a matéria, eles chega-
ram à intuição de que o pensamentoé a base de tudo. Porém, exatamentedo mesmo
modo que não são capazesde remodelar seu entorno e, particularmente, a sua sociedade
1.
visando expressaressaintuição -- porque uma estrutura política racionJ e leis racionais
só surgem num estágio posterior na história --, elesainda são incapazesde elaborar a sua
ideia visando mostrar que as determinações particulares do seu mundo são manifestação
do universal, necessidade conceptual (no sentido hegeliano) .
Essasduas incapacidades, a prática e a teórica, andam de mãos dadas na âlosofia he-
gelianada história. Os sereshumanos só conseguemver o mundo como Gelsfou como
necessidaderacional manifestada na realidade quando se tornam capazesde moldar a sua
própria realidade humana de acordo com essanecessidade,isto é, com a razão prática.
A experiênciaprática de conseguir a reflexão do eu no outro é essencialpara a noção
teórica. Uma vez mais, vemos como a tesede que o Ge/if é necessariamentecorporificado
leva a uma convergência parcial com o materialismo histórico.
Hegel, por conseguinte,identifica o estoicismo com um estágiode impotência polí-
tica que se refiete no caráter abstrato do pensamento. Sua crítica a ele é que se trata de
uma estratégia de recolhimento, para usar a expressãoque empregamos anteriormente.
A CONSCIÊNCIA DESI l87

Ele estábaseadona intuição de que a consciência é uma essênciapensante, que, porém,


ainda é incapaz de derivar desseprincípio a Forma bem determinada do mundo. Ele não
conseguediscernir a racionalidade das coisas.A sua noção de pensamento ainda é abstra-
ta; ele ainda não possui(e obviamente nem poderia possuir) a noção de que o pensamen-
to necessariamente
"transita para" sua corporificação, da qual podemos derivar (como
EmáHegel nas filosofias da natureza e do espírito) muita coisa da estrutura do mundo.
Isso nos leva a uma espécie de formalismo. O pensamento está na base da realidade,
mas não se pode dizer em detalhescomo isso se dá, e assim o conteúdo particular do
mundo é necessariamente visto como contingente, como simplesmentedado. O estoi-
cismo só pode ater-sea categoriasuniversais, como o verdadeiro e o bem, a sabedoria e a
virtude, mas não pode derivar disso um determinado conteúdo para elas.
Muito embora sejaaplicada ao estoicismo, a presenteanálise provoca reminiscências
de outros tipos de formalismo criticados por Hegel e nos traz à lembrança, em particular,
a crítica hegelianaa Kant, ao dualismo kantiano, no qual as Formasda experiênciasão
derivadas do entendimento, ao passoque a matéria é dada, e de uma Genteque perma-
nece incógnita para sempre.Hegel claramente combate também essedualismo em sua
crítica do estoicismo.

De qualquer modo, a respostado estoicismo à sua incapacidade de derivar do pensa-


mento o conteúdo da realidadeé a estratégia de recolhimento, é considerar esseconteúdo
como inessencial. O pensamento é livre, o sujeito pensante é livre. Porém, para Hegel,
liberdade significa ser si mesmo, estar "consigo mesmo" ("óe/ i/r'ç"; sentir-se em casa),
no seu outro ou no objeto. O sujeito do estoicismo não pode estar "consigo mesmo" em
relaçãoà realidade determinada do mundo, porque esta Ihe é algo forâneo, algo que não
pode ser derivado do pensamento. A estratégia é retirar-se dessarealidade e redefinir o
objeto simplesmente como objeto do pensamento.
O estóico, por conseguinte, é livre como sujeito pensante, abstraindo das circunstân-
cias externas da sua vida, "no trono como nas cadeias". "A liberdade da consciência-de-si
é //z21Órremre
quanto ao ser-aínatural" (.ltE, p. 154).
Porém, issoobviamente não funcionará. O recolhimento à identidade interior con-
sigo mesmo náo é capazde trazer liberdade para um sujeito corporificado cuja liberdade
l real deve, portanto, serexpressaexteriormenteem um modo de vida. O estoicismo,por
conseguinte, está em contradição consigo mesmo, sendo uma realizaçãoputativa da li-
berdade que de bato constitui sua negação. Enquanto tal, ele necessariamente naufragara.
A intuição central de que o pensamentoconceitual está na raiz das coisasconstitui um
ganho permanente,masa a]egaçãoda liberdade interior entra em colapso.
Ao explicar essecolapso e a derivação do novo estágio, Hege] nos conduz através de
outra filosofia histórica, o ceticismo antigo. Ele o pinta como a concretizaçãoda ideia
básica do estoicismo; enquanto este considera o conteúdo determinado das coisas como
irrelevante ou inessencial,o ceticismo passapara o ataque e o submete a questionamento.
Ele é a consequência polêmica do estoicismo.
t88 PARTE íl l FENOMENOLOGIA

Porém, isso apenasserve para tornar mais aguda a contradição subjacente. Porque,
como sujeitos corporificados, continuamos vivendo na realidade exterior. Por mais que
a decíaremos como não existente, ela retorna de modo incessante e inescapável. Assim,
o que temos de Eito é uma oscilaçãoentre um sensode nossaidentidade com nós mes-
mos e um senso igualmente agudo de nossa dependência de uma realidade exterior em
mutação e variação. Com a mesma rapidez com que questionamos essarealidade em
mutação visando experimentar a nós mesmos como imutáveis e idênticos a nós mesmos,
nossopróprio vazio interior nos corçaa aceitar que nos encontramoscorporificados no
mutável e exterior a nós mesmos.
Porém, essaoscilação ocorre numa consciência singular e, juntando essesdois mo-
mentos, derivamos uma nova fase dialética, em que o sujeito tem de aceitar o fato da
divisão interior (Enzzme/wng),
na qual o próprio eu interior estádolorosamentedividido
entre um ser ideal imutável e idêntico consigo mesmo, de um lado, e, de outro, um ser
mergulhado num mundo de confissãoe mudança.É o estágioda consciênciainfeliz, no
qual reaparecea relaçãode senhor e escravode que o estoicismo alegou ter escapado,só
que agoradentro do sujeito, na relaçãoentre essesdois lados mutuamente incompatíveis.
As páginassobrea consciênciainfeliz nos introduzem em algumasdas ideiasfunda-
mentais da filosofia hegeliana da religião. Reconhecemos os temas dos escritos de Hegel
sobre a religião da década de 1790, em particular o tema da separação, na qual o ser
humano profeta sua unidade perdida num espírito transcendente, ao qual ele sujeita a si
mesmo de modo absoluto, como ocorre na religião de Abraço.
Na FE, Hegel apresentaa consciênciainfeliz como consciênciaprofiindamente di-
vidida porque ela é tanto o sujeito imutável e idêntico consigo mesmodo pensamento
quanto o indivíduo que está sujeito ao mundo mutável. Porém, essasituação vivida
pelo sujeito é tal que ele identifica a si mesmo enquanto particular com o inessenciale
mutável. O imutável é projetado para um além. Suaunidade com ele é sentida unica-
mente em termos de perda, da sensação de que ele precisa de algum modo ir além do seu
presenteestadoe alcançara unidade com esseimutável. Porém, visto que, no presente
estágio,o particular e o imutável são definidos como incompatíveis, essatentativa está
perpetuamente fadada ao fracasso.Já que não posso parar de ser um indivíduo particu-
lar, jamais poderei alcançar a unidade com o imutável.
Sendo um relacionamento com uma realidade transcendente, à qual não posso ser
indiferente, tendo, porém, de almejar unir-me a ela, a consciência infeliz pode ser vista
como consciência religiosa.' E na base desseestudo hegeliano encontra-se a copiosidade
de suasreflexõessobre o desenvolvimento histórico do judaísmo e do cristianismo, tanto

Podemosconstatar aqui a origem da concepção feuerbachiana e marxiana da consciência religiosacomo


alienada. É claro que Feuerbach e Marx não têm a mesma noção de religião que [em Hegel. Essessucessores
'antropologizaram" o espírito de Hegel. O Gefsfde Hegel foi substituído pelo serhumano, pelo homem ge-
nérico. ParaHegel, em contrapartida, o ser humano deve chegar a ver a si próprio como veículo do espírito
A CONSCIÊNCIADESI i89

quanto sobre as relaçõesentre religião e filosofia. Vamos deter-nos em algumasdelas


quando examinarmos o capítulo Vll da .l;Z' e retomaremos a discussão dessamatéria
mais adiante, no capítulo XVIII.
Porém, na passagemem estudo aqui, o desenvolvimento diabético de Hegel re6ere-
-se unicamente (de modo implícito) a certos estágiosdo cristianismo medieval. Não
podemos entrar em detalhes aqui. Ela inclui uma interpretação das cruzadas como uma
tentativa vã de restabelecero contara com o Jesushistórico, que, enquanto particular,
deve desaparecer e recuar constantemente no tempo em relação a nós. O fracasso dessa
aventura corça os sereshumanos a encarar o destino real do cristianismo, que é tornar
real a unidade de Deus e ser humano numa comunidade (Geme/zzZe).
Hegel continua, então, com o que obviamente é uma abordagem da Igreja medieval,
embora algumasdas coisasque ele diz obviamente se apliquem a qualquer Igreja que
ainda não realizou a unidade plena de ser humano e Deus. A vida eclesial conduzida na
consciência da divisão é uma vida em que os sereshumanos ainda veem o universal fora
deles, como algo a que têm de estar sujeitos. A natureza hierárquica da Igreja medieval
reflete essesensode subordinação. Porém, exatamente como ocorreu antes com o escra-
vo, essaservidãosob uma disciplina exterior confere forma ao serhumano, renovando-o
de tal modo que ele consegue reconhecer o universal nele próprio. Repetimos aqui, de
um modo um pouco mais internalizado, a passagemda subjugaçãoexterior à identifi-
cação com a razão.

Essatransição leva-nos para além da consciência infeliz, a um estágio mais elevado,


e com essatransição chegaao término a seçãoda FE sobrea "consciênciade si". A case
superior,que Hegel pareceidentificar em parte com a Renascença,é uma casena qual
os sereshumanos reconheceram que a razão está na base de toda realidade. Em outras
palavras, eles chegaram à noção que Estava à consciência estoica o senso de que o pensa-
mento não só é uma realidade superior à das coisas exteriores, mas de que o pensamento
racional Zei?rm/ o curso das coisas. Consequentemente, eles contam que, enquanto
seresracionais,reconhecerãoa si próprios na realidade,que tudo que pensaremou fi-
zeramestaráem sintonia com a baseracional do universo. Nasceuuma nova e superior
noção de integridade, que passaráa ser elaborada dali por diante.
Chegamosao término do capítulo sobre a consciência de si. Exatamenre assim como
a primeira seção nos levou para além da oposição entre o sujeito cognoscente e seu mun-
do, assim também estaseçãotoma o sujeito da ação e do desejo que, no princípio, pare-
cia estar em oposição a um mundo do qual ele depende e mostra como esi.zoposição é
superada. Na primeira seção, isso exigiu que desenvolvêssemos e refinássemos nossa no-
ção do objeto do conhecimento, partindo da visão mais primitiva, a da certezasensível.
Nesta seção, tivemos de levar o agente do seu estágio mais primitivo enquanto indivíduo

de uma realidade mais ampla, cuja corporificação total Eoio universo. Assim sendo, até mesmo no ápice do
seudesenvolvimento, o serhumano permanecena presençade algo maior que ele próprio.
l9o PARTEll l FENOMENOLOGIA

particular oposto a outros até a realização de sua natureza universal, que é o mesmo que
o pensamento universal subjacente ao mundo. A foraneidade mútua de agente e mundo,
por conseguinte, foi superada. Porém, a exemplo da primeira, esta seção apenas estabe-
leceu o princípio da unidade. Restatraçar seu desenvolvimento, nas seçóesseguintes.

Oferecerei apenas brevíssimas indicações do desenvolvimento dessa terceira seção


sobre a razão. Seu ponto de partida, como vimos, está onde os sereshumanos chegam à
intuição de que a racionalidade, isto é, o princípio do seu próprio pensamento, determi-
na toda a realidade e, consequentemente, têm certeza de estarem "em casa" no mundo.
Ou, como Hegel formula numa frase lapidar: TA razão é a certeza da consciência de ser
toda a teahdaà.e'adie Vernun$ ist die GewissbeitelesBelousstseins,
alceRealitàt zu seinh
(EF, P. 175; PÉG,P- 176).
O capítulo termina numa transição em que se mostra que a consciência individual é
um veículo inadequadopara o espírito, e issofundamenta uma mudança básicana rE.
que dali por diante seguirá as corporificaçóes supraindividuais da subjetividade, primei-
ro a sociedadepolítica (capítulo VI), depois a religião (capítulo Vll). Por conseguinte,
uma investigaçãoda consciênciaque parte do indivíduo revelaa inadequaçãode todas
aquelasconcepçõese corça-nosa mudar para um espírito mais amplo.

l
O capítulo subdivide-seem três seções.A primeira delasé análoga à parte inaugu-
ral sobre"consciência"ao tratar dasdiferentesteorias da ciência.E seumotivo básico
é a tentativa de cumprir a promessada razão, de que podemos obter uma visão das
coisascomo determinadas de modo p]enamente racional. A busca por uma ciência ra-
cionalmente necessáriacompreende a "razão observadora" mediante diferentes modos
do pensamento científico, desde a simples observaçãode regularidades até a busca por
leis naturais. Ela leva a razão a desviar sua atenção da naturezainanimada e 6ocá-lana
natureza animada, onde seu instinto Ihe diz -- corretamente, pensaHegel -- que chegará
mais perto de ver uma forma que mantém a si própria. Porém, aténessecaso,ela é mal-
sucedida em encontrar a necessidade racional consumada.
Hegel deixa claro que isso não se deve a qualquer inadequação nas ciências da
natureza animada ou inanimada. A contingência é uma característica necessáriadelas,
como eiedeixa muito claro (especialmente
/U, p 191-93). Essasciênciassão,por
conseguinte, formas perfeitamente válidas do conhecimento no seu próprio plano,
investigando regularidadese leis sem tentar justifica-las em última instância pela ra-
zão. O desejo da razão observadora, nessecaso, de fato só será satisfeito pela filosofia
especulativaque mostra por que o mundo deve ter a estrutura que tem, incluindo o
grau de contingência que ele comporta.
r A CONSCIÊNCIA DESI i9i

Por fim, a razãoobservadoraé levada a examinar o ser humano, como o lugar mais
provável em que a necessidaderacional pode ser vista enquanto obra. Porém, isso ma-
logra devido à natureza da própria razão observadora, que tenta entender o ser humano
olhando para ele como objeto, não sendo capaz de captar sua naturezacomo um ser
que também Ez a si mesmo. A razão observadora não está realmente à altura da trama
composta da realidade dada e da realidade construída pelo ser humano, a ".É7/zóeifzóu
vorhandenen z//zZz&sgemachten Se/mf"[unidade do ser enquanto züzü e do ser enquan-
to conifrzíZ2Zo]
(.fU, p. 22 1), mas tenta separar essesdois aspectos um do outro. Ela trata o
ser humano como uma coisa, e é por isso que Hegel considera de certo modo apropriado
Emerculminar a discussãodessaseçãonuma investigaçãoda frenologia, que esteveem
voga por determinado tempo no final do século XVIII. Na frenologia, as qualidades
tipicamente humanas do ser humano são relacionadascom a matéria inerte, com as
\

saliências e cavidades do seu crânio.2


Hegel obviamente distingue um ponto especulativo nisso tudo. É verdade que o
espírito se iguala à matéria, porque tem de ser corporificado. Porém, essarelação deve
serexpressano "juízo infinito" (];F, p. 247) que aârma tanto a identidade de Ge/íf e sua
corporificação quanto a diferença entre eles, o qual, acima de tudo, desenhaessacorpo'
rificação como posta pelo Geiff. A razãoobservadora carece de um entendimento do ser
humano como agente e, em consequência disso, passamos para uma Eme da razão que
corre paralela à "consciência de si", na qual seguimos o agente racional.

)
11

A noção da soberania universal da razão também transformou a certeza de si do ser


humano. Exatamente do mesmo modo como a razão observadora estava confiante de
encontrar a necessidaderaciona] na natureza, a consciência de si racional estáconfiante
de alcançar satisfaçãono mundo.
A dialética da consciênciade si inicia aqui com a figura do indivíduo em buscade
prazer. Porém, isso não significa começar do zero. Esse indivíduo, diferentemente do
sujeito do desejo no capítulo anterior, tem às suascostaso desenvolvimento que nos
trouxe até a razão e, consequentemente,possui a certeza racional de que encontrará
a si mesmo na realidade que o cerca. O ser humano e o mundo são projetados para a
felicidade, bastando ao ser humano estender a mão e, por assim dizer, apanhar o fruto
da felicidade. Em vez de consumir a realidade exterior, como fazia na anterior diabética
do desejo,o sujeito, certo de sua unidade ems/ com ela, apenasremove dela "a forma
do seu ser-Outro" (/W, p. 257): o objeto de prazer permaneceum ser independente.
Se o paradigma da diabética do desejo parece ser o consumo, o dessa dialética parece
ser o prazer sexual.

: Quanto à relação da discussão deita por Hegel nesse ponto, com questões da explicação contemporânea, cC
Alasdair Maclntyre, "Hegel on Facesand Skulls". In: Maclntyre(ed.), .fjng?/.Nova York, 1972, p. 219-36.
i9z PARTE ll l FENOMENOLOGIA

A seçãoestá repleta de referências (como sempre, sem comprovação) ao Eaasfo, de


Goethe, incluindo uma citação incorreta. Porém,é óbvio que Hegel tem em mente
também a doutrina iluminista da bondade natural do serhumano. E esta, obviamente, é
uma ideia avançada,no sentido de que ela só pode surgir após um longo desenvolvimen-
to da cultura humana. A doutrina iluminista de que o ser humano é naturalmente bom
e, consequentemente,encontra o critério do certo em seuspróprios desejosnaturais
(cuja concretização é o prazer) está construída sobre a visão da natureza como uma to-
talidade racional harmoniosa subjacente à empresacientífica (razão observadora). Nesse
tocante, tem sentido a derivação que Hegel Eaznesseponto.
Porém, embora esteja num plano incomparavelmente superior, essafigura ingênua
da consciênciade si obviamente não resolveráo problema. Com efeito, o ser humano
ainda busca satisfação como indivíduo, mesmo que agora ele possa definir a si próprio
em categoriasuniversaise, por conseguinte, constatar que todos os sereshumanos são
como ele é. E, enquanto puro indivíduo, ele deve perceber a realidade que o cerca, tanto
a realidadesocial quanto a natural, como forânea a ele. Suaautorrealizaçãonão é a que
el. tem em comum com outros sereshumanos, masé uma bem particular.
Porém, todos os particulares têm de perecer. De fato, como já vimos, há uma cone-
xão íntima entre a plena autoafirmaçãoda coisa particular e seu âm necessário.Com
efeito, o particular externo, embora seja expressãoessencialdo Ge/ff ou do universal,
encontra-seem contradição com estee, como tal, precisadesaparecer;e o momento de
seu Horescimento mais pleno é quando a contradição atinge o seu ponto mais agudo.
Hegel, por conseguinte,vislumbra uma conexãoíntima entre a concretizaçãodo
indivíduo enquantoparticular no prazere suamorte. O serhumano que define sua con-
cretização como a do prazer experimentado por ele enquanto particular encara seu fim
inevitável como aniquilação total. Não é que o prazer produz a morte ou que, evitando
aquele, seja possível evitar esta. Hegel não argumenta que o prazer tenha de ser evitado
e a morte, no final das contas, é inevitável. Ele argumenta, muito antes, que, deânido
de tal modo que sua concretização é tão somente prazer, o serhumano experimenta essa
morte como um fim abrupto e total.
Em contraste, um ser humano que define a si próprio de ta! modo que sua concreti-
zaçãoreside num fim mais amplo, universal, não vê a morte como aniquilação, porque
ela é identificada com algo que sobrevivea ele. Porém, o contraste também vai mais
fundo. Para a figura que estamosestudando aqui a morte não é só total, mas também
uma necessidade externa, cega, um destino.
O destino da morte está necessariamente
ligado à vida pela razão mencionada
anteriormente. Porém, essedestino só é cego porque, sendo definido como um puro
particular, o ser humano não pode constatar essanecessidadeinterior. Sendo pura-
mente interior, ela é puramente "externa", isto é, parece'lhe cega e sem razãode ser.
Ao passoque o ser humano que percebea si próprio como veículo do universal não só
não vê a morte como total, mas também entende por que ela tem de ser em virtude
A CONSCIÊNCIA DESI i93

do mesmo Gelff universal, com o qual ele identifica a si mesmo. Por conseguinte, ele
é duplamente reconciliado com ela.
O fim subjacente,a reconciliação entre ser humano e destino, é descrito aqui bre-
vemente como a condição em que a consciência reconheceria "o seu fim e o seu agir no
destino, e o seu destino no seu fim e agir", em que reconheceria "a sua essência própria
nessanecessidade"(/{E, p. 259; P»G, p. 265). Parao serhumano que define a suacon-
cretização como o prazer do particular, há, no entanto, só "um puro salto no oposto" (ei#
rr! e SPrz/nK ín d© En«?ng?seízír)(ibidem).
Por essarazão,essafigura se contradiz. .AJmejandoa concretizaçãodo prazer, o ser
humano depara-secom a mais absoluta não concretização.A certezade encontrar a si
mesmo na realidade é aniquilada. A consciência de si, por conseguinte, é imposta; e o
próximo passo,obviamente,é incorporar essanecessidade externaem si. Já que essa
necessidade
é a de vincular o particular com o universal, issosignifica incorporar o uni-
versal na própria noção de concretização, de modo que, em vez de simplesmente desejar
o próprio prazer, o desejo espontâneo passa a ser visto como direcionado para o bem
universal. Por conseguinte, temos a imagem do serhumano que espontaneamentedeseja
o bem, que possui a lei da moralidade em seu coração.
Como quer que concebamoso rigor dessatransição,deparamo-nos aqui, obvia-
mente, com outra corrente muito importante do pensamento iluminista (a qual,
como todas dessetipo, tem sido reeditadaem diferentesformas desdeentão). Com
efeito, canto paralela quanto posteriormente, suplantando amplamente a ideia utili-
tarista do ser humano como naturalmente bom em seu egoísmo ingênuo, visto que
ela se enquadravanuma harmonia natural ou atingível de interesses,veio a ideia do
ser humano como naturalmente bom sendo espontaneamentealtruísta. Certamente,
é isso que muitas pessoas extraíram dos escritos de Rousseau, e doutrinas dessa espécie
eram amplamente difundidas no final do séculoXVlll, embora o impacto da Revolu-
ção Francesaas tenha prejudicado um pouco. Obviamente, é esseamplo movimento
que Hegel tem em mente, embora haja uma certa quantidade de referências(ainda
implícitas) a Os SaZíe.azares,
de Schiller.
Nessafigura, o ser humano, por conseguinte, crê na bondade de seussentimentos es-
pontâneos. Ele seencontra em oposição a um mundo repleto de sofrimento e maldade.
Isso tem de ser atribuído às restrições falsas e injustificadas impostas aos sereshumanos
pela sociedadeou civilização,visto que o ser humano é naturalmente bom. A soluçãoé
livrar os sereshumanos dessas restrições, trazê-los de volta ao que realmente são e, por
conseguinte, realizar, na ordem mundial, a lei do coração.
Porém, isso tampouco filncionará. O ser humano tem de ser alçado à universalidade,
de tal modo que suasaspiraçõescorrespondam ao bem universal; mas isso requer longo
tempo de formação e disciplina, requer uma transformação duramente conquistada.
E tolice pensar que nosso sentimento espontâneonão reconstituído seráuma coisa só
com o universal.A unidade, como posta aqui por Hegel, ainda não é mediada.
i94 PARTE ll Ê FENOMENOLOGIA

A contradição resultante apresenta-se de duas maneiras. Em primeiro lugar, o mundo


que resultaria da imposição, sobre o curso dos acontecimentos, da lei que sinto em meu
coração não é genuinamente universal. É repleto de ideias e aspiraçõesque são simples-
mente minhas e que projeto acriticamente sobre o universal. Disso decorre que outros
não poderão reconhecer a lei dos seuscorações neste mundo. A tentativa de reconstruir
o mundo por essavia não leva, por conseguinte, à unidade e reconciliação, mas à guerra
fanática entre sereshumanos.
Porém, em segundo lugar, mesmo onde o curso das coisas refiete o universal, onde,
por exemplo, a estrutura da sociedade e suas leis refletem as normas racionais, essacons-
ciência não é capaz de reconhecê-lo.Porque o universal genuíno é aquele que o ser
humano só pode alcançar pela disciplina, como vimos. Por conseguinte, asleis racionais
sempreaparecerãocomo restriçõesexternaspara quem estáconvicto de sua própria
bondade espontânea. Por conseguinte, a lei do coração em princípio jamais pode ser
bem-sucedidaem reformar o mundo. Com efeito, uma vez que consiga obter alguma
melhoria nascoisas,sua obra se mostra Gorâneaa ela, como um inimigo, como apenas
outra forma de barreira externa que ela estácombatendo.
Essaconvicção, diz Hegel, leva de fato a uma fantástica presunção, em que cada qual
crê que o mundo deveria ser reformado de acordo com seusinstintos. O conHito, o so-
frimento e a frustração daí resultantesconstituem o exato oposto da reconciliaçãoque
ela deveria alcançar. Essa forma da consciência, por conseguinte, está em contradição
acerba consigo mesma. Hegel descreve a luta para manter-se nessacontradição como
uma espéciede loucura. Ela tenta desesperadamente
jogar a culpa pelo mal no mundo
sobresacerdotese déspotase, em consequência,reconciliar a maldade universalcom o
coração supostamentebom. Porém, a debilidade dessaexplicaçãoapenasevidencia a
contradição subjacente. Na verdade, ela tem de reconhecer na ordem mundial "a lei de
todos os corações", o resultado líquido das lutas de todos para realizar suasaspirações.
Porém, isso prepara o terreno para uma nova inversão diabética.Sendo a ordem mundial
a lei de todos os corações,ela pode ser considerada como potencialmente capazde expressar
o universal. Isso exigiria que essavisão fosse simplesmente purgada da busca indivídua! por
si mesmo. Por conseguinte, isso representa uma virada de mesa. Em vez de esperar salvar o
mundo pela imposição de nossa própria individualidade a ele, nossa ideia passa a ser purificá-
-lo pela remoção de todos os traços de aspiração individual de nossosaros.
Hegel denomina essapostura da consciência de tentativa de realizar a "virtude". Po-
rém, ele deixa claro que não se trata da virtude dos antigos, que significava, ao contrário,
viver de acordo com os costumes do seu próprio povo. Esta é uma virtude individualista,
fiindada na negaçãode si mesmo; e já é evidente que Hegel a considerará inaceitável.
De fato, trata-sede outra daquelasestratégiasde recolhimento, dasquais EHeiante-
riormente, no início da discussãosobre a consciência de si. Ela lembra o estoicismo. En-
quanto a forma anterior definiu o ie/fcomo liberdade interior mediante o abandono de
nossarealidade corporal exterior, a presente forma tenta neutraliza-la em termos morais.
A CONSCIÊNCIA DESI i95

l
A expressão particular do indivíduo tem de ser suprimida; é preciso que ele chegue a ser
nada além da expressãodo universal.
A característicapeculiar dessetipo de faseé o senso que o ser humano tem de sua
própria indignidade, o desculpar-sepor sua existência e sua tentativa de suprimir
sua particularidade e de tornar-se nada mais que a vontade universal. A issoé dada certa
importância na ]%', porque aparecetrês vezes:a primeira, na consciênciainfeliz; a se-
gunda vez, neste ponto; e, em terceiro, no final do capítulo VI, na seção sobre o mal e o
seu perdão. Este último constitui um importante estágio da diabética porque é invocado
novamente na transição para o conhecimento absoluto.
Porém, a tentativa de suprimir a particularidade do indivíduo está fadada ao fracasso;
e isso pela simples razãode que o universal não pode ser realizado, a não ser nos atos de
sereshumanos particulares, e estes,agindo dessemodo, não podem abstrair do que são
como sereshumanos com necessidades e desejosparticulares. Em outras palavras,o ser
humano não pode suprimir suaparticularidade e agir apenascomo um veículo do uni-
versal; com efeito, ele não pode simplesmente agir baseado na motivação de conformar
sua ação a máximas universais,colocando de lado todos os demais motivos. Rejeitar
todas as demais formas de ação é não Emer nada. E é por isso que podemos ver essainsis-
tência na supressãoda particularidade como uma forma de recolhimento, uma rejeição
das condições mesmas da existência particular, exterior.
Em contraposiçãoà filosofia da virtude que seabnegade si mesma, a filosofia de Hegel
é uma filosofia da realizaçãode si mesmo; tornar-se o veículo do universal é também para
o ser humano uma concretização -- ou pelo menos será quando ele estiver plenamente
formado. Porém, obviamente, no trajeto até a plena formação, sua natureza"inferior
estaráem conflito com essavocação universal. As filosofias dualistas refletem isso. Mas não
só: elas justificam a disciplina e o treinamento necessáriospara alcançar a integração mais
elevada. Vimos isso ao Edar da piedade da consciência infeliz, por exemplo.
No cenário contemporâneoa Hegel, no entanto, não mais se justifica a filosofia da
virtude que nega a si mesma,e Hegel é ferido e irónico no tratamento dessaquestão.
Seuargumento é que o universal não pode encontrar expressãoreal (Wzré#cóÉeir)exceto
pelasvidas e pelos fitos de indivíduos particulares. Porém, isso é deito numa imagem
elaboradaem que a consciência da virtude é descrita como um cavaleiro, uma espéciede
Dom Quixote, que não é capazde combater efetivamenteo mundo dos agentesegoístas,
precisamente porque essemundo prevê as condições únicas de realização do universal
em nome do qual ele luta. Suaprincipal preocupação,diz Hegel zombeteiramente,é
manter sua espadaimaculada. Em pouco tempo, o cavaleiroda virtude é condenadoà
inatividade por sua noção demasiado pura da virtude. Ele não pode intervir e6etivamen-
te na história visando realizar o bem, porque estenão pode ser separado da afirmação de
sua particularidade.
O desfecho dessacontradição será uma nova case, a terceira principal casedesse ca-
pítulo sobre a razão.No item anterior, aprendemos a ver o curso das coisascomo o
t96 PARTEll l FENOMENOLOGIA

resultado dos aros de autorrealizaçãodos indivíduos; neste, aprendemos que o universal


só pode vir a ser através dessesaros de autorrealização. Assim, passamospara um nível
mais e]evado, no qua] vemos a autorrea]ização individua] como a expressão do universal.
O próximo estágio da diabética,então, será uma figura da consciência de si que conhece
a si mesma como realizadora do universal em seus fitos.

11]

Nesta última seçãoreferente à razão, chegamos, então, a formas da consciência em


que o indivíduo vê a si próprio como unido com o universal. Fomos além da oposição
entre os fins do indivíduo e a realidade em oposiçãoa eles. O indivíduo passaa estar
unido em suaaçãocom a realidadeexterior que, por isso mesmo, refletea razão.
Essaunidade acontecerealmenteno espírito objetivo, que é o Geisfrefletido na vida
de um povo, que Hegel chama de substância ética. Porém, nessaúltima seção,vamos
nos deter por um momento em outras formas da consciênciaindividual que dão a He-
gel a oportunidade de considerar outras ideias e convicções morais contemporâneas.
Porém, essedeter-se também deixa clara a importância da transição. Em certo sentido,
a /;E pode ser concebida como composta de duas partes, cuja fronteira se situa aqui. Na
primeira, estamoslidando com formas da consciência individual, mesmo que estejamos
tratando dos sereshumanos em interação, como na diabéticado senhor e do escravo.
Porém, nos capítulos que seguem, sobre o espírito e a religião, compreendemos o
espírito como sujeito suprapessoal,primeiro, como o espírito de um povo, em seguida,
como a consciência de si do espírito universal na religião. Essamudança na diabéticaob-
viamente é necessáriase pretendemos chegar ao conhecimento absoluto, no qual o Gelsf
estáunido com o seu mundo, porque só o sujeito universal pode servisto como unido
de uma maneira tal que o indivíduo gz/.zindivíduo jamais poderá estar.
Por conseguinte, em certo ponto temos de deslocar nosso centro de gravidade; te-
mos de deixar de ver o indivíduo enquanto o centro que tem sua relação social como
um bato periférico a respeitodele, e começar a ver a totalidade social como central, e o
indivíduo como manifestaçãodela. É esta última proporção que Hegel desejacomunicar
com o usofrequentedo termo "substância".O espírito da sociedadecomo um todo é
a realidade subjacente, da qual emanam os alas dos indivíduos. Porém, isso não quer
dizer que estessejam seussubordinadosimpotentes; ao contrário, eles reconhecema si
mesmos nela (FF, p. 301 ss). Além do mais, esseespírito não é algo separado deles, pois
não pode existir sem eles.A "substânciaética" (sia/fcóeSzóósíanz)
pode ser concebida
como "a eiié/zc/ada consciência-de-si; mas essaé sua reú#da2e(Wré#cóÉe/r) e seuirr-az'
(Dasr/n), seuSi e sua z,o/ZÉa2e"
(/U, p. 303; PÉG,p. 312).
Por conseguinte, o Gr/rf de um povo só pode tornar-se realidade nas subjetividades
individuais. E disso decorreque ele ainda não alcançou a plenitude do seudesenvolvi-
mento; ele ainda é inconsciente e parcialmente deformado quando não é refletido em in-
divíduos. Mas é claro que essaé a realidade em todo o período entre o desaparecimento
A CONSCIÊNCIA DESI i97

da cidade-Estadogregae o pleno florescimentodo moderno Estadode direito. Este


último requer,por issomesmo,um duplo desenvolvimento:tanto o indivíduo quanto a
expressão pública do Gelff nas leis e instituições devem mudar e crescer de tal modo que
aquele possa vir a reconhecer-se nesta.
Hegel parece ter pensadoque essaúltima transição estavaocorrendo em seusdias.
As figuras que ele estuda aqui, todas reconhecíveiscomo ideias contemporâneas,re-
fletem, por conseguinte,a transição. Contudo, o seu interesse,nesseponto da /;E', ob-
viamente não é derivar a forma final do Estado, mas apenasmostrar que não podemos
entender a consciência sem essamudança do indivíduo para a "substância", cujo desen-
volvimento retomaremos no próximo capítulo, começando pelos gregos.
Todas as âguras dessaseção refletem uma consciência que tem certeza do significa-
do universalde sua ação.Como em outra passagemdessecapítulo e na obra como um
todo, a discussão feita aqui reflete o acerto de contas de Hegel com as correntes do seu
tempo. Não há espaçoaqui para acompanhar o argumento, mas deveríamosdar uma
rápida olhada no modo como ele trata Kant, o qual é censurado (semser nomeado)na
discussão da última figura dessa seção, a "razão que examina as leis'
Nessa figura, a razão é invocada para examinar as leis que poderiam alegar ser moral-
mente compromissivas mediante a aplicação de um critério de autoconsistência: há ou
não uma contradição em seguir uma dada máxima?
A referência a Kant é óbvia, e não é difícil adivinhar a reação de Hegel. Ele levanta a
objeção amplamente conhecida de que é possível demonstrar a consistência de qualquer
máxima, acrescentando-lhea nuance de que, de certo modo, podemos mostrar que, por
exemplo, a comunidade de bens é contraditória, mas exatamente a mesma coisa pode
ser demonstrada em relação ao regime da propriedade privada. Essa contradição não é
problema para Hegel. Ele concorda plenamente com Kant e com toda a época burguesa
em que a propriedade privada é o regime carreto, mas issonão pode ser demonstrado em
relação à consistência supostamente maior de agir com base nesseprincípio.
Porém, ao passarfinalmente para o Geiff, extraímosdessaúltima figura a ideia
dela decorrente de que o indivíduo livre que se encontra em oposição à sociedade
não é capaz de achar nenhum conteúdo real para a sua razão moral; ele não é capaz
de raciocinar de modo coerente para definir conclusões no campo moral. E verdade
que a base da moralidade é que ajamos de acordo com máximas universais, em outras
palavras, de acordo com o Ge/ff que constitui nossa real natureza e que é universal (e,
por conseguinte, juntamos Kant e Aristóteles). Porém, se entendermos isso abstrata-
mente, teremos um critério vazio. No plano abstrato, onde a razãoé vista como resi-
dente apenas na forma, em certo modo de pensar, qualquer coisa pode ser justificada,
qualquer máxima pode ser universalizada. Somente quando vemos que a razão possui
certosrequisitos ontológicos, que ela exige uma realidade exterior e um certo tipo de
realidadesocial humana em particular, uma que expressarápor meio de instituições
políticas o requisito das leis universais--, é que podemos prover um conteúdo para a
i98 PARTE ll l FENOMENOLOGIA

razão prática. A forma do nosso dever moral emerge da natureza da realidade social
que deve ganhar existência para que o Gffsf seja plenamente realizado; e a plena reali-
zaçãodo Gelaré para nós um dever moral, porque nossanatureza é precisamenteisto:
Gfis/, ou, para usar um termo mais antigo, vida racional.
Por isso, no final das contas, um ser humano verdadeiramente moral é aquele que não
esperadar a si mesmo suaspróprias leis puramente a partir de sua própria consciência in-
terior, mas, pelo contrário, ele sente o impulso do dever que parte de sua sociedade.Tentar
raciocinar puramente com baseem si mesmo é raciocinar sem critérios, ou seja,arbitraria-
mente. "Esse legislar imediato é também a insolência tirânica que Eazdo arbítrio a lei...'
(.l;E, p. 301; PÉG, p. 309). Consequentemente, Hegel pareceinverter totalmente a opinião
de Kant, que Eezda autonomia a própria pedra de toque de toda moralidade.
Porém, a verdade de fato é mais complexa. Há um primeiro sensoirrefletido do
dever que tem de ser expugnado pelo indivíduo universal raciocinando por si mesmo;
e, na subsequenteluta entre autoridade externa e autonomia, Hegel não se posiciona
semressalvasem nenhum dos lados. A autonomia é carreta porque constitui um estágio
necessário
na formaçãodo ser humano.Em última instância,no entanto,as duasse
Juntam no Catade que o ser humano plenamente racional verá sua própria concretização
remetidanum Estado de direito, a cujas instituições ele é fiel. Nessecaso, porém, ele
chegaráa considerara visão kantiana como unilateral; ele a verá como uma dasprede-
cessorasda sua própria, mas somente como um dos desenvolvimentos que preparou o
caminho para a presente realização. A outra condição necessária dessa realização reside
no lento desenvolvimento das próprias instituições às quais a vasta maioria das pessoas,
a despeito dos âlóso6osiluministas, jamais cessoude mostrar fidelidade absoluta, sejam
essasinstituições religiosas,sejam elas políticas.
A ruptura com Kant, por conseguinte, é profiinda até mesmo onde Hegel afirma
que o está"completando".E há outra diferençaque anda de mãosdadascom aquela
entre pura autonomia e moralidade social: visto que a ética mais plena é aquelaque se
vive numa sociedade,nada sendo além do dever da pessoapara com a sociedade,a ética
mais elevada é também a ética plenamente realizada. Isso não é meramente um "deve'
alguma coisa que deveria ser: as normas que seguimos são aquelas plenamente vividas
nas instituições que existem em nossasociedadee que mantemos mediante a nossafi-
delidade. Uma ética que nos apresenta um modelo que apenas deve ser sempre recebe o
desdém de Hegel. Esseé o motivo básico de sua rejeição da âlosofia moral tanto de Kant
como de Fichte: eles nos apresentam uma ética do puro SaZZem.

Hegel, por suavez, diz que o espírito que vive em um povo mostra-nos leis que sãosi-
multaneamente Se/n, existência real. Não temos espaço aqui nem para a H; a consciência
de si vive dentro da realidadeespiritual do Geíç/,que os sereshumanos perderamcom
o desaparecimento da cidade-Estado grega e que andam por reaver. Estamos agora a
ponto de recupera-lanuma forma consoantecom a razãouniversal,mas primeiro reto-
maremospara vê-la em sua beleza inconsciente original.
CAPITULO VI

A formação do Espírito

Ao ingressar agora no domínio do Gemi, que Hegel chamará mais tarde de "espírito ob-
jetivo", estamos tratando pela primeira vez de formas históricas reais.Antes disso, estávamos
tratando unicamente de aspectosabstraídos dessasformas: vimos o estoicismo, por exemplo,
no desenvolvimento da consciência de si; retomaremos agora à forma histórica plena, da qual
elaé um apecto. Neste capítulo, temos, como nossos estágios,comunidades política em sua
totalidade ou Êles na vida da civilização como um todo, e não apenas uma ideia, visão ou
ideal dados(que, em última análise, só podem ser entendidos à luz do Geúr).
Sendo uma dialética não histórica, a /Z', por conseguinte, tem uma espéciede efeito
espiralado. Retomamos aos mesmos 6enâmenos num nível mais elevado (ou mais pro-
fundo, casose prefira esta metáfora). Se da dialética do senhor e do escravoaté o fim da
Razãoas referênciasimplícitas possuemuma ordem rudimentarmente histórica, reto-
mamos agora aos primórdios. E, no final deste capítulo, teremos chegado novamente ao
capítulo sobre a Religião.
O capítulo sobre o Espírito nos conduz atravésde algumas passagenscruciais da
filosofia da história. Começaremos com os gregos, com aquela sociedade do perfeito
Z?eificóseZ»file/n
[estar-consigo-mesmo], que Hege], a exemplo de muitos dos seuscon-
temporâneos, não podia recordar sem nostalgia. Essasociedade, como bem lembramos,
6oi caracterizada pela perfeita unidade entre cidadão e sociedade.As aspiraçõesmorais
e espirituais mais plenas dos cidadãos eram respondidas na vida comum da sociedade.
Essavida comum, por conseguinte,era como uma substânciacomum; enquanto parte
dela, o indivíduo encontravasignificado e propósito para a suavida; desvinculadodela,
ele definhava. Porém, essadependência da substância comum não faia desta algo to-
talmente outro, como única coisa à qual ele poderia estar subordinado; com efeito, a
vida comum era também "o fazer de todos e de cada um" (.úK Z## a/ZerzlnZjeder) (FZ',
P-305; PÉG, p. 3 14), era a obra dos cidadãos.Se,por um lado, a substânciamantinha o
indivíduo, por outro, a atividadedo indivíduo também mantinha a substância.

Porém, 6oi preciso que essaunidade inicial ruísse,' e este capítulo segue essadialética.
O indivíduo plenamente universal deve ganhar existência e só consegueissoderrubando

' Como Hegel já tinha observado na EF: "Z)/f Uerm ## mu#.zui 22esrmG/üfÉf ófxa s/re/flz" [A razão tem de
sair dessa eelicidade] (FE. p. 252; PÓG, p 258).
PARTEll l FENOMENOLOGIA

os muros paroquiais da cidade-Estado. Segue-seum longo período de alienação, no qual


o indivíduo se colocou em oposição à sociedadeque não o expressa.Esseperíodo de
labuta, no entanto, é, como sempreem Hegel, um período de formação. Dele emergira
um estágio superior. Na filosofia da história, esse estágio é definido como o Estado de
direito dos tempos modernos.Na .IU', no entanto, passamospara a novaconsciência
moral da filosofia alemã contemporânea, como um prelúdio à nova consciência religiosa
filosoficamente interpretada. A razão disso: talvez resida no Eito de a }=lFperseguir pro-
pósitos diferentes dos da filosofia da história, mesmo que obviamente haja sobreposições
neste capítulo; nosso propósito aqui é levar a consciênciaa definir a si mesmacomo,
em última instância, congruente com o espírito universal. Consequentemente, não há
motivo para delongar-se na filosofia do espírito objetivo; devemos ater-nos ao que mais
tarde, na ,Fnc/c&pli21a,será chamado de "espírito absoluto"

A primeira parte do capítulo trata da unidade original da cidade-Estado grega e do


seu colapso. Esta é uma das mais belas passagensda /;E, na qual transparece a poderosa
visão poética que estána baseda filosofia de Hegel. A Forçade suasimagens é acentuada
'''---+ pelo fato de ele explicitar a tensão e o conHito internos da sociedade gregapor intermé-
dio da tragédia so6ocliana.
Nos termos mais gerais possíveis,o conflito subjacente à unidade original é este:
o indivíduo estáperfeitamente unido à sua comunidade, estando o ser humano, por
conseguinte, de acordo com um sujeito mais amplo, com um universal, do qual ele se
sente uma emanação.E assimque deveria ser.Porém, esseuniversal não é integralmente
r.D assim.Ele é o espírito de um só povo, apenasum entre muitos. Ê paroquial. Por isso,
a intuição da universalidadegenuína no ser humano separa'o progressivamentedessa
comunidade.[)á-seuma luta no interior do serhumano e no interior da comunidadeà
medida que essaexpressãopública do universal entra em conflito com a vocação mesma
para o universal que está na sua base.
A feliz unidade de cidadão e cidade, por conseguinte, dependede que o serhumano
seencontre num estágio anterior do desenvolvimento, "imerso na natureza". Esseneces-
sariamentepassará.Em outros termos, como existênciaparticular, a cidade-Estadotem
de desaparecer: se ela fosse uma expressão da consciência verdadeiramente universal,

2 Também foi dada a explicação(cf. F. Rosenzweig,.f11?g?/zí z/ 2er Sfn/zf.Munique e Berlim, 1920, vol. l,
p. 217-20, n. 1-5) de que, sob o impacto da conquista napoleónica, Hegel abandonou por algum tempo
a convicção de que o Gflsf pode retornar à plena reconciliação consigo mesmo num Estado moderno, o
que foi uma de suas aspirações mais antigas e certamente fez parte do seu sistema maduro após 18 15. Com
basenessainterpretação,para Hegel, nesseperíodo, a história chegariaà sua culminância, e o Espírito,
à sua reconciliação tão somente na religião e na filosofia. Porém, não há como estabelecerisso de modo
convincente.
A FORMAÇÃO DO ESPÍRITO

esta última sobreviveria a ela, já estaria além dela; ela permaneceria ela mesma através da
destruição dessaexpressãodela mesma. Porém, sendo uma consciência paroquial, a vida
da cidade-Estado desaparecejunto com esta, ou seja, ela "encontra sua suprassunção em
uma outra" Wn2er [. . .] !Áx?.4ze»eZ'z/nK
ame/ fr andem) (FE, P. 331; PÉG, P. 342).
Porém, Hegel usa a maior parte dessecapítulo para fazer uma leitura da diabéticada
vida ética da sociedadeou da Sya#có,ée/f,como ele a chama, em outro nível, mais deta-
lhado, cujo vocabulário é tomado de empréstimo dos tragediógrafos gregos. O conflito
entreos dois universaispassaa servisto como conflito entre a lei humana e a lei divina.
A lei humana é ética consciente e pública do Estado, na qual os cidadãos se encontram
refletidos. A lei divina refiete o verdadeiramente universal e, nesseestágio, por conse-
guinte, ela aparececomo lei irreHetida, como lei não escrita, não deita pelo ser humano,
que sempre existiu.s A lei divina, como a lei verdadeiramente universal, concerne ao
indivíduo como tal, não apenasem suarelaçãocom o Estado.A instituição posta como
guardiã dessalei, por conseguinte, é a família, que é também a esfera da unidade imedia-
ta. As duas leis têm sua expressão paradigmática nessasduas instituições, e Hegel tira a
conclusão daí decorrente que concerne aos papéis dos sexos: os homens estão relaciona-
dosem primeira linha com o humano e político; as mulheres,com o divino e familial.
A lei divina diz respeitoao indivíduo como tal, não a quaisquerparticularidadesde
sua existência. Porém, visto que, nesse estágio, é o seu papel no Estado que detém o mo-
nopólio de suavida exterior e6etiva,sua existência verdadeiramente universal só pode ser
visualizadapara além dessavida, encontrando expressãoem sua sombra, onde ela deixou
a contingência da vida em favor da "quietude da simples universalidade" (/{F, p. 3 11).
Em seguida,Hegel Eazuma interpretação surpreendente dos ritos funerários da Gré-
cia antiga. A morte é uma negaçãonatural, algo que sucedeao serhumano, um golpe
desferido contra ele pela natureza. Porém, também vimos que a morte, entendida em
termos especulativos, é uma necessidade,uma expressãoda verdadeira universalidade
do espírito humano que, por conseguinte,náo pode permitir que perdure qualquer
exp'estãoexterior. O propósito dos ritos é alçar a morte dessaprimeira realidadepara
a segunda, reinterpretá-la, por assim dizer, de algo que sucede ao ser humano para algo
deito por ele. Os ritos preservam o corpo que de outro modo seria presa de todas as forças
cegasda natureza, seria espalhado sobre a terra por chacais e abutres, e encomenda-lo à
terra torna sua partida um ato significativo. Desse modo, até mesmo a morte é recupe-
rada para a consciência de si.
E claro que, encontrando-senum estágioprimitivo, a consciênciade si recuperada
não é a mesmaque a que 6oi negada.Nesseestágio,uma existênciado indivíduo para

' As palavrasde Hegel lembram(deliberadamente) as dad fzkona:


IAs leis divinas que nunca foram escritas, mas são irrevogáveis;
Não existem a partir de ontem ou de hoje;
São eternas, sim!, e ninguém sabe desde quando vigoram!" [1. 455-57; trad. J. B. Me]]o de Souza]
PARTE li l FENOMENOLOGIA

além de sua morte dependede que a sua família promova o seu sepultamento. Num
estágio mais elevado, em que o verdadeiramente universal é expresso na vida Pública
da sociedade, todos nós estamosalém de nossa morte como consciência universal, até
mesmo antesde sofrê-la. Porém, o sepultamento é a expressãoque deve ter, nesseestá-
gio, a verdadeira universalidade do ser humano e, por conseguinte, ele é sagrado. Está
montado o palco para a tragédia de Antígona.
Com efeito, Estado e família, lei divina e lei humana necessariamenteentram em
conflito. Porém, antes de evidenciar isso, Hegel mostra como ambos estão ligados e
requerem um ao outro. O Estado preserva a sociedade e, consequentemente, defende
a família; a Família,por sua vez, forma cidadãos para o Estado. Assim, as corçasdivinas
subjacentesà família têm de ser cultivadas para o bem do Estado e, ao mesmo tem-
po, é o Estadoque se encarregadessecultivo e, por conseguinte,do culto aos Deuses.
Os sereshumanos, por conseguinte, provêm de uma família que se nutre de forças telú-
ricas e saem à luz do dia da atividade política; e são convocados a pâr em risco suasvidas
em defesado Estado e, em consequência, dessasfamílias, e, ao tombarem, a retornar à
terra, à pura individualidade da sombra, a repousarno mundo inferior, do qual a Família
continua a extrair a sua corça.E, reciprocamente, a família, particularmente as mulhe-
res, ao cumprirem os ritos, trazem a lei telúrica à luz do dia e conferem-lhe expressão
pública, preservando, por conseguinte, a ÍàmÍlia para fazer a sua parte na preservação do
Estado. As duas leis deveriam, portanto, estar em perfeita harmonia.
Mas não estão.No íiindo, elas se encontram em conflito, porque a lei humana não
é verdadeiramenteuniversal. E esseconflito vem à tona na ação histórica. Acercamo-
nos, aqui, de outro tema hegeliano básico. Agir, no sentido de efetuar alguma mudança
importante no mundo exterior, necessariamenteé incorrer em culpa. Com efeito, nossa
ação torna real, confere expressãoe6etivaà nossa particularidade. Porém, isso constitui
uma espéciede desafio ao universal e, em consequência, incorre em culpa. Vem daí a
interpretação dada por Hegel à doutrina do pecadooriginal. O pecadoé "origina!", na
versão filosoficamente reinterpretada, unicamente no sentido de ser fundamentalmen-
te necessárioao ser humano; e é necessárioporque o ser humano é um espírito finito
corporificado em algum ponto do espaçoe do tempo e, consequentemente,não tem
como não agir como um particular; e isso, por sua vez, é necessáriopara que ele possa
existir, como já vimos. Ainda assim, devemos ver essaautoafirmação do particular como
'pecaminosa" porque, embora seja essencialà existência do espírito, eia se atravessano
caminho de sua realizaçãoplena. Ela precisa, por conseguinte, ser superada; e já vimos
que a morte é um modo como ela é suplantada, ao passo que a realização da consciência
plenamenteuniversalé o modo exigido pelo Ge/rf.
Por conseguinte, na visão de Hegel, o pecado é necessárioà salvação.Esseé apenas
outro modo de colocar a tesebásicade que o espírito só pode existir retornando a si
próprio a partir de suacorporificação,que a exterioridadeou alienaçãoé um estágioes-
sencial na sua realização.Disso decorre que qualquer tentativa de alcançarsantidade ou
r A FORMAÇÃO DO ESPÍRITO zo3

unidade com o espírito é um ato autodestrutivo que implica retrair-se da ação no mun-
do e da correspondente afirmação da particularidade. Estamos condenados à existência
particular como espíritosfinitos. Tudo que podemosfazeré operar atravésde nossaexis-
tência particular visando realizar a forma de vida capaz de portar a consciência universal.
Temos de passarpelo pecado para chegar à expiação; o pecado em si é inevitável.
Retrair-se da ação, por conseguinte, é ser rejeitado; é outra dessasestratégias de reco-
lhimento que temos de pâr de lado. E esseponto já foi abordado no capítulo anterior,
em que a alma virtuosa tentou isentar a sua própria ação egoísta do curso das coisas. Nós
o encontraremosde novo no final destecapítulo, na seçãosobreo erro e seuperdão.
A /{Ê' retorna a essetema diversas vezes.Aqui, Hegel repete que "inocente, portanto, é só
o não agir como o ser de uma pedra; nem mesmo o ser de uma criança [é inocente]
(.IU, P. 323; PÉG, P- 334).
Porém, nesseponto, ainda não chegamos à reconciliação plena; a ação no mundo
por parte da comunidade ainda estádeEasadaem relação ao verdadeiramente universal.
Por conseguinte, ao tornar efetivo o particular, a ação deflagra uma luta no interior da
própria ética. Essaluta é trágica. Nós que nos encontramos cora dela, somos capazesde
ver o conHito; vemos a .4nfikp/zzzde Sófocles, e somos capazes de entender tanto os argu-
mentos de Antígona quanto os de Creonte. Se tivéssemos estado lá, poderíamos muito
bem ter hesitado quanto a qual dos lados apoiar.
Porém, esseé para nós um conflito de valores. Encontramo-nos, em última análise, no
domínio da comédia, porque náo nos envolvemos no conflito. Nós mesmos sofremos tais
conflitos quando dois bens se chocam; mas não estamos envolvidos em nenhum dos dois,
por possuirmos a consciência universal capaz de abranger ambos, capaz de aprecia o peso
e asdemandasdos dois protagonistas. No entanto, optando por arbitrar a disputa, retemos
essaconsciência universal e con6erimos expressãoa ela em nossos fitos.
Totalmente diferente é o casodo protagonista trágico. Ele estáidentificado com um
dos lados em luta, com a lei humana ou com a lei divina, a ponto de não ver o outro, de
vê-lo unicamente como uma "realidade carente de direito" (rrcó/ZoarW7réZiicóêeif)
(.l;E,
p 321 ; PÓG, p. 332). E isso se dá porque, no estágio primitivo em que nos encontramos,
os sereshumanos não podem alcançar essetipo de consciência; elestêm uma identidade
acríticaimediata com a lei; e visto que, nessecaso,a lei é dupla, temos dois tipos de
'caráter"; as duas leis ganham expressão em diferentes tipos de gente (quer dizer, em
homens e mulheres), cada um dos quais está total e acriticamente identificado com o seu
partido. Consequentemente,Antígona e Creonte debatem a questão do sepultamento
de Polinice, cada um convicto de estar totalmente certo.
O caráter trágico inerente a esseestágioda SÍ #cóÉe/firrefletida é do tipo que age
apenas semiconsciente do que está em jogo. Ele vê apenas uma lei; não vê a outra, que
estáligada àquela, cuja violação resideno cumprimento da primeira. Ele é cego, mesmo
estandode posseda visão,como Édipo, que não conseguever seu pai no estranhocom
quem luta, nem suamãe na rainha que toma por esposa(/U, p. 324 ss).
zo4 PARTE li l FENOMENOLOGIA

Não obstante, a conexão está aí. O protagonista, tendo ofendido os Deuses, não
pode mais negar a sua própria ação. Realmente, é dele, e é ele quem sofre todas as
consequência; ele é plenamente responsávelpor sua ação porque a 6ezcom plena deter-
minação, mesmo que não pudessevislumbrar todo o seu significado. Porém, visto que
essasconsequências Ihe eram inesperadas, ele experimenta o seu z#moz/emenr,seu desen-
lace, como destino. Constatamos uma vez mais a ideia que Hegel tem do destino como
necessidade incompreendida, assim como foi pensada na discussão sobre o prazer, no
último capítulo. A JUo/xadesempenhaum papel importante no pensamento grego, pre-
cisamente porque os sereshumanos não alcançaram a consciência universal, e seu escopo
não é capaz de abarcar toda a amplitude da necessidade, que aparece, por conseguinte,
como algo disposto por uma vontade externa.
Na filosofia da religião, Hegel usao mesmoargumento de outro modo. O Deus gre-
go é um casamento perfeito do divino com a forma humana, exatamente como a cidade-
-Estado gregaune o indivíduo com o político. Porém, o preço a serpago é o mesmonos
dois casos;o serhumano não estápronto para a reconciliaçãocom o verdadeiramente
universal, de modo que os deuses são humanos à custa de serem múltiplos e particulares,
assim como as cidades são substâncias éticas verdadeiras, ao mesmo preço. Inversamente,
na mesmaépoca, o povo que realmente captou a plena universalidadedo espírito, os
judeus, são os que mais sentem a alienação do divino. Porém, o Gr/íf universal precisa
encontrar alguma expressão;e visto que os Deuses sãoparticulares, o universal reaparece
como uma necessidade
do destino, à qual até mesmoos deusesestãosujeitos.
Porém, é precisamente essaexperiência da necessidade que, em última instância, aca-
ba com o protagonista que está acriticamente identificado com uma das leis. Ele perece,
destruído por suaspróprias contradições; e os sereshumanos obtêm dessaexperiênciado-
lorosa a consciência que pode surtir efeito em todo o conflito. Porém, essaé a consciência
universal, isto é, uma que náo mais estáacriticamente identificada com uma sociedade par-
ticular e sua ética, mas que pensa em termos universais. Em outras palavras, a experiência
da contradição liberta os sereshumanos de sua fidelidade incontestada e espontâneaà sua
cidade particular. Porém, isso necessariamente representa o declínio da própria cidade, pois
toda a sua corça repousa na perfeita unidade de cidadão e substância ética. Em vez disso, os
indivíduos passama ver a si próprios como universais, mas, na mesma medida, como alie-
nados de sua sociedade. A cidade desamparada sucumbe diante do império universal que
se coaduna com essanova Eme.Porém, essaé a Eue da alienação: o novo império náo pode
expressarnas instituições e nos costumes citadinos os mais profiindos valores e aspirações
do seupovo; ele é demasiadovasto e diversiâcado. Ele apenasune aspessoasexteriormente,
sujeitando todas elas ao mesmo poder. O declínio da cidade-Estado não deixa em seu lugar
nada que Ihe seja comparável; deserdada,ela sucumbe diante do ataque violento do impé-
rio universal; mas isso prenuncia uma era de alienação em que o indivíduo da consciência
universal se encontra em oposição ao Estado que de modo algum o reflete, o qual é expe-
rimentado simplesmente como poder e coerção externos.
A FORMAÇÃO DO ESPÍRITO zo5

Fica um tanto vago nessecapítulo o modo como essecolapso de bato assumeforma


histórica concreta. Em outros lugares, na filosofia da história e na história da filosofia,
Hegel explicará o surgimento da consciênciauniversal com os sofistase Sócrares.No
próximo capítulo da .fZ', percorreremos a evolução conexa das formas religiosas.4
Aqui, Hegel pareceestarpouco preocupado em apresentaro quadro completo. Ele
não se esforçamuito para mostrar como o conflito trágico leva ao colapso histórico.
O único tratamento dado a essetema consta de uma passagemde surpreendente força
poética, em que ele reafirma que "o espírito manifesto tem a raiz de sua força no mundo
subterrâneo" (/T, p. 328; PÉG, p. 339) e que, ao desonrar os mortos, ele socapao seu
próprio poder. Em seguida, Hegel nos apresenta a imagem dos cães e das avesde carniça
maculandoos altaresde povos circunvizinhos com os restosdos insepultos, e essesvi-
zinhos vingando-se da cidade. Entretanto, nossa admiração pela beleza dessapassagem
não logra cegar-nos para a natureza esquemáticada explicação que está na sua base.
Hegel, então, acrescentaoutra derivação, em que ele toma como ponto de partida
a batalha entre a família e o Estado, entre homens e mulheres, entre os protagonistas
institucionais e os individuais das duas leis. Reprimida pelo Estado, a família e particu-
larmente suas mulheres revidam com formas sutis de corrupção As mulheres induzem
seushomens a exercer o poder mais em favor da dinastia do que em favor do bem-estar
público; elas aEmtam as mentes dos jovens da sabedoria dos anciãos; e, visto que essa
Juventude, por sua vez, tem de ser exaltada pelo Estado como sua defensora, a corrupção
dela tem efeitos desastrosos.

De qualquer modo, quaisquerque sejam os passosexatos,o espírito ético sucumbe


e dá lugar a uma era de alienação.A lei divina, anteriormente representadapelo indiví-
duo como sombra, saià luz do dia como o "eu" universal da consciênciade si. Porém,
esseindivíduo universal passaa existir numa sociedadeque de modo algum o reflete,
que é puro poder externo. Por isso, a sua afirmação do si-mesmo como consciência de
si universal é abstrata; a realidade exterior de sua vida está cora do seu controle, à mercê
do poder puramente externo. É verdade que, para ser exercido, o poder tem de estar
concentrado em algum lugar. Por conseguinte, no ápice do Estado está um imperador.
Porém, essenovo Estado universal rompeu com a substância ética, com o senso de limite
subjacente, com o qual as pessoasestavam totalmente identificadas. Ele nada pâs em seu
lugar, exceto o puro e simples poder. O reinado do imperador, por conseguinte, é o da
vontade caprichosa sem controle.
O regente também é uma consciência universal, mas, nesse estágio, isso quer di-
zer tão somente que ele rompeu com qualquer sentido de fidelidade incontestada a
um modo de vida comum a todos. A realizaçãoda universalidade eoi conquistada às

' Num dos seusmanuscritos iniciais inéditos da década de 1790, Hegel deu uma explicação ao estilo de
Montesquieu para o colapso da pcí/ü, em termos do aumento da polarização entre ricos e pobres (Nohl,
P. 214-31)
zo6
PARTE ll l FENOMENOLOGIA

expensasda ética política; a anterior desapareceu,e a nova ainda teria de ser peno-
samente desenvolvida.Encontramo-nos, por conseguinte, no reino do poder puro e
simples; a autodeíinição dos sujeitos como puros indivíduos em oposição ao Estado é
equilibrada pela força bruta do Estado que os mantêm na linha pela coerção e frequen-
temente os destrói no processo.
Logo, a consciênciade si só conseguemanter o seu sensode integridade mediante
um recolhimentoestratégico;
e essaé, por conseguinte,a erado estoicismo,que ve-
mos agora como uma forma histórica plena. Isto é, a consciência de si só conseguever
a si própria como universal e livre, definindo-se como realidadeespiritual puramente
voltada para dentro; a liberdade do estoicismo é a do pensamento que se abstrai das
condiçõesexteriores.Porém, exatamentecomo vimos anteriormente no capítulo sobre
a consciência de si, essaposição de recolhimento é insustentável e deve passar pela evo-
lução correspondente, pelo equivalente ao ceticismo, para chegar à consciência infeliz.
A época romana presenciou o desenvolvimento dos direitos de propriedade indivi-
duais: no plano legal,estamosdiante dos primórdios do reconhecimentodos direitos
como inerentes à pessoa.Porém, essapessoa,como sujeito, estavaà mercê do Estado.
Consequentemente,o conteúdo externo que ela conferiu à suavida, à sua propriedade,
estavainteiramente à mercêda vontade arbitrária. Assim, a pessoaexperimenta, como
íez a consciência cética, sua total dependência em relação ao contingente e mutável, sua
inteira carênciade integridade.
E o resultadoé, como foi visto atravésde cada dialética, que o sujeito passaa situar
suaintegridadeem algo Geradelepróprio, ao qual sesente subordinadoe ao qual ele
aspira. Em outras palavras, ele "aliena" a sua integridade. Sob a disciplina dessa aliena-
ção (Ene#'fm2ang), ele experimenta a formação (B/&/a/zg) que lançará os alicercespara a
recuperação da liberdade num nível mais elevado.

A próxima seçãodo capítulo trata dessaera de alienaçãoe Gorrnação que se estende


do Império Romano ao período contemporâneo a Hegel. Porém, visto que Hegel não
estátentando apresentarum estudo detalhado na filosofia da história, o seu interesse
concentra-se, antes, no ponto culminante desseperíodo no século XVlll, ou seja, no
Iluminismo e na Revolução. Temos aqui, de forma condensada, uma interpretação he-
gelianacomplexa e rica dessesdois Eenâmenosque marcaram época,e é para eles que
dirigiremos o foco de nossa explanação.
Alienação consiste em que os sereshumanos não mais tentam definir a si próprios
como puro pensamento, que eles aceitam a sua identificação com a realidade social exte-
rior e, nessetocante, elessetornam, uma vez mais, iguais aos cidadãosda cidade-Estado;
mas diferentemente desses,eles experimentam essarealidade social como outra; eles não
sesentem óe/ i/có nela. Essaidentificação alienada, em contraposição à identificação feliz
A FORMAÇÃODO ESPÍRITO zo7

dos gregos, por conseguinte, não se expressa numa consciência explícita de unidade com
a sociedade;ela se externa, muito antes, em que eles devem aspirar o encobrimento da
fenda que existe entre eles e essarea]idade social, em que precisam renunciar à sua par-
ticularidade individual e acercar-seda substância essencialde suasvidas, servindo a uma
causamais ampla, que é o Estado. Essasensação de que a substância de suasvidas se situa
além deles é a essência da alienação, e a servidão, a disciplina e a autotrans6ormação que
ela inspira é o que forma os sereshumanos para o próximo estágio.
Com efeito, essaalienaçãoé um estágionecessáriona rota para a realizaçãofinal do
espírito; e, como tal, constitui uma mistura do real e do ilusório. De bato, os sereshuma-
nos dependem de algo maior, de um espírito que não seja meramente o do ser humano,
ao qual elesdevem, antes, dar sua confirmação. Porém, ao mesmo tempo, nesseGeirf o
ser humano deveria reconhecer-seplenamente, ele deveria sentir-se plenamente em casa,
uma vez que considera a si próprio, enquanto espírito finito, como emanação e veículo
do Geiff. Na faseda alienação, a relaçãode dependênciaé algo claro, ao passo que o
reconhecimento de si mesmo é turvo e obscuro. A sensação de estar ór/ /có no Absoluto
está presente unicamente de forma velada, na consciência religiosa, e é deslocada para
cora deste mundo, para um além.
A fasecom que estamos nos ocupando, por conseguinte, é a mesma que descrevemos
anteriormente como o período da consciência infeliz. Ela possui o sensopara a reconci-
liação, que é sentida como ausente, em outro mundo ou presente em tempos e lugares
remotos; é uma reconciliação obtida de outro lugar e da qual dependemos essencialmen-
te. Isso é parte da consciência de alienação.
Podemosconceber essaconsciênciacomo falsaporque não logra ver nossaunidade
com o absoluto. Porém, ao mesmo tempo, é correto negar isso, porque, nesseestágio,
os sereshumanos ainda não estão prontos; eles ainda não alcançaram a consciência
universalque reflete plenamente sua unidade como o Grisf. Por isso, a consciênciada
unidade como projetada em outro mundo constitui uma imagem distorcida do fato
verdadeirode que os sereshumanos,não obstante,têm de transformar a si próprios
pararealizarplenamente essaunidade. E a função da alienaçãoé prover o motivo para
essatransformação; é uma espéciede tute]a, durante a qual os sereshumanos são for-
mados para supera-la.
Na atitude básicada alienação,os sereshumanos sentem que suasubstânciareside
em algo fora deles e, em consequência, só conseguirão realizar a si próprios superando
a sua particularidade e conformando-se a essarealidade. Essa necessidadeé sentida
tanto por aquelesque voluntariamentea aceitam e tentam agir de acordo com ela,
quanto por aquelesque se ressentemdela e se opõem a ela, que são chamados por
Hegel, respectivamente, de consciência "nobre" (ede/müfk) e consciência "vil" (n/e-
der/z2cÓrik)[/U, p. 347 ss]. Dentre as realidades externas com as quais o ser humano
pode estar relacionado dessamaneira, Hegel menciona o poder do Estado c as "rique-
zas",o que é expandido para incluir a operação da economia como um todo; mas da
zo8 PARTE ll l FENOMENOLOGIA

sequência se depreende que outras estruturas podem desempenhar essepapel, como,


por exemplo, a de uma comunidade religiosa.
Ora, a essência
do desenvolvimento
sob a alienaçãoé que os sereshumanossão
formados para supera-la. E o resultado é que de dentro dessaalienação surge de modo
consequente uma consciência que "enxergou através" dessas realidades externas (estou
omitindo aqui uma grande quantidade de detalhes interessantesna dialética). Os seres
humanos desenvolvem-seaté o ponto em que são capazesde apreender essasrealidades
pelo que são,podendo ver o poder estatal e as riquezascomo fenómenos no mundo
como quaisquer outros, destinados a desaparecercomo quaisquer outros, sujeitos às
mesmas condições do tipo lega! e sofrendo as mesmas reversóes; assim, também, póe-
-se a descoberto que o aparentemente bom e sagrado estáassociadocom o mau, o vil e
o profano. Esse"insight" (.Ê7mi/cóí),
que se manifesta, num primeiro momento, como
desmascaramento de demandas pretensiosas, chega à sua culminância no Iluminismo.
O Iluminismo representa o início do fim da alienação, dado que nele as realidades
para as quais a piedade da consciência alienada está direcionada e às quais ela tenta se
conformar são reduzidas ao tamanho que lhes corresponde. Toda a realidade exterior é
objetivada, privada de significado espiritual e vista como um mundo de coisasmateriais
sensíveisesparramadasdiante de uma consciência científica universal. Estado e estrutura
religiosa deixam de ser realidadesque inspiram temor reverente, às quais o ser humano
deve se conformar, e passama ser simplesmente parte da matéria neutra do mundo,
franqueadas ao exame minucioso da consciência cientíâca e à sua disposição. A realidade
significante passaa ser uma vez mais o ser humano, ou melhor, a consciência científica
universal que, por conseguinte, tem dominado o mundo intelectualmente.s
O irfvolta a ser o centro dascoisas,e, não obstante, temos um estágio muito diferente
daquele do estoicismo, que também enEocou o iefcomo consciência universal. Clom efei-
to, essafoi uma casede recolhimento em que o irfdescobriu a si próprio cora da realidade
exterior e sem leva-la em conta; aqui, pelo contrário, a consciência científica afirma ter
enxergado através dessarealidade, e havê-la dominado intelectualmente e logo em segui-
da, como ainda veremos, na Revolução Francesa,ela afirmará domina-la por meio de sua
ação transformadora da realidade de acordo com a vontade universal. Entre estoicismo e
Iluminismo, situou-se todo o período de alienação e formação em que os sereshumanos
aprenderam a entender e ganhar algum controle sobre o mundo, tanto o natural quanto o
político. A consciênciacientífica da Era Moderna estána basedo Iluminismo.
A partir dessanoçãodo Iluminismo como concepçãoda realidadeque reduzestaao
tamanho que Ihe correspondeenquanto mundo de coisasmateriais sensíveispodemos
entender duas característicasbásicasde sua ideologia, destacadaspor Hegel. Em primei-
ro lugar, o absoluto ou Deus é reduzido à noção vazia de um ser supremo (Hegel usa a

' Hegel, por conseguinte,estácaracterizandoaqui o que denominei, no primeiro capítulo, de moderno


sujeito "autodefinitório'
r A FORMAÇÃO DO ESPÍRITO zo9

expressão francesa "é#? i#p me"), ao qual nenhuma descrição subsequente é aplicável.
Com efeito, toda a realidade particular passaa ser vista como meramente material e sen-
sível, e todas asdescriçõesparticulares só ganham significado quando interpretadas à luz
dessarealidade. De modo que qualquer tentativa de conferir conteúdo à noção de Deus,
descrevendo-o como pai, criador, atribuindo-lhe fitos na história, etc., tem de evidenciar-
-secomo totalmente incongruente, porque dependede que vejamosas relaçõesou os
aros em questão como corporificação de alguma significação espiritual. Temos de ver a
paternidade natural como trazendo consigo (de modo ideal) uma relação de amor e cui-
dado espiritual para aplicar essaimagem a Deus; temos de ver os fitos de Deus na história
também como sinais,como uma linguagem, e não exatamentecomo um conjunto de
mudanças materiais. Porém, a consciência iluminista vê o mundo como uma junção de
coisassensíveispuramente materiais; por isso, ele não consegueencontrar uma linguagem
para Edar de Deus nem conceber que Deus possa intervir na história. Se ela conceber
Deus de alguma maneira, é forçada a uma espéciede deísmo, a um culto do Ser supremo.
Ê claro que muitos -4z@'ürfr não creram em Deus de modo algum, mas para He-
gel não havia muita coisa separandoessesmaterialistas daqueles que acreditavam numa
suprarrealidade sensível.Com efeito, eles concebiam que alguma abstração, como, por
exemplo, a natureza ou a matéria, estariam na base da realidade em transformação do
mundo sensível.Porém, uma abstraçãoenquanto matéria, que não traz nenhuma das
descriçõesparticulares das coisasno mundo, é indistinguível de um substrato espiritual;
e um substrato espiritual sem descriçãoparticular é indistinguível do puro ser. Temos
aqui um eco da famosa dialética de abertura da Z(Üícízde Hegel, a do ser e nada; e a men-
sagem é a mesma: no final, todas as abstraçóes são iguais. Espiritualidade real é também
espiritualidade material.
A segunda noção ideológica do Iluminismo que Hegel converte em um dos temas cen-
trais dessecapítulo é a do útil, o conceito subjacenteao utilitarismo. Conceber dgo como
útil é concebê-lo como sem signiâcado intrínseco, residindo o seu significado, antes, em
servir aos fins de algo distinto. Essanoção do útil Hui naturalmente da visão iluminista;
de Eito, estevê o mundo como evito de coisasmateriais sem qualquer significado ulterior.
Essemundo neutro não possui significado para o ser humano, seja como expressãode algo
mais elevado, seja como corporificação da forma à qual ele deve se conformar para realizar
a si mesmo. Sendo neutras, ascoisasno mundo só ganham signiâcado servindo a algum
propósito humano. A única categoriaem que elaspodem ser enquadradas,no que concer-
ne ao seu significado para o ser humano, é a categoria do útil.
Por isso, o utilitarismo é a ética do Iluminismo. O utilitarismo é uma ética em que
os atos são julgados de acordo com suasconsequências, isto é, com sua relevância para
algum fim externo, daí de acordo com sua utilidade. Essaética é oposta a uma ética que
julga um ato por alguma qualidade intrínseca, como, por exemplo, sua corporificação
de uma dada virtude ou conformação a alguma lei moral. Tais propriedades intrínsecas
são postas de lado como algo sem sentido pelo Iluminismo, que aceita unicamente a
PARTE ll l FENOMENOLOGIA

realidade material e suasconexões regidas por leis e no qual náo há lugar para proprie-
dadesnormativas, como, por exemplo, virtudes, ou para uma ordem normativa, como a
que supostamente está na baseda ]ei natural.
Porém, para Hegel, a contradição oculta nisso é que a categoria do útil não tem
ponto de parada, sendo de aplicação universal. Algumas coisas podem ser julgadas úteis
para os meus propósitos, mas eu também sou uma realidade particular no mundo, não
havendo razãopara que meus propósitos sejam considerados fins definitivos. Eu e meus
propósitos, por sua vez, podem ser vistos como servindo ou desservindoaos fins de
outros, talvezaos da sociedadeem geral; e essesoutros ou a sociedadeem geral podem
ser vistos como servindo ou não aos propósitos de outros, digamos, dos membros dessa
sociedade,e assimpor diante. Estamosdiante de um mau infinito.
Hegel expressaisso ao dizer que cada coisa pode ser vista como em si, mas também
como para outro, isto é, como tendo apenasum significado instrumental. Não há es-
trutura da realidadesignificante que nos force a parar em algum lugar que expresseo
propósito final; ou, como formula Hegel, essacadeia de justificações extrínsecasnão
retorna para um ie/6 isto é, a uma subjetividade que abrangessetodo o desenvolvimento.
Cada entidade serve a um outro, e assim por diante aZ /nÚn/fzlm; e já sabemos que para
Hegel essasituação é profundamente insatisfatória. Deve haver uma ordem final de
coisas à qual servem todos os fins parciais, que abranja todos eles e com a qual podemos
nos identificar. Com efeito, só assim podemos realmente estar óe/ zznino universo. Na
cadeia sem fim dos propósitos parciais do utilitarismo, cada um de nós Eaza sua parte,
masacabamosservindo a um propósito externo com o qual não podemosnos identificar
como podemoscom uma ordem espiritual do universo do qual somosemanações-- e,
por conseguinte, permanecemos confrontados com um universo 6orâneo.
O erro básicodo Iluminismo é ter captado só meia verdade.Ele estácorreio em ter
desmascarado as pretensões de reis e igrejas, em ter constatado que a consciência cien-
tífica universal é capaz de interpenetrar plenamente a realidade exterior e que, por con-
seguinte, essaconsciência deveria ser considerada de grande relevância. Ele estácorreio
em perceber que, em última instância, a subjetividade racional é dominante. Porém. está
errado em pensarque essasubjetividade é simplesmente humana, em não deixar lugar
para um Ge/rf cósmico, exceto o encaixe vazio de um ser supremo. Com efeito, a sub-
jetividade humana só adquire dominância como o veículo dessesujeito maior. Os seres
humanostêm de aceitarque há realidadesigniâcantefora delese, em contrapartida,
eles podem sentir-se plenamente óe/ i/có, à medida que pararem de identificar a si pró-
prios apenascomo sereshumanos, vendo-se, antes, como veículos do sujeito absoluto.
O erro básicodo Iluminismo é rejeitar essatranscendênciae tentar alcançaressameta
unicamente a partir do ser humano; ele tenta tornar a subjetividade humana dominante
de modo exclusivo,em vez de torna-la participante da dominância do sujeito absoluto.
O Iluminismo passaa serigualado por outra visão que Ihe é simétrica,e que Hegel
chama de fé (GózaZ'e).Esta é uma forma da consciência religiosa que projeta a verdadeira
A FORMAÇÃODO ESPÍRITO

reconciliação entre espírito e realidade, só que para outro mundo. Essavisão captou o
Gatode que espírito e pensamento estão na base de toda a realidade (é claro que Hegel
estáEdandoaqui da fé cristã), mas não tem consciênciado seuobjeto como pensa-
mento. Antes, a K entende o Absoluto por meio de metáforas e imagens, um modo de
consciência que Hegel chama de representação ( Wox3/eZZang),
e, em consequência, ela vê
como outro mundo de realidadecontingentementerelacionadaaquilo que realmente
deveria ser visto como uma estrutura necessária deste.

Ora, a fé é simétrica ao Iluminismo porque se detém no reconhecimento do espírito


absoluto e de nossadependência dele, ponto em que o Iluminismo é deâciente; mas ela
não vê o papel essencialda subjetividade humana, que é a ideia central do Iluminismo.
Seu mundo transcendenteé fixo e impenetrável à razão humana ativa. A razão não é
capaz de passar facilmente por suasarticulações como o Iluminismo afirma fazer pelas
do mundo natural. Essasduas visões, por conseguinte, complementam-se mutuamente.
No entanto, cegasparaessefato, elasentram em conflito.
Ao montar o cenário para esseconflito, Hegel representaa B igualmente como um
resultado do período de alienação. Isso pode parecer estranho, visto que essaconsciência
religiosa é parte e parcela da própria eme de alienação. Essa "derivação" seria, então, ape-
nas um dispositivo artificial para permitir a Hegel discutir a batalha entre Iluminismo
e H como uma entre duas formas do mesmo estágio e não tanto como batalha entre
futuro e passado?E preciso levantar dois pontos antes de pular para essaconclusão.
O primeiro é que a fé religiosa contém, desde os próprios primórdios, certos elementos
dessedesmascaramentoda estrutura deste mundo que vimos na concepção do Ilumi-
nismo. SÓque ela os priva de sua significação não em benefício da consciência huma-
na iluminada, mas, muito antes, em favor da realidade mais elevada do outro mundo.
O segundoponto é que, aqui, Hegel não está falando da fé cristã em geral, mas antes
da forma mais espiritualizada da fé protestante que ele conhecia na Alemanha do seu
tempo e que Jáhavia sido influenciada em certo grau pelo Iluminismo. Numa passagem
muito eloquente(/U, p. 376), eledescreve
comoo espíritodo Iluminismo seinfiltrou
na teologia contemporâneainconscientemente,à medida que os pensadoresteológicos
começaram a emoldurar seu pensamento e a responder questões com categoriaspostas à
disposiçãopelo Iluminismo.
Essa descrição da osmose e do diálogo entre duas visões contemporâneas parece-
-nos estranha unicamente porque estamos muito mais conscientes do cenário francês,
onde realmente houve uma luta até o nocaute e à exaustãoentre o Iluminismo como
nova ideologia e a Igreja Católica, que se orgulhava de defender ideias vetustas (se a
sua teologia realmente era tão antiga assim, é outra questão). A situação 6oi muito
diferente na Aiemanha, e embora Hegel a tenha introduzido, ele não podia evitar uma
discussão desse diálogo.
ParaHegel, o diálogo é condicionado pelo fato de que ambasas partessustentaram
a mesma verdade, que elas, no entanto, perceberam de modo diferente e unilateral.
PARTEll l FENOMENOLOGIA

O bato de que, na raiz, elas são as mesmas, facilitou a impregnação da fé pelo Iluminismo;
e, uma vez que este não só impregna pacificamente a fé, mas também a combate, essasua
identidade básicaÊmcom que seusgolpes sejam certeiros. Porém, ao mesmo tempo, isso
abre o ]]uminismo para uma rép]ica que começa com um l# gzfagz/e[tu também].
Não reconhecendo a si mesmo no seu adversário, o Iluminismo tanto compreende
como entende mal a fé. O efeito básico disso é dissociar aquilo que para a & está es-
sencialmenteunido. O símbolo religioso, a estátua, a hóstia, o altar ou o que quer que
sejavisto pela & tanto como um objeto material quanto como o portador de algo mais
elevado são reduzidos pelo Iluminismo à sua dimensão sensível material. Ele acusaa
h de adorar apenaspedras ou pão. Ora, isso obviamente é absurdo; e, não obstante, a
acusaçãoé procedente; com efeito, quando a fé tenta examinar a naturezadessauni-
dade entre o divino e o meramente externo, ela descobreque não pode compreendê-
la, e particularmente que não pode compreendê-la com as estruturas intelectuais do
Iluminismo que ela gradualmente passou a aceitar.Por conseguinte, ela foi forçada a
constituir uma religião ainda mais "espiritual", em que as coisasde Deus estão mais
claramente separadas deste mundo.
De modo similar, o Iluminismo reduz o testemunho das Escrituras à condição de
documentos históricos; e mostra que, como tais, elas têm pouco valor comprobató-
rio. Porém, ele não vê que o seu valor reside no Fato de elas serem reconhecidas pela
consciência religiosa espontaneamentecomo válidas, mais do que pela força de sua
evidênciahistórica. Porém, essetestemunho do próprio espírito torna-se problemático
e, em consequência, incerto sob o embate das categorias do Iluminismo. Do mesmo
modo, o Iluminismo entende mal e, fazendo isso, transforma a ideia que a fZ tem do
sacrifício e da mortificação.
O ponto cortedo Iluminismo em sualuta contra a & consisteem que elejunta ideias
que a R mantém separadasem sua consciência. Hegel diz que, quando ele acusa a H de
inventar o seu objeto, ele assinalaque o ser humano reconhece a si próprio no Absoluto,
estáem casanele e, em consequência,pode-sedizer, em certo sentido, que provém de
suaprópria subjetividade.Essefato torna difícil para a R rebater a acusaçãodo Iluminis-
mo, rejeitando-ai//mp#fiffr. Porém, obviamente também é verdadeiro que o Absoluto
estáalém do serhumano; esseé o complemento essencialsemo qual temos só meia ver-
dade. É muito estranho que Iluminismo igualmente caçaalusão a isso quando Eda da &
como algo impingido às pessoaspor um sacerdóciointrigante. Porém, essameia verdade
por si só é ainda mais absurda, diz Hegel. Uma pessoa não pode de Fato ser enganada
numa matéria tão fundamental (,fU, p. 380). Ê absurdo concebera religião como pura
invenção em que as pessoasirão crer; a não serque a religião tenha evocadoalgo nessas
pessoas,elas jamais a teriam aceito. Na visão de Hegel, a religião deve sempre ser vista
como uma representaçãovelada e obscura da verdade.
Porém, agora é o Iluminismo que não logra compor suas ideias sobre religião. Ao de-
nunciar a unilateralidade da religião, ele não conseguever a sua própria unilateralidade.
A FORMAÇÃO DO ESPÍRITO zi3

[)isso resu]ta para a re]igiáo uma teo]ogia "i]uminada", na qual Deus se converteu
num ser supremo nebuloso, mas que, diferentemente do Iluminismo descrente, anseia
por descobrir a Deus e unir-se com ele. Hegel obviamente estáse referindo à teologia
de pensadorescontemporâneos como Jacobi e Schleiermacher, que sentiram o peso da
crítica do Iluminismo e tentaram encontrar outra trilha até Deus atravésdo sentimento
e daintuição.
Entretanto, Hegel também parece estar afirmando uma espéciede sínteseentre os
dois na forma de um Iluminismo maduro que está pronto para passar à ação na forma da
Revolução Francesa. Porém, é difícil distinguir essaforma supostamente mais madura da
anterior. Ela tem diante de si o mundo como entendido na categoria do útil, e isso, diz
Hegel, providencia a realidade exterior independente que estavaEstando anteriormente
(/W, p. 400); masvisto que o Iluminismo premiêre ma iêre também era caracterizado
nos termos do útil, é difícil ver o que poderia ter mudado.
O ponto alto da passagempode ficar mais claro se ignorarmos essesuposto passo
adiante e enfocarmos a transição do Iluminismo para a ação revolucionária. Com efeito,
issopode ser compreendidode imediato: essaconsciênciavê o mundo como neutro,
como capaz de ser formado para adequar-se aos propósitos humanos. Nada há nele que
tenha significação intrínseca, que exija ser tratado com respeito e preservado; tudo pode
ser alterado e reformado de acordo com as necessidadese os objetivos humanos.
Ademais, essaconsciência não é a de indivíduos particulares, é a consciência universal
racional que obteve a primazia através dessaconcepção; por isso, seu propósito de refor-
mar o mundo será singular, racional e universal; não há razão por que o mundo devesse
ser o campo de batalha de diferentes propósitos; razão e universalidade prevalecerão.
E daí que se origina a ideia de criar uma sociedadehumana perfeita e definitiva
mediante um ato de vontade comum, de baixar o Céu para a Terra (.llF, p. 401) e es-
tabelecero absoluto no aqui e agora. Ora, Hegel pensa que essatentativa estábaseada
no mesmoerro mencionado anteriormente, a saber,que o Iluminismo não reconhece
qualquer realidade significante cora do ser humano, e a consequência disso evidenciará
quão desastrosa se revela essacontradição.

Hegel mergulha aqui numa das passagensmais interessantesda .ltF. O sujeito


cognoscenteuniversal que vê o mundo todo esparramado diante de si em forma de
objetosneutros cujo fiincionamento ele entendetotalmente não tem como não ser
capturado pela ambição de transformar este mundo de acordo com a razão universal.
Essa é a ideia da liberdade absoluta, da liberdade livre de qualquer obstáculo, até
mesmo dos obstáculos de outras vontades, porque a vontade em questão é a vontade
universal, sendo, portanto, a de todos os sereshumanos uma vez que são livres. "Para
ela [para essaconsciência] o mundo é simp]esmente sua vontade, e essavontade é
universal" (.l;& p. 402).
Além do mais, essavontade universal não deveria ser algum tipo de consensosupos-
to, ao qual outros chegaram por mim. Nesse mundo de liberdade absoluta não deveria
zi4 PARTEll l FENOMENOLOGIA

haver representação,mas tudo deveria querer em conjunto. Hegel está se referindo cla-
ramente à doutrina rousseaunianada vontade universal.
Acontece que essesonho de liberdade absoluta é impossível; e já vimos que a razão
fundamental disso é que ele não reconhece uma realidade significante independen-
te fora de sua própria vontade e, em consequência, está fadado à autodestruição. O
modo como essa diabética é elaborada nessa passagem sobre a Revolução Francesa é
extremamenteinteressantepelo fato de mostrar a articulaçãoentre a ontologia de
Hegei e a sua filosofia política.
O sonho da liberdade absoluta não pode tolerar quaisquer estruturas nem qualquer
diferenciação na sociedade em que as pessoasteriam diferentes funções em relação ao
Estadoou em que o Estadoseriadividido em estamentos.E de fato vemos,no Con-
frnro Soc/ / de Rousseau,a demanda de que não haja distinção entre cidadãosno que
concerne ao processolegislativo, que todos possam participar juntos e por igual. No
Estado de Rousseau,não há estruturas legislativas (embora estruturas executivas sejam
permitidas). Porém,para Hegel, isso quer dizer que não é possívelcriar um Estado
operante, porque um Estado operante requer que as pessoasocupem diferentes fun-
ções; e ele acredita, ademais, que, para que asdiferentes funções sejam apropriadamen-
te preenchidas,deve haver mesmo uma diferenciação em estamentos (Sande), isto é,
em classescom funções e papéis particulares dentro do todo. Em outras palavras, para
existir realmente na história, uma comunidade política humana, mesmo que tenha se
originado de uma vontade universal, tem de ser corporificada em algumas instituições;
mas instituições significam di6erenciaçáo,a inter-relação dos sereshumanos que estão
diferentemente relacionadoscom o poder.
E isso, por seu turno, significa que cada ser humano deve aceitar essaestrutura e
oferecer-lhe a sua lealdade, mesmo que ela exista independentemente dele, uma vez
que outras pessoas,outras vontades sobre as quais ele não tem controle, estão cum-
prindo outras funções igualmente essenciaispara o todo e que afetam a sua vida do
mesmo modo. Nem tudo que ele vivenda pode resultar de sua vontade; algumas coisas
devem seraceitascomo dadas,e aceitas com a mesmalealdadee identificação que ele
daria às suas próprias criações.
Porém, essaé a negação da ideia de liberdade absoluta; porque, de acordo com isso,
cada ser humano quereria tudo o que o Estado fez; criaria, por conseguinte, mediante
a sua vontade, a totalidade das condições políticas e sociais em que ele viveria; e isso é
incompatível com o tipo de estrutura continuamente diferenciadora que indica a cada
ser humano seu lugar e sua hnçáo.
É óbvio que aqui estamosa ponto de adentrar um debate vital dos tempos moder-
nos que ainda está longe de terminar. O ideal rousseaunianoretorna em nossosdias
em forma de uma demanda por democracia radicalmente participativa, pela "discussão
não estruturada", pela ação espontânea das massas.O lado hegeliano do argumento
não precisaser vinculado com as opiniões particulares de Hegel, como a convicção da
r zl5
A FORMAÇÃODO ESPÍRITO

necessidade
dos estamentos,que sãoclaramente insustentáveishoje em dia.ó Discutire-
mos isso mais plenamente na Parte IV O que deveria ser assinalado aqui, no entanto,
é que a visão de Hegel está profundamente enraizada em sua oncologia. A necessidade
que tem a comunidade política humana enquanto vontade universal de ser corporificada
numa estrutura estatal diferenciadaconstitui uma necessidadeontológica fundamental
do ser humano como veículo do Geir/.
Como resultado dessanoção fiindamental, Hegel constata que a aspiraçãoà liberdade
absoluta necessariamente engendra o Terror. Já que ela não consegue chegar a nenhuma
realizaçãopositiva, sua única ação pode ser a de destruir: destruir primeiro a constituição
e os estamentosexistentese, em seguida,quando nada do antigo restar para destruir,
sobra apenas a oposição entre a vontade universal e a vontade de indivíduos particulares
que não estão alinhados com ela. Como a sua ação só pode ser destrutiva, ela é impeli-
da a suprimir essasvontades. Porém, visto que não sobrou nenhuma estrutura, não há
mediação entre essasvontades errantes e a vontade do Estado, há somente uma oposição
absoluta; e a negação dessasvontades por parte do Estado só pode ser a da simples nega-
ção não mediada da liquidação. E, ademais, essaliquidação é privada até mesmo do seu
poder dramático de chocar,visto que o que estásendo suprimido (supostamente)não
é nada além da vontade particular completamente náo essencial."E assim a morte mais
fria, mais rasteira: sem mais significação do que cortar uma cabeçade couve ou beber um
gole de água" (/U, p. 406; PÓG, p. 418-19).'
Ademais, a existência do material a ser liquidado é virtualmente uma necessidade.
Com efeito, a vontade absolutamente universal é uma abstração; o governo de fato
é gerido por algum grupo, alguma facção,que é uma parte do todo, que tem uma
visão particular e que sofre a oposição de outros. Enquanto essafacção rege, todas as
demais são declaradas como veículos de vontades particulares. E mesmo quando não
há oposição declarada, a teoria da vontade universal requer que todos gz/e/xnmos aros
do Estado. Por conseguinte, torna-se crime até mesmo estar alienado da república em
seu próprio íntimo. Contudo, essaalienação pode ser ocultada, de modo que o regime
é impelido a tomar medidas contra as pessoasmesmo sem oposição declarada, ou seja,
apenascom base na suspeita. (É daí que Hegel tenta derivar a famosa Zo/Zri iz/sprcis
[[ei dos suspeitosa.)
O estudo de Hegel sobreo Terror também toca numa questãoque adquire relevância
para além do seu tempo. O terror stalinista possui algumas das mesmas propriedades que
Hegel destacouno terror jacobino: a liquidação que se tornou banal, a prisão com base
em intençõese outros desviossubjetivos,a destrutividade que seautoalimenta.

6Nem deveríamos identifica-lo com asformulações barrocas referentes ao fim do governo britânico na Índia
(Xd), de autoria de Bradley,adepto britânico de Hegel, com sua noção de "meu posto e seusdeveres".
r " Er ist abo der kiilteste,pbtteste Tod, abre mebr Bedeutungals chs Durchhauen einesKobLbauptsodor ein
Scbluck Wasenl
zl6 PARTE ll l FENOMENOLOGIA

De qualquer modo, para Hegel, a tendência para a liberdade absoluta termina na


contradição do terror, numa espéciede filria destrutiva que destrói o indivíduo que veio
libertar. Num dos planos, o resultado disso é que o Estado estruturado e organizado
reconstitui a si próprio (sob Napoleão), embora de um modo diferente, porque os cida-
dãos tiveram a experiênciado ser perto da morte, que, como vimos anteriormente, na
diabéticado senhor e o escravo,aproxima-os do universal. Hegel poderia ter derivado
daqui o desenvolvimento de formas mais elevadasdo Estado.
Mas essenão é seu interesse na /;lF; nesta, ele seinteressa principalmente por percor-
rer asdiferentes formas da consciência, particularmente aquelasque têm certa circulação
em sua época, e mostrar como elas se desenvolvem a partir de si mesmaspara dentro da
sua visão das coisas. Por isso, ela avança do Terror, não para outra forma política, mas
para um novo tipo de recolhimento da política que flui dele.
O Terror pode ser visto como a culminância anal da alienação e da formação
(B/22z/ng);
com efeito, ele implica um sacrifício final e uma negaçãofinal do sf/f
que vai além dos anteriores por ser a negação do íe/fenquanto realidade i/ mP/fc//er;
ele não é meramente uma transformação do ie/6 por exemplo, de um particular em
serviçal do poder estatal, mas a supressãodo próprio indivíduo pontual. Além do
mais, essasupressãonão advém da necessidadeexterior, mas da vontade universal
que ela própria aspira ser.
O passoque Hegel dá agora para além dessacontradição é a interiorização desse
drama. A nova forma da consciência aceita que a vontade universal só possa advir da
supressãoda vontade do indivíduo pontual, e passa,então, a realizar isso interiormente,
resolvendo viver de acordo com a razão universal e, em consequência, renunciando à sua
particularidade individual.
Ocorreu uma inversão.Ao invés de se empenhar por assegurarque suavontade indi-
vidual efetivamente tenha relevância para o universal, a nova forma de consciência exige
a renúncia à vontade do indivíduo, a sua mortificação visando entregar a si mesmo ple-
namente ao universal. Da moralidade política do Co fxa/a Sacia/ passamosà moralidade
da vontade pura da Cr#/ca zúzRaaío PMfíca.
Estamos aqui diante de uma transformação igual àquela que passada luta até a morte
para o relacionamento de senhor e escravo,na qual a negação imediata da morte é subs-
tituída pela negaçãoconstante; ou talvez uma analogia mais próxima seria a do passo
dado da relação "senhor-escravo"para a interiorização dessarelação no estoicismo.
Por conseguinte, a liberdade absoluta deixa a "sua eGetividadeque a si mesma se des-
trói" e volta-se para dentro, para uma nova consciência moral. Porém, essemovimento
de partida também é um movimento geográfico. A ]iberdade abso]uta "passa [...] para
uma outra terra do espírito consciente de si"(/m e/n zzm2erefZ,.z/zd 2eJ se/BJfóemze#/r
Gejrres)(/U, p. 410; PÉG, p. 422); e Hegel diz isso claramente num sentido tanto literal
quanto figurado. Na última seçãodo capítulo sobreo espírito, passamosda Françarevo-
lucionária para o espírito moral que está despertando na filosofia alemã.
A FORMAÇÃO DO ESPÍRITO zi7

A terceiraparte do capítulo sobreo Geiff leva-nosà Alemanhae ao movimento


intelectual que teve início com Kant e se desenvolveuaté o romantismo alemão, pas-
sando por Fichte. Temos a impressão de retomar aqui figuras já familiares de capítulos
anteriores, em particular a da Razão.
Porém, Hegel as aborda agora como figuras de um estágio superior. Paramos de tratar
o sujeito como indivíduo apenas No decorrer do capítulo sobre o Espírito, tratamos
do sujeito mais amplo, o sujeito de um povo ou uma sociedade,e do indivíduo em sua
relação com essefato. Estamos prestes a passar ao último capítulo, sobre a religião, onde
examinaremos qual é realmente o entendimento que o Gr/íf cósmico tem de si mesmo,
emborase apresentenuma forma velada e às vezesimperfeita. Nessecapítulo, o indiví-
duo com suaconsciênciareligiosaé visto como o veículo do sujeito absoluto. E é aí que
ele alcançaa sua identidade fundamental, mais fundamental que sua identidade como
membro de uma sociedade ou de um povo Porque, assim como o cidadão é o veículo
de uma vida mais ampla do espírito de seu povo ou sua sociedade, também os diferentes
espíritos dos povos (Uo& g?iífer) na história podem ser vistos como veículos da vida do
espírito absoluto que chegaà consciênciade si na religião (como também na arte e na
filosofia, como examinaremos mais adiante) .
Nesta seção sobre moralidade, estamos procedendo a essatransição do espírito de
um povo ou de uma sociedade,expressoem suasleis e instituições (o que Hegel cha-
maria mais tarde de "espírito objetivo"), para o espírito absoluto. Estamos considerando
visõesdo mundo em que o indivíduo é talvez inconscientemente -- o veículo de uma
consciência de si mais ampla. Encontramo-nos no limiar da religião.
Consequentemente quando a seção inicia com uma discussãoda filosofia moral
de Kant e Fichte, que já havia sido rigorosamente tratada no capítulo anterior, o
tema central é a z,í;áo Ze mz/mZo moral (ür mora/iscóe Wk/fa/zsc»az/wng) . Esse termo
é peculiarmente apropriado às visões de Kant e Fichte, visto que ambos sustentam
a primazia da razão prática. Para Kant, a razão era soberana em seu uso prático,
isto é, moral. Em nenhum sentido, ela deveria fiar-se nas sentençasda razão espe-
culativa para formular suas máximas. Pelo contrário, a razão prática foi capaz de
mostrar a necessidade,enquanto postulados, de importantes verdades-- concer-
nentesa Deus, liberdade,imortalidade que a razãoespeculativatentou em vão
estabelecer.Fichte, de modo ainda mais radical, derivou toda a estrutura dascoisas
das demandas da razão prática.
Assim sendo, a visão de mundo de Kant e Fichte pode ser chamada de moral. Ela
estáfiindada na moralidade e decorre de suas visões morais. Porém, reciprocamente,
sua moralidade exige ser completada por uma visão de mundo. Kant sustentou que os
postulados da razãoprática concernentes à existência de Deus e à imortalidade da alma
seriam inescapáveis; eles seriam requeridos pelas demandas da moralidade.
2,i8 PARTEll l FENOMENOLOGIA

Essanecessidadede completar um raciocínio moral que se pretende plenamente au-


tónomo, que sepretende não estar baseadoem fatos a respeito do mundo ou da vontade
de Deus, mediante uma espécie de acesso pelos fundos a um ser supremo e à imortalida-
de pessoal, mostra, na visão de Hegel, a inadequação fundamental da noção kantiana do
sujeito. O que estáem jogo nessaspáginasé a aspiraçãokantiano-fichteanada autono-
mia moral radical em sua forma unilateral extrema, na qual nenhuma concessãoé deita
à aspiração à unidade com a natureza.
O rompimento de Hegel com essavisão remonta à década de 1790. Em certo senti-
do, ele jamais assumiu essavisão, embora, como vimos, ele tenha esposado as ideia de
Kant em seusprimeiros escritos sobre o cristianismo sem entender plenamente o que
estava implicado. Porém, já muito cedo, enquanto ele ainda aceitava o ideal kantiano da
moralidade autónoma, Hegei ficou insatisfeito com o argumento kantiano em favor dos
postulados da razão prática.' Com efeito, essesargumentos refletem o profiindo dualis-
mo na filosofia moral de Kant.
TeToas de postular a existência de Deus porque isso é necessário para a realização do
Bem supremo Kant define o bem supremo como a condição em que a felicidade ou
plenitude (GZüc&feZlgÁe//)
é coordenadacom a virtude, isto é, distribuída entre os sujeitos
de acordo com a suavirtude. Isso notoriamente não seconsegueagora, quando os maus
frequentemente prosperam e os bons sofrem. Nem há qualquer razão na natureza que
nos dê esperançade que a felicidade e a virtude entrem em sintonia uma com a outra no
futuro, porque a natureza e a vontade moral,são folalmente independentes uma da ou-
tra. Porém, se somos obrigados a buscar o ben; supremo, temos de crer que ele é possível.
Já que só Deus enquanto poder superior é capazde realizaressaharmonia de mérito e
recompensa,a H em Deus é um requisito da moralidade.
Ora, esseargumento não apenasestá fundado numa separaçãoradical de vontade
moral e natureza, mastambém abre um abismo entre virtude e felicidade. Foi essadi-
cotomia tão pouco gregaque desgostouo jovem Hegel na passagemmencionadaante-
riormente. O guerreiro antigo entregava-sepela vida e em defesade suapó#i. Essaera a
sua verdadeira virtude, mas era ao mesmo tempo a sua plenitude. Viver para além de si
mesmo na vida dapó#s, viver para além de sua morte atravésda fama que obtinha entre
o seu povo: isso rra a felicidade. Ele não exigia pagamento por uma virtude que não
continha a recompensa em si mesma, nem qualquer consolação ( trair) ou compensação
(Enzicóá21gzznK) . A necessidade dessa compensação emergiu da degeneração( U?nZaróe-
nóe/f) dos tempos modernos. O ser humano que perdeu a virtude política e define a si
mesmo como um indivíduo vê a morte como perda total. Onde o guerreiro antigo ficava
feliz por morrer pela suacidade e viver em sua memória, o guerreiro moderno só con-
seguevisualizar sua morte em prol do bem como uma perda terrível a sercompensada
pelas recompensas após a vida.

8 Cf. Nohl, p. 70-71


A FORMAÇÃO DO ESPÍRITO zl9

Consequentemente, antes mesmo de examinarmos a afirmação.de. Kant de que o


bem supremo requer Deus, constatamos que a própria noção do bêlH'slifrelno, de roar-
ó&/zarfelicidade e virtude, pressupõeuma profiinda divisão, na qual o bem e a plenitude
humana são completamente distintos e relacionadosapenascontingentemente. E essa
divisão é inaceitávelpara uma visão expressivistado ser humano, que tem nos povos
antigos um de seus modelos.
Nessaparte da /;E, Hegel atacaos postuladosde Kant, embora a posição de Kant-
-Fichte seja apresentadaaí sem atribuição de autor, numa forma reconstruída,na qual
os reais postulados identificados não correspondem exatamente aos de Kant. E ele os
atacabasicamentemostrando que se originam de um profiindo dualismo que a filosofia
moral de Kant não pode evitar nem aceitar. Nosso ponto de partida é uma vontade
moral completamentedistinta da natureza, pois se não fosse,ela não seria plenamente
autónoma, extraindo realmente suas máximas de si mesma. Porém, ao mesmo tempo,
a harmonia de moralidade e natureza, de virtude e felicidade, é vista como necessáriae,
em consequência, tem de ser postulado como obra de Deus.
Porém, a divisão não é só entre moralidade e naturezafora de mim, no curso das
coisasno mundo. Minha vontade moral também estáem oposiçãoà naturezaem mim,
a meusdesejos,minhas inclinações,etc. E estatambém é uma oposiçãoque tem de ser
superada,visto que estou sendo chamado a cumprir meu dever,expressa-loem açóes,
torna-]o real. E issojamais será completo enquanto minha própria natureza não for
renovadaem conformidade com as demandasdo dever e eu tenha uma vontade verda-
deiramente sagrada.Disso decorre o postulado da imortalidade que abre a perspectiva
do progressosem íim rumo à santidade que não posso obter agora no mundo sensível.
Na opinião de Hegel, é nesseponto que a contradição se exterioriza. O postulado
da imortalidade é necessário porque temos de vencer nossa situação inicial complicada
em que a vontade moral está em oposição à natureza. Porém, essanão é meramente
uma situação inicial complicada, mas é uma situação necessária para a moralidade como
definidapor Kant. Com efeito, a vontade moral é definida em oposiçãoà inclinação; ela
desapareceria caso se fundisse com o desejo natural.

Pois se e]a]a perfeição dessa harmonia de vontade mora] e deselo] eeetivamente


ocorresse, a consciência moral se suprimida. Com efeito, a moxn#.Zzz& só é ronirié/arfa

moral enquanto essêncianegativa, para cujo dever puro a sensibilidade tem apenas
uma significação negativa, é só "/záa ra/Z#prme".(.f;E, p. 4 1 5; PÉG, P. 428)

Consequentemente, a ideia do progresso sem Êm até a perfeição refiete uma profunda


contradição, uma divisão do propósito. Essa unidade de vontade moral e desejo numa
vontadesagradapareceser um requisito e, não obstante, seela see6etivasse,
poria um fim
à moralidade. O meio-termo consiste em relaciona-la com um futuro indeânido rumo ao
qual estamossempre marchando sem nunca chega lá. Na "distância obscura da infinitude"
(d##ê& E?r/zezü Une dyícóêeir),essacontradição não pode ser tão claramente discernida.
PARTE ll l FENOMENOLOGIA

Essaé a contradição da concepçãodualista do ser humano. Definimos o que é es-


sencial ao serhumano, a vontade moral, em oposiçãoà natureza. Encontramo-nos no
ponto mais distante da divisão. Porém, essadivisão não pode ser sustentada. O sujeito
é essencialmente corporificado e, por conseguinte, a vontade moral tem de ser reconci-
liada com a sua corporificação, ela tem de se! realizada exteriormente. Kant possui uma
vaga noção disso, daí sua doutrina do bêin supremo e seus postulados da razão prática.
Porém, ele mesmo se privou de trazer essaideia à tona. Com efeito, ele definiu moralida-
de em termos de divisão e, em consequência, a aspiração à realização da moralidade tem
de sercontraditória. Aquilo que cumprissea vontade moral também a abolida.
Essavisão é fruto do modo rígido de pensar do "entendimento" (Uer3Znnd/)que se
aterra à divisão e à distinção e não é capaz de perceber que os termos divididos também
recuperam sua unidade. O entendimento é um modo de pensar que seacém àscoisasfi-
xadas,percebendo-ascomo imutavelmente distintas ou como idênticas. SÓa Razão (Uer-
/zwz!») é capaz de ver como a separação se origina da identidade e retorna a ela outra vez.
O pensamentode Kant representao entendimento em seumodo maisintransigente.
E por isso que ele permanececom a divisão e não é capazde supera-la.Consequente-
mente, o seu pensamentotem de incorrer em contradição quando tenta pensara reali-
zaçãoda moralidade. Porém, a contradição também apareceem outro ponto, quando
tentamos atribuir um co fezZdoà obrigação moral. Visando salvaguardar a autonomia,
Kant insiste em que a vontade moral é determinada unicamente por si mesma, em que
ela extrai suasmáximas não de algum fato externo ou autoridade externa, mas de si
mesma.Em consequência,Kant argumentaque aquilo que torna uma máxima de ação
moralmente compromissivanão pode ter nada a ver com o seu conteúdo substantivo,
mas unicamente com sua forma. Ela é obrigatória quando possui a forma da universali-
zabi[idade e, por conseguinte, quando ref]ete a vontade racional.
Hegel argumenta, em muitos lugares,que o critério formal kantiano não logra che-
gar a nenhum resultado determinado. Ele apresentou esseargumento no capítulo sobre
a razãoe também em outras passagens.P
E claro que muitos filósofos afirmaram que o
critério de Kant é vazio. Porém, para Hegel, essadeficiência origina-se da mesma causa
básica da contradição apontada anteriormente, ou seja, do dualismo entre autonomia
moral e natureza. Kant insiste em que o critério seja formal, visando salvaguardar a auto-
nomia da vontade. A vontade só pode recorrer à razão como seu guia. Porém, Kant não
tem a verdadeira noção da razão em que a Ideia se converte em seu oposto, Natureza, e
encontra uma corporificação que a torna manifesta. Consequentemente, a noção kantia-
na da razão é abstrata, puramente formal. E, exatamente por causa disso, o apego à razão
nada pode nos dizer sobre como agir. Para Hegel, a razão está vinculada com a estrutura

9 Por exemplo, no ensaio do período inicial em lona, intitulado "Über die wissenschaftlichenBehandlung-
sarten des Naturrechts". In: Sc#r Pf/z z r Bo#//É /zz/Rfcóíp&/Zasopóír. Ed. Lasson, p. 349 ss; também /;Z)
$ 258, e S\Z vol. XIX, p. 588-96.
A FORMAÇÃO DO ESPÍRITO

ontológica das coisas e isso proverá a orientação que necessitamos para dar forma à nossa
ação moral. Porém, para Kant, a razão é completamente distinta da natureza das coisas,
exatamente como a vontade moral o é da natureza. Ela, por conseguinte, é puramente
formal, e exatamente por isso a razão não pode prover qualquer orientação substantiva.
Nós, por conseguinte,incorremos numa segundacontradição, a do dever moral, a
qual Hegel passaa delinear.O serhumano é compelido pelo puro princípio do devera
agir de acordo com uma regra universal. Porém, para agir, tenho de ver esseprincípio
geral do dever exemplificado em deveres particulares, ates particulares que tenho de pra-
ticar. Porém, essaé a fenda que não pode ser transposta. Nenhum ato particular jamais
pode ser evidenciado como obrigatório, porque o princípio da universalizabilidade pode
de Eito ser satisfeito por qualquer coisa. Hegel constata que os protagonistas da visão
de mundo moral são forçadosa introduzir, nesseponto, outro postulado para lançar a
ponte sobre essafenda, são forçados a recorrer novamente a Deus, dessavez para conferir
a nossos deveres particulares a qualidade da santidade que pertence ao puro dever.
Esseúltimo postulado é mais dubiamente atribuível a Kant. Porém, Hegel não está
interpretando estritamente Kart nesseponto (cujo nome nunca aparece), mas, antes, o
que ele percebe como a lógica interna da visão de mundo moral, a qual ganhou expres'
sãocom Kant e, mais tarde, com Fichte. E o ponto que ele quer demonstrar aqui e em
outras passagensé que essavisão está varada de contradição, por estar fundada numa
divisão que ela não pode aceitar nem superar. E essacontradição sempre aparece em dois
lugares:quando consideramosa realizaçãoda moralidade e quando tentamos conferir
um determinado conteúdo à obrigação moral.
O resultado dessacontradição é que essamoralidade, que teve início com o prin-
cípio da autonomia como sua ideia central, é forçada a recorrer ao 2ezóiex macói/za.
A sua concretização é localizada num fiituro distante em outro mundo. A sua presente
experiênciaé a da divisão. E outra forma da consciênciainfeliz. Como formula Hegel
aqui, iniciamos com a aârmação de que há consciência moral. Porém, quando vemos
que essaconsciência moral em princípio não está reconciliada com a natureza e é incapaz
de aârmar de cada ato particular que ele realmente constitui um dever, temos de admitir
que entre os sereshumanos, que entre seressensíveisque devem realizara si mesmos
em fitos particulares, não há consciênciamoral. Ou que há uma, mas só em forma de
representação, e, ademais, uma representação taJ que não consegue se converter em um
pensamento conceptualclaro sem evidenciar suascontradições.
Esseé o destino de qualquer visão moral que separa moralidade e natureza, que
concerne meramente ao que deveria ser e não está fundada naquilo que é. Como Hegel
propõe ir além disso será examinado mais detidamente na Parte IV
Após uma devastadora passagem de dez páginas (/U, p. 421-30), na qual ele elabora
sistematicamente as contradições da visão de mundo moral e as dissimulações (W?r!-
fe#zózzge/z)
pelas quais ela passapara evitar vê-las, Hegel enceta uma teoria romântica da
consciênciaque em parte brotou de Kant. Essaimagem pode ser situada nesseponto
PARTEll l FENOMENOLOGIA

porque ela brota pelo menos em parte de um sensodaquilo que Hegel acha objetável
na teoria moral de Kant. Os românticos abandonaram a austera divisão kantiana entre
inclinação e moralidade e chegaram a uma visão da intuição moral espontânea em que a
lei do coração e a lei ética são uma coisa só.
Porém, isso não é apenasum retorno à caseanterior da certeza moral subjetiva des-
crita no capítulo sobrea Razão.Com efeito, aqui o sujeito tem certezade suasintuições
não exatamentecomo um indivíduo, mascomo alguém que estáem contadocom o
universal, com Deus. Porque a consciência romântica é uma consciência religiosa. Ela se
regozija de ter superado não só a fenda entre inclinação e moralidade, mastambém entre
ser humano e Deus. A comunidade dessasconsciênciasé o /aczzída vida de Deus (/;E,
p. 446). Nós, por conseguinte, temos uma visão próxima da de Hegel.
Porém, vimos no primeiro capítulo o modo categórico como Hegel difere dos ro-
mânticos, a despeitode toda a similaridade em suasaspirações.Ele não pede aceitara
noção romântica de uma unidade imediata com o universal ou a crença na intuição que
aspira a uma espéciede encontro inefável com Deus. Essaunidade só poderia ser produ-
zida peia Razão, que é capaz de comportar negação e separação dentro de uma unidade
e, em consequência, manter uma visão clara.
A crítica que Hegel faz a essateoria parte de seu caráter inspirativo individual, que
permite à consciência ter todo e qualquer conteúdo, desde que alguém sinta a inspiração
correspondente. Porém, isso é incompatível com a suposta natureza dessaconsciência
como porta-voz do universal, cujas inspirações são universalmente reconhecidas e, por
conseguinte,produzem o reconhecimento universal do se/fque se identifica com elas.
Pelo contrário, as açõesque procedem dessasinspirações colidem.
O resultado é uma mudança diabética. Não vemos mais a expressãoda pura consciência
na ação externa, a qual pode ser uma Gente de conflito e que, enquanto realidade exterior,
sempre pode ser vista de muitas perspectivas e julgada a partir de muitos pontos de vista. Por
exemplo, há quem possavê-la como ação moral por causade algum de seusaspectose há
outros que podem vê-la como o cúmulo do egocentrismo em virtude de outro aspecto Em
vez disso,a expressãoparadigmática da consciência muda para a linguagem, que -- Hegel
repete aqui é uma forma de existência exterior do Ge&f, a qual, não obstante, permanece
transparente,não possuindo a natureza multifacetada e obstrusiva da realidadeexterior e
permitindo que vejamos algo bem diferente e não pretendido pela última. E a expressão
transparentedo se6 pura identidade com o ir6 mas posto na objetividade(/;E. p. 443 ss).
Em consequência, a consciência espontaneamente pura passada ação para a con-
versação, à expressão literária de suas próprias convicções interiores, as quais ela jamais
poderá expressarem atos por medo de perder essesensode sua pureza e universalidade.
Essaé a figura da bela alma. Ela obviamente representaapenasmais uma estratégiade
recolhimento, e Hegel não gastoumuito tempo com ela. Ela produz a sua própria ani-
quilação e desaparece"como um nevoeiro informe que no ar sedissolve" (zà e/n g?i/a/-
tLoserDunst, der sicbin Lu#auljtõstbÇFE,p. 448\ PbG, p. 4óSh.
r A FORMAÇÃODO ESPÍRITO zz3

Porém, a atitude de Hegel em relaçãoà bela alma cuja descriçãopareceextraída


aqui especialmentede Novalis é muito mais ambígua do que implicaria o que aca-
a bou de serdito. Com efeito, essafigura nos traz à memória o Jesusdos manuscritosde
Franlçfiirt sobre o .Epá'íro Zo Crês/iózesmoe, por conseguinte, recordamosque Hegel
nem sempre julgou a bela alma tão duramente.
Em vez disso, Hegel revelaa importância que essafasedo pensamentotevepara ele
em tudo menosem Emera transiçãopara o conhecimentoabsolutopor meio de uma
reflexão sobre o dilema da pureza perxz/seficácia. Isso ocupa o restante do capítulo e
prepara a passagempara o conhecimento absoluto, embora primeiro tenhamos de traçar
essavisão religiosa, superior, desdeos seusprimórdios.
O dilema da pureza emerge inescapavelmente de nossa relação, enquanto entes par-
ticulares,com o universal.O serhumano agecomo um indivíduo, e sua individualidade
está inevitavelmente mesclada com a sua ação. Até mesmo o ato mais altruísta com a
maior significação universal é um ato em que o agente encontra algum tipo de satisfação
e que é matizado de alguma maneira com a sua subjetividade particular. Já vimos que
essaé uma das ideias hegelianas fundamentais, isto é, que toda realidade espiritual para
existir tem de ser corporificada, e corporificação ocorre em algum tempo e lugar, sendo,
em consequência,particular. O Gelíf só pode existir sendo corporificado em espíritos
finitos que são particulares. O preço da existência é, por conseguinte, particularização.
A tentativa de guardaro universallivre do particular visando manter suapureza,
como Eaza bela alma, é condena-lo à não existência. Os valores universais têm de aceitar,
por assimdizer, o sacrifício de ser corporificados em vidas particulares para que sejam re-
alizados. Porém, ao mesmo tempo, o particular deve sacrificar a si próprio. O particular
é o mortal, como vimos; todas as coisas particulares morrem ou desaparecem. Porém, o
Prior, serhumano particular deve como que morrer interiormente a fim de atingir o universal;
Por ele tem de reconhecer que o essencial em sua ação é a corporificação do Geisf universal
j:há e reconhecer que as características particulares de sua corporificação em sua vida cons-
tituem o inessenciale, em consequência, estão Eadadasa perecer.Ele já deveria estar re-
bl conciliado com esseperecimento,isto é, não colocando seuinteressee suaidentificação
essenciaisnessascaracterísticasparticulares.
Essanecessidaderecíprocade sacrifício do universal e do particular é o que Hegel
apresentaaqui, nas últimas páginas sobre o Ge/rf, na forma de uma espéciede dialoga
entre dois dos estágiosque já vimos, o da pura consciência que está segurade si mesma
e de seusates e a da bela alma que quer acima de tudo manter a pureza do universal.
A passagemé intitulada "0 Mal e seu Perdão". Por que o mal? Porque o particular e
sua afirmação são a essênciado mal, porque ele é o que separaos sereshumanos do
universal. Porém, essemai é inevitável, porque o Gefsftem de ser corporificado e isso
significa particularização. Essanoção da necessidadedo mal estána baseda interpretação
hegeliana da doutrina do pecado original. O pecado é original não em algum sentido
gemi-histórico, mas pelo fato de a existênciaparticular ser fiindamental para o espírito
zz4 PARTE ll l FENOMENOLOGIA

finito, e espíritos finitos terem de existir para que o espírito exista; e, não obstante, a sua
finitude é o que cria a divisão que tem de ser superada; é a essênciado pecado que separa
o serhumano de Deus.A unidade de Deus com o serhumano, por conseguinte,só pode
ser alcançada mediante a reconciliação que emerge do estado de pecado; deve haver o
ma], a existência particular, mas ele é superado quando o ser humano o nega, quando
vive para além dele, ou, em termos teológicos,quando pede perdão por ele; e, emendo
isso, ele volta a ligar-se à vida universal do Gelsf, estando, consequentemente, perdoado.
Essa necessidaderecíproca é apresentada no diálogo das duas consciências: a que
representao universal começa censurando a consciência particular atavapor sua traição
do universal. Ela a acusade dobrar o universal aos seus próprios propósitos porque
sempre é capaz de vislumbrar algum interesse individual em qualquer ato empreendido
pela consciência atava.Por conseguinte, ela acusasua interlocutora de hipocrisia, de ser
moral só em palavras.Essavisão obviamente é bastante desagradávela Hegel, e ele re-
truca imediatamente: visto que a bela alma não é capaz de corporificar a lei universal em
aros,demandados por sua natureza para que ela exista, é dessaconsciência que podemos
melhor dizer que seuserviço à moralidade é puramente verbal e que é hipócrita. Hegel
deixa clara a sua desaprovação em relação a essaposição proferindo alguns insultos extras
-- citando o dito napoleónico:"i/ /z.7 paJ 2e ÓeroJPOr jo ua&f zü cóamóre"lninguém
é herói para seucriado de quartos; e acrescenta:não porque o herói não sejaum herói,
masporque o criado de quarto é um z,.zZef de cóamZ're(/W,P 452 ss).
A solução é que ambos os lados admitam o seu erro e que necessitam um do outro.
O agenteparticular deve pedir perdão,isto é, deixar de ter apreço por suaparticularida-
de. Porém, ao mesmo tempo, o universal deve dar esseperdão, isto é, aceitar que ele não
pode existir exceto mediante esseagente particular e, em consequência, que ele é obri-
gado a perdoar. O resultado é uma nova consciência, a suprema unidade na oposição do
particu[ar e do universal. Estamos prestes a passar para o conhecimento absoluto; com
efeito, temos um sujeito particular pronto para renunciar à sua particularidade e viver
para além dela, e um universal que pensaa ser visto não como existindo totalmente além,
mas como necessitado do particular.
O que restaa ser feito é expor essavisão ontológica do Geiíf que tem de ser corpo'
rificado e tem de retornar a si mesmo. Isso nos será proporcionado pela filosofa espe'
culativa. Porém, essavisão também está contida numa forma menos transparente, qual
seja, a religião. O autoconhecimento do absoluto desenvolveu-sena evolução religiosa
da humanidade. Consequentemente, o último capítulo antes da conclusão será sobre a
religião; e para manter a prática usadaem toda a obra, começaremos da base,do início,
com a religião da natureza.
CAPITULO Vll

A rota até a religião manifesta

l
Com a religião ingressamos numa nova perspectiva, a partir da qual o desenvolvi-
mento do Ge/ff pode ser interpretado, junto com aquelasque vimos anteriormente:
consciência, consciência de si, razão e espírito (objetivo). Porém, essa perspectiva não
estásimplesmente no mesmo nível das outras. Pelo contrário, a religião é a perspectiva
da consciência de si do Geisf ou do absoluto.
Já vimos que, para Hegel, a realidade última que deve chegar à realizaçãoe plena
revelaçãode si mesmaatravésda história é Deus ou o Ge/íf cósmico, cuja corporifi-
caçãoé o universo, com o qual ele é, por isso mesmo, idêntico e, não obstante, não
idêntico. A plenitude dessaautorrevelação será alcançada na filosofia especulativa. Po-
rém, à semelhança de outros aspectos da realização última do Gelar, essaconsciência de
si do absoluto existe e tem de ser encontrada através da história numa Forma obscura
mais rudimentar.
Essaforma é a religião. Essaconsciência de si do absoluto, assimcomo a sua concreti-
zaçãoúltima na filosofia especulativa,devem ser corporificadas na consciência humana.
Porém, Hegel dá a entender que devemos ver a evolução da religião na sociedadehuma-
na como algo mais que apenas a evolução da consciência humana. Isto ela obviamente
também é, e temos registrado vários estágios dessa consciência humana religiosa em
nossapesquisasobre a consciência de si e o Ge/sf -- por exemplo, a consciência infeliz
ou o mundo suprassensível.Porém, também temos de perceber essaevolução como o
desenvolvimento de uma consciência mais ampla que a humana. A justificativa para isso
obviamente vem com a validação da realidade ontológica da noção hegeliana do Geisf.
A consciência de si do Ge/íf é inevitavelmente a consciência do absoluto que está na
basede toda a realidade. Porém, nas suasimperfeitas formas mais antigas, esseabsoluto
não é visto como em unidade com a realidade. E, em certo sentido, isso estácorreto,
porque essarealidadeainda não conferiu forma a si própria como faria atravésdo de-
senvolvimento humano na história a fim de tornar-se um reflexo adequado do absolu-
to. Consequentemente, a consciência religiosa mantém a distinção entre o sagrado e
o secular,bem como a tensão entre estes. E, da mesma maneira, essaconsciência de si
permanece inconsciente de si mesma enquanto ral, visto que a consciência humana, seu
veícujo, é vista como algo separado do objeto da religião e infinitamente inferior a ele.
zz6 PARTE ll l FENOMENOLOGIA

Porém, quanto maior a fenda que se percebeentre o sagradoe o secular,tanto me-


nos adequadaé a concepçãodo absoluto. Este é, na realidade,um sujeito infinito cós-
mico, cuja vida é corporificada na do sujeito finito. Consequentemente,a religião da
Encarnaçãoé a única realmente adequada,e até mesmo o cristianismo precisapassar
por uma evolução e uma transição para a filosofia especulativa para superar a alienação
remanescenteque vê Cristo como o único ponto de encontro entre o espírito finito e o
espírito infinito, em vez de ver esseponto na comunidade (Gemeim2e)
como um todo.
Porém, precedendo essareligião, temos uma série de outras menos adequadasna histó-
ria, incluindo as concepçõesde Deus como espírito, só que um espírito completamente
diferente e separadodo espírito finito (judaísmo, islamismo), ou asconcepçõesde Deu-
sescom forma humanaque, no entanto, carecemde universalidade(religião grega),e
remontando a concepçõesem que o absoluto nem é mais visto como espírito. Assim,
daremos início à diabéticado desenvolvimento religioso com o que Hegel chama de "re-
ligiões naturais", aquelasque veem o absoluto simbolizado por alguma forma natural, e
não como subjetividade livre.
Essas religiões inferiores são igualmente distinguidas das superiores pelo Eito de ne-
cessitarem recorrer à simbolização. Em última instância, [)eus apresenta-sea nós na
comunidade dos espíritos finitos; não há simbolizaçãonessecaso,pois Deus está pre-
sente e evidente. Essaé a marca distintiva do que Hegel chama de "religião revelada"
("c?#ãmóare .ReZkion",tirando proveito das conotações da palavra alemã, que também
significa "manifesta" ou "evidente"). Porém, quando Deus não é tão evidente, ele tem
de ser indicado simbolicamente. Quanto mais baixo o estágio da consciência religiosa,
tanto menos adequada a simbolização. Antes de Deus ser compreendido como espírito,
os sereshumanos usaram fenómenos naturais como seussímbolos.
Constatamos aqui uma vezmais que o nível da consciência religiosa estáligado ao ní-
vel do desenvolvimentohumano. Nos estágiosanteriores, o serhumano (espírito finito)
é um reflexo muito inadequado do Geisf (espírito infinito). No estágio que corresponde,
por exemplo, ao que vimos como certeza sensível ou, em outros níveis de descrição, à
diabéticado senhore do escravo,a consciênciahumanaainda tinha de tornar-seum
veículo do pensamento universal; Deus tinha de ser visto como totalmente outro. Nesse
estágio, o espírito ou a subjetividade nem mesmo sãovistos como superioresàs Garçasce-
gasda natureza, uma vezque não sãoconcebidos como universais. Consequentemente, é
natural retratar o absoluto por meio de algum símbolo extraído da natureza.
Constatamos, por conseguinte, que o desenvolvimento da religião recapitulará os
desenvolvimentosque vimos em outros níveis desdeuma perspectivamais abrangente.
Os estágios da consciência, da consciência de si e do espírito correspondem a estágios
da religião. Por conseguinte, a /U' constantemente retorna ao ponto inicial para cobrir o
mesmo terreno; mas o Eazsucessivamentedesde uma perspectiva mais central. O espírito
já representouuma mudança de perspectiva,pelo Eito de não mais nos contentarmos
em seguir a evolução das formas da consciência no sentido ordinário, mas as vermos
A ROTAATÊ A RELIGIÃO MANIFESTA zz7

,comodadas dentro de formas de vida coletivas; assim sendo, os estágiosque seleciona-


mos anteriormente poderiam ser vistos como aspectosdos estágiosdo espírito. Aqui,
uma vez mais, mudamos de perspectiva, visando dirigir o coco para o mais fiindamental
de todos os desenvolvimentos, o crescimento da consciência de si do Geisf.Tem-se a im-
pressãode que, para Hegel, os demais níveis de descrição nos propiciam aspectosdesse
desenvolvimento, pois é nessenível que é revelado o motor básico do desenvolvimento,
é neleque podemos constatar,em outras palavras,a racionalidade última por trás dos
estágiosda história o impulso do Geirf rumo à autorrevelaçáo racional. Talvez seja isso
queHegel quer dizer quando fda que asdescrições nessesoutros níveis estão para a des-
crição da consciênciareligiosacomo predicadospara o sujeito (/{F, p. 463).
Essarelaçãoentre "sujeito" e "predicado" talvez também permita que entendamosa
distinção que Hegel Eazentre religião e fé, mencionada no último capítulo. A B é a for-
ma da consciência humana que sente uma realidade para além dela e com a qua! ela está
de algum modo relacionada. A religião, em contrapartida, engloba aquelas facetas da
nossaconsciência que podem ser compreendidas como o entendimento (talvez confuso)
que o Grüf tem de si mesmo. Disso decorre que a mesma forma da consciênciapode
àsvezesser vista a partir de ambos os pontos de vista, ou seja,como a R do indivíduo
que vê a si próprio como muito abaixo do absoluto e andando uma realidadedistante
ainda não vista, e, ao mesmo tempo, como um certo estágio da consciência religiosa
ainda caracterizado pela cisão entre sagrado e secular.
Porém, os dois não costumam ser congruentes. Para Hegel, a religião é uma coisa
mais generalizada. O que reflete um dado estágio da consciência de si do Geirf é o con-
junto da realidade religiosa, isto é, não só a ideia do absoluto, mas também a vida religio-
sada sociedade como é vivida em seu culto. Tudo isso, e não apenas a teologia, reflete um
certo entendimento do absoluto.' A H, enquanto estado mental de um indivíduo, é, por
conseguinte,apenasum elemento na vida religiosa da comunidade em dado estágio da
civilização.E simplesmente um aspectoabstrato, um "predicado". Já que o único reflexo
adequadodo Ge/ff é constituído pelavida comum da pluralidade dos espíritosfinitos, a
vida religiosaé semprea vida de uma comunidade, sendo que a R enquanto estadoda
alma é uma condição do indivíduo, não importa quantos compartilhem dela.
Pode-seconjeturar, a partir disso,que Hegel não estáterrivelmente preocupadocom
o drama da R. De fato, a fé como forma de consciência do indivíduo que vê a si mesma
separadodo absoluto (e, em consequência, também da comunidade [Geme/m2e]em que
o absolutovive) é o reflexode uma vida religiosa que ainda não chegouà plenitude. Na
religiãoúltima da autorrevelação
total do Griíf, não haverialugar paraa fé. Em termos
ideais, a religião transcenderia a K.

' Essadistinção entre religião como uma forma total de vida e teologia desempenhaum papel importante
no pensamento de Hegel desde o início, corno vimos no capítulo 11, na discussão dos manuscritos fragmen-
tários do seuperíodo em Tübingen.
zz8
PARTE ll l FENOMENOLOGIA

Começamos com a religião natural, isto é, a religião para a qual o absoluto é simples-
mente ser.Como ser absoluto, ele estáseparado de todas ascoisasparticulares; ele é o re.
u.. de tudo e, não obstante, intocado pela particularidade das coisas.Por conseguinte,

Hegel o ve .r:presentado,por exemplo, pelo zoroastrismo mais antigo, a re igião da luz


toda 'ubu culari puro ser aostraido de toda pmticularidade, e ergo é aquilo que consome

. O que estáEstando aqui, obviamente do ponto de vista hegeliano, é o vínculo entre


absoluto e mundo, o desenvolvimento necessáriodas coisas a partir de um primeiro
principio; sem isso, o mundo não tem a estrutura necessária, é apenas "um logo carente-

: : li :l:lS$1X ll;&tG
expressa a sua natureza interna.

No entanto, como poder (M/zrór) negativo que destrói toda particularidade, essa
substânciajá é em essênciaum ir6 e, por conseguinte, nós nos desenvolvemosnormal.
mente rumo a uma religião do /;ãxl/Case/ [ser-para-si].Porém, ainda não chegamosà
ideia de um se/funiversal;encontramo-nosno estágiodos muitos seresdivinos; e estes.
ademais, são sujeitos muito imperfeitos: os sereshumanos tomam imagens de plantas e
animais como seus deuses. ' '

Porém, a batalha resultante entre povos que seguem essesdiferentes deusesnão t.az
nada; subjetivamente, sendo um poder negativo, ela só é capaz de destruir. Por isso, de-
vemos mover-nos para um estágio mais elevado, em que o poder transformador da sub.
jetividade alcança expressão duradoura através de suas criações. Temos, assim, a religião
do artesão. Essa transição lembra muito a que o escravo experimenta em seu trabalho
disciplinado.Com efeito, sob um impulso externo, o escravoembarca numa rota que o
leva à sua própria transformação. -'--' "a -v-d q

E, assim,com a religião do artesão,Hegel está, nesseponto, pensandosobretudo no


Egito antigo.
Em vez de apenasencontrar uma imagem para o seu Deus na natureza, o artesão
é impelido a dar-lhe forma em pedra, na arquitetura e na escultura. Dessemodo, ele
Ja se encontra na rota para uma concepçãosuperior de Deus, visto que uma realidade
tran,, -.fada nos propicia uma imagem mais próxima da realidade 'io espírito do que
a que pode ser propiciada por algum ser simplesmente natural. Porém, ao bater-secom
o seu material, o.artesão,num primeiro momento, não tem consciênciade que a única
imagem adequada que pode satisfazera sua busca é a da subjetividade livre. Ele labuta e
passapor uma boa quantidade de estágios intermediários, nos quais representa monstros
estranhos, meio humanos e meio animais (esfinge), antes de finalmente chegar à dará re-
presentação do espírito que ele busca, a saber, a forma humana. Ao debater-se com o seu
A ROTAATÉ A RELIGIÃO MANIFESTA zz9

meio,o artesão,sob o impulso que ele não entende, é como o escravoe, de maneira se-
melhanteao que sucede com este, a transformação que ele provoca na matéria é também
a transformação do if/6 de modo que ele acaba chegando à religião superior, à religião da
arte,na qual os sereshumanos cultuam com clareza uma imagem plenamente adequada
da espiritualidade. Em outras palavras, ao transformarem o seu material, tanto o escravo
quanto o artesãoalcançam uma consciência superior que os capacita a entender retros-
pectivamente a significação do que estavam fazendo, e a trabalhar com consciência clara,
onde antes eles operavam somente por instinto ou por imposição de fora.
Essanova religião é a dos gregos,e é a religião da arte. Retomamos aqui a uma das
interpretaçõesmais apreciadasde Hegel. O período dos gregos é o único período feliz
emque os sereshumanoschegamà reconciliaçãocom o absoluto, com a naturezae com
a sociedade. Essestrês níveis estão obviamente interligados. Os sereshumanos veem o
absoluto sob o aspecto de um ser antropomórfico, como eminentemente representável
por uma estátuacom forma humana.Isso serefiete no fato de sentiremo divino não
comoalgo completamente diferente e fundamentalmente misterioso e incompreensível.
Essasensaçãodo estranho e imperscrutável é refletida, antes, pelas monstruosas formas
metadeanimais apresentadascomo [)ouses em outras cu]turas mais antigas. Hege] diz
que com os gregos essasformas animais são postas de lado ou claramente degradadas a
simplessignos (/;E, p. 483). Porém, isso ao mesmo tempo reflete uma sensaçãode estar
em casano mundo natural; de que o divino em forma humana deteve as imagens mais
antigasdo numinoso que seinspirou em outras formas naturais para expressaro seu ser-
.outro. Tudo isso está refletido na vitória sobre os Titãs:

A essênciacaótica e a luta confiisa do livre ser-aí dos elementos -- o reino aético


(zZnwni/ #rÃe Rfifó) dos Tiras são vencidas e expulsas para a orla da realidade
que se tornou clara a si mesma,para os turvos conâns do mundo que no espírito
se encontra e se acalma. (/W, p. 477; PÉG, p- 494)

Porém, essasensação de estar "em casa" vincula-se estreitamente com a sensação de


unidadecom a sociedadede cada pessoa,tema que discutimos no início do capítulo
sobreo espírito. De Eito, o indivíduo sente-seplenamente refletido em sua sociedade,
senteque sua atividade é simplesmente uma corporificação do seu éfóos,e que esseéiÁoi
é a substância da qual ele depende. Ora, essa sensação de ser um com a sua sociedade
medeiaa sensaçãode afinidade com o divino, porque o Deus é, por seuturno, o deusde
um dado povo ou de uma dada cidade, tanto quanto expressaalguma realidade cósmica.
A aânidadecom a cidade e a afinidade com Deus andam juntas e reforçam-semutua-
mente.Ambas refletem uma certa forma de vida, a do cidadão livre no Estado. Estamos,
portanto, prestesa visualizar uma consciência religiosa que acompanha o "espírito ver-
dadeiro" do último capítulo.
Porém, as duas formas de afinidade repousam sobre a mesma condição, o que no
fim acaba sendo urna Eà]ha Eata]. Exatamente assim como o ser humano só se identifica
z3o PARTEll l FENOMENOLOGIA

com a cidade circunscrevendo-a a um Estado particular, sendo, em consequência, paro-


quial, assimele só se sente unido com uma divindade que não é sujeito absoluto, mas
apenasuma subjetividade divina entre muitas. A reconciliação da história grega não é a
reconciliação final, mas apenas um prenúncio dela; seu destino é perecer, solapada pelo
crescimento da consciência universal que constitui o inevitável estágio seguinte e mais
elevado na rota para a reconciliação total do Ge/ff consigo mesmo.
E a derivaçãodessecrescimentodo indivíduo universal que Hegel demonstra nessa
seçãodo capítulo sobrea religião. Como vimos em outra passagem,a noção de um uni-
versal paroquial estáestreitamenteligada com a ideia do destino. Acima dos Deuses,o
absoluto singular, que é apenas vagamente presumido nessa religião, aparece como uma
corçaainda maior do que eles,só que necessariamentecomo uma força impessoalque os
constrange a partir de cora, a saber, como destino. Isso será relevante na derivação Gesta

nesta seção, assim como a tragédia grega também será.


A ideia básicapor trás dessasderivaçõesé esta: como já vimos, o universaltem de ser
corporificado em alguma forma particular, mas essaforma sempreé mortal, de modo
que o universal tanto a negaquanto a póe. A única reconciliaçãopossívelchegaquan-
do a forma particular entende e se identifica plenamente com esseprocesso;quando
o indivíduo particular reconheceque a sua própria mortalidade é parte inseparávelde
uma ordem que ele aspira corporificar. Nessecaso, a morte não vem de Gola,não é algo
fundamentalmente diferente e incompreensível que Ihe sobrevém; antes, ela é, em certo
sentido, uma concretização desejadadessamesma corporificação.
Entretanto, no casode um universal paroquial, temos uma entidade que também tem
de ser corporificada para existir e cuja corporificação, em consequência, deve perecer. Po-
rém, sendo paroquial, esseuniversal não é capaz de compreender em si a racionalidade
de sua própria morte. Ele é, portanto, eliminado por algo diferente e incompreendido;
ele percebe essamorte como um destino inescrutável.
Com efeito, os deusesparoquiais da Grécia são identificados com certas reali-
dades efémeras,com determinada cidade; eles não sáo totalmente idênticos com o
espírito universal. Se fossem, não poderiam ser atingidos pelo fim de determinadas
cidades e de Fatoentenderiam essefim como necessáriopara o desdobramento do
espírito universal. Porém, um universal paroquial sucumbe junto com a realidade à
qual estávinculado; diferentemente do Ge/if realmente universal, ele não sobrevive
a ela. Consequentemente,
os deusessãovistos como sujeitos a um destino cego,
exatamentecomo sãoos sereshumanos; sendo que, mais tarde, na teologia cristã,
isso será tido como a divina Providência; isto é, o "destino" não é mais cego, e Deus
está acima dele.

De modo similar, aspersonagensda tragédia sáo paroquiais, como vimos no capítulo


anterior; cada um expressasó uma parte do universal; em consequência,eles também
perecem diante da necessidadeque não conseguem entender. E essaparoquialidade das
personagense, em consequência, da ética familiar e estatal está, ela própria, vinculada à
AROTA ATÉA RELIGIÃO MANIFESTA

paroquialidade da cidade; com efeito, é só na cidade baseada na lei universal que essas
duas contes do direito cessam de conflitar e são reconciliadas.
a A reconciliação da civilização grega, por conseguinte, está fadada a estilhaçar-se: e,
lo não obstante, ela possui para Hegel uma beleza e Emanação especiais. Porque, di6erente-
Hente da soluçãosuperior que a sucederá, ela não é dependente do pensamento racional
plenamente explícito. As normas universais da razão só podem ser levadas à realização
plena nas vidas humanas mediante a penosa conquista da consciência racional. E verda-
de que a reconciliação também existe em forma de representaçãona religião cristã que
sucede à grega; mas ela não tem como chegar à plena expressão na história ou mesmo na
consciência sem os recursosdo pensamento racional explícito.
Em contraste, a reconciliação temporária da Grécia antiga poderia ser e Goicorpori-
ficada completamente no sentimento espontâneo. [)i6erentemente da nossa civi]ização
superior, cujas ideias básicastêm de ser expressasna religião e na filosofia, a base da
civilização grega [oi expressa na arte. A arte é a ideia em forma sensível; e essaé a Forma
mais adequada à civilização grega, a reconciliação do Geííf consigo mesmo, baseadano
sentimento não refletido. A religião dos gregosGoi,por conseguinte, uma religião da arte.
Antes disso, a religião ainda contivera um profiindo mistério que não podia ser plena-
mente expressoem suasformas artísticas, e, depois, a religião mais elevada foi expressa
de modo bem mais adequado na teologia e, de fato, na filosofia. Os gregos foram os
únicos que tiveram uma religião cuja expressãoparadigmáticaconsistiu na arte. [)aí o
charme imperecível da era da "religião da arte"(XümifreZ@lon).
A análisede Hegel percorreos estágiosem que essareligião da arte desmoronae
suasimagens do divino perdem sua substância e são absorvidas pelo fieis/ universal, de
um lado, e pela consciência de si universal, de outro. Trata-se de dois desenvolvimentos
relacionados, mas, nesseponto, Hegel os separa: o desenvolvimento da religião grega é
visto como o crescimento da consciência de si, que 6oi constatado atravésde todas asde-
mandas do divino e das demandas éticas correspondentes da vida pública (Sí##cAêeir),
chegando a ver que essaconsciência humana reside por trás de todos essespoderes su-
postamente superiores. Ela chega a uma concepção um tanto parecida com aquela a que
o Iluminismo chegoureferenteà origem humana dos deuses.Na opinião de Hegel, essa
consciência é a da comédia da era de AristóEanes, que trata com ironia as demandas dos
deusese dos plebeus, que antes eram tidos como última instância.
O Ge/íf universal, em contrapartida, é exaltado na religião judaica. E nesta ele tam-
bém demanda uma reconciliação com a subjetividade, que ocorre na Encarnação. Esseé
o segundo passo, que é necessário após o primeiro, representado pelo desenvolvimento
acima descrito da religião grega. Com efeito, não basta desmascararos fusos deusespa'
roquiais em nome da livre consciência de si; sozinha, esta é vazia, a não ser que consiga
encontrar uma realidadeexterior que refeitaplenamente o que ela veio a ser e na qual
ela pode, por conseguinte,reconhecera si mesma.Abandonada à própria sorte, ela só
pode naufragar no sentimento infinito de perda deixado por um mundo dessacralizado.
PARTE ll l FENOMENOLOGIA

Porém, a única realidade exterior que ela pode aceitar é aquela que reflete o espírito
universal e, ademais, o espírito universal em unidade com a consciência de si. Esta ela
rra n a TI n r'n-pn annA
h.llb\JA [ LI a lla L=]]\HCLX ] ]a.\.a.\J.

Porém, essepasso está reservado para a próxima seção, sobre a religião revelada.
Acompanhemos, primeiro, os estágiosda religião da arte. A primeira realidade posta é a
expressãodo divino, dessavez em forma humana, ou seja,por uma estátua.Trata-seda
imagem do divino enquanto subjetividade livre, com a qual o ser humano sente afinida-
de. Porém, assimcomo ela está não basta, porque se trata simplesmente de um objeto em
oposição aos sereshumanos para quem ela é Deus. Os sereshumanos aspiram tornar-se
um com o [)eus por meio da oração -- e aqui, uma vez mais, Hege] ressa]taa ]inguagem
como o meio de existência exterior da alma; não no sentido de traduzir alguma realidade
já existente interiormente, mas, antes, no sentido de corporificar uma realidade inter-
subjetiva que de outro modo não existiria. A unidade da forma divina e do hino de seus
adoradoresperfazem uma nova realidade, uma "obra de arte viva"(óesee/feiM# i/mero)
(.l;E, p. 488), que está mais próxima de representar Deus enquanto autossubjetividade
consciente. Podemos ver aqui, como já 6oi observado anteriormente, que para Hegel a
religião trata das concepçõesde Deus na teologia e mais do que isso; nela, estamostra-
tando do Deus que vive na comunidade, do Deus a quem se dirigem seusadoradores,e
não apenasde uma imagem estática.
Essefato de que a religião é mais que teologia torna-se ainda mais evidente quando
chegamosao cu]to, que é uma dimensão essencialda religião aos olhos de Hegel.: O cul-
to é aquela dimensão em que os sereshumanos buscam tornar-se unos com Deus. Com
efeito, toda religião contém alguma vaga noção de ser a consciência de si do Geifr uni-
versal, daí que a consciência finita está tanto separadaquanto unida com a consciência
infinita que ela cultua. Disso advém a necessidadede superar a separaçãoe retornar à
unidade subjacente. Esseé o papel do culto.
Hegel cita como culto, nesseponto, os sacrifícios da religião grega.O sacrifício os-
tenta a convergênciadupla de todo culto; o espírito finito póe de lado sua finitude para
seruno com o infinito; mas o infinito também desceda sua existênciameramenteuni-
versztl e, em consequência, irreal, e aceita a sua corporificaçáo no Gí'iff finito. Esses dois
movimentos são necessáriosporque o espírito finito só pode se tornar a corporificaçãa
adequada do Geiff infinito superando a sua particularidade. O nosso sacrifício aos deuses
é nosso ato de renunciar à nossa particularidade; mas a descida do deus para dentro da
vítima e o retorno da vítima até nós para que a consumamosé o passodo infinito para
a corporificação finita.
A religião, por conseguinte, vai além das concepções do divino em busca de formas
de experimentar nossa unidade com o divino, de fruir a nossa afinidade com o espírito
infinito (Gf/zzt# .fW, p. 484). Porém, simplesmente desfrutar os sacrifícios não basta,

2Como veremos mais adiante, no capítulo VIII. Cf em BRe/.


A ROTA ATÉ A RELIGIÃO MANIFESTA

porque o sacrifício consumido desaparece.Uma vez mais, procuramos por algo dura-
douro; e encontramos isso no culto incipiente de todo o povo. Chegamos aqui ao que
Hegel chama de obra de arte viva, como, por exemplo, no festival do povo inteiro ou no
frenesi das mênadespossessasou no atletismo.
Porém, isso muito rapidamente abriu caminho para o terceiro estágio; com e6ei-
[o, a obra de arte viva ainda carecede consciênciaplena, consciênciainterior; ou, na
medida em que há interioridade, trata-se da profundeza selvagem confilsa e misteriosa
das bacanais.Consequentemente, avançamos para o terceiro estágio, o da "obra de arte
espiritual", representadopela literatura.
Nesta, finalmente, obtemos o resultado que estávamos buscando, porque os três está-
gios da literatura, a saber, a epopeia, a tragédia e a comédia, elaboram a visão e a diabética
do que denominamos anteriormente de universais paroquiais até seu resultado inevitável.
Na epopeiade Homero, deparamo-noscom deusescuja individualidade é em gran-
de parte irreal, visto que não podem realmente afetar uns aos outros, sendo imortais.
A ideia subjacentede que a sua universalidadesó pode tornar-se real quando corpori-
ficada na ação humana vem à tona no entrelaçamento estreito da ação humana com a
ação divina na epopeia, assim que muitos resultados parecem originar-se de ambas, de
maneira tal que uma ou outra vai parecer supérflua. Nesse caso, os deuses são universais
paroquiais, carecendo da realidade concreta do ie/findividual; e o mesmo se dá com os
heróis, que são pintados aqui em tons exagerados. Porém, ao mesmo tempo, eles não
sáoidênticos a um ie/fverdadeiramente universal; eles estão,por conseguinte, sujeitos ao
poder do destino, pela razãoque vimos anteriormente.
Ao mesmotempo, o indivíduo realmenteconcreto, o bardo que entoa o poema épi-
co, encontra-se cora da história. O próximo estágio é, por isso mesmo, aquele em que
sejuntam essesdois extremos,a necessidadee o indivíduo concreto. Isso acontece na
tragédia,em que o personagemindividual encontra o destino não como algo contingen-
te e exterior, mas como algo que necessariamente flui de sua ação. Nesse ponto, Hegel
retoma a análise da tragédia que vimos no capítulo sobre o espírito. Cada personagem
corporifica um valor básico, o da cidade ou da Família, que não tem como não entrar
em conflito com o outro pelo qual ele é acionado. Uma vez mais, o princípio geral
subjacente é que ser corporificado e, em consequência, ativo na história significa sofrer
a dissolução definitiva; mas, quando se age com base em princípios verdadeiramente
universais,essadissolução é algo que flui como que da ação, e não algo que a nega.
O que, no entanto, não é o casoaqui: a ação, por conseguinte, não só leva à destruição
definitiva, masa uma destruição que não é consoante com os princípios da ação, que
não está reconciliado com a ação. A ação leva, antes, ao crime ao transgredir outra lei
diferente daquela a serviço da qual ela se encontra.
Formulado com outras palavras, poder-se-ia dizer que toda ação é em algum sentido
geradora de culpa por ser afirmação do particular e, em consequência, por separa-lo do
universal. Porém, no caso da ação que segue algum princípio universal, esseelemento
z34 PARTEli l FENOMENOLOGIA

da particularidade é cancelado, a Édta é expiada, em parte pelo Eito de estarmos seguin-


do o princípio e em partepela morte inevitávele já aceitado agentee de suaação.No
entanto, onde temos algum princípio paroquial, há realmente um crime, em que a ação
viola o direito, não só na maneira geral de afirmar a vontade de um ser particular, mas
também em alguma maneira específica. A única expiação possível nesse caso é desfazer
o ato ou renunciar a ele; mas visto que ele é imposto por princípio, o agente está numa
situação impossível. Ele caminha para uma morte com a qual não está reconciliado,
porque ela significa a negação do que ele defendia, e não a sua concretização.
Ora, essanegaçãoexterior está implícita no ato paroquial, exatamentecomo esteve
nos universais paroquiais que eram os deuses do panteão. A necessidadeinterior está
presenteo tempo todo, só que na tragédia ela é tomada em consideração;ainda não de
modo inteiramente explícito, mas no sentido da necessidadeexpressana forma da arte.
Não podemos explica-la inteiramente para nós mesmos, mas sentimos a inevitabilida-
de do crime. Isso também está refletido na dialética do conhecido e do desconhecido.
O herói agecom base no que ele sabe ou no que Ihe contam; mas já no fato de Ihe con-
tarem havia uma ambiguidade que ele deveria ter detectado. Por isso mesmo, o outro
lado de sua ação, o direito violado por ele, não é inteiramente desconhecidodele; em
algum nível, esselado é sentido por ele, exatamente como nós sentimos a conexão; e, em
consequência, ele não está totalmente isento de culpa.
Quando essanecessidade
é plenamente apreendida,chegamosa uma subjetividade
universal. Porém, para essasubjetividade, os velhos deuses perderam seu caráter numi-
noso. A tragédia já deu início a esseprocesso; eles passam a ser considerados irrelevantes.
A naturezaé reduzida ao que é consumido pela real consciênciade si que a desfruta.
Até mesmo as demandas da cidade e da família por fidelidade são solapadasquando a
consciênciauniversalolha por intermédio da piedadecívica particular e não observa
nada além da ambição dos vários líderes e do populacho. O fato de isso ser observado
obviamente é fruto não só de uma mudança da consciência, mas também de uma trans-
formação em andamento na própria vida cívica.
A religião da arte, por conseguinte, termina com o triunfo do consciente de si, cuja
certezade si o torna senhor de todas assuas investigações; toda universalidade retorna a
ele, e ele não reconhece nenhuma essênciafora de si mesmo.

Ora, essaconsciênciacósmicaé, num primeiro momento, uma consciênciafeliz;


masela é de fato uma consciênciainfeliz e se revelarácomo tal. Temosaqui uma
consciência religiosa que acompanha a dissolução da cidade rumo ao Recózlzz/síanZ,
ao estado universal que regeos indivíduos atomizados cuja situação era definida por
seusdireitos. Isso também corresponde à ideologia do estoicismo, que 6oi examinada
no capítulo sobre a consciência de si.
A ROTAATÉ A RELIGIÃO MANIFESTA ,35

O problema básico nessacase,como quer que seja descrito, é que o ser humano
alcançou a certeza de si, mas só à custa do recolhimento em si mesmo. Porém. visto
que o ser humano enquanto Ge/ff deve ter uma corporificação exterior para existir,
a certezade si que não é expressaem formas sociais e políticas exteriores não tem
nenhumvalor. O indivíduo universallivre é de fato o foguete da fortuna e dasforças
desencadeadas
pela selvageriapolítica. Sua certeza de si constitui o recolhimento a
umacidadelainterior, a do eu = eu, que não pode, no fundo, ser defendidae que, em
consequência, leva a uma consciência infeliz.

Na esferareligiosa, essasituação complicada básicapode ser descrita da seguinte ma-


neira:tendo dessacralizado
o mundo coradela mesma,a livre consciênciade si encontra-
-se numa condição arriscada,porque ela continua dependente dessemundo exterior.
sendo ele que determina a sua forma de vida e, em consequência, o que ela eeetivamente
é. Simplesmente reduzir o divino à consciência de si, como Eaza noção desmascaradora
do Iluminismo, e à consciência cósmica dos Antigos, constitui uma ação autofrustran-
te. A consciência de si não é capaz de sustentar a prerrogativa do divino, do Geü/, que
significa ser plenamente si-mesma em seu outro, ser a necessidade formadora subjacente
.'
à ordem racional do mundo. Pelo contrário, a consciênciade si só conseguese sentir
abandonadaà mercêde um mundo Eorâneoe, na medida em que vislumbra a salvação,
ela a descreve a partir de um ponto distante, como consciência infeliz.

Por isso, temos de retornar a um sentido renovado do divino como algo mais que
apenasa nossa consciência de nós mesmos. Temos de redescobrir um espírito cósmico
com o qual podemos nos relacionar. Porém, não estaremos simplesmente retornando
aonossoponto de partida na religião natural; algo foi ganho, e issoé o elemento da ver-
dadepor trás da consciência cósmica, a saber, que esseespírito cósmico não possui ou-
tro Zocz/ida consciência de si, não possui outro veículo, a não ser nós mesmos enquanto
espíritos finitos. Ele vive em e através de nós. Nós somos a sua corporificação. E verdade
que, como indivíduos particulares, também estamos em oposição a Deus ou ao espírito
cósmico; somos uma corporificação que constitui também uma negação. Porém, essa
.Oposição
é vencida pelo fato de sermos mortais, de que cada um de nós faz a sua parte
e depoismorre, enquanto o Ge/ff continua. Deus repara a imperfeição de sua corpori6-
cação,que consiste no fato de que essacorporiâcação se encontra em seresparticulares
finitos,descartandoessesseresem seupercurso e, em consequência,vivendo a suavida

U entendimento último que o Grirf tem de si mesmo advirá numa comunidade


n
=l:.==='==='1=::==':1i=;.:=:;1:.:1::t::
;l:lí;'==l
z36 PARTE ll l FENOMENOLOGIA

proposiçõesjuntas como verdadeiras por meio da razão especulativa. Essa comunidade


também apreenderia por que isso tem de ser assim, por que Deus não pode existir de
outro modo. Assim, exatamente como o ser humano necessitaDeus, isto é, os espíritos
finitos só podem alcançarintegridade ao seremalçadosà suavida cósmica mais ampla,
assimDeus necessitao ser humano, isto é, o espírito infinito nada é além de uma abstra-
ção,casonão sejacorporificado na vida de uma comunidade humana.
l lil Não está claro seHege] acreditava que ta! comunidade humana baseadana total cla-
reza do pensamento especulativo algum dia viria a existir -- razão pela qud usei tanto o
tempo fiituro quanto o condicional na passagemanterior. Porém, ela proporciona o ter-
mo final de um processode crescimentoque é precisoter em mente paraentender o que
veio antes. E isso se dá particularmente com o estágio que acabamos de alcançar, porque
a religião absoluta ou revelada, isto é, o cristianismo, reflete essasverdades básicas, mes-
mo que de uma forma obscura,a da "representação",
contrapostaà do pensamento.A
comunidade é a Igreja cristã que vive a vida de Deus através da graça. O Rorescimento
da Igreja cristã constitui, por conseguinte, ao menos o penúltimo estágio do desenvolvi-
mento do Gí'/fr, mesmo que jamais sejamos bem-sucedidos em ir além dele.
Isso prevê o pano de fundo para a transição a que chegamosagora. A consciência de
si universal que emergeda morte da religião da arte sente a necessidadede redescobrir o
Geisf cósmico, mas não pode simplesmente retornar à visão primitiva desse GeZsrcomo
serpré-subjetivo e, ademais, como um ser totalmente separado do ser humano. Ao mes-
1 11 mo tempo, há outra forma religiosa,que Hegel raramentemencionana /W, masque
l ocupa um lugar importante em suaspreleçõessobrea filosofia da religião, a saber,a do
judaísmo. Este igualmente representa um transcender dos universais paroquiais, mas à
custa de um abismo intransponível entre ser humano e Deus. Em certo sentido, o juda-
ísmo e a religião grega são complementares: um chega à afinidade do ser humano com
Deus, mas à custa do paroquialismo; o outro alcançaa verdadeira universalidade, mas à
custa de uma negação de toda e qualquer afinidade.
Porém, esseDeus enquanto espírito totalmente separadodo ser humano não pode
sero lugar de repousofinal do divino. Ver Deus de tal modo separadoé o verdadeiro
paradigma da consciênciainfeliz (e Hegel viu o judaísmo dessemodo em seusprimei-
ros escritos teológicos); de fato, Deus tem de viver sua vida através dos sereshumanos.
Daí a necessidadeque sente o ser humano posterior à religião da arte de recuperaro
absoluto de um modo não isento de afinidade com a consciência de si nem destrutivo
dela, de um lado, e, de outro, a necessidadeque sente o puro espírito universal do An-
tigo Testamentode encontrar um veículo na história humana, a qual foi satisfeitana
Encarnação. E pelo fato de a Encarnação atender como que às necessidadesdos dois
lados, de Deus e do ser humano, que ela é vista como originada da colaboraçãoentre
Deus e humanidade (atravésde Mana).
Hegel insiste na realidade da Encarnação como evento histórico e distingue-o das vá-
rias religiões de mistério que meramente /mag/ úxnm a presençado espírito no mundo.
A ROTA ATÉ A RELIGIÃO MANIFESTA z37

Em contraste, na Encarnação cristã, Deus está realmente presente num sujeito particu-
lar, que é "um real homem singular,sensivelmenteintuído" (/;& p. 509; PÉG, p 528).
Os crentes podem "ver e sentir e ouvir" a divindade.'
De início, é possível surpreender-se quanto a como Hegel pode Emer tal distinção en-
tre os termos de sua própria teoria. Porque a i/có Deus estáencarnadodesdeo início
em todos os sereshumanos, no sentido de que o ser humano é o veículo da consciência
de si de [)eus. O que muda na história entre as re]igióes mais primitivas da naturezae o
entendimento final na filosofia é que os sereshumanos tomam consciência disso ou que
Deus toma consciência disso através do ser humano. Mm, então, como se pode distinguir
uma Encarnaçãomeramente imaginada (nas religiões de mistério) de uma que realmente
aconteceu?Como bato, iicó, a Encarnação não aconteceu, pois ela é sempre verdadeira,
e não especialmenteverdadeirade um serhumano, Cristo. Como a realização,.@rí/có, de
que issoé assim, a Encarnação é de fato um evento na história humana. Como podemos
então distinguir o "imaginar como sendo assim" do "realmente sendo assim"?
Porém, Hegel insiste em que o peculiar a respeito da Encarnação é que os sereshumanos
não apenaspassam a vê-la dessemodo, mas que a própria substância "se exteriorizou de si
mesma(iicÉ/órrrieZ&sfe üze/í:?m)
e setornou consciênciade si" (FE.p. 506; P»G, p. 526).
A Encarnaçãoé única nessemodo: enquanto, para religiõesmais antigas,o divino era
visto com frequência como em certo sentido presente no mundo, habitando de algum
modo misterioso diferentes avatares,para o cristianismo Jesusé Deus, havendo uma
identidadeentre esseser humano e Deus refletida na proposiçãoteológica de que essa
uma pessoapossui duas naturezas. Consequentemente, o que as religiões de mistério
imaginaram náo é a mesmacoisa que os discípulos viram. Essasreligiõesmais antigas
jamais chegaram à noção crucial de que Deus enquanto espírito é ser humano; elas nun-
ca passaram do ponto de ver o divino aparecendo em várias epifanias -- e estas ocorriam
em animais, lugares,etc., tanto quanto em sereshumanos. Consequentemente,para o
cristianismo, Deus realmente "é .zz"',como um ser humano real, em certo sentido, sem
precedentes(FE, p. 511).
Ora, esseponto só poderia serdemonstrado atravésda apariçãode um único homem-
-Deus. Na plenitude do pensamento especulativo, podemos, então, captar a verdade de
que Deus é idêntico a cada ser humano e, não obstante, não idêntico a ele, uma vez que
a suaparticularidade não consegueigualar a natureza universal de Deus. Porém, no es-
tágio em que os sereshumanos então seencontravam, a unidade de Deus e ser humano
tinha de estar presentena intuição sensívelimediata. E esseponto da identidade de ser
humano e Deus só podia serdemonstrado, no que se refereà intuição sensível,por um
único homem-Deus, no qual a singularidade da subjetividade divina é representadana
unicidade do Filho de Deus. Ver o Deus uno em muitas encarnações,nesseestágio, seria

' Cf. .4ÓsRf/,p 133, 141, onde Hegel também insiste em que Deus deve assumira forma da intuição ime
dieta, sensível" para os sereshumanos, que ele tem de ser "visto e experimentado no mundo'
z38 PARTE ll l FENOMENOLOGIA

reduzir estasa "máscarasque a substância veste e muda de maneira contingente", como


vemos no "panteísmo hindu" (.4ói.Re/,p. 137-38).
No entanto, esseponto poderia concernir à Encarnaçãounicamente como pedago-
gia divina, no modo como ele ap.zrrrez/aos sereshumanos. Ele ainda não dava sentido
à afirmação de Hegel de que algo realmente acontecera, de que a própria substância se
tornara consciência de si. Para entender isso, temos de recordar que o desenvolvimento
da religião na história requer mais do que apenasa tomada de consciência, por parte do
ser humano, de sua identidade com o espírito. Ou, antes, essecrescimento na própria
consciência requer que os sereshumanos se desenvolvam para além do seu estado bruto
original, que cultivem a si mesmose adquiram uma forma de vida que expressao uni-
versal. Consequentemente, para que os sereshumanos sejam capazesde ver a verdade
da Encarnação, eles têm de alcançar um certo estágio de maturidade. Esseé o aconteci-
mento real, o correlato objetivo da percepçãopor parte da fé de que Deus se tornou ser
humano. E visto que isso, como tudo o mais na história, é obra do Geisr, a substância das
coisas, podemos dizer que essamesma substância realmente se torna consciência de si.
Porém, isso não basta, porque não estamos apenas Edando da realização da verda-
de geral de que Deus e ser humano são um, mas, antes, da percepção de que esseser
humano, Jesus, foi Deus. É possível que Hegel esteja Edando Zziio como de um evento
objetivo? Parecedifícil acreditar nisso, especialmente porque, se eu estiver carreto, ele
nem mesmo crê na Encarnação no sentido ordinário, visto que, em última análise,Jesus
não é Deus num sentido di6erenredo que o são todos os demais sereshumanos.
Nesse ponto, deveríamos recordar os primeiros escritos de Hegel sobre Jesus.É muito
difícil dizer com certeza,masé possível que Hegel tenha continuado a ver a figura de
Jesuscomo a]guémexcepcionale paradigmático. Nos primeiros escritos,Jesusé retrata-
do como alguémque conseguiu unir o divino e o humano, o subjetivo e o externo, de
um modo muito à frente do seu tempo. E isso que o leva à cruz. Poderia ser, então, que
uma pa'te importante do crescimento objetivo na humanidade, que Hegel vê como uma
condição essencialde sua nova consciência religiosa, consistiu no nascimento dessein-
divíduo excepcional, inovador, que realmente viveu em unidade com o universal de um
modo como ninguém em sua época poderia viver? Nesse caso, o cristianismo requereria
não só uma certa maturidade entre seusfuturos seguidores, mas também a existência de
um ser humano que realmenteera um com Deus de um modo como nenhum dos seus
contemporâneos foi.
E muito possívelque alguma visão dessetipo tenha estado na base do modo como
Hegel trata a Encarnação na /U' e provavelmente tenha sobrevivido no seu sistema ma-
duro, ainda que o foco não estejamais na figura de Jesus.E, se for assim,podemosper-
ceber a importante transformação desdea obra inicial, que explica essamudança do foco
de atenção. Com efeito, não temos mais uma visão centrada no ser humano, mas uma
em que o agenteúltimo da história é o Ge/rf. O drama náo depende mais das decisõesdo
ser humano, Jesus,mas do Eito de que aí a Substância se torna consciência de si.
A ROTAATÉ A RELIGIÃO MANIFESTA z39

lO
A Encarnação nessesentido é um evento real e também um estágio crucial em nossa
história religiosa. Porém, temos de ir além disso. Porque, sendo verdadeiro que Deus é
idêntico ao ser humano, enquanto espírito finito, também é verdadeiro que ele é não
Ido idêntico a ele.E, ademais,[)eus é idêntico/não idêntico a todos os sereshumanos,e não
se só a esseindivíduo singular.
Essanecessidadede transcendera Encarnaçãoestárefletida na própria doutrina
cristã. Com efeito, Cristo morre, é ressuscitado,ascendeao céu e envia o Espírito
Santo. Para Hegel, todos esseseventos formam um conjunto. O que eles refletem é
:ia

que a unidade de Deus e ser humano não pode ser consumada num só indivíduo.
Ll-
Porque sempre deverá haver oposição entre o espírito universal e qualquer corpori-
.e

ficaçãoparticular. Essaoposiçãoé resolvida, como vimos, quando a corporificação


particular perece. Consequentemente, o indivíduo deve morrer. Porém, nessecaso,
a morte de Cristo também significa a transformação dessaunidade entre Deus e ser
humano de fato particular em Fato universal. É por isso que morte e ressurreição
estão indissoluvelmente ligadas à Ascensão e ao Pentecostes, pois todo o significado
da morte resideno advento do espírito, sendo que o Zaczn
da Encarnaçãosedesloca
para ' comunidade, o "corpo de Cristo". Então, todo o movimento da Encarnação
ao Pentecostes pode ser tomado num dado plano como reflexo da tensão necessária
le
na unidade de Deus e ser humano entre sua corparificação em seresparticulares e
suavida que continua para além dessesseres.Porém, em outro plano, a morte de
Cristo implica algo especial.Ela reflete a superaçãoda última separação,a última
alienação do espírito em relação a si mesmo. Deus enquanto abstraçãopura já deu
le
um passo gigantesco na direção do ser humano ao encarnar-se; mas, a fim de tornar-
se plenamente realizado no ser humano, ele precisa dar o outro passo, a saber, o de
morrer como um Deus encarnado e, por isso, cancelar sua inerência num tempo e
lugar particulares, de modo que a encarnação de Deus possa tornar-se a da comuni-
dade dos seres humanos em geral.
Por isso, a leitura que Hegel faz da religião e da teologia cristãs só pode ser entendida
à luz desseestágio final da comunidade que é o veículo autoconscientedo Ge/s/,a co-
munidade que é o verdadeiro homem-Deus. Porém, o cristianismo ainda não realizou
isso plenamente. Muito antes, ele vive essaunidade implicitamente e, justamente por
isso, não a vive em plenitude. Com efeito, a plenitude da unidade do Geisf consigo
mesmo acarreta um conhecimento claro de si mesmo, visto que o Grlíf é razão. Po-
rém, o cristianismo vive essaunidade de um modo turvo e obscuro, em um modo de
consciência que Hegel chama de "representação", isto é, um modo de consciência que
opera com imagens e símbolos, e não na clareza completa do pensamento conceitual.
Em outras palavras, a Igreja cristã vive essaunidade sem realmente conhecê-lae, em
consequência, necessariamente não a vive plenamente; e é por isso que ela ainda vive
parcialmente na consciênciainfeliz. Assim sendo, a unidade é vista como distante no
tempo, no futuro da Parúsiae no passadoda vida de Crista.
z4o PARTE ll FENOMENOLOGIA

Porém, como uma religião que finalmente expressoua verdadeira naturezade Deus e
sua verdadeira relação com o ser humano, mesmo que de forma obscura, o cristianismo
pode ser chamado de "religião revelada", porque sc trata da religião em que o Ge/írverda-
deiramente revela a si mesmo, e, ademais, revela a si mesmo como um ser cuja natureza
essencial é a autorrevelação.4 Por conseguinte, Hegel vê na teologia cristã toda a verdade
da filosofia especulativa exposta em imagens.
Nessaseçãodo capítulo, Hegel dá uma de suas interpretações da teologia cristã nes-
se sentido. As noções básicasda filosofia especulativasão, como já vimos, que a ideia
necessariamente corporifica a si mesmae então retorna a si mesmaa partir desseestra-
nhamento, reconhecendo a si mesma nessa corporificação exterior. Porém, é isso mesmo
que a teologia cristã expressa, e o expressa, ademais, em três níveis, cada um deles corres-
pondendo aostrês estágiosdessemovimento da filosofia especulativa.
Ora, isso é duplamente auspicioso, porque o próprio Hlegel expõe o seu sistema
nessestrês estágios: o primeiro trará da ideia como relação de categorias puras abstraí-
das de sua corporiÊcação (a Lógica), o segundo estuda a necessidadeinterior visível na
realidade exterior (filosofia da natureza) e o terceiro investiga o retorno da natureza à
plena consciênciade si atravésdo espírito (filosofa do espírito). Em correspondência
com esses,Hegel discernetrês níveis da teologia,que ele identifica com a linguagem
messiânicajoaquimita, mais tarde retomada por Bõhme, a respeito dos reinos do Pai, do
Filho e do Espírito Santo, respectivamente.
No primeiro nível, temos a doutrina da trindade, representando,
por assimdizer, a
relação de Deus consigo mesmo; e isso remete o movimento tripartite especulativo: [)eus
Pai, que gera o Filho como seu outro, e que é unido com ele em amor pelo Espírito Santo.
l Porém, essenível demanda outro; a exteriorização representada pela geração do Filho
l demanda uma contrapartida real, a criação de uma exterioridade real, e isso se dá na
criaçãodo mundo. Estainclui a criaçãodo espírito finito. Porém,o espíritofinito, a fim
de tornar-se verdadeiramente espírito, tem de chegar à consciência de si(/n-f/có'g?óen;
/;& p. 518). E, ao Fazerisso, ele se torna consciente de um ieZfem oposição ao resto do
mundo e ao espírito infinito. Essaafirmação do ie/fé o pecado original, é o nascimento
do mal. Porém, ao mesmo tempo, ela é inevitável, pois de outro modo não poderia haver
espírito finito. E ela está, por conseguinte, no plano de Deus, porque sem espírito finito
não poderia haver espírito infinito. Ela é necessáriapara o espírito finito, visto que o
espírito é necessariamenteconsciência do ie#; e, visto que ela é corporificada na particu-
laridade, sua consciência de si inevitavelmente será um levante para separar a consciência
da particularidade. O único modo de evitar isso seria que o ser humano permanecesse
imerso na natureza, inconsciente do ie/fcomo um animal e, em consequência,abaixo do

4 Aqui, novamente, a distinção entre religião e fé torna-se relevante.Como forma de vida total, a religião
cristã vivida na Igreja é, aqui, a unidade de Deus e ser humano. Porém, a consciência da H ainda vê Deus
como separado.
r A ROTA ATÉ A RELIGIÃO MANIFESTA

bem e do mal (inocente, diz Hegel, masnão bom; /W, p- 5 18). É por issoque a queda
z4t

é o momento em que os sereshumanos adquirem o conhecimento do bem e do mal.


A quedaestáno plano do Gela/,tanto é que o único antídoto para o mal da concen-
tração no íe/fé mais do mesmo, ou seja, uma consciência de si cada vez mais profiinda
até os sereshumanos chegaremao ponto de captar o universal em si mesmos.Porém,
chegamosaqui ao terceiroestratoda teologia,aqueleque trata da redenção.E neste,
como já vimos, a reconciliação provém das duas pontas: Deus busca ser uno com os seres
humanos e os sereshumanos buscam superar sua particularidade para serem unos com
Deus. O reflexo desseprocesso sedá, como já vimos, na teologia da Encarnação, morte,
Ressurreição e Ascensão de Cristo, da vinda do Espírito Santo e na continuidade da vida
da Igreja. Deus vem ao ser humano atravésda Encarnação e morte, o ser humano vai a
Deus atravésda autotransformação em sua vida comunitária. Porém, até agora não con-
sumimos completamenteessemovimento, visto que a separaçãoainda é sentida e está
refletida no Eito de que a unidade só é apreendida pela representação,sendo adiada para
o futuro e o passado, em vez de ser reconhecida no presente.
Porém, por trás dessarepresentaçãopodemos reconhecer a verdadeira doutrina espe-
culativa. As relações especulativas de necessidade são distorcidas ao serem representadas
por meio de imagens tais como "gerado" ou "criado"; mas, náo obstante, essasrelações
sãoreconhecidas.E, na aproximaçãomútua de Deus e serhumano, o puro universalque
precisaaceitar a unidade com o particular para existir efetivamentee o particular que
precisa alçar-se acima de sua particularidade até o universal, reconhecemos a relação das
duas consciênciasque constituíram a culminância do capítulo anterior, a relaçãoentre
o mal e seu perdão, a consciênciaaviva e a consciênciajulgadora. A consciênciaativa
incorre no mal inevitavelmente;esta é a essênciada doutrina do pecadooriginal; mas
o universalcontra o qual se peca não pode existir senãoa essepreço; por isso mesmo,
ele tem de aceitar a realizaçãopor obra do indivíduo, e "perdoar" a particularidade a
esseindivíduo, da qual este, de sua parte, se arrepende. Desse modo, os dois extremos
chegam à unidade.
Essesdois extremos se revelaram agora, após o desenvolvimento deste capítulo, como
Deus e ser humano, e constatamosque a dialética do mal e seu perdão é uma diabética
cósmica cuja resolução nos dá a chave última para a realidade. Essa realidade última é
um Geisf cósmico autocognoscente, e, por conseguinte, também alcançámos a forma
mais elevadada consciência-- ou melhor, o limiar dessaforma mais elevada;com efei-
to, o que é representado na religião revelada por meio da representação,deve ainda ser
}

expressocom a plena clareza do pensamento especulativo. Ter alcançado issoé ter alcan-
çado o conhecimento absoluto.
CAPÍTULO Vlll

A 7+momeno&#ü como diabética interpretativa

O conhecimento absoluto pode ser visto como a combinação de nossosdois estágios


maiselevados.
Ê a unidadefinal de sujeito e mundo ou, de outro ponto de vista,de
sujeito finito e sujeito infinito ou de substânciaabsoluta e subjetividade. Porém, essa
união existe implicitamente (amf/ró) como religião, ao passoque a consciênciamoral
que constituiu o estágio mais elevado do capítulo sobre o espírito conteve explicitamente
(/br i/rA) a noção de que a vontade do sujeito estáde acordo com a vontade universal.
O resultado é uma unidade do ie/fe da essênciaou substância das coisas;essaunidade
sempre pode ser vista como uma convergência de cada direção; o ieZfé alçado à condição
de essência ao considerar-se como o veículo do Ge/i6 mas a essência ou substância "des-
ce" até o ir/6 em certo sentido, ao chegar a compreender a si própria como sujeito (e por
isso necessitar de um sujeito finito como seu veículo).
Quando ela chega à consciência plena, gera uma forma de conhecimento que Hegel
chama de conhecimento absoluto. De que se trata? Não há como expressarisso numa
única proposição, porque se trata simplesmente da apreensãoda verdadeira natureza das
coisas, e isso só pode ser expresso dialeticamente. O conhecimento absoluto é o pleno
entendimento de que a substânciatem de se tornar sujeito, de que o sujeito precisair
além de si mesmo, tornar-se dividido, estar em oposição a si próprio como objeto, visan-
do retornar à unidade consigo mesmo.
Pode-seestar tentado a afirmar que o conhecimento absoluto é simplesmente todo o
conteúdo da .fte o último capítulo só tem signiâcado como recapitulaçãodo restante.
Isso é parcialmente verdadeiro, e logo em seguida diremos mais sobre isso; mas isso é
apenas parcialmente assim. [)e fato, a noção do conhecimento abso]uto também pode
ser formulada de um modo totalmente diferente daquele que acompanhamosna /E.
Nesta, o drama consistiu na ruptura entre sujeito e objeto, entre consciência e consciên-
cia de si, certeza do ieZfe verdade. Essa ruptura acabou sendo superada no final da obra.
Mas podemos também apresentar nosso ascendimento à unidade final na diferença
não como uma lura entre diferentes formas da consciência, mas como derivação nos ter-
mos daqueles conceitos categoriais básicos com os quais tentamos expressar essaunidade
última na oposição: ser, substância, sujeito, pensamento e assim por diante. Se estiver-
mos carretos e se cada um dessesconceitossó puder serentendido, em última instância,
!
r A /ENOa4ENOZOGIH COMO DIALÉTICA INTERPRETATIVA z43

lll em relação aos outros, então isso deveria poder ser verificado por uma investigação dos
próprios conceitos em questão.
E, obviamente, é isso que a Zckfcn tentará fazer.Nessesentido, a /;E pode ser vista
como uma espéciede introdução à ZI({gca.Clomeçaremosexaminando essesconceitos
categoriais, iniciando com "ser", e veremos que cada um deles nos remete para além de si
mesmoa outros conceitos,até que, por fim, elesformam um sistemaque expressaa uni-
dade na oposiçãodo Geiíf com o seumundo. Essesistemaé denominado a Ideia. Hegel
anuncia isso (.IW,p. 542 ss) nos seguintes termos: não continuaremos a estudar o drama
da separaçãoe da unidade de sujeito e mundo; muito antes, o tema que trataremos
doravante será constituído de conceitos que já são unidades de ser e se/Ü e justamente
por conter o se/fe, em consequência,a negatividade,cada conceito particular padeceda
;a
'inquietude [...] de suprassumir-se a si mesmo" (iei e [/nrzzóe, iicó ir/óif aztAw&eóezz).

Essaciência pura seguirá,então, o movimento interno dessesconceitos à medida que


transitam para a Ideia. Como sempre,a ciência não poderá ser expressanuma propo-
lte
sição só, mas somente num sistema que se autodesenvolve; aqui, porém, este sistema
.e
será apresentado num meio diferente daquele, no qual estivemos nos movendo na /;E.
O Geiif se moverá "nesseéter de sua vida" (FE, p. 542), isto é, entre conceitos que são o
seu proprio meio.


Porém, essaLógica não pode ser a totalidade da ciência. A intuição básica do Geiff
acarreta que ele tenha de ser exteriorizado na natureza, razão pela qual deve haver a
realidadeexterior, física, extensa.E esseGeiff também deve retornar parasi mesmodei-
xando para trás a sua alienação; e esseretorno pressupõe outra exteriorização, a do tem-
po Ademais, esseretorno para o ie/fno tempo, o que significa atravésde um conjunto
10
de estágiosexternosuns aosoutros por virem um apóso outro e constituíremformas
reais de vida coletiva na história, é, ele próprio, uma precondição da ciência pura sendo
r
a[cançada;essaciência pura é a p ise2e co frio re [tomada de consciência] interior do
Ge/ff acerca do retorno para si mesmo.
Mas, nessecaso, essaconsciência de si do Gefsf tem de ser mais que a ciência pura dos
0
conceitos. O fieis/ estáretornando de sua alienação na natureza por meio de uma série
de estágios históricos. Para poder completar esse retorno, ele precisa apreender a si pró-
é
prio na naturezae na história. E issoquer dizer que ele precisaver a necessidade
interior
da natureza e da história, ver a necessidadesubjacente às formas de exterioridade e, em
consequência, a contingência recíproca, constituídas por espaço e tempo

O fe/npo é o ca/zreí/omesmo, que éa/(der zúziif),' e que sefaz presenteà consciência


como intuição vazia. Por essemotivo, o espírito se manifesta necessariamente no
tempo; e manifesta-seno tempo enquanto não apreendeseu conceito puro; quer
dizer, enquanto não elimina o tempo. (/;E, p. 538 ss;PAG, p. 558)

No inglês, a expressão"zür zZzúf" 6oi traduzida por "que determinou a existência".(N. T.)
z44 PARTE ll l FENOMENOLOGIA

Por isso, o autoconhecimento do Gelff deve incluir essaapreensão da necessidade


interior da naturezae da história. Como sempre,seuautoconhecimento final não pode
ser separado do modo como ele chegou lá; mas agora os estágios da história são inte-
riorizados na rememoração.: Por conseguinte, interiorizadas, a natureza e a história são
libertadas da forma da contingência externa, da extensão e do tempo' E o resultado, a
história apreendida em conceitos ("a história conceituada" [z&eóóKre#ãnf(;esrÓjc#re]; /U,
p. 545), é a realidadeinterior do espírito absoluto. É com essaobservaçãocomplemen-
tada com uma citação (alterada) de Schiller que termina a .l;Z?.

Como a .f;Ese mantém coerenteenquanto dialética ascendente?Num olhar retros-


pectivo sobrea extraordináriavariedadee riqueza dos itens estudados,é diHcil vislum-
brar o fio que une o argumento. E de fato a /Z' é mais impressionante e persu'sovacomo
interpretação de certaspassagensda história política e religiosa do que como argumento.
Paraque possamosver por que issoé assim,a despeitodas intençõesde Hegel, de-
veríamos voltar a considerar a natureza dos seus argumentos diabéticos. No início do
capítulo, distinguimos dois tipos de dialética, a ontológica e a histórica.
O primeiro tipo parte da base de que um certo padrão, que só identificamos por
certas propriedades que servem de critério, foi e6etivamente realizado, e avança através
de diferentes concepções dessepadrão rumo a formas cada vez mais adequadas.Vimos
um exemplo disso na primeira parte da .FE, sobre a consciência. Partimos da base de que
há conhecimento e que o conhecimento constitui uma realização.O que não sabemos,
se é que podemos colocar as coisasdessemodo, é o que está implicado em atingir o
padrão. Ou melhor, tudo que sabemossobre isso são certas propriedades críticas muito
esquemáticas.Por conseguinte,tomamos como ponto de partida a ideia simples, mas
intuitivamente persuasiva,de que o conhecimento estárecebendodados e que o padrão
a ser atingido é o de máxima abertura e receptividade. Essa é a ideia por trás da certeza
sensível. (quando isso nos envolve em contradição, alterámos nossa concepção do que é
conhecimento. Isso dá início a uma segunda caseda dialética, e assim por diante. Aqui, a
chave para o movimento dialético é que, por sabermos que o padrão foi atingido, pode-
mos concluir que qualquer concepçãodele que se mostra irrealizável tem de ser errada.
A dialéticahistórica,por outro lado, toma como ponto de partida a tesede que se
busca obter um certo propósito, mesmo que ele ainda /záoesteja realizado.Nessecaso, a
discrepânciaentre propósito e realidadeeEetivanão leva a que redefinamoso propósito,
mas ao esfacelamento da realidade concernida e sua substituição por outra mais adequada

: A palavra alemã "Erín/zer#ng" ]recordação, ]embrança] permite a Hegel esse jogo de palavras que para ele
é muito significativo. ENo original alemão, o jogo de palavras é entre "/n-rirá'geóen" [ir para dentro de si
mesmose "Er-i/znrrz/ng"[interiorização]
. (N. T.)]
A FTNO1VE.MOZOG/H
COMO DIALÉTICA INTERPRETATIVA 2,45

le (embora obviamente issorequeira uma redefinição do propósito da parte dos agrmizie#?/f-


z,Ofna história). Esseé o tipo de desenvolvimento que vimos na seçãosobrea consciência
de si, como, por exemplo, na dialética do senhor e do escravo,que predominou no capítu-
lo sobre a razão e perfez todo o movimento dos capítulos sobre espírito e religião. Mostra-
-se que certasformas históricas da vida são presasde contradição interna porque estão
minando o propósito pelo qual existem. A relação "senhor-escravo"frustra o propósito
do reconhecimento, em função do qual ela 6oi estabelecida.A cidade-EstadoEdha como
realizaçãodo universal, porque sua natureza paroquial contradiz a verdadeira universalida-
de. O Estado revolucionário destrói a liberdade porque tenta realiza-la de forma absoluta,
dissolvendo todas as mticulaçóes da sociedade, sem as quais a liberdade não pode existir.
Ora, essadistinção vai além do interesse meramente taxonâmico. Com efeito, há
uma diferença importante na fiindamentação dos argumentos diabéticosde Hegel que
estáentrelaçadacom ele.Vimos na primeira seçãoque o ponto de partida de um argu-
mento dialético deve impor a si mesmo, ou seja, que a concepção da coisa concernida
enquanto realização de um propósito tem de ser inescapável. Não sendo assim, as con-
clusões do argumento são apenas hipoteticamente válidas.
Já vimos como Hegel Goibem-sucedido, na dialética ontológica da consciência,em
obter tal ponto de partida inquestionável, visto que dificilmente sepode resistir à visão
de que o conhecimento é uma realizaçãoe implica a concretizaçãode um padrão. No
próximo capítulo, veremos como ele esperaencontrar um ponto de partida similar-
mente inquestionável para a Zagzca enquanto ciência das categorias. Porém, a diabética
histórica constitui um problema muito mais difícil. Ela implica que imputemos um
certo propósito ou propósitos aos sereshumanos na história ou ao Ge/ff atravésdos seres
humanos na história; e como pode qualquer imputação dessetipo ser inegável?
Vimos, portanto, como a dialética do senhor e do escravose inicia com a imputação
da busca de reconhecimento. É isso que fortalece a luta até a morte, mas também é isso
que, em contrapartida, torna esseresultado insatisfatório e requer que ambos os prota-
gonistas sobrevivam numa relação de senhor e escravo. Demonstra-se que essarelação,
por suavez, é inadequada à luz do mesmo propósito. Mas o que justifica que imputemos
essepropósito, para começar?
Se olharmos bem para a tão bem-sucedida dialética histórica de Hegel, que é a mais
esclarecedorae convincente, descobrimos que ela de fato convence do mesmo modo que
um bom relato histórico o Eaz,ou seja,porque "cai" bem como interpretação.3

3 C)bviamente,estou aqui tomando partido no debate sobre a explicação na história, a favor de uma visão
interpretativa e contra o modelo da "lei encobridora". Em razãoda brevidade, aqui não possoargumentar
em favor da minha posição,embora eu tenha tentado Emeralgo assim no meu ensaio "lnterpretation and
the Sciencesof Man", Rfz,ifw afJUeíap/yK/CT,
vol. XXXV; p. 3-51, #l, set. 1971. Porémé provávelque o
mesmo argumento referente à explicação histórica de Hegel pudesse ser formulado igualmente a partir de
outra perspectiva
z46 PARTE ll l FENOMENOLOGIA

Quer dizer, pode-se atribuir sentido ao que sabemos sobre um dado período, pode-
-se fazercom que se coadunesem implausibilidadenessaexplicação,ou, em todo
caso, com menos implausibilidade que em outras explicações rivais. Porém, a questão
a respeitodessasexplicaçõesinterpretativasé que elasnão têm um ponto de partida
absolutamentecerto. A imputação original de um certo propósito aosatires ou uma
certa propensão a eventos ou uma certa lógica da situação é totalmente infundada por
si mesma.Ela precisater sido levada a cabo e conectadacom todas as demaisamputa-
çõesque a acompanham, e, além disso, precisa ficar evidenciado que estasse coadu-
nam com os fatos com plausibilidade e que fazem sentido em toda linha; só então é
que sentimos confiança em aceita-la.
Por conseguinte, a explicação de Hegel para o colapso da cidade-Estado gregadepen-
de do propósito subjacente de realizar uma consciência e um modo de vida universais.
A pó#í tanto cumpre essepropósito quanto, ao mesmo tempo, frustra-o devido à sua
naturezaparoquial. Porém, o que nos convenceraa aceitar essaimputação de um pro-
pósito ao ser humano (ou ao Ge/sr) enquanto motivo principal dos eventos? Somente
o sentido que ela nos permite dar aoseventosdaquele período, o modo como eía esta-
belecea relaçãoentre a popularidadedos sofistas,o desenvolvimentoda literatura e da
cultura gregas, as mudanças na religião grega, o declínio da cidade-Estado, e assim por
diante, num todo que tanto é plausível quanto dá sentido ao que aconteceu. O interesse
duradouro de muitas das interpretaçõeshistóricas de Hegel residejustamente no fato
de elas esclarecerema interconexão de eventos o suficiente para induzir-nos a leva-los a
sério, mesmo que tenhamos de transpâ-los (como mais notoriamente fez Marx). Porém,
a imputação de um propósito jamais poderá autenticar por si só um ponto de partida.
Esseproblema rondou a dialética histórica de Hege] de modo geral.A dialética onto-
lógica principia com um objetivo ou padrão realizados.A tarefa inicial é mostrar que o
objeto em questão tem de ser entendido em termos da realizaçãode um objetivo. Uma
vez que issofoi assegurado,a diabéticapode prosseguir na definição do objetivo. Sabe-
dores de que padrão 6oi atingido, podemos pâr de lado qualquer concepção do objetivo
que se evidenciacomo irrealizável.Podemostomar como ponto de partida qualquer
definição e, mostrando como ela confiita com sua própria concretização, seguir adiante
para concepções mais adequadasaté alcançar aquela que é plenamente adequada. Ou,
formulando o ponto de outro modo, a partir da naturezado objeto sobestudo,toma-
mos conhecimento de certaspropriedades que Ihe servem de critério. A única coisa que
temos de aprenderé qual a especificaçãomais exala do propósito que de Eito ostentará
essaspropriedades.
Porém, não pode ser esseo casocom a nossadiabéticahistórica. Antes de dar-seo de-
senrolar completo da história, não temos exZ7@afÉes/
nenhum propósito realizado diante
de nós. Portanto, não podemos tratar como concretização nenhum período da história,
cujo padrão operativo ainda temos de descobrir. Nem podemos depreender de nenhum
período da história com certezasequer uma descriçãogeral do que o ser humano está
A FENO]WENOZOG/H
COMO DIALÉTICA INTERPRETATIVA z47

alvejando em última análise. Nem mesmo podemos estar certos de que reunimos sequer
algumaspropriedades que servem de critério para a concretização última do ser humano.
Por conseguinte, pareceque, exatamente como distinguimos a dialética ontológica da
dialéticahistórica enquanto dois tipos de desenvolvimento dialético, assim temos de dis-
tinguir dois modos de como uma exposiçãodiabéticapode demandar nossoassentimento.
Há dialéticas estritas, cujo ponto de partida é inegável ou pode razoavelmente pretender
sê-lo. E há então também as dialéticas interpretativas ou hermenêuticas, que nos con-
vencempela total plausibilidade da interpretação que fornecem. Pareceriaque, enquanto
Hegel possui candidatas para a primeira categoria -- mais destacadamente, como ainda ve-
remos, a Zcl@ca--, a sua didética histórica enquadra-se na segunda categoria. Ela não con-
vencepela argumentaçãoestrita, mas pela plausibilidade da interpretação que propicia.
O que Hegel diria disso?Ele admitiria uma distinção dessetipo? Certamente, não
na forma apresentadaaqui. E Hegel jamais teria concordado que qualquer parte do seu
sistemarepousa sobre interpretações plausíveis em confronto com a argumentação es-
trita, porque isso significaria abandonar a concepção do Ge/sf como raciona]idade total.
Porém,sob outra forma, acredito que essadistinção tem lugar no sistemade Hegel.
Deixando de lado a .f;E neste momento, o sistema fina! da .EncicZ9p%áaprincipia com
uma diabéticaestrita, a Lógica. Ela estabeleceque não há ser finito independente, mas
que tudo se mantém coeso na Ideia, a fórmula da necessidaderacional que cria a sua
própria manifestaçãoexterior. Essaconclusão fica, então, disponível para as dialéticas
subsequentesda filosofia da naturezae da filosofia do espírito. E Hegel de fato se baseia
nelanessasdialéticas.
Consequentemente, poderíamos dizer que, para Hegel, a certezaquanto aos propósi-
tos da história, que não poderia ser extraída de forma alguma de seus períodos anteriores
e que só poderia ser reunida com maior ou menor plausibilidade a partir da totalidade
do drama, não obstante pode ser obtida inclusive para a nossainvestigaçãodos seus
primórdios porque essespropósitos foram estabelecidospreviamente pela dialética es-
trita. Elesestão,por conseguinte,disponíveis como certo ponto de partida parao nosso
entendimento da história, e pode-se dizer que a diabética subsequente decorre deles com
certezaabsoluta.
Por conseguinte, nas suas preleçóes introdutórias à filosofa da história, Hegel Eda
dosprincípios "de que a Razãogovernao mundo" (],ZG,p. 28) e de que o propósito final
do mundo é a atualização da liberdade (yG, p. 63), os quais tiveram de ser pressupostos
no estudo da história, mas que coram "comprovados na filosofia" (yG, p. 28). Está claro
que Hegel se refere aqui à Lógica, visto que as teses, das quais disse que coram provadas,
concernemà Ideia, o conceito culminante dessaobra. Seusresultadossão, por conse-
guinte, um "/npwf" [insumo] na filosofa da história. Eles são os pressupostos que Ihe
permitem começar.
Porém, imediatamente após essapassagem,Hegel diz o seguinte da crença de que há
Razão na história: "Ela não é simplesmente um pressuposto de estudo; é um res á 2o
z48 PARTE ll l FENOMENOLOGIA

que chegou ao meu conhecimento pelo fato de eu já ter conhecimento do todo. Logo,
só o estudo da própria história do mundo pode mostrar que ela procedeu racionalmente,
que ela representao curso racionalmentenecessáriodo Espírito Universal" (UG, p. 30).'
E ele prossegue:"A história mesma tem de ser tomada como ela é; temos de proceder
historicamente, empiricamente'
Essapassagem implica que há outro modo de mostrar que a Razãoestáoperando
na história acémda prova estritamenteconceitua]da Lógica.E é pelo examedo toda
da história, "como e]a é; [...] empiricamente". Seria esse,talvez, um reconhecimento
parcial de que há dois tipos diferentes de prova de uma tese: um tipo que consiste numa
prova estrita construída a partir de um ponto de partida inegável, e o outro, numa prova
'empírica" que o depreendede uma investigaçãodo todo como a única conclusãoque
dá sentido a essetodo?s

A prova filosófica estrita seria, então, uma pressuposiçãopara o estudo da história, no


sentido de que ela nos Eazolhar para a história com os olhos da razão. E isso é necessário
porque, para conhecer o que é substancial na história,

é preciso trazer junto a consciência da razão, não os meros olhos Hsicosou o


entendimento finito, maso olho do Conceito, da razão,que penetra a superfíciee
se esforça por atravessar a multiplicidade confusa dos eventos(2zé' /a zzilg#a/rikÉe/f
üs bt nten Gewübkder BegebenbeitenÜ.
tVG, p. 32)

Porém, uma vez que olhamos para ela dessemodo, dispomos de coerência, de uma
explicação convincente do curso da história, que proporciona uma prova independente
da tesede que a Razão governa o mundo.
Se eu estiver certo ao afirmar que Hegel se baseia nas conclusões da Lógica para for-
mular a dialética que vem "depois" dela no sistema, então ainda temos de distinguir, na
suaobra, entre argumentosdiabéticosque se autenticam e subsistempor si mesmospor
partirem de um ponto inicial inegávele aquelesque sãodependentesde outros, que têm
de Emer uso das conclusões de outros para autenticar suasleituras. A que chamamos de
diabética "estrita" seria a que se autentica por si mesma nessesentido, e a que chamamos
de diabética "interpretativa" seria a dependente. E o que chamamos de dialética "históri-
ca" (assim como a filosofia da natureza) se enquadraria na categoria dependente.

4 Rf/zian /z Hfsfar7.Trad. Robert Hartmann. Nova York, 1953, p. 30. [Ed. bus. da trad. ing]esa:
,4 Razão /z.z//fr/ór/a. (/mz /lzrrodKf.ío Gera/ ,à /:í/aios da /üsfór/a. Trad. Beatriz Sidou. 2. ed. São
Paulo, Centauro, 2001 .]
5Tâjvez esseseja o sentido da sentença que consta na introdução à filosofia da história ( yG, p. 29), dizendo
que a presençada razãona história do mundo é uma verdadeque possui sua "prova apropriada (eÜf l/fróer
Brwf/i) no conhecimento da própria razão", ao passo que "a história mundial somente Em uma exposição
convincentedela" (í# óür IW?Z2?ícófcórf
frwelsf ilf iffó /zzír).Porém, não podemosconstruir muita coisa
em cima dessapassagem. Ela não é extraída das anotações do próprio Hegel, mas das anotações deitaspor
ouvintes de suas preleções
H

A FEN07WENOZOG7H
COMO DIALÉTICA INTERPRETATIVA z49

lo, O que isso nos diz sobre o argumento da /U? A maior parte do livro é tomada pela
dialética histórica, logo, por argumentos que não se autenticam por si mesmos. Porém,
de fato, estessó têm início depois da dialética estrita com que a obra principia, ou seja,
a da consciência. A diabéticada consciência de si, com suasnoções subjacentes de vida,
consciênciade si humana e o desejode reconhecimento, supostamenteconstrói sobre
.0
os resultados da primeira parte. Nesse tocante, a /Z' é semelhante ao sistema proposto
.0

na Enciclopédia.
tto Porém, quando olhamos para ela à luz disso, podemos ver que os primeiros três capí-
.a
tulos são demasiadofrágeise esquemáticospara sustentara rica superestruturada inter-
pretaçãohistórica e antropológica erigida por Hegel. Obviamente, são essasinterpretações
Le
que pexTZ/acém, que conferem à obra seu poder e sua Emanação enquanto enunciado da
visão de Hegel. Porém, como argumento estrito, seu sucessodeve depender em primeira
LO
linha da solidez da primeira sequênciade argumentos, na qual a consciência seconverte
lo
em consciência de si, isto é, na qual nossapercepção de um mundo, que a princípio parecia
outro, converte-seem conhecimento do ie/@Ou, na formulação de Hegel:
0 Sem dúvida, a consciência de um Outro, de um objeto em geral, é necessariamente
e co icié/zri Zr ii, ser refietido em si, consciência de si mesma em seu ser-outro.
(/;F, p. 132; PÉG, p. 128, itálico no original)

Porém, como indiquei na segunda seção,esseargumento não está realmente à altu-


ra, se é que algum argumento de fato pode estar. Isso tampouco causa surpresa. Se for
:e

mesmo possíve[comprovar a afirmação central de Hege] de que o mundo das coisas


só existecomo emanaçãodo Grisf e que, em consequência,esseespírito conhecea si
mesmo ao conhecer o mundo, seguramente o argumento capaz de fazer isso será longo
e difícil e gerará um conjunto enciclopédico de considerações. O Hegel da maturidade
provavelmentepensou assim.É por issoque a obra que figura como a dialética estrita
}r

fundamental do sistemafinal de Eito é longa e difícil.


A Z(&fczzde fato é, se pusermos de lado a /;Z', a única diabética estrita, que se autentica
por si mesma, do sistema de Hegel. É por isso que ela tem de ser pressuposto nas filoso-
fias da natureza e do espírito. Nela, a afirmação de Hegel de que fundamentou sua visão
num argumento estrito cai ou fica em pé. Não admira que ele tenha dedicado a ela tanta
atenção. Passemosagora a examina-la.
CAPÍTULO IX

Diabética de categorias

A Lógica existe em duas versões:a (]êzzc/úzü Zogzca,que Hegel publicou pela pri-
meira
vez em 1812-1816 e revisou parcialmente para uma segunda edição pouco antes
suamorte; e a primeira parte do sistema da Ciência, muitas vezeschamado de .Êbc/-
pédyzz,
publicada pela primeira vez em 1817 e igualmente revisada depois disso. No
lue segue,tomarei por base as duas versões (respectivamente WZ e -ÊZ,).
A ]lóX/caé o segundo grande resultado derivado da visão de Hegel, e trata-se de
.a derivaçãocrucial, como já vimos, porque é a única candidata real ao papel de
,rovadiabéticaestrita. Se o real existee tem a estrutura que tem por necessidadecon-
Itual, então a tarefa da Zog/cóz
é mostrar essaestrutura conceitual por meio do puro
.mento conceitual.
Issopode parecer maluquice para a consciência comum e, de fato, até para a maioria
los filósofos. Com efeito, concebemos nossos conceitos como instrumentos do nosso
lsamentoque podem ou não seaplicar adequadamente à realidade. Partimos de uma
loçãode pensamento em oposição ao mundo sobre o qual pensamos. Esse dualismo
;távinculado com outro; visco que um conceito ou uma categoria é concebido/a como
universalque pode aplicar-sea muitos conteúdos, estamostentadosa concebê-lo/a
imo uma forma abstrata em oposição aos conteúdos sensíveis,aos quais se aplica.
Essedualismo duplo naturalmente nos leva a pensar que um estudo de conceitos é
)talmentedistinto de um estudo da realidade, e, mais particularmente, que as relações
necessárias
entre conceitos que podemos descobrir a partir de tal estudo de modo algum
permitem concluir que haja relações necessárias entre as coisas às quais eles se apli-
A Lógica, enquanto estudo dessas relações, é, por conseguinte, necessariamente
}rmal,atinente à nossamaneira de pensar e não aosconteúdos sobreos quais pensamos.
Porém,Hegel, como podemos ver, não aceita essanoção do conceito e os dois du-
;mosque ele acarreta. O pensamento e as determinações através das quais ele opera
Z)en&Ófsffmma/{grnou categorias)não são o apanágio de um sujeito em oposição ao
fundo, mas residem na raiz mesma das coisas. Com efeito, a realidade que percebemos
lquantosujeitos finitos é a corporificação do Ge/sf ou do sujeito infinito. Porém, a vida
Geüf é pensamento racional, uma vida transportada pelo nosso próprio pensamen-
i, isto é, o pensamento de sujeitos finitos, e é adequadamente expresso na medida em
pensamosraciona]mente. O pensamento racional, verdadeiramente universal, que
:pressaem nossascategorias,é, por conseguinte,o conhecimento do espírito sobre
z54 PARTElll l LÓGICA

si mesmo. Já que a realidadeexterior à qual essascategoriasse aplicam não só é um&


corporificação do fieis/, mas também é posta pelo Ge/srcomo sua corporificação e, eu
consequência, refiete a necessidaderacional do pensamento, ao apreender as categorias
de pensamento sobre as coisas, estamos também apreendendo a planta baixa ou a estru-
tura essencialem conformidade com a qual o mundo se explicita.
É o que há a dizer sobre o primeiro dualismo, aquele que opõe nossosconceitose
o mundo ao qual eles se aplicam. Pelo contrário, o entendimento último do mundo
das coisas se dá quando vemos que ele existe a fim de corporificar a estrutura racional
que é expressanessascategorias. Porém, isso também acabacom o segundo dualismo;
com efeito, uma vez que vemos o mundo como posto pelo Gelsf, um espírito cuja vida
é pensamento, também vemos ascategorias de pensamento como necessariamentecor-
porificadas, como "passando para" a sua corporificação, por assim dizer. Desse modo, a
ideia de opor os conceitos enquanto formas às coisasàs quais eles se aplicam enquanto
conteúdos acabasendo profundamente equivocada.
Daí procedea noção hegelianade conceito, que, como já vimos, não é meramente
uma noção descritivaque se aplica a coisas,mas uma que póe as coisasàs quaisse apli-
ca. Assim, o conceito é, em última instância, assimilado por Hegel ao sujeito, ao ser
espiritual que póe a suaprópria corporificação.De Eito, o conceito só é sujeito espiritual
quando o vemos em seu aspecto como necessidaderacional.
Hegel deixa claro, na introdução à Z(&fca, que não está tratando de conceitos como
eles no.malmente são tratados, mas, antes, no seu próprio sentido, como abarcando a
oposição entre sujeito e objeto. (}ue essaoposição tem de ser superada é uma conclusão
que ele dá por assentadaa partir da /;E. Nesta última obra, mostramos que a "oposição
da consciência"(a saber,entre sujeitoe mundo) é superada(lyZ, vol. 1, P. 30, 32).
O puro conhecimento "contém pensamento na medida em que ele próprio nada mais é
que a coisa que 6oi pensada (díe Sachezz iicó se/óff), e a coisa que foi pensada na medida
em que nada mais é que o puro pensamento" (WZ, vol. 1, p. 30) Ele nos ensina "que
aquilo que existe am z/#z/.@rJjcó é o Conceito conhecido, ao passo que o Conceito como
tal é o que existe'zn wmd/ãrJicó" (WZ,vol. 1, P. 30-31).
Por isso, o título EoXícúfacilmente leva a mal-entendidos, se tivermos em mente
a lógica formal que nos é familiar. Porém, de fato, Hegel estáusandoo título aqui no
sentido da "lógica transcendental" de Kant. Ao lado da lógica "geral" (isto é, formal),
que trata da "forma do pensamento
em geral" (Cr#/cadz R.zz.Ía/'wxa,A55, B79 [ed.
liras., p. 94]'), Kant elaborou a lógica transcendental que "seocupa com as leis do en
rendimento e da razão,masunicamente na medida em que é referida.zpriori a objetos
(Cr#Ír.z zü Razão Puxa, A57, B82 [ed. bus., p. 94-95]). Essa lógica traz à tona certas
necessidades do nosso pensamento, que não são concernentes apenas à sua consistência
formal, mas também àscondições de suavalidade empírica. A lógica transcendental, por

1. Kant, Crú/c z óózR.züa / #xn.São Pau]o, Nova Cu]tura], 1996. (N. T.)
DIALÊTICA DE CATEGORIAS z55

conseguinte, define o que Kant chama de categorias, as estruturas conceituais necessárias


e inescapáveis
que o mundo da experiênciaprecisa ostentar até para que possamoster
uma experiencta.
Nessecaso,porém, uma lógica transcendentalchegamuito próximo de seruma on-
cologia.Dizer que certasestruturas conceituais devem se aplicar ao mundo seguramente
é dizer algo sobre a natureza das coisas. Kant evita essaconclusão ao distinguir entre os
6enârnenos, os objetos da experiência, e as coisas como elas são em si, para além da nossa
experiência. As categorias só nos falam sobre o mundo como ele tem de ser para nós, mas
nãojustificam nenhuma conclusãosobreo mundo dm coisasem si.
Porém, como sabemos,Hegel rejeita enEaticamentea distinção kantiana entre feno- li
menose naz/cena.Na introdução à WZ, como também à .EZ, ele recrimina Kant por !

:l : L:l =L;lll,l: :=':S:='U=1;::='Ú:.=':i:';=:li:,'...;i;::=:i:i='a:


propor a ideia de um Z)/ng zz slcó [uma coisa-em-si] incognoscível. E verdade que Kant

rém, ele estragou tudo ao restringir suas conclusões ao mundo-como-conhecido-por-nós


em contraste com o mundo como ele é em si. Hlegel se propõe a oferecer-nos uma lógica
transcendentalque também será uma antologia. Ele eliminará de vez a epistemologia
atrásda qual habita o Z)/ng zz/zsícó.
Por conseguinte, descobrindo as relações necessáriasentre os conceitos catego-
riais da lógica transcendental, também estaremosdescobrindo a estrutura necessária
da realidade. Porém, pode-se responder que isso apenas desloca o problema; dado
como certo que conhecer as relaçõesnecessáriasentre os conceitos categoriaisé
conhecer a estrutura necessária das coisas, como faremos para estabelecer essas rela-
çõesnecessárias?
Por onde começaremos?O quc podemos escolher como conceito
categorial no sentido do ato?
Porém, Hegel de fato responderia que essaúltima questão não é problema. Comece-
-sepor qualquer lugar. Tome-se como categoria qualquer um dessestermos muito gerais
com o qual tentamos designar um aspecto que perpassa toda a realidade -- "ser", "causa",
"substância", "quantidade", etc. De fato, Hegel começa com "ser", a categoria da "sim-
plesimediatidade" (WZ, vol. 1, p. 54), porque ela parece a mais vazia e a mais pobre;
ela,por conseguinte, não pressupõe nada além de que a realidade esteja sendo pensada.
E, por essarazão, ela é também a que se encontra mais distante do termo para o qual
estáse dirigindo, a saber, a noção do espírito; por conseguinte, ele passarápor todas as
demaiscategoriasno trajeto.
Assim, iniciando com "ser", temos de mostrar as relações necessáriasentre conceitos
categoriais.
Porém,como procederemos?Mostrando o movimento dialético nessescon-
ceitos.Como vimos, o movimento dialético estábaseadona contradição. Então, o que
temos de mostrar é que nossos conceitos categoriais como comumente os entendemos,
semrelaçãocom a necessidaderacional, são de alguma maneira contraditórios; e que
essa contradição só pode ser resolvida (ou, de Eito, reconciliada) considerando esses
conceitosinterligados numa estrutura racional.
z56 PARTElll l LÓGICA

Assim,começamos
com um único conceito,por exemplo,"ser", e nossatarefaé
mostrar que, tomado em si mesmo, ele gera uma contradição. Isso obviamente nos
levará para algum lugar; sendo uma contradição específica,ela exigirá alguma mudang
específicaou algum enriquecimento do conceito, e chegaremos, por conseguinte, a uma
nova categoria.E, a partir desseponto, uma nova dialética pode ter início. Já estamos
familiarizados com esseaspecto da diabéticahegeliana em que cada contradição tem um
resultadodefinido (WZ,vol. 1,P. 36-37).
Porém, como se mostra uma contradição num único conceito categorias?Como
mostramos que, por exemplo, "ser" ou "qualidade" ou "causa" são incoerentes? Está
claro que não estamosfalando de algum conflito empírico com os fatos. Nem estamos
fiando sobre uma contradição simples no interior do significado de certa expressão,
como temos, por exemplo, com "quadrados redondos". Em vez disso, estamosàs voltas
com uma contradição que aparecequando usamoso conceito como categorias,isto é,
como um conceito que se aplica à realidadeem geral.
Uma vez mais, vemos em Kant um precedente para o que estamostentando definir.
Nas antinomias kantianas, descobrimos contradições que emergem quando tentamos
aplicar certos conceitos de modo abrangente, isto é, com o alcance total de sua possível
aplicação.A lógica dessesconceitos parece permitir duas asserçõescontraditórias. Por
conseguinte, ao aplicar as noções de divisão do espaço e do tempo de modo sistemático
ou ao aplicar a noção de limite ao todo ou ao usar as noções correlativas de causaçãoe
liberdade em seu alcance plenamente legitimado, parecemos levados pelo nosso enten-
dimento dessesconceitos a fazer duas asserçõescompletamente irreconciliáveis, ambas
parecendo igualmente bem fundamentadas.
Hegel diz que Kant merecenossagratidão por ter reveladoessasantinomias, masque
tirou delasconclusõestotalmente erradas.Com efeito, ele ainda compartilhou o erro de
entender pensamento em oposição a realidade e, partindo de uma "ternura p'ra com
as coisas do mundo" (.Ê.[, S 48) tota]mente cora de propósito, procurou a base dessas
antinomias nos limites do nossoentendimento e não na real naturezadas coisas.Hegel
acrescentaque Kant apenasarranhou a superfície ao designar quatro antinomias (.EZ,
S 48; também WZ, vol. 1, p. 183-84). Na verdade, nosso pensamentocategoriasestá
permeado delas. "Devir, Ser Determinado, etc., e cada um dos demais conceitos poderia
prover a sua antinomia particular, e poderiam ser estabelecidastantas antinomias quan-
tos forem os conceitos que propusermos" (WZ, vol. 1, p. 184).
Por conseguinte, as antinomias kantianas são, aos olhos de Hegel, apenasexemplos
de algo mais generalizado. Quando consideramos nossos conceitos categoriais como
descrições da realidade como um todo ou de aspectos generalizados dessa realidade,
eles revelam uma inadequação crucial. E isso acaba nos levando a uma contradição
Com efeito, essesconceitos categoriais sáo inescapáveis; seu propósito é designar aspec'
tos indispensáveisda realidade, seé que afinal se pretende que haja uma realidade para
nós. Mas, então, quando essesconceitos retratam uma realidadeque é impossívelou
DIALÉTICA DE CATEGORIAS z57

é incoerente em algum sentido, somos pagosem contradição: asdescriçõesaparentemente


indispensáveisda realidade retratam uma realidade que não pode ser.
Hegel pensa que esseé o processo operante nas antinomias kantianas e sustenta que
ele tem uma aplicação muito mais ampla. Retratada dessemodo, a dialética de categorias
iS hegelianaparecerequerer duas linhas de argumentação separadas;a primeira mostrando
que dada categoria é indispensáve] (como Em Kart na ]ógica transcendental), a segunda
mostrando que ela nos leva a uma caracterização da realidade que de algum modo é
.0 impossívelou incoerente.De Eito, porém, Hegel funde as duas. Nesseponto, vemosde
outro ângulo a vantagem de começar com "ser". Ninguém pode negar que esseconceito
S deveaplicar-sea toda e qualquer coisa que pode ser realidadepara nós. Então, o nosso
argumentodialético, ao mostrar uma contradição em "ser", deduz a próxima categoria
(nesse caso, "ser determinado"). Mostra-se, por conseguinte, que essa nova categoria é
indispensável,visto que é introduzida como o único modo de resolvera contradição pre-
sentena categoria anterior, "ser", que Éoi tida como indispensável. Em outras palavras,
se "ser" deve aplicar-se,então "ser determinado" igualmente deve, visto que é o único
modo de dar sentido a "ser". Assim, o argumento dialético, ao deduzir um resultado
definido para cada contradição, forma um par com a lógica transcendental: ao mostrar a
r incoerência de um conceito, ela demonstra a indispensabilidade do próximo.
Porém, como podemos mostrar que um dado conceito retrata uma realidade impos-
sível?O que nos proporciona a complexidade interna que vimos ser essencialà dialética?
Qual é o "padrão" pelo qual podemos medir o conceito?A .respostaé que conhece-
moscertas propriedadesque servemde critérios que qualquer concepçãoda realidade
comoum todo devepreencher,como, por exemplo,que sejamoscapazesde distinguir
entre realidadee não-ser,que a realidadesustém a si mesma contra aquilo que a nega
e, por conseguinte, é capaz de existência continuada, que a realidade como um todo
sejaautossubsistente,etc. Temos, por conseguinte, a mesma relação de três termos que,
no último capítulo, vimos ser essencialà dialética hegeliana: um conceito da realidade
entra em conflito com aspropriedades que servem de critério para tai conceito quando
tentamos "realiza-lo", isto é, aplica-lo sistematicamente ao mundo. Enquanto conceito
da realidade, ele conflito com as próprias propriedades que Ihe servem de critério. E,
em consequência, qualquer realidade que corresponde a esseconceito tem de estar em
conflito consigo mesma.
Ora, a contradição na Lógica de Hegel advém do fato de que certos conceitos são tão
indispensáveisquanto incoerentes: isto é, enquanto conceitos da realidade eles estãoem
conflito com aspróprias propriedades que lhes servem de critério; e, não obstante, sendo
indispensáveis, eles têm de ser exemplificados. Essaé a chave para o empreendimento de
Hegel e ela merece ser examinada mais de perto.
Se um conceito fosse apenasincoerente, ele poderia ser posto de lado em favor de um
mais adequado. Ou, sendo indispensável, ele seria apenasinadequado em vez de incoe-
rente, não haveriaconHito em co/mpZememz#-io
com um mais completo. Ora, algumas
PARTElll l LÓGICA

das transições de Hegel parecem estar baseadasna simples inadequação, como, por
exemplo, aquela que ocupa o primeiro capítulo da Z,agirá,do Ser ao Ser Determinado.
A contradição se dá entre a pretensão de adequação por parte do conceito e sua inade-
quação de#acfa(ou é usam que se poderia argumentar plausivelmente; Hegel vê aí mais
do que isso).Não se afirma que o conceito deva ser realizadoprecisamenteno aspecto
em que ele é inadequado,isto é, que deva haver uma realidadeconflitante com asCon-
dições adequadas de sua existência, isto é, que deva haver uma realidade contraditória.
Porém,essaafirmaçãoé feita de modo mais incisivo em outras transições,como,
por exemplo, entre o Ser [)eterminado e a ]nfinitude, no capítulo ll da Z,ogzca,
que de-
sempenha um papel-chave no argumento da obra toda. Nesse local, não só ocorre que
o Ser Determinado enquanto ser limitado é inadequado como conceito da realidade e
requer ser completado por uma noção do todo. Hegel também tentará mostrar que essa
inadequação constitui um conflito interno, no qual a realidade determinada não aceitará
a sua inadequação, seuslimites deânitórios, e, ao lutar contra eles, luta contra si mesma.
Podemos dizer que, nessecaso, as propriedades que servem de critérios da realidade estão
em conflito umas com as outras. A realidade estáem contradição.
Porém, como pode a realidade estar em contradição? Em outras palavras, como po'
dem os conceitos ser tanto incoerentes como exemplificados?
Já estamos cientes de que, para Hegel, isso não representa um problema. Com efeito,
a realidade é incoerente, isto é, é presa de contradição. As categorias inadequadas apenas
correspondem à rea]idade parcial, inadequada; ambas necessariamenteexistem (logo,
as categorias são indispensáveis) e, não obstante, sendo contraditórias, necessariamente
sucumbem (logo, as categoriassão incoerentes). Por conseguinte, não estamos lidando
com uma dialética da ilusão, em que passamos por falsas concepções que estão Justa'
mente destinadasao esquecimento assim que alcançarmos a verdade; estamoslidando,
antes. com uma dialética da realidade. Disso decorre que a categoria adequada, à qual
finalmente chegaremos e que Hegel chama de Ideia, não estará situada além das catego-
rias anteriores, sem fazer qualquer referência a elas, mas as incorporará. Essacategoria
ostentará, em vez disso, a necessáriaconexão de toda a cadeia ascendentede categorias,
sendo que as mais baixas,enquanto indispensáveis e incoerentes, só podem ter aplicação
em relação às mais elevadas, porque a realidade que elas designam só pode existir como
corporificação necessária,mas autocanceladora da Ideia.
Esse é, então, o modo como expomos uma estrutura conceptual necessáriadas coisas.
Mostramos que nossosconceitos categoriaisindispensáveissão contraditórios. Porém,
enquanto contraditórios, cada um deles está necessariamente relacionado com outro que
resolve a contradição no seu nível. Consequentemente, temos uma relação necessária
fundada numa contradição. E isso combina perfeitamente com a oncologiade Hegel.
IJm dado conceito categorial é indispensável, ainda que incoerente. Isso quer dizer que a
realidadeparcial que ele designatanto tem de existir como, não obstante, destrói a si mes-
ma. Porém, isso só pode ocorrer porque a realidade mais elevada, designada pela categoria
DIALETICA DE CATEGORIAS ZS9

Lo. por
mais elevadaque resolvea contradição nessenível, também existe, e essarealidadeparcial
m tdo
continua existindo por ser inerente a essarealidade mais elevada.A realidade parcial que
continuamente destrói a si mesmasó pode continuar existindo se 6orcontinuamente pos-
p'' ,e-

ta pela ordem mais ampla da qual é parte. Por conseguinte, o Eito de avançarmosatravés
lm' S

da cadeia da necessidade conceitual mediante contradições e suas resoluções significa que


»'' :to
os termos inferiores estão relacionados com os superiores no sentido de serem postos por
p''
.a.
eles (por dependerem deles para existir), ainda que necessariamente postos (porque esses
10, termos são indispensáveis), e de necessariamente desaparecerem (por serem contraditó-
.e- rios). Porém, isso espelha exatamente a ontologia de Hegel, em que a totalidade maior ou
F' ue absoluta necessariamente resulta numa realidade exterior, parcial, que como expressão do
l e absoluto é contraditória e deve perecer.
Hegei de fato conseguiu demonstrar que a realidade é contraditória? O leitor terá de
julgar issoestudando a ZoKíra.Eu acredito que não. Mas isso não quer dizer que os argu-
uâ. mentos da lógica sejam todos Edhos. Pelo contrário, a obra é uma trama de argumentos
6t .0
poderososque evidenciam a fraqueza de outras posições âlosóficas. Porém, em momen-
tos cruciais, Hegel tenta 6orçá-losum pouco mais, tenta fazer com que forneçam a sua
po- visão ontológica. E é nesseponto que eles EHhamcomo argumentos. O que Hegel Eaz
com êxito é retratar uma estrutura das coisasque oferece "pistas e indícios" de sua visão
h'.: do espírito corporificado. A proposição às vezesé poderosa, mas nos pontos cruciais a
p-" prova conceitual é insuficiente.
A .L{Üfc'z,por conseguinte, apresenta uma cadeia de conceitos necessariamenteco-
:e
nectados que fornecem a estrutura conccitua] da realidade. Isso nos permite responder
h. to de modo mais satisfatório a questão posta anteriormente sobre o que Hegel considera
um conceito categorial. Partindo do conceito geral mais pobre, mais generalizado e mais
l .0 irrecusável, a saber, "ser", a cadeia de conceitos que é gerada no movimento dialético
li«d constituirá a lista de categorias,isto é, os conceitos geraisindispensáveisà descriçãoda
0- realidade.Essaparecesera ideia. De eito, porém, a prática é um tanto diferente. Como
La em outras dialéticas, Hegel estáansiosopor recolher todos os termos que plausivelmente
poderiam ser concebidos como categoriais e outros mais que são essenciaisà sua oncolo-
gia. A dialética procede de maneira a interligar essascategorias em sua cadeia conceptual,
lO o que significa que as transições nem sempre são eorçosase muitos desvios têm de ser
tomados em matérias essenciais,onde se teria esperado um salto imediato para uma
categoria mais elevada.
A Z,(Ü/camostra uma estrutura conceptual necessáriada realidade baseadaem con-
tradição. Ela mostra que a contradição pertence à natureza mesma das nossascategorias
(Z)enÉóesfímm ngrn, WZ, vol. 1, p. 38). Elas põem a si mesmas em movimento e, por
conseguinte,mostram que, no fiando, sáo conceito (.8rlge@no sentido hegelianople-
no, isto é, sujeitos que se autocorporificam. Então, o que a Z,(Üícdnos proporciona é a
formula básicada necessidade racional que corporifica a si própria e, por conseguinte,é
manifesta no universo.
z6o PARTElll l LÓGICA

Assim, a fórmula apresentadana ZaKfcaé, em certo sentido, o núcleo central do


autoconhecimento do Gfif/, a vida intelectual íntima de [)eus, ou, como Hege] formula
de modo um tanto passível de mal-entendidos (WZ, vol. 1, p. 31), é "a apresentação
de Deus [...] como e]e é em sua essênciaeterna anterior à criação da natureza e de um
espírito finito".: Se desconsiderarmosa interpretação desse"anterior" em sentido tem-
poral, que poderia entrar em choque com o que vimos que são as noçõesessenciaisda
oncologia de Hegel, podemos ver isso como outra expressãoda ideia de que a Z(eira nos
propicia uma imagem da fórmula conceptual da necessidade racional que é a essência
do Geffr ou de Deus. Ela nos mostra Deus em sua natureza íntima, por assim dizer, eH
vez de mostra-lo como poderíamos vê-lo refletido na natureza e na história. Uma visão
essencial,mas náo suficiente por si só.

L" Die DarsteLtung Genes [. .. ], tomeer in seinem ewige7t Wesen uor ókr Erscbajhttgc]er Natur Lnd eines erLdLicben
Geistesise
CAPÍTULO X

Ser

\:DASEIN

O primeiro movimento da lógica de Hegel, se pudermos nos valer dessa expressão


musical, perpassaos primeiros dois capítulos da primeira parte de Ser, Qualidade. De-
pois disso, no terceiro capítulo, Hegel toma outra tangente visando ligar esseprimeiro
estudocom a Quantidade; masos dois primeiros capítulos formam uma inquestionável
unidade de desenvolvimento.

O fio condutor dessemovimento é a noção de ser determinado. Nele, Hegel conse-


gue expressar sua visão ontológica básica do ser finito como o veículo necessário e, não
obstante, inadequado e, em consequência, desvanecentedo ser infinito. Ele estabelece
essavisão num argumento sobre o Ser.
O germe da coisa toda estácontido no famoso primeiro argumento das linhas iniciais.
Comecemos com a noção simples do ser e veremos que ela é inadequada. Nada simplesmen-
te é sem ter alguma qualidade determinada. O ser simples que nada Éoialém disso mesmo,
isto é, que não Eoinem animal, nem vegetal, nem mineral, etc., seria nada. E esteé o famoso
primeiro argumento da lógica: puro ser acaba sendo puro vazio, nada; e, reciprocamente,
essenada que é puramente indeterminado é equivalente ao puro ser.Consequentemente,
a noção do puro ser frustra seu próprio propósito. Não podemos caracterizar a realidade
apenascom ela, sendo forçados a avançar para uma noção do ser enquanto ser determinado,
que possui uma qualidade e não outra. O ser só pode ser pensado como determinado.
Porém, isso quer dizer que ser e não-ser estão interligados; com efeito, o único modo
de caracterizaro ser determinado é em termos de alguma propriedade, e termos indi-
cativos de propriedade só se tornam inteligíveis ao serem contrapostos, contrastados
uns com os outros. Nessesentido, Hegel retoma o princípio espinosianode que toda
determinaçãoé negação.O desfechodessaprimeira dialética do sere do não-seré, por
conseguinte, a síntese dos dois no Z)me/mou Ser Determinado.
Na exposiçãode Hegel, no entanto, não aportamosimediatamenteno Z)afim; a
primeira síntesede Ser e Nada é Devir, do qual também se pode dizer que une os dois:
aquilo que vem a ser ou que pereceestá se movendo do não-ser para o ser ou vice-versa.
Estáclaro por que Hegel quer introduzir o Devir aqui: porque ele é central para a sua
ontologia: o Ge/if só pode existir corporificado e, não obstante, as corporificaçõessão
PARTEíll l LÓGICA

todas inadequadase, em consequência,desaparecempara dar lugar a outras; o ser do


Ge/s/, por conseguinte, é movimento perpétuo, um perpétuo vir a ser e perecer.
Porém, a derivação de Devir, nesseponto, não é tão sólida quanto a do Dmejn. Essaé
a primeira, mas não a última passagem da ZoWca em que Hegel irá além do que fica estrj-
tamente estabelecido pelo seu argumento, por vislumbrar na relação entre os conceitos
uma indicação de sua oncologia: nessecaso, a universalidade de movimento e devir na
relação com o Ser e o Náo-Ser. Mas é claro que como argumentos comprobatórios essas

passagensnão são convincentes. Elas falham enquanto provas estritamente conceituais,


por mais persuasivasque sejam enquanto /nrer7rfíafóespara aquelesque sustentam,
visão hegeliana das coisas por outras razões. Portanto, nesse caso, a noção do Devir su-
postamente seimpõe devido à passagemdo Ser para o Nada e o inverso; mas essaé urna
passagemque nosso pensamentoé forçado a fazer quando contempla ambos.É claro
que, como sabemos,essadistinção entre pensamentoe realidade,em última análise,é
insustentável; mas não podemos tirar proveito desseprincípio no estágio anual.:Estamos
lidando com categoriasdo tipo kantiano, categoriasem que pensamossobre coisas;o
que temos de mostrar não é que, em nosso pensamento sobre as coisas, avançamosde
uma categoria para outra, mas, antes, que as coisas não podem ser concebidas em certas
categoriassem que outras também se apliquem. E isso é o que evidenciamosquando
estabelecemos que a categoria Se//z (Ser) só pode ser aplicada como Z.)me/n (Ser Deter-
minado), considerandoque ainda não demonstramosa necessidadeobjetivo do Devir.
Chegará essemomento quando examinarmos o Z)zzieinmais de perto e virmos que ele é
presa de contradição e, em consequência, de movimento

DASZIN

Essaé a tesebásicaque o segundo capítulo tenta estabelecer,e aqui se encontra a


crz/x do argumento. A contradição é atribuída ao Z)aie/m ou Ser Determinado pela via da
noçãoda negação.Vimos anteriormente que Darei/zé um casamentodo sercom o nada,
ou, como Hegel diria: da realidade com a negação. Examinemos isso mais devidamente.
No argumento complexo que segue, Hegel entrelaça uma quantidade de linhas avulsas
sem distingui-las claramente.

É claro que se tomarmos a liberdade de usar asconclusõesda FE, de que o conhecimento é uma coisa só
com o seu objeto, não há problema com essaderivação. Porém, com isso, roda a Zqgzra se converteria de
prova estrita em mera exposiçãode um princípio já estabelecido.Ela ficaria no mesmo nível dasdialéticas
dependentesque Ihe seguiram. Tendo em vista as lacunas presentesna /Z' enquanto diabéticaestrita, isso
seria fatal para o sistema de Hegel.
A despeito de certasreferênciasàs conclusõesda /;E' como ponto de partida da Zc@ra (por exemplo, IX;Z,
vol. 1, p. 30, 53), é duvidosoque Hegel de fato tenha pretendido tirar proveito dessasconclusões,emvez
de apenasvê-las como definidoras da íar(Éada Zcl©c.z.Porém, é possívelque ele não tenha esclarecidople-
namente ó seu pensamento sobre esseponto, o que pode explicar por que tomou a liberdade de emer passar
como argumentosessaspassagensde interpretação propositiva.
SER z63

ser do
Podemosconcebero serdeterminado como casamentoda realidadecom a negação,
;a e primeiropor causado princípio espinosianomencionadoanteriormente,ou seja,de que
estro- toda determinação requer negação. É essencial para o significado dos nossos conceitos
lhos descritivos que eles sejam contrastados com outros. Não podemos ter o conceito de forma
ir na quadrado" sem ter outros conceitos de forma, como "redondo", que possam ser contras-
essas tados com ele; não podemos ter "vermelho" sem "amarelo", "verde" ou "azul«, ou similar.
luals, Enriquecer nosso vocabulário de cores é acrescentar distinções ao nosso acervo de cores
a disponíveis. Isso é assim porque todos os termos indicativos de propriedades com os quais
su- podemos caracterizar o ser determinado são essencialmente contrastados com outros e por-
uma que só podemos apreender o ser como determinado, isto é, como tendo esta propriedade
.aro ou aquela, pois, de outro modo, caímos no vazio do puro ser; a caracterizaçãodo Z)me/m
como possuidor de uma qualidade é, ao mesmo tempo, sua caracterizaçãoem termos ne-
os gativos como não possuidor de outras. O objeto vermelho é também essencialmentenão
:; 0 azul; ele só pode ser apreendido como vermelho seÉorapreendido como não azul.
de Até aqui, tudo bem. O que pode nos incomodar é que Hegel parecedeslocar-sedesse
'tas ponto não excepcionávelde que toda a realidade tem de ser caracterizadacontrastiva-
.do mente, que nessesentido os seresdeterminados negam outros, para a noção de que os
:er- seresdeterminados se encontram envolvidos numa espéciede luta para manter-seem
face de outros e, em consequência, estão "negando" cada um dos outros num sentido ati-
re é vo. E essaconexão é essencialpara o seu argumento, como ainda veremos. O raciocínio
de Hegel não estáinteiramente claro nesseponto, e o argumento é exposto de modos
diferentes, com muito mais estágios na WZ do que na .EZ,.Porém, penso que podemos
tentar uma interpretação do argumento subjacente.
Mesmo que a qualidade com que caracterizamos um dado Z)aie/n possa ser definida
em contraste com propriedades imaginárias, isto é, propriedades que não estão exem-
plificadas, alguns dos contrastes em que baseamos nossas descrições têm de ser exempli-
ficados. Nesses casos, o contraste entre os D e/ e enquanto qualidades é um contraste
entre coisasdistintas: Hegel usa aqui a palavra "algo" (Efmzzi) a palavra "Z)/ng" [coisa]
é reservadapara um estágioposterior. Porém, quando Edamosde "algo", e não apenas
de qualidades, podemos ver que essesalgos não só estão relacionados contrastivamente
em nossa caracterização deles, mas que eles também incorrem numa multiplicidade de
relaçõescausaisuns com os outros, relaçõesque compõem o pano de fundo causalde
sua preservação,sua alteração ou seu eventual desaparecimento. Por estar em interação
causal com outras coisas, algumas das quais potencialmente destrutivas, um "algo" pode
serconcebido, antes, figuradamente como mantendo a si mesmo contra a pressãodo seu
entorno, como, por exemplo, um corpo rígido mantém suaforma contra (certo grau de)
le.
pressãoe impacto dos corposque o rodeiam.
Pode-sepensar,no entanto, que o argumento estáse tornando um pouco mais flexí-
vel aqui, pois pareceque estamosintroduzindo fatos que podem até ser bem atestados
pelo senso comum, mas a respeito dos quais não se comprovou que são características
z64 PARTErll l LÓGICA

necessáriasdo ser. Todos sabem que, no mundo, as coisas estão em interação causal, mas
não podemos afirmar ter derivado issojá no presente estágio. E o que é mais embaraço-
so, náo poderíamos afirmar ter deito isso explicitamente, porque as categorias vinculadas
com a causasáo reservadaspor Hegel para um ponto posterior na Lógica, ou seja,na
parte sobre a Essência.De Fato, no entanto, parece haver um conjunto implícito de
considerações aqui, que, estando implícitas, não foram claramente expressas.Elas talvez
possam ser explicitadas da seguinte maneira:
As propriedades com que caracterizamos as coisas não apenas são definidas contrasti-
vamente, mas também é parte essencialdo seu significado que elas caracterizemaquilo a
que se aplicam parcialmente em termos de suaspotenciais interaçõescausaiscom outras
coisas.Qualificar algo como duro é dizer algo sobre suapenetrabilidade,maleabilidade,
etc. em contadocom outrascoisas;qualifica-lo como quadrado é dizer algo sobreaquilo
que pode custar-se comodamentejunto dele e assim por diante. Essanoção da nossa
linguagem empírica baseadaem propriedades contrapõe-se à tradição empirista-cartesiana
que, a partir de uma imagem basicamente contemplativa da percepção, derivou o modelo
das propriedades puramente Êenomênicas. Os paradigma que melhor pareceram se ajus-
ta- a essemodelo foram as propriedadesacessíveisa um único sentido, dentre as quaiso
exemplo citado com mais frequência foi o nosso conjunto de termos que designam cores.
Ora, é bastante duvidoso se podemos abstrair termos puramente Eenomênicos designando
cores da trama de propriedades com as quais descrevemoso que percebemos. Pode-seargu-
mentar plausivelmente,por exemplo, que o vermelho tem uma aparênciadiferente quando
é visto como a cor de um tapete persa ou de um vaso, que, no espaço realmente percebido,
o visual não pode ser desintrincado do tátii. Porém, mesmo que esseponto seja deixado de
lado, estáclaro que não podemos tomar nossostermos abstratos designando corescomo mo-
delo para os termos que designam propriedades em geral, e que pelo menos a grande massa
destasé entendida em parte pelo tipo de interaçóes que atribuem àquilo a que se aplicam.
Partindo desseponto, podemos ver outro sentido no qual a qualidade do ser determinado
implica uma negação de outros seres.Ele não só é definido contrastivamente, mas também
é definido em partepelo tipo de interaçóescausaiscom outros em que os seresdessetipo
incorrem, entre asquais sempre estão em jogo a preservação, alteração ou destruição da coisa
concernida. Por isso, com uma pitada de licença poética, podemos dizer que a sua qualidade
defineo modo como uma coisapreservaa si própria ou, no final dascontas,sucumbe em seu
entorno, o modo como ela "nega" as potenciais "negações" de outras.
Acredito que Hegel tenha os dois pontos em mente, tanto o contrastivoquanto
a "negação"interativa, talvez sem distinguir ambos quando ele eda do Algo como "a
primeira negação da negação" (WZ, vol. 1, p. 102); desse modo, ele já prefigura com o
simples adie/m o princípio do retorno ao ff/fno outro, que chega à sua realização mais
plena no sujeito. Obviamente, isto é central para a ontologia de Hegel: a forma mais
t)aixa do ser tem de ser entendida como uma proto6orma imperfeita da mais elevada,
que é o sujeito (ibidem).
SER

.as E os dois pontos parecemestar na base do tratamento dado ao .Êkwaina WZ (vol. l,


P. 103-16). Primeiro, Hegel argumentaque Algo necessariamenteé em relaçãoa outro
Algo; em outras palavras, que deve haver alguns contrastes reais. De fato, podemos dizer
que cada algo é o outro de algum outro. A partir daí, ele avança pa'a a visão do Algo
como estando em interação e, em consequência, como tendo dois aspectos, o que ele é
em si(Hni/ró) e seu ser em relaçãoa outros (SfizZ/ãznmd'rzs).
O ponto que Hegel quer
provar é que os dois são inseparáveis,e ele interrompe o curso para dar uma estocadana
noção kantiana do Z)inK /z iicó [da coisa em si] (WZ, p. 108), isto é, uma entidade que
estariafora de qualquer relaçãocom outros e particularmente do nosso conhecimento
dela. Aqui, Hegel pareceestribar-se no ponto da interação, como pareceu Emer também
anteriormente na .ftE.:Algo que sepretende caracterizar em abstraçãode toda e qualquer
interação com outros deve permanecer para nós completamente em branco, indetermi-
nado, um nada. Caracterizar Algo tem de ser Edar de seu estilo de interação com outros.
Como Hegel chega a estabelecer que o E/mm está em contradição? Baseando-se nessa
noçãode negação;.Ngo só pode ser definido mediantereferênciaa outro com o qual
é contrastado.Esseoutro é a sua negação.E essanegaçãotem de ser entendida, não
simplesmente no sentido contrastivo, mas no da interação: o outro é o contexto causal
diante do qual Algo precisa manter-se; logo, ele é aquilo que negaAlgo no sentido mais
cortepossível,ou seja,aquilo que tenta suprima-lo.Mas, então, issoquer dizer que Algo
está em relação essencial com a sua própria negação, podendo dizer que, nessesentido,
ele tem sua própria negaçãodentro de si; logo, ele se encontra em contradição e está
fadado a desaparecer.
Esseargumento nos deixa desconfiados, e com razão. Com efeito, ele se vale de um
bom número de confusões.Em primeiro lugar, os dois sentidosde negação,o con-
trastivo e o interativo, são elididos no termo "limite" (Gr?nze).Algo só possui um ser
determinado atravésde seu limite contrastivo com outros. Nessesentido, seu limite é
constitutivodele."Somenterm seulimite e,porseulimite, Algo (.Ekwai)é o que é" (.ÉZ,
S 92, adendo). O limite não é para ser entendido em sentido quantitativo como a borda
de uma área.Antes, o limite qualitativo "atravessao ser-aí inteiro" króf z//eZmeór
2arró
íón ga/zze adiei óin2zfrfó)(ibidem) .
Porém, esselimite é comum com asoutras propriedades contrastadas.Ele também as
define e é constitutivo delas. Consequentemente, contendo-o, cada propriedade contém
tanto o que a nega quanto o que a constitui essencialmente.
Se mudarmos agora para o outro sentido de limite, o da interação, podemos dai- a essa
"negação"tanto um sentido lógico concreto quanto apenasum sentido lógico contrasti-
vo, e parece como se cada entidade contivesse essencialmente as sementes de sua própria
destruição. Mas, obviamente, por mais que estejamos tentados a EHar de algo que contém

: Capítulo11.Não pudediscutir adequadamenteessaspassagensno capítulo IV anterior. Mu cf meu ensaio"The


Opening Arguments of the PÉe/zamenoZaW".
In: Alasdair Maclntyre(ed.), /]rgfZ Nova York, 1972, p. 151-87.
z66 PARTElll LÓGICA

a sua negaçãono sentido contrastivo, quando avançamosaté o limite em que as coisas


"negam" uma à outra pela interação, é simplesmente Edso dizer que cada uma contém a
sua própria negação.Bem pelo contrário, na medida em que elasmantêm a si próprias, elas
excluem suas "negações". Se elas íàlharem em Emer isso, é claro que elas perecerão, mas elas
náo são essencialmente determinadas a Emer isso pelo próprio modo como são definidas.
Um campo, para usar o exemplo de Hegel (em ÉZ, S 92), é contrastivamente defi-
nido, digamos, em relação a um bosque e uma lagoa. É também passívelde ser trans-
formado em bosqueou pântano atravésde sementesque são transportadasaté ele ou
pela água que escoaaté ele, sendo que ele somente mantém a si mesmo graçasà sua
hospitalidade ao crescimento de árvores e às suaspropriedades de drenagem. Porém, o
sentido em que bosque ou lagoa são essencialmente postos em relação com o prado em
sua definição nada tem a ver com terem ganhado ou não um ponto de apoio real nele.
Certamente, está ligado ao princípio de que as coisasestão necessariamenteem inte-
ração causal umas com as outras o Eito de que elas sempre estão, em princípio, abertas à
alteração e destruição. Nesse sentido mínimo, tudo é mortal. Porém, Hegel deseja obter
mais. Ele quer mostrar, a partir da necessidadeconceitua!, aquilo que conhecemos ape-
nas a partir da experiência e de uma profiinda intuição, a saber, que todas as coisasnão
só podem em princípio perecer, mas que elas efetivamente perecem. Ele quer mostrar
isso porque é essencialpara a sua ontologia que todas ascoisasfinitas estejam em contra-
dição, por serem corporificações finitas do infinito e, em consequência, que elas #m 2e
perecer.E é essanoção de contradição e morte necessáriaque ele extrai como conclusão
da relação essencial do Ser Determinado com o seu outro.
E, preparandoa conclusãoontológica de todo essemovimento, Hegel dá o nome de
finitude" a essa condição de autocontradição mortal.

Quando dizemos que as coisassão finitas, temos em mente não só que elas
possuem determinidade, que qualidade é realidade e determinação existentes .z/z
s/rA, que elas são meramente limitadas e, em consequência, ainda têm o ser
determinado para além do seu limite e do seu ser. As coisas finitas são; mas sua
relação consigo mesmas é esta: sendo negativas, elas estão relacionadas consigo
mesmase, nessaautorrelação, remetem a si próprias para além de si mesmase de
seu ser. Elas são, mas a verdade desseser é seu fim. O finito não só muda, como
o Algo (E/wm) em geral, mas ele também parece; e seu perecer não é meramente
contingente, de modo que ele poderia ser sem perecer.Antes, faz parte do ser
mesmo das coisas finitas que elas contenham as sementes do perecer como o seu
próprio ser-em-si(/nf/cose/n):a hora do seu nascimentoé a hora de sua morte.
(WZ,vol. 1,P.116-17)'

3Traduzido a partir da tradução inglesa (levemente modificada pelo autor) de W H. Johnston e L. G. Stru
thers. ]n: ]=/eXf/tSr/f zreofZoWr. Londres, 1929, vol. 1, p. 142.
SER 2,67

Temosaqui um segundocaso,estemuito mais importante, em que Hegel corçaseu


argumentopara além do que ele pode render estritamente, e termina com o que, na
realidade,é uma interpr'cação das coisasfortemente indicativa de sua antologia, mais
do que uma demonstração estrita dela. O Eito de que tudo perece pode ser visto como a
manifestação de uma autonegação interna. Podemos recorrer a essee outros fatos sobre
o mundo para propor a visão que Hegel tem das coisas.
Porém, Hegel estávisando e tem de visar a bem mais do que isso. A contradição não
sóestádestinada a ser o objeto de uma prova estrita, como ocorre com todos os estágios
dadiabética.Mas, enquanto contradição no próprio conceito do Ser Determinado, ela
também demonstra que a morte de coisas finitas, tanto quanto a dependência destas de
uma totalidade maior (que Hegel chamará de o "inânito", como ainda veremos logo
mais),é uma questãode necessidadeconceptual. Com efeito, tanto o perecimento quan-
to a dependência ontológica do finito existem para resolver uma contradição conceptual
e, em consequência, obter a necessidade racional.
Como vimos no último capítulo, no sistema de Hegel, a necessidadeé impulsionada
pelacontradição.E é por issoque essadiscussãosobreo Z)me/ncomo finitude desempe'
nha um papel crucial em todo o argumento da Z,clgfca.Ela é o atestado da inter-relação
necessáriadas coisas. Podemos conceber a estrutura do mundo como necessária, porque
as coisas finitas, sendo contraditórias, estão ligadas ao todo da necessidade.
Pretende-seque a contradição no finito estejabaseadanisto: o ser tem de serdetermina-
do, como vimos na diabéticainicial. Existir é existir com uma certa natureza determinada, em
conüonto com outras possíveis.Determinação é uma propriedade que servede critério para
a realidade.E visto que indubitavelmente há realidade(de um tipo ou de outro), deve haver
serdeterminado. Ou, formulado de outro modo, visto que "ser" deve ter aplicaçãoe visto que
elesó pode se aplicar enquanto determinado, então "Ser determinado" deve ter aplicação
Mas então descobrimos que ser determinado é conter dentro de si a sua própria ne-
gação.E o que quer que contenha a sua própria negação não pode sobreviver. Por conse-
guinte, a determinação mesma que a realidade deve ter para que exista tende a anula-la.
Ela é contraditória; e essacontradição afeta o seu próprio conceito. Não estamos Edando
apenasde algum conflito acidental de requisitos, em que, por exemplo, algum remédio
que devo tomar para uma doença tende a agravar outra. Esseé um conflito de requisitos
que prevaleceem virtude de fatos contingentes sobre mim.
Porém, estamosEdando aqui de um conflito de propriedades que servem de critério
t
para a "realidade" ou o "ser", de um conceito que drz,e se aplicar. O ser tem de ser de-
terminado e, ao mesmo tempo, ele precisa evitar a anulação. Assim sendo, o conflito é
conceptual, necessário, isto é, contradição em sentido pleno; e ele existe também nas coi-
sas.E por issoque o movimento que ele impulsiona nascoisasfinitas é conceitualmente
necessário,assim como é a relação delas com uma totalidade maior.
Um conceito indispensável possui uma aplicação incoerente. Podemosver agora por
que Hegel encarou as antinomia kantianas como exemplos de um conHito generalizado
z68 PARTElil l LÓGICA

que a sua Z,({@ra


explicitada. Porém, ele não adotará a linha de Kant de que a incoerência
está em nosso modo de representar a realidade mais do que nas coisas mesmas. E, de
Eito, a linha kantiananão entraem cogitaçãoaqui. Porquenão estamoslidando mera-
mente com conceitos como "divisibilidade" ou "limite", a respeito dos quais poderíamos
plausivelmenteargumentar que pertencem a uma representaçãodas coisasno tempo e
no espaço,que é tudo o que nós, mortais, logramos alcançar.A contradição que puse-
mos a descoberto diz respeito ao "Ser", isto é, ao conceito da realidade em geral.
Este argumento de Hegel tem, por conseguinte, importância ontológica. Ele teria
consequências imensas se fosse válido. Infelizmente, porém, ao ligar determinidade com
autoanulação, ele constrói, como vimos, sobre um equívoco a respeito do conceito de
negação,e isso é fatal para o argumento. O que Hegel acaba nos proporcionando é,
muito antes, um retrato da mutabilidade de toda a realidade enquanto realidade que se
origina de um conflito interno, da negaçãodo ir/6 Porém, por mais fortemente sugestiva
que seja, a linguagem da autocontradição não fica estabelecidapor uma prova estrita.
O único iÍafz/i que ela pode reclamar com sucessoé o de uma glosa mais ou menos per-
suasiva sobre os fatos referentes à finitude.
Hegel passaa discutir a contradição nas coisas como "finitude". E, ao recorrer a essa
noção, ele apresentaoutra explicação para a sua morte necessária,que é o reverso da
anterior. No esforçopor preservara si mesmas,as coisaslutam para superara sua ne-
gação.Ora, o seu limite, como já vimos, é a negaçãode uma coisa finita; por isso,elas
procuram ir além do seu limite. Porém, visto que o limite é também aquele que as define
e, em consequência,as constitui, o ato de ultrapassaro limite constitui a suadissolução
ou a suatransformaçãoem algo inteiramente diferente. Essemodo de colocar ascoisas
obviamente se vale da mesmaconfissãomencionada anteriormente: o sentido em que
uma coisa, ao desenvolver ou preservar a si própria, pode ser concebida como fazendo
recuar um limite de interação não tem conexão intrínseca nenhuma com a abolição de
um limite qualitativo. Porém,essemodo de colocar as coisasapresentao impulso rumo à
destruição como proveniente da própria coisa e de sua busca por realizar-seplenamente;
e é claro que isso é um modo de formular o assunto que combina com as conclusões on-
rológicas subjacentes para as quais Hegel está se deslocando, isto é, que as coisas finitas
desaparecemprecisamente porque são tentativas de corporificar o infinito, que a morte
é, por conseguinte, a sua realização plena.
Hegel formula estaúltima explicaçãoda contradiçãocom outros termos;o limite
(Gr?/zze) é chamado aqui de "limite" ou "barreira" (Scóxa#Ée), e o impulso interior de
concretização é chamado de "dever" (Sa/Ze/z).Essestermos em particular obviamente
são introduzidos para permitir uma referência aos erros de Kant e Fichte, cuja ética e
metafísica estão vinculadas com a noção de um objetivo que nos comprometemos a
buscar, mas que jamais conseguiremos realizar. Em particular, a crítica de Hegel à ética
de Kant, como já vimos, é que Kant é concebido como tendo apresentado uma oposição
entre natureza e obrigação, de tal modo que os sereshumanos devem sempre tentar fazer
SER 2,69

comque aquela corresponda a esta, para colocar o mundo e a sua própria sensibilidade
ernconformidade com a ]ei moral e os ditames da consciência, mas que elesnão podem
ser bem-sucedidos nisso sob pena de derrubarem a distinção entre as duas e, em conse-
quência, eliminarem a lei moral e o dever.4 Esse dilema da moralidade kantiana é muito
comentado por Hegel, e ele obviamente prevê o modelo para a descrição da contradição
entre SaZ&'ne Sróxn7zÉrnesseponto, um "dever" que necessariamente destrói a distinção
sobrea qual está fiindado visando à sua própria realização.

INFINITUDE

O uso da palavra "So/Zr#" é suficiente para advertir-nos, se já não o sabíamos, de que l


{

aindanão chegamosao termo final dessemovimento. Com efeito, a finitude que está
vinculada ao "dever" é do tipo que gera como termo correspondente o "mau" infinito,
f
X
como qual Hegel tem em mente uma forma de infinitude que não é abarcável,que r
nãoé mantida numa estrutura coerente,sendo,em consequência,sem limites em outro
sentido.Podemos recordar-nos aqui de que a noção hegeliana de infinitude é a de uma
totalidade que não é condicionada nem limitada por outra coisa; mas isso não quer dizer
queo infinito não tenha estrutura ou forma; isso quer dizer apenas que ele não tem re-
laçãocom nada cora dele. Um universo infinito, por conseguinte, não é necessariamente
ilimitado; ele pode ser, antes, um todo ordenado, cujos elementos estão relacionados
exclusivamente entre si. Essa de fato é, para Hegel, a verdadeira noção do infinito, uma
noçãoontologicamente fiindada na natureza do espírito inânito. E oposta ao infinito
como o meramente sem limites, a extensão indefinida que não possui unidade interna.
Por conseguinte, para Hegel, o verdadeiro infinito une o finito e o infinito, e isto de
dois modos. Primeiro, ele se recusa a ver o finito e o infinito como separados e em oposi-
ção um ao outro, pois, nessecaso, visto que eles não podem deixar de estar relacionados,
o infinito estaria relacionado com algo que não era ele próprio e, em consequência, não
seriainfinito. O infinito deve,portanto, englobar o finito. No seu nível maisbásico, isso
remetea opção de Hegel por um absoluto que não estáseparado do mundo ou além dele,
mas que o inclui como a sua corporificação.
Porém,em segundolugar, o infinito não pode apenasincluir o finito assim como
progressosem fim inclui os termos individuais que o perfazem. No sentido de Hegel,
issoigualmenterepresentariaum fracassoem unir o finito e o infinito, visto que a unida-
dejamais poderia ser consumada. Por mais que se estenda um progressocomo infinito,
semprehá mais alguma coisa pela frente. Com base nessemodelo, o infinito jamais po-
deráser um rodo ordenado em que os vários elementos anitos têm um lugar necessário.
Por isso, a noção hegelianade infinito é a de uma vida infinita corporificada num
círculo de entes anitos, cada um dos quais é inadequado a ela e por isso sucumbe, mas
é substituído por outro numa ordem necessária,sendo que a série toda não é ilimitada,

' Cí:a discussão


desse
pontono capítuloVI, 3
2,7o PARTElll l LÓGICA

mas fechada em si mesma dentro de um círculo. Desse tipo é o círculo de categorias que
perfazem a lógica, o círculo de níveis do ser que perfazem as filosofias da natureza e do
espírito, o círculo de papéisque perfazem o Estado. Tais totalidades ordenadas não estão
relacionadas com nada cora delas mesmas. Os elementos de Fato são finitos e perecíveis
ao passo que o todo é infinito e eterno. Porém, não há separaçãoentre os dois porque o
infinito só existe dentro da ordem necessária do finito.

Essaé a concepção do infinito à qual Hegel quer nos conduzir agora. O Z)aie/n
enquanto ser determinado que necessariamentesucumbe é finitude. A coisa deter-
minada está relacionada com outras fora dela, tanto estaticamente, em contraste e
inreração com outras coisasfinitas, quanto dinamicamente, pelo fato de sucumbir e
ser substituída por outras. Isso, porém, requer outra categoria.O finito assimdefinido
não pode subsistir por si mesmo, porque o ente finito sempre nos remete para além
dele próprio. Necessitamos de outra categoria para englobar o todo da realidade ou a
realidade enquanto autossubsistente.
Denominemos essanova categoria "infinitude". Concordaremos, então, que ela não
pode ser concebida como algo que existepara além do finito. Em primeiro lugar, por-
que já vimos que o ser não finito, o ser náo determinado, é equivalentea nada,e assim
tal infinito seria vazio. Em segundolugar, esseinfinito vazio teria algo fora dele, como
acabamosde argumentar e, em consequência, não seria o verdadeiro infinito nem um
conceito do todo. Esseinfinito seria finito. Porém, nós tampouco podemos concebê-lo
como meramente ilimitado. Com efeito, isso também Edharia em proporcionar-nos um
conceito para um todo autossubsistente. O finito é dependente de outras coisas, tanto
em cada momento do tempo como também pelo fato de provir de outras coisasfinitas.
Porém, relaçõesde dependência não podem ser alongadas infinitamente porque senão
nada jamais viria a ser.À medida que delineamos as relaçõesde dependência temos de
chegar consequentemente a um todo que é autossubsistente, que não é dependente de
nenhuma outra coisa cora dele.

O conceito do infinito deve, por conseguinte, ser o de todo o sistemade coisasfinitas


e de suasre]açóes,o qual não é, elepróprio, dependentede ou limitado por qualquer
outra coisa.Esseinfinito inclui o finito; eleé, em certosentido,idênticoao finito, mas
é também um todo abarcável.

Tomo isso como o ponto essencialdo argumento de Hegel, embora ele não seja
exposto nessestermos nem estejainteiramente claro o que ele quer dizer. O argumen-
to contra o infinito vazio por trás está suficientemente claro, mas a transição crucial
nas duas versõesda lógica é a do mau infinito do progressoinfinito para o verdadeiro
infinito. O mau infinito nos apresentauma sérieinterminável de coisasfinitas, cada
uma dasquais desaparececomo tem de ser e é substituída por outra. A passagempara
o verdadeiro inânito se dá quando vemos que cada algo que desapareceé substituí-
do por outro algo finito. Há identidade na mudança: "e assimAlgo (Ermas),em seu
passarpara outro, só vem a coincidir coniilgomesmo"(io g?óf ó/erm/f Etm / ie/ em
SER z71

ZI f/lgrÓr i# .,4m2erei/z r mit sich selbst z i mera) (.EZ, S 95).S Esta é a "verdadeira
\nhn\tuàeu (die wabrba$e Unendlicbkeità.
Entendo essatransição da seguinte maneira: se conremplarmos a sucessãode coisas
finitas em que cada uma passae é sucedida por outra, somos consequentemente forçados
a mudar o nosso ponto de referência central das coisas finitas efémeras particulares para
o processo contínuo que prossegue através do seu devir e perecer. Essa é a identidade na
diferença. Porém, o Zocz/idesseprocesso não é qualquer coisa finita particular, mas todo
o sistema de coisas efémeras, limitadas.
Essapassagem
de uma noção de realidadelimitada, dependente,para uma noção
complementar de uin todo autossubsistente é um passoque Hegel dará muitas vezesno
decorrer da Z(eira. E uma arma crucial no seu arsenal. E ele a usa aqui de modo eficaz.
Porém,a categoriada infinitude que Hegel deriva aqui é consideravelmente mais rica do
quepodemos estar dispostos a atestar com base no seu argumento. Que uma noção do
finito e do dependenterequer uma noção complementar do todo pode até ser pronta-
mente atestado.Porém, a "infinitude" de Hegel não é meramente a noção de um todo,
mas de um todo cuja articulação interna e cujo processo se desenrolam por necessidade.
Porconseguinte, Hegel Eda dessaconcepção de unidade de finito e infinito como da
descoberta
da "ldealidade"(.ÉZ,,S 95 [ed. bus. p. 193]). Chegamosao entendimento
mais pleno possível das coisas quando as relacionamos com a necessidade, cuja fórmula
estáexpressana Ideia, em algo que seaproxima do sentido platónico. Consequentemen-
te, "a verdade do infinito é [...] sua idea]idade" e "toda verdadeira fi]osofia é por isso um
àeahsmd' pede wabrba$e Pbilosopbie ist deswegenlckalismusb (Tb\&emÕ
.
O que permite essaconclusãomais corte é o argumento anterior que examinámos
acimae que mostra o finito como o Zacz/ida contradição. Seo infinito Gortodo o sistema
de mudanças que o finito experimenta e se essasmudanças forem impulsionadas pela
contradição, então o processointerno do infinito é governado pela necessidade.
Examinemos isso um pouco mais de perto Uma coisa finita sucumbe por necessi-
dade. Porém, ao sucumbir, ela não simplesmente desaparece. A própria negação da qual
ela padeceé determinada e, em consequência,ao romper-se, é substituída por outra
coisadeterminada -- por exemplo, madeira queimada se converte em fiimaça e cinzas.
De qualquer modo, não podemos conceber que as coisasdeterminadassimplesmente
desaparecem,porque, como vimos, o ser tem de ser determinado e, visto que Ser é um
conceito indispensável, ele é Z)afe/n.ó

5G. W F.Hegel, Enr/rbpé21 Zn C é/zrl .fçüs(8f zi em Co/npézzdfa.


Volume 1: A Ciência da Lógica.Trad.
de Paulo Meneses. São Paulo, Loyola, 1995, p. 191
' Podemos formular esseponto de outra maneira: se concebermos que as coisas finitas simplesmente desapa-
recem,retomamos a uma categoria do Nada. Porém, no contexto da Zckírd, em que estamoslidando com
categorias,isto é, conceitos que transportam alguma realidade, o Nada náo pode ser não-ser absoluto, o que
quer que seja isso. Ele deve ser concebido, antes, como uma realidade que não é isto, não é aquilo, em suma,
que não é qua]quer coisa determinada. E]e é, portanto, equiva]ente a Ser, nosso ponto de partida, e como ta]
z7z PARTElll } LÓGICA

Por conseguinte, a morte de uma coisa finita é o nascimento de outra. É aqui que o
pensamento não especulativo comum tenta evadir-se da questão. Quando ele se eleva a
uma intuição da mortalidade inescapáveldas coisasfinitas (mesmo que não vislumbre
nisso uma contradição), ele naturalmente pensa o finito como sustentado por um ser
infinito que estáalém da finitude. Esseser substituiria as coisasfinitas à medida que elas
perecem. Porém, essetipo de ser infinito é impossível com base no argumento de Hegel.
Em primeiríssimo lugar, porque ele não poderia ser sem ser anito, isto é, determinado.
E, em segundo lugar, ele de fato é sub-repticiamente definido como determinado, visto
que ele é co/z/zas/adacom o finito. A noção de tal ser infinito constitui uma contradição.
Consequentemente, a infinitude, o todo autossubsistente que somos forçados a assu-
mir uma vez que captamos a mortalidade do finito, só pode ser todo o sistema de seres
determinados mutáveis. Não há fundamento para coisasânitas cora do sistemado finito.
Consequentemente, não há conte cora do sistema na qual podemos nos basearpara explicar
o devir de novas coisas finitas. O seu devir é apenas o perecimento dos seus predecessores.
Porém,o predecessor
sucumbepor necessidade
conceitual. Com efeito, a suamorte é
a resolução da contradição. Consequentemente, o sucessor vem a ser por necessidade con-
ceitual. Porém, todas as coisas finitas são as sucessorasde algumas outras. Assim sendo, não
só o perecimento, mas também o devir de coisasfinitas acontece por necessidade.
Por conseguinte, o infinito enquanto todo o sistema de mudança das coisasfinitas é
o desdobramento por necessidade conceitual, porque essascoisas mudam e se mobilizam
numa tentativa perpétua de resolveralguma contradição. A contradição é o motor das
coisas.E elaa6etatudo, de modo que tudo é atingido ao longo de um Devir perpétuo
(WZ, vol. 1, p. 138). O infinito só pode ser o todo, e o que permaneceidêntico é a 6r-
mula "por necessidade" que percorre todo o ciclo de mudanças.
Devido a essanecessidade
interior, o infinito náo é meramenteo todo no sentido de
uma coletâneade coisasfinitas em que nenhuma foi deixada de cora ou de um grupo
de coisasfinitas que estãoem interaçãocausalcontingente. É uma totalidade, um todo
cujas partes estão intrinsecamente relacionadas umas com as outras, isto é, em que cada
uma delas só pode ser entendida por meio de suas relações com as outras. Porque essas
partes ou coisas finitas surgem e se sucedem por necessidade conceptual. Por conseguin-
te, a concepçãohegelianade contradiçãodo finito vimos que elavai alémdo que
seu argumento poderia sustentar já está tendo importantes consequências.Faz toda a
diferença ver o todo como um agrupamento contingente de coisasfinitas ou vê-lo como
uma totalidade que merece ser chamada de "infinito" no sentido hegeliano do termo e
na qual se considera que o finito tem a sua verdade na Ideia.
Por causa disso, a noção hegeliana de infinitude já contém o caráter essencial de sua
visão ontológica e da categoria final da Z,(Ü/ca,a Ideia. É um sistema autossubsistente,

ele gera o Ser Determinado uma vez mais. Por conseguinte, o Z)asf//znão pode desaparecer.CE WZ, vol l
p- 118-19, onde Hegel eazalusãoao paralelo entre a diabéticado Nada e a do anito.
SER

quem cuja estrutura é determinadapor necessidadeconceptuale que é corporificado em


.evaa coisas finitas.
.bre Mas a Infinitude ainda é uma versão pobre e abstrata da Ideia. Porque só sabemos
ser que ela possui uma estrutura necessária implementada no espaço e no tempo' Nós ainda
.eelas não estamos em condições de definir as articulações dessaestrutura. Isso se resolverá com
[egel. as categorias seguintes e mais ricas da Z,OKfca.
.do. Ao deslocar-nosdo Dmeizzpara a Infinitude, mudamos o centro de gravidade da
visto realidade. Em vez de vê-la simplesmente como uma coisa particular, passamosa vê-la,
antes,como centrada num processoque transcorre por meio de trans6ormaçóes,do devir
e do perecerde muitas coisas.E issoestáem conformidade com todo o desenvolvimento
seres da lógica, sendo que cada estágio nos leva adiante na direção da interioridade, isto é,
adiante na direção de uma noção de um ser centrado em si mesmo, interiormente articu-
lado e implementando sua atividade autónoma, em suma, cada vez mais perto do mode-
ares. lo do sujeito. A primeira noção do Erw.zi como negaçãoda negação,como um ser que se
arte e autossustenta, já nos coloca nesserumo; agora, damos um passo adiante, desvelamos um
pQ- centro mais profundo, cuja atividade não eoi implementada simplesmente em prol da
não preservação dessacoisa, mas em prol de uma série ordenada de trans6ormaçóes, devires e
pereceres.Temos uma negaçãoda negação num nível mais profundo, uma unidade bem
é mais abrangentee, em consequência,um grau bem maior de interioridade; ou, formu-
lado de outra maneira, um nível mais profiindo de conexão entre as coisasque passaa
das embasar não só a preservação de coisas díspares, mas as transformações de uma na outra.
.0

Consequentemente,o primeiro movimento da lógica termina com Hegel tendo es-


ll'-
tabelecido (para a sua própria satisfação) a sua visão ontológica básica do ser anito en-
quanto veículo de uma vida infinita que não estáseparadadele, e isto, tomando como o
ponto de partida básicoque o ser necessariamentesejadeterminado. A diabéticado Ser
engendrao Z)me/m,e o Z)mei/z,enquanto mistura de realidadee negação,sere não-ser,
é interpretado como inerentementecontraditório, logo, como contendo a suaprópria
destruição.Essanaturezacontraditória autodestrutiva é finitude, mas o impulso para a
dissolução é interpretado como o transcender de uma barreira e, em consequência, como
impu[so paraa infinitude, o qual é visto, então, como a vida inerente ao devir e perecer
do finito. Consequentemente, Ser e Não-ser unem-se não só no Z)meia, mas também no
Devir, como foi dado a entender talvez um pouco prematuramente na primeira diabética.
10

e
11 QUANTIDADE

No último capítu]o de "Qualidade", intitu]ado ".FZZzx/case/n"


[Ser para si], Hege] Eaz
.a

a transição para a quantidade. Essatransição pode parecer um tanto forçada, e de batoé.


Ela oferece outro exemplo da guinada que temos percebido com frequência na dialética
1, hegeliana: onde Hegel "volta atrás" do ponto alcançado, visando retomar e "alimentar" a
suadiabéticacom algumaoutra ordem importante de conceitos ou transições.
z74
PARTErll l LÓGICA

Isso parece ser o casoaqui, pois o que emergiu do Z)mr/n eoi, como vimos, Uma
noção de vida infinita que [em continuidade no devir e perecer do Z)mei/z,da realidade
enquanto relacionada com "idealidade". Consequentemente, temos a ideia de um ser
que sobrevive à morte dessaqualidade. Usando uma linguagem mais hegeliana, temos
um ser que negaas suasdeterminações particulares ou que retorna a si mesmo vindo do
outro pejo qual é determinado ("zí r 2ZzcÓe
.RÜc&#eÓr! j/cÓ" [WZ, vo]. ], P. 147]) ou
que é "simplesrelação.consigomesmo" (r//eÁacÓe
.Bez/rZ'wng
'zz#'sjcÓ)
( WZ, vol. 1, P. 147).
Essaé a noção hegeliana do /%z3icÁir/, Ser-para-si, o estágio que agora alcançámos, e não
surpreende que Hegel cite o "eu" da subjetividade como exemplo paradigmático. Com efei-
to, o sujeito enquanto consciência tem um certo objeto diante dele e, enquanto consciência
de si, tem um certo conjunto de características,mu ele "retorna a si mesmo" a partir dessas
característicasno sentido de que ele não pode ser identificado com elas,de que objetos e
característicasmudam ao longo da vida dessapessoaidêntica. É claro que o próprio sujeito
humano acaba sucumbindo, e o exemplo supremo de /Un/cose/ é o sujeito absoluto'''a
vida tem continuidade através de toda a série de mudanças na realidade exterior. '
isso pode estar suficientemente claro em termos hegelianos: parece que, no
/ zsjcóse/n,derivamosa noção do sujeito enquanto vida veiculadapelo devir e pelo pe-
recer de sua corpori6cação exterior. Porém, não é aí que queremos chegar nesse estágio
da /lqgzca;issoseráfeito no lugar apropriado,no terceirolivro. O que queremosderivar
nesse estágio é simplesmente a Quantidade.

Por isso, Hegel intervém para orientar o tráfego. Ele nos lembra de que ainda estamos
no nível do Ser,ou seja,aindaestamosexaminandoa realidadeenquantosersimples
unidimensional, não como emanação ou manifestação de algo. Isso se dará só no segun-
do livro, sobre Essência.Consequentemente, a questão a ser tratada aqui não pode ser a
noção de sujeito. Porém, se transpusermos essanoção mais plena para o contexto mais
pobre do simples ser, derivamos uma nova forma que pode ser o ponto de partida de
uma nova dialética.

Essanova forma é o simples ser, mas o que ela retém do sujeito, o que justifica
chama-la de "/Uxi/cóíe/m", é a negação, por parte dela, de sua determinação especifica.
serseparado como tal sem qualquer qualidade específica.Porém, Hegel afirma que
isso não é um retorno à indeterminação do puro Serdo qual partiu a Lógica, porque essa
indeterminação é posta pela autorrelação do EãxK/cose//z,
emergindo da diabética.E claro
que com issoHegel pareceobter o melhor resultado possível,retendo aquelasprerroga-
tivas do sujeito de que necessita para o seu argumento, enquanto permanece na esfera do
Ser; mas abramos mão dessaobjeção para acompanhar o seu argumento.:
Ora, Hegel chama esseser de "o uno"; e podemos vislumbrar a lógica subjacen-
te a isso, mesmo que a derivaçãoEditapor Hegel pareça muito mais fantasiosa.Com

l ZgZq@güeÓ .f;êgr/comi'sse pon'o, expressapor Jean Wãhl, "Les Cours de Sorbonne". In: Commf zn/x?fdr
SER z75

h ü" .a

efeito, um ser dessetipo só pode ser isolado, isto é, distinguido de outros, por algum
P'' .e
procedimento do tipo enumerativo. Em outras palavras, só podemos identificar um
ser serparticular dessetipo atribuindo-lhe algum número numa série ou alguma posição
LOS ordinal. Porque todos os seresdessetipo são idênticos pelo fato de não terem qualidade
.0
determinada; eles só podem ser distinguidos numericamente.
É claro que, nesseargumento, dou por assentadoque identiâcar "o uno" é o mes-
mo que distingui-lo de outros, que um ser dessetipo só é concebívelcomo um entre
muitos. Ou como um ser sem diferenciação interna poderia ser identificado a não ser
em contraste com outros? O espírito absoluto em sua manifestação plena de fato tem
de ser identificado sem contraste, mas sua vida é a enter-relação necessária de realidades
ricas e variadas, cuja identificação em contraste com cada outro não apresenta problema.
e
Porém,aquilo que não possuidiferenciaçãointerna não pode ser identificado pelo que
contém ou inclui: por conseguinte, ele só pode ser isolado por aquilo que "nega". Esse
ía 6oi o caso com o Z).zse/n,que, sendo identificado com uma qualidade simples, era indife-
renciado e, em consequência,teve de ser contrastado com outros para ser determinado.
Porém,aqui o uno não só é indiferenciado, mastambém sem qualidade específica;ele
não pode ser contrastado qualitativamente com outros, só numericamente. "0 uno" tem
de existir como um entre muitos.
Esseargumento nos traz até a Quantidade. Porém, embora ele possa ser concebido
como embasamento do raciocínio de Hegel neste ponto, sua derivação da Quantidade
assume uma forma bem diferente. Ela passa, antes, pelas noções de repulsão e atraçáo,

que Hegel, seguindo Kant, pensavaserem essenciaisà física (logo, dignas de serem deri-
vadas como estágios na ZlóKic.z).
Esseé outro exemplode um desvio a ser tomado no que Hegel julga seremnoções
essenciais.A derivação da repulsão, que não podemos abordar aqui, depende da ideia de
que o uno, ao negar a sua própria determinação qualitativa, possui uma "relação negativa
consigo mesmo". Consequentemente, o uno tem de tornar-se muitos. Porém, ao mesmo
tempo, os muitos que se originam do uno são, no final das contas, idênticos, homogê-
neos.A relaçãode cada um com os outros é também uma autorrelação- Por conseguinte,
há igualmente atração.
Antes de derivar a repulsão(na WZ), Hegel associaa ideia do uno com a âlosoâado
atomismo, como formulada por Demócrito. Os átomos de Fatosão "unos" nessesentido,
porque são internamente indiferenciados e totalmente sem qualidades, por não oferece-
rem absolutamentenenhum contrastequalitativo uns em relaçãoaosoutros. Hegel tenta
explicar a ideia de que os átomos seencontram num vácuo, nos termos de sua noção do
uno: o uno é desprovido de qualidades, é vazio, sendo ele próprio vácuo nessesentido;
ele só permanece para separar os dois momentos do uno, seu ser aârmativo e sua vacui-
dade,visando pâr átomos num vácuo circundante.
Porém, o atomismo oferece-nosuma noção inadequada dos unos, porque ele con-
cebe sua relação entre si, sua combinação, como puramente contingente; como um
z76
PARTEill l LÓGICA
SER z77

entendidaem termos de quantidade (tanto quanto tempo e espaço,obviamente). Po-


rém, o materialismo está sujeito a ignorar todas as conexões importantes que expressam
a estrutura necessária do mundo.
Em consequência, Hegel dá pouco valor à matemática como linguagem filosóâca; a
matemáticanos conduz para além da observaçãomeramente sensível, mas ela nos pro'
norciona só as relações mais externas, isto é, as não conceituais.
Porém, mesmo estando asseguradaa pobreza da matemática, como é que a caracte-
rizaçãodascoisasem termos quantitativos nos leva à contradição e, em consequência,a
categoriasmais elevadas?Hegel chega a esseponto na terceira parte do segundo capítulo
sobreQuantidade. Aii, ele retoma a característicaque mencionamos anteriormente, a
saber,que quantitativamente considerada, as coisas são indiferentes aos seuslimites,
náo havendo razão para seccioná-las num ponto e não no outro. Na seção considerada
aqui, Hegel formula o ponto de uma maneira que lembra a discussãosobre Qualidade:
um gWan/zímnão tem como não alterar seu limite; ele inevitavelmente fica maior ou
menor e, em consequência, torna-se outro gwa/zfz/m.Porém, esseprocesso não possui
ponto de chegada natural, daí que a autoalteração do gz/zzmfz/m
é um progresso infinito,
exatamentecomo foi a autoalteridadedo adie/ . E, a exemplo desseúltimo processo,
Hegel parece considerar este como contraditório, como requerendo alguma solução.
Porém, aqui sepode pensar que Hegel é um pouco brioso em suastransições.Tendo
assegurado
que Quantidade é o domínio em que as coisassãoindiferentes ao seulimite,
como issomostra que os gz/ z /a devem ir além de si mesmos e mudar? (O que quer que
issosignifique.) E mesmo que caçamissointerminavelmente, mesmo estando assegurada
a antipatia de Hegel pela "má" inânitude do progresso infinito, isso mostraria uma con-
tradiçãoque requer resolução mediante uma categoria superior?
Pode-se,talvez, dar sentido a essemodo hegeliano de formular o assunto, lembrando
que estamos lidando aqui com categorias da lógica transcendental, isto é, categorias
pelasquais podemos apreender a realidade; e estamos testando-as para ver se podem nos
oferecerum modo de apreender a realidade coerentemente. Certamente lembraremos
que foi diante desseparâmetro que o puro ser Eahou, revelando-secomo sinónimo de
nada.Podemos argumentar que os mesmos requisitos mostram que as caracterizações
puramente quantitativas são radicalmente inadequadas.
O argumento poderia ser desenvolvido mais ou menos assim: caracterizar coisas de
modo puramente quantitativo seria ser capaz de descrever tudo em termos de combina-
çõesde unidades homogêneas, isto é, qualitativamente indistinguíveis. Esse é o sonho
dos atomistas, sejam eles físicos ou lógicos. Porém, justamente essesonho, em qualquer
forma que puder ser concebido como realizável,significaria reintroduzir a qualidade.
Porquedeve haver razõespara selecionar um conjunto de combinações de unidades em
vezde outros. Vamos dizer que eu seleciono o objeto .4, que contém, digamos, 100 uni-
dades,e o objeto .B,que contém 50. Ora, que razãoeu tenho para traçar os limites nesse
ponto, para delimitar um objeto que agrupa essas100 unidades e não, digamos, 101 ou
2,78 PARTElll l LÓGICA

99? Essas razões, os critérios para "'4" e ".B", não podem ser estipuladas/os em termos de
números de unidades, porque a questão diz respeito ao agrupamento de unidades eU
agregadoscom um certo número, a saber, 100 ou 50. Temos de introduzir alguma Outra
ordem de conceitos descritivos a fim de expressaros critérios; vamos dizer que essegrupo
de 100 seja rezaziZoàparir do resto ou que 50 resultam numa certa#orma.
Esseponto não é afetadopela consideraçãode que podemoscaracterizaro mun-
do numa quantidade indefinida de modos diferenciados e, em consequência,na nossa
situação imaginária, agrupar unidades numa quantidade indefinida de modos: o nosso
'4, por exemplo, pode também ser descrito como um .A/ e um ]V agrupando, respecti-
vamente, 88 e 12 unidades; e assim por diante. Porque, em todo caso, havendo razões
para seccionaro mundo de um determinado modo qualquer, elassó podem ser dadas
mediante a introdução de outras ordens de conceitos descritivos, diferentes daquelas
das unidades e dos agregados de unidades. Antes, esseponto da pluralidade dos modos
de caracterizar coisas reforça o argumento. Com efeito, a distinção entre dois diferentes
modos de caracterizar coisassó pode ser dado em termos de diferentes ordens - apro-
priadas a cada uma.
E por isso que qualquer atomismo conceptual acabado-- estou dando um nome
para a visão que estamosconsiderando aqui precisa sufocar a questão referente a
como caracterizamosas coisas,isto é, como agrupámos unidades. Ele precisa imagi-
nar um mundo fenomênicoem que não há nenhum tipo de agrupamentoou, o que
dá no mesmo, em que quaisquer agrupamentos que fizermos serão completamente
arbitrários no sentido de que absolutamente nada pode ser dito no que concerne ao
princípio de tal agrupamento -- uma espécie de doutrina supranominalista. Porém,
isso é claramente impossível. Com efeito, a não ser que as únicas coisasque admitimos
nesse estranho mundo fenomênico imaginário do atomista conceptual sejam aquelas
que consistem de unidades singulares nessecaso, haveria uma única espéciede coisa,
logo, não haveriaabsolutamente nenhum conceito qualitativo (por falta de contraste)
e, em consequência, e/zózímz espéciede coisa (isto é, recaímos na vacuidade do puro
Ser) --, teríamos de admitir entidades que são agregados de unidades. Nesse caso, po-
rém, deveria haver alguns critérios para isolar agregadosde # unidades que constituem
dada espéciede coisa, em vez de ela simplesmente [er # unidades. Porque não daria
sentido reconhecer, digamos, uma coisa de 100 unidades e dizer "aqui temos um '4", a
menos que .4 tenha outras propriedades além daquela de ter como agregados 100 uni-
dades, como, por exemplo, de que .4 agrupa essasunidades de certo modo ou em certa
forma. Com efeito, em qualquer campo a qualquer tempo, indubitavelmente haveria
l
]
centenas, se não milhares de tais unidades, em qualquer interpretação plausível de um
elemento atómico universal e, em consequência,se .4 apenassignifica 100 unidades,
ele jamais poderia ser erroneamente dado.
E claro que essemundo 6enomênicoimaginário é bastantebizarro, tão distante está
do nosso mundo anual, o qual está repleto de diversidade qualitativa, de modo que
SER z79 ]
achamosmuito difícil imaginartal reduçãode todasas coisasa um tipo singularde
de
elemento. Até mesmo as reduções obtidas pelas ciências mais bem-sucedidas, digamos,
o atomismo real da física, não têm qualquer relação com um atomismo da agregação
à parte de unidades homogêneas, mesmo que reduzam fenómenos aparentemente di-
IPO
versosa uma única baseexplicativa. O objetivo do excursoacima foi apenasmostrar a
impossibilidade de caracterizar ascoisasem termos puramente quantitativos, isto é, sem
introduzir quaisquer distinções qualitativas ou uma pluralidade de conceitos descritivos.
E o motivo que me levou a essademonstraçãobastanteimplausívelé que, na minha
opinião, alguma coisa dele estána base do anualargumento hegeliano. Como vimos, no a
argumento, Hegel avança da tesede que a realidade quantitativamente considerada(em Ü
l
suma, o gw.znfwm)pode alterar os seuslimites arbitrariamente para a tesede que ela deve
Emerisso; e nisso ele vislumbra uma contradição. "Por isso, de acordo com a sua qualida- C
pS
de, um gz/a/zrz/mé posto em continuidade absoluta com sua exterioridade e seu ser-outro. r
Por conseguinte, ele não sópozü ir além de toda e qualquer magnitude determinada, esta
não sÓ.Fazeser alterada, mas está posto que ela Zez,ealterar-se" (WZ, vol. 1, p. 221 , itálicos
no original). E um pouco antes disso, Hegel EHa de "contradição" (W?2erlPmcó).
Ora, essemovimento do "pode" para o "deve" é compreensível seentendermos que o
que estamos procurando aqui é um conjunto de categorias que nos permitirá apreender
ascoisascoerentemente e se, como já vimos, uma caracterizaçãopuramente quantitativa
não puder nos dar uma especificaçãoadequada de uma coisa. Em termos puram:nte
quantitativos, não há razãopara fazer uma delimitação em qualquer parte. Ora, pode-
mos estipular isso, dizendo que os g a la podem ter sua "determinação de tamanho'
alterada, no sentido de que não há razão para interromper isso. Porém, exatamente do
mesmo modo, podemos dizer que não há base para se EHar de absolutamente nenhum
gz/.zmfwm
já fixado; qualquer dado de tamanho que atribuirmos a um ga'z /zlm é to-
talmente arbitrário. Exatamente do mesmo modo, podemos selecionar outro. Conse-
quentemente, dizer que os gzó.zmza
.podemmudar induz a erro; porque isso implica que
há gzlanfaque talvez também possam permanecercomo estão; enquanto de Eito não
há absolutamente nenhuma razão para isolar quaisquer gz/amua
já fixados, a i2ria de
que um ga z /z m permanece o mesmo n'ío ffm ienfida. E esseponto pode ser expresso
(dando margem a mal-entendidos, é verdade, mas não mais do que na 6rmula "pode"),
F

dizendo-se que o g a/zfzímdeve mudar, que "ele é posto em si mesmo para ir além de si
mesmoe tornar-se
outro"(WZ,vol. 1,p. 222).'
A contradição também pode ser entendida se situarmos essadiscussãono contexto
básico da Z,clgíca,que recobramos há pouco: nosso objetivo é apreender algo da realida-
de, conferir uma especificaçãoadequadaa alguma coisa, nessecaso,em termos quanti-
tativos; e a especificaçãoque con6erimos,o gz/.zmrzzm,
acabanão sendo una, acabasendo
totalmente indeterminada em seus limites. Pretendido como especificação, o gz/anfzzm

BTrad. cf. a versãoinglesa de Johnston e Struthers, vol. 1, p. 240


z8o
PARTElll l LÓGICA

jamais pode ser bem-sucedido e, em consequência, está fadado a frustrar o seu próprio
p'opósito. A exemplo de "ser" (e, em última análise, por algumas das mesmas razões),
os conceitos quantitativos precisam ser suplementados por outras categorias para que
possam ser aplicados à realidade.
Pode parecerque a minha interpretação tenha passadolonge do alvo. Com eleita
Hegel usa um idioma bem diferente para tratar dessatransição.Ele eda que o gzíaa/am
é impelido para além dos seus limites rumo a outro gK/zmrzzm,e que este gz/amam, por
sua vez, está sujeito ao mesmo destino, de modo que é envolvido num progresso infi-
nito. Penso,porém, que essaimagem (Hegel não teria gostado nem um pouco desta
palavra, mas nenhuma outra parece apropriada) mesma pode ser entendida à luz da
seguinte interpretação: o que impele o gzzamfwmpara suas alteraçõesinânitas é a busca
par uma especificação
adequadaem termospuramente quantitativos,uma buscacujo
objeto sempre Ihe escapa e que, por essarazão, é infinito.
O fato de formular a contradição na forma de um progressoinfinito permite a
Hegel apresentar a sua solução num molde já Familiar. Após lançar um ataque violenta
contra aqueles que veem algo sublime no quantitativamente infinito, como, por exeH-
plo, os astrónomos que contemplam os céus (e é claro que Kant se junta a eles para
ser punido por uma passagem
sobre os céusna Crú/ra 2a .Raz.ío
Pn#fícae maisainda
pela aplicaçãoda ideia do progressoinfinito à esferada moral), e após uma crítica da
primeira antinomia kantiana, Hegel chegaa uma solução similar à do uno que ele
encontrou para o progressosem fim do Z).zir/n: com efeito, o gz/.z/zrzím
estásemprese
deslocando para dentro de outro gzlamíz/m;por isso, ele deve encontrar um modo de
retornar a si mesmo nesseoutro; e ele pode fazer issose o concebermoscomo o termo
de uma relação entre dois gzl.zmza.

Hegel chega aqui à solução que desenvolve no decorrer do terceiro capítulo dessa
seçãoe que, plenamente desenvolvida,é o objeto da terceira parte do capítulo sobreo
Ser,ou seja,a Medida. A Medida é o retorno da quantidade para dentro da qualidade
num nível superior, um nível que implica a síntese das duas. A ideia é que, embora uma
coisa não possa ser especificadaem termos de um gz/a/zfz/msingular, ela pode sê-lo em
termos de uma relação entre gz/zz/zía.
Hegel está pensando, como fica evidente na dis-
cussãoposterior sobrea medida, nas leis fiincionais da ciência natural, ligando duas ou
l
mais variáveis. Poderemos retornar, de uma forma bem mais plena e rica, à especificação
da qualidade ou natureza de uma coisa, se pudermos caracteriza-la em termos de alguma
lei ou relação funcionais. Obteremos, dessemodo, a síntese de qualidade e quantidade;
obteremos a qualidade quantitativamente definida.
Porém, o ponto a ser ressaltado em relação à interpretação acima é que, ao introduzir
a relaçãoentre gz/ama, fomos além do universo homogêneo do atomismo conceitual.
Os dois ou mais gz/amua que estão relacionadossão medições de duas ou mais coisas,
propriedadesou dimensõesdiferentes, isto é, o que os distingue é mais que o fato de
terem um número diferente de unidades (se de Eito tiverem um número diferente de
z8i
SER

lp'' paio unidades-- o comprimento e a profundidade de um quadrado são iguais em extensão


cs), ainda assim, distintos). E essa hga da unidimensionalidade que permite ao gwzzn-
jrw selecionamos
que fzómfixar-se num determinado tamanho. Retornando ao nosso exemplo:
P'
aquelas 100 unidades como um .4 porque as unidades se encontram a uma distallcla z/
eÍ :lto, umas das outras. Consequentemente, temos uma razão para agrupar essas100 unidades
J
como '4, porque 100 é o número de unidades que são agrupadas por estarem a uma
por distância z/ umas das outras. Os ,4s são definidos, então, por uma relação entre gz/a/zia,
© infi- como agregadosde unidades em que todas estão a uma certa distância umas das outras; Ç
desta e o gwanfz/m100 é fixado aqui por ser um termo de uma relaçãoda.qual o outro termo
lluz da é Z. A introdução de uma segundadimensão (que, nessecaso,também é quantificada, t
busca masisso náo é essencial)permite que tenhamos um motivo para agrupar as unidades em
nossadimensãooriginal. Acredito que é essaimportante propriedade da pluridimensio-
(

cqo
C
nalidade -- operar com mais de uma dimensão que responde pela solução encontrada r
como
.te a
por Hegel para o progressoinfinito aqui: "0 gz/.zmrz/m,
por conseguinte, é posto
:nto autorrepelente; há, portanto, dois gzlanía, que, no entanto, são suprassumidos (azeÜeóo-
ex :m- óe/z)e só existem como momentos de uma unidade, e essaunidade é a determinidade
fs para do gwamrzlm"(WZ, vol. 1, P. 239). Mas é claro que tenho de repetir incisivamente que
ainda essenão é o seu argumento, como o vemos no texto: antes, ele chegalá por meio do
da
ugumento já bem conhecido de que o gwanrz/mretorna a si mesmo e, em consequencia
1«'i' disso,encontrao seupróprio momentoem seualém, isto é, no outro gz/zznza
em que
se constantementeestá se transformando: e essaidentidade consigo mesmo em outros
de
gzóa/zíaé rapidamente reinterpr:cada como unidade de dois g a /a relacionados, men-
lera 0 cionada anteriormente, a qual compõe a base do terceiro capítulo e toda a síntese entre
quantidade e qualidade que encontramos na seçãosobre a Medida.

0
111: MEDIDA
.e

un lâ Entender a realidade mediante a categoria da Medida é, por conseguinte, entender


P''« qualidades fundadas em certas quantidades ou relações entre gw.z/zza.
À guisa de exemplo
edis- muito simples, temos a água, que deve ter uma temperatura entre 0'C e 100'C, caso
pU
contrário, converte-se em gelo ou vapor. Temos aqui a unidade simples entre qualidade
e quantidade que define a medida; os gw.znía 0'C e 100'C são os escolhidos como signi-
.a
ficativos devido às mudançasqualitativas que ocorrem nesseslimites, e essasmudanças
qualitativas são atribuídas às mudançasde temperatura. Temos, por conseguinte, a rela-
ção entre duas dimensões de propriedade, o estado da substância e sua temperatura, as
quais, como vimos na discussãoal)tenor, são essenciaispara a caracterizaçãoquantitativa.
Por conseguinte,em certo sentido, retomamos à qualidade nestaterceira seçãoda
Lógica do Ser, masnum nível superior em que ela é unida com a quantidade; com efei-
to, constatamos que as propriedades passaram a repousar em valores quantitativos. Essa
categoria de medida também é de aplicação universal: "tudo o que existe possui uma
z8z
PARTElll l LÓGICA

medida" (.4ZZef
mm zZz/í/, óa/ e/mMa@ (\yZ, vol. 1, P. 343). Isso nos traz à lembram.
a preocupaçãogrega com a medida, mas também a física e a química modernas,que
revelaramnum grande número de campos os limites dentro dos quais as coisastêm d.
permanecer para manter o mesmo caráter qualitativo.

- Porém, essacategoria é, igualmente, apesar de universal, radicalmente inadequada.


Hegel não pode admitir que a caracterizaçãoquantitativa das coisas, mesmo unida como
ená com a qualidade na medida, vá além da superfície das coisas. Ela não é capazde pe-
netrar até o cerne da realidade. E penetrar até o cerne é entrar numa relação dialética de
interno e externo, ambos idênticos e, não obstante, opostos um ao outro, diabéticaessa
central para a oncologia de Hegel. Fazemosa transição para essetipo de caracterização
na presente seção,introduzindo-nos à Lógica da Essência, na qual não mais estaremos
tratando de categorias unidimensionais, mas de categorias bidimensionais do Ser.
. O argumento na lrZ é bastantecomplexo e estáestreitamenteligado em seusdeta-
lhes com as ciênciasdos dias de Hege] e com o modo como ele as via. Ele toca temas
que reaparecerãona Filosofia da Natureza. Porém, na EZ, o argumento é formulado
muito sucintamente. E simplesmente uma continuação das considerações subjacentes
à transição a partir da quantidade. A Medida é a unidade imediata de Qualidade e
Quantidade (S ] 08) e, como ta], é também simples gala/z/ m e, em consequência,sus-
cetível de aumentar e diminuir. Porém, para além de certos limites esseaumento ou essa
diminuição abolem a qualidade, impelindo-nos para mais além, para dentro do "que
não tem medida" (zür 7[41i!/í%se).
Essenovo estado, no entanto, é, ele próprio, uma nova
qualidade; retomamos, assim, à Medida. Porém, essanova medida pode, por sua vez,
sersup'roda, e assimpor diante, num regresso(potencialmente) infinito (S 109) (por
exemplo, o gelo transformando-seem água que se transforma em vapor). Porém, visto
que sempre retomamos à qualidade e à medida, mesmo que sejam diferentes, não deve-
ríamos encarar essamudança como um progresso infinito em novos termos, mas antes
como uma identidade na diferença. "Mas a medida mostra-se [...] igualmente que está
conforme W«a' «m'/go «««-ú" (Z)a' M#'z.z@ j/.Ó .zÓ« [...] eó.m.« «Z'r nur «it sich
selbstzu..z«-«emzug?Óem)
(S 110).
Reconhecemosaqui o mesmo tipo de argumento que está na baseda transição de
todas astrês seçõesda Lógica do Ser. Em primeiro lugar, a finitude da entidade sob con-
sideração (.Ékm.zina primeira seção, gz/.zmf#mna segunda), isto é, o fato de ela sucumbir
quando levada além de um certo limite, é apresentado como necessidadeinterior; mas o
seu perecimento é o nascimento de algo diferente (o outro, na primeira seçãa,um novo
g á / m, na segunda). Isso gera a perspectiva de um progresso infinito de termos. Esse
l resultado inaceitável (para Hegel) é evitado pela identificação da unidade na diferença
entre as diferentes fasesdessamudança necessária.
Porém, essaconcepção das coisas dá origem a uma noção bidimensional da realidade.
à noção de um substrato que estána basedos estadosem mutação. São asvariantes dessa
concepção que exploraremos no segundo livro. Em certo sentido, já tínhamos chegado
SER z83

lá com a derivação da verdadeira infinitude na primeira seção; mas adiamos o momento


de entrar na terra prometida porque tivemos de integrar a Quantidade em nossa síntese,
orlas razõesenciclopédicas já discutidas. Por conseguinte, demos como que um passo
obrao lado, via /;ãrT/c&iein,até a Quantidade.
' A diabéticada Medida, em contrapartida, está em continuidade com a da Quan-
tidade, é a prolongação dela, passandopelas mesmasconsiderações-- a instabilidade
do (2Wamfz/m, o progressoinfinito resultante e a solução da identidade na diferença
e chegando à resolução última numa concepção bidimensional da realidade.
Com a Medida temos uma caracterizaçãodas coisasem termos de uma certa qua-
lidadeque estáfundada no batode elascoincidirem com certos limites quantitativos.
A introdução desse conceito de qualidade fornece a razão para que nos fixemos nesses

gzlan/íz particulares que definem os limites, ao passo que esses gz/a7z/a são responsáveis
pelo Eito de as coisasterem a qualidade que têm. Porém, Hegel parece dizer que os
gWÚ/zza,por conseguinte, associadoscom qualidades na medida, são eles próprios impe-
lidos para além de si mesmos exatamente como ocorre com os gz/.zelasimples. Como
devemos entender isso?
Mais ou menos do mesmo modo, sugeriria eu: a caracterização em termos de Me-
dida também é, em certo sentido, inadequada, não exatamente nos mesmos termos da
anterior, de que ela fica aquém da complexidade mínima requerida para ter um mundo
qualquer do qual podemos estar conscientes, mas, antes, de ta] modo que a caracteriza-
ção em termos de Medida necessariamenteacompanha outra, mais profunda, que vai
além da Medida. Porque estamos falando de coisas que possuem uma certa qualidade
enquanto permanecerem dentro de certos limites quantitativos; mas isso quer dizer que
não estamosfalando só de entidades que são identificadas por uma certa propriedade tal
que, se essapropriedade deixar de perdurar, elas deixam de existir; estamos Edando tam-
bém de entidades das quais podemos dizer que perdem aquilo que até agora havíamos
concebido como propriedades definidoras e adquirem outras. A categoria da Medida é a
que fm a transição: porque nela vemos o que até aquele momento era uma propriedade
definidora enquanto fundada no Eito de a entidade concernida estar dentro de certos
limites. Vemos, por exemplo, a água (H:O em seu estado líquido) com base no fato de
astemperaturas estarementre 0'C e 100'C. Porém, uma vez que concebemosa entidade
como obrigada a permanecer dentro de certos limites, introduzimos uma nova noção da
entidade, a saber, a noção de uma entidade da qual se pode dizer que ela existe dentro
de certos limites e da qual, por isso mesmo, se pode dizer também que ela existe além
desseslimites. Introduzimos a noção de uma entidade que é mais profilnda do que qua!-
quer uma das propriedades até aqui definidas, a noção de um substrato subjacente que
pode existir num certo número de estados (ZzziMmZe), os quais são definidos por essas
propriedades. Por conseguinte, para seguir com o nosso exemplo, uma vez que dizemos
da água na percepção cotidiana que ela precisa permanecer entre 0'C e 100'C, senão ela
se converte em gelo ou vapor, estamosintroduzindo uma entidade mais fiindamental
z84 PARTElll l LÓGICA

vamos chama-la de H:O que se encontra num estado que chamamos de água en-
quanto estiver dentro desseslimites e que, quando estáalém desseslimites, encontram
em estadosque chamamos de gelo ou vapor.
Por conseguinte, a caracterização das coisas em termos de Medida nos remete adiante
para uma caracterizaçãoda realidade em termos de entidades-substratos que pode con-
sistir num certo número de estados,isto é, a caracterizaçãocomo medida só Eazsentido
se essacaracterizaçãomais profiinda também fizer. É assim que proponho interpretar o
argumento hegeliano de que a caracterizaçãoquantitativa em termos de medida "como
tal é em geral o ultrapassara si mesma" (2ai J:?7maznicórr//fn
úóeri/có seZ&ír)(EZ, S 109,
adendo), que é a teseda necessidadeinerente de ultrapassaro limite. E seessainterpreta-
ção âor correta, conseguiremosentender, ao mesmo tempo, por que esseato de ultrapas-
saro limite constitui também uma identidade na diferença, um 'cessar
conforme consigo
mesma" (zz/s'zmme/zg?Z'ra m/f J/cóseZBsr);
porque a entidade-substratomais profunda é
justamente aquela que permanece idêntica através das mudanças de estado.
Q.uando fomos levados a introduzir a entidade-substrato quc é capaz de assumir
e deixar muitos estados, demos o passo principal que leva do Ser à Essência. Todas as
categorias que Hegel agrupa no primeiro livro, sobre o Ser, caracterizam as coisas de
modo simples, em conceitos unidimensionais: o Ermas é identificado com sua qualidade
com seugrau. Na Essência,em contrapartida, teremos de lidar
definidora; o gzían/zzm,
do começo ao fim com os conceitos bidimensionais de uma realidade subjacente e suas
maniEestaçóes.Ao pensar a realidade como um substrato que pode assumir muitos esta-
dos,já abandonamoso domínio do unidimensional.
Obviamente que, se pretendermos chegar ao destino último de Hegel, é essencial
que abandonemoso reino do unidimensional, porque, ao sofrerem transformação
os conceitos do Ser só podem perecer e dar lugar a outros o E/maí desapareceeé
substituído por outro, o gz/.z/zfz/mconverte-se incessantemente em outro. Somente
com os conceitos bidimensionais da Essência é que podemos considerar a preservação
da identidade na mudança,essencialpara a onto]ogia de Hege].As categorias da Es-
sência não sáo conceitos singulares, mas essencialmente pares em relação (ÉZ, S l l l,
adendo), aparência e realidade, coisa e propriedades, etc. E mesmo que um dos termos
possa ser deânido como o mais "essencial", ambos são necessários para caracterizar a
realidade, e.um não pode ser posto sem o outro. Consequentemente, ao pâr um deles,
somos levados necessariamente a pâr o outro, mas sem que o primeiro seja suprimido,
como acontece nas categorias do Ser.

Porém, a bidimensionalidade não é tudo o que há sobre a noção hegelianadas ca-


tegorias da Essência. Há também essacaracterística da relação essencial que acabamos
de tangencial. A substância necessariamenteresulta numa manifestação exterior, e esta
por sua vez, remete-nos necessariamente ao substrato. Ora, náo podemos estabelecer
esseelemento da necessidadea partir do argumento que nos leva ao substrato partindo
da medida, como o Eormulamos. Porém, a necessidade já está estabelecida na categoria
SER z85

Infinitude. À medida que nos movemos para além do progresso sem fim da Medida,
.manos a categoria que nos levou para além do progresso sem fim do Ser determina-
In Nele, como vimos, estávamosprontos a passaralém do Ser. O centro de gravidade
locos-se das coisas determinadas para todo o sistema, do qual aquelas são partes ou
passageiras.Por conseguinte, estávamos prontos a passar para as categorias da Es-
pia, isto é, para os conceitos bidimensionais relacionados com o todo subjacente e a
eue passageira.Adiamos dar essepassovisando incluir a Quantidade, mas agora que
os prontos para transitar para a Essência, temos uma concepção muito mais rica
desse
todo. Mostrando que todas asqualidades estão fundadas em relaçõesde quantida-
de,a Mledidanos proporcionou uma linguagem em que podemos falar dos limites das
diferentesqualidades e do processo subjacente que nos leva de uma para a outra.
Porém, ao mover-nos para além da Medida, ainda estamoslidando com a Infinitu-
de, isto é, com um sistema autossubsistente de coisas finitas mutáveis, com a ordem e
as mutações sucessivasem que incorrem por necessidade, impulsionadas por sua con-
tradiçãointerna. Assim sendo, ao ir além da Medida, não só estamosmostrando que
ascoisasdevem ser inerentes a um substrato, mas também que elas estão relacionadas
nessesubstrato por negação, isto é, por exclusão mútua (porque cada uma é definida por
seuoutro). E mostramos ademais que essanegação pelo outro é interna a cada uma, de
modo que cada uma deve necessariamente perece' e ser sucedida pela outra.
Porconseguinte, o substrato ou o todo ao qual as coisasinerem é tal que a sua expli-
citaçãonecessária
é impulsionada pela contradição. Suaestrutura e sua explicitação no
decursodo tempo sãodeterminadas pela negaçãoou autoexclusão. Hegel fala dele como
deuma"totalidade negativa" (WZ, vol. 1, p. 397). Ê uma totalidade porque não é mera-
mente uma coletânea, cujas partes são indiferentes umas à outras, mas em que cada uma
é o que é apenas em virtude de sua relação necessária com o todo. E negativa porque "é
uma autorrelação negativa simples e infinita, a incompatibilidade de si consigo mesmo,
a repulsão de si diante de si mesmo" (ibidem),9 porque essarelação necessária,em outras
palavras, decorre da contradição.
Na -EZ,Hegel simplesmente estabelecea identidade da presente categoria com a Infi-
nitude decorrente do Z)aieizz(S 111). Na IVZ, ele empreende uma derivação da Essência
quecompõe o último capítulo da Medida. Ele começa com a noção de mero substrato
queé "indiferente" aosdiferentes estadosem que seencontra, cuja mudança de um esta-
do para outro tem de ser explicada, portanto, com base em Estores externos.
A palavra que Hegel usa aqui, "/nzi/zWre/zz",não tem como não nos remeter ao
Schelling
do início da décadade 1800,do qual Hegelsedistanciou.A /nzlr!#ãrenz
de
Schellingconstituiu o supostoponto de unidade de sujeito e objeto, que Hegel passou
a considerarcomo insustentávelprecisamenteporque fazia com que a diferença fosse

' Traduzido com base na tradução para o inglês de Johnston e Struthers, vol. 1, p. 403, emendada pelo
autor.(N. T.)
z86
PARTElll l LÓGICA

engolida pela unidade. E há uma referência na Ardia 4 .Rede/íoZe Esp/ oia (WZ, vol. l
p' 396), cujo absolutoseria como um abismo em que desaparecemasdiferenças.
Essassoluções todas padecem da mesma deficiência: elas não conseguem explicar
como surgem as diferenças. Enquanto as mudanças nos seusestados não puderem se.
explicadas por meio do substrato, mas apenas por meio de Eatoresexternos, ainda não
teremos chegado a um sistema autossustentado. Quando chegarmos a tal sistema autos.
subsistente, as suas mudanças terão de ser explicadas a partir dele mesmo, e seusdi6eren.
[es estadosnão poderão ser concebidos como afetando-o apenas exteriormente. A ideia
de um substratoindiferente é uma contradição em si mesma.
Consequentemente, deslocamo-nos das categorias do Ser para as da Essência. Vemos
seresdeterminados como necessariamenteinerentes a um todo ou substrato que persiste
através do seu devir e perecer. Porém, graças à categoria da Infinitude, vemos essesuba.
trato não como alguma realidade autossuficiente situada além do finito, mas como uma
realidadeque necessariamente
resulta em entes finitos, que implementa entesfinitos de
acordo com uma necessidadeque está, ela própria, fundada na contradição mesmado
finito. O que até agora vimos apenas como um ser-aí (Z)me/n), devemos passar a ver
como "posto" (gele/z/), como implementado por um processo de necessidade.

As determinações [...] já não mais pertencem a e]as próprias, não emergem


independente ou externamente, mas enquanto momentos pertencem primeiro à
unidade existente .zmfira; elas não são emitidas por essaunidade, mas sustentadas
por ela enquanto substrato e recebem seu conteúdo exclusivamente dela... Ao
invés de n'rer na totalidade da esferado Ser, elas passama ser simplesmente
realidade /pita, tendo apenas esta determinação e significado: elas estão
relacionadas com sua unidade e, em consequência, cada uma com seu outro e
coma negação...(WZ, vol. 1,p. 398)

No capítulo 111,vimos como é importante para Hegel essanoção da realidadeen-


quanto realidade posta.
Ingressamos, por conseguinte, no reino das categorias bidimensionais, as da Essên-
cia, que Hegel chamará também de determinações de reflexão (R#ex/o iÓerr/mmWnKen).
Nessetermo, estácontido um conjunto bastanterico de referências.
Em primeiro lugar,
lembramos que Hegel usou o termo "reflexão" desde os primeiros tempos para designar
os conceitos de divisão, separaçãoou dualidade, os conceitos do entendimento que sáo
predominantes entre a primeira unidade primitiva e a unidade final mais elevada.As
determinações de reflexão, por conseguinte, encaixam-sena Z,clgfcaentre a imediatidade
do Ser e a unidade mais elevadado Conceito.
Porém, o termo também nos remete ao entendimento reflexivo, que tenta ir além de
uma mera apreensão das coisas em sua imediatidade para entendê-las como mediadas.
Isso nos traz a uma importante característicada Essência,a saber,que todas as suas
categoriasamemreferênciaimplícita a um sujeito do conhecimento.É claro que do
SER z87

eço ao fim da Lógica estamos tratando de categorias pelas quais o mundo pode ser
nhecido.Encontramo-nos totalmente no domínio da lógica transcendental.Porém,
. Ser,temos categorias que não fornecem qualquer traço de referência a um sujeito do
nhecimento; elas caracterizam a realidade de modo simples. Na Essência, no entanto,
distinções feitas entre os dois termos, como, por exemplo, num par de categorias
acionadascomo Aparição e Realidade, remetem-nos implicitamente a um sujeito do
nhecimento; elas são feitas como que do ponto de vista de tal sujeito.
Portanto, as categorias da Essência são determinações de reflexão porque se trata de
tegoriasde relação e mediação, e também de categorias do entendimento reflexivo.
porém,em terceiro lugar e mais fundamentalmente, eles merecem essenome porque são
duas coisas a um só tempo; por estarem fiindadas na necessidade conceitual, as estru-
turasinternas que medeiam a realidade exterior são, em última instância, compreensíveis
mo estruturasde pensamento(e, em consequência,como em unidade com o nosso
pensamentoreflexivo). Consequentemente, o que acompanharemos na diabéticada Es-
sêncianão é a reflexão externa do sujeito tentando entender, mas as articulações internas
daprópria Essência,que, no entanto, será expressaem conceitos do entendimento re-
flexivo. Ou melhor, estaremos acompanhando ambos a um só tempo, porque, à medida
que nos movemos rumo a concepções cada vez mais adequadas da articulação interna da
essência,estaremos nos distanciando de noções inadequadas da relação da Essência com
o sujeito do conhecimento, como relação meramente externa. O movimento nessasduas
frentesé inseparável,visto que, como vimos anteriormente, todas as categoriasda Es-
sênciaremetemimplicitamente ao sujeito do conhecimento e, em consequência,põem
uma certa relação para essesujeito.
Em outraspalavras,a reflexãodo Ser de volta para a realidadesubjacenteda Essên-
cia só pode existir para o sujeito reflexivo que distingue aparência e realidade; essência e
manifestação exterior. Acompanhar as contradições da e as transEormaçóes na Essência é
acompanhar as contradições da e as transformações na relação do sujeito com a realidade
conhecida. Logo, as duas reflexões são de início simétricas, cada uma delas seguindo o seu
próprio caminho. Porém, no fim, elas setornarão uma só, quando virmos que a estrutura
última da realidadeé a estrutura de pensamento e, em consequência,que o espírito cog-
noscente está perfeitamente em casa no núcleo das coisas, não estando mais separado dele.
CAPÍTULO XI

Essência

l:DAREFLEXAOAOFUNDAAIENTO

A Essênciaé o domínio em que vemos as coisasnão meramente em si mesmas,"de


modo imediato", masenquanto fundadas numa basesubjacente.É o reino da mediati-
dade, porque, no sentido de Hegel, a noção da Essência é inescapavelmente mediada,
isto é, só podemos chegar a ela por via de outra: chegamos à Essência refletindo sobre a
Ser, percebendo que ele não basta a si mesmo e, em consequência, remete de volta para
além dele, para o que está na sua base. A Essência, por conseguinte, sempre nos remete
para um ponto de partida, para o Ser que é negado (enquanto autossubsistente). Hegel
diz que é isso que está expresso na etimologia bastante antiga da palavra alemã para es-
sência, "mate/z", que lembra o particípio passado do verbo "ser", "g?mexem": 'IA Essência é
o Ser que pereceu, mas que pereceu atemporalmente"(/)m Wêse/zlff zZ'nz'ezlgiz/zg?/ze,
aZ'er
ze/fZoiz,e/gang?mr
Se/n)(WZ, vol. 11,p. 3).'
E essemovimento de volta que provê também o fundamento parcial para a ima-
gem da reflexão, que desempenha um papel tão importante nesse livro. Mas pri-
meiro Hegel quer deixar clara a naturezada Essênciaque se propõe a discutir. Ela
não pode ser entendida simplesmentepelo movimento unidirecional mencionado
no parágrafo acima, no qual partimos do Ser e, percebendo a sua inadequação,
movemo-nos para o substrato subjacente. Esse é um movimento de "reflexão" num
sentido, a reflexãoexternado sujeito do conhecimento postulando que alguma rea-
lidade interior dê sentido ao que ele vê. Também temos de entender essarealidade
observávelexterna como emanando da Essência.A visão unilateral que leva em
conta unicamente o movimento rumo à Essênciapartindo de um objeto externo é
uma explicação que toma as propriedades observadasdessarealidade exterior como
simplesmente dadas. A reflexão é externa, subjetiva, porque opera com base num
dado que deve simplesmente ser aceito, que não pode ser visto de nenhuma maneira
como determinadopelo pensamento;e, em consequência,essareflexão,por não
descobrir qualquer necessidadeno que ela observa, precisa apenaspostular uma
realidade subjacente que não tem como observar.

Traduzido com basena tradução para o inglês deJohnston e Struthers, vol. 11,p. 15.(N. T.)
ESSÊNCIA z89

porém, como já é do nosso conhecimento, essanáo é a noção que Hegel tem da


realidade. Pelo contrário, o que existe não deve ser visto como estando simplesmente aí,
como meramente contingente, mas antes como a manifestação de uma trama sistemá-
tica bem acabadade relaçõesnecessárias.Exatamente como o tema básico do Ser foi a
irrupçãopara Gerado Ser Determinado e para dentro do seu outro, da sua autotranscen-
dência necessária e, em consequência, da sua morte, que sempre foi apresentada como
sendo,em última instância, um retorno ao ie#' assim o tema básico da Essência será a re-
velaçãocada vez mais clara e articulada das conexões necessáriasnos fenómenos, até que,
por fim, essesserãovistos como nada além da manifestação adequada do pensamento
ou da necessidadeinterior, e assim teremos chegado ao conceito. É por isso que, nesse
livro, o cocode aplicaçãodascategoriassedeslocará(semque Hegel sedê o trabalho de
anunciar isso) da coisa particular para a qual estava dirigido no Ser e que ainda pode ser
observado nas partes iniciais da Essência para o sistema de coisas interconectadas, em
última instância, para todo o sistema da realidade como totalidade, da qual temos um
antegostona Infinitude. Com efeito, no final, é unicamente o todo que revelaa neces-
sidadeautossuficiente.
Consequentemente, Hegel vê a Essência não só como aquilo a que se chega a partir
do externamente observável que se revela como não autossubsistente. É também a ne-
cessidade
subjacente que Eazdo observado aquilo que ele é. Assim sendo, ela tem de ser
entendidanão só em um movimento de reflexão que vai do externo que é visto como
dado e, em consequência, pressuposto -- rumo a um substrato posto, mas também em
um movimento que procededa necessidadesubjacente,a qual pode, por conseguinte,
serconcebida como "pondo" o externamente observável. Ademais, a necessidadesub-
)acente "póe" (selzf) esseobservado como algo externo, logo, num jogo de palavras em
alemão,podemos ver esseato de pâr como "z,oxn ifezze/z" [lit. pré-por], que é a palavra
alemãpara "pressupor": a pressuposiçáo da realidade exterior no primeiro movimento
é o pâr que apreendemosno segundo. Isso expressaa unidade dos dois movimentos,
porque a realidade interior sobre a qual a realidade exterior está fundada nada é senão a
necessidade
que a póe. Por ser apreendida intelectualmente, a dependênciada realida-
de exterior em relação ao substrato essencial subjacente consiste simplesmente no Eito
de que essarealidade exterior é posta pelo substrato; ao passo que o "retorno" real da
realidade exterior, a sua morte, cuja necessidade é apreendida por nosso entendimento
conceptual, é idêntico ao pâr do termo seguinte na sequência necessária.
A luz desseduplo movimento, a "reflexão" tem de ser entendida não só como refle-
xão externa, como aquela que segue ao primeiro movimento, mas também como re-
Hexãointerna, reflexão objetiva, como autoevolução para dentro da realidade exterior,
a qual, não obstante, permanece idêntica à Essência. Ou, em outras palavras, nossa
reflexãoexterna não está meramente lidando com algo dado e deixando algo para trás;
elaestá, antes, seguindo a necessidade real subjacente e, em consequência, não é mais
uma simples reflexão externa.
9o PARTEill l LÓGICA

Ora, Hegel pensa ter razões suficientes para começar o livro sobre a Essência cona
essaconcepçãoda Essência,definida por essesdois movimentos relacionados.Ele o Ea
porque, como vimos, a derivação da Essênciaé deitaa partir da morte do Ser, uma morte
que constitui o pâr necessáriode outro ser particular; é por isso que as noções de neces-
sidade e pâr estão presentes desde o começo. De fato, elas nos acompanharam em certo
sentidodesdea categoriada Infinitude, que mostrou que os seresdeterminadosestão
conectados num processo em que eles vêm a ser e perecem por necessidade. Por conse-
guinte, o livro da Essêncianão trata da derivaçãodessanecessidadeinterior, masdo de-
senvolvimento de conceitos cada vez mais ricos dela até chegarmos à plena adequação da
manifestação exterior à necessidadeinterior que nos permitirá transitar para o Conceito.
Por isso, na E.[, Hege] parte diretamente da Essênciacomo Fundamento, sendo esta
a primeira tríade do livro. Na versãoda WZ, no entanto, que é anterior à .ÊZ,Hegel dis-
corre sobre a dualidade do movimento sem, no entanto, realmente deriva-la, visto que,
do começoao fim, apoia-senaquilo que já demonstrou.Isto preliminarmenteocupao
primeiro capítulo da tríade, a Aparição (Scóeizz)
.
Nesseprimeiro capítulo da WZ, Hegel demonstra de duas maneiraso ponto básico
da bidirecionalidade da Essência. Primeiro, numa discussão sobre a ideia da realidade
exterior como simplesAparição, isto é, como algo simplesmenteinessencia],como uma
cortina do não real pela qual é preciso passar para chegar à realidade realmente autos-
subsistente (quer creiamos ou não que essarealidade pode ser observada ou alcançada --
podemos talvezcrer com Kant que a coisa em si é incognoscível). Essavisão não pode
ser mantida ao constatarmos que esseexternamente observado não é meramente dado,
mas emana da Essência,não sendo meramente uma barreira, uma cortina diante da rea-
lidade, mas algo que é necessariamente posto pela realidade, logo, não está separado da,
masintegra a Essênciamesma. Isso mostra que a realidade exterior não é mera Aparição,
masa palavraque Hege] usa aqui, "ScAe//z"[aparição], possibilita que ele mantenha o
mesmo termo, pois essapalavra lembra o termo "reflexão"; assim sendo, ele pode edar da
Essência como um "Sf#ei/zf/z / //pm ir/óff" [reflexão sobre si; ]it. 'aparecer em si mesmo'].

O segundomodo como Hegel demonstrao aspectobidirecional é numa discussãoda


reflexão em que procura argumentar que o tipo de reflexão central à Essênciaé a síntese
da reHexão externa e da reflexão "que póe". Há referências nessa discussão à distinção
kantiana entre juízo reflexivo e juízo determinativo. Para marcar a natureza essencialda
reflexão, Hegel chama a categoriaque decorre dessadiabéticade "reflexão determinativá
Sobre essabase,a dialética da Essênciacomeça, imediatamente na EZ e após um
capítulo introdutório na WZ, a desenvolver a visão da conexão sistemática necessária
das coisas.

IDENTIDADE E DIFERENÇA

Começaremos com as noções inadequadas mais elementares do entendimento re-


flexivo, em que a persistênciado ser posto é concebida sob a categoriada Identidade
ESSEN CIA z9i l

e dascategoriasconexasda Diferença e da não contradição. Hegel propõe-se,aqui, a


eliminar asessasreificações do entendimento que não conseguem aceitar que a contra-
dição é inerente à realidadee que, por conseguinte, mostram aquela "habitual ternura
paracom as coisas"(WZ, vol. 11,p. 40), ansiosapor atribuir contradição não às coisa,
mas ao entendimento. Para o entendimento formado nesse espírito parece ser a verdade a
mais elementar da lógica que tudo é idêntico consigo mesmo e diferente de tudo o mais: ./

o tudo é o que é e não outra coisa"do bispo Butler.


Porém, para Hegel, ascoisasnão podem ser tão simples. É verdade que tudo é idên-
tico consigo mesmo, mas também é assim que tudo é diferente de si mesmo. O sujeito (.
da identidade, aquilo que permaneceidêntico na mudança, não é mais a simples qua- F.ü
lidade, mas a essênciasubjacente. Porém, entendemos a Essência como a necessidade L,i
'bh.

interior que, primeiro, põe uma propriedade, em seguidaa suprime em favor de outra
e depoisde mais outra, e assimpor diante. Logo, em termos hegelianos,a identida- C
r
de subjacente é a diferença, a autodiferenciação, aquela que implementa as diferentes
propriedades em sua relação necessáriaumas com as outras. A natureza da Essênciaé
manifestar a si mesma nessaspropriedades enquanto propriedades necessariamentere-
lacionadas.E a "repulsão" (.4óif(:6en)de si para longe de si mesmo, que ao mesmo tem-
po é a reflexãode volta para dentro de si mesmo. Consequentemente,a identidade de
uma coisa consigo mesma enquanto náo estivermos Edando de uma entidade definida
em termos de propriedade singular, mas de algo que pode portar muitas propriedades:
-- apropriadamente entendida depende do substrato subjacente que não só pode passar
por mudanças,masque é a conte necessáriada própria mudança. Essaidentidade, por
conseguinte, tem na diferença um momento essencial,e a diferença enquanto refletida
de volta para denso de si mesma (através da relação necessária dos dois termos) também
é uma coisa só com a identidade.

Sobre essabase, Hegel desloca-se, nessaseção, das categorias da Identidade e Diferen-


çapara a categoria da Oposição, passandopela da Diversidade. Aqui não há espaço para
entrar em detalhes sobre essaderivação, que, em todo caso, baseia-senos argumentos
explicitados na lógica do Ser. O desfecho dessadialética é a demonstração de que uma
caracterização das coisas como meramente diversas transita para uma caracterização em
que as coisasestão em oposição essencialou polar umas às outras. Na oposição polar,
cadatermo é tal que sua interaçãocom outra entidade oposta é constitutiva de sua
própria realidade. Esseé o caso, por exemplo, da eletricidade positiva e negativa ou dos
polosnorte e sul de um ímã. Em adiçãoa essesexemplos,Hegel também menciona
os seguintes:luz e escuridão,virtude e vício, verdade e erro (WZ, nota l à seçãosobre
a Contradição, vol. 11,p. 55-56); naturezaorgânica e naturezainorgânica, bem como
naturezae espírito (EZ, adendo l do S 1 19).

: E isso e só isso que prevê a base para enunciados identitários informativos, como ressalta Hegel na segunda
nota à seçãoA dessecapítulo (IUZ, vol. 11, p. 30)
z9z PARTEili l LÓGICA

Porém, não é a intenção de Hegel afirmar que a noção de diversidade não tem aplica-
ção. E claro que há uma diversidade de coisasno mundo. O que ele tem de afirmar, no
entanto, é que ver ascoisasno mundo como simplesmentediversas,implicando, como
de Eito implica, vê-las como relacionadasumas com as outras no plano meramente con.
tangente,constitui uma visãosuperficial. Entendida num p]ano mais ftindamenta], Cada
coisa é o que é apenasem relaçãoà oposiçãocontrastante e interativa com outra Coisa
que é, por conseguinte,"o seuoutro" (ÉZ, S 1 19).
Tendo extraído a oposição polar da diversidade, Hegel passaentão a extrair dela a
Contradição, que, obviamente, estevelá o tempo todo. Com efeito, aquilo que estáem
oposiçãoestáfundado naquilo que o nega e está, portanto, em contradiçãoconsigo
mesmoe deve perecer.Ele dependede excluir o que constitui uma parte essencialde si
mesmo, o seu oposto. Ele não tem como subsistir; os dois lados "vão assim ao.@/zzZzme#-
:o" (geben biermit zu Grundeà tEL, S tZOb.

FUNDAMENTO
Com essetrocadilho,' damosuma guinadapara um novo desenvolvimentodiabéti-
co. A discussãosobreidentidade e contradição leva-nosa olhar para a Essênciacomo a
necessidadesubjacente que determina o desdobramento da realidade exterior. Por con-
seguinte, passamosa olhar a Essênciacomo o fiindamento dessarealidade.Mais tarde,
veremos que Eaz parte da essência dessa necessidade interior manifestar a si mesma na-
quilo que ela explicita, de modo que a divisão entre Essênciae realidadeexterior será
novamente superada. Porém, no momento, a divisão está aí e o foco do nosso interesse
sedeslocou para o fundamento interno.
Em certo sentido, só agora chegamos à dialética da Essência, após extensa introdu-
ção. Após nos aproximarmos da Essência através do Ser e, portanto, ver a Essência como
postulado, completamos,enfim, a reversão,em que concebemosa Essênciacomo pri-
mária, e a realidade exterior como simples emanação dela.4Tendo assumido a Essência
como nosso tema no Fundamento, podemos então dirigir o foco para o propósito real
destelivro, que é mostrar que a realidade subjacente nada mais é que o pensamento que
manifesta a si mesmo como necessidade.

A derivação da categoria da contradição dá ensejo a duas notas. Um; delas detona o


princípio do terceiro excluído, o que, por si só, mais uma vez parece algo completamente
l
maluco, mas Eazsentido como um aparte às visões ontológicas desenvolvidas no texto
central. A outra nota (n. 3, 1rZ, vol. 11,p. 58-62) expressauma ideia central da filosofia

' A expressão alemã "zw Grz//z2e geóf " significa literalmente "ir ao fundamento", mas na acepção normal
significa"perecer,
acabar-se,
serdestruído".
(N. T.)
4 Esse é o tipo de reversãoque veremos mais adiante nas provas da existência de Deus, onde o que é secun-
dário na znF/aei;en22é primário na znf/o ragnoicfaz&.
ESSÊNCIA z93

de Hegel, a saber,a necessidade


da contradição como fonte de toda vida e de todo mo-
vimento. Um preconceito básico da lógica e do sensocomum é pensar

que a contradiçãonão constitui uma determinaçãotão essenciale inerente


quanto a identidade; mas, de Fato, se houvesse uma questão de hierarquia e as
duas determinações tivessem de ser mantidas separadas,teríamos de considerar a
contradição como a mais profiinda e a mais essencial. Com efeito, como oposta
a ela, a identidade é apenasa determinação do imediato simples, do Ser morto;
ao passo que a contradição é a raiz de todo movimento e de toda vida; somente à
medida que alguma coisa [em uma contradição em si mesma, ela se move ou [em
impulso e atividade. (WZ, vol. 11,p. 58.)

Consequentemente,tudo se encontra em contradição, e esta remete tudo ao fiin-


damento,o trocadilhocom que Hegel sereferetanto à morte de todasascoisasfinitas
quanto à sua necessária referência a um fundamento subjacente, a uma necessidade que
as explicita. Com efeito, a contradição não significa apenasmorte, mas também de-
senvolvimento necessário.Contradição e necessidadeestão estreitamente interligadas.
O ponto a ser demonstrado nessaseçãopode ser resumido num alçar-seacima da mera
contingênciaaté o ponto em que a busca por relaçõesnecessárias pode ter início com a
dialéticado Fundamento. Esta é a tarefa propriamente filosófica; "0 fim da filosofia é
banir a indiferença e reconhecer a necessidade das coisas, de sorte que o outro apareça
como defrontando o iezzoutro" (EZ, S 119, adendo l).
Com a categoriado Fundamento passamosa olhar para a realidadenão exatamente
como ela estáaí, mascomo fiindada. Tudo que existe possui uma razão:esteé o princí-
pio que está na basedos conceitos dessacategoria; e Hegel cita nesseponto o princípio
da razãosuâciente, de Leibniz. Aceitar esseprincípio é reconhecer que tudo o que existe
"tem de servisto não como um existenteimediato, mascomo algo posto" (WZ, vol. ll,
p 65). Assim, com essacategoria realmente ultrapassamos a esfera do Ser: passamosa ver
tudo como emanando do seu fiindamento. Hegel acrescentanesseponto, mencionando
Leibniz nominalmente, que essefilósofo estavatotalmente correto ao não procurar asra-
zõessuficientes em causas eficientes, meramente mecânicas, mas, antes, em causas finais.
E issoobviamente expressatambém o objetivo de Hegel; como já vimos nos parágra-
fos acima e durante todo o tempo, o propósito é levar-nos a uma visão da realidade como
a manifestação da necessidade. Foram os vínculos necessários entre opostos que nos
trouxeram até a categoria do Fundamento, e é a mesma interconectividade necessária
entre elementos de um sistema que emergira dela. Hegel está aqui, uma vez mais, mer-
gulhando numa certa série de conceitos aceitos de modo geral, visando mostrar como
elesse inserem em sua própria visão ontológica e, nesseprocesso, enriquecem ainda mais
nossaideia dessavisão. Par isso, sairemos da discussão sobre o Fundamento, em certo
sentido, com a mesma noção básica da realidade como interconexão necessáriacom
a qual ingressamosnela, tendo acrescentadooutra série de conceitos comuns àqueles
z94 PARTElli l l,ÓGICA

que já coram evidenciados como apropriadamente entendidos só à luz da oncologia de


Hegel. Porém, em outro sentido, essavisão é desenvolvida ainda mais nessaseção;coU
efeito, fica bem mais claro que estamos lidando com um sistema de seresrelacionados,
uma totalidade do ser exterior que está sistemática e necessariamenterelacionada.
É issoque resultada argumentação.sTomando como ponto de partida simplesmente
o conceito do filndamento ou da razão suficiente, passamosa explorar a contradição
implícita em suaaplicação.Dita contradição consistenisto: a fim de ter uma razãoreal-
mente suficiente para algo, temos de delinear condições que são idênticas com ou que
resultam no evento ou na coisa a ser explicada. Porém, uma razão que resulta na mesma
coisa que deve ser explicada não é satisfatória como explicação: ela não consegue ser
informativa. Nos comentáriosque Eaznesseponto, Hege] censuraas explicaçõesvazias,
como aquelaque atribui os efeitos do ópio a uma z,/rlzi Zarm/ffz,zz[6orçadormitiva],
embora alguns dos exemplos que ele seleciona dificilmente se enquadrem nessacrítica
em particular. Paraser informativa, uma explicaçãodeve fornecer-nosuma razão que
não é idêntica com o que estamos explicando. Porém, ao fazer isso, perdemos a sufici-
ência da razão, porque dali por diante fundamento e fundado já não são a mesma coisa
e, em consequência, estão vinculados apenas contingentemente. Não pode ser suficiente
afirmar ,4, a causacontingente de B, como seufiindamento, porque '4, por si só, não é
suficiente paraB, massó .4 em combinação com a conexão causa]peia qual .4 produz B.
O dilema, ou a contradição, em que nos encontramoscom a noção do fundamento
é, por conseguinte,esteou esta:desdeque a mençãoque fizermosde um fundamento
seja informativa, este será distinto da entidade a ser explicada (Hegel chama isso de "fun-
damento real"), mas, nessecaso,ele seráinsuficiente; em contrapartida, se for suficiente,
ele já não será mais distinto do ex?#capzdum e, nesse caso, será vazio e não informativo
(o que Hegel chama de "fundamento formal").
Para os pensadores contemporâneos, essedilema não parece difícil de resolver, uma
vez que se pode reconhecê-lo de modo geral. Parece haver pontos em comum com as
noções de explicação correntes na filosofia da ciência contemporânea: uma explicação
válida tem de ser tal que o ex?arzzdz/m pode ser deduzido do np#caní, enquanto simul-
taneamente é preciso se manter fiel ao dito de Hume referente à contingência da relação
entre causa e efeito. Porém, de acordo com muitos autores da filosofia da ciência, esses
dois requisitospodem sercumpridos pela forma-padrão de explicação,em que explica-
mos B pela combinação de duas premissas: que .4 ocorreu e que .4 Goiseguido de B. Isso
satisfazcanto a condição da suficiência, que nesseponto é interpretada como requerendo
uma relação dedutiva entre ex?#fani e cxp#cz/zd m, quanto a condição da informativi-
dade, de que causae efeito estejam contingentemente relacionados. Esta última é satis-
feita na medida em que a premissamaior, a lei geral, é contingente.

5Estou seguindo, neste ponto, a linha de pensamentoda WZ, que na .ÉZé um tarro diferente, masdepende
da mesma contradição básica.
l

ESS ÊNCIA z9S

de
Porém, essainterpretação moderna dos requisitos da suficiência e da infonnacividade
com
náo é de Hegel. Se isso já náo estivesseevidente, certamente se tornaria na discussãoda
.os,
relaçãoentre condição e fundamento, que é um tanto similar à relaçãoentre condição
particular e correlação geral na explicação canónica e que provê a transição para Horado
lente
Fundamento. Com efeito, a explicação canónica da anual filosofia da ciência ainda é ra- 4
dicalmente incompleta aos olhos de Hegel; e isto precisamente porque ela é contingente.
7
',4 resulta em #' é contingente e por isso exige ainda outra explicação: por que '4 resulta
em B? E uma explicação canónica disso exigirá uma explicação subsequente, e assim por
]
diante #z/ ín# ifz/m; e um regressoinfinito similar escancara-sepor trás da condição H,
t.
ser
uma vez que perguntemos por que ela ocorreu (cf WZ, vol. 11,p. 96). 1.1
bvazias, ''.-l
Como já vimos, Hegel estáà procura de uma explicaçãoque é completa num sentido
jtiva]
considerado impossível pela filosofia da ciência contemporânea, ou seja, uma dedução
Laica q
da necessidadeque náo estáfiindada no que são, em última instância, premissascon-
que
tingentes, mas que é necessáriado início ao fim. Vimos essaideia como a de um círculo
In6ci.
c( bISa
de conexõesnecessárias,
em que o ponto de partida, que no início é apenasposto e,
em consequência, não embasado, acabasendo derivado. Obviamente, essaé a visão de
bjie- te
realidade enquanto necessidade consumada que é forjada a partir das transições dialéti-
não é
casda Zí&fca, e é issoque fornecea Hegel o seu critério de suficiência. E claro que isso
B.
enfraqueceseriamente o seu argumento do ponto de vista de um leitor contemporâneo,
m.to
.to porque isso equivale a presumir um aspectocrucial daquilo que eie quer provar, mas
.n
parecedifícil negar que aqui Hegel estáprocedendo com base nessecritério, assim como
ele lãz em outras passagens similares.Ó
.te,
Porém, ao passoque pode parecer gratuito assumir um critério dessesse levantarmos
.vo
repentinamente, por assim dizer, a questão da explicação científica, há alguma justi-
a ficação para ela no contexto em que Hegel traz o argumento na ZI({@rú.Com efeito,
as supostamente, já estabelecemosque a realidade forma um sistema de mudanças que
são impulsionadas por necessidade. Porém, se as mudanças advêm por necessidade,
uma explicação plenamente adequada de suas razões deve mostrar a conexão necessária.

,0
É isso que justifica que demandemos da teoria canónica da explicação algo mais que a
dedutibilidade de uma lei geral.
E, uma vez asseguradaa legitimidade dessademanda, já podemos apreciar o dilema;
sea explicação completa deve ser completa no sentido de que não sepode mais pergun-
tar por que, c se isso, como é evidente, for incompatível com o Eito de nos basearmos
em premissascontingentes não explicadas, então parece que os dois critérios, o da sufi-
LS-
ciência e o da inGormatividade, colidem frontalmente.
De bato, o único modo de resolver essedilema, se é que ele pode mesmo ser resolvido,
é encontrando alguma solução na linha do que Hegel está propondo: é possívelobser-
.e
var que relaçõescontingentes perduram entre coisasparticulares e eventos,sendo que

b Por exemplo, a discussãono capítulo 111da /B


z96 PARTElll l LÓGICA

algumas podem ser selecionadas como razões para as outras, mas todo o sistema do qual
estas Ezem parte é estruturado por relações necessárias.
A contingência pode ser concebida como existente nos interstícios da necessidade
em uma destas duas maneiras. Ou concebemos a contingência como apenas aparente, o
resultado de olharmos para exatamente essasduas coisas ou essesdois eventos, sendo que
quando vemos o todo podemos ver por que elas ou eles têm de estar relacionadosdesse
modo -- analogamente, a correlação das duas características em um organismo pode ser
apenasum Eito bruto, à medida que nos concentramos exclusivamente nessasduas ca.
racterísticas, mas pode receber uma explicação mais completa (mesmo que obviamente
ainda não uma na linha da completa necessidade)se olharmos para elas no contexto
do organismo como um todo. Por conseguinte, afirmaríamos que o Fato de que seres

animados são mortais pode parecer apenas uma correlação contingente se centrarmos o
coco simplesmente nessesseres,mas pode ser visto como decorrente por necessidadeda
natureza das coisas, uma vez que captemos a visão ontológica carreta.
Ou então a contingência pode ser concebida como sendo real, mas contida: a
composição geral do mundo, o fato de haver matéria, corpo, gravidade, de haver dife-
rentes tipos de seresanimados, de existirem sereshumanos, de que a história humana
assume as linhas gerais que ela assume; tudo isso é assim por necessidade. Mas os fatos
particulares: de que há ilhas no meio do Atlântico ou que o valor de g [= ace]eração
da gravidade] é 32 péspor segundo ao quadrado [g = 9,80665 m/s:]; essasquestõesde
detalhe poderiam ser diferentes.
Hegel pareceter defendido a existência dos dois tipos de contingência intersticial.
Os dois podem ser reunidos sob a formula geral que consideraria como sendo necessá-
rias asestruturas básicasdo universo, aquilo que é descrito mediante conceitos catego-
riais e suas conexões; ao passo que descrições expressas em outros termos menos gerais
estão relacionadas com características dessa estrutura de um modo que obscurecem
sua necessidadeou se aplicam a aspectosdetalhados da realidade que podem variar
relativamente à estrutura.

Se essesegundo tipo de contingência parecer difícil de conciliar com a teseda com-


pleta necessidade, a resposta é que a estrutura das coisas é tal que /azZzsas categorias
da Lógica têm aplicação.As coisaspodem ser descritascomo Ser Determinado, como
Quantidade c assim por diante. Ir dialeticamente além dessascategorias não as evidencia
como vazias,mascomo inadequadas,exigindo suplementaçãopor outras. E, em conse-
quência,elastêm aplicação.A realidade também é constituída por seresdeterminados,
gz/.zmía
e assim por diante. Como tal, a realidade também tem seu aspecto contingente.
Isso pode ser conciliado com a completa necessidade sistemática mediante a tese de que
tais fatos e relaçõescontingentes se sustentam dentro de uma certa moldura, a qual, por
sua vez, é necessária. E tem de ser assim conciliado quando vemos que todas as categorias
devem sesustentar. Porque, nessecaso, a contingência, inseparável do ser determinado,
da quantidade, e assim por diante, existe por necessidade.
ESSÊNCIA z97

Agora, em relação à solução do dilema das razões suficientes, essasduas noções de


nringênciaintersticial implicariam a visão de que a relaçãocontingente entre fiinda-
lento particular e fundado particular pode ser transposta para uma relação necessária
,r meio de sua suplementação com um entendimento do sistema do qual é uma parte,
então a visão de que as razões dos detalhes particulares devem permanecer contin-
.temente relacionadas com eles, mas que as realidades concernidas, caracterizadas em
propriedades essenciais,estão filndadas na necessidade.Em qualquer dos casos,
jocamo-nos da contingência superficial para a necessidade subjacente à medida que
deslocamosdo detalhe para o sistema.
E estaé a soluçãode Hegel para o dilema do Fundamento- Há relaçõesparticulares
.treo fiindamento e a coisa fiindada que, por si sós, são contingentes, mas que se en-
)ntram sobrea base da necessidadesistemática do todo. Portanto, enquanto permane-
:osno nível dos detalhes particulares, estamos necessariamente lidando com razões
cientes.O princípio da razãosuficiente,no entanto, é satisfeitopelo fato de que
assumem seu lugar no todo por necessidade. Consequentemente, a única explicação
lcientebaseadana completa necessidadeé aquela que nos remete ao sistema todo. E,
lessecaso, ex?#ca/zZam e lx?acã/zi não são mais identificados por si sós como elementos
oculares,mas estão relacionados com o todo. A explicação desseselementos passa
lo todo do qual constituem partes. Dessemodo, o ex?#ca/zZamdeixa de ser distinta
ey#rapzi, sendo, antes, incorporado nele.
Por conseguinte, a mortalidade dos sereshumanos pode parecer, a princípio, con-
tgentepara nós. Porém, quando a vemos fundada na contradição do espírito, que
de corporificar-se na finitude e, não obstante, deve ir além dela, percebemosa
necessidade.Porém, ao mesmo tempo, o processo necessáriodo espírito pe]o qual
aplicamos
a mortalidade não é algo distinto dele. A mortalidade, tanto quanto o
cimento, é uma de suas fases.

Porém, não obstante, essaexplicação não possui nenhum dos vícios das explicações
lo tiPO z'irfz/i 2orm/r/z,.z [força dormitiva], pois compreender essanecessidade global
compreender um sistema de elementos diferenciados que estão inter-relacionados.

EmEZ (S121, adendo), Hegel diz que, na vida comum, com frequência, usamosexplicaçõesque não con-
fiem distinguir er?#fandam e ex?#rani,como, por exemplo, quando explicamos algum fenómeno elétri-
Eazendoreferência à eletricidade. Não há nada errado com essasexplicações no contexto da vida comum.
)rém,essetipo de razão é insatisfatório para a filosofia, porque a razãoainda não 6oi articulada dentro de
todo, cuja estrutura é necessária. O Fundamento ainda não [em um "an z//z2..8r i/ró óeí//mmrf/z ZnAd/f"
)nteúdo determinado em si e para si] . Ainda não chegamos realmente ao que é ativo(/óãfÜ) e produtivo
rón/lgz/zd (cf. S 122). Consequentemente,nessenível comum, vale qualquer coisa. Uma razãopode
encontrada para qualquer coisa.
argumento usado na EZ difere do usado na IXZZ,e a transição depende mais do caráter insatisfatório desse
to comum de apresentar razõesem que boas razõespodem ser encontradas tanto a favor como contra
uaiquercoisa, dependendo de que descrição dela você escolhe.
2,98 PARTElll l LÓGICA

Por conseguinte, ela é ricamente informativa e inclui certa quantidade de relacio.


namentos particulares, que, por si sós, aparecem como contingentes. Por essavia.
a necessidaderequerida pelo princípio da razão suficiente é combinada com a dize.
renciação real dos termos na relação entre o fundamento e o fundado, sem a qual as
explicações não são informativas.
A noção da realidade como sistema total de elementos necessariamenterelacionados
empresta outro aspecto à diabética de identidade e diferença vista anteriormente. Por ser
um todo (f//z Gamzei),o sistema de elementos relacionados é uno, reflete identidade, e
na explicaçãodo todo pelo todo, fundamento e fundado são idênticos. Porém, por ser
um sistema de elementos diferentes, e, ademais, elementos que consistem de objetos
separadamente existentes, o sistema tem o seu ser-outro, a sua diferença; fundamento e
fundado são entidades diEerenresque estão relacionadas dessemodo. A realidade neces-
sariamente consiste de ambos. Sem o vínculo necessário, que é identidade, o que existe
náo estaria fundado, seria sem fundamento, logo, não existiria. Porém, sem a diferença,
sem a real diferenciação dos elementos, tampouco poderia haver existência, porque,
como vimos, o puro ser é equivalente ao puro nada. E a diferença requer objetos reais
com existência separada, realidade exterior, objetos que existem à parte uns dos outros,
logo, separadosno tempo e no espaço Sem diferença, não haveria existência real inde-
pendente (Bef/e&rn).
Podemos olhar para essetodo também através dos conceitos da mediação e da
imediatidade. Diferentemente da esferado Ser, os elementos dessesistema são todos
mediados; cada um é posto, produzido, fundado pelos outros. A mediação, portanto,
é universal. Porém, o sistema como um todo não é medrado, é o /ocz/sde toda media-
ção, não dependendo, todavia, de nada externo a si mesmo. Ele é, portanto, imediato.
Porém, a sua imediatidade não é como a das primeiras categoriasdo Ser. Esta é uma
imediatidade fundada na mediação, que superou a mediação no sentido de que ela
fecha o círculo de um conjunto de mediaçõesretornando a si mesma.É a imediati-
dade de um sistema autossubsistente,que basta a si mesmo. Por conseguinte, Hegel
Fala dele como "grz//idas" [sem fundamento] (WZ, vo]. ]], p. 99-100). É "o restabe]e-
cimento da /medlafi2a2eou do Ser; masdo Ser enquanto mediada pelo suprassumir
l,4ze/beZ'a/zg)
da mediação" (.EZ,,S 122).
Hegel diz que isso é a categoria da Existência. O uso dessapalavra derivada do latim
tem o propósito de tirar proveito da referência etimológico à exteriorização.Com efei-
to, o que Hegel quer enfatizar nessasolução para o dilema do Fundamento é que essa
categoria não deve ser vista como designando algo inferno e oculto que se situa atrás
da realidade. Conceber a realidade como fundada é concebê-la como repousando sobre
algo diferente; e issopode nos induzir, e com frequência induziu pessoas,a conceber
aqui[o sobreo qual e]aestáfundada como alguma baseinterna ocu]ta. ]sso é tanto mais
provável quando pensam serem insuficientes os eventos e as coisasexternos particulares
que sáo candidatos a fundamento. O ponto que Hegel quer mostrar é que o que efta nas
ESSENCIA299

:l
.. 1.-- m-.
l H;ll:€1;Ç)HF
brmulando o ponto de modo diferente, a baseinterna das coisasnão é alguma entidade
" n.,...;H.HP '---P ''n,..t., ---, ''vn"--â"

nlpnn e única na realidade
por trás dela, mas a necessidadeque encontra sua expressãoplena e única na realidade
poi dor, precisamente nas conexões necessáriasdessa realidade enquanto sistema. O ple-
no entendimentodo Fundamentorevela-nosque não há nada por trás da realidade
exterior.Porém, issonão quer dizer que nos encontramos no ponto de partida em que
nosdefrontamos com o simples ser.Pelo fato de termos compreendido a generalidade da
necessidade,
passamosa perceber o que há do lado de fora como posto, como produzido
por ess' necessidade.Consequentemente, vemos as coisas não só como realidade exte-
rior, mascomo advindas para a realidade exterior, como desdobramento, como devir em
sua exterioridade em conformidade com a fórmula interna da necessidade. E é isso que
reforça a noção de Ex/sfêmc!'z.
Consequentemente, com a transição para a existência, Hegel deu o passocrucial na
tarefa assumida nesselivro, que é fazer-nos ver a Essência como aquilo que está na base
da realidade exterior, não como algo oculto por trás dela, mas como necessidade plena-
mente manifesta. Ela permanecerá presente nas seçóesseguintes deste livro para enrique-
ceressanoção da necessidadesistemática, mas o problema foi posto aqui. Nessesentido,
a diabéticado Fundamento representa um avanço. É verdade que essanoção da relação
necessáriaentre os elementos estava presente antes e 6oi essencial para argumentos an-
teriores deste livro, especialmente para a derivação do Fundamento. Porém, nesta seção
emergiu mais claramente a ideia de um todo composto de elementos sistematicamente
relacionadose a ideia a ela associadade uma base interna, cuja naturezaé manifestar-
-se plenamente no plano externo. Trata-se de temas cruciais que necessitam e ainda
terão uma explicitação mais detalhada, mas que nesseponto se encontram obscurecidos.
Consequentemente, a Existência é

a multidão indeterminada de existentes enquanto reíletidos sobre si, que, ao


mesmo tempo, igualmente lançam luz um sobre o outro que, em suma, são
relativose formam um mundo de dependência mútua e de uma infinita conexão
de fündaJnentos e de consequentes.' (EZ, S 123)

Porém, essamassa de existentes, apesar de relacionados uns com os outros num todo,
ainda não é a manifestação plena da necessidade,o único fiindamento adequado das
coisas.É o que tem de serderivado agora.

Nessejogo multicor do mundo, se podemos chamar assim a soma de tudo o que


existe, não se encontra em parte alguma um ponto de apoio firme; tudo tem
um aspectode relatividade,de condicionado por e condicionando outra coisa.

' Traduzido com basena tradução para o inglêsde William Wallace, utilizada aqui pelo autor. (N. T.)
3oo PARTElll l LÓGICA

O entendimento reflexivo se incumbe de trazer à luz e averiguar essas conexões


que seguemem todas as direções;mas a questão de uma meta final não encontra
resposta em tudo isso. Por isso, a razão conceituante exige ir além dessaposição
de mera relatividade rumo ao desenvolvimento ulterior da Ideia Lógica.9 (ibidem)

Na seção sobre o Fundamento na IPZ, Hegel retoma a discussão sobre as distinções


entre forma e essência,forma e matéria, forma e conteúdo. As duas últimas são disco.
tidas num ponto posterior da .EZ. Porém, isso não constitui uma revisãosubstancial
}1
1
porque a tarefa que Hegel se propõe aqui é mostrar como sua ideia básica emergede uma
investigação dessasdistinções e, nesse processo, derrubar as oposições fixas do entendi-
mento. Não há em si um ponto único no qual essasdistinções têm de ser retomadas.
Hegel prosseguirá visando desenvolver a ideia da necessidademanifesta através da
categoria da Aparição. Esta é entendida, como a da Existência, mais no seu aspecto
de substantivo do que de adjetivo: aparição é aquilo que aparece,aquilo que sai para a
exterioridade. '' Ela, portanto, não será contrastada com uma realidade que seria mais
essenciale que estaria oculta.

"""'+'+
COISA

Porém, antes de partir para essadiscussão há mais uma categoria importante do


sensocomum e da fi]osofia tradicional que Hegel tem de terminar de tratar, a saber,a
da Coisa. Estamos Edando aqui da coisa que possui propriedades, que é a detentora de
propriedades. Não chegamos a ela na esfera do Ser, porque ali tivemos a Qualidade, que
era idêntica ao Ser: o Algo deixava de ser, assim que a qualidade mudava. Assim sendo,
a relação de "ter" não poderia ser atribuída naquele caso. ' ' Porém, aqui chegamos à ideia
de uma totalidade de elementos interconectados, uma multiplicidade de propriedades
ligadas num conjunto, logo, a uma unidade que tem propriedades, mas que é capazde
subsistir à alteraçãodessaspropriedades,logo, à relaçãodo ter.
A noção da coisa que tem "propriedades" (palavra estaque também traz à lembrança
a relaçãodo ter e, tanto em alemão como em inglês, a palavra ".É2grnicóa@")
não é a
concepção de totalidade à qual Hegel deve opor-se. E isso por duas razões.

) Traduzido com basena tradução para o inglês de William Wallace, utilizada e modificada aqui pelo
autor.(N. T.)
' ParaEmir jus a essesentido mais ativo em português, o termo "/zppe'zrenre"não é traduzido por "aparên-
cia", mas por "ap'lição", como proposto pelo tradutor da Et para o português, Paulo Meneses (cf G. WI
F. Hegel, E zf/cá2p(üfa zZa Cyé#rlm .f?Zos(@c em Ca/npé ó&a. Volume 1: A Ciência da Lógica. São Paulo,
Loyola, 1995, p. 250 ss)e já aplicado nasseçóesprecedentesdeste capítulo. (N. T)
(ÉZ i 125) Hegel não conseguedeixar de comentar aqui que, em muitas línguas europeias,"ter" é
usadopara formar o tempo verbal pretérito, estando, portanto, conectada com o "azt&róoófneiSfj/z
jser suprassumido] e, em consequência, com Wêsen,que, como vimos, também está relacionado com o
particípio passado de ser.
ESSENCIA 3ol

A primeira pode ser formulada de três maneirasrelacionadas:em primeiro lugar, a


ideiaque Hegel tem de totalidade, como já vimos, é a de elementos que estão insepara'
fielmente relacionados e, não obstante, em oposição, mas a noção comum da coisa com
propriedadesé, antes, a da coexistência pacífica de diferentes propriedades na coisa. Em
.1.1
segundolugar, Hegel vê a contradição, isto é, a oposiçãodentro do inseparável,como ./";
d
necessária
enquanto conte do movimento, do devir, ao passo que a noção de coisa com
' n
propriedadesé, antes,a da coexistênciaestável.Em terceiro lugar, o Eito de que os di-
ferenteselementos da totalidade estão relacionados por contradição, a qual é, por seu J:]
.]
o fundamento das relaçõesnecessárias,
é o que asseguraque vejamos o mundo
!
das coisasrealmente existentes como fundado no pensamento, como emanando, em
1.
Última análise, da subjetividade, enquanto o modelo de coisa com propriedades nos
ofereceuma visão da realidade material, externa, como repousando, no final das contas,
cJ:
sobresi mesma, como não necessitando apelar a algum outro além de si mesma para ser r.f
consistentee autossubsistente.
O modelo de coisa com propriedades é, por conseguinte, um modelo alternativo
ao de Hegel, quer sejaaplicado a coisasparticulares ou estendido a todo o universo,
que nessesentido pode ser visto como uma coisa singular com diferente aspectos'E o
modelo em que a existência material, externa, basta a si mesma, visto que todos os seus
diferentesaspectospodem ser vistos como encaixando-se coerentemenre numa unidade
que é simplesmentea realidadematerial externa ampliada. ParaHegel, em contrapor'
tida, a verdade de que isso não era assim, de que a realidade material externa emana do
pensamentoe, em consequência,do espírito, de que ela não pode serentendida como
autossustentada, mas que realmente está fundada no pensamento, aparece em, e na ver-
dade / o Fato de que ela náo é autoconsistente, de que ela é uma relação de aspectos que
simultaneamente exigem e se opõem um ao outro. É isso que a torna contraditória e, em
consequência, destinada a perecer e estar sujeita a perpétua mudança. E é por isso que
a realidade só pode ser coerentemente apreendida como uma cadeia necessáriaou um
círculo necessáriode serescomo única possibilidade de solução para essacontradição.
Em outras palavras,o problema posto pela contraditoriedade da realidadeexterior só
podeser resolvido vendo-se essarealidade como parte de uma totalidade maior, como a
manifestação de uma necessidade interior, logo, como não dependente de si mesma, mas
dependente
do pensamento,que Hegel identifica com essanecessidade
interior, e que
maisadiante na Lógica será visto como espírito.
Portanto, em certo sentido, a questão referente à coerência da nossa concepção da
coisacom propriedadesé uma questão referenteao idealismo. Porém, ela o é só num
sentidomuito especial:com efeito, há um grande número de não materialistas,como
Kant, que são atacados nessadissolução dialética da coisa. Ademais, o marxismo, por
outro lado, é a doutrina que, enquanto alega ser anel-idealista,constrói sobre essano-
çãohegelianada contradiçãouniversale, em consequência,de movimento universal.
A concepçãoda coisacom propriedadesé a quintessênciado pensamentoidêntico,
3oz PARTElll l LÓGICA

estável,que não é capazde captar as coisasem seu movimento essência!,e que paraos
marxistas chegou ao auge na era burguesa, a era da "reificação" máxima. THvez haja,
no final das contas, mais que um mau trocadilho no Eito de essacategoria Emertal uso
da relação entre o ter e a noção de "propriedade".': Porém, o idealismo que está sendo
defendido aqui claramente não é do tipo dualista, não o que solucionada o dualismo
afirmando unicamente o espírito, mas, antes,o idealismo absoluto de Hegel. Estáclaro
que essaforma de idealismo não pode consorciar-se com uma concepção de totalidade
implicada na coisacom propriedadesenquanto conjunto autossubsistentee estável.
A segunda razão pela qual Hegel precisou atacar essanoção é que ela tende a resolver
o problema da unidade do objeto diante de suas múltiplas propriedades encarando essa
unidade como um substrato e, ademais, como um substrato incognoscível.Pareceser
um argumento p]ausíve]da fi]osofia tradicional que, o que quer que observemos,esta-
mos sempre observando propriedades. A unidade que as reúne num conjunto é um je-
-zze-Sais-gwo/
[não sei o quê] que está na sua basee que não pode ser observado como tal.
Essanoção de um substrato desconhecido evolui para o Z)/ngzz i/có na filosofia de Kant,
e é nessaforma que Hegel a retoma nessaseção.Porém, o que todas as demais formas
do conceito de substratotêm em comum com o de Kart e contra o que Hegel levanta
objeção é o aspecto da incognoscibilidade, que póe algo da realidade e6etivamentecora
do alcancedo espírito e, em consequência,aceita um dualismo não dissipado.Ê clara
que issose contrapõe às motivaçõesmais básicasde todo o empreendimento filosófico
de Hegel. Daí a crítica um tanto excessiva(como se poderia pensar)contra Kant (WZ,
vo[. ]], p. ] 1 1-12), afirmando que essanoção da distinção entre coisaem si e fenómeno
l contradiz a consciência da liberdade.
Porém, Hegel parecepensarque esserecurso ao substrato incognoscível advém natu-
ralmente da concepçãoda coisa, como tentativa de resolver o problema de sua unidade
coerente. Para Hegel existe esse problema, como vimos anteriormente nas discussões
sobre o segundo capítulo da .f;E, sendo, na verdade, um problema insolúvel. E essaé
exatamentea essênciado seu argumento, pois, na visão de Hegel, essacontradição in-
solúvel se mantém precisamenteentre os elementosque estãounidos numa totalidade,
como acabamosde ver. A afirmação de Hegel de que há uma contradição inevitável na
noção de uma coisa com propriedades não é mais sólida que sua tesede que coisasfinitas
em geralsãocontraditórias. Não podemosacompanhar todo o seuargumentoaqui, que
percorre o mesmo trecho que o segundo capítulo da .f;E e se apoia em parte em certas
[1
noções correntes da época, como, por exemplo, a da física fundada sobre a noção dos
vários tipos de "matérias'
Hegel descobrecontradição nos vários modos como a unidade da coisa Goiconcebida
na tradição epistemológicamoderna que tem início com Descartes,continua com os
empiricistas e da qua! Kant selibertou apenasparcialmente. Nessatradição, que também

: Cf. Eugene Fleischmann, Za Self ce (/níz,ene/Ü.Paria,Plon, 1968, p. 166


ESSENCIA 3o3

é contemplativa em que o sujeito não Goivisto como alguém que estálidando ativa-
com o mundo, mas justamente como alguém que é aGetadopor ele, a unidade da
mente
poisasempre correu o risco de esfacelar-senuma quantidade de dados sensíveisisolados.
sendo, ela 6oi concebida ou como um substrato desconhecido, ou como algo
0 masjamais como algo realmente experimentado.

F.. démarcbe básicade Hegel em ambas as versõesé tirar proveito das incoerências
das noções da coisa derivadas dessa epistemologia moderna, de modo muito seme-
Ihante ar que fez na /Z'. O Z)JnK/z sicó é considerado em primeiro lugar; ele é a uni-
e íefletida para dentro de uma multiplicidade de propriedades em sua relação com
outras coisas,principalmente com a mente cognoscente. Porém, as suaspropriedades
nãopodem ser separadasda coisa em si, porque sem propriedades ela é indistinguível
asdemais. Por isso, podemos dizer que há uma única coisa em si, mas, nesse
ela não tem nada com que interagir, sendo que foi essainteração com outros que
deuorigemà multiplicidade de propriedades.Sehouver uma única coisaem si, ela
devea partir de si mesmase converter na multiplicidade das propriedadesexternas.
No entanto, se retivermos a noção dos muitos, chegaremos ao mesmo resultado, por-
queos muitos só podem ser distinguidos por alguma diferença de propriedades, logo,
aspropriedadesde cada um não podem ser separadasdele, não podendo ser vistas
como simples identidade.
Porconseguinte,a noção do /)/nK zz#íicó como incognoscível, como simples substra-
to, separadodas propriedades visíveis que só emergem em sua interação com outras, não
podesersustentada.As propriedades são essenciaisà coisa, quer a visualizemos como
umasóou como muitas.E, assim,Hegel passaa considerara visão que Eazda coisa
nadaalém dessaspropriedades, que a vê como a simples coexistência das propriedades.
E nesse
ponto que as teoriasda realidadeque consiste de "matérias" naturalmente pas-
sama figurar na discussãode Hegel.
Porém,a coisaparticular não pode ser reduzida à mera coexistência de propriedades.
Porque
cadauma dessaspropriedadesexisteem muitas coisas.Visando isolar um exem-
ploparticular de qualquer propriedade, temos de evocar outra dimensão de propriedade.
Sequisermosisolar elff azul temos de distingui-lo de outros, identifica-lo por meio de
suaforma ou por sua posição no tempo e no espaço ou por sua relação com outras coisas.
Porém,
Emerissoé introduzir a noção do particular com muitas propriedades,porque
agoratemosalgo que é azul e redondo ou que é azul à esquerda do cinza ou que é azul
hoje, ou algo desse tipo.
O particular necessariamentetem muitas propriedades, e esseparticular com muitas
propriedades
é essencialà nossaexperiência.Com efeito, se não fosseassim, as únicas
entidadesque poderiam ser distinguidas seriam as próprias propriedades, que de fato se
tornariam as coisas do nosso universo. Porém, as propriedades não podem ser distingui-
dassemincorrer em contraste, e incorrer em contraste significa ocorrer em particulares;
usamcomo o azul e o verde ocorrem em diferentes remendos ou como forma e cor
3o4 PARTElll l LÓGICA

podem ser distinguidas porque são dimensões contrastantes de particulares. Um mundo


de qualidadessem particulares é inconcebível porque não haveria comunicação entre
essasqualidades; elasnão existiriam no mesmo mundo, logo, não poderiam ser contras-
tadas, logo, náo seriam qualidades, o que exige determinação pela negação de outras.
Hegel usa essanecessidadedo contraste para trazer o argumento de volta ao problema
inicial e, segundo ele, insolúvel de como pensar a coisa e suaspropriedades sem incoe-
rência. Não há como eliminar o "isto", mas tampouco é possíveleliminar a multiplici-
dade de propriedades. A coisa está, por conseguinte, em contradição consigo mesma.
'IA coisa nada mais é que essacontradição mesma; é por isso que ela é Aparição'
(WZ, vol. 11,p. 121). Consequentemente, Hegel justificou a sua ideia básicada natureza
contraditória da realidadeque é a totalidade dos elementosque requeremum ao outro
e, não obstante, estão em oposição um ao outro: nessecaso, propriedades que precisam
coexistir (porque a coisa náo pode ser eliminada) e que, não obstante, não podem coerir.
Ele a justificou contra a visão reificada e estática da coisa como conjunto autossubsis-
tente. E, em consequência, ele mostrou que a coisa material é essencialmente aquela que
se dissolve (i/có .zze/7ófí)
e se converte em aparição. Com isso, ele quer dizer que a coisa
não é uma entidade autossubsistente,que ela não só é mortal, mas que sua existência
também é o desdobramentoda totalidade que só pode existir como a manifestaçãoda
necessidade interior, não como um conjunto de elementos por si sós. Isto é, os elemen-
tos só se encaixam por serem opostos e contraditórios, como momentos de explicitação
da totalidade regida pela necessidade.Consequentemente,a dissoluçãoda coisa não é
só sua morte necessáriae impendente, mas também reflete a sua não autossuficiência,
o fato de que ela é a manifestação de algo diferente, da necessidadeinterior. E isso quer
dizer que ela não só estáaí, mas que ela é explicitada. É levada a ap/zr?cer.É isso que está
na base da transição para a Aparição.'3'

11: ML\RIÇAO

Em Aparição, o principal desenvolvimento é o da ideia de relação.A validade do


termo "aparição" aqui é que vemos as coisas aparecendo, sendo postas, chegando à mani-
festação por necessidade, mais do que como apenas aí "de modo imediato". Ver as coisas
como aparição é vê-las não simplesmente como repousando em si mesmas (aze/s/cAie/ósf
ófrzíArzza),mas como momentos de uma totalidade maior (.EZ,,S 131, adendo) e, em
consequência, como em relação necessáriacom outras.
A realidade vista como aparição é algo superior aos entes imediatos, independentes.
Isso pega a consciência comum de surpresa, o que ocorre porque ela entende a aparição
como uma tela diante da realidade. De fato, não há nada por trás. Dizer que a Essênciaé

I' Isso já Eoi deito na WZ, onde Z)/nK é a primeira parte da segunda tríade, e não a última parte da primeira
tríade, com na Et outro sinal da frouxidão essencial nas conexões da Zckfrú.
ESSÊNCIA 3o5

,áo é dizer que ela dez,eaparecer, "que a essência não fica atrás ou além da aparição",
sd paraa 'xistência.(EZ, S 131 adendo.) . . .
) uso que Hegel Eazde "aparição" expressa, por conseguinte, o exato oposto.do de
Ao invés de apontar por contraste para o caráter essencialmente oculto do real
:ndente, ele expressa, muito antes, o caráter essencialmente manifesto de toda a

M de. Para Hegel, ver a realidade como Aparição é vê-la como o aparecer por necessi-
interior, como implementada visando manifestar uma necessidadeque é destinada
naturezaa tornar-se plenamente manifesta. Por conseguinte, essacategoria indica
nto central para Hegel, a saber, que o real não está "simplesmente aí", mas é posto,

im
emendado
como concretizaçãode uma fórmula racional. Por conseguinte,o que
est: em curso aqui é o desenvolvimento de uma noção de Essência como necessidade

qu
devechegarà plena manifestaçãona realidade exterior. Isso virá triunEdmente à
ton na terceira seção da Essência, que Hegel intitula "Realidade" (W7ré#cóêei/). Neste
[o, assentaremosa base para isso através da ideia da relaciondidade necessária.
PO
relacionalidade
sob discussãoé entre dois tipos de termos:primeiro, a relacio-
m lde entre os diferentes elementos da totalidade, que, no final das contas, virão a
ost içara necessidade;e, em segundo lugar, a relaçãoentre a realidadesubjacentee a
tot idade externa dos elementos. Essasduas formas de relação desenvolvem-se juntas do
antemodo: quanto menos a necessidade aparece na totalidade da realidade exterior,
taD maisdevemos distinguir essarealidade exterior da essênciasubjacente, na qual to-
da nscoisasse encontram em unidade. Em outras palavras, visto que, em última análise,
est ios lidando com uma totalidade necessariamenterelacionada,a não manifestação
des necessidade
na realidade exterior estará acompanhada da distinção entre essareali-
zeexterior e a essência subjacente. Inversamente, a maior manifestação da necessidade
est acompanhadade uma identificação mais plena da realidadee da essência.Esses
do desenvolvimentos ocorrerão concomitantemente nesta seção.
Com a Aparição, começamosde novo com uma suposta distinção entre essência
e i6estação,
e a superamos.Porém, diferentemente de fasesanteriores, estamosli-
da moagoracom a realidadecomo totalidade, e ademaiscomo totalidade relacionada,
e
da como uma totalidade que não significa simplesmente coexistênciaestávelde
ele
lentos,mas que experimenta mudança, desenvolvimento, possui oposição interna.
h Imsendo.a essênciainterior não é mais uma realidadecom caráter de coisa,como
nc casoda coisa em si. E, antes, uma fórmula interior de relacionalidade. Porém, sendo
in dor, ainda estáseparadada realidadeexterior e, em consequência,é uma fórmula
lar, ainda não a manifestaçãoda essênciano sistema da realidade,a qual veremos
en
IUZré#cóêeif.Temos de superar essaoposição de interior e exterior, que de fato será a
ÚI
la oposiçãoda seção,mas tudo o mais é construído em cima dela.
Visando montar o cenário para a apreciação da relacionalidade necessária,Hegel nos
co
lduzatravésda dialética precedente,que é diferente na WZ e na EZ. Nesta última,
el(
preparao caminho para ela por meio de uma discussão sobre conteúdo e forma, cujo
3o6 PARTElll l LÓGICA

teor substancialocorre numa passagemanterior da WZ. Nessaobra mais antiga, a pre-


paração se dá através de uma discussão sobre leis.
Nos dois casos,a relevânciada preparaçãoé a mesma: para a filosofia tradicional.
a aparição estáem contraste com algo mais fundamental. Porém, nesseestágio,como
já vimos, essealgo mais fundamental não pode ter caráter de coisa, mas tem de ser a
relacionalidade subjacente. Nesse estágio, estamos tratando, por isso, de alguns modos
alternativos de conceber essarelacionalidade no sentido de que ela se encontra além da
realidadeexterior ou subjacentea ela. Um dessesmodos é contrastar a multiplicidade
da realidadeexterior heterogêneacom a relacionalidadeinterior de leis que formam a
11
F suabase.Vemos o domínio dasleis como "a imagem tranquila do mundo existenteou
aparente"(WZ, vol. 11,p. 127). Outro modo é contrastar o conteúdo da intuição com
1l. a forma em que a multiplicidade heterogênea da intuição é vista como relacionada.
O primeiro modo é o da WZ, o último é o da .EZ.
Em ambos os casos, a tarefa é mostrar que essa distinção não pode se sustentar: que
forma e conteúdosãoinseparáveis,
que uma seconverteno outro ou que a identidade
interior ou a relacionalidade de uma lei não pode ser separadada multiplicidade exterior
real. No primeiro caso, a leitura hegeliana dos termos "forma" e "conteúdo" é suficiente
para assegurara transição. Na WZ, Eaz-sereferência a outro tema hegeliano, a inadequa-
ção de leis contingentes.
Por seremconsideradascomo um "reflexo calmo" do mundo dos fenómenos,asleis
não têm o mesmoconteúdo. Os eventosreais que acontecem em conformidade com
a lei possuem um grande número de outras característicasparticulares que a lei náo
explica. Há, por conseguinte,uma lacuna entre os dois. .Além disso, na própria lei há
apenasuma relaçãocontingente entre os dois termos: por exemplo, na lei dos corpos
em queda, náo há necessidadeligando distâncias ao quadrante dos tempos. Porém, na
visão de Hegel, o que a lei visa é explicar, e a explicação não serácompleta enquanto
houver qualquer contingência nela, como vimos. Por conseguinte, falando da lei dos
corpos em queda:

A lei que governa issoé conhecida empiricamente e, nessetocante, ela é meramente


imediata; e ainda se exige uma prova, isto é, uma mediação para a cognição, de que
a lei não só fiinciona, mas que é necessária.A lei como taJ não contém essaprova
nem a sua necessidadeobjetiva.:' (WZ, vol. 11,p. 129)

Nos dois casos,a lei é insatisfatóriacomo candidataà realidadesubjacentepor


trás da Aparição; com efeito, ela não é realmente subjacente a tudo, nem alcançaa
relacionalidade interior que deveria. É tanto demasiadamente interior (por não ter o
conteúdo completo do exterior) como demasiadamenteexterior (por não se alçarà
condição de necessidade).

14Traduzido com basena tradução inglesade Johnston e Struthers, vo]. ]], p. ] 34


ESSÊNCIA 3o7

Exatamente como na .f;E (capítulo 111), podemos notar que esse tipo de necessidade
l é aquilo que demandamosdas nossasleis científicas,e não se Emobjeçãoà lei dos
.voOS
em queda por não alcançar isso. Porém, Hegel tem aqui outra coisa em vista. Com
Ito,já deduzimosa relacionalidade necessáriana casep'ecedente. Consequentemente, a
évista contra essepano de fiando como um modo de conceber a relacionalidade neces-
subjacente aos fenómenos. Como tal, ela Edha. É claro que ela pode ser peúeitamente
da como um instrumento da ciência empírica. Tudo o que sabemos é que ela não pode
a palavra final e o ponto de chegada da nossabusca por uma oncologia válida.
O que emergedessadialética na WZ é a unidade da relacionalidadesubjacenteex-
-ressâna lei e a realidade exterior da qual a lei é expressão fiel. E isso nos dá a ideia de
.a totalidade de elementos que, mesmo separados uns dos outros, estão essencialmen-
relacionados.A distinção entre essênciae exterioridade, por conseguinte, converte-se,
antes,numa distinção entre os elementos dessarealidade exterior e a sua relacionalidade.
diabéticada Relação (UerÉã/mif) permite a Hegel percorrer a série de concepções dessa
relacionalidade,mostrar sua inadequação e, ao mesmo tempo, 'eforçar a unidade entre
oselementos e a relacionalidade que é também a unidade entre interior e exterior.
Por isso, essaseçãoalterna dualismos que contrastam interior e exterior e dualis-
mosque contrastam os elementos e a necessidadeque vincula os elementos. No início,
tivemosambos, na forma de um dualismo entre o mundo externo do múltiplo e a lei
interior, que é a conexão entre os elementos do múltiplo. Agora, a ênfase muda para o
dualismo"elementos-necessidade",somente para terminar uma vez mais na pura oposi-
çãoentreinterior e exterior, que não tem como não entrar em colapso-

TODO E PARTE

O primeiro estágioda oposição"elementos/conexão"é a relaçãoentre todo e parte.


HegelEm disso uma diabéticaao mostrar que cada qual requer o outro, no sentido de
queo todo é apenastodo se estiver em relaçãocom partes, e as partessó são partesse
estiveremem relação com o todo. Se as partes forem vistas por si mesmas, não serão
mais partes, mas cada uma se torna um todo. Ele diz (WZ, vol. 11, p. 143-44) que este é
um dos modos de ver a antinomia kantiana da divisibilidade infinita: tomamos as partes
e, olhando-as por si mesmas, conversemos cada uma delas num todo, que, por sua vez,
tem de ser dividido, e assim por diante, infinitamente. Porém, deveríamos antes dar-nos
conta de que as partes só são partes em relação ao todo.
Em contrapartida, partese todo não sãoidênticos; cada qual só existeem oposição
ao outro, e cada qual, visando existir para si, deve como que reduzir o outro à condição
de satélite,dependente dele próprio: o todo precisa manter as partes como elementos
subordinados para ser autossubsistente, as partes têm de libertar-se para ser autossubsis-
tentes.Mas então ocorre que, se obtivessem êxito, cada qual negaria a si mesmo: o todo
fiindiria suas partes numa só e, por conseguinte, não seria mais um todo (o que ele só é
no contraste); as partes se libertariam e, em consequência disso, não seriam mais partes
3o8 PARTElll l LÓGICA

Assim, todo e partes enquanto termos estão cada qual relacionados essencialmente
um com o outro. Cada qual é ele mesmo só em relaçãoao outro que é a sua negação
Cada qual nos remete ao outro. Essarelação íntima dos dois leva-nos para além de Uma
simplesconcepçãoda relaçãoentre parte e todo, em que pensamoso todo e o conjun-
to das partes coexistindo pacificamente como dois modos de encarar a mesma coisa
Olhando para qualquerdos dois modos, temos uma contradição, diz Hegel, em que os
dois termos estão implicados. A ideia de que há dois modos opcionais de olhar para a
mesma realidade de bato pressupõe que essarealidade seja estável e pura e simplesmen.
te admita duas descrições;enquanto isso, as contradições que há nela, que vemos ao
considerar parte e todo, mostram que ela está em movimento, isto é, constantemente
passandoda unidade para a multiplicidade e vice-versa. Porém, essarelação de exterio-
rização é a da força e de sua manifestação.É o todo visto dinamicamente como corça
interior que produz a realidadeexterior como suamanifestação.
Essatransiçãopara a corça nos lembra daquela na .l;F que também procedeude
uma tentativa de unificar dois opostos numa visão estável do objeto. O argumento de
Hegel é que, se os todos forem rea]mente feitos de partes subsistentes,então o todo
é meramente a nossaleitura do conjunto de partes, não havendo, nessecaso,partes
reais.E, de modo similar, se pensarmoso todo como real, então as partes são apenas
nossaabstração, não havendo, nessecaso, um todo real. Para que haja por aí todos
reais que não obstante possuem partes, é preciso que haja elementos que estejam liga-
dos uns aosoutros por interação.A interação propriamente só aparecerámais adiante,
na próxima seção,mas o que estáem jogo aqui é a ideia de uma realidade dinâmica,
na qual diferentes elementos exteriores estão realmente ligados numa unidade à parte
do nossopróprio agrupamentosubjetivo.
Isso nos traz até a corça e suas manifestações, sendo que podemos ver o múltiplo
exterior como procedente de alguma corça subjacente, de modo que ele não só é inques-
tionavelmente múltiplo, mas também estáinquestionavelmente ligado numa totalidade.
Porém, a noção de corça,por sua vez, é inadequada à visão de totalidade que estamos
buscando.A Garça,como Hegel nos lembra enEaticamente,é inadequada como modo de
representaro Ge/if (issoé dirigido, /nffr a#a, contra Herder). Ela procedecegamente,e
não como Eazo propósito, que estávoltado para um fim racional. E associadoa issoestá
o Eito de que corçassãolimitadas, tendo conteúdos particulares e condições particulares.
Por conseguinte,podemos conceber uma força dada, como o magnetismo, mas este
pressupõetipos específicosde substrato,como o cerro (-EZ,,S 136, aderido 1). E o berro
possui outras propriedadesem quantidade que não estão essencialmenterelacionadas
com o magnetismo. De modo similar, ascorçasrequerem certascondições para se mani-
festar. Hegel chama issode requisição de outra corça para "solicitar" a primeira; e temos
uma dialética que, uma vez mais, lembra o capítulo 111da .f;Z:
Por conseguinte,ver o mundo como a manifestaçãode corçasé vê-lo como o pro-
duto conjunto de muitas forças, que estão complexamente relacionadasno sentido de
ESSÊNCIA 3o9

"sojicitarem" ou acionarem umas às outras. Como 6ezna J%', Hegel executa uma dança
} '"'' intrincada com ascorçasque são solicitadas e, não obstante, solicitantes ao mesmo tem-
hão.
oo. O pano de flindo dessadiabéticaé a terminologia que tem alguma atualidade na sua
}un''
un- época.Porém, a base da transição é mais fiindamentalmente o fato de que chegamosa
5a.
um estágioem que não podemosmais permitir uma multiplicidade tão diversificada
os de corças, assim como anteriormente não pudemos permitir uma diversidade de qua-

lra a lidades, nas fases inaugurais da Essência. Chegamos a um ponto em que estamos tra-
En- tando de uma totalidade essencialmenterelacionada, e qualquer categoria que não está
ao à altura disso tem de ser deixada para trás. Consequentemente, a relação entre força e
corça"solicitante", que é sua precondição, é essencialmenteque, para Hegel, a própria
D- corça,enquanto impulso para alguma manifestação exterior, pode ser vista, por sua vez,
P comodeterminante de suaspróprias condições de acionamento. Em vez de serapenas
o impulso por trás de dada manifestação, ela tem de ser vista como aquilo que Eazessa
de manifestação acontecer a partir das condições que a determinam; ela é a conexão interior
de entre condições e manifestação.
Porém, juntando essaideia de totalidade e a noção recém-obtida de força, temos um
ncs novo modo de encarar a totalidade, a saber, como a manifestação, a expressão exterior de
Das uma conexão interior. Foi essanoção de implementação da realidade para cora que esteve
DS
presenteem Existência e Aparição, mas que agora ganha uma exp'estão muito mais ade-
P' quada na categoria que incorpora a noção de corça. A realidade exterior é a expressão, a
e. manifestaçãode uma conexão essencial.
2

te INTERIOREEXTER10R

Isso e6etivamente póe fim à dualidade posta em termos de elementos e sua ligação,
porque agora os elementos só existem como expressão da ligação. Porém, resta eliminar a
última impressão possível de dualidade, entre a necessidade interior e sua manifestação.
Essaseria uma pura distinção entre interior e exterior porque, diferentemente do casoda
lei tratado anteriormente, agora não há absolutamente nenhuma diferença de conteúdo
le
entreinterior e exterior, porque estenada mais é que uma expressãodo primeiro. Eles
têm o mesmo conteúdo.
Porém, essetipo de dualidade é insustentável nos termos de Hegel, e agora chegamos
ao ponto em que ele pode nos mostrar isso. Como vimos no capítulo Tll, a concepção
da realidadecomo necessidademanifesta Eazisso de tal modo que existe um elo de equi-
valênciaentre o estadoem que a realidadeé puramente interior, no sentido de oculta,
e o estadoem que a realidadeé puramente exterior, no sentido de exterior a si mesma,
não interiormente relacionada por necessidade mediante alguma ligação. Quanto mais
oculta (interior) 6or a essência, tanto mais puramente a realidade é relacionada exterior-
mente (exterior). Isso é o que Hegel chama de. unidade imediata de interior e exterior.
Inversamente, quanto mais essencialmentea realidade Gorexteriorizada no sentido de
expressa,
tanto mais desenvolvidaseráa relacionalidadeda realidadee tanto maior será
3io PARTElll l LÓGICA

sua interioridade. Esta é a tmidade mediada. Hegel dá outros exemplos da unidade


imediata. Uma criança é alguém em quem a humanidade é meramente interior, não de-
senvolvida;e, por essarazão,ela precisarecebersuahumanidade como instrução a partir
de cora. Essa relação de interior e exterior é baseada na ideia hegeliana da realidade colha
manifestação por necessidade,como relacionalidade.
Consequentemente, qualquer tentativa de separar o interior do exterior nada Eu
além de exteriorizar o que é exterior no sentido de não estar mais introrrefietido e,
assim, abrir uma fenda entre os dois. Uma vez que há uma fenda entre os dois, estamos
no domínio da unidadeimediata, na qual simplesmentesepassade um para o outro
impotentemente. Porém, se eles realmente forem a mesma coisa, se tiverem o mesma
il''
conteúdo, então não pode mais haver qualquer distinção entre eles.
Consequentemente, nessedomínio em que o interior é realmenteuno com o exte-
pH'
rior, o interior é algo que precisaexpressara si mesmo. Sua naturezaé revelar-se(;/cÓ
í?#ànózr?zz), tornar-se evidente. Dizer que interior e exterior sãoa mesmacoisa é dizer
que a realidadeé essencialmenteautomanifestante. E é isso que Hegel quer dizer com
Realidade(IP7rÉ#róÉr/r),a qual é uma união de Essênciae Aparição, que é exterior e,
não obstante, manifestação plena do essencial.A Realidade passaa ser algo que

uma vez que seu conteúdo e sua forma são completamente idênticos, .zn z/mZ./br
rirá nada mais é que o bato de sua autoexteriorizaçáo (slró áz®rrzz). É a revelação
de sua essência, de modo que essaessência simplesmente consiste nisso, isto é, no
querevelaasi próprio.(WZ,vol. 11,p. 155)

lll:REAL,IDADE

Com o termo " WZré#cóÉe/f":S


chegamosa uma categoria importante da filosofia de
Hegel. A realidade exterior é a expressãoplena da essência,e trata-se de uma realidade
exterior que não tem nada oculto atrás dela, porque é a manifestaçãoplena do que é
essencial. É a unidade de Ser e reflexão, Ser e Essência. A Existência, em certo sentido,
já foi isso, enquanto aparição, mas Hegel diz que ela 6oi apenasa sua unidade ime-
diata; porqueela foi mediadaa partir do Fundamento, e ainda tínhamosde mostrar
a dialética de realidade exterior e relacionalidade interior. A existência "vem do fun-
damento e desaba sobre o fundamento" (êommf az i 2em Grzz zdr z #gróf zzz Grz.n2e)
(.EZ,S 142).'' Porém, W7rê/fróÉeifé a unidade posta de Ser e Essência,é a relaçãoque

Apesar da explicação dada anteriormente, em que opta pelo termo "afr#.z/!g : eeetividade" para traduzir
o termo técnico hegeliano " \X%ré#fóêf/r", o autor só poucas vezes segue essa definido na prática, preferindo
traduzir essetermo por "re'z/fg". Mantém-seaqui a terminologia de Fatousadapelo autor.(N. T.)
ióTraduzido segundo a tradução inglesa de William WHlace. Wallace conseguiu captar o jogo de palavras de
Hegel aqui: "zz/ Gr /zzú'gróem"comumente significa entrar em colapso ou arruinar-se. Porém, em termos
ESSENCIA

aluiu até a identidade consigo mesma (Z#i m/f i/ró /de flfcZ' gemo/zZe/zr Ueró,2/fn/s).
la está,portanto, eximida da transição (Zfm [/ófrXfAe rnr/zommr#), e sua exteriori-
.de é sua energização (.Emergir). Nessa energização, e]a está ref]etida sobre si mesma;
existência determinada (Z)aie/n) é a manifestação só de si mesma e não de alguma
7

lira coisa" (ibidem).:


O adendo ao mesmo parágrafo da .ÊZpassaa descompor o modo próprio do senso
um de Edar da W7rÉZícA,êeifcomoalgo separado da ideia. Pelo contrário, W7ré/fcAêe/f
a unidade de interior e exterior e é, portanto, o realmente racional.:'
A seção sobre W7rX'/ícó,êe/f desenvolve essa ideia da necessidade manifesta, essência
.jfestada,atravésde duas dialéticas principais que são comuns às duas versões:a
:imeiraé um estudo de termos modais, a saber,necessidade,efetividade e possibili-
te.Esseestudo sedestina a justificar que a efetividade possui o íiafzn de necessidade
.anifestada,e também ao mesmo tempo explicar a relação entre necessidadee con-
lgência.Assim sendo, finalmente estamosconfrontados diretamente com a noção
necessidadeque estevetodo essetempo subjacente à Essência.Chegou a hora de
:azeressascategoriasmodais para dentro do nosso sistema. Devemos mostrar que
não podem ser vistas como em Kant, para quem elas não tocam a realidade,mas
-enassua relação com a nossa faculdade de conhecimento. Nem se pode admitir quc
possibilidadetenha a última palavra, como em Leibniz, para quem estemundo era
o melhor de todos os mundos possíveis,sendo, portanto, contingente num sentido
em importante.
A segunda dialética é aquela que finalmente aborda as três relações substantivas que
.t selecionou para um papel especial nas analogias da experiência, a saber: substância-
;idente,causa-efeitoe inreração; essadiabéticavisa deriva-las de modo a que assumam
:u lugar na realidadeque foi apresentadacomo uma totalidade governadapela necessi-
lde e que, no entanto, aponta para além dela, para a subjetividade e, em consequência,
parao Conceito. A transição principal que estáem curso em toda essaseçãoé aquela
quesemove atravésda necessidadecomp]eta para a liberdade e, em consequência,para
aatividade do sujeito. A necessidade real que só depende de si mesma é o mesmo que a
liberdade,enquanto autodesenvolvimento,que concebemoscomo atributo do sujeito.
'ortanto, necessidadeplenamente desenvolvida é liberdade e, visto que na terminologia
de Hegel o plenamente desenvolvido é o verdadeiro, podemos dizer que a verdade da
necessidadeé a liberdade, como ainda veremos.
Porém, antes de chegar a essasduas dialéticas, temos na WZ uma primeira Fasecon-
cernenteao absoluto, que de Fatoé uma crítica a Espinosa e um posicionamento de

hegelianos,a morte de alguma coisa é também seu retorno da particularidade para a vida da totalidade que
asustenta, isto é, para o seu fundamento.
" Traduzido segundo a tradução inglesa de William Wd laje.
" CÊ, nap. 321 [da crad.deWi]]iam Wa]Eace],a famosacitação sobreo racional e o rea] [ed. bus., p. 267].
PARTElli l LÓGICA

Hegel diante do monismo espinosiano.:PEmbora não seja essencialà dialética, essaeva.


caçãode Espinosa não signiâca um afastamento do tema central. Espinosa é um impor-
tante filósofo para Hegel, e isso não apenasno sentido de que toda a filosofia do passado
Goiimportante para o primeiro grande pensador a expressar que sua posição é essencial-
mente uma -4ze/beówng [suprassunção]de todo o pensamentoanterior. Em termos de
importância geral de todo o passadofilosófico, alguns filósofos se destacam:Aristóteles
é claro, e Kant, como o indispensávelponto de parada, a definição das dualidadesque
Hegel está tentando superar. Porém, Espinosa é importante pela razão oposta à de Kant,
a saber,porque ele acreditava na unidade de tudo no absoluto que era tanto Deus como
também o todo. Tudo está conectado na totalidade que é dependência do Absoluto qu.
é Deus. Espinosa, por conseguinte, chega muito próximo da posição hegeliana e, agora
que chegamos ao estágio de ver a realidade como totalidade expressivada Essência,é a
hora de nos posicionarmos perante Espinosa.
Por mais próximo que Espinosa esteja de Hegel, há diferenças importantes. O ponta
é que, pelo Eito de Espinosa estar próximo, a expressão dessasdiferenças é uma das me-
lhores maneirasque Hegel conhecepara deixar clara a sua própria posição. Consequente-
mente, ele recorre a esseexpediente com frequência.
A diferença pode ser sumarizada em categorias que só ficarão claras no final dessa
seção, ou seja, que para Espinosa o absoluto é apenas substância, e não sujeito. O abso-
luto é aquilo que está por trás e que não pode ser igualado a nenhuma coisa particular
no mundo.Todadeterminaçãoé negação;esseé o princípio de Espinosaque Hegel
assumiu para si; a questão é que, a partir dele, Espinosa sustentou que o absoluto se
encontra além da determinação, que ele está além da negação. Porém, nesseabsoluto
as coisasparticulares afundam sem deixar vestígios, ele é simples identidade consigo
mesmo. E, por essarazão, ele permanece como realidade interior pura e oculta; e, em
consequência, ele é a realidade sem movimento interior, que não é concebida de cal
modo que ascoisasexteriores determinadas possam ser deduzidas dela ou fluir dela em
virtude de sua própria natureza.
O absoluto hegeliano, em contrapartida, contém negação, está destinado a ir além de
si mesmo, a ingressar no seu outro ser, no seu ser determinado. Em consequência, para
Hegel, mas não para Espinosa, a realidade exterior do mundo não está meramente aí,
não é simplesmente algo encontrado, mas uma ordem que manifesta uma necessidade
interior. O Deus de Espinosa, sendo puro e estando além da determinação, é puro in-
terior e, em consequência,
a realidadedo mundo é puro exterior no sentidohegeliano.
Hegel compara essanoção da emanaçãode particulares de dentro do absoluto com o
que encontramos em algumas religiões orientais, nas quais o Absoluto é luz que emana,
perdendo gradualmente sua natureza à medida que resulta em entes cada vez mais bai-
xos. Hegel parecepensar que alguma ideia dessetipo estána base da religião dos antigos

A referência a Espinosa é relegada ao adendo ao S 151 na ÉZ.


ESSÊNCIA

masalgo dessamesma noção seencontra no neoplatonismo. Hegel, de forma um


rantc global,chama issode variante oriental de pensamento e vincula o fato de Espinosa
[ê,l adoradocom sua origem judaica, porque foi "em geral o modo oriental de ver as
coisas segundo a qual a natureza do mundo finito parece frágil e transitória, que encon-
orou suaexpressão
intelectual no seusistema"(-EZ,S 151, adendo).:'
Reciprocamente, o particular é concebido como aquilo que desaparece, mas nao
interiormente relacionado com o absoluto, como em Hegel, em que a natureza
doabsolutopode ser deduzida das contradições no particular. Do que sentimos falta
elnEspinosaé, por conseguinte, a ideia da contradição, da unidade de opostos, que é a
contedo movimento e que afeta o absoluto, o próprio Deus. Falta à filosofia de Espinosa
acontradiçãode um absoluto que é a origem e a fonte de todo particular e, não obstan-
te,possuiparticularidade em si mesmo; um absoluto que estáacima do particular e é
contrário a ele e que, apesar disso, o contém. Consequentemente, o mundo que vemos
como emanação desse absoluto carece da necessidade. Há particulares de toda sorte.
O absolutopossui um número indeterminado de atributos. Embora Espinosa só nomeie
dois,extensãoe pensamento,ele não vê que essessão os únicos dois e que eles estão
relacionadospela necessidadede serem os dois lados contraditórios do absoluto, cuja
contradiçãoé a conte do movimento. Eles são unidos, mas sem que sua oposição seja
vista,daí seremimóveis e sem uma conexão necessária.
PeloEito de o absoluto de Espinosaser imóvel em si, temos de conceberas suas
modalidades
como surgindo do seu contado com um entendimento que não tem real-
menteum lugar no sistema. O sistemade Espinosa ainda é um sistemaem que um puro
interioré contrabalançado por um exterior. Porém, a distinção entre interior e exterior
remetea um observador que ainda não está integrado no sistema. É relativamente a ele
queasmodalidades existem. Em contraste, o sistema de Hegel é um sistema em que o
observador está integrado e no qual, em última análise, como ainda veremos, a dualida-
deentre observador e realidade é superada.
As deficiências do sistema de Espinosa equiparam-se às deficiências do seu método,
queprocedepelo morrgromefr/ra. Coi-n efeito, isso implica tomar certasdeânições como
pontode partida; mas, sendo ponto de partida, a sua necessidadeinterior não é vista.
O sistemahegeliano, em contraste, afirma ser necessidadecabal, do começo ao fim.
No final da nota da WZ em que ele discute Espinosa, Hegel sevolta para Leibniz, que
éculpadode incorrer no erro oposto. Leibniz tem a manada como noção da subjetivi-
dade,constituída de maneira a manifestar a si própria em suaspropriedades. Ela aflora
necessariamente em suas propriedades e está consciente delas. Porém, isso é compen-
sadopelaideia que Leibniz tem da multiplicidade dessasmanadasque veem o mundo
dediferentespontos de vista. Essamultiplicidade não é derivada,de modo que não
podeservista como a manifestação da necessidade.Antes, Leibniz recorreu vagamente

aTraduzido segundo a tradução inglesa de William Wãjlace


3i4 PARTElli l LÓGICA

a [)eus, que é concebido como tendo deito um sistemade harmonia preestabelecidaa


partir das manadas. Porém, elas não são harmonizadas a partir de si mesmas. O bato de
estaremem harmonia não lhes é imanente. Essaharmonia é algo puramente exterior e
em consequência, é também algo interior, oculto nos desígnios de Deus.
A noção espinosiana do absoluto sem contradição e, em consequência, sem movi-
mento é o que Eazdo seu absoluto mera substância e não sujeito. Porque sujeito é o qu.
se move e o que é consciente de si mesmo, sendo, portanto, necessariamente,um outro
diferente dele próprio, na visão de Hegel.
Sobre Espinosa, issoé tudo. Hegel, por conseguinte, rejeita a noção de um Absoluta
indeterminado. Porém, essanoção obviamente já havia sido rejeitada com a distinção
entre exterior e interior, porque um absoluto indeterminado é puramente interior. Re-
i$,
tomamos, portanto, à Realidadecomo manifestaçãoe voltamo-nos para a dialética de
É' contingência e necessidade.

POSSIBILIDADE, REALIDADEE NECESSIDADE

Hegel inicia sua discussãodessesconceitos modais com o conceito de possibilidade


Na sua forma mais baixa, ele é com frequência concebido como mera possibilidade, como
simples não contradição. (Mas Hegel se apressaa acrescentar que isso equivale a uma con-
tradição, visto que tudo que é real -- e, em consequência, também possível está realmente
em contradição consigo mesmo.) Porém, o puramente possível, sendo aquilo que não é
contraditório, inclui praticamente qualquer coisa. As coisas parecem náo contraditórias
quando assumimosuma visão parcial delas,como vimos anteriormente na discussãosobre
a identidade. Assim sendo, qualquer coisa pode ser vista como possívelsob algum quadro
de abstração. Por exemplo, a lua poderia cair sobre a Terra esta noite ou o sultão turco
poderia tornar-sepapa (EZ, S 143, adendo).:'
Porém, essanoção de possibilidade é totalmente destituída de interesse. Podemos
concebê-la de tal modo que abranja um escopo mais amplo do que o e6etivo, mas ela
apenas faz isso de modo um tanto hipotético. Por isso, partimos para um sentido mais
pleno, mais fundamentado de "possível", do que é realmente possível. Porém, o real-
mente possível se relaciona com o eíetivo. Algo só pode ser encarado como realmente
possívelcontra algum pano de fundo da realidade presumida;é isso que torna um
dado resultado possível ou impossível. Se algo é possível ou impossível "depende do
conteúdo" (ibidem).
Essaconcepção de possibilidade, por conseguinte, só se aplica em relação a um siste-
ma de realidade;ela não é um simplesconceito como o anterior, em relaçãoao qual se
presumia estar baseadounicamente na natureza não contraditória do conteúdo consi-
derado. Agora um conteúdo é possível porque pode ser fundado no que é real. Retorna

zi Isso também noslembra da discussãosobre o Fundamento, na qual Hegel ressaltaque sepode apresentar
uma razão para qualquer coisa apenas considerando-a sob algum aspecto abstrato.
ES S ENCIA 3l 5

a relaçãoda fundação, ainda que não nos mesmos termos. Portanto, o possível
sentido não é simp]esmente oposto ao real, mas estárelacionado com ele. Ademais, l
erros dizer que o real e o possível são uma coisa só, pois o que torna o conteúdo .4
:ível é um estado de coisas B, que pode permitir que ele aconteça, que pode embasá-
aueestálatente na potencialidade para H Por conseguinte, com a possibilidade real, }

l.ael move-se rumo à noção aristotélica de potencialidade. .B é a potencialidade de .4, -H''':3


Mandorealizado em .4 é efetivo. Consequentemente, a "possibilidade de .4" também é
a realidade, a saber, B.
Contingência é a primeira categoria a surgir da relação entre a realidade e a possibilida- )

O contingente só é algo real quando considerado diante de um vasto leque de possibi- J


des,das quais outras poderiam ter sido realizadas. Se ele era o único resultado possível, t

.tão ele não é contingente. À luz da mera possibilidade, tudo é contingente. Porém, quan-
começamosa considerar a possibilidade real, nem tudo é contingente. Pelo contrário, i.

1,,unsresultados são excluídos e outros sáo inevitáveis, dadas as condições circunjacentes. ./'

outras palavras, alguns resultados são necessários.


Consequentemente, a noção de possibilidade real nos leva à noção de necessidade
Necessidadereal ainda náo é necessidadeabsoluta, que não repousamais sobre
qualquercontingência; com efeito, ela é circunscrita. Um dado resultado só é necessário,
to é, inevitável, dadas certas condições. Porém, dadas essascondições, ele é contin-
:nte.Não obstante,vemos que, junto com a ideia de realidadescondicionando umas
outras,que 6oi introduzida com a possibilidade real, necessariamenteintroduzimos
bém a necessidadereal. Consequentemente ela também surge de uma combinação
possibilidadee efetividade. E aquilo que se atém a certos estadosde coisasefetivos,
isto contrao pano de fundo de estadosde coisaspossíveis,como o único resultado
-ssível (EZ, S 147).
Consequentemente, necessidadereal e contingência são conceitos que só podem ser
aplicados com base em alguma aplicação de "possível" e "efetivo". Se não quisermos lidar
comum sentido vazio de contingência, ligado à mera possibilidade, temos de considerar
o contingentecomo o efetivo que poderia ter sido de outra maneira, isto é, onde uma
efetividadecondicionante poderia ter possibilitado outro resultado.E o necessárioreal
é o que não poderia ter sido de outra maneira. Em ambos os casos,estamostratando
darealidadecomo sistematicamenterelacionada,como condicionante e condicionada.
Porconseguinte, a necessidadereal ainda está inseparavelmente ligada à contingência.
Aquilo que é realmente necessário,de outro ponto de vista, também é contingente. B
resulta de .4, mas -4 poderia não ter acontecido. E, reciprocamente, a contingência, de
outro ponto de vista, também é necessidadereal. Dizemos que .4 é contingente quando
d'também poderia ter resultado de B. Porém, o que fez acontecer .4 e não .4'foi o fatos
diferencial F. e ,,4 é uma necessidade real dados B e F. Por conseguinte, Hegel designa
essanecessidade real ou natural de necessidade "relativa" (WZ, vol. 11, p. 179) ou "exte-
rior" (EZ, S 148). Com efeito, ela depende de alguma outra coisa.
3l6 PARTEIII J LÓGICA

Porém, também sabemos que as coisas estão ligadas por uma espécie de necessidade
que é absoluta ou incondicionada. "0 absolutamente necessárioé apenas porque é; ele
não tem por trás dele nem condição nem fundamento" (WZ, vol. 11,p. 182). Ele é caz,,.
sz//. Com efeito, o sistema de mudanças necessárias como um todo não repousa Sobre
nada fora dele próprio, não há fundamento que estaria cora da teia da necessidade.
(dual é, então, a relação entre essesdois tipos de necessidade? É absurdo negar à con.
tingência qualquer lugar e considera-la como mera "representaçãosubjetiva" (.EZ,S 145.
adendo). Nesse parágrafo, Hegel admoesta os filósofos que poderiam tentar descarta-la
totalmente e deduzir todas as coisas.As ciências que tentam fazer isso não passamde
brincadeira vazia ou pedantismo vetado" (eímr Zrerr SP/eZerr/ z/ Ze/ ilrzÓrr P?2a/zfümwS)
(ibidem). Mas issobasta a respeito de um procedimento que com frequência é atribuído
a Hegel por seuscríticosl
Pelo contrário, como vimos anteriormente, a contingência tem o seu lugar por ne-
É"
cessidade. A sua relação com a necessidade é o que anteriormente, na discussão sobre
o Fundamento, descrevemos como "intersticial". Porém, poderíamos descrevê-la tam-
bém como "superficial".:: A estrutura caregorial básica do mundo é a da necessidade.
Porém, pelo próprio fato de ter de corporificar-se (ascategoriasda corporificaçáoe da
exterioridadetambém precisamter sua aplicação), ela precisaexistir numa forma que é
'exterior", isto é, nem todos os seusaspectosostentam perfeitamente a conexão interior
da necessidade.A superílcie ou os aspectos detalhados das coisas são, portanto, contin-
gentes, e de fato lêm Ze ié-Zo.
Ora, as coisas ostentam conexões por mera necessidade real quando as isolamos
com base nessa superfície ou nos aspectos detalhados. Meu carro colidiu porque
dirigi na rodovia cobertade gelo. Isso de fato é um evento contingente. Poderiater
sido outro, se não fossepor certos favoresdiferenciais (por exemplo, minha decisão
de sair nessedia). Porém,essacontingência é evidente porque eu isolo a entidade
concernida como "um carro" ou até mais particularmente como "meu carro". S. eu o
considero como uma coisa finita, então reconheço que ele [em Ze sucumbir, embora
o dia e a maneira de seu passamento seja contingente. Ou, na eornlulação de Hegel,
vemos condições e realidade condicionada como se existissem separadas,indepen-
dentes (íf/óirã/zzlCeg),
umas em oposição às outras, por causa do "conteúdo limitado
da matéria que estamosconsiderando (.ÊZ, S 148). Porém, num nível mais profundo,
condições e condicionado estão interiormente ligados, sendo tanto idênticos como
diferentes. A forma que fica evidente nessenível mais profundo é a da conexão neces-
sária: o carro como coisa finita tem de quebrar algum dia. Porém, no nível superficial
ou detalhado, o conteúdo não ostenta a forma. Consequentemente, há a contingên-
cia: esse acidente ocorre hoje.

:: O próprio Hegel usaessaimagem quando diz que a contingência tem livre curso "na superfície da natu-
reza" (ibidem).
ESSÊNCIA 3i7

Portanto, a necessidade
real de fato a/z i/cà também é contingência. Isso fica
evidente, em primeiro lugar, do seguinte modo: o realmente necessárioé de fato
necessárioem sua forma, mas limitado em seu conteúdo, tendo sua contingência
atravésdesseconteúdo. (WZ, vo]. ]], P. ] 80)
.!

Umavez que o conteúdo é exterior à forma, ele é "exterior" a si mesmo, isto é, con- /

.e (EZ, S 148).
ig' '' ''eção, Hegel não está realmente derivando a necessidadeabsoluta da ne-
:cidade real. Antes, a necessidade incondicionada já havia sido estabelecida, pois )

finos que estamostratando de um sistema autossubsistente de relaçõesnecessárias. .i

assim
.ue ele mostra é a relaçãoentre as duas, a maneira de sua coexistência,necessida-
por t
=r.E aqui há um ponto crucial na transição da necessidadereal para a
absoluta.A necessidadereal estavaligada à contingência, mas apenasde modo (

-pdiâto. Nesse estágio, "a necessidade ainda não se determinou a partir de si própria .f

o contingência"
(WZ,vol. 11,P. 179).
E a isso que chega a necessidadeabsoluta. Ela mostra como a contingência deve
star,ela como que a produz a partir de si mesma. Mas então as duas não apenas
mstem. A necessidadedetém o posto mais elevado. A necessidadereal revela-nos as
nsequênciasnecessáriasde condições contingentes. A necessidade é uma ilha num
iar de contingência. Porém, na categoria da necessidade absoluta a posição é invertida.
contingência é, antes, o ornamento gerado por uma estrutura necessária das coisas.
Por conseguinte, a necessidade revela-se como autocondicionada, como dependente
tnicamentede si mesma. Porém, isso quer dizer que a necessidadeé, em última ins-
cia, o mesmo que liberdade. Ordinariamente, nos queixamos de que a necessidade
o oposto da ação livre e proposital. A necessidade é cega, ao passo que a ação livre e
proposital discerne sua finalidade (ÉZ, S 147, aderido) :: Porém, a necessidade só é cega
quando está associada à contingência de modo tal que não podemos ver a conexão entre
ostermosque ela une. Vimos, no entanto, que essacontingência é a mera superfície da
necessidade.
Propriamente entendida, essanecessidadesubjacente,vista como de Fato
repousandosobre si mesma, é plenamente transparente. Além do mais, não queremos
dizerapenasque ela é transparentepara nós ou para alguma consciênciaobservadora,
mastransparente como a emanação da razão que produz a totalidade do real. Conse-
quentemente, ela será transparente para uma razão subjacente. Porém, essa é a brmula
da consciênciade si, da açãoproposital: aquilo que existe é transparentepara aquilo
que o põe. Consequentemente, a verdade da necessidade, aquilo que ela é basicamente,
constitui o que Hegel chama de Conceito (.EZ,S 147, adendo). E a estrutura do mundo
e da história deve servista como o resultado do propósito.

23Cf. também "die absolute Notwendigkeit ist daher blind" [a necessidadeabsoluta, po' conseguinte, é
cega]
(WZ,vol.11,p. 183)
3i8 PARTE 111 LÓGICA

E isso que dá sentido à noção da Providência divina. Certos filósofos e pessoasco.


muns creem que a Providência divina não tem espaçopara a necessidade.Porém, isso
significa rebaixar a Providência a "um arbítrio cego e carente de razão" (e/mer ó/.índeH.

z'erma//@Zoie/z
W7#ézZr)
(EZ, S 147, adendo). Para Hegel, Deus é Ge/rf. Ele é o sujeito que
é ao mesmo tempo a estrutura racional do todo. Consequentemente, a necessidadeé a
sua marca registrada, não uma limitação que pesa sobre ele.
Hegel aproveita o ensejo para fazer uma comparação com a ideia de destino dos anti-
gos.Tratava-seaí realmente de necessidadeexterior, que parecia contradizer a liberdade.
Porém, a Providência não pode sercontrastada com o destino por não mais compartilhar
da necessidade.A diferença é, antes, que o destino não leva em conta os sereshumanos
H nem mesmo os Deuses-- como sujeitos, ao passo que, na religião cristã, há a ideia de
que o absoluto é sujeito e que, ao passarpara algo diferente na morte, somos unidos,
como 6oi durante a vida, com a vida do sujeito absoluto. Consequentemente, toda a ad-
d'
versidade tem o consolo de que sempre somos, em certo sentido, unos com nós mesmos,
uma vez que vemos a nós mesmos como emanações e veículos do sujeito absoluto. Esse
é o "consolo" da religião cristã e é como consolo que a Providência deve ser distinguida
do destino, não pela ausência da necessidade. Nosso destino, por conseguinte, tem parte
na necessidade, porém não de uma necessidade Gorânea ou inescrutável, mas, antes,
de uma necessidadeque expressaa subjetividade racional que compartilhamos, e, em
consequência, nunca estamos no exílio, mas sempre Z'e/í/có.

Mais precisamente,o que há de consolador na religião cristã resideem que,


sendo [)eus mesmo conhecido ne]a como a subjetividade absoluta, mas a
subjetividade contém em si o momento da particularidade, decorre disso que a
lzaii/zparticularidade também não é reconhecida simplesmente como algo a ser
negado abstratamente, mas ao mesmo tempo como algo a ser conservado. (EZ, S
147, adendo com modificações)

SUBSTÂNC]A

Da necessidade
absolutaHegel passapara a última e culminante tríade do livro sobre
a Essência, que ele chama de relação absoluta. Já vimos na relação entre necessidade
absolutae liberdade que estamosprestesa entrar nas categoriasdo Conceito. Porém,
primeiro Hegel quer desenvolverainda mais a relaçãoentre a totalidade e os seusele-
l mentos e, fazendo isso, deduzir e incorporar no seu sistemaas analogiaskantianas da
experiência, com os conceitos de substância, causalidade e interação.
Abrimos o livro da Essência com a concepção de um sistema autossubsistente de
mudanças necessáriasque estabelecemos basicamente com a Infinitude. No decorrer
desselivro, Hegel foi explicando as implicações dessanoção. Ele mostrou, em primei-
ro lugar, que um sistema desse tipo constitui uma totalidade de conexões necessárias
em que cada elemento tem de ser explicado a partir de toda a cadeia. Com efeito,
ESSÊNCIA 3i9

explicação adequada deve evidenciar a sua necessidade, mas a sua necessidade


.ana da totalidade do sistema de conexões necessárias.Por conseguinte, ficamos
do, na dialética do Fundamento, que a derivação necessária das coisas a pa'tir da
suficientesó poderia ser satisfatória se fossem relacionadascom o todo do qual
uNa fase.A tarefa a partir daí até o final da Essênciaé a de relacionar essetodo
a multiplicidade dos seus elementos.
vésda diabéticade coisase propriedades,da lei, de forma e conteúdo, de todo
ep
e e, por fim, de interior e exterior, descobrimos que o todo da conexão necessária
nã( nodeser visto como alguma força separadae/ou por trás do múltiplo exterior. Por-
qu
a contradição,que é o motor do movimento necessário,aíeta toda a realidade.Por
co] ;eguinte,a conexidade interior das coisas, ou a totalidade, não pode estar por trás da
rea e exterior, mas tem de ser imanente a ela. É isso que se expressa na categoria da

@ .É/fc#Ée!/.
A necessidade emana das próprias coisas e, portanto, está manifesta nelas.
Porém,ao mesmotempo, justamente porque a unidade interior não estáseparada
do elementosexteriores, ela pode ser concebida como oniabrangente, onipotente. A
talponto que, se fossem separados,o poder de unir exercido por ela não seria total,
PO ue algum aspecto dos elementos exteriores Ihe escaparia. Se ela moldasse a reali-
da zeexterior a partir de fora, a existência original dessarealidade seria pressuposta,
nã derivadada necessidade.
Porém,seo poder de unir for plenamenteimanenteàs
co ;as,elas estarão inteiramente sob seu controle; seu desdobramento é simplesmente
ar lifestação desse poder.
Além disso, a necessidadeque é oniabrangente também é absoluta ou incondicio-
no sentido de não se apoiar em nenhuma premissa meramente dada. E, de fato,
:aterabsolutoda necessidade
resultado fato de estarmostratando de um sistema
)is#óíüff/zfede mudanças, impulsionado pela contradição e, em consequência,acon-
ldo por necessidade.
A realidadeé, portanto, implementada por uma necessidadeoniabrangente e in-
.dicional. Essanecessidadepode ser vista como uma substância subjacente aos "aci-
ltes"da realidadeexterior, e não só isso: como uma substânciaque implementa
acidentes.Ela é um poder substancial (.A/arar). Chegamos, portanto, à visão de
-incisa,que de Fatoé a basesobre a qual Hegel constrói aqui para escrevera con-
.o da Essência.A substância, que é a totalidade dos seus acidentese que é essa
cidadeenquanto implementada numa certa ordem ou estrutura, é o poder que
na base dessaimplementação. A totalidade, que está presente em nossa dialética
leque saímosdo Fundamento, passaa ter agora a qualidade da arividade, passaa
vistacomo aquilo que ativamente póe a realidade exterior, uma característicaque
implícita nela o tempo todo.
Essasubstância já foi mencionada no Absoluto que abre essaúltima subdivisão da Es-
tana WZ. Porém, em ambas aslógicas, a substância aparececlaramente no primeiro
.o da última tríade.
32,0 PARTElll l LÓGICA

Tendo chegado à E6etividade, Hegel agora precisa deixar mais claro a que correspon-
de essaunidade entre a coesão interior da totalidade e sua multiplicidade exterior. Ele 6U
isso, em primeiro lugar, expondo as relações de contingência e necessidade e mostrando
que a própria contingência emana da estrutura necessáriadas coisas,náo estandocora
dela. Porém, essarelação foi apresentada na abstração da modalidade, qual seja, na Êae
discutida anteriormente. Ainda Efta justifica-la na forma concreta que deveria ser evj-
dente nos nossos termos mais concretos para a relacionalidade, a saber, a causalidade.
Consequentemente, a última fase é concernente em primeira linha à causalidade.
Porém, a causalidade é considerada no contexto de uma visão da unidade de tudo na
substância.Hegel interpõe a interação e, em consequência,pode compor essaúltima
tríade como uma espécie de reminiscência/comentário sobre as analogias kantianas.
Porém, essepasso mostrou-se, antes, equivocado e infeliz. A interação acabou se revelan-
do um termo um tanto inexato, como Hegel é forçado a dizer na ÉZ (S 156, adendo).
O ponto de partida na substâncianão é de todo artificial, no entanto. Dispomos
da visão, derivada de Espinosa, de que todas as coisas são postas pelo poder substan-
cial. Necessidadeabsoluta é relaçãoabsoluta (WZ, vol. 11,p. 185). Esta é o ser que é
porque é, que é mediação absoluta de si consigo mesmo. Os "acidentes" são realidades
independentes, que, não obstante, estão interiormente relacionadas; eles são a poten-
cialidade da efetividade uns dos outros e por isso estão determinados para se converte-
rem uns nos outros. O interior passaa ser não uma entidade separada,masum poder
acima deles, que é também o poder deles mesmos. É o poder de criar e destruir e de,
destruindo, criar tudo novo. A substânciaé, portanto, o poder que implemente e, em
consequência, acaba com as entidades subsistentes exteriores reais, que são, por isso
mesmo, vistas como seus "acidentes:
Porém, a substânciaé a necessidade,o poder plenamente manifesto. Consequen-
temente, este está inteiramente mobilizado na criação e na destruição dos acidentes; e
esses "acidentes" são entidades subsistentes. Assim, esse mesmo poder também tem de
ser visto como o fluxo da compulsão que se dá entre as entidades; mas esteconstitui a
rala pnA an rrA pa] ] c'a n nc lta
l\.la.\,a.v \.l ILX\, \,a LIDA \, \.L\,Alvo

CAUSALIDADE

(quando examinámos essa relação, aparece novamente a relação básica que estamos
tentando entender, põe-sede novo o problema a ser resolvido; como juntar necessidade
interior com a diferença subsistente real?Tomando essarelação básica como uma relação
entre substância e acidentes, acentuámos a unidade processual. Porém, imediatamente
somos lembrados de que os acidentes são autossubsistentes; e, em consequência, de que
elestêm de servistos em relaçãocausaluns caiu os outros. E, por conseguinte,surgeo
problema de encontrar o caminho de volta: de mostrar atravésda própria relação causal,
isto é, da relação entre os próprios acidentes, a sua inerência na totalidade que gera a si
mesma,que é definida como cd#izziz/i, ser que é porque é.
ESSÊNCIA 3zi

Isso náo é fácil, e não está claro como Hegel pensa ter deito isso. A natureza do
lacionamentotalvez esteja um pouco mais clara que a transição. De fato, a causali-
e é vista como uma dessasmaniGestaçóesimperfeitas da necessidadesubjacente das
pisas,
a mani6estaçáoque é afetadapela exterioridade. Essacausalidadeexterior, por
Pnseguinte,
é vista como remetendo para além de si mesma para a sua inclusão numa
.cionalidade mais profunda, mais essencial, da totalidade.
A causalidadeé exterior no sentido de que ela se situa entre termos que só estão
intingentemente relacionados. Não há relação necessáriaentre causa e efeito, como
.rendemoscom Hume. Porém, enquanto para a consciência empiricista esseé o fim da
matéria,
para Hegel a exterioridade da causalidadeé apenaso reHexode uma conexão
leisprofunda da necessidade que é fiindamental para as coisas.Esseser fiindamental
as coisas consiste no fato de que a estrutura mesma das coisas segue uma ordem
necessária
de implementação. As coisas estão conectadas por necessidade, mas essa ne-
idadetambém exige uma exterioridade em que essaconexãoé mais solta, em que
não é totalmente transparente nem está inteiramente refletida nas coisas. E isso que
os na causalidade.
Nas duas lógicas, Hegel começa expondo dois aspectos da causalidade que pare-
:m refletir a sua natureza como vestígio de alguma unidade mais profunda. Por um
udo,causae efeito são concebidos como associados na necessidade e, certamente. são
:rmoscorrelatos: não existe causasem efeito e vice-versa. Podemos até identificar um
conteúdoque os associa,que é o ponto em que se encontram. Por conseguinte,
tandodizemos que a chuva umedecea grama, a umidade aparecenos dois termos.
o refietea unidade interior dos dois. Porém, isso obviamente não é tudo o que há
sedizer. O termo idêntico, que nestecaso é umidade, está embutido, em ambos os
los, em diferentes termos, cada qual com outras propriedades, náo relacionadas
lteriormentecom a umidade ou uns com os outros. O fato de a chuva umedecer a
:amanos diz que a umidade na forma de água que cai do céu é a responsávelpor esse
do de umidade do gramado. É esteo seu aspectoinformativo, e não a referência
tutológicaà umidade. A explicação pela causa,por conseguinte, deve ir além dessa
tologia, e isso constitui a sua exterioridade.
Consequentemente,temos na relação entre causa e efeito uma relação que reflete
a identidadeinterior, ainda que projetada para dentro da exterioridade mútua. Essa
atura da causalidade está, ademais, refletida no modo como Hegel trata do regresso
nito potencial das causase do progresso dos efeitos. Por jamais ser Completa, a cau-
eficiente exige sempre novos termos, tanto para explicar a transição entre causa e
ito como para explicar a ocorrência da causa mesma. Consequentemente, todo efeito
também,sob outro aspecto,uma causa,e cada causa, um efeito. Hegel comenta que
mostra a identidade de causa e efeito. Porém, por ser aâetada aqui pela exterioridade,
identidade ocorre na forma de uma série infinita. Cada causa é efeito, mas só de algo
ente, não de si mesma; e, de maneira similar, cada efeito é causa.
PARTElll l LÓGICA

Tendo chegado ao progresso infinito, percebemos que, no que concerne Hegel, é hora
de passarpara um novo plano, e é isso que Hegel Euá através do termo um tanto inadequa-
do da interação. O argumento é que cada efeito também ajuda a determinar a si mesmoe
ajuda a determinar igualmente a causa;dessemodo, há não só ação, mas também reação.
Porém, a ação e reação de Newton não é realmente o que Hegel tem em mente como sín-
tesenesteponto. Ele deixa issoclaro na ÉZ (adendo ao S 156), onde aponta par' o batode
que a reflexão comum recorreu com frequência a essacategoria da interação quando quis
explicar uma espéciede causaçãoa partir da totalidade que é muito mais profunda.
Os exemplos que ele usa revelam, antes, o que é essacausaçãoa partir da totalidade.
P Trata-sedas relaçõesentre os órgãos e suasfunções num organismo e da relaçãoentre
#

leis e costumes dos povos, de um lado, e sua constituição, de outro. As observaçõesfeitas


ET'
nesseadendo devem ser claramente postas em relação com a passagemde WZ (vol. ll,
r' p. 193-94), em que Hegel diz que relaçõescausaisnão podem ser aplicadasglobalmente
a relaçõesno reino orgânico ou no reino espiritual. Ao falar, no adendo mencionado,
das leis dos espartanosem relaçãoà sua constituição, Hegel aponta para o Eito de que
os termos não podem ser tratados apenascomo termos independentes da relaçãocausal,
mas cada um deles tem de ser visto como momento de uma terceira entidade, superior
a ele, do seu "Conceito" (.Bepê#).
Hegel está se referindo ao que acabei de chamar de causaçãoa partir da totalidade.
Encontramos isso em campos nos quais aplicamos explicações teleológicas (no sentido
de teleologia interna) ou nos quais evocamos relaçõesde signiâcado. Por conseguinte,
podemos explicar determinada nota numa peça musical ou certa pincelada numa pintu-
ra por seu papel na totalidade da estrutura da música ou do quadro visual que ajudam a
constituir. Ou -- de modo mais controverso -- podemos tentar explicar certa prática ou
instituição de um povo (a constituição espartana) pelo lugar que ocupa na totalidade do
seu modo de vida, do qual elas são expressão parcial.
É óbvio aqui que estamostratando da totalidade num sentido forte, isto é, de uma
totalidade cuja especificaçãonão poderia ser Gestaem termos de descriçõesde elementos
particularizados,mas, pelo contrário, em que lançamosluz sobrea naturezadessesele-
mentos revelando a sua relação com o todo.
Foi essetipo de explicaçãoque propiciou a razãosuficientecom que resolvemoso di-
lema do Fundamento. E podemos ver que ela não pode ser entendida como uma relação
causal unilateral entre características particulares. Pelo contrário, ela explica determinada
característica mediante referência à totalidade; uma totalidade, ademais, da qual essaca-
racterística é parte essencial, de modo que, nesse modo de explicação, o e=W#ca/zdumnão
é distinto do opaca/zf. Porém, mesmo uma explicação em termos de causaçãorecíproca,
de ação e reaçãoentre elementos num sistema, não é adequada,visto que ela omite o
Eator crucial, o recurso à totalidade.
Hegel afirma que esseé o tipo de explicaçãoapropriado paraa vida orgânicae a vida
espiritual. Porém, também é o tipo de causação implícito em sua visão do universo coma
ESSÊNCIA 3z3

ncia, derivada de Espinosa.A substânciaé poder que implementa as entidades


oculares no mundo. E uma totalidade que pode ser concebida como c.zm.zizl/ porque
}jicita de acordo com uma necessidadeinterior. A existência de elementos particu-
é explicadaa partir da necessidadeglobal. Podemos ver isso mais claramente rebo-
lo o que já conhecemosda visão de Hegel. A estrutura do mundo, o Eito de conter
:ia, tempo e espaço,vida em todos os níveis, espírito finito, tudo isto pode ser visto
.o existindo por necessidade como resultado da exigência de que o Geifr exista. Mu,
a existência de qualquer dessascaracterísticas tem de ser explicada pela totalidade
.rmula da necessidade, da qual ela é parte essencial.
Partedo que é demonstrado como necessário,no entanto, é precisamente a realidade
constituipa ffJ exfrn.pzzríes,
que é exterior a si mesma, na qual as conexõesde toda
cidadecom toda a realidade não são mais totalmente transparentes ou não são mais
idasde modo transparente.Porém, para que haja exterioridade real, não bastaque
conexõessejam necessáriasde um modo não visível, isto é, não basta que elas de
sejamplenamente necessárias,mas não o sejam de modo transparente. Elas também
de ser conexões reais que não chegam a ser plenamente necessáriasno plano con-
trata-se de conexõesreais e, em consequência, necessáriasem certo sentido, mas
necessidade
é "real", não absoluta. Ela é dependentee, em consequência,ligada à
itingência.Em outras palavras,deve haver contingência, como vimos anteriormente.
conexões contingentes se estabelecerão entre entidades (por exemplo, estudas
)rregadiase para-choques amassados)que são realmente independentes umas das
no sentido de que incorrer nessasrelaçõesnão faz parte do seu conceito.
Sãorelaçõescausais. Elas correspondem a certo modo de ver as coisas, mas também
[o nível da realidade. Em alguns aspectos,as coisasdevem ser simplesmente enten-
como conectadas por relações causais. Porém, uma vez que nos movemos para
nível, temos de ir além dessarelação entre termos independentes e entendê-los a
Ir da totalidade. Temos de ir além da causalidade. Para fazer isso, o entendimento
lum se depara com as maiores dificuldades, e quando ele realmente está às voltas com
que é obviamente um sistema, ele recorre à interação, que é simplesmente a relação
íproca de termos particulares.
Consequentemente,chegamosà mais concreta das representaçõesda totalidade,
le, não obstante, é constituída de realidades independentes. Em certo sentido, à
da que avançamos através da Essência, as realidades exteriores adquirem mais in-
:ndência, mais realidade (mais Se/óíí2 zltgêeif [autonomia]). Com o Fundamento
ainda eram apenas propriedades opostas que desabaram sobre seu fundamento.
que procedeu do Fundamento Geramou poderiam ser entidades, mas, na Coisa,
da estamostratando de propriedades.A partir da Aparição ficou bem claro que
ostratando de entidades separadase, em consequência, sempre se teve em vista
pectode suaexterioridade. E, à medida que nos movemos para dentro da \r7ré&-
?e/f,realçamosessaindependência tanto mais porque essarealidade exterior não é
3z4 PARTElli l LÓGICA

nenhuma sombra de alguma realidade mais verdadeira por trás dela, mas realmente
possui a solidez que parece ter. Consequentemente, alcançámos aqui a mais plena so-
lidez possíveldo ser exterior. E estaé necessáriapara o sistema, desde que vimos que
se trata de um sistemaem que o interior, o Ge/ir, só pode existir na realidadeexterior;
logo, a realidade do interior depende da solidez do exterior.
Porém, pela mesmarazão,a necessidadeinterior e a realidade exterior náo podem
ser reconciliadas àsexpensasda última. A realidade da exterioridade tem de ser mantida.
Assim sendo, por essarazão,a totalidade do Fundamento, no qual se podia encontrar
a razãosuficiente para todas as coisas, teve de acompanhar a diferença real entre funda-
[
mento particular e fiindado particular; o sistemada necessidade
absolutanão só tevede
H

acompanhar a contingência, mas a produziu necessariamentea partir de si mesmo. Esse



relacionamento entre oposição e compulsão, essapressuposiçãoque é revertido em su-
[

f' bordinação, é expressa ou Eu-se um esforço para expressa-la na diabética da modalidade.


Porém, ele chegaà sua expressãomais plena, mais concreta, na dialética da causa-
lidade. Com efeito, aqui podemosver uma exterioridade real das causase dos efeitos
particulares,uma multiplicidade inumerável dessasrelações,masque são parte de um
sistemaque só pode ser explicado em sua estrutura a partir da totalidade. Além do mais,
essatotalidade, sendo governadapela necessidadee exigindo que haja exterioridade,
necessariamente póe a causalidade como um tipo exterior de necessidade, um tipo que
une necessidade com contingência.
Consequentemente, temos a relação ascendente e a relação descendente: a causalida-
de exterior não é suficiente para explicar o todo, pois simplesmente ruma para o regresso
infinito e remete-nos para além de si mesma para a explicação a partir da totalidade.
Essa totalidade, uma vez entendida, revela-nos a necessidade dessa causalidade exterior.
Temos, portanto, a expressãoconcreta do tipo de relaçãode totalidade que estivemos
buscando, um tipo de relação que perEm a discussão mais abstrata sobre a modalidade,
deita anteriormente.
A transição a partir da causalidade mostra o movimento ascendente.Como mencio-
nei anteriormente, não estáclaro se isso é pensado como um argumento independente
ou apenaspretende aplicar à causalidadeas conclusõesdo argumento anterior. Certa-
mente, a transição, tanto na WZ (vol. 11, p. 198-202) como na EZ (S 154), assemelha-se
muito mais a uma leitura da relação causal nos termos da sua visão ontológica.
Hegel nem mesmoapela para o regressoinfinito como argumento. Ele o apresenta,
antes, como resultado da exterioridade do finito (EZ, S 153, adendo). Causa e efeito
realmente são uma coisa só "em seu conceito", mas, na realidade finita, uma determi-
nada causasó é um efeito em outra relação. Por conseguinte, a estradaescorregadia,
a causado meu para-choque batido, é um efeito, só que de outra coisa, por exemplo,
da chuva congelada.
Para a transição, WZ recorre ao que aprendemos nas categoriasanteriores da Essên-
cia. A causa parece agir sobre o efeito como se agissesobre alguma outra substância, uma
ESSÊNCIA 3z5

substância passiva. Porém, a substância passiva que sofre uma corça exterior de fato é de
tiPOque sua natureza tem de ser posta por alguma outra coisa. 'IA substância passiva
éPofiapela corçacomo aquilo que ela a z,ezzZade
/" (p. 200 da ed. inglesa). Assim sen-
, os efeitos acabam sendo algo que ela opera por si mesma. Mas, então, há uma reação
lue atinge a primeira substância, que não pode mais ser vista como simples substância l
r'B
exclusivamente como causa. Chegamos, portanto, à ação e reação; e, a partir daí,
legelmove-se pa'a a totalidade. Desse modo, o progresso sem fim da causação finita é
curvado" sobre si mesmo numa "interação infinita" (p. 202 da ed. inglesa).:4
i
\

..i
A discussão implícita nessa passagem (lyZ, vol. 11, P. 198-205) fica bem mais fácil se a le.mos tendo em

lente um dos exemplos paradigmáticos usados por Hegel para ilustrar a causação a partir da totalidade,
mo o dasrelações entre os costumes e a constituição de um povo; e também se a lermos em conexão com
:capitulação
feitano início do livro IJI (ll;Z, vol. 11,p. 214-16). é

substânciareparte'se em duas, em articulação. Assim, o espírito de um povo tem de ser corporificado num /

o articulado por constituição, costumes, modo de vida, etc. Consequentemente, os espartanos têm leis
lumese uma constituição. Tomamos o exemplo da causalidadeentre costumese constituição. Temos
lui dois termos, e é preciso que haja essadualidade. É preciso que haja urna lei coerciva exterior, para
restara necessidadede um certo Ge2sfcontra a fraqueza e o capricho dos indivíduos. Porém, ao mesma
po, semum certo espírito expressonos costumes,essalei seria deturpada, tornando-se uma cascaexte-
it. Porconseguinte,há dualidade, mas também uma profunda unidade entre os dois
passarmosagora a considerar essesdois numa re]ação causal, perceberemos que a constituição afeta os
ese vice-versa. Cada qual é exterior ao outro. Consequentemente, temos o que Hegel chama de
adição
ou pré-suposiçãoda causação(p. 198-99 da ed. inglesa),que a causapressupõealgumaoutra
eânciafora dela mesma que ela pode influenciar. Ela só se torna realmente uma causa ao influenciar
a substância.Há uma substânciaatiça, como, por exemplo, a constituição, e uma substânciapassiva,
)r exemplo, os costumes. Assim sendo, os costumes devem ser pressupostos, eles Játêm de estar aí, para
a constituição opere neles.

m, num segundo momento, percebemos que os costumes são constituídos de tal modo que só podem
costumesde um povo que estáorganizado por uma constituição desseHeirio;não poderia haver tais com-
esentre povos que, por exemplo, estão organizados sob um despotismo oriental ou num sistema tribal
solto.Assim, o que parece estar sendo pressuposto na verdade também é posto por sua relação com a
intuição (e, obviamente, como todos os demais aspectos da vida da sociedade na causalidade, apenas
af cerroselementos). Por conseguinte,
substânciapassiva só é paio.zpela corça como aquilo que ela nzz z,frzZzdeé, ou seja, justamente por ser
itivo simples ou a substância imediata, ela é apenasalgo posto; o pré que ela é como condição (.üs
IZ í/e & Bed2zzgzíng
if/) é a aparência de imediatidade da qual a causalidade aviva a despe." rWZ,
n, p. 200)

tamente antes disso, Hegel diz que "aquilo que tem poder sobre o outro só o tem porque é o poder
último, que nele manifesta a si mesmo e ao outro"

conseguinte, em vez dc encarar a substância passiva, isto é, os costumes, como simplesmente aí, espe-
paraseremtrabalhados, o que ocorreu no primeiro momento, passamosa vê-los como emanações
rias dessainfluência, realmente o espírito interior que flui tanto atravésda constituição como dos
mesnassuasrelaçõesmútuas. Passamosa vê-los como a manifestaçãode algo mais profundo, isto é,
G&is/.Consequentemente, os vemos pela primeira vez na sua verdade, a saber, asemanações dessealgo
profundo, porque essaé a sua natureza, serem postos por essarealidade mais profunda, que atum através
ESSENCIA 3z7

MOno exemplo acima da teoria dos gases.A necessidadede deslocar-separa


a partir da totalidade é algo que tem de ser estabelecido independentemente
de de deslocar-separa a perspectiva da interação sistemática. Hegel admite
:nte no adendo ao S 156 da /IZ.
1,pareceque, uma vez mais, temos um caso em que Hegel [em certezade
diante de uma transição ascendente porque ele já tinha certeza disso; onde
o que não passade pistas e indícios de uma realidade superior, da qual a in6e-
emanação,e toma essaspistas e essesindícios como prova. A necessidade
a interação ou para a perspectiva sistêmica pode de fato ser vista como
Conceito; mas ela não o estabelece. Essa convicção se apoia, antes, em outra
lição da interação para a causação a partir da totalidade já está aí e está fu-
mo
o argumento anterior da Z,OK/ca,ou seja, na própria concepção da Essência
idadecujaspartes decorrem uma da outra por necessidade.
quer que seja, com essa expressão sumamente concreta da visão da necessidade
contingência, chegamos à plena expressão da lógica objetiva. A Essência agora
ao Ser, porque é plenamente manifestada no Ser. Aquilo que não manifesta
lte a necessidade,a saber, as relações contingentes, ainda é manifestação dela,
essa
contingênciamesmaé necessária.
Consequentemente,temos um conjunto
entre coisas, que são relações com o ie6 Temos o que equivale ao ser imediato,
todo o sistema, que é mediação com o sef Temos realidades subsistentes que,
te, estãoenvolvidasnuma autorrelação infinita, numa identidade (EZ, S 157).
Inda, portanto, sendo a necessidadeinterior que póe a realidadeexterior, é
o Conceito. O Conceito é uma necessidadeconceitual interior que produz
mboca numa realidade exterior que a expressa. O desenvolvimento final da
-- ou da verdade, como Hegel a chama --, que, por seu turno, é a verdade do
;ência,é o Conceito.

A z,fz2dzdr
da Swósz2/orla
é o Cobre/ro
-- a independência
queé o repelir-se
de
si mesmo na direção de unidades distintas e independentes, e que, como essa
repulsão,é idêntica a si mesma; uin movimento recíproco que permanece junto de
si mesmo (óe/ siró ie/&rf ÓZr/órm4 e incerage consigo mesmo. (EZ, S 158):'

1,0 Conceito como uma fórmula conceitual interior que produz um mundo
com a sua própria necessidade interior levou-nos para além do domínio da
le cegae introduziu-nos no reino da subjetividade, da liberdade. Temos uma
[e que é oniabrangentee absoluta, que repousaunicamente sobre si mesma,
lamentetransparente; ela produz uma ordem a partir de si mesma, a partir de
idade que é sua própria natureza; o que pode ser isso senão liberda(ie? Co-
mente,
"a verdade da necessidade é [...] a ]iberdade" (ibidem).

conforme o certo em inglês. (N. T.)


3z8 PARTElll l LÓGICA

No adendo a esse parágrafo, Hegel retorna à relação de necessidade e liberdade.


A consciência comum contrapõe uma à outra. A necessidadeparecedura porque decreta
que aquilo que eu sou no plano imediato deve sucumbir. Porém, a liberdade real não é
aniquilada com isso, só o falso arbítrio (W?ZZXür..
"a liberdade ainda carente de conteúdo
e meramente possíve]" [S 158 adendo]). Porém, atinge-se a liberdade verdadeira quando
se penetra na identidade interior sujeita às transformações impostas pela necessidade.
A liberdade de um ser humano civilizado não será encontrada no desafio às leis que
exigemque ele sejadiferentedo que é no plano imediato, mas,antes,em encontrar
sua própria identidade nessamudança, nessatransformaçãode si mesmo. Procedendo
t assim, ele entende e vive a necessidade racional que corresponde à sua própria natureza,
que chegou, num primeiro momento, na forma da necessidadeexterior, mas que, sendo
Í: racional e própria dele, é liberdade. A liberdade consiste em viver na necessidaderacio-
nal, isto é, própria de cada um. Porém, isso requer a transformação do que cada qual é
no plano imediato. Consequentemente, pode parecer ao ser humano subdesenvolvido
como uma imposição exterior, uma restrição da liberdade. Tãl ser humano estávivendo
no nível da contingência,da pura exterioridade,como se ele fosseuma coisa.Porém,
a naturezado ser humano enquanto Geiíf é viver a negaçãode sua naturezaimediata,
negaçãoque as coisassomente sofrem; daí que ela consiste em negar essaimediatidade,
renovar-se e descobrir a sua liberdade na necessidade.
A necessidade é, portanto, a forma exterior da liberdade.E, visto que vivemoso
exterior antesde viver o interior, é a sua pressuposiçáo."A liberdadetem como sua
pressuposiçãoa necessidade,e a contém como suprassumida(azeÜeóoóen)
dentro de si"
(ibidem). Aqueles que não captaram isso interiormente não entenderão. O criminoso
encaraa suapunição como restriçãode sua liberdade: porém, a sua punição náo é uma
corça forânea, mas a manifestação de sua própria ação. Assim que ele reconhecer isso,
ele secomportará como um ser humano livre (ibidem). É issoque Espinosachamou de
amor intelecto.zlis Dei.
Isso significa que chegamosa essaliberdade que nos levará agora ao sujeito, de modo
que o próximo livro da Z,agzca,
que trata do Conceito, será o da lógica subjetiva. Essa
liberdade que está em harmonia com a realidade, enquanto existente para si, é o "Eu",
'enquanto desenvolvida na sua totalidade é esp/r/ro /fz'rr; enquanto sentimento, ma
enquanto gozo,#?#rlZade 6Se/kée/t)" (EZ, S 159).
CAPITULO Xll

0 Conceito

Tendochegado ao sujeito, Hegel estáagora em posição de enunciar aquilo que havia


lo apenas implícito nos livros anteriores. Vimos que as categorias da Essência, em
itrastecom asdo Ser,Êtziam referência implícita a um sujeito do conhecimento. Ago-
essareferênciaé explicitada. E não se perderá mais de vista na Z,ckfcÉz
essaconsciência
aueo real é destinadoa um sujeito.
.&

/'

Essaé a primeira justificativa para chamar essaseçãode livro do Conceito. Dizer


o mundo é destinadoa um sujeito significa que o mundo-como-objeto-do-conhe-
.entoé estruturado por conceitos. Isso eoi intrínseco ao nosso ponto de partida na
pgica,que é a dialética das categorias,mas agora será examinado explicitamente. E
seevidencia a dívida que Hegel tem com Kant. Porém, embora a noção hegelia-
do conceito deva muito a Kant, ela implica uma profunda transformação das ideias
ficasdessepensador.
Hegeltoma a ideia básica kantiana da unidade original da apercepção,que, segundo
"figura entre as noções mais proRindas e mais acuradas que se pode encontrar na
icada razão"(WZ, vol. 11,p. 221), e aplica-lhe uma guinada que teria horrorizado
tt. Essaunidade original é o que une as diferentes representações,e é essaunidade
ielhesconfereobjetividade, isto é, relaciona-ascom um objeto. Na condição de meras
ttuiçóes,os conteúdos da nossa experiência não possuem objetividade, mas quando
reunidas pelo "eu", e reunidas sob conceitos, eles adquirem objetividade. Sendo
incebidos,eles se tornam realidade posta, e não apenas realidade imediatamente dada.
Tudoissoé kantiano. Porém, Hegel dá a tudo um significado totalmente diferente.
Indo ele, Kant errou ao conceber essaunidade do objeto na ideia da apercepção
lscendentalcomo simples6enõmeno,posto em oposiçãoà coisa em si, que seria
lcognoscível.
E, na mesmalinha dessaideia básica,a noção kantiana da categoriaera a
simplesforma, que semconteúdo seria vazia. Essaforma, por conseguinte,tinha de
preenchidacom a intuição exterior, visando gerar conhecimento real, conhecimento
objetos(Éenomênicos).
Por isso, para Kant, a operação do Conceito tinha de aguardar a recepção do pre-
tchimento intuitivo. Ela pressupunha a intuição sensível; ela operava com base nessa
ltuição,que tinha de ser dada de antemão. Em termos hegelianos, temos aqui um mo-
mento
ascendenteque ainda não foi invertido e ainda não reconheceu que o inferior é
duzido a partir do superior, que ele não é autossubsistente.
33o PARTElil l LÓGICA

A questão entre Kant e Hegel é esta: Hegel assume a ideia de Kan{ de que a realidade
ou a objetividade é apenaso lugar onde o material da intuição sensívelé estruturado
pelo pensamento.Porém,ao passoque para Kant esseprincípio era válido só parao
nosso conhecimento do mundo, isto é, para os fenómenos, e não para as coisas em si,
para Hegel isso é válido ontologicamente, porque a verdade interior das coisasé que elas
fluem do pensamento,que elassão estruturadas por necessidaderacional. O que para
Kant é verdadeiro apenaspara a nossafaculdade de conhecimento, para Hegel é um Fato
ontológico que tem sua reflexão em nossafaculdade do conhecimento. Ele tem a impres-
são de ter demonstrado tudo isso nas partes precedentes da Lógica. Com efeito, nelas se
t demonstrou que as concepções da realidade enquanto separadas do pensamento, acima
P

dele e contrárias a ele, enquanto simples ser, enquanto essênciaoculta, enquanto simples
ET'
dado, etc., são todas inadequadase todas se convertem em substância,cuja verdadeé
Í
('
necessidademanifesta ou liberdade, logo, conceito.
Mas, sendo assim, o outro lado do conhecimento paralelo ao conceito, a saber, seu
preenchimento intuitivo, não está dado separadamente, é produzido a partir do Concei-
to, posto por ele. E nesseponto que Kant errou. Porém, tudo o que ele dissea respeito
da objetividade, da sua dependência em relação ao pensamento e da unidade do "eu",
que ele destinou unicamente para a objetividade fenomênica, resulta correto quanto à
realidade como tal.
Assim, obviamente, estamos tratando do Conceito num sentido muito diferente do
l
que ele tem na filosofia kantiana ou mesmo no sensocomum. Paraesteúltimo, o con-
ceito é uma ferramente do nosso conhecimento, uma maneira que temos de apreender a
realidade. O uso que fazemos dele, por assim dizer, não vem em detrimento da natureza
da própria realidade. Para Hegel, em contrapartida, o Conceito é um princípio ativo que
está na base da realidade, Emendo dela o que ela é.
A segunda diferença ligada à primeira é esta: para o senso comum, o conceito é uma
abstraçáo.Suauniversalidadeestá ligada a essefato. Descobrimos uma palavraque se
aplica a uma grande quantidade de instâncias similares, e o conceito Eazisso abstraindo
de suasparticularidades. Porém, na visão de Hegel, o Conceito é do tipo que desenvolve
a partir de si mesmo a realidade que Ihe corresponde. Com efeito, ele não é meramente
um conteúdo em nossasmentes, mas o princípio que está na base do real. Consequente-
mente ete é um universal, mas do tipo que tem a diferença dentro dele. Na formulação
de Hegel, ele produz a partir de si mesmo as particularidades que são assuasmanifes-
tações. "0 conceito é fundamento e fonte de toda a determinidade e multiplicidade
finitas" (WZ, vol. 11,p. 227).
Consequentemente, para Hegel, a melhor representaçãodo Conceito na composição
do mundo é o "eu". O eu pode até ter conceitosparticulares,"mas o 'eu' é o próprio Con-
ceito puro que ganhouexistência(Z)me/n)como Conceito" (WZ, vo]. ]], p. 220). [)e Eito,
11
Hegel explica que o "eu" é a unidade que é idêntica consigo mesmae pode abstrair de
toda determinação particular, visando concentrar-se em sua identidade consigo mesma.
O CONCEITO 33 l

é, portanto, universal. Porém, ao mesmo tempo, é particularidade, diferente de outros,


nalidade individual. O ponto em questão é que as características particulares do "eu
estãomeramente dada, mas pertencem a um ser que também é capaz de abstrair
e renova-las,um ser que é livre no sentido de ter uma identidade que transcende
Inueruma delas.Consequentemente, essascaracterísticaspodem ser vistas como afir-
por essaidentidade universal consigo mesmo. Ao mesmo tempo, embora livre de
querdessascaracterísticas,o "eu" não estálivre de ter algumas; ele não pode existir
firmar um caráter ou outro, daí que o universal deve desembocar no particular.
O espíritofinito é, portanto, a mais clara manifestaçãoprontamente disponível do
.nceito. Porém, ele não é a manifestação suprema. Com efeito, um espírito finito par-
larnão tem como desacoplar-se de sua característica e muda-la totalmente. Na teoria
próprio Hegel, a única representaçãorealmente adequada do Conceito tem de ser o
líricoinfinito, como representadona totalidadedo sistemada realidade.No entanto,
iue entidadesânitas, o espírito finito é obviamente o melhor que há, seguidodepois
losseresvivos.
O Conceito é, portanto, o universal que desenvolvea particularidade a partir de si
;mo. Essedesenvolvimentoé contrastado com a simples transição ([/&e/geóen)do
ou com a reflexão (Sc#e//zem)da Essência. Na primeira, o primeiro termo desaparece
dar lugar ao segundo. Na Essência, o primeiro termo remete-nos a um segundo
não é ele próprio; mas, no Conceito, os novos termos desenvolvidosa partir dele
'manecemplenamenteidênticos a ele. A imagem que Hegel usa na .EZ (S161, aden-
)) é a de uma planta crescendo. Ela própria se desenvolve e se articula. O que existe de
ócioé simplesmente a conte indiferenciada da explicitação posterior. Este é o Conceito
outro sentido hegeliano do germe ou da forma ainda não desenvolvida. Essafonte
krenciada é, portanto, como o universal, que é abstrato, indiferenciado. Porém, ela
ttém o poder, de fato a necessidade,de crescer e desenvolver-se e produzir o particular
partir de si mesma.
Naturalmente,surgea questão, e Hegel trata dela em .Ê.[ (S 160, adendo), de por
usamosaqui a mesma palavra para aquilo que comumente chamamos de conceito e
tbémpara o Conceito de Hegel. Isso não convida simplesmente ao mal-entendido e
pnfitsão?
A respostasucinta é que as duas noções, a da linguagem comum e a da lin-
:m especializada de Hegel, não estão tão distantes quanto possamos pensar. Porém,
;postamais proflinda que vem em seguida é que, no decurso da dialética a seguir, se
;traráque o Conceito hegeliano é desenvolvido a partir do conceito comum.
Com efeito, no livro que estamos iniciando, nossa tarefa será deslocar-nos na direção
;ta à da lógica objetiva. Nesta, começamoscom a noção mais pobre, com menos
inteúdo, da realidade exterior e ascendemos com ela através da Essência para uma visão
realidadeexterior enquanto manifestação do Conceito. Porém, seissoé Eito, setudo
teRteprovém do Conceito, assimcomo a planta provém da semente,então devería-
sercapazes
de mostrar issoexaminandoo próprio Conceito. E claro que o Conceito
PARTElll l LÓGICA

que constitui a Gentede tudo é o Conceito p]enamentedesenvo]vido,a ideia, à qual che-


garemosno final da nossabusca. Porém, se este é realmente a conte de tudo, deveríamos
sercapazesde chegara ele tomando como ponto de partida o conceito mais ou menos
simi[ar ao do sentido comum, o conceito subjetivo que é o material do pensamento.
Nossavisão ontológica básicaé que o conceito está na basede tudo como a neces-
sidade interior que implementa o mundo, e que o nosso conhecimento conceitual é
derivado disso. Somos os veículos pelos quais essanecessidadesubjacente chega à sua
consciência de si igualmente necessária.Consequentemente, na nossa consciência sub-
jetiva, o conceito é o instrumento da consciênciade si do Conceito como conte e base
} iiFli
..ilB de tudo, como necessidadecósmica. Porém, sendo assim, o conceito em nossasmentes,
l
quando examinado mais de perto, deve acabar funcionando como o Conceito que está
Z
na raiz da realidade. Este último produz a realidade a partir de si mesmo; ele é o universal
1.

(" que seconverte no particular, é a Fórmula interior da necessidadeque gerauma realidade


exterior que, enquanto exterior, tanto nega como manifesta essanecessidade;ele póe
seupróprio opostocom o qual permaneceinseparavelmente unido. E a totalidadeque
se move por contradição.A menosque o conceito em nossasmentes, após investigação
mais profunda, acabefiincionando dessemodo, a menos que ele se converta em oposi-
ção e numa identidade mediada por seu outro, a menos que ele de Eito acabe, em última
instância, por vincular-se ao pensamento que está na base da realidade, Kant e os dualis-
tas têm razão: de bato, deve haver um abismo intransponível entre o nosso pensamento
e os alicerces do real. A necessidade conceitual subjacente a tudo o que existe não estaria
ao alcance da apreensão do pensamento subjetivo, mas, na melhor das hipóteses, só por
meio de uma intuição situada além do pensamento, em imagem, gesto, símbolo. O Gefif
enquanto razãoJamaischegaria à consciência de si.
Em certo sentido, estivemos mostrando o tempo todo durante essainvestigação
dos nossosconceitos categoriais que eles geram contradição e estão conectadoscom
os seusopostos. Porém, deveríamosser capazesde mostrar isso no próprio conceito
de um conceito.
É isso que daremosna primeira parte desseterceiro livro da Lógica. Examinaremos o
nossopensamento,isto é, os conceitos,e o que fmemos com eles,a saber,juízos e silo-
gismos. Em suma, examinaremos muita coisa do que usualmente é estudado sob o título
de lógica formal. Esseé o ponto em que a Lógica de Hegel (devemoslembrar que se
trata principalmente de uma lógica transcendental)é congruentecom o que usualmente
consta sob essetítulo. E já vimos por que, na estratégia dessalógica transcendental, essa
matéria tem de ser abordada aqui.
Porém, também decorre do precedente que Hegel não pode realmente aceitar a
ideia de uma lógica formal, isto é, de um estudo que aârmaria ser o da forma do pen-
samento que abstrai do conteúdo. A mensagem hegeliana inteira diz que a "forma'
ou a naturezado próprio pensamentose converte no seuoposto Ao seremexamina-
dos, os conceitos revelam contradições interiores; sendo universais, eles se mostram
O CONCEITO 3 33

necessariamente
relacionados com particulares que, náo obstante, os negam. E, re-
velandoessasrelações interiormente contraditórias, eles estão realmente revelando a
natureza das coisas, pois nossos conceitos se comportam dessa maneira por serem os
veículosda consciência de si da necessidade interior do cosmo. Consequentemente,
um estudodos conceitos como puras formas gera a estrutura básica das coisas ou o
conteúdo.Reciprocamente,é óbvio que um estudo do conteúdo, um estudo das coi-
sas,revela a necessidade conceptual interior ou a forma.
Consequentemente, a lógica puramente Eorma] é uma quimera. Numa passagem
crucial(WZ, vol. 11,p. 229-34, também /l.[, S 162), Hege] expressaesseponto através
da discussãode sua noção de verdade. A ideia usual (e kantiana) de lógica formal é que
trata dos conceitos e das proposições abstraindo da sua verdade (substancial). Isto é,
elespodem conter verdade lógica, mas não verdade no sentido ordinário de adequação
,os fatos.A verdade exige dois termos. Porém, se o nosso estudo das formas asmostra
desembocandonum desenvolvimento interior que refiete a estrutura das coisas, então
aquestãoda verdade substantiva surgedentro da própria assim chamada lógica formal.
Em outras palavras, não há domínio separado de formas que podem ser julgadas unica-
mentecomo coerentes ou incoerentes, assim como julgamos se uma proposição Em sen-
tido ou não, abstraindo de todas as questões da verdade como concernindo somente à
concordância
dessaforma com um conteúdo empírico totalmente independente.Antes,
devido ao Eito de suas próprias formas estarem sujeitas a um desenvolvimento interior a
partir de suascontradições interiores até que cheguem a refletir apropriadamente a estru-
tura das coisas, a questão de sua verdade necessariamente surge. Elas estão no âmbito da
verdadesomente em sua forma plenamente desenvolvida. Em qualquer forma anterior,
elassão inadequadas, não verdadeiras.
A verdade substantiva, por conseguinte, não pode ser excluída do domínio da
lógicaformal, o que é outra maneira de dizer que a lógica formal se enquadra na
lógicatranscendental, a qual é, ela própria, ontologia. A verdade de algo estádentro
daquelacoisa ou dentro do conceito da coisa. Pelo fato de todas as coisasserem
emanação do Conceito, elasestãoem acordoou em desacordocom ele, logo, ou são
verdadeirasou são falsas.No sentido do idealismo absoluto de Hegel, a verdade é a
forma de algo quando está plenamente desenvolvido, porque, nesse caso, concorda
plenamente com o seu conceito.

Estaseçãointeira expressa,uma vez mais, a profunda diferença em relaçãoa Kant;


expressa
que Kant aceitou a dualidade de mente cognoscentee realidadeúltima; que a
verdade
última, a verdadeno sentidode adequaçãodo pensamentoà realidadeúltima,
permanecefora do nosso alcance. Enquanto isso, para Hegel, a verdade está ao nosso
alcanceporque a realidade não é algo 6orâneoao pensamento, mas sedesenvolvea partir
do próprio pensamento. Para Kant, as categorias são finitas por serem subjetivas; para
Hegel, elas são finitas por serem parciais; elas têm o seu lugar no processo inteiro e de-
vem Sucumbir cada uma quando chegar a sua vez.
334 PARTElll l LÓGICA

Por fim, o que Hegel censuraem Kant não é o fato de ter se apegadoa uma noção
de intuição intelectual que ele próprio inventou. Esseseria um entendimento que, di-
ferentemente do nosso, não dependeria da recepção exterior, de ser vetado a partir de
cora,porque seusconteúdos seriam criados unicamente com o seu pensamento.Kant
atribuiu esseintelecto arquetípico a Deus; ele estaria totalmente além de nós. Porém
para Hegel, o intelecto de Deus é, em última instância, revelado a nós; ele só vive no nos-
so pensamento.Clonsequentemente,
podemosparticipar de uma intuição intelectual.
O pensamento de Deus é o nosso.

l:SUBJETIVIDADE

A primeira subdivisãoda lógica subjetivaé chamadade "Subjetividade",e seuob-


('
jetivo é conduzir-nos atravésdo conceito considerado como apreensãosubjetiva das
coisasaté à noção de um mundo que articula a si mesmo. Ou melhor, já alcançámosesse
ponto, porque chegamosa essanoção atravésdo seu desenvolvimento a partir da Essên-
cia. Porém, mostraremos agora que chegamos ao mesmo ponto indo na outra direção e
começando com o conceito pelo qual conhecemos coisas, assim como antes começamos
pelo ser conhecido.
Ao Emir isso, teremos de lidar com algumas das noções da lógica formal e, nesse

processo,percorrer todo o conjunto de ideiasassociadoa essadisciplina. Tomaremosas


distinções âxas e asporemos em movimento. Na introdução geral a este livro, na parte
em que ele apresentasuasubdivisão(.É7/zfe//a/zg)
, Hegel nos diz com o que nos ocupare-
mos nessaseção(WZ, vol. 11,p. 236).
Tomando como ponto de partida o Conceito zz i/có, nós o vemoscomo algo pura-
mente interior e, em consequência, como simplesmente exterior. Começamos pensando o
conceito como a propriedade unicamente do pensamento subjetivo (como interior); e, por
essarazão,ele é concebido como exteriormente relacionado só com aquilo que é concebido.
E os vários elementos dessepensamento(os conceitos particulares) são relacionados apenas
exteriormente um com o outro. Porém, a identidade do Conceito os porá num movimento
diabético e superara a sua fragmentação e a divisão entre Conceito e realidade(Sache).
Esseprimeiro segmentoda Lógica do Conceito passapor três partes:o Conceito
como tal, o juízo e o silogismo. Essessáo os três estágiosna rota que levará à objetivida-
de, isto é, que nos levará para além do Conceito subjetivo uma vez mais até à totalidade
autoarticulada do real.
O melhor modo de expor o que estáem pauta nesseprimeiro capítulo sobreo Con-
ceito é apresentar a articulação da noção hegeliana e observar como a noção subjetiva
comum se encaixanela. Esseé aproximadamenteo procedimento adoradopelo próprio
Hegel, pelo menos na exposiçãomais completa da WZ (a não ser pelo fato de Hegel
frequentemente considerar as duas juntas sem distingui-las por longas passagens, o que
dificilmente contribui para a clareza) .
O CONCEITO 335

A exposiçãodessecapítulo guia-sepela implementação da distinção bem conhecida


lt" universal ('4Zkrme/mes),específico(.Brio/zzú'rzs)
e particular (.E7zze/zes),'que obvia-
ente recebeuma nuance especialnas mãos de Hegel.

CONCZiTO

Em primeiro lugar, tomemos o Conceito hegeliano.Este é um universal, um princí-


io interior autoidêntico de uma totalidade diversificada. Porém, ele também é dividido
muitas partes, pois deve haver diferenciação para que haja totalidade. Essadivisão
partes é a especificidade que se enquadra no universal.z
Mias, então, em terceiro lugar, essatotalidade deve ter existência exterior, real e, como
ser uma coisa particular real, .É7nzeZnex(àsvezes, mais bem traduzido por "individual") .
Diferentemente das esferasanteriores, aqui o desenvolvimento é puramente intrínse-
Cadaum dessestrês momentos é, ele próprio, a totalidade inteira, como diz Hegel.
ito é, não sepode explicar um deles sem mencionar igualmente os outros. Por conse-
Inte, ao começar com o universal, temos de mencionar que ele 6oi o princípio interior
uma totalidade diversificada e, em consequência, remete às outras duas "determina-
i" (Beí//mmzlngen).Todas as três estão inseparavelmente ligadas.'
Agora,porém, como já vimos anteriormente, essecenário ideal não é corporificado
Pmotal em todo lugar. Ele o é no todo que é a corporiâcação do espírito infinito. E
é naquelasentidades particulares que, por sua natureza, estão mais próximas do Gelsf
anito, a saber, a Vida, o "Eu", os espíritos finitos (WZ, vol. 11, p. 244). Porém, nem
mesmo
nessasentidades particulares ele é realizado como o é no todo, porque neste a
autoespecificação
flui de seu "poder criativo" (scól8Z#?riscÓe
Maca/) (p. 244-45), náo
ldo, portanto, condicionada por nenhuma outra coisa.
Outra imagem do Conceito é o gênero que se especifica nas suas espécies. Porém, já
lesse
casochegamosa um exemplo de realizaçãonão tão perfeito. Com efeito, o gênero
imum agrupa um conjunto diversificado de espéciesque náo seguenenhuma articu-
o necessária que possa ser deduzida do seu Conceito. O gênero das aves inclui toda
la gama de espécies, nas quais nem o seu número nem as suas diferenças apresentam
quer necessidade.
Essacontingência encontra seu lugar no sistema de Hegel, como já vimos, porque,
suavisão, as realizaçõesinferiores da Ideia contêm essetipo de imperfeição, de perda

Acompanho, nesta passagem do livro, a terminologia inglesa "íprri#r" e "púrfi áz ", embora os dois ter-
sejamsinónimos exacostambém na língua inglesa. O tradutor de Hegel para o português distinguiu
or os dois termos, falando de "particular" e "singular". Melhor seria,como o próprio autor sugere
Imãslinhas adiante: "específico" e "individual". (N. T)
A palavraalemã "Brio züxz!", cognara do termo inglês "fK/zdn", carrega essesentido de autorrompimento
[o quanto o seu significado lógico comum, propiciando a Hegel essejogo especulativo de palavras que
tanto apreciava
Cf: por exemplo, .EZ, S 164.
336 PARTElll l LÓGICA

de adequação, que, de outro ponto de vista, é contingência. Por conseguinte, edando da


contingência das espécies,Hegel diz:

Esta é a impotência da natureza, não ser capaz de segurar firmemente neH


apresentar o rigor do Conceito, mas, antes, dispersar-se(z,erüze#rn)nessaausência
de conceitoemultiplicidadecega.(WZ,vol. 11,p. 247)

Essedescambar na simples diversidade da natureza é correspondido por uma produ-


ção similar de diversidade nas representações ( WorireZZzónK?n)
do espírito finito. Tanto os
múltiplos gênerosnaturais e as múltiplas espéciesnaturais quanto as ideias arbitrárias
(Ezn/2@) da mente

de fato mostram em toda parte vestígios e indícios (Spz/rrn z/nZ Hónz//2gfn)


do Conceito, mas eles não o apresentam em sua verdadeira imagem, porque
constituem o aspecto de sua livre autoexterioridade [...] (WZ, vo]. ]], p. 248)

Porém, essacontingência mesma estácontida no Conceito

ele é poder absoluto precisamenteporque pode deixar sua diferençalivre para


assumir a forma da diversidade independente, da necessidadeexterior, da
contingência, do capricho, da opinião; tudo isso, no entanto, não pode ser remado
como algo mais que o aspecto abstrato da nulidade (JWrórÜéefr). (ibidem)

A imperfeição, por conseguinte,toma essaforma: a de que o universal,que aqui é


o gênero, não desemboca necessariamente em sua especificação, que essa especificação
possuidentro dela uma grandeparcelado arbitrário, do simplesmentecontingente, em
torno de uma estruturabásicade necessidade.
E essaausênciade necessidade
pode ser
vista igualmente de outro modo, a saber, que as diferentes espécies,as diferentes partes de
sua especificação, não estão interiormente relacionadas como opostas umas às outras. Elas
não apresentam nenhuma articulação necessária,como vimos anteriormente. Pai:a Hegel,
a articulação necessária só pode ser a relação essencial de opostos, sendo que cada um re-
pousasobreseuoutro, de modo que nenhum pode existir semo outro, que nessesentido
é o iez/outro. Sendocontraditórios, elessetornam um todo em movimento, cuja articula-
ção necessáriaé constituída por essaspartes Isso é, para Hegel, o verdadeiro Gênero, que
teria, por conseguinte, só duas espéciesque seriam opostos essencialmente relacionados.
[)e ta] ordem é o abso]uto, que necessariamente se divide em espírito e natureza, os quais,
por seuturno, emboraopostos,só podem serconcebidosum em relaçãoao outro.
Consequentemente, a imperfeição da corporiâcação pode ser vista como uma con-
tingência na emissãoda especificaçãoa partir do universal ou como uma contingência,
uma ausência de oposição, nas relações mútuas dos elementos especificados. Porém, ela
também pode ser vista a partir da perspectiva da particularidade: que o gênero como um
todo não porem um particular ordenado; antes, um número contingente de particulares
está incluído nele.
O CONCEITO 337

Contraste-se novamente o absoluto e o gênero das aves, caso isso não soe demasiada-
menteridículo. O primeiro é uma divisão articulada numa totalidade que é também um
existenteexterior real, que se move por si mesmo, ou um indivíduo. Os espíritos finitos
aproximam-se disso, mas não bastam a si mesmos; antes, o espírito subjacente a eles é
corporificado também numa sociedade ordenada de espíritos dessetipo Porém, nesse
nto, ingressaum elemento de contingência, porque o número de sereshumanos não é
6xado por necessidade; só a sociedade é um todo autossubsistente cujo número é fixado
de acordo (para cada estágio dado). Os particulares contingentemente quantificados
enquadram-sedentro de um particular mais amplo e necessariamentearticulado.
Porém, no que serefere às diferentes espécies de aves, nem mesmo esseé o caso. Há uma
'quantidadeindeterminada"(wmZ'eifímmíeMenu?) delas,isto é, tanto de espéciescomo de
apécimes,e, não obstante, o todo que é o Gênero nem mesmo perEm uma totalidade
articulada. Como particular, o gênero das aves é uma entidade completamente canhestra.
De modo que o existente unitário, articulado, fica excluído da estreita relação interior com
o universalno qual seinclui: toda a extensãodo universal não qualifica mais, e aquilo que
qualifica existe em quantidade indeterminada e com muita articulação contingente.
Ora, como vimos anteriormente, Hegel paraleliza a corporificação imperfeita da
Conceito na natureza com as representações contingentes da mente. E, como veremos
agora,o conceito puramente subjetivo padece das mesmas deficiências que o Conceito
imper6eitamente
corporificado. Nessesentido, e]e possui uma certa justificação, a qual
eleperde,no entanto, quando alega ser toda a verdade do Conceito, que é o que acon-
tececom o sensocomum e com asfilosofias do entendimento.
Vejamos isso examinando agora o conceito subjetivo em relação aos três termos aci-
ma.O conceito subjetivo é um universal, num sentido não problemático: de Eito, Eoi
paraisso que se cunhou o termo "universal". Porém, ele também possui especificação,
istoé, há critérios pelos quais ele é aplicado e, nessesentido, ele possui algum conteúdo.
Hegelrejeita peremptoriamente a ideia de um conceito simples, de um conceito sem
critérios adicionais. Isso é confundir representação com concepção. Pode haver represen-
taçõessimples que Hutuam diante de nossasmentes. Até mesmo as realidadesmais ricas,
o espírito, a natureza, o mundo, até Deus, podem ser representadasna mente de um
modo completamente simples; isto é, podemos evitar adentrar a sua articulação (IPZ,
vol. 11,p. 255, também EZ,, S 164). Porém, se Edarmos seriamente de conceber, então
seguramentenão podemos aceitar essasrepresentações como camreifai.Trata-se de repre-
sentações simples em que a universalidade é concebida em abstração da especificidade e
da particularidade (ibidem).
TraduzindoHegel a partir de suaprópria linguagem, chegamosa uma teseque seria
amplamente aceita hoje em dia:4 um conceito está necessariamente ligado a outros con-

' O ponto foi antecipado por Herder, em seuE /a lacre a OTÜrm zúzLingwólg?m.Ter consciêncialinguísti
cadealgoé identifica-lo por meio de uma característica(.A4erémaÕ
que servede critério.
338 PARTElll l LÓGICA

ceitos; nenhum conceito pode ser introduzido por si mesmo. Não podemos dizer que
temos um fo ceira de alguma coisa, senáo pudermos dizer nada sobreessacoisa a nãosa
aplicar a ela esseconceito. Esseé o ponto por trás do argumento de Wittgenstein contra
a linguagem privada:Sa sensação"S" teria de ser tal que pelo menospudéssemosdizer
111.,.1B.l que ela 6oi uma ie iúfáo e, em consequência, liga-la ao restante da nossalinguagem. Nãa

H podemos implementar nenhum conceito que não esteja ligado e, em consequência,que

a /
não possade alguma maneira ser explicado por outros.
Dar crédito ao conceito simples Eazparte de outra teoria do significado, aquela em
que palavras recebem significação simplesmente por serem ligadas a conteúdos sensíveis.
Nesse caso, a palavra que 6oi ligada a um conteúdo sensível completamente simples não
}

#
seria mais passívelde nenhuma outra articulação. Porém, Hegel indica que essetiPO de
distinção confunde psicologia com lógica. THvez possa haver apresentações sensíveis
t simples, inclusive representaçõesna mente: considerando a questão como fato autobio-
d'
gráfico, posso ver que náo percebi antes a articulação de uma cena dada ou mesmo de
uma ideia dada. Porém, quando se chega a conceitos, essanoção de simplicidade está
totalmente cora de lugar.
Por conseguinte, o universal (conceito) deve ter uma especificação(a explicação
que Ihe servede critério). Porém, como ocorreu anteriormente com as corporificaçóes
imperfeitas, o conceito meramente subjetivo será do tipo em que não há conexão
necessáriaentre os dois. E claro que haverá uma conexãopuramente analítica, porque
o significado que é dado a esseconceito é o da explicação que Ihe serve de critério.
Porém, nada de necessáriohaverá no que se refere à articulação dessaexplicação; seus
elementos estarãoconectadosde modo totalmente contingente. Ao explicar o teima
:papagaio",EHaremosde uma ave que possui certascores, um certo tipo de bico, que
pode "Falar", etc. Porém, todas essascaracterísticas estão conectadas de modo total-
mente contingente. Não há necessidadede elas constituírem as articulações de uma só
coisa; elasnão formam uma totalidade.
Em terceiro lugar, o conceito universal com a sua especificaçãoé usado para designar
particulares.Como na exposiçãodo Conceito ontológico, o momento da particulari-
dade é aquele em que chegamos à existência exterior, real. Porém, no caso do conceito
subjetivo, essepassopara dentro da realidade transcende o plano subjetivo, constituindo
a referência a coisas no mundo.

Por conseguinte, o universal, o específico e o particular estão presentes no conceito


subjetivo, em sua especificação e nas coisas às quais o seu uso pode referir-se.
E, como no casoda explicaçãoanterior, o conceito puramentesubjetivo revela,nas
relaçõesentre conceito e explicação, a mesma contingência ou exterioridade das relações
entre particular e conceito. Ele é parte inseparável da mesma contingência. Essacontin-
gência é análoga à das corporificaçóes imperfeitas da Ideia na natureza que discutimos

5/npelf fóeJFIZajc#rm,
vol. 1,S 258ss
O CONCEITO 339

ente. A corporificação perfeita é aquela que possui uma totalidade necessaria-


anreriorm
como
mentearticulada a sua especificação, e esta é, portanto, necessariamente um par-
apropriadamente entendido, remonta a partir de si mesmo ao seu universal
[icülarque
validade de articulado. O Conceito imper6eitamentecorporificado não possuiarti-
.0 necessária.A sua extensão não é, portanto, um particular, e os particulares que

« induemnele sãoem quantidade e variedade contingentes. Reciprocamente, toda essa


extensão não revela a partir de si mesmo o universal ao qual pertence, o que tampouco
t'Heinos particularesque o constituem.
De modo similar, o simples conceito subjetivo é apenascontingentemente ou anali-
ricamenteligado à sua explicação; contingente é ele ter particulares que se incluem nele
ou a quantidade deles. Reciprocamente, essesparticulares não são do tipo que essencial-
mente têm de ser caracterizados por esseuniversal; eles podem também ser enquadrados
num grande número de conceitos diferentes, sem relação uns com os outros. O papagaio
rambémé um objeto azul um objeto que Eazbarulho, etc. Por outro lado, a entidade
ual implementa todas as suasdiferentes propriedades, de modo que todas são
taçóes da mesma necessidade interior. Qualquer que seja o termo que se escolha
pamcomeçar,é-se remetido para além, para o todo.
Nostermosde Hegel, o conceito subjetivo é do tipo em que sua Forma e seu conteú-
do não são ligados (IPZ, vol. 11, p. 261), ou então podemos dizer que eles estão ligados
apenas
no plano imediato. A última expressãotalvez seja a que mais bem descrevea
maçãoentre conceito e especificação. Com efeito, estes estão analiticamente ligados,
logo,não representam uma unidade conceptual no sentido corte. Não há mediação nessa
ligação,
simplesmente um enunciar do que está implicado no conceito.
Porém,a primeira expressãotalvez seja a que melhor combine com a relaçãoentre
conceito
e particular. O conceito é a forma, a coisa particular, o conteúdo; e elesestão
contingentemente
ou exteriormenterelacionadosna medida em que o conceito não
determinaele próprio os seus particulares, e estes não prescrevem por si mesmos sua
caracterização.
Esteé o conceito
puramentesubjetivo, como é visto pelo sensocomum e pela filoso-
6a do entendimento. É mer,
[orma que estáseparadado conteúdo; e que é obtida por
meiode abstração a partir do conteúdo, isto é, da diferença entre os diferentes particula-
resque se incluem nele.
O conceito é, portanto, visto como contendo simplesmenteos
elementos
comuns entre as coisas que se incluem nele.
Em parte, essa
noção do elemento comum (zZn Z'Z[Ü' Grmej JcóaÚ#róe [EZ, S 163,
adendo1; também
IPZ, vol. 11,p. 263]) deriva da mesma Essanoção do conceito como
oproduto de abstração sendo fruto da mesma teoria psicologizante do significado que
produziu a ideia do
conceito simples. Porém, em parte, ela corresponde a uma distin-
çãoreal
porque as caracterizações inessenciais das coisas ou as caracterizações de coisas
inessenciaisproduzem
eles o simplesmentecomum. É comum a todos os sereshumanosque
tenham lóbulos da
orelha, mas isso não lhes confere a sua caracterizaçãoessencial
34o PARTElll l LÓGICA

Precisamosdistinguir o Conceito universal,o qual realmenteproduz o que seinclui nele,


do simplesmente comum, que não possui relação intrínseca com as coisascom as quais
estárelacionado, não asproduz, e é simplesmente percebido pela comparação exterior.
No primeiro adendo a .Ê.[, S 163, Hege] dá dois importantes exemp]os dessadistin-
ção. E]e afirma que os gregosnão tiveram realmente um conceito do universal nem refe-
rente a [)eus nem ao serhumano. Consequentemente,e]espodiam crer que os he]enos
eram radicalmente diferentes dos bárbaros e que alguns sereshumanos eram natural-
mente escravos. O cristianismo trouxe o princípio do universal ao seu pleno reconheci-
/'

mento, razãopela qual não há escravidão na Europa moderna.


t Em segundolugar, issotambém pode lançar luz sobre a distinção que RousseauEu
l entre óz uoZom#gr/zexa&
[vontade geral] e & z,oZo#de faz/i [a vontade de todos] : estaú]tima
r é a simplesmente comum; a melhor designação para a primeira seria conceito da vontade.
í«i". ..l.liiK
O ponto em questão em tudo isso, com explica Hegel no adendo 2, é que o Conceito
(""' .:llli
vem primeiro, como entendemos na versão ontológica c como sempre se deixa de perceber
na versão subjetiva. Esta é a verdade por trás da ideia de que Deus criou o mundo ex /zió/b.
Fica claro, a partir do que 6oi dito, que o conceito subjetivo, como é entendido pelo
sensocomum, não estásimplesmenteerrado. Em sua inessencialidade,em sua relação
puramente contingente com o que ele cobre, que poderia igualmente não ter existido ou
poderia facilmente ter sido enquadrado sob outros conceitos,ele correspondea muito
do que é contingente e inessencia]no mundo; o contingente no Conceito (ontológico)
1'
imper6eitamente corporificado. O ponto em que essavisão subjetiva está irremediavel-
l
mente erradaé em não ver que essainessencialidadeé, ela própria, posta pelo Conceito
essencialmentecriativo, e issoquer dizer que sua Êdha é ignorar a existênciamesmado
Conceito ontológico. Consequentemente, ela crê que todos os conceitos são subjetivos,
que todas são formas que estão separadasdo conteúdo.
Queremos mostrar agora que essaversão subjetiva do Conceito transcende a si mes-
ma pela força de suascontradições interiores. Porém, como acontece com frequência
em transições cruciais, Hegel parece presumir o que ele pretende provar. Com efeito,
a contradição básica aqui é a "incomensurabilidade" ([/nanKemeiir/zÓe/f)
do universa]
e de sua especificação (WZ, vol. 11, p. 252). Porém, essainadequação só se mantém se
presumirmos que a falta de conexão interior constitui inadequação.óHegel diz que o
entendimento conseguechegar à fixidez do universal a partir do buxo do sensívelem
mudança. Isso é uma tremenda realização;é esperar demais que ele vá além disso e per-
ceba que seuspróprios conceitos universais fixos estão num fluxo dialético. Porém, essas
noções fixas, esses conceitos determinados particulares, que são tidos como separados
uns dos outros, ingressam,elespróprios, num movimento diabéticoa partir da força
de suas próprias contradições interiores. Porém, essascontradições dependem da inco-
mensurabilidade da determinação como universal, que é, ela própria, um requisito do

6 Discutiremos mais adiante por que Hegel sesente no direito de pressupor isso
O CONCEITO 34í

O entendimento comum se satisfaz totalmente com conceitos determinados,


os quais náo há relação essencial na articulação ou com os particulares que se incluem
ese não podem ser levadosa sentir a contradição.
Porém,a derivação hegeliana da objetividade não está meramente baseada no simples
tto da incomensurabilidade (UH'zzg?meiieóe/r). Ela parte do conceito e passapor um
go desenvolvimentopor meio de outras noçõeslógicas.A primeira é a do juízo. A
siçãoprovém da seguinteconclusão: no Conceito Subjetivo, o particular que seinclui
.eleé exterior a ele. E, não obstante, ele não é desprovido de relação. Não estamosde volta
esferado Ser, onde tratamos de entidades simples baseadasem si mesmas e que simples-
mente
seconvertiam umas nas outras. Tampouco estamosna Essência,onde tratamos da
cidadeoculta. Estamos no Conceito, onde o particular Êoiderivado como proveniente
loConceito,como aquilo que é referido pelo Conceito. Consequentemente, estamoscon-
ndo o particular aqui como o objeto de referência. E, como tal, ainda que separado
o Conceito, ele tunbém está inseparavelmente colectado a ele. Por conseguinte, a par-
cularidade"exclui o universal dela mesma, mas por ser um momento dela mesma,esse
liversalestátambém essencialmente
relacionadocom ela" ( IVZ, vol. 11,p. 264).'

Juízo
Porconseguinte, o conceito subJetivo, ao íàzer referência a particulares que não são
produzidosa partir dele, essencialmentenos remete ao juízo. Um conceito pode não
outro uso a não sero de Emerum juízo. Esseé o caminho curto até essaconclusão,
qual torna dispensáveltodo o argumento desta seção,exceto obviamente pelo fato de
;seargumentoser essencialpara o propósito hegeliano que é ver o conceito subjetivo
norao pano de fundo dos requisitos postos pelo Conceito ontológico. A partir desse
nto de vista, é importante não só que não poderíamos ter conceitos sem juízos, que
)nceitossão essencialmente o que usamos para fazer juízos, que eles não são entidades
)mo pedras que possuem uma realidade à parte do seu uso. Antes, também é importan-
que o juízo nascede uma divisão, de uma disjunção, na qual os dois ladosnão estão
)lenamentede acordo, porque é isso que fornecerá a energia para o desenvolvimento do
uizo,como veremos na próxima seção.
ParaHegel, o juízo estáassociadoà ideia de divisão, de uma cisão dos dois termos
ueestão ligados. E isso é facilitado por outro jogo de palavras que a língua alemã Ihe
}6erece
de bandeja. O movimento da particularidade é a separação original de si mesmo
"'Õe #pVMng&cóe Ze//umg se//zer"), e isso é juízo (UrfelÕ. O movimento de disjunção
u Enzzme/zlzeg,
que estána base tudo, e que mais tarde é compensadopelo retorno à
dade, é o que está na base do juízo, no qual coisas diferentes são declaradas como a
lesma.Acompanharemos issoem detalhe na dialética que sesegue.

' Essaseçãode Eito possui muita coisaem comum com a Essência,visto que temos uma relaçãode dois momentos
ue não são realmente mostrados como idênticos até rranscendern)os esta parte e chegámos ao Silogismo.
PARTElll l LÓGICA

A discussãosobreo Juízo ajuda a aclarar o que para Hegel é a relaçãoentre a lógica


formal e sua espécie. O senso comum usualmente considera os juízos como atividades das
nossas mentes (finitas), pelos quais atribuímos alguma propriedade a um objeto. Juntam.s
dois conceitos em nossas mentes; e o juízo é corneto se as coisas de que estamos Édanda
L::: com essesconceitosde batoestãoligadas.Porém,para Hegel, o juízo é em primeiro lugar
=ril«.: e primordialmente uma realidade ontológica. Em .EZ, S 166, aderido, ele cita o exempjo
da planta, seu favorito: esta provém da semente e desdobra-se em raiz, ramos, bolhas,etc.
.-..B'«" Como vimos anteriormente, essedesdobramento exterior numa realidade diferenciada é
«"= o equivalente ao universal que se divide em suas especificações.Porém, essadivisão éo
t .....i]b.. juízo (Uríri/ = z/zsprüngócór be//ung [divisão originárias), como Hege] nos ]embra mais
b=::::::.« uma vez. Consequentemente, esse desdobramento tem de ser visto como "zZn [J#e// zZn

r:="ll; Py&nze"[o juízo da p]anta] (p. 366). O Juízoé, portanto, primeiro, a realidadeontológica
hl'-'i#ll em que o Conceito divide a si mesmo e desemboca em realidades particulares.
Ê isso que está na base do juízo em nossas mentes e na Eda. Por essavia, podemos
conceber o juízo como a ligação (Weró/ndKng)de dois conceitos separados,mas issoestá
totalmente errado; Êaer isso é não levar em conta o Eito de que o juízo é, no íündo,
separação, partição de uma unidade.
Há, obviamente, outra visão de juízo como separaçãoda unidade que também é cor-
rente no senso comum. Quando julgamos que a rosa é vermelha, apartamos em nossas
mentes mediante abstração o que, na realidade, é a realidade indivisível "rosa vermelha"
e a concebemos em duas partes ou dois aspectos que juntamos mediante o juízo. Porém,
essavisão também comete um erro por sua subjetividade. Ela não estátotalmente errada,
mas não se dá conta da dimensão crucial, que fazemos esseato de separação como reHexo
interior do ato ontológico que é original (wrxprü/zg#có).
l"H .:l Porém, obviamente, nem todos os juízos são realmente fiéis a esseato ontológico.
Consequentemente, há diferentes tipos de juízo. Porém, é importante perceber que não
são meramente várias formas de juízo subjetivo que não são fiéis ao juízo ontológico; a
118 11iilll Realidadetambém,
x\b,«lllLAclLl\. Lallll/çtll) \como já vimos,
vllxv Ja v lii \J ) é LAnl
um reflexo
x\-xxb mais ou menos fiel da divisão ontoló-
lÊIB $ ,$K
$.!
11111 .1RI Ricabásicado conceito. Quanto mais exterior ele 6or, quanto mais aproximado, inexato,
Bica
canto mais mesclado com a contingência. Consequentemente, haverá juízos imperfeitos,
lill ll i 1111 "inverídicos", que correspondem a realidades inverídicas.
Inverídica" é a palavra a ser usada aqui, porque já vimos que, em Hegel, a verdade é
correspondênciacom a ideia. Consequentemente deveremospreocupar-nos, no decorrer
desta seção, com algo bem diferente daquilo que comumente é chamado de verdade
do juízo, a saber,a sua correspondência com os fatos (com frequência, totalmente con-
tingentes). Hegel denomina essacorrespondênciade ".RlrófegÉe/í",exatidão, correção
Um juízo pode, por conseguinte,ser exato, mas aquilo a que se aplica é inverídico: por
l ii lil exemplo, que alguém estádoente ou que alguém roubou algo (.EZ,S 172, adendo): Esse
1 81 .11 conteúdo é inverídico, porque, nos dois casos,a realidade não estáem conformidade
com o seuconceito; ela é como não deveriaser.
O CONCEITO 343

exatamentecomo alguns conteúdos podem ser caracterizadoscomo inverí-


podemos caracterizar juízos que têm relação com eles como verídicos ou
não em virtude de sua correção, mas em virtude de sua espécie de objeto.
ir além disso e distinguir diferentes tipos de juízo por sua capacidade de
, verdade,isto é, de entrar em relação com objetos verídicos. Este seráum es-
no qual estaremostratando de classesde juízo, abstraindo do seuconteúdo
Porém, do modo mais enfático possíve], e]e não será um estudo 6orma] no
ou seja,que abstrai do fPo de conteúdo, pois os diferentes tipos de juízo
precisamente com base no que eles podem 22zrr sobre o mundo.
portanto, conceber a categorização dos juízos numa escala que representa
sucessivade juízos que possuem objetos verídicos, isto é, objetos que
conformidade com seusconceitos e que atestam essaconformidade. Para co-
""»

iuÍzos serão declarados inverídicos porque, a despeito de sua correção, eles não

usual

anui a forma básica'S é P', que Hegel especificaainda mais dizendo que ela conecta
h termoindividual a um termo universal,logo, significando "o (particular) é (univer-
nll".O motor da diabéticaé a falta de comensurabilidade dessesdois termos.
Comefeito,claramente não é verdadeiro que o individual é o universal. Consequen-
cmente,
háalgo contraditório no juízo e ele tem de ser transformado. Essemovimento
dialédco,
que foi retomado em sua essência pelos hegelianos britânicos, eoi muitas vezes
louvode zombaria, sendo tido como o resultado de um equívoco banal: a confusão
gere
diÉcrentes
espéciesde "é", ou seja, entre o "é" da predicação, o "é" da existência e
'é"daidentidade.
Paraque se possa ver como pede surgir a acusação de confusão trivial e também
)aca
respondera ela, deveríamos dar início ao movimento desta seção. Começamos
omo tipo mais baixo e simples de juízo, o que atribui um universal a um particular,
nmo,por exemplo, a rosa é vermelha. Podemos conceber essejuízo enEaticamente, por
imdizer,com uma ênfase de cada lado: ou a rosa como algo rico que contém muitas
determinações,
umas das quais é o Eito de ser vermelha; ou o ser-vermelho como extre-
mamente
rico, exemplificado inúmeras vezes, sendo essarosa apenas um dos exemplos-
Porém,
em ambos os casos, há uma incomensurabilidade entre os dois termos; eles não
úoequivalentes;
trata-se de duas realidades incomensuráveis que se tocam unicamente
Deste
ponto: a rosa é vermelha.

Oleitor incrédulo estádesculpadopor acreditar que é testemunha de uma simples


)nlLsão
entre o "é" da predicaçãoe o "é" da identidade. E claro que quando dizemos
quea rosaé vermelha não estamos dizendo nada sobre quais entidades são idênticas à
ion.A impressãode confusão é intensificada pela ênfase que Hegel póe na cópula. Ela
344 PARTElll l LÓGICA

carregao fardo de expressaro Ur/e// ontológico, que estána baseda existênciamesma


da realidade exterior, daí a cópula estar conectada ao mesmo tempo com o "é" da exis.
tência. Desse modo, isso igualmente parece se confundir na confissão geral. Porém, Q
que aqui parececonfusão nada mais é que o reflexo da oncologia de Hegel. Com efeito,
IP't»
se estamos examinando as formas do juízo quanto à sua verdade, isto é, à sua adequação
para expressarasverdadesbásicasda oncologia, temos, então, de examinar os termos que

B
/
r.t.}llptt
eles conectam a partir do ponto de vista de sua comensurabilidade. Na raiz de tudo está
uma ideia que divide a si própria em realidade exterior, cuja realidade,não obstante.
permaneceidêntica à ideia. A subjetividade tem de ser corporificada de tal modo que
F
ela é e não é sua corporificação exterior. Juízos realmente verdadeiros são os capazesde
l captar essaverdade. Mas então elestêm de ser do tipo em que os termos que elesconec-
i
tam são candidatosa essetipo de relaçãode identidade. Em outras palavras,à medida
t,.,ii...,iilli
que o juízo é capaz de captar a base ontológica das coisas (e um juízo í/ngzlZar não pode
I'"' .üP'
realmente fazer isso), é preciso que ele seja /nfer .z/fa um juízo de identidade, um juízo
em que os termos que ele conecta são idênticos num sentido relevante. Cllaramente, não
temos isso em juízos de qualidade como "a rosa é vermelha". Consequentemente, eles
ainda padecemde incomensurabilidade.
Isso signiâca que Hegel estariapressupondo a sua oncologia em função do argumento
nessesegmento, possivelmente porque ele pensa que ela já Êoi estabelecida nos livros an-
teriores da Z,OWca?
Pode até soar assim, às vezes, visto que a discussãoque Hegel Emdo
conceito subjetivo é permeada com termos que ele desenvolveu nos livros anteriores. Não
há como ter certezado que Hegel pretendeu emprestar, seé que pretendeu, do argumento
que precede estelivra. Porém, não parece provável que ele estivessesimplesmente suprindo
a conclusão a partir do seu argumento anterior e trazendo-a para a dialética do Conceito.
Antes, o que parece estar na base do motor dessadiabética é a tentativa de alcançar
um padrão de pensamentorealmente adequado sobre o objeto. O pensamentoreal-
mente adequado não relacionada apenas algum aspecto superficial do scu objeto, mas
revelaria a sua estrutura essencial.E em virtude desserequisito que podemoscensurar
juízos de qualidade correios, perfeitamente comuns, de serem inverídicos por causada
impossibi[idade de situarem seus termos numa re]açãode identidade ("Tã] qualidade
singu[ar não corresponde à natureza concreta do sujeito" [/[.[, S 172]).
Para Hegel, a propriedade básica do pensamento realmente adequado é a necessidade
cabal. Esserequisito será a base real da incomensurabilidade, como ainda veremosde
modo mais claro. É certo que esserequisito igualmente estávinculado com a ontologia
de Hegel e é improvável que seja sustentado por alguém que não compartilha dela.
Porém, Hegel provavelmente não o viu tanto como um corolário a ser deduzido de sua
visão das coisas, mas mais como um requisito inescapável do pensamento sobre qualquer
teoria. Retomaremos a isso mais adiante.
Hegel inicia a seção sobre o Juízo qualitativo com enunciados como "a rosa é
vermelha", os quais ele chama de positivos. Porém, a incomensurabilidade força-nos
O CONCEITO 345

o particular não estárealmente relacionado com o universal. Cada


só para si, é idêntico só a si mesmo;o particular é o particular, o
é o universal. E essaevocação da identidade leva-nos à próxima categoria,
reHexivos.
acompanharaqui os detalhesda exposiçãode Hegel que nos leva
um grande número de diferente formas do juízo -- juízos da reflexão,juízos
juízos do conceito. O tema contínuo é a incomensurabilidade dos dois
posterioresdessadialética estabelecemainda mais claramente a conexão
de incomensurabilidade e a ontologia de Hegel. Por exemplo, os juízos
-- como, por exemplo, "o ser humano é um animal" ou "o ouro é um
sãonecessáriospor aliarem as espéciesao seu gênero. Porém, eles continuam
porque não remetemo movimento na outra direção, na qual o gênero
a si mesmo como espécie. O ouro é necessariamente um metal, mas não há
necessidade
de que o metal tenha o ouro como uma de suasespécies,isto é,
® é necessárioque o ouro exista.
[ Aincomensurabilidade básica dos termos no Juízo poderia também ser descrita como
idadeda cópula "é" de ligar dois termos realmente comensuráveis. A resolução
k= tradiçãosó acontece quando substituímos a cópula simples por uma inferência;
$secaso,não temos mais apenas 'S é /", mas 'S, gz/a X é /". SÓ um juízo com essa com-
lexidade,
queHegel chama de apodítico, pode realmente revelar a conexão entre S e /'.
Emoutraspalavras,do começo ao fim do Juízo o "é" não expressoua realidade plena
darelação
ontológica. Ele constitui a ligação entre dois termos, mas não chegou a expres'
wtodaariquezae concretude dessaligação. Ora, isso passaa ocorrer no juízo apodítico,
ussedá pelatransformação dessaligação de um simples "é" para uma especificação
mediadora.
Por exemplo, em vez de dizer apenas "a casa é boa", passamos a dizer "a casa,
onstruída
destae daquela maneira, é boa". Contudo, essepreenchimento da cópula
onverte-a
numa inferência. Transcendemos, portanto, a esfera do Juízo e ingressamos
iadaingerência
ou do Silogismo, como Hegel a denomina.

SILOGISMO

OSilogismo
une Conceito e Juízo.E ele também tem de ser visto primeiro como
itologicamente
fundado. Como diz Hegel na nota a .Elt, S 181: "Tudo é silogismo".
0JuÍzoé ontológico porque o conceito sempre se externa ein corporificação exterior.
f)rém,chegamosa um quadro mais verdadeiro, mais completo da realidade com a ver-
loontológicado Silogismo.
Pormeio de sua divisão, o universal é conectada com o exterior plenamente exig-
ente,com a realidade plena do particular. Por conseguinte, realmente necessitamos de
xstermosparaapreendera realidade.Há (1) a unidade interior das coisas,que pode
tr tomadacomo o universal;há (2) a divisão, que é sempre em dois termos opostos,
hjarelaçãoconstitui(3) uma totalidade que é a exteriorização do universal inicialmente
346
PARTElll í LÓGICA

indiferenciado. Cada um dessestermos pode ser tomado, então, como nosso ponto de
partida e, como tal, relaciona-secom o outro termo por meio do terceiro.

ÜF"
\l.Pdrr r'
...f'q»il iF#l

tlHi!! F..h":

í IÍ:it.
'..::::
.lk:

' IPZ,vol. 11,P. 351; cfl tambémEZ, S 192


O CONCEITO 347

duaslógicas,Hegel é um tanto ríspido com o sentido comum do seu (e do nos-


até aceitar o silogismo como a alma do raciocínio, como uma ativi-
não o vê como uma propriedade ontológica dos grandes objetos
81 nota; cf também WZ, vol. 11,p. 308-09), que são Deus, liber-
etc. Porém, tudo é Silogismo porque a realidadesubjacente,em última
só pode ser entendida como uma triplicidade de termos, um dos 3
todo, enquanto os outros dois representama realidadedessetoda :>

de dividida em dois termos opostos, ainda que mutuamente dependentes,


como totalidade perfazem o todo. De fato, é mais verdadeiro dizer que todas
.8

são um sistema de três silogismos ou dizer que tudo que é m/ré#có reflete
o conceito.'

sendo, a verdade do Silogismo é que cada termo é realmente o todo, é realmente h


''\.

interior dos outros dois, não só exteriormente em nossareflexão, masem si.


formas de silogismo são expostaspor Hegel com a dupla pretensão de
'}
a usual tabela de distinções e de mover-se através delas como formas cada vez
verdadeirasaté à transição final para fora da subjetividade. Uma vez mais, não
em detalhes o desenvolvimento através das diferentes formas de
do desenvolvimento nesse ponto, a efta em cada forma sucessiva

impele para uma forma mais elevada, é a ausência da necessidade. Um silogis-


ou uma inferência pretende mostrar uma conexão entre dois termos extremos, e se
conexão6or meramente afirmada, se as premissasforem contingentes ou estiveram
apoiadas em raciocínio adicional ou pior, seelas pressupuserema conclusão, a inferência

apTO tanto imperfeita.


0 que se demanda do silogismo aqui é algo que não exigimos usualmente das
nossas inferências: não apenas que a conclusão decorra das premissas, mas que estas

mente estejam fundadas na necessidade.O que está sendo procurado e o que


HeaelaÊrma ter encontrado(de modo um tanto implausível) no silogismo "disjuntivo
- éa forma da necessidade autossubsistente, a necessidade do raciocínio que não requer
postulado,
na qual o quc quer que estejadado no princípio tem de ser demonstrado a
partirdo sistema.Por essecritério, até mesmo juízos do tipo "o ser humano é um mamí-
fero"não logram prover aspremissasadequadas,pois -- como vimos anteriormente -- ao
passo quenão sequestiona que o ser humano é um mamífero, não poderíamos formular
essejuízo sejá não existisseser humano.

Veremosexemplos disso adiante, na próxima subdivisão, como a nota a EZ,, S 198: o indivíduo (particu-
larlestáconectadapor meio do sistemade necessidades,
da sociedadecivil(especificidade)com o Estado
luniversal).Porém, ao mesmo tempo, a vontade individual é o que de fato póe as duas coisas em relação,
quesatisfazasnecessidadesna sociedade e confere o Direito à realidade dessasociedade. Porém, em terceiro
lugu, o Estado é o termo médio substancial que mantém tanto os indivíduos como a sua sociedade civil
num todo coerente
348 PARTElll LÓGICA

Porém, chegar a uma necessidadeautossubsistente em nosso pensamento é o m.s.


mo que lograr atingir uma visão da necessidadenas coisas.Sendo as conexõesRe.

t '.. ...ith
F.

' llliP::lí
«i' serventia para nós. "
Í'"ÍI .iUI
,Agora, obviamente, já vimos essanecessidadeontológica, manifestada no desenvolvi.
mento das nossas categorias indispensáveis do Ser e da Essência. O que estivemos Emendo
nessepnmetro segmento da Lógica do Clonceito eoi mostrar como a mesmavisão surgea
pa'tir de uma investigação das categorias nas quais descrevemos o pensamento. Exatamen.
te como as categorias da realidade sob investigação se movem na direção de uma manifes-
tação da necessidadeinterior, assim também as categorias do pensamento sob investigação
rumam para a culminância correspondente da necessidade autossuficiente.
Por conseguinte,desde o estágio em que o Conceito se divide no Juízo, fazendo
referência a particulares no mundo, estivemos acompanhando o desenvolvimento do
pensamento sobre a realidade. E essedesenvolvimento 6oi sustentado pelo objetivo de
egar à necessidade autossuficiente. Essaâoi, então, a base real da ncomensurabilidade
que Hoio motor da diabética.É por isso que a não identidade de sujeito e predicadono
juízo simplesda qualidadeos tornou incomensuráveis(já que a identidade em certo
sentKlo e concebidapor Hegel como implicada na conexãonecessária).Foi issoque nos
forçou a avançarpelos diferentes níveis (io juízo e para além dele até o silogismo
Consequentemente,essedesenvolvimento pode ser visto como impuo'nado pela
contradição. Com efeito, sepensarmosque o objetivo ou o padrão " jade pelo l -
samento é a necessidadeabsoluta, então todos os juízos e raciocínioscontingentes são
autofrustrantes. Sem dúvida, é assim que Hegel os concebe. A essência do pensamento
é a racionalidade, e a racionalidade chega à sua expressão plena na necessidade. Uma ve:
que issoé aceito, a dialética de Conceito, Juízo e Silogismo tem alguma chancede se
manter em pé como diabéticaestrita. '

Porém, a questãoé se essepadrão é aceitável como o padrão definidor do pensamen-


to. E em virtude do .que se deveria aceita-lo? No caso da ZlcÜlca,ele poderia ser justi6cado
como decorrenciados livros anteriores.Essapode ter sido a justificativa de' /'el Po-
rém não acho que essaquestão estivessetão claramente respondida na mente 'oHegel;
'DV')
e creio que ele pelo menos chegou perto de pensar que a necessidade aurossuficiente
O CONCEITO 349

erauma das propriedades que servem de critério do pensamento. E, nessecaso,


racional
a diabética do conceito subjetivo seria uma diabética que autentica a si mes-
te independente da que a precedena Z,(Üfca.Hegel teria sido encorajado

convicção pela reflexãode que nosso pensamentonão se satisfazfacilmente com


raramente contingentes, que ele procura em toda parte por uma razão.
c.rrelaçóesP
porém, qualquer que tenha sido a fiindamentação do seu princípio, a diabéticadesse
move-se rumo à culminância no pensamento racionalmente necessário. E,
segmento
vistoque essaculminância é inseparável de uma visão da necessidaderacional nas coisas,
õte é o ponto em que podemos dizer que a subjetividade seconverte em objetividade.
Em Hegel a "subjetividade" possui duas aplicações. O absoluto é sujeito, e do tipo
suaprópria corporificação.Nessesentido, a realidade é, em última instância,
que póe
dade e estaé uma categoriaúltima. É nessesentido que todo o terceiro livro
subjetiv]
da Lógica é também chamado de "Lógica Subjetiva". Porém, a palavra também pode ser
w,da de modo um tanto parecidocom o sentido comum, no qual contrastamoso que é
"meramente subjetivo com a realidadeem oposiçãoa ele. Esseé o sentido que o termo

possui
nesseprimeiro segmento do terceiro livro, cujo título é "Subjetividade
Esse segundosentido, no qual o subJetivoé menos do que o real, é inadequadoao
real, possu um uso perfeitamentelegítimo. Ao longo desseprimeiro segmentoestive-
m.- examinando modos de pensamentoque são subjetivos nessesentido inadequado.
Correspondendo
a essepensamentoimperfeito há, como também vimos, a realidade
impeúeita,que igualmente EHha em ostentar a necessidade completa. Porém, quando o
pensamentoestá à altura da necessidade perfeita e, em consequência, de uma visão do
fundamento
ontológico das coisas,ele deixa de ser unilateralmente oposto à realidade.
Elesetorna uno com a subjetividade cósmica que está tão longe de ser destituída do real
equeé menos que o real, que ela de Eito produz o mundo a partir de si mesma.
O pensamentosubjetivo passaa ser a sua perfeição na obJetividade não só por deixar
deserdistinto da realidadepelo fato de ser inadequado a ela, mas também no senti-
do forte de que ele volta a conectar-se com a subjetividade absoluta que "passa a ser"
realidade
no sentido de pâr a realidade.
Issolembra fortemente o argumento ontológico. E Hegel é o primeiro a reconhecer
e saudaressareaproximação que cle evoca no texto. Porque é óbvio que o argumento
ontológico,
de fato, tem fundamentose Ihe conGerirmosa forma carreta.Temosaqui
aformacarreta. O absoluto, enquanto Conceito não só na mente de alguém; neste
ponto,Anselmo ainda é inadequado --, deve passarpara a existência. Porque o Concei-
to, apropriadamente entendido, é uma necessidade conceptual autossubsistente, e isso
requerconcretizaçãona realidade. E entender o Conceito é entender que ele só pode ser
esse
tiPO de necessidadeconceitua]. Porém, obviamente isso só se aplica ao Conceito,
aoabsoluto,ao conceito do todo ou à ideia de Deus na linguagem tradicional. Essane-
cessidade
de existência não cancela a contingência, como já vimos, e, em consequência,
grandes
quantidadesde coisassão totalmente contingentes e sua existência não está
PARTElll l LÓGICA

contida em seu conceito, como os cem dólaresna minha carteira, que obviamente -:
possuem conexão necessáriacom os cem dólares na minha menu( "' "aa

:=,::='.:::1
==1=:';:1:;=:
:e=':,==:'::á:E:;T
'.
universo,como o ser humano: a sua necessidadesó decorredo todo não -----w qO
fe# conceito, se o concebermos coma .-nnrPit,- ....;H.l.. .. .'J' J. ' pçuU aO

$iK&;iEl RGillT 14n ilÜU


I' .' il .'." pes' contra elementosparticulares na medida em que estessãotomados abstratamente
L.i l$11;:11 :ndeocnnr.irnéçpn. ueé.o D tomaasimesmocomoumaabstração,é
lii ill ==:
itll liii#.:::::
==='::i::: ,l,==i::i:'T!:::w:''-«:-«-«
ponto aplicado ao argumento ontológico, a prova do todo.
...-«.=:

ll :
lll l ll ==
: l:HI 111i:E'Çi;$Ç
:=1=:'==::,1='!:=':;::::T:.=:::?,';j:
iin
= ::!:!y'.p::.:«=
mundo comor., do ordenado, e essenão.:o Deus cultuado pelos cristãos. Porém, Hegel
especificamenteaponta que todo o centro comprobató'-- r''ar' '' omitido, ea
conclusão acabou de ser dnd, n, n...i... ,...-m:... J- .... . ...:..'. : .
conclusão acabou de ser dada na premissa anselmiana de que a existência tem de per-
tencer ao mais perfeito. Ou, caso se argumente em favor dele, isso é deito baseadoem
que a existênciaé de modo geral a perfeição, o que convida à réplica kantiana. O que
se necessita é formular o conceito do infi b ',v"--"- d t':Piit-'t Kauuuld. \.J que
de um mndn mil:. nãn ep ami-, .. Gn;.-. T.. no qual ele.deve existir necessariamente
um modo.que não seaplica ao finito. Isso estáconectada com a outra Edhada pro-
va tradicional que consisteem começar com um conceito em nossasmentes.A prova

reamente acompanha, , sdobramento da existência a partir do conceito ontológico.


Conseau nnssnente, na ,. coWascenzZ2. ele.pressupõeas outras provas da existênciade
[)eus, ao passoque, na ráfia riir#z#, ela é realmente primária.
Essaúltima reflexãonos coloca em condiçõesde ver ainda mais claramentecomo
Hegel tem objetivos contrários aos da lógica formal, no modo como estacostumaser
entendida. As "formas" de pensamento são classificadasde acordo com suasfiinçóes no
raciocínio pelos dois tipos de estudo. Porém, para Hegel, o raciocínio atinge a sua cul-
minância na necessidadeautossuficiente, que é o mesmo que a visão da necessidadenas
coisas. Consequentemente, a 2Zm.zrcóebásica da lógica 6orma] não é rumo ao abstrato
a partir do conteúdo. Pelo contrário, a marca distintiva das formas imperfeitas é que
forma e conteúdo não são unidos, que eles são «meramenteformais". A medida que
ascendemosna escalarumo a formas cada vez mais adequadas,distanciamo-nos daquilo
l #l :ll que a lógica formal comum aceitariacomo critérios formais de distinção. Não estamos
11 11 11; mais tratando das fiinçóes preposicionais que poderiam tomar qualquer coisa como seus
111 Ê li argumentos. Antes, a busca por uma "forma" adequada no sentido de Hegel (necessi-
dade racional) requer que ponhamos restrições aos conceitos que podem caber nela.
O CONCEITO

Po conseguinte,o juízo da reÊexãoou o silogismo da necessidadesão parcialmente de-


h uspor seusobjetos. E a forma final perfeitamente adequadasó é exemplificada na
ria visão ontológica de Hegel.
pr'
)r conseguinte,a parte "formal" de sua lógica e a ciência usual da lógica formal
6t emtrilhos completamentediferentes. Porém, issonão quer dizer que elas possam
col ir pacificamentecomo duas empresastotalmente independentes.Há uma ques-
tãc losófica envolvida. Em primeiro lugar, a empresade Hegel só adquire viabilidade
a mesmosentido mediante a sua visão ontológica. Ê porque a forma já é imanente
)nteúdo (a necessidade existe nas coisas) que Em sentido tentar extrair o conteúdo
da ,rma(desenvolvercom critérios formais um pensamentoadequadoà realidade).E,
rec -rocamente,
embora não neguea validade da lógica formal comum, Hegel náo tem
COJ .o náo depreciar sua importância. Ela máo é a ciência do raciocínio em seu mais alto
Hegel de Eito teria mostrado satisfação com os desenvolvimentos modernos, nos
qu a lógicamostrou estarem continuidade com o pensamentomatemático, visto que
ele ;empreclassiâcoua matemática como a mais exterior das formas de pensamento,
in- de rea]mente apreender a estrutura conceitua] das coisas.
Porconseguinte, na dialética do Conceito subjetivo chegamos à mesma conclusão
resultou da dialética do Ser e da Essência, a saber, a visão da totalidade do real que
é liíestaçãoda necessidaderacional. Tínhamos de provar isso também a partir do
pei lento subjetivo. Porque, seestivéssemoscarretos ao dizer que a realidade chega a
ost luara necessidadeconceitua], então o nosso pensamento conceptualdeveria apontar
pai umafinalização no raciocínio incondicionalmente necessário.Isso também já 6oi
ki p,e agoraretomamos à totalidade autossubsistente,à realidade imediata

que emergiu por meio do cancelamento (Hze@fózf/lg)


da mediação, um ser que
também é idêntico à mediação,e [que] é o Conceito que construiu a si próprio a
partir do e no seu ser-outro. Por isso, esseSer é a realidade (Saróf) que é ún z/ Z
.Pr i/có -- Objetividade.(WZ,vol. 11,p. 352):'

ll:OBJETIVID,âDE

O Conceito, por conseguinte, passaa existir como objetividade. A busca pela necessi-
autossubsistente só chega ao seu término numa visão da realidade como totalidade
pária.Retomamos, portanto, em certo sentido, à visão das coisasque tínhamos no
daSubstância.Agora, porém, estamosem condiçõesde retrata-lade modo bem
rico e completo.
O que aprendemos por meio do Ser e da Essência foi que a realidade constitui
totalidade governada pela necessidade e que manifestou essanecessidade. Porém,

luzido a partir da tradução inglesa.(N. T.)


35z
PARTElll l LÓGICA

inseparável da exterioridade. ' "' '

O que obtivemos disso, no entanto, foi que essa realidade, enquanto necessidade
absoluta ou incondicionada, é estruturada por conceitos. Isso nos levou a examinar
o pensamento subjetivo conceitual, e descobrimos que este também era conduzido
/
por .um padrão interior para o que passoua ser autoconscientementea visão de uma
h
totalidade necessáriaautossuficiente. Porém, sabendo agora que essepensamento sub.
F jetivo chega à mesmaculminância que a realidade, que o conceito na mente é funda.
l
mentalmente idêntico ao conceito ontológico, somos capazesde tirar proveito do que
/:.

aprendemos sobre as articulações do conceito subjetivo para derivar alguma a.ticula.


ÍllJ.. llllli.K. ção necessáriado real.
í''' .i#'
E o que Hegel passaa fazer.O que anteriormente conhecíamossó como totalidade
governadapela necessidadeé visto agora como uma estrutura com níveis. A realidade
necessariamentemanifesta diferentes níveis do ser.A dialética da Objetividade deriva.
os em ordem ascendente.

Os estágios pelos quais passamos são chamados por Hegel de "Mecanicismo", "Qui-
mismo" e "Teleologia". Porém, não devemos supor, a partir dessestítulos, que estaremos
envolvidos numa investigação de teorias mecânicas e químicas. Estassão tratadas na fi-
losofia da natureza. Estamos lidando, antes, com certos modos muito gerais de conceber
a objetividade, que têm aplicação, respectivamente, nas esferasmecânica e química, mas
também cora delas. Por conseguinte, o modo mecanicista também se aplica a certasfiin-
çóesda mente, como quando aprendemos de cor; e o "químico" nessesentido é visível
na atração entre os sexos.ii

Todo o movimentodessadivisãovai da exterioridadeda conexãopara o tipo de


necessidadeintrínseca com que nos deparamos na vida. Com efeito, esta seçãoseráfina-
lizada com a Teleologia Interna, que é a categoria mediante a qual entendemos a vida,
e a próxima parte iniciará com o tema "vida". Porém, durante o percurso, Hegel quer
recolher os diferentesmodos de conceber a objetividade, os quais também têm o seu
lugar óbvio e que estavam presentes nas ciências do seu tempo Alguns dessesmodos nos
parecem um pouco esquisitos por pertencerem à ciência do seu tempo, ou a uma escola
especulativadentro dela, mas não à nossa.

O motor dessedesenvolvimento é a "contradição absoluta" (EZ, S ] 94) que con-


siste no fato de que o real é, ao mesmo tempo, uma totalidade cujas partes estão,
portanto, interiormente relacionadase que, náo obstante,também é constituído de

'' Faz parte dessecontexto a noção de afinidade, que desempenhou certo papel na vida literária daquele
período. Cf a novela de Goethe intitulada HIPpzlcZzzÜx
Eb//z, [ed. bus.: São Pau]o, Nova A]exandria. 2.
ed., 2008].
O CONCEITO 353

W são independentes e integrais (se/ófí2mzlCÜ-


##d z,aZhí2/zzlCÜ).
Porque ele tanto
i mediação e relacionalidade, como também objetividade, imediatidade e exte-
ade. Visando satisfazer plenamente essasduas descrições opostas, a realidade tem
em diferentes níveis.
dearticular'se
Começamoscom as coisas na condição de puramente exteriores e independentes.
coisaé exterior e indiferente às demais. Porém, isso quer dizer que ela é um mero
.3

do em si mesma,porque não há razão para traçar os limites de uma coisa ou objeto


clnqualquernível dado. Consequentemente, cada objeto é, ele próprio, um agregadode
)

objetossemconexão intrínseca. .Ji

MECANICISMO
Esseé o nível do mecanicismo.Nessenível de imediatidade e exterioridade, a
coisaéindiferente às suaspróprias característicasou, formulado de outra maneira,
suas característicasocorremjuntas nela semqualquer necessidade interior. É por
essarazãoque temos de explicar essascaracterísticas por meio de algo diferente; as
relaçõesde causaçãoque explicam o que existe são exteriores, forâneas a ela (WZ,
vol.11,p. 360). Consequentemente, o mecanicismo reconhece só a causaçãoefi-
ciente,que ê sempre a causaçãoentre termos que estão apenascontingentemente
conectadose identificados, como demonstrou Hume. Até mesmo a causaçáo"den-
tro"deum objeto acabasendo, quando investigada, uma relaçãocausal entre partes
separáveisdesse objeto.
Issoproduz a visão do determinismo, no qual as características de um objeto são
explicadas
por outro, e este,por seuturno, por outro, e assimpor diante, até o infini-
to, no mau sentido.

Porém,essenível das relaçõescontingentes, puramente exteriores, não pode ser tudo


oquehá para dizer. Com efeito, sabemos que as coisas estão relacionadas também inte-
riormente,
por necessidade.Consequentemente, essenível não pode subsistir sozinho,
masrequeroutros em que a relaçãoé progressivamenteinteriorizada. O objeto [em de
tornar-se
mais central. Ele deve desenvolver maior coerência interior e demandar, de
acordo
com sua natureza, estar relacionado com outros de certo modo.
No cursodessainteriorização, Hegel nos leva atravésde uma quantidade de está-
gios,cadaum deles correspondendo a um aspecto óbvio da realidade de acordo com
aciênciaque ele tinha como válida. Por conseguinte, deslocamo-nos do objeto que
cpuramenteindiferente às suascaracterísticase que, portanto, não oferece qualquer
resistência
à comunicação de tais propriedades imponderáveis como movimento, ca-
or,magnetismo,cargaelétrica,:: rumo ao objeto que possui certo caráter definido e,
emconsequência,oferece resistência a influências de cora, as quais, por conseguinte,

InHuênciasanálogassão comunicadasna esferaespiritual entre pessoas,como se fosseum meio que não


[crcce
resistência,
como, por exemplo, ideias,estilos ( IVZ, vol. 11,p. 365-66).
)54 PARTE 111 1 LÓGICA

aparecemcomo força exterior.:SE a partir daqui nos deslocamospara uma interiori-


zação ainda maior em que um obJeto está intrinsecamente relacionado com outros,
como, por exemplo, no sistema solar, que não é meramente um amontoado de objetos
indiferentes, mas de objetos que estão ordenados em papéis definidos uns diante dos
outros; sol, planetas, satélites.t4
:....P....i=;.:
1 Porém, nesseestágio, a relação intrínseca com outros ainda não está na matéria mes-
ma do objeto: é verdadeque a Terra é mantida em órbita pelo sol, mas isso depende
de ela estar onde ela se encontra; a sua matéria não está por si mesma e exclusivamente
(.«i...«-.
i" relacionadacom essecentro. Assim, se a transportássemosaté o espaçoexterior, ela já
l «.Iti. .li« não estaria mais relacionada desse modo. Consequentemente, avançamos até o estágio
b.::::...IL:l
111 do (}uimismo, no qual vemos diferentes substânciasintrinsecamente relacionadasumas
Í ll l:;i:;i: com as outras, "tensionadas" umas na direção das outras com o ímpeto de combinar-se
Üi lllliiir::: a fim de superar a sua unilateralidade e tornar-se uma s(5substância neutra. A dialética
r .-'uf do Quimismo, que perfaz o capítulo intermediário dessa segunda divisão, deve-se em
grande medida a especulaçõesquímicas da época, do modo como coram assumidaspor
filosoâas da natureza contemporâneas. Clonsequentemente, essecapítulo é tão difícil de
acompanhar quanto é inconvincente. Ele termina com uma transição para a Teleologia.

[ELKOLOGtA

Chegamos aqui ao nível mais elevado de realidade que o mundo deve ostentar. Com
efeito, na teleologia temos a mais plena corporificação da necessidadeinterior. Estamos
pensando obviamente na noção de teleologia interna, derivada de Aristóteles.:s Porque
essaé a noção de sentido ou propósito que é inerente ao próprio obJeto. O propósito é
a sua essência,a sua caracterizaçãomais profiinda. A Teleologia Interna é, portanto, a
categoria de que necessitamospara caracterizar o sistema da necessidadeabsoluta que
temos diante de nós desdeo final da Essência.

} No domínio humano, isso toma a forma do destino: cf. WZ, vol. 11,p. 370, onde Hegel ressaltaque os
H H ll objetos naturais sucumbem de maneiraexterior e contingente, porque exterioridade e contingência sãoa sua

ll' lI' :;:;H;;;;:,.;!;:l=1::;KR=:;=H =::=::=='==:r='1::=':::=:


:==::;="= =:=::,=:=:====='====:::
gênero pela ação particular do ser humano. Por conseguinte, para o ser humano, o que acontece com ele, o
que o arruína [em significado para ele, razão pela qual ele possui um destino, o que as coisas não possuem.
'4 Hegel Eda que as relaçõesentre estesexemplificam três silogismos em que cada um é, por seu turno, o
termo médio; isso é análogo ao indivíduo na sociedade civil e no Escada.
' Hegel dá o crédito a Aristóteles, mas também a Kant, porque Kant, na sua terceira Crúíra, teve a ideia de
uma unidade entre conceito e intuição em que os dois não estavamseparados,mas fundidos. O conteúdo
não é meramente um exemplo subsumido num conceito geral, de modo que os dois permanecem separados,
mas a forma é de algum modo intrínseca ao conteúdo; ela não seria a mesma sem esseconteúdo particular.
Porém, Kant obviamente é repreendido com severidadepor manter o seu juízo reflexivo separadodo juízo
determinante e por recusarà teleologia um lugar e, de fato, o lugar de honra na ordem das coisas-
O CONCEITO 35 5

Emboraa categoria"Vida" só venha depois da Teleologia e à parte dela, as coisas


vivas' concebidas à parte de uma possível redução ao mecanicismo -- proveem o melhor
exemploda categoria hegeliana neste ponto Com efeito, as coisas vivas possuem a forma

liberdadepara eles.
.g

Os requisitosde toda forma de vida podem explicar aros ou processosparciaisno


organismo
como algo necessáriopara o todo. Porém, essaexplicaçãonáo dá conta de
'h

<

um cabosimplesmente relacionando-o com outro, como acontece com as explicações '}

formuladas
em termos de causaeficiente. Ela relaciona essebato com um propósito; ela
dáuma razão p'ra ele. Ela confere o sentido que está por trás das coisas.
l Explicação teleológica é explicação a partir da totalidade. Os processos parciais são
jcplicados por seu papel no todo. E, por essavia, também o e:r?#caaZam e o e=?#canJ
náosãorealmente distintos, visto que o processo explicado Êazparte do que o explica.
Teleologia é, portanto, uma categoria com a qual podemos explicar o tipo de totali-
dadeque Hegel tem em vista. Porque ela é constituída de realidades exteriores, indepen-
dentes,cuja implementação não obstante segue uma necessidade, a qual, porém, náo é
imposta
a partir de cora, mas é inerente à própria realidade exterior. Essanecessidade
jcomo que a forma de vida do todo. A teleologia interna é, portanto, a forma mais
jvaaa de conectividadeinterior que a realidadeexterior pode ostentar. É, por isso, o
termoculminante dessedesenvolvimento que começou com a indiferença puramente

Cxecanicismo
formal até a AJgamade níveis do ser que o universo deve conter vai desse

Id, sa noção inadequada é a Teleologia Externa -- que obviamente também é exemplifi-


I' "mo um nível subordinado da realidade. Trata-se da categoria em que examinámos
356 PARTElll l LÓGICA

ascoisas como a concretização de fins que lhes são exteriores. A teleologia externa tem
seu lugar, por exemplo, nos arteEatose feitos do ser humano. Construímos casaspara
morar, cultivamos alimentos para comer e assim por diante. A "teleologia" de uma casa.
de um carro, de um campo de cereal (a sua Zzaecêm.@;lg#e/r)reside fora deles; ela tem d.
ser posta em relação com outro agente.
Como sempre, Hegel acredita que os princípios básicosde sua ontologia estiveram
por longo tempo presentes de forma confusa nas mentes das pessoas.E uma das Visões
:: ':$1:: confiisas, que reúne tanto o sentido de que a teleologia é uma importante categoria com
(,.
..rKptrr} tipplll a qual se pode entender o todo como a visão própria do senso comum, compartilhada
FI.l.ii..ilb
pelafilosofia do entendimento, de que forma e conteúdo têm de serseparados,é a visão
!,:::: ..llL:
do mundo como o produto de uma teleologia externa, a de Deus.
Hegel recrimina essanoção de Providência, particularmente as suasvariantes cor-
rentesnum certo deísmofácil, otimista, do séculoXVlll, e prefere tomar o partido do
mecanicismo contra ele. Ele explica que, no plano do Eito real, essanoção leva à atri-
buição de toda sorte de propósitos particulares totalmente ridículos a Deus na tentativa
de explicar o mundo em seusdetalhes. Isso acaba gerando todo um conjunto ou uma
grande quantidade de fins desconexos atribuídos à divindade, ao passo que as demandas
da razão estão voltadas para um rodo conexo. O mecanicismo pelo menos tenta nos
oferecer isso (WZ, vol. 11, p. 385-86). .Além do mais, a Teleologia Externa não leva de
fato a uma explicação plenamente necessária mediante razões, porque as razõesde Deus
permanecemdesconhecidas.Consequentemente,a contingência tem a última palavra.
Nesse tocante, o mecanicismo náo se sai melhor, mas ele tampouco pretende oferecer
uma exp]icaçãoreal mediante a razão.Assim, a Teleologia Externa é pior do que ele,
porque se porta como se pretendesse fazer isso, ocupando o lugar da razão sem ser capaz
de manter a palavrae fazer melhor que o mecanicismo ou pelo menos igual a ele. 'IA
teleologia externa é o estágio imediatamente anterior à Ideia, mas o que se encontra no
limiar é, com frequência, precisamenteo menos adequado"(.ÊZ,S 205, adendo).''
Hegel quer, portanto, transcender a Teleologia Externa e chegar à Teleologia Interna.
A Teleologia Externa ainda mantém a separaçãode conteúdo e forma (,ÉZ,S 205). Todo
o interessedespertado pelaTeleologia Interna Goiporque ela realmente une a necessidade
com aquilo em que ela opera, porque a forma era inerente à matéria, como vimos na
análise da coisa viva. Porém, essacaracterística que Ihe proporcionou um lugar na ex-
plicação hegeliana do absoluto perde-se na Teleologia Externa. Nessavisão, eu me vejo
contrapontoa um mundo exterior. Tenho, em primeiro lugar, um objetivo puramente
subjetivo, e o torno efetivo. Assim, a Teleologia Externa pressupõedesdeo início uma
separaçãoentre matéria e a forma a ser preenchida. E essaseparaçãonão é realmente
superada,visto que a forma é apenasalgo que imponho a uma matéria preexistente;ela
não provém daquela matéria mesma. Digamos, portanto, que eu construo uma casa.

ióTraduzido conforme a tradução inglesa. (N. T.)


O CONCEITO 3S7

materiaisque entram na feitura da casasão formadospor mim, mas essaforma


aneceexterior a essesmateriais; ela não é resultado de uma autoGormaçãoda parte
les,como se dá no crescimento de um organismo vivo. Minha interação com essesma-
sé puramente exterior, pertencendo aos domínios do mecanicismo e do quimismo;
,rma lhes é conferida a partir de fora, e eles permanecem "indiferentes" a ela.
Issoé verdadeiro não só para a nossateleologia externa, a dos nossosobjetivos finitos,
também para a explicação teleológica das coisas mediante as intenções de Deus.
e6eiro,os objetos que Deus faz para servir a um certo propósito permanecem, nesse
}

tudo,"indiferentes" a esseprop(5sito.Ele não procededeles. E por issoque o propó-


pe'maneceoculto, a não ser que cheguemosa entender o serque os eez.E uma vez
:, com basenessavisão, não podemos entender Deus, o propósito permanece oculto
sempre;algo que Hegel não pode aceitar.
Nosnossospropósitos particulares, o fim é finito também em outro sentido. Trata.se
um fim particular, não do fim do todo; e por isso não é algo que justifica a si mesmo.
m propósito que imponho às coisas,mas não um que se origina delas próprias. E
itrário. Pensoque é issoque Hegel estádizendo quando afirma que o produto de um
Íetivo finito é, ele próprio, um meio, e que isso é a raiz de um regresso infinito (lyZ,
11,p. 397) Enquanto estivermoslidando com objetivos exteriormente impostos,
objetivosque pressupõeum objeto independente a ser trabalhado, dizer o que é
e o que é meio constitui algo arbitrário e subjetivo, dependendo do agente que está
ido. Cultivamos grãos visando Emerpão e comemos pão para viver; e vivemos para
1?Viver talvez seja o fim; mas então comer é apenas um meio para chegar lá ou é parte
?Ou, formulando o ponto de outra maneira, o que quer que decidamosconsiderar
100 fim pode, por ieu turno, ser questionado.Por que buscarisso?Não chegamosa
fim último que seorigina da natureza mesma das coisas, como na teleologia interna.
Porém,junto com a teleologia externa da vida cotidiana, ou subjacente a ela, há uma
lograinterna do todo, a qual engloba a nossa atividade que concebemos em termos
fins finitos. Essa transição obviamente é impulsionada pela necessidade de apreender
etivamenteuma necessidadeinerente que só podemos encontrar, em última instân-
nateleologiainterna. Hegel Eaza transição mediante o uso do conceito dos meios.
Osagentesfinitos usam meios para alcançarseusfins anitos. Isto é, elespegamuma
ío do mundo externoe a aplicam em outra porçõespara implementar o seupropó-
Elesusam ferramentas, por exemplo. Por essavia, alguma parte do mundo é incor-
a em sua atividade, sendo assumida na ação ( 7ZrlgÉe/í). A concretização de um fim
to é como um si]ogismo no qual o agente se relaciona com o objeto através dos meios.
Ora, a relação entre agente e meios é, no começo, meramente exterior e mecânica;
eiaconsequentementedeve apontar para um relacionamento mais íntimo. Parte
queHegel parece estar dando a entender é isto: há uma certa incoerência na ideia
meioscomo exteriores ao agente se quisermos leva-la até as últimas consequências e
i6car como meio tudo o que serve ao fim. Com efeito, para usar meios mecânicos
358
PARTElli l LÓGICA

no mundo, o próprio agente precisa ser um corpo. Porém, não podemos entender esse

corpo estritamentecomo um utensílio e tudo o que ele Êazcomo simples meios,porque,


nessecaso, nada restaria do agente. Por exemplo, há certos fitos primitivos que não mais
podem ser decompostos, não podem ser entendidos como resultado do desempenho
de outros atos. Essespodem ser vistos como meios, mas não como meios separadosdo
P' agente. Ele não está manipulando essesaros; sua manipulação das coisas simplesmente
ro/zslsre
nessesfitos. Issoe pontos relacionadoscom issotêm sido exploradosna filosofia
contemporânea. Deslocando-nos para o plano externo, podemos ver que alguns desses

fitos primitivos incluem nossahábil manipulação de certos utensílios, de modo que,


/"

nessesentido, nossa interação com o meio-objeto que estamos empregando não pode ser
t
concebida como apenas mecânica.
Í. Por conseguinte, a primeira "premissa" do nosso silogismo pode ser vista como me-
#.
diada. Porém, a segundaainda parecetotalmente exterior. (quando trabalho com um
machado numa árvore, a relação entre mim e o machado tem de ser entendida em ter-
mos de desempenhohábil; o machado está integrado no meu desempenhohábil. Porém,
o relacionamento entre machado e árvore é completamente mecânico. Entretanto, diz
Hegel, esses processos mecânicos "retornam deles mesmos, como foi mostrado, para o
objetivo" (WZ, vol. 11,p. 397). Em outras palavras,todo o movimento deste capítulo,
mais que qualquer investigação do fenómeno particular da atividade-fim subjetiva, re-
quer que cheguemos a um ponto de vista mais elevado. Podemos até vislumbrar alguma
unidade entre agente e meios ao examinar a produção propositada exterior. Porém, do
que seprecisa é uma mudança de ponto de vista de modo geral, pelo qual passamosaves
o todo como dotado de propósito.
A mudança de perspectiva para o todo nos traz de volta à Teleologia Interna. Deve-
mos olhar agora para a atividade do ser humano e para o curso do mundo, que é o pano
de fundo para ela e o qual ela aeeta,como um grande curso da vida e que forma a si
mesmo. Nessa visão, porém, todas as oposições são excluídas. Aquilo sobre o que se atum
não está mais separado do agente. IJm agente formador é interno ao formado.
Consequentemente, na Teleologia Interna, todos os termos que se encontram sepa'
nadosna Teleologia Externa se juntam. No organismo, para retomar esseexemplo, tudo
é meio para a sua vida, mas o seu bom funcionamento, do fígado, do coração,etc.,é
também o fim, porque é parte do organismo. O organismo, por sua vez, em seu estado
adulto saudável, é o fim realizado, o que, no entanto, não o impede de estar sempreem
processo de realização. Consequentemente, ele é como se fosse uma intenção perma'
nente ou um ímpeto rumo à sua própria realização.Consequentemente,ímpeto, meio,
fim realizado, tudo sejunta. Porém, todos essesaspectosnão entraram simplesmente em
colapso. Eles permanecem como aspectos reais do objeto. Para entender isso, temos de
vê-lo como realizadoe realizando,ver as relaçõesfim-meio presentesnele.
Por isso. nessadialética ascendente,o mecanicismo e a buscade fins finitos por es'
píritos finitos aponta para a uma teleologiamais plena, oniabrangente,do curso do
O CONCEITO 359

mundo; uma teleologia que sempre é realizada tanto quanto está sendo realizada, que se
ericontr2 sempreno final e no início; na qual tudo é meio e, não obstante, é parte do fim.
porém relações mecânicas e atividade finita dotada de propósito não são canceladas ou
idas Elas permanecem reais; só a sua ação é de alguma maneira absorvida e é água

no moinho do propósito infinito. }

A concepçãosubjacenteaqui é a dos diferentesníveis do ser, dasarticulaçõesneces-


sárias de um universo que deve ostentar tanto exterioridade independente como co-
interior. Por haverdiferentes níveis do ser, há também diferentesníveis de
nectividade l
explicação O mecanicismo pode, portanto, prover asexplicações adequadasno seunível $

(eo' diferentes estágios do mecanicismo, cada um no seu subnível), ao passo que os


6enâmenos que ele explica são incorporados em seresmais complexosque têm de ser \

explicados em categorias superiores e, em última instância, numa totalidade que só pode


b
ser entendida teleologicamente. }

Na Essência,vimos como a necessidade de uma estrutura das coisas veio junto com,
edebatoaté exigiu, a contingência em suasuperfície. Agora o relacionamentoentre as
duasé detalhado na visão de um universo que ostenta diferentes níveis do ser.A estrutu-
ranecessáriadas coisasmanifesta a si mesma numa visão do universo como o desdobra-
mentode um propósito interior. Porém, o desdobramento dessepropósito exigea sua
corporificaçãona realidade material, exterior, e esta está sujeita a forças e leis mecânicas
equímicas.A contingência intersticial ou superficial das coisas,que sempre permanece
.a

dentrodasfronteiras da estrutura racional e desempenha o seu papel na realizaçãoper-


pétuadessaestrutura, pode ser estudada e mapeada por leis dessesníveis inferiores, do
Mecanicismo e do Quimismo.
Em lugar nenhum, Hegel é muito claro quanto ao modo como essesdiferentes níveis
estão
relacionadosum com o outro. Porém, ele evocaaqui, como em outro lugar, a sua
Famosa
imagem da "astúcia da razão", pela qual o propósito mais elevado Eazuso de prin-
cípiosdo nível inferior para lograr o seu fim. Em vez de operar diretamente no objeto, o
propósitomaiselevado coloca furtivamente outro objeto entre si mesmo e o que ele quer
transformar. Se ele fosse entrar diretamente na interação das coisas, ele próprio seria uma
coisaparticular e sucumbida como todas as coisasdessetipo. Porém, ele astuciosamente
selivra dessedestino fazendo com que o trabalho seja evito em seu lugar pela interaçáo
mecânica das coisas no mundo (WZ, vol. 11, p. 398).
Essaimagem pode não ser totalmente esclarecedora. Porém, ela reitera a ideia he-
gelianade que a vida infinita do mundo prossegue através de e para além da morte das
coisas
finitas. Eía só vive nessascoisasfinitas e, em consequência,atravésdelas,mas
sobreviveperpetuamente ao fim necessário destas. Não só isso: o próprio jogo da contin-
gênciaservepara realizar o plano necessáriodas coisas. Esseé o significado completo da
imagemde Hegel. Se perguntarmos como as coisas fiincionam desse modo, a resposta é
quea própria contingência é parte do plano necessário.[)entro do jogo da contingência
possomorrer hoje ou daqui a quarenta anos. Porém, em ambos os casos,a minha morte,
36o PARTElll l LÓGICA

assim como a minha vida, expressa a estrutura necessária das coisas pela qual o Ge/fr teu
de ser corporificado em espíritos finitos que, sendo finitos, contradizem a sua infinitude
e, em consequência, devem morrer. Acabo morrendo por causa de alguma Edha mecâ-
nica trivial: por exemplo, meu coração falha em sua fiinção de bombear. Mas, então, é
da naturezado sujeito finito, enquanto ente materialmente corporiâcado, estarsujeito
ao jogo das forças mecânicas e, em consequência, exposto a tais falhas. Se não for essa,
será alguma outra.

/''
Porém, a imagem hegeliana da astúcia da Razão está também e especialmente rela-
b
cionada com a história (cf. referência em .E.[, S 209, adendo). Nessesentido, a Provi-
t dência divina é a astúcia absoluta porque deixa os sereshumanos seguir suaspróprias
',..]:l
:.l!: paixões e seus próprios interesses, mas o que, não obstante, acaba acontecendo é a
Í:: concretização das intenções 2e Z)ez/i.Podemos achar mais difícil de entender e dar
il .:.l:í#

f"' :i:#p
crédito a essarelaçãodo que à relaçãoentre Mecanicismo e Teleologia Interna. Ainda
retomaremos a isso na próxima parte.
Portanto, o universo possui muitos níveis porque é o desdobramento de uma neces-
sidadeinterior em realidadeexterior. O fim infinito é realizadopor meio de fins finitos.
E é por issoque podemos ver o fim da Razão tanto como sempre realizado quanto como
sempre a ser realizado.'' A experiência dos sujeitos finitos é que o plano da Razãoainda
deve ser cumprido. Eles se esforçam por isso. Porém, se chegarmos a uma visão do todo,
poderemos ver que esseesforço é, de bato, parte do plano e que, como um todo, ele já
estárealizado(EZ, S 212, adendo). A aparênciada irrealizaçãoé um erro, uma ilusão;
e, não obstante, essailusão mesma é produzida pela Ideia, assim como o é a superação
desse erro por nós mesmos.
Por conseguinte, a necessidade que acompanhamos através do livro da Essência
emerge aqui como propósito. A necessidade inerente à realidade é incondicionada, coma
vimos. Isso quer dizer que o curso das coisas não é determinado pelos antecedentesme-
ramente dados, ele não ostenta as consequências inelutáveis de certas premissas dadas.
Pelo contrário, nada é meramente dado no sistemada necessidadeincondicionada. Tudo
que acontece emana da necessidade.Consequentemente, o que decorre da concepção
do universo como o Zocz/ida necessidadeincondicionada é uma visão das coisasem que
o propósito é o ápice.
PodemosEdar de um propósito quando, por alguma razão,um objetivo pode ser
concebido como em ação em eventos anteriores à sua concretização, produzindo esses

eventos, para que ocorram, como se diz, "em prol" desseobjetivo. Porém, isso quer dizer

7Essa noção de um objetivo que sempre já está realizado e, não obstante, sempre deve ser realizado é a base
do conceito crucial da filosofia política de Hegel, como ainda veremos na próxima parte. Trata-seda noção
de vida ética (Sfa/ifóÊe/r). É o que nos Em transcender a mera moralidade daquilo que deve ser, cuja busca
jamais logra êxito porque não está fundada na natureza das coisas e constitui, portanto, o objetivo particular
da Teleologia Externa.
O CONCEITO 361

quea noção de propósito já estavaimplícita na ideia de que asmudançasno mundo


cedempor necessidadeconceitual. Por conseguinte, quando explicamos as mudanças
.ascoisasfinitas, como já fizemos na infinitude, com o bato de serem impulsionadas
pelacontradição,estamosdizendoque o ciclo de mudançasno mundo sucedenuma
tentativa perpétua de resolver a contradição. Ou, em outras palavras, explicamos essas
mudanças
com uma norma que elas estão se esforçando por cumprir.
Porém, a concepção do caráter propositado das coisas é transposta para uma potência
.aiselevadaquando passamosa ver a necessidadecomo absoluta.Ver os eventoscomo
l
ecionadospara uma norma ou um fim é vê-los como oferecendo uma respostaà per- É

!nta "por que eles acontecem?". Porém, normalmente concebemos a busca por razões
,mo chegando a um termo em algum lugar, num objetivo que apenas precisa ser tido
,mo dado. Tendo descrito a forma de vida de uma coisa viva finita, termos em que
plicamosaspectosde sua estrutura e atividade, não há respostaadicional à pergunta
"por quê?". A forma de vida simplesmente é como é.
Porém, a necessidade absoluta não repousa sobre alguma premissa dada que estaria
lémde qualquer explicação A necessidadeé absoluta porque tudo pode ser derivado da
co.Consequentemente, a pergunta "por quê?" jamais se depara com uma barreira no
meramente
dado. Ou, casose prefira estaformulação, o objetivo último é simplesmente
lueo Grifo ou a Razão existam, isto é, que exista uma estrutura racional, da qual todos
aspectosgeram uma respostaà pergunta "por quê?", na qual nada é dado como fato
eramente "positivo". Neste mundo, o propósito é supremo ou absoluto, a explicação
-roposiradaé instância última num sentido radical.
Consequentemente,o universo tem de ser visto como o desdobramento de um
-ropósito.Ademais,o propósito tem de ser interno. Com efeito, tem de haver nas
;ousas
uma necessidadeincondicional, como vimos no final da Subjetividade. Se es-
:ivéssemos lidando com teleologiaexterna,com um propósito imposto por um [)eus
nscendente, a necessidade não seria absoluta. A forma das coisas repousada, em
rima instância, no Xaf divino.
O todo deve, portanto, ser visto mediante a categoriada TeleologiaInterna. O
ropósito oniabrangente é inerente ao próprio universo. E isso que está na base da
substância,da Causa, da Interação das últimas fasesda Essência. Com efeito, explicar
partir do propósito interior do todo é o que chamamos naquela ocasião de explica-
o a partir da totalidade. O universo que se desdobra de acordo com o seu próprio
propósito é Cansaiz/i. O propósito é a causa,mas não mais uma causaexterior. O
)ropósjto permanece no seu resultado ("em sua atuação não passa [para outra coisas,
12s
seconserva"
[.ÊZ,S204]).
Consequentemente, no final da Objetividade, chegamos a uma visão do universo
imo desdobrando-sena concretizaçãode um propósito intrínseco. Porém, não :sta-
iosapenastratando de uma coisa viva. Sabemosque essaobjetividade 6oi posta pelo
nceito, pelo pensamento que busca a necessidade,que busca o plenamente racional.
PARTElli l LÓGICA

Assim, ele passapara uma nova categoria ontológica, a da realidade que só existepara
completar uma brmula da Razão,cuja existência se resume a completar uma Ideia. Esta
é a unidade do objetivo e do subjetivo. Porém, estes não são simples identidade. Antes,
elestambém têm de ser, em certo sentido, distintos, visto que um põe o outro e deter.
mina que ele seja o que é. Eles são uma coisa só, mas também estão em relação. Como
ocorre em um sujeito, sua unidade é não só n iicó, mas também./àr iicó (.EZ,S 212).
A Objetividade não só completa a formula ideal do pensamento, mas também é levada
a fazer isso por essa formula. Consequentemente, os dois estão ligados e, não Obstante,
(
para sempre em oposição um ao outro (assim como o propósito na teleologia interna
F .....Ltb
sempre já está cumprido e ainda sendo cumprido). Para essarelação, o termo que vem
1.,:!i: «.iiki irresistivelmente à mente é a Ideia de Platão. Kant foi o primeiro a tomar emprestadoo
Í: termo. Agora, Hegel segueo exemplo.
:ll =!#

lll:ALDEIA

Assim, começamoscom a Ideia. A Ideia tem de serentendida no sentido platónico.


E a razãointerior que faz da realidadeexterior o que ela é. Consequentemente,ela tem
de ser entendida em conexão com a ideia hegeliana da verdade, como a unidade de con-
ceito e objetividade. "A ideia é o verdadeiro 'zm z/nd/ãz'i/có [em si e para siJ" (.É.[, S 213).
Porque a verdade,como vimos, é que a realidade estejade acordo com esseconceito,
com o conceito que a produz. Mas o conceito que produz a realidadee Emcom que esta
estejade acordo com ele é a Ideia.
Kant estavacerto, portanto, ao conceber a Ideia como algo incondiciona!, transcen-
dente, da qual não poderíamos fmer nenhuma aplicação empírica adequada (WZ, vol.
11,p. 407). Porém, como de costume, ele tirou a conclusão diametralmente errada. Em
vez de concluir que a Ideia não possui iza/zzsontológico, sendo meramente reguladora
do nosso pensamento, ele deveria ter visto que essainadequação da realidade empírica
não é uma deficiênciana Ideia, masnas coisasempíricas. É por issoque elassão finitas.
"0 individual, para si, não corresponde ao seu conceito; essalimitação do seu ser-aí
constitui sua finitude e sua ruína" (.ÉZ, $ 213).
Não obstante, por mais imperfeita que seja,a coisa particular só existeporque, em
certa medida, expressaa Ideia. Inclusive Estados, homens, etc., maus, isto é, Estados,
homens, etc., inverídicos só existem porque não são inteiramente maus. Porque tudo o
que existe provém da Ideia. O totalmente inverídico, a realidadeque de modo algum
corresponde à Ideia, seria nada (WZ, vol. 11,p. 309).
Nesta terceira parte, levaremosà sua plena explicitação essaconclusão de toda a ZaW-
ca. Iniciamos com a categoria da Infinitude, que foi nossa primeira categoria a apresentar
o todo como totalidade mediante a ideia de um sistemaautossubsistentede mudanças
necessárias. Mediante a Essência, continuamos a explicitar isso e vimos que essa neces-
sidadeera inerente à própria realidadeexterior, mas que essarealidade,sendo exterior,
O CONCEITO 363

ostentavacontingência. Porém, essacontingência não era independente, sendo,


Ü.bén
ble posta pela necessidade. A necessidade nas coisas era, por conseguinte, absoluta,
nãocondicionada por qualquer coisa meramente dada.
E necessidade
absolutalevou-nos atéo Conceito. Com o que obtemosdele, voltamos
bo" linar a tota]idade do real e explicitamos ainda mais as suasarticulações. De modo
)raas vemosdistribuídas numa hierarquia de níveis da realidade, sendo que os
BÍ-'e
inferiores, começando com o mecânico, são incorporados em unidades maiores,
intensivas,pelossuperiores.O nível supremo é o do propósito, e é exemplificado h

.o. Dessemodo, não só vemos que o todo é governado pela necessidade,mas 1:

queele ostenta propósito.


caráterúltimo do propósito 6oi deduzido explicitamente na Objetividade. E Eoi
esta q
lenos trouxe à categoria mais elevadada Ideia. Com efeito, se a necessidadeabso-
jura s iifica que a explicação propositada é a última palavra, então temos de ver que o
mun .o todo existe por um propósito, que ele existe visando manifestar essanecessidade.
1,não o visualizamos mais como um todo que está dado e que, na realidade, é go-
perna pelanecessidade,assimcomo temos uma espécieanimal que estádada e que, na
Kalid le,é formada por uma forma de vida dada. Essetodo que manifesta necessidade
existe por um propósito, de modo que podemos dizer que ele existe visando manifestar
a nec ;sidade.A 6órmu]a dessanecessidadeconceitua] é a Ideia, logo, o mundo existe
realizar a Ideia.
para

)rapodemosver o todo como o Zoczzi


de um movimento duplo. Há o movimento
das
)isasfinitas que perecem e que sucedem umas às outras num esforço para superar
-nsistência
da finitude, paraatingir a autocoerênciada racionalidade.Porém,há
tan }m o movimento da Ideia, da própria racionalidade, que sai de si e póe um mundo
de
)asas
finitas. A dualidade dos mundos ou a dualidade no real que constantemente
ten
na Essênciajamais poderia sustentar a si mesma, porque a realidade é uma só.
Por
i, a dualidade dos movimentos a que chegamos agora é consistente com a unidade
1,porqueessesmovimentos formam um ciclo. Não acrescentamosalgo, masenri-
qu :mosnosso entendimento da totalidade autossuficiente única.
'orém,se a própria Ideia sai de si e póe um mundo que é exterior e que, por con-
Inte,ostentaapenasimperfeitamente suas conexõesinteriores, então ela também
cor
diferençae divisão dentro dela mesma. Porque ela tem de pâr o seu oposto,
aqu
lo quea nega,para poder existir. Consequentemente, correspondendo à contradição
no
rito e fundando-a, há como que uma contradição no infinito, que reside no fato
de
lueo infinito só alcançaa sua identidade ao reconciliar a contradição, ao encontrar
a si
mesmoem seu outro. Essaposição central da contradição é consequente,uma vez
qu( aceitamosa necessidadeabsoluta. Com efeito, se o mundo de coisascontraditórias,
6ni
, existe por necessidade, se aquilo que, sendo exterior e indiferente e não podendo

g irificarplenamentea fórmula da necessidade,


existe de acordo com essamesma
lula,então essaIdeia mesmacontém suaprópria oposição.
364 PARTElll l LÓGICA

A Ideia é, portanto, um processo de pâr seu outro e, em seguida, recuperar sua uni-
dade consigo mesma no seu outro (.EZ, S 215; WZ, vol. 11,p. 412). Esseé um processo
dialético. É uma luta, e qualquer concepção da Ideia que omite issoé radicalmente Edha.

O pensamento que livre a realidade (W7réZifóée/r)da aparência da murabilidade sem


li.
propósito e a transfigure na Ideia não precisa representar essa verdade da realidade
como repouso da morte ou mera imagem, sem vida, sem impulso ou movimento
[...]; em virtude da ]iberdade que o Conceito alcança ne]a, a ]deia tem também a

(.
mzzü#rme & opoifÉúo dentro de si; seu repouso consiste na segurança e certeza com

que ela eternamente gera e eternamente supera essa oposição e nela coincide consigo
F

l mesma(/# /óm mi i/ró lr/ósfzz/s'zmmf/«fór).


(WZ, vol. 11,p. 412)
r Todo o sistemaestáinterligado pela contradição e pela luta. A Ideia propõe a realida-
í=: lll:
í"il ./' de visando existir. Porém, se essarealidade não fosse contraditória e, em consequência,
passageirae em movimento, ela não evidenciada a necessidadee, consequentemente,a
Ideia não existiria. Assim, a Ideia tem de propor um mundo que tanto estáem contradi-
ção com ela mesma, quanto e o seu outro.
Esseprocesso só pode ser apreendido pela razão, o pensamento que pensa as oposições
em seu movimento, pelo qual elas vêm a ser e são superadas. O entendimento que tenta
fixar a oposição é impotente nesseponto e está fadado a distorcer a realidade (.ÉZ, S 214).
Disso decorre que a categoria final, a Ideia, não é meramente o resultado do estágioan-
terior da Z(eira. Ela, em certo sentido, inclui tudo. Porque a Ideia não emite realidadespar-
ticulares que são captadas por outras categorias. E, ao mesmo tempo, ela interliga todas elm
de tal modo que elas retornam a si mesmas. Ela, portanto, engloba tudo o que veio antes.

O abso]uto é a ]deia universal e una que, no ato de julgar, se divide no


sistema das ideias determinadas, que, por sua vez, por sua própria natureza,
retornam à Ideia una, que é sua verdade. (E.[, S 213y'

Essadivisão articulara o que significa ver a realidade enquanto posta pela Ideia, por
um propósito. Em primeiro lugar, obviamente, significa ver o todo como análogoa um
grande processo de vida, como vimos na última subdivisão. Por isso, a primeira categoria
a ser tratada seráVida.
Porém, se pensarmos que o todo emana da necessidade conceitual, então essaneces-
sidadetem de serem prol de um sujeito. Hegel acrescenta,agora, uma dimensãocrucial
ao quadro que ele está pintando da realidade. É claro que a existência do sujeito esteve
implícita o tempo todo, porque estivemostratando de conceitos categoriais,conceitos
com os quais o sujeito pensa o seu mundo. Porém, isso foi apenas uma parte do nosso
ponto de partida. Agora, Hegel mostra que o Eito de o mundo aparecera um sujeitoé
uma característica necessáriado universo.

8Traduzido a partir da tradução inglesa.(N. T.)


O CONCEITO
365

O raciocínio que está na base disso parece ser este: a necessidade conceitua] represen-
taumanecessidadede pensamento e isso pressupõe um pensador. Dizer que o mundo é
Posto
peianecessidadeconceitua] é dizer que o pensamento está no seu fundamento. E o

kRÊiÜÜÜS $X HIEHHil1l
náopoderia permanecer meramente implícita e semiconsciente, porque o pensamento
estána base de tudo é necessidade conceitual, e esta só pode ser ostentada na clare:a
apjÍcita do.pensar conceitua]. A verdadeira necessidade só pode estar apropriadamen te
consciente
de.si mesmaem conceitos.De modo que, se o processodo pensamentoque
estána base das coisas permanecesse meramente implícito, ele paradoxalmente perma-
neceriacora do sistema da necessidade completa que o põe. Isso violada o seu próprio
Kquisito essencial.

Consequentemente,se a necessidadetem de ser oniabrangente, se não puder deixar


nadacoradela mesma como meramente dado, ela deve aparecer para ela mesma. Hegel
vêesses
dois requisitos para a onicompetência da Ideia e para a sua consciênciade si
colhoinseparavelmenteconectados.A conexão já estavapresente na noção da realidade
comoAparição, que por necessidadeé manifesta, o que vimos na Essência. Porque pri-
meiramentese alegou que a necessidade,sendo manifesta, realmente existe nas coisas.
quenãoé imposta a partir de alguma outra fonte, de alguma conte oculta, e, em con-
sequência,
que ela é total, isto é, ela não pressupõe uma realidade sobre a qual ela agua
e cujaexistênciaoriginal estácora do seu escopo' Porém, sem nem tomar fôlego, Hegel
jáestavaafirmando também que a necessidadeque é intrínseca à realidade exterior, ma-
IÉesta,deve, ela própria, ser manifestada, isto é, ela precisa aparecer a um sujeito. Uma
j:cessidade que não pudesse ser maníÉestada, que fosse oculta e incognoscível e, nesse
sentido,meramente interior, seria também "exterior", isto é, ela não seligaria plenamen-
tecoma realidade. Por conseguinte, para que a necessidade conceptual seja absoluta, para
queimpregne inteiramente a realidade, ela tem de tornar-se manifesta no pensamento.
T E por issoque a obtenção de clareza na filosofia é, ela própria, parte da realizaçãoda
Ideiano mundo. E é por isso que esseterceiro livro da Z,({gzravisualizou explicitamente
a realidade como destinada a um sujeito. ' '''
Porconseguinte,a unidade de Ideia e realidade não pode ser simplesmente a/z i/có,
comoé naVida, mastambém tem de ser./br i/ró. De modo que o Conhecimento é uma
'negonafundamental da Zlí[email protected].
Temos de aceitar que "a verdade absoluta é o objeto da
lógicae a z,er&2r como tal é essencialmente canÁerer" (WZ vol 11, P 413-14)
lóó PARTE ill l LÓGICA

visando retornar para si mesma. Porém, seu retorno é apenaso ato de tornar manifesta
essanecessidadena realidade. Consequentemente, o retorno estácompleto quando essa
necessidadeÊor plenamente apreendida pelo sujeito. Porém, a subjetividade é necessa-
riamente finita e, em consequência, a luta para retornar pode ser vista como a luta para
i.««««.. superar essafinitude e chegar à apreensão do infinito, do todo, do absoluto.
;...p''.::;::
N Por isso, além da Vida, a Ideia deve gerar a categoriado Conhecimento. Porém,o
conhecimento também, sendo a consciência de sujeitos finitos, tem de ser transcendido.
r llIHCI.:
:Í::::1111 Sendo esta uma luta do sujeito finito para transcender a si próprio, ele se envolve não SÓ
(l- «-''.'l conhecendo, mas também querendo. E o transcender do conhecimento finito nos leva ,
b ll JIL-
"«-..«. um conhecimentoinfinito, ao conhecimento do todo pelo todo, que é a Ideia Absoluta.
b=.:JL::illiiiii:iii Esseserá,então, o plano do último segmento.Ele nos levaráda Vida ao Conheci-
Éll .l=i:;::::=:1 mento que, por seu turno, será dividido numa discussão sobre o conhecer e sobre o
ÉI :ll#l;::::;:; querer -- e à Ideia Absoluta.
f l it Começaremoscom a Vida, tanto por ser a unidade imediata de Ideia e realidade,
como também porque o conhecimento pressupõea vida. Com efeito, o tipo de unidade
entre Ideia e realidade representadapelo conhecimento pressupõeuma unidade imedia-
ta, na qual a realidade estáde Eito em conformidade com a Ideia. A consciência, como
vimos, só pode surgir em seresvivos. Portanto, essaunidade imediata é derivada na

1 1HI Lógica
1;: . 11 1
li!J H . l
l:!::.ir'::KI,:l,===::',!i:'l'.'E=:='TJ:=1='1:ei:',:::= T=",:T',r::-
tanto para si mesma,a partir aa categoria üa ieieoiogia, quanto como uma pres-
suposiçãodo Conhecimento, que é a categorianecessáriaseguinte(IVZ, vol. 11,p. 414).

UloA
Hege] entende vida de modo muito semelhante a Aristóteles. O ser vivo é o Zaczzi

da teleologia interna; ele é tanto meio como fim. Ele não pode ser entendido apenas
como composto de partes, mas de membros, isto é, as suas partes estão essencialmente
relacionadas entre si em seu papel no todo do processo "vida". Cada uma delas é tanto
meio como fim. Por conseguinte, Hegel cita Aristóteles com aprovaçãoquando estediz
que uma mão que é separadado corpo ainda é uma mão apenaspelo nome (ÉZ, S 216,
adendo). A Vida realizaa verdade imediata da Ideia porque ilustra a unidade à qual o
propósito ou a forma são intrínsecos ao conteúdo, à matéria mesma. Um servivo é uma
totalidade objetiva, intrinsecamente interligada num só processo de vida que sempre Já
está realizado e sempre ainda está sendo realizado. A Vida, portanto, transcende o meca-
nicismo e o quimismo que permanecemsubordinadosenquanto a vida continuar. Eles
começam a tomar conta assim que a morte ocorre; "as potências elementaresda objeti-
vidade [...] estão, por assimdizer, permanentemente armando o bote (aad2em Sprz/ngr)
para dar início ao seu processo no corpo orgânico; e vida é o combate constante contra
isso" (EZ, S 2] 9, adendo).

Porém,o dia do objetivo chegará,porque a morte é essencialao que vive. Aqui, He-
gel estatui novamente uma de suastesesbásicas(EZ, S 216). Sendo a unidade de Ideia e
objetividade, a Vida tem de sercorporificada, logo, tem de ser corporificada em algum
O CONCEITO 367

tem de ser coisa viva particular. Porém, como coisa viva particular ela jamais
realmente estarem conformidade com a ideia universal, é contraditória e, assim,
Ela tem de perecer.
portal-
porém sendocoisaviva particular,ela se contrapõeà naturezainorgânica(.ÉZ,
Esse é o "UTÍri/' do conceito; isto é, o conceito da vida necessariamente se
S 219)
ein coisaviva e mundo que se contrapõe a ela. Ele tem de manter a suavida em

contraposição a essa realidade. Consequentemente, a vida é uma atividade incessante,

Lm combate constante(Z'efM Zyger.K:z/7zj)/)contra seu oposto. A vida é um processo


bic p'eci?' sempre estar criando a si próprio a partir do seu oposto. Porque a vida
consiste de coisasvivas particulares. Estas sáo distinguidas e, em consequência,sáo
contrapostas ao mundo exterior. Elas devem manter a si mesmas mediante assimilação
mundo exterior. Essa é a derivação dialética do intercâmbio assimilador dos
iimaiscom o seu entorno.
Essecombateé o reflexo do combate que é inerente à Ideia que deve realizar a si
Damacontraseupróprio ie/fexterior. Essecombate é uma contradição e é isto que ele
k aomundo animal. O animal necessitaalgo; ele sabe que essealgo cora dele deveria
scrumaparte dele e não é. Ele sente isso como impulso ou às vezescomo dor. A dor,
portanto,
é "privilégio" das coisasvivas; ela lhes pertence unicamente como o conceito
xisrente
(WZ, vol. 11,p. 424). Essaé a contradição viva, que constitui a respostapara
odoraquelesque afirmam que essacontradição é inconcebível (ibidem).
A contradição é resolvida quando o animal incorpora o que necessita. Ele pode fazer
seporquea realidade exterior já é .zmi/fó a ideia. Ela, por conseguinte, é incorporada ao
orgânico.
O orgânico pode aduarsobreo inorgânico mecanicamente, masnáo vice-versa.
Dinorgânico só pode estimular (errrK?#) o vivo (WZ, vol. 11, P. 425).
Porconseguinte, o indivíduo vivo passa a produzir a si mesmo, a cancelar a "pressu-
posição"
de um inorgânico contraposto a ele, e o incorpora a si mesmo. Ao fazer isso,
le se torna um universal substancial, que Hegel chama de "(hazínK" [gênero]. ]sso
luerdizerque ele experimenta outro tipo de divisão, agora em dois indivíduos. Esta é
aderivaçãodiabéticada diferenciação sexual. A coisa viva é uma corporificação da Ideia
fiedevedividir-se em elementos particulares e então manter sua unidade por meio de-
le.Porconseguinte,os indivíduos separadosbuscam unir-se. Eles, porém, não podem
obrar
êxito, ou melhor, eles logram êxito, mas só num terceiro indivíduo, em seu filho.
Este,então, prossegue como um novo indivíduo, enquanto eles, como todos os particu-
its,sendoa contradição do indivíduo que corporiíica o universal, morrem

A coisa viva morre porque é a contradição de ser o universal ózmi/cZ', o


gênero, e de existir, não obstante, no plano imediato só como particular.
(EZ, S 221, adendo):9

l"aauziao a partir da tradução inglesa. (N. T.)


368 PARTElll l LÓGICA

Por conseguinte, Hegel vê as coisas vivas como uma realização imperfeita da Ideia.
Elas sãovida, propósito intrínseco à matéria. Porém, elas não logram manter a unida-
de ou a eternidade que buscam. Aqui, unidade e eternidade estão vinculadas,já que
eternidade é unidade no decorrer do tempo. Elas só chegam lá, portanto, de um modo
capenga, por um regressoinânito de geraçõessucessivas.Temos primeiro a coisa Viva
deduzidado Conceito, depoisa vemosproduzindo a si própria a partir do inorgânico.
Assim, vemos que a Ideia que a produziu está realmente nela; ela é Conceito, Gênero.
Como tal, ela divide a si mesmae confere a si mesma uma existênciadiferenciada no
(. mundo. Porém, ela não pode retornar a partir daí e manter a sua unidade; ou ela só pode

t Gazesisso do jeito capenga de reproduzir sua espécie e, então, submeter-se à morte, sendo
sucedida por outros.
C Porém, essaunidade é capenga porque é apenas a iicó. Ela aponta para além de si
€ mesma para a necessidade da unidade./ãr iicó. [)eve haver um caminho pe]o qua] po-
f
demos escaparda separaçãoem seresparticulares, de ser espalhados na exterioridade,
e chegar à interioridade e unidade. Esse para além do finito, que é realizado a s/c&
pela morte dos particulares,pelo cancelamentode sua exterioridade,é realizado./ür
fica pela consciênciade si, pelo conhecimento. Consequentemente,o despontarda
consciência está relacionado com a morte; ela é a forma dialeticamente mais elevada
da qual a morte é a mais baixa.:' Ela é a imortalidade real do vivo no Ge/if. E constitui
o próximo estágio inelutavelmente apontado pela consumação da vida no Gênero.
A ideia da vida [...] ]ibertou-se, assim, não só de qualquer "este aí" particular
imediato, mas, em geral, dessa imediatidade primeira: com isso, ela vem para
si mesma, para a sua verdade; entra assim na existência como gênero livre para
si mesmo.A morte da vitalidade singular meramenteimediataé o emergirdo
espírito.
(ÉZ,S222):'

CONHECIMENTO
Assim, a Vida como unidade imediata converte-seno que Hegel chama de Conhe-
cimento. Este é realmente a subjetividade da Ideia, aquilo em que ela se revelanáo só
como a fórmula racional interior de todas as coisas, mas também como um sujeito que
conhecea sua própria realidadeexterior; e que pode, portanto, ser concebido como
pondo-a, como faz um sujeito. É por isso que estaseçãotratará náo só do conhecimento
no sentido estrito, mas também da vontade.
Em suma, estamos mostrando como a categoria da consciência ou consciência de si
possui uma aplicação necessáriapor integrar a Ideia. E, em razão de a consciência ser

zoA morte é a negação natural /med2arízdo particular. Precisamos de uma negação fins/ /ZFf,a consciência
de si. Cf. a diabética do senhor e do escravo em FE, p. 147; PÓG, p. 145.
Traduzido a partir da tradução inglesa. (N. T.)
O CONCEITO 369

riaHente finita, estamoscomprovando, a partir da Ideia, outra característicado


que estavaimplícita em nosso ponto de partida; o mundo do Ser é para sujeitos
sendoapreendido mediante categorias.
anitos
Na introdutória da WZ (vol. 11,p. 429-39), Hegel naturalmente não con-
resistir fio impulso de referir-seuma vez mais a Kant; e, como de hábito, Éazisso
segue

com uma mescla de aplauso e condenação. Kant com certeza tinha razão ao voltar-se
contra a metafísicaanterior a ele, que pretendia entender a consciência de si como uma
alma que
era necessariamentesimples. Pelo contrário, vemos que a consciência é ne-
cessariamente disjunção, a qual contrapõe a abjetividade a ela; e que se encontra numa
relação
essencialcom a objetividade.
E ponto básico,portanto, é a polaridadeentre sujeito e objeto. Kart viu issoe fez
um aspecto básico. Porém, ele tirou daí a conclusão de que a subjetividade ja-
poderia ser entendida, que ela seria meramente a unidade da apercepção presente
crntoda pote que jamais poderia ser um objeto do conhecimento. A "inconveniência"
UnÓegfm#fZ'.êe//)do "eu penso" é que ele é sempre sujeito e nunca objeto; de modo que
somos
objetospara nós mesmossó como ie/fempírico, não como o sujeito original; Kant
assume
issocomo uma barreira para o conhecimento da consciência de si. Porém, para
Hegelessaatitude era indesculpável. Porque, no ato de ver essesujeito, necessariamente
hápolarização,pois ele necessariamentetem de ser sujeito confrontado com um objeto;
longede ter uma barreira ao conhecimento, temos uma apreensão básica de sua natureza
.eal.É issoque o distingue de uma pedra (WZ, vol. 11,p. 432). SÓpodemos nos consi-
derarimpedidosde conhecê-lo se assumirmos a atitude basicamente humana de que o
;ujeitoé aquilo que tem de serconhecido na intuição interior. Nessecaso,obviamente, o
'eupenso"escapaà caracterização
porque é a pressuposiçãode todo o conteúdo. Porém,
se,emvez disso,tentarmos camrrZ'ero sujeito, temos aqui a indicação básica para a sua
natureza;
autodisjunção, o que dá a si mesmo um conteúdo; aquilo que se torna para si.
Porém,essaautodistinção deve ser tomada de duas formas. A Ideia é tanto autoco-
nhecimento
no outro como autocriação no outro. Consequentemente, sua subjetividade
[emdeser concebida de dois modos. Ela é tanto conhecimento de si mesma como outro,
comotambém realização de si mesma como algo independente de si mesmo. Na Ideia
absoluta,
essesdois aspectos são um só. Porém, essavida tem de ser vivida por sujeitos
anitos,
porqueo sujeito infinito s(5pode ser real mediante a corporificaçáo em sujeitos
anitos.Essanecessidadede corporificação é o que introduz oposição, opacidade no su-
jeitoabsoluto.Com efeito, os sujeitos finitos têm de lutar para recuperar a transparência
daautoidentidadeda Ideia. Ou, em outras palavras, a opacidade que procede da corpo-
ri6cação exterior necessáriapode ser vista como a opacidade inseparável do pensar dos
Kijeitos corporificados, finitos.

Consequentemente,os dois aspectosque são um só na Ideia se encontram separados


navidados sujeitos finitos. Essessujeitos têm de lutar para chegar até a difícil apreensão
aesuaunidade,sendo que, enfim, a Ideia produziu a verdade integral, uma realidade
37o PARTElll ! LÓGICA

que estáem conformidade com ela. Essaseparaçãotoma a forma de uma separaçãono


interior de cada um dos aspectos.Os sujeitosfinitos conhecemo mundo, maseleso co.
nhecem normalmente como sepa'ado, contraposta a eles. Isso estáconecrado com o Eito
de eles o perceberem como contingente, porque eles não penetram até sua necessidade
interior, que nada mais é que o Conceito, logo, o material mesmo do seu pensamento
Ao mesmo tempo, os sujeitos finitos têm um senso para o bem. Hegel está Edando
aqui náo apenasde algum fim finito, como o que discutimos na teleologia externa, mas
do fim justificado absoluto, da criação de um mundo da verdade, da conformidade
..PH'

C com a Ideia, que é também o bem. Agora, os sereshumanos têm uma leve noção disso
também, assimcomo têm a ideia do conhecimento. Porém, nesseponto, eles também
} li .ilb

p,.!:".hl
o interpretam mal como um fim meramente finito; um fim absolutamentejustificado.
mas, não obstante,o fim de um sujeito finito, a ser forjado .zóexfxuno mundo (WZ, vol
11,p. 479); "aquilo conteúdo] é de fato finito, mas, como tal, também é um conteúdo
r' ..../' absolutamente válido". Consequentemente, eles contrapõem a sua atividade ao mundo
exterior por enquanto não transformado.
Em outras palavras, a Ideia produz a necessidadede uma unidade na diferença que
é tanto uma produção da corporificação exterior como um conhecimento do fe/fnessa
corporificaçãoexterior. De modo que o espírito finito, como seuveículo, deveconhecer
e almejar; ele tem um Ideal do conhecimento e um Ideal do Bem (que Hegel chama, res-
pectivamente, de "Ideias" do conhecimento e "Ideias" do Bem na WZ). Porém, sendofi-
nito, ele tem essesdois como ideaisperpetuamente irrealizados. Conhecimento não pode
chegar à necessidadeplena; e, por almejar, ele sempre vê a si mesmo como inacabado.
Hegel formula isso também da seguinte maneira: para o conhecimento, o aspecto
importante é o aspectoobjetivo; o ponto em questão é conformar nossoconhecimento
à realidadeexterna. Parao almejar, a realidadeque importa é a subjetiva; é o bem que
tem de ser realizado no mundo. A realidade externa ainda não transformada é conhecida
pelo sujeito almejantecomo "'z/zi/có nula" (m/córik)(EZ, S 225).
Isso leva a contradições nos dois lados, que assumem a forma de uma infinita inca-
pacidade de alcançar o objetivo. No domínio teórico, jamais chegamos à necessidade
das coisassem transcendero ponto de vista parcial, finito. Na prática, a contradição
é até mais nítida.
Enquanto permanecermoscomo agentesfinitos do bem, o bem que alcançámosestá
sujeito a todos os acidentes da sorte. É um conteúdo finito, que pode ser destruído por
uma contingência externa ou pe]o ma]. E, pior ainda, suascondições de realizaçãopo-
dem entrar em conflito umas com asoutras (WZ, vol. 11,p. 479-80).
Isso, porém, ainda não é contradição. Esta assomaquando vemos que a boa vontade
finita não pode obter êxito pleno. Com efeito, se o mundo fossetotalm.nte transfor-
mado para estarem conformidade com o bem, então não haveriamais almejar. Porque
a boa vontade, por sua própria definição como vontade finita contraposta a um mundo
sobre o qual deve atuar, náo existiria (.ÊZ, S 234, adendo).
O CONCEITO 37i

Aqui, Hegel está, uma vez mais, criticando Kant e Fichte, como ele deixa explícito
,lendo ao parágrafo recém-citado. A noção de moralidade como simples So/&n,
co o incapazde concretização porque, nessecaso, ela cessariade existir como mo-
H dade, é uma das oposições básicas que Hegel se empenhou por superar. Porém,
ele vê essacontradição do progresso infinito de um "dever" que jamais chega à
ag
co cretizaçãocomo intrínseca à noção de uma boa vontade finita como tal, visto que
a :ia de uma boa vontade finita é a de uma vontade contraposta à realidadeexterior
se pFea qual ela tem de ser exercida. O que seria da moralidade se todo o bem fosse
in !ra] e definitivamente realizado?
A resposta só pode ser uma concepção do objetivo realizado da moralidade que in-
co )ra como elemento essenciala nossaação moral. Isso significa um curso do mundo
constitui a bondade realizada, mas que não existe abstraído da nossaação, incluin-
qt
d antes,essaação e sendo proclamado nela. Porém, isso significa uma visão do bem em
qt a ação moral não é necessariamente a luta contra a realidade imoral ou amoral que
es ra sertransformada; mas pode ser a respostaque completa um contexto de bondade
re ida. Trata-se, obviamente, de uma visão de moralidade que precisa romper com a
cc ltraposiçáokantiana entre a boa vontade e a inclinação-
Porém,essavisão pode ser considerada como a síntese dialética entre a postura
d cogniçãoe a posturada vontade. Como vimos anteriormente,a primeira é a
vl em que o mundo externo é o essencial,ao passo que nós temos de conformar
as lassasmentes a ele no conhecimento; a última é a visão em que nosso projeto é
es :ncial,ao qual devese conformar o mundo como o inessencial,como o "nulo'
;Ófe).A verdadeirasoluçãoque resolvea contradição é a que une essasduas
VI :s, que retém a essencialidade
do nossoprojeto e não incorre novamenteno
ei do conhecimento, que foi o de sentir que estamos longe da verdade, enquanto
scentaa verdadedo conhecimento,ou seja,que o objeto ou o mundo também
é
)rporificação essencial da Ideia.
'amos,então, uma noção de um curso do mundo que consiste no bem plenamente
azado
-- o que obtemos do conhecimento --, mas nós não concebemos a nós mesmos
lo separadosdele, de modo que apenas temos de tentar conformar-nos no conhe-
tto Parte integrante da bondade do mundo, de ele ser o bem realizado, é que ele
}rporanossaaçãopelo bem, nossoalmejar.A ideia do bem como vontade finita
a inadequação básica da cognição finita que mantinha sujeito e mundo separados.
:quentemente,o sujeito só poderia ser a boa vontade contrapondo-se ao mundo
regenerado e aquando nele. Esse é o sujeito definido pela contraposição irreconciliá-
objeto, pela diferença em relaçãoa ele -- o pecado constante da filosofia kantiana.
tem de ser superado.
sabemos
que isso tem de ser superadoporque entendemosque essarealidade
emanarde uma necessidadeconceptualque é um sujeito, que, por isso, tudo tem
;tar em sua verdade, isto é, em conformidade com a Ideia; e, em consequência,
37z PARTElll l LÓGICA

que tal separaçãoé um absurdo, um absurdo cego e obstinado. É isso que medeiaas
transições aqui. Para Hegel, a vontade finita só precisa chegar a ver que estáaquando
em um mundo em que o bem foi realizado. Na WZ, Hegel faz uso da conclusãodialé.
tecada fase da Teleologia Externa, a de que o meio é o fim, para mostrar, nesseponto
E.
que a atividade-meio, que é o almejar do agente finito pelo bem, não estáseparadada
bem, mas é idêntica a ele. Essaunidade estáaí ## sicó, mas ela simplesmente tem de
vir a ser.@r /&/z apara e]e]. É preciso ver esse a]mejar nas causas perpetuamente irreali.
fadas, essaimperfeição constantemente tentando alçar-se acima de si mesma, como o
(, objetivo realizado da própria bondade.
Com efeito, como já vimos, a partir do ponto de vista mais elevado, a imperfeição, o
F

Ç: mal, a opacidade,a separação,têm o seu lugar necessáriono curso hegelianodascoisul


O bem só pode ser realizado mediante essaexterioridade e, em consequência, essadivi-
Í:
são, opacidade, dor. Essa é a visão que, enâm, galgamos. "0 nulo e o evanescente cona.
r }P'

tituem apenasa superfície,não a verdadeiraessênciado mundo" (.ÊZ,S 234, adendo).


Em -ÊZ, S 233 e S 234, Hegel apresenta a contradição de um modo levemente
diferente. A vontade finita é a contradição que sustenta que o mundo contraposto a
ela é inessencial,"/z/cZ'fzK"
e, não obstante, também é essencial,pois, sem ele, ess; boa
vontade não existiria.

Vimos como a síntesediabéticadas duas atitudes, cognição e vontade, resolveos


problemas da vontade finita. Esseé, obviamente, um tema familiar a Hegel; é um dos
temas centrais, se não a tema central da FE, sob outro nome. Nesta, tratou-se de uma
questão da relação entre consciência e consciência de si, sendo a primeira a atitude que
nos contrapõea um mundo essencialao qual temos de conformar-nos,e a segundaa
certezado se/fque procura afirmar-se contra um mundo inessencial.
Porém, deveríamos ver também como a síntese resolve os problemas do conhecimen-
to finito. Enquanto o sujeito estivercontraponto a um mundo do qual ele estáparasem-
pre separadopor não poder penetra-lo ou ser parte dele em nenhum sentido, o problema
do conhecimento será insolúvel. Estaremos para sempre excluídos da profundidade das
coisas, das coisas como elas são em si mesmas. Poderemos tão somente registrar certos
fatos, que permanecerão contingente para nós, fatos brutos, para os quais não podemos
dizer o porquê. O que nos capacitaa ir além disso é que o mundo não é outro paraa
mente, para a razão, para a nossa razão; e ele não é outro porque é posto por essarazão.
Consequentemente, a finitude e os limites do conhecimento também só podem ser su-
peradosmediante a fusãocom a outra postura, a do almejar, a da vontade de realizaro
bem, que é o plano inteligível das coisas.
E claro que no nível dos espíritos finitos, essesdois -- o conhecimento e o almejar
-- não podem coincidir, porque só conhecemosem parte e só podemos eeetivarparte
do plano todo; daí que os dois permanecemseparados.Conhecemosmuito mais do
que podemos e6etivar;e conhecemos isso exteriormente. E efetivamoscoisasque não
entendemos realmente; e, nesse tocante, agimos às escurassem ver a real significação
O CONCEITO 373

que fazemos. Porém , quando ascendemos ao sujeito absoluto, incondicionado,


os dois se unem e ambos são o todo, como devem ser.
é o drama maior destecapítulo, que, por isso mesmo,culmina na Ideia
Porém, há também uma grande quantidade de detalhes. O capítulo come-
a Ideia do verdadeiro (só o "conhecimento" na .ÉZ) e prossegue desenvolven-
a ideia do bem ("o querer" [2ai Mo//en] na -ÊZ). A cognição converte-se primeiro
e, então, tem lugar a transição a partir do querer para a próxima seção
síntese dos dois.
Não podemos entrar na explicitação detalhada da cognição, que Hegel usa como
[runpolim para discutir o conhecimento analítico e o sintético.22Ele culmina na no-
danecessidade puramente abstrata,que ou é exterior ao conteúdo do mundo ou é
interior. A cognição é anterior ao mundo simplesmente dado, um mundo
puramente
simplesmente 'achado aí" (z,a/lgdü/zzün). A necessidade é subjetiva (EZ, S 232); e é esta

quepromove a transição para o querer. Vimos como este, por sua vez, leva a uma síntese
entre osdois; e assimgalgamos até a Ideia especulativa ou absoluta (ZIZ, S 235).

Essa[essênciado mundo] é o conceito existente .zzzwm2.@rsicóe assim o mundo


é, ele mesmo, a Ideia. A aspiração insatisfeita desvanece quando reconhecemos
que o fim último do mundo tanto estárealizado,como se realizaeternamente.
[...] Essaconcordância do ser e do dever-ser, contudo, não é uma concordância
rígidae carente-de-processo;
porqueo bem,o fim-últimodo mundo,/
somenteenquanto continuamente se produz, e entre o mundo espiritual e o
mundo natural subsisteainda a diferença de que, enquanto o natural retorna
constantementesobre si mesmo, no espiritual, contudo, ocorre também uma
marcha para frente. (EZ, S 234, adendo)

Temosum "mundo objetivo, cujo fundamento interior e cuja subsistênciareal é o


aceito.Issoé a Ideia absoluta"(WZ, vol. 11,p. 483).

Nadiscussão
sobreo conhecimentoanalítico na WZ, Hegel retoma a discussãoda famosaafirmação
kandana
de que proposições matemáticas como 7 + 5 12 são sintéticas (p. 446-49). Para HegeJ, elas são
analíticas;
e não tem como não ser,porque elas não envolvem nenhum elemento "conceptual";elas são
puramente abstratas,
como o é toda quantidade.Logo, é totalmente inapropriado perguntar se"7 + 5" e
.2" possuemo mesmo conteúdo ou conteúdos diferentes. Porém, Hegel não está meramente deduzindo
essa
suaconclusão a partir de seu preconceito comeraa filosofia matemática. Scu argumento é interessante.
Quandodizemos que 7 + 5 = 12, estamos dizendo que, sevocê tomar sete e acrescentar o um cinco vezes, a
resposta
é doze;"7 + 5" não é, portanto, uma descriçãoque poderia conter " 12" ou não, mas simplesmente
anconjunto de instruções (uma Hze&aóe)para acrescentar cinco a sete. Essas instruções pressupõem um
conjuntode operaçõesaceitas pelas quais elas terão de ser executadas, que são simplesmente aquelas impli-
cadas
no ato de contar; seguir essasinstruções corretamente é chegar ao 12. Não há nada de sintético aqui,
nosentidokantiano, porque não há predicação, nem mesmo descrição no sentido normal. Não temos aqui
nenhumteorema, só u ma.4zÜKaóf.
374 PARTElil l LÓGICA

IDEIAABSOLUIA
Chegamos,portanto, à Ideia absoluta que pode ser vista como a síntesede conhe.
cimento e vida, a unidade./ãr s/có e a unidade amf/có do Conceito com o seuobjeto
Ela é alma, Conceito subjetivo livre. "Tudo o mais é erro, confusão ( 7}üÓÓe/r),opinião
aspiração, capricho e transitoriedade; só a Ideia absoluta é ser,vida imperecível, verdade
,.#' autocognoscente e é verdade por inteiro" (WZ, vol. 11, P. 484).
E a autodeterminação (Se/óffófJ//mmz/nK)que se divide e retorna à unidade consigo
..PP'

mesma. Arte e religião são modos com que ela apreende a si mesma e dá a si mesma Uma
existênciaadequada.Porém, a filosofia é o modo mais elevado,mais puro; porque é o
tl.
modo do próprio Conceito. A Lógica captura a Ideia de um modo puro e transparente
Por conseguinte, a Lógica apresenta o automovimento da Ideia absoluta somente
como Ea&z,xa original, que é exteriorização ou rZofzffáa í2z #rrz//zg), mas do ripa
que desaparec'imediatamentecomo algo exterior (ize#eres)assim que ganha
existência; por isso, a Ideia só existe nessa autodeterminação de apree z&r a ÍI
mesa/z;ela existe no p ra pe i/zmrnfa, no qual a diferença ainda não é ier-az/ün.
masé e permanece totalmente transparente para si mesma. (WZ, vol. 11,p. 485)23

A Lógica é a ciência da Ideia, enquanto pura fórmula interior da necessidadedo


mundo, que pensa a si mesma e produz um mundo que está em conformidade com
ela. Se essafor a verdadeontológica, então resulta daí que podemos acompanhar isso
através do estudo das diferentes dimensões concretas no mundo, das estruturas da na-
tureza, do espírito, na política, na história, da estrutura da mente, e assim por diante.
Todas elas têm de revelar a forma básica da Ideia, ou seja, que são postas pela Ideia. E é
isso que descobriremos nas demais ciências que perfazem a .Elzc/cZapá&d,
nas filosofias
da natureza e do espírito.
Porém,também tem de haver uma ciência que não apreendea fórmula interior
através de sua corporificação exterior concreta, mas através da sua estrutura conceitual
interior; uma ciência, portanto, que não opera com descrições concretas, mas simples-
mente com conceitos categoriais e que mostra como estesestão inter]igados. Tà] ciência
é a Z(Üfca, e acabamosde percorrê-la. Porém, ela não é abstrata em comparação com a
concretude de outras ciências. Com efeito, ela é concreta no sentido de apresentar-nos
um todo autossustentado;ela nos apresentaa necessidadede que a Ideia passepara a
realidade exterior e retorne a si mesma. Consequentemente, ela não nos apresenta uma
visão do conceito como algo abstrato, mas, antes, como algo plenamente concreto.
Porém, sendo a derivação da estrutura do universo no puro pensamento, em conceitos
categoriais,ela é pura visão. Ela é, como diz Hegel, idealmente transparente,porque
nada é além de pensamento de pensatnento, enquanto todas as demais ciências são

3Traduzidocom basena traduçãoinglesa corrigida de A. V Miller. In: .f)n7e/}Sr/f ff afZadf. Londres:


1969, P. 825.
O CONCEITO 375

lidas como alguma matéria particular que possuem um conteúdo contingente e


transparente. A Lógica é puro pensamento. E a vida interior de [)eus an-
nãototalmente
.esda criaçãodo mundo, segundo a famosa imagem que Hegel usa na introdução à WZ.
Hegel conclui as duas Lógicas com uma discussãodo "método", uma espéciede re-
de todo o procedimento seguido. Na WZ, isso ocupa um bom espaço e vale
capitulação
ser comentado.
a pena
0 método é o procedimento básico; mas agora sabemos o suficiente para saberque
asemétodonáo é exteriormente escolhido ou aplicado ao que estamosestudando;ele
éo movimento interior dos conceitos categoriais. E o movimento do próprio conceito
IPZ,vol. 11,p. 486). Ele não é algum tipo de ferramenta que pode ser separadado su-
jeitocognoscentee do objeto sobre o qual se reflete.
Temosde partir de algo imediato; porém não pode ser uma imediatidadede sen-
Eldo
ou representação,mas de pensamento, logo, de um conceito categorial (p. 488).
Necessitamos
de algo que não tem de ser,ele próprio, derivado, porque de outro modo
jamais
teríamoscomo começar.O candidato óbvio é o próprio "ser", pois temos com
eleum conceito categoriasque todos os demais parecem pressupor, caso queiram ter
alguma
aplicação;porque, para que tenham aplicação,deve haver algum objeto ao
qual seaplicam.
Logo, o "ser" é uma espécie de começo absoluto, que não parece repousar sobre
qualqueroutra coisa,como fazem todos com o ser. Naturalmente, isso não quer dizer
quenossocomeço não tenha pressuposição,porque ainda não Eoi mostrado como uma
questão
de necessidadeque ascoisas têm de existir; isso sedará no final, quando fechar-
moso ciclo. Porém, temos um conceito tal que, se algo tiver de ser presumido, é com ele
quesedeve começar. Em certo sentido, podemos dizer do "ser" que sumariza, engloba
dentrodeletodas asdemais categorias, é o universal delas; mas só no sentido abstrato de
queeleé o que todos elestêm em comum, abstraindo de suasdiferenças.
Eleé o todo nessesentido abstrato; e, sendo o todo, não se relaciona com qualquer
outroconceito fora dele; ele não pressupõe nenhum outro, como, por exemplo, a "cau-
sa"requero "efeito", ou a "essência"requer a "manifestação". Hegel sumariza isso na
expressão
de que "ser" é a autorrelação abstrata(dze .zós/xaÁfeZ?ez/eóz/ngadi/có se/óif).
E autorrelação
porque ele náo está relacionado com nada mais, e é abstrato porque é
autorrelaçãosó por ser o universal absrrato, sem dieerenciaçáo interna.
Porém,sendoautorrelação,ele já é implicitamente uma totalidade, ele já é o germe
doinfinito real da totalidade autorrelacionada num sistema em que o absoluto revelará
asimesmocomo existente.O absoluto z/zi/có já está aí; o que se seguiráé um desen-
volvimentointerior no qual ele se tornará internamente mais rico e virá a ser o absoluto
articuladoou o absoluto./br sicó.
Porém,como já vimos, agora esseuniversal simples vai além de si mesmo na dife-
renciação,na divisão, no juízo. Do ponto de vista do conhecimento finito, o conteúdo
específjco
adicional que temos de acrescentarao universal é encontrado ou observado na
376 PARTElil l LÓGICA

realidade. Porém, vemos que ele procede do próprio universal, que o próprio universal
passapara o seu outro. Esseé o movimento dialético presentenele. Vimos que o Ser
passapara a diferenciação do Z).zie/n, que o Dmeim passapara o seu outro, e que ele é
contraditório, e assimpor diante, em perpétuo devir e em perpétua mudança.
Ora, essadiabética usualmente foi usada para mostrar a nulidade seja dos objetos úe.
fados por ela (como no caso dos eleitas, por exemplo), seja do pensamento que se depara
lm-lt p.}.l#' com ela (como sustentou Kant, por exemplo). Porém, ambas as visões são equivocadas.
:::: 8::: O resultado da diabética não é meramente negativo, náo é igual a nada, o que nos obri-
c. garia a retornar à estacazero. Por se tratar de uma contradição determinada, o resultado
F i.;.lb .Fln l é uma nova forma. Consequentemente, o Ser se converte em Ser Determinado, que, por
illi..Ih sua vez, sendo contraditório, remete-nos a outros que têm de seguir a este devido à sua
natureza inerentemente contraditória. Não faz sentido simplesmente desistir e concluir
t:: .:.:l pelo Nada. Ademais, o próprio Nada, como vimos, não é um ponto de chegadaestável,
r'Í l./ 'l'rTll

porque o ser é inescapável. O Nada só é compreensível como a negação do Ser.


Por conseguinte, a reação comum diante da contradição, a conclusão pela nulidade,
não funcionará. Ela falha nas suasduas formas. Não podemos concluir pela nulidade da
realidade, sem aterrissar na absurdidade do Nada. E náo podemos concluir pelo simples
erro do nossopensamento,porque já vimos que essacontradição estáimplícita no pró-
prio ser.Nosso pensamento não é nem só analítico nem só sintético, mas ambos.
O contraditório é real ou o real (Ser) com o qual começamosé contraditório. É isso
que somos forçados a aceitar. Porém, se o contraditório é real, invertendo o primeiro
desenvolvimento, então ele deve, de algum modo, ser autorrelacionado e não simples-
mente dependente dc outros e mais outros num regressoinfinito em que não chegamos
a nenhuma base firme. O segundotermo, diferença ou contradição ou fragmentação,
provém do primeiro termo, unidade ou Ser, por um movimento necessário.Ele é o outro
do primeiro. Porém, ele contém esseprimeiro em si, porque provém dele. Se o positivo
ou a unidade contém necessariamente
o negativo ou a divisão, por um movimento ne-
cessário,então o inverso também é verdadeiro. A divisão também tem de vir à unidade
(WZ,vol.11,P.495-96).
Em outras palavras,o ser, o ser real, acabasendo contraditório, mas, nessecaso,a
contradição tem de ser real. Hegel denomina isso de conversão ou ponto de inflexão
(p. 496, 497). Ela ocorre quando vemos a contradição que golpeia o ser não apenas
como algo privado, como um desastre. Porém, vendo que deve haver alguma realidade
nisso -- senão, como poderíamos estar empreendendo esta investigação? --, concluímos
que a contradição não pode ser a morte do ser ou a prova de sua impossibilidade, mas
é, antes, a sua base. E visto que a contradição é devir necessário, necessidade concei-
tual interior que governa a mudança ou a explicitação, vemos essanecessidadecon-
ceptualinterior como aquilo que está na basede toda a realidade.Em outras palavras,
invertemos a proposição, como vimos anteriormente, e, ao fazer isso, substancializa-
mos o segundo termo. A contradição passaa ser não apenas um predicado que implica
O CONCEITO 377

existência; mas é, ela mesma, a realidade, um sujeito, um princípio operante. A


radiçãocomo movimento necessáriopõe ou implementa o Ser.
Assim sendo, o ser eiE#em contradição. E porque o ser não tem como não ser, a con-
içãopossui realidade. Isso, examinado mais de perto, acaba formando um círculo.
contradiçãoé aquilo que dissolve, que destrói o ser. Porém, seo ser é, e a contradição,
to obstante,é essenciala ele, então a contradição também tem de criar o ser. Assim
ido,a contradição,movimento necessário,implementa o ser.
Chegamos, portanto, a um terceiro termo (p. 497), que é a restauração do primeiro.
negativoé negado e retorna ao positivo. Temos uma vez mais o Ser, autorrelacionado
nesse
sentido, imediato, masagora tendo em si mesmo a mediaçãocontida e cance-
Ele é "o imediato, só que mediante o cancelamento (Hz{/beóz/ng)
da mediação,o
tplesmediante o cancelamento da diferença, o positivo mediante o cancelamento do
.tivo":4 (WZ, vol. 11, p. 498). Temos um retorno ao if#:
Porém,esseretorno pode ser visto a partir de dois lados. Ele pode ser visto como
retorno do puro Ser a si mesmo mediante a superaçãoda mediação. Isto é, pode-
começarcom o Ser, vê-lo ser fragmentado em seresdeterminados e, então, ver
;tes retomarem à unidade mediante a sua interconexão num movimento necessário

lpulsionado pela contradição. Porém, enquanto fazemos isso, descobrimos que tudo é
)moé por necessidade,seguindo uma fórmula necessáriaou a Ideia. E, assim, podemos
lbémcomeçar com a Ideia. Podemosvê-la passarpara a objetividade, logo, para a
:erioridadee indiferença; e, então, ver o retorno como a recuperaçãoda unidade com
subjetividade, em que a conexão interior, não obstante, torna-se manifesta.
Essesdois modos de formular a questão correspondem, respectivamente,à via da
;cobertae à ordem ontológica real (21Z,S 242). Em outras palavras, a inversãoda
)reposiçãopela qual conversemos a própria contradição em sujeito leva-nos à verdadeira
)rdem das coisas. Essa contradição apropriadamente entendida acabará sendo a necessi-
tdeinterior, que é o Conceito, a Ideia, o sujeito absoluto.
Essacontradição ou negatividade é

o ponto simples da referência negativa a si mesma, a conte mais íntima de


cada atividade, do automovimento vivo e espiritual, a alma diabéticaque todo
verdadeiro tem dentro de si e atravésdo qual ele unicamente é verdadeiro. (WZ,
vol.ll, P. 496)

O terceiro termo é, então, essasubjetividade corporificada; é "o indivíduo, o concre-


-,o sujeito"(WZ, vol. 11,P. 499).

.Traduzidoa partir da tradução inglesa. Mantém-se aqui o termo "r fe/alia/z = cancelamento, anulação",
do paraverter o termo alemão ".4le/beóu ', que seconvencionou traduzir para o vernáculo por "supras-
ção",dando a entender que não se trata de anulação pura e simples, mas de supressão+assunção
num
-elmais elevado. (N. T.)
378 PARTElll l LÓGICA

A necessidade
básicade retorno ao ie/fou a inversão é o motor de toda dialética,é
sua fórmula interior. Porém, a ciência da Lógica não é alcançadacom um passosó. Essa
necessidade
Hoidescobertabem no início, como vimos,com a Infinitude do Z)a./e.
Porém,embora naquelemomento soubéssemosque a realidadedeveriaconsistir de tal
ciclo que retorna a si mesmo, que ele teria de ser necessidadeinterior do movimento que
concorda com o ser, ainda não tínhamos conseguido um modo adequado de conceber
essarealidade. As categorias do Ser de um só plano não eram suficientes; tampouco o
eram ascategoriasnão apropriadamente uniâcadas da reflexão. Sabíamosque estávamos
tratando da realidade exterior, que também está sujeita à necessidade,mas ainda tínha-
mos de conectar essasduas num conceito adequado. Em outras palavras, só tínhamos a
fórmula de uma antologia adequada; ainda necessitávamos elabora-la.
Foi essadialética que seguimos atravésdos vários estágios da Lógica, particularmente
da Essência e do Conceito. No final, descobrimos que só um sujeito, uma necessidade
racional autopensante que póe necessariamenteum mundo exterior que ele governae no
qual ele reconhecea si mesmo, que só essesujeito dá conta do recado; e essaé a Ideia. Po-
rém, nessemeio-tempo, descobriremos que todas as várias outras maneiras de concebê-
.la -- como fundamento e fiindado, aparição e lei, causa e efeito, corça e expressão, todo
e parte, interior e exterior mostram-se inadequadas. Elas não chegam à altura do seu
próprio conceito e têm de perecer.
Porém, cada um desses estágios é, em certo sentido, o absoluto. É a manifestação
de todo o sistema.É uma tentativade apreendertodo o sistemaque revertesobresi
mesmo. E, porque a coesãointerior da Ideia também requer exterioridade e divisão,
cada um dessesestágiosimperfeitos possui uma certa verdade relativa. Cada um deles"é
uma imagem do absoluto; mas, de início, só de maneira limitada, e assim propele para
o todo..." (EZ, S 237, adendo).
Assim, o progresso de estágio em estágio é um progresso de totalidade em totalidade,
em que cada versãosubsequenteé mais rica e mais concreta, chegandomais perto de
uma imagem real do que é a totalidade. Ê um enriquecimento do nosso conceito, no
qual a maior extensãosignifica maior intensidade (WZ, vol. 11,p. 502). Começamos
com o simp]es Ser, no qual temos, em certo sentido, uma imagem da totalidade, porque
ele é autorrelacionado. Ele sofre disfunção no Z)aie/zz,mas retorna a si mesmo na Infi-
nitude e no .1%xK/cASe/n.
Este é interiormente mais rico. No final, chegamosà Ideia que
é a mais rica de todas. Porém, ao alcançar essecomplexidade interior, também alcançá-
mos maior interioridade, maior intensidade da unidade interior, logo, em certo sentido,
maior interpenetraçãoe, em consequência,maior simplicidade. (quando chegamosao
fim, temos subjetividade, consciência de si, que é a mais complexa de todas asunidades,
mas, ao mesmo tempo, a mais simples delas, porque é totalmente transparente.E a
unidade em que a separaçãodas partes,a exterioridade mútua (Hz/ieiz dexle/n)é total-
mente superada. Chegamos à maior articulação possível do nosso conceito, mas também
à sua unidade mais intensa e, em consequência, à clareza e simplicidade.
O CONCEITO 379

Esse
é o ponto em que retomamos,mediante essagrande simplicidade, ao Ser.Con-
que cada um dos estágiosé um retorno, no sentido de que é um modelo do
.0

.de retorno necessário,é com a Ideia que realmente chegamosao objetivo. Temos um
il.deão adequadodesseretorno e, em consequência, uma derivação real dessasimplici-
dado do Ser. Com isso, realmente fechamos o ciclo. Não só mostramos a necessidade de
üm retorno que decorre do postulado do Ser e da descoberta da contradição, mas alcan-
hunos essereton)o com a ideia da necessidade que tem de pâr sua própria existência, de
.m sujeito que tem de pâr sua própria corporificação.
SÓalcançámoso retomo do Ser a si mesmocom a Ideia, isto é, com o entendimen-
todeque a realidadeé o Zocwi
de um movimento duplo, do qual só um parte do Ser.
O outro, que é o mais fiindamental, parte da própria necessidadeinterior, da Ideia. Por
conseguinte,
o ser só retorna a si mesmo à custa de ser destronado ou removido como o
oontode partida real das coisas.
O ser se fragmenta na complexa multiplicidade das coisas determinadas. O que
chamamos de seu retorno a si mesmo é a recuperação da simplicidade e unidade
da categoria "ser" a despeito de ou através dessa complexidade. Porém, isso se dá
porvermosque a multiplicidade dos seres determinados está interconectadapor
necessidade.
O retorno real à unidade se dá quando vemosessanecessidadecomo
absoluta.Porém, se a necessidadeé absoluta, então tudo o que existe, todo ser, existe
porum propósito. Assim, o ponto de partida é realmente essepropósito mesmo, a
fórmulainterior da necessidadeou a Ideia. Todo o terceiro livro da Lógica mostra
queessainversão está essencialmente implicada na noção de necessidade absoluta e,
emconsequência, culmina na Ideia.
Dessemodo, Hegel estabeleceua sua antologia. Primordial é o sujeito ou a ra-
zãoou a necessidadeconceitual. Estes termos estão inseparavelmente conectados.
A essência
da subjetividade é pensamento concebido racional, e a essênciado pen-
samentoracional é a necessidadeconceitual. Ou, alternativamente, a razão requer
a necessidade
conceptual.E, assim, a razão soberana requer a necessidadeabsoluta.
Porém,se a necessidadeé absoluta, então ela tem de pâr toda a realidade em con-
formidadecom ela. Ela, por conseguinte, é propósito. E como propósito pensante
jconceitualizado) ela é sujeito.
Essetermo primordial, que também pode ser chamado de Conceito ou Ideia, produz
apartir de si mesmo um mundo real. E ele Eazisso por necessidade, visto que a subjetivi-
dade,logo, o pensamento, a razão ou a necessidade conceitual, só podem existir corpo-
[ilicados.Essa corporificação possui uma estrutura necessária, isto é, a estrutura que ela
deveter para poder corporificar o conceito. Consequentemente, tanto o#2fo Zeo mundo
ehstir quanto o modo como ele é são necessários, dado que razão, sqeito, necessidade
lêm de existir. Essa corporificação, sendo exterior, nega o conceito e, em consequência,
negaa si mesma, visto que ela só existe enquanto posta pelo conceito. E por isso que ela
é mortal, está em movimento perpétuo e, nesse movimento, retorna à Ideia.
38o PARTElli LÓGICA

Por conseguinte, o que emerge da Z,agirá é a visão de Hegel em que toda a estrutur&
das coisas (incluindo o que é contingente) decorre necessariamente de um só ponto de
partida, a saber, que a Razão (ou o espírito ou o conceito) tem de existir.
Porém, já vimos que, visando fechar o ciclo da necessidade, visando mostrar que essa
tl
ontologia não 6oi só uma interpretação interessante e talvez persuasiva das coisas (outro

Slil'' argumento a partir do projeto: as coisassão exatamente como deveriam ser,se...), Hegel
...N'
.#'
teve de demonstrar essemesmo ponto de partida, mostrar que ele desponta inescapa-
velmente do exame minucioso do finito. E essaprova era duplamente necessária:não só
;: ]=::
c. para convenceroutros, mas para preencher um dos requisitos dessaontologia mesma,
.,#' que preconiza que o Espírito retorna ao pleno conhecimento racional de si mesmo me.
F H...[b diante o ser humano.
L!::...h

C Foi essaa tarefatitânica, incrível, com que Hegel estevesc debatendona Lógica,
í:i::l: e que ele pensou ter realizado. Com efeito, ao tomar como ponto de partida o Ser,o
r' lll.#r'
postulado mais simples, mais vazio, mais inescapável,o de que há (um tipo ou outro de)
realidade, ele alega ter mostrado que disso se segue inescapavelmente que tudo está na
dependência da razão ou da Ideia. Consequentemente, o ciclo 6oi fechado. O Ser, nosso
postulado inicial, é completamente engolido, no sentido de que se revela que ele existe
necessariamente. Com essainversão, Hegel estabeleceu o ciclo da necessidade integral,
do qual falamos no capítulo lll.
E claro que esseconceito da existência necessáriaseráacaloradamentecontesta-
do, e é impossível dar-lhe uma justificação que seja distinta do argumento inteiro da
Z,(k/ca. Porém, agora talvez seu significado esteja um pouco mais claro do que esteve
no capítulo 111.Existência necessáriasignifica, em primeiro lugar, existência para um
propó.sito, visando realizar um plano. Dizer que as coisas existem necessariamente
significa começardizendo que elassãopostas. Porém, isso requer também que o plano
ou o propósito seja,ele próprio, necessário,e isto significa, para Hegel, que ele seja
derivado de uma noção de necessidade,junto com as noções relativas a ela da razão,
do conceito e da subjetividade. Devemos adicionar a isso uma terceira condição, a de
que o plano ou propósito não é o de um sujeito que existe separadamentedo mundo
governado por ele. A teleologia é interna.
Ora, a ontologia da existência necessária é do tipo em que nada está meramente
dado, exceto que a necessidadetem de existir. Não há ser que estejadado, visto que tudo
que existe é derivado do plano necessário.O conteúdo do plano não estásimplesmente
dado, visto que ele é derivado da natureza da necessidade.Pode-sedizer que tudo isto
existe em fiinção da necessidade (ou do Espírito ou da razão). E assim, na base de tudo
11
está um requisito, a saber, que a necessidade conceitual ou o sujeito ou a razão existam.
Por conseguinte, essanecessidadeé inerente às coisas. E o propósito intrínseco do todo.
Náo só a realidadeexiste por necessidade,mas também o próprio movimento as-
cendentepelo qual nos elevámosde um entendimento exterior das coisaspara uma
visão da Ideia Eazparte do plano. Um mundo emanado da necessidaderacional tem de
O CONCEITO 38i

racionalmente.Uma vez que os sujeitos que conhecem são finitos, eles


no conhecimento de um ponto de vista finito que vê a contingência a
necessidade.E para que esseascenderseja plenamente racional, ele tem
do começo ao fim por inferências necessárias. Se náo fosse, as mentes
ascenderà certezaracional (atravésdo argumento necessário)
(o necessárionas coisas).Porém, é parte integrante da realização
elasprocedam assim. De modo que as inferências racionais do movimento
Ezem parte da existência necessáriaque a Ideia implemente para nós.
outra razão por que a Ideia, como a categoria final, abrange todas as demais
Não só porque elascorrespondama níveis do ser que emanam dela por ne'
mastambém porque se trata de estágiosda noção imperfeita na rota do seu
si mesmo a partir da consciência finita. O erro nessasvias imperfeitas de
náo é, portanto, absoluto, mas simplesmente consiste em não enxergar a sua
não enxergar,em outras palavras,que as próprias coisasa que se aplicam
e um resultado da perfeita necessidade.

ALógicaé concebida,portanto, como o movimento ascendenteque nos leva da


uciência
finita até a visão das coisasemanando da Ideia. Ela é, uma vez que elimina-
a/Z a única candidata séria a essafunção em Hegel. Ela foi bem-sucedida?
Apartirdo que eoi dito até aqui, é evidente que um Eatorcrucial na respostaseráo
pealguém
pensa da prova que Hegel apresentou da natureza contraditória do finito que
prece
no segundo capítulo, sobre o Z)asr/n. Porque é nessa contradição que está fundada
[ribuição
da necessidadeao real por parte de Hegel. Ê isso que Ihe permite derivar a
Kgoria
daInfinitude como um todo autossubsistentecuja implementaçãoé governada
lanecessidade.
E, nesseponto, o passodecisivofoi dado, visto que todo o restanteda
irapodeserrazoavelmente encarado como desenvolvimento do que está implícito nessa
@oda totalidade necessária, uma totalidade em que a necessidade está nas coisas.
Comefeito,issonos permite mostrar que asvárias concepções da Essência,que proje-
m algumfundamento subjacente por trás dos fenómenos exteriores, são insustentáveis,
o queelasdariam uma separação entre a necessidade interior e as coisas. Disso deriva-
quea necessidadetem de ser manifesta; e, mais tarde, que ela tem de ser absoluta.
daabsolutidade da necessidade derivamos que a totalidade existe como concretização
umpropósito, que ela é um sujeito que conhece a si mesmo e, em consequência, que
estáfundadanuma Ideia absoluta. Em outras palavras,bem no início da Z,(@fca,
ou
a,coma Infinitude, estabelecemos
a conectividade necessáriacomo propriedade que
rvedecritério do pensamento categoriasadequado sobre o mundo. Isso, então, prevê
motorparaa dialética que nos guia atravésdo restante da obra e pela qual ascategorias
elevadassão levadas, no anal, a revelar sua dependência da Ideia absoluta.
ssoquerdizer, na prática, que a dialética hegeliana não fiinciona do começo ao
n de acordo com a fórmula descrita anteriormente no capítulo IX (e, antes disso, no
38z PARTEill l LÓGICA

capítulo IV), segundo a qual cada termo revela estar em contradição e a tentativa d.
resolvo-la gera um novo termo que revela uma nova contradição e, em consequênci,.
gera mais outro termo, e assim por diante. As passagens inaugurais de fato seguem essa

fórmula: as dialéticas do Ser e Nada e a do Z)me/m, na Z(#fcú, e a diabética da consciência,


na /Z'. Por conseguinte, o Ser sofre a contradição de converter-se em seu oposto, no
$..r Nada, e isso nos corçaa chegar ao Z)Hein. Paraexistir, o Ser tem de ser determinado.
Mas então, deparamo'nos com uma nova contradição, que aponta como que na dire.
ção oposta, que o Ser Determinado contém a sua própria negação e, em consequências
(. necessariamentesucumbe. Sob o ímpeto dessesdois requisitos opostos -- que o Serteu
de ser determinado e, não obstante, que sua determinidade é mortal para ele -- somos
.H'

} «...ib
:c " .iP
ilt»lrtn

iln.llPll
impedidos para a infinitude, para o sistema imortal, autossubsistente, dos seresfinit(is
[ .l.l4 }11l
mortais dependentes.Porém, com a Infinitude alcançámos um termo que não sofre (em-
l:.l l::l: bora contenha) contradição; ela é, antes, uma fórmula, cujas implicações só necessitam
r ./' ser plenamente deduzidas para [evar-nos à síntese reconci]iadora final.:s
Nesseponto, já há muita coisa a fazer: há muita coisa implícita que precisaserdita
com todas as letras, e uma grande quantidade de termos categoriais ainda têm de ser
considerados. Porém, o procedimento a partir de agora não é realmente que cada um
dessesnovos termos, uma vez gerado, revele uma contradição /zoz'óz
que nos impele para
um novo termo, como Hegel parece ter pensado. O que ocorre é, muito antes, que essas

categoriasmais elevadassão trazidas perante o juízo da Infinitude e dos termos que a


sucedem, isto é, perante o conceito da cadeia autossubsistente de mudanças necessárias,
e revelam-se como inadequadas. No processo, a visão da necessidade autossubsistente é
enriquecida no percurso da Infinitude até a Ideia absoluta.
O que, em cada passagem, parecem ser contradições novas e, em consequência, ba-
sesindependentes do argumento, di6erencesdessedesenvolvimento das implicações da
totalidade necessária,como o conflito entre suficiência e in6ormatividade no Funda-
mento ou a "incomensurabilidade" do juízo e raciocínio comuns diante da necessida-
de autossuficiente enquanto propriedade que serve de critério do pensamento no item
Subjetividade, acabam sendo, quando examinadas mais de perto, dependentes dessa
linha principal do argumento É muito provávelque Hegel não tenha pensadoque elas
fossem tão dependentes. Isso parece bem plausível no caso do ascender através do Juízo

25De modo similar, no capítulo l da /{F, Hegel mostrou que não há pura consciênciade particulares, mas
que nós sempre designamosmediante universais. Mas, depois, na diabéticada Percepção,ele mostra que a
universal i)ão pode ser designado independentemerl [e do mu ndo dos particulares. A dificuldade de combi-
nar essesdois requisitos, isto é, de combinar a coisa particular e suaspropriedades, é o que nos impele atéa
força e, consequentemente, à autorrepulsão do idêntico e, em consequência, à consciência de si. O restante
da FE, sendouma dialética amplamente interpretativa, "costela" esseconj unto inicial de transições.
Comparando asduas obras, podemos ver que a debilidade dos argumentos de abertu ra da .fU, mencionados
no final do capítulo IVI de que eles parecem pressupor o requisito da explicaçãonecessária,é, pelo menos
pretensamente, corrigida na Z( /r pela transição capital à Infinitude.
o r' (l 'NÍ (' F TÍI
T
383

Silogismo no item da Subjetividade. Porém, pode ter sido igualmente que muitas
ç6es,como, por exemplo, da Medida para a Essência,da Causapara a Interação,
ssibilidade e Realidade para a Necessidade, tenham sido entendidas por ele como
.independentes
dessaconclusãoprincipal da totalidade necessária,
que foram in-
ldasnela sem se apoiarem nela. Porém, seria muito difícil sustentar essaindepen-
i,. De bato, a maioria dessesargumentos entra vergonhosamente em colapso sem a
lassa
subjacenteda necessidadeontológica.
le essainterpretação estiver corneta, o suporte crucial de todo o edifício do sistema
legelrepousa sobre o argumento em D e/ referente à contradição do finito. Para
lesque, como eu, acham que esseargumento não Eoibem-sucedido, a demonstra-
@' que Hegel Eazde sua antologia só pode ter a força de uma interpretação mais ou
me] :osplausível dos fatos da finitude, dos níveis do ser, da existência da vida e dos seres
con ;cientes,da história do ser humano, constituindo "vestígios e indícios" da vida de um
sul( Ito absoluto, implementada no mundo.:'

lo decorrerda Lógica, Hegel enfrenta a dificuldade de que a estrutura ontológica básicaque ele supõe
teceré mais facilmente visível "no alto" da escalado ser por exemplo, nos seresvivos ou nossujeitos
lentes ao passoque sua empresademanda que ele estabeleçaessaoncologia primeiro no nível mais
no simples Ser Determinado. Assim, os exemplos que ele precisa para dar plausibilidade à sua tese,
certosentido, não sãoapropriados quando ele realmente precisadeles.
conseguinte,
Hegel vez ou outra se descobreilustrando uma categoriacom um exemplo de alguma
muito superior. Ao discutir o Ser-para'si, ele nos remete ao "eu"; ao edar da oposição polar, ele não
Itaos exemplosdo magneto e da eletricidade, mas também da virtude e do vício, da verdadee do erro,
lturezae do espírito.
lemaem que o próprio Hegel seencontra pode serformulado da seguinte maneira. De um lado, ele de-
que asformas inferiores da realidade simplesmente material são manifestações imperfeitas da realidade
on }gicabásica cuja expressãomais clara é o espírito. Consequen temente, a centralização do sistema solar
em
Fornodo sol é um reflexo da centralizaçãoda subjetividade, que, contudo, é imperfeita no sentido de
qu setrata de uma centralização no espaçoexterior, náo consciente do sf/6 De modo similar, podemos
c01
:bera luta entre ergo e águacomo a manifestação imperfeita no seu nível da luta entre opostos cuja
me lor expressãose dá no domínio espiritual.
Dc
outrolado, porém, não basta apenasapresentarum indício da verdade à guisa de uma hermenêutica
da
iêncianatural, na qual apontamos para os "sinais" nascoisas naturais de sua relação ontológica com a
Ide
Antes, temos de Zenzonsnnr essaoncologia. E a demonstração tem de ser deita no nível das categorias
lares, daquelas que se aplicam a tudo e não só a animais, seres humanos, sociedade. Se não for assim,
de
lto não teremosdemonstrado que as categoriasque Hegel deduz da vida de sujeitos têm aplicaçãover-
da( ienceuniversal, cósmica
Da
que,por exemplo, com oposições materiais como entre fogo e água, temos manifestações imperfeitas,
OPê
nas quais a estrutura ontológica básica não é transparente. E essaopacidade é que torna difícil, se
nã(
impossível,demonstrar essaestrutura nas coisas materiais, inferiores. E, não obstante, ela tem de ser
der
)nstradaaqui, se quisermos provar que a natureza é uma emanaçãodo espírito e, em consequência,
qut
los xuaía/#fl Pr zzZzparaexplicar virtude e vício ou corpo e alma Ol} nascimento e mordenos termos
des
estrutura,como EazHegel. É Hcil repor a ontologia hegeliana em relação aosseresespirituais, mas ela
384 PARTElll l LÓGICA

Porém, embora issopossa ser satisfatório para uma visão romântica, era radicalmente
insuficiente para Hegel. O Espírito tem de chegar ao pleno autoconhecimento racionalDn
ser humano. E issoquer dizer que o ser humano tem de chegar à certezaracional Sobreo
absoluto. Se essetipo de certeza, fiindada sobre a argumentação rigorosa, não 6or possível
se 6or possível apenas uma visão interpretativa, então a síntese de Hegel se rompe.
Ou Deus não chegaao pleno autoconhecimento racional, mas só a uma intuição
i::.pi':=1
: profunda e não plenamente articulável de sua naturezae deslizamosna direção de UU
p'nteísmo romântico, ou Deus chegaà autoclarezaracional, maspara além do serhu.

ã
/'
:lisa
""
l «...b""«
mano e, em consequência,para além do mundo (uma vez que o serhumano é a cona.
ciência de si mundana), e deslizamos na direção do teísmo ortodoxo. Num dos casos
sacrificamos o princípio da racionalidade; no outro, o princípio da corporificação. Eles
não podem mais ser coadunados.
Porém, até mesmo aquelesque chegarem a essaconclusão desalentadora encontrarão
na Z(eira uma trama imensa de argumentação incessante, que, embora não chegando
à conclusãovisada, não deixa intocado, inexplorado, inabalado nenhum ponto de re-
ferência da tradição filosófica europeia. A enorme energia do pensamento, batendo-se
com a matéria-prima do argumento, para fazê-lo produzir uma conclusão impossível,
gerou uma profissãode linhas de raciocínio imprevistas que, não obstante, têm de ser
apropriadamente exploradas.

tem de serpraz,a2a p'imeiro numa diabéticaascendente que começa com meros seresdeterminados, em que.
segundo a teoria do próprio Hegel, ela é manifestada imperfeita e obscuramente.
Isso coloca a emp'esa de Hegel diante de um dilema, que ele esperaevitar mediante a prova da concradiçáo
no ser finito. Se essaprova 6or inconvincente, então há uma lacuna em seu argumento que ele só pode
preencher tomando emprestadas,por assim dizer, as suas últimas conclusõesantológicas. Porém, esseem-
préstimo é tomado de um banco adido, porque essasconclusões mesmasestão baseadasno suposto caráter
generalizado da contradição no ente finito.
CAPÍTULO Xlll

A Ideia na natureza

Temos,na Ideia lógica, o puro pensamento interior do mundo. Porém, a verdade


pensamento acarreta que ele não só se converta em necessidade interior, mas em
dentro de um mundo. E, em consequência,a Z,í@fca
termina deduzindo o
latoda natureza. Em outras palavras, acabamos de mostrar que tudo emana de uma
necessidade
interior e, por conseguinte, que o Ser é autorrelacionado como totalidade
c,m consequência,imediato. Isso, porém, como diz Hegel, não é transição nem devir;
nã+é comoo movimento de uma forma menosperfeita para uma mais perfeita. Essas
nansiçóes
ocorrem entre níveis dentro da totalidade. Nesse ponto, não temos nada além
daprópriatotalidade, o que já mostramos que ela é.
O ponto é que a necessidadeautossubsistentereal tem de ser inerente à realidade
independente Ela tem de ser uma necessidade
livre, isto é, tem de emanarda própria
italidade como sua própria. E isso quer dizer que deve haver um ser autossubsistente
livreque tem a sua própria necessidade. Consequentemente, diz Hegel, a liberdade da
Ideiaacarreta que ela "mantenha a si pr(5pria livre" (IVZ, vol. 11, P. 505), que ela deva
resultar
em, que ela deva fer uma realidadeque não estápresanas correias condutoras
daIdeiacomo conte exterior de controle, mas que tem por si mesma essanecessidade.
Porém
seré ser determinado. Determinidade implica que as coisassejam realmente ex-
[eriores
umasàsoutras; e isso quer dizer que elas existam no espaçoe no tempo
Consequentemente, essatotalidade
existente no espaço e no tempo deve ser algo que
tema necessidadeem si. A liberdade, isto é, a autonecessitação
do rea],visto que o real
nquerexistênciano tempo e no espaço, implica uma totalidade no tempo e no espaço que
SKreEa
sua própria necessidade, cuja necessidadenão é exterior a ela, como ainda era nas
armasdo conceito
subjetivo e da cognição. Por conseguinte, a consecução mesma da Ideia
pomoplenitude da necessidade
interior requer que ela selaplenamente exterior. O plena-
menteinterior é o plenamente exterior; como vimos, coincidem no bom e no mau sentidos.
Porconseguinte, não há realmente transição aqui, mas equivalência. A ideia deixa a
sipróprialivre, como vimos. "Em virtude dessaliberdade, a forma de sua determinidade

atente
é completamente livre a exterioridade de espaço e tempo existindo absoluta-
por si mesma sem subjetividade" rtm,, vol. 11, P. 505).
A
imagemsubjacenteaqui é que a subjetividade anterior a um mundo semnecessi-
Jade
interior
só pode reter a ordem necessáriapensando ela própria o mundo. Ela tem
devigiá-lo
perpetuamente e mantê-lo sob a tutela do seu pensamento, para que não caia
386
PARTElll l LÓGICA

na mera contingência. Porém, seestamos realmente tratando da necessidadelivre, então


o mundo pode ser deixadolivre e ostentaráessaordem por si mesmo. Assim, a liberda-
de da Ideia acarretaque ela "decide-sea deixar sair livremente de si o momento de sua
particularidade, ou do primeiro determinar-se e ser-outro -- a Ideia imediata como seu
reflexo,
como/zafz/rez.z"
(EZ,S244).
?'
A natureza, portanto, emana da Ideia. Esse é o ponto de partida da filosofa da na-
,-'i!..""l tureza e do conjunto inteiro de dialéticas dependentes, interpretativas, que perfazem a
filosofia do espírito. Infelizmente, não podemos acompanha-las todas aqui. Na Enclcb.
c. pí12:a,que Hegel publicou em 1817 e que teve três ediçõesantes de sua morte, Hegel
.,#'

},..b expõe seu sistema inteiro de forma compacta. A Z,(Üfcaé seguida pela Filosofia da Natu-
i,l; l: rezae esta, por seu turno, pela Filosofia do Espírito, que, em certo sentido, completa a
[ tríade mediando Ideia e Natureza.
r.ll:l= A própria Filosofia do Espírito é dividida em trêspartes' A primeira, Espírito Subjetivo,
r' ./'
trata daquilo que grassa modo pode ser chamado de psicologia e os poderes humanos como
ser pensante (individual). A segunda, Espírito Objetivo, trata do espírito enquanto cor-
porificado na sociedadehumana, e constitui a filosofia hegelianada história e da política.
A terceira, Espírito Absoluto, toca no conhecimento que o absoluto [em de si mesmo,na
forma como estáexpressonos três grandesmeios da arte, da religião e da filosofia.
As últimas duas partes obviamente são o objeto de outras obras da maturidadede
Hegel, a J%/oio@ado l)/grifo, que ele próprio publicou, e as preleçóes sobre a filosofia da
história, a estética,a filosofia da religião e a história da filosofia, cujas anotaçõescoram
publicadas pouco depois de sua morte. Estescoram os domínios das mais ricas dialéticas
interpretativas de Hegel, sobreas quais ele pensou mais profundamente e nas quais a sua
originalidade mais se destacou. Abordaremos as duas nas próximas duas partes'
A filosofia da naturezade Hegel foi uma obra um tanto mais derivativa. Ele seins-
pirou em grande medida nas especulaçõesanteriores de Schelling e dos românticos;
Vimos, no primeiro capítulo, que a ideia de uma física poética, que mostraria traçosdo
divino na natureza, entusiasmava bastante os românticos. E essafoi uma preocupação
que eles compartilharam com Goethe. Hegel, ausente e fazendo seu próprio trajeto ex-
cêntrico na década de 1790, parece ter chegado tarde a essa preocupação ' Ele estava

mais preocupadocom a história religiosa e o destino do ser humano. Schelling foi o


filósofo que encarnou, por assim dizer, essaonda da física espiritualizada e providenciou
a visão filosófica da natureza pela qual aquela época ansiava.
Os primeiros passos de Hegel na âlosofia da natureza foram dados sob a influência de
Schelling. Porém,o seu próprio sistemaexigiu uma filosofia da natureza,porque todo o

10 único sinal do interessede Hegel por essaárea, na décadade 1790, é o manuscrito inédito que íoi jnti;
tulado O .A4afs.4/zrÜa
Pragxnm.z
Sfs fm,íljfo do J ü /limo ,4/empa,em que Hegel Edade "dar asasà nossafísica
que avançamorosa e laboriosamente mediante exp:rimentos" (Mexe/}Wêrée.Frankfurt, Suhrkamp, 1971,
vol. 1, p. 234). Essetexto foi por muito tempo atribuído a Schelling.
ALDEIA NA NATUREZA 387

emanada Ideia e deve ser possível mostrar isso pelo exame da realidade em todos os
.,.isníveis.A filosofia da natureza final de Hegel é, portanto, a transposição da filosofia
& naturezade Schelling, que mostra as estruturas da Ideia, como Hegel as entendeu,
comocorpori6cadas no mundo natural.:
' Porisso, a âlosofia da natureza é realmente o que chamamos de dialética hermenêu-
tica.Hegel provavelmente não iria gostar dessetermo, com a sua implicação de que a
certeza
final sempre nos elude. Porém, em todo caso, estáclaro que se trata de uma diabé-
ticadependente. Ela não [em início num ponto de partida inegável e move-se a partir daí
medianteargumentação estrita. Antes, ela pressupõe o que eoi provado na Z,clgfcae tam-
bémo que Eoidemonstrado pela ciência natural, e mostra como uma se reflete na outra.
Maisdo que uma prova, ela provê uma exposição do acordo entre a natureza e a Ideia.
A fijosofiada natureza, por conseguinte, segueà ciência natural e deve concordar
comela.Ou, como formula Hegel:

Essafilosofia não só deve concordarcom a experiênciaproporcionadapela


natureza, mas também, em sua formação e em seu desenvolvimento, a ciência
filosófica pressupõe e é condicionada pela física empírica. (E7vl S 246, nota)'

Porém,ao mesmo tempo, ela precisa captar a necessidade interior da natureza. Ela vê
anaturezaem "sua própria necessidade interior, de acordo com a autodeterminação do
Conceito" (.ÊW. S 246).
A necessidadefaz parte do Conceito. Temos de mostrar seusvestígios na natureza, e
issopressupõeos resultados empíricos da ciência natural. Porém, isso não é um apelo à
experiência, porque a estrutura da necessidade provém do Conceito. Deduzimos os seus
estágios
e então os reconhecemos na natureza empírica. Hegel nos lembra o seguinte:

No curso do conhecimento filosófico, não somente se tem de apresentar o objeto


segundo sua determinação de Conceito, mas também a aparência empírica
correspondente a essa determinação deve ser especificada e deve ser mostrado
que a aparência de Fato corresponde a referida determinação conceptual. Porém,
em relação à necessidade do conteúdo, isso não é nenhum apelo à experiência.
(É7V.f246,nota)

Maisadiante, ele diz que a filosofia natural acolhe o material que a física prepara para
elaapartir da experiência no ponto até onde a física o trouxe, "e o reconstitui" (zl#Z ó//-
&ffÓ/z /eder zím) (ENI, S 246, adendo; cf ed. bus. p. 22). Ele confere aos achados da

Éclaroque Hegel quer nitidamente diferenciar a sua filosofia da naturezada dos românticos, que ele con-
ideraamplamente arbitrária e gratuita, por estar baseada na intuição, que realmente é apenas um " Ur@aórf/z
n/e# ng /zZPÉa/zías/e Óaz/ródrr ])ga/z/ fere zzdcó.4/z.z/PWen.- "lprocedimento da imaginação e da
ia (também da Eantastiquice)baseadoem ana]ogias...] (ENI, S 246, nota).
lido com basena tradução inglesade M. J. Peuy, /]rgf/} PfZaiopZyafJVarurf. Londres, 1970.
388 PARTElll l LÓGICA

física a sua forma de necessidadecomo algo que, "na condição de todo intrinsecamente
necessário, procede do conceito" (ibidem).4
O problema com os achadosda física assim como estão é que lhes falta essanecessi-
dade. Os universais são meramente formais, abstratos, isto é, sem relação interior coH a
sua corporificação particular. O que significa que eles também sãocontingentes, porque
,.1113) coram descobertosmediante o exame dessacorporificação que não possui relação inte-
rior com eles. E, assim, o conteúdo determinado está Hora do universal, "estilhaçado,
desmembrado, particularizado, separado e carecendo de qualquer conexão necessária

c. dentro de si, sendo, assim, apenas finito" (-E/V.,S 246, adendo; cf. ed. bus. p. 23).S
..# Nossatarefa é reconduzir isso tudo à unidade. Porém, é nesseponto que encontra-
l ...,,!b
mos muita resistência.Há quem penseque o universal,o pensamento,o sujeito estão
l:.l!:
para sempre apartados da existência particular, da realidade, do objeto. Jamais pode-
remos rasgaro véu. De Eito, porém, essadivisão absoluta é negadatodo dia em nossa
r ..# atividade prática. Até mesmo os animais possuem essaintuição da nulidade do que se
contrapõe a nós. Contra aqueles metafísicos que alegam que não podemos conhecer as
coisas, "porque elas são absolutamente fixas diante de nós", poderíamos dizer "que nem
os animais são tão estúpidos como esses metafísicos, porque eles vão à luta e cavam,
apanham e consomem coisas" (ibidem; cf ed. liras. p. 21).
E, de bato, o que está na base das coisas é a Ideia, a Ideia no sentido platónico, o pensa-
mento, o Universal. Porque esseuniversal tem de vir à existência; Deus tem de criar o mundo.
Há os que sentem isso. Eles veem o mundo dos absrratos universais da física como não
satisfatório. Eles, porém, descreem da razão e Eram de reconstituir a unidade das coisas
através da simples intuição. Hegel está se referindo aqui aos românticos. Eles têm a pre-
monição do universal, diz ele, mas o apelo à intuição é um "impasse" (HómeK= caminho
que Jasta] (ibidem; cf ed. bus., p. 24). Porque temos de captar o pensamento com o pen-
samento. Essetipo de fisga também está relacionado com o 6enâmeno do primitivismo.
A vocação da filosofia natural é realizar o objetivo do Ge/rf de reconhecer a si mesmo
na natureza, de encontrar nela a sua "contraparte" ((l;«f#ó/Za . O Geisr tem a certeza de
Adio diante de Eva: "isto é carne da minha carne; isto é osso dos meus ossos" (ibidem;
cf. ed. bus., p. 25).
Mais adiante, Hegel diz de novo que devemos empreender uma comparação para ver
se nossadefinição da naturezaa partir do conceito "correspondeao nosso pensamento
comum sobre a natureza" (Zer WorsfeZZzínK
e/zlpr/cÃr) (E7\CS 247, adendo; cf. ed. bus., p
27), porque, de modo geral, os dois têm de concordar.
A Natureza é a Ideia na forma do ser-outro. Ela não só é exterior à ideia, mas é a própria
exterioridade (EW. S 247). Deus tem de sair de si e tornar-se outro: como Ideia, esteé o

Traduzido com basena tradução inglesa modiâcada pelo autor de M. J. Peüy, i'írKf/} PÍ/aiaPAyofJUamrf.
Londres,1970.
q
Ibidem.
ALDEIA NA NATUREZA 389

liaHJ,o eterno filho de [)eus. E]e também sai para o Espírito finito, que também é Grisf
jqumto "ser-outro"(HndrzKie/n). Porém, a Natureza é a Ideia, o filho de Deus, como
persistir no ser-outro a Ideia divina como retida Horado amor por um momento.
A natureza
é o espíritoalienadode si; o espírito,um deusbacantelivre de
comedimento e reflexão, 6oi meramente ioZtadentro dela; na natureza oculta-se a
unidade do conceito. (.E7V.S 247, adendo, p. 50; cf. ed. bus., p. 27y

porém,entranhada (en@em2er) da Ideia, "a natureza é apenas o cadáver do entendi-


mento".E a Ideia congelada ou petrificada. No entanto, assim ela não pode permanecer,

K Deus é subjetividade, infinita operosidade (ibidem; cf. ed. bus., p. 27).


Naturezanão se conforma à sua Ideia. Ela é a "contradição não resolvida" (-ÊW.
248,nota). Matéria é aquilo que é exterior a si mesmo (-E7vlS 248, adendo; cf: ed.
liras.,P.31). Assim, ela ainda náo é liberdade, ela é necessidade cega, necessidade idênti-
L acontingência. Pelo fato de a necessidade ser a relação entre entidades aparentemente
independentes,
a natureza não é livre, mas necessária e contingente.

Pois necessidadeé a inseparabilidade de termos diferentes e que, não obstante, ainda


parecem ser indiferentes. A abstração da autoexterioridade, no entanto, também
recebeo que Ihe é devido, daí a contingência ou a necessidadeexterior, contrastando
com a necessidade
interior do Conceito. (É7\CS 248; cf ed. liras., p. 32y

A Natureza é um sistema de níveis (Sfz@'n)em que cada nível passa necessariamente


)araum nível superior. Porém, o superior não é gerado a partir do inferior. Ele é obra do
Conceito
(.EW.S 249). Nesseponto, Hegel rejeita qualquer negociaçãocom a evolução.
púnicacoisaque realmente é capaz de se desenvolver é o Conceito. Consequentemente,
odesenvolvimentoexiste na sua manifestação no Ge/f/, mas não na natureza. A Natureza
daquilo
que é exterior a si mesmo; seu princípio é o Conceito; mas esteé puramente
tterior."0 Conceito, de forma universal,póe toda particularidadena existênciade
lnasóvez" (.E7V,
S 249, adendo; cf. ed. liras. p. 34). A essênciada Natureza é exterio-
údade,de modo que as diferençasque constituem todo o seu conceito devem ocorrer
àparteumas das outras como "existências indiferentes" (g&/cÁKü#ilgeExlffenzrn)(MINI,
249,nota,adendo;cf. ed. bus. p. 34). O argumento pareceser este:se a naturezase
desenvolvesse
a partir de si mesma até à plenitude dos momentos requeridos dela, sendo
primeiramenteinorgânica, depois orgânica, etc., isso conferida à própria natureza o po-
derdo Conceito, porque ela seria capaz de evoluir. Porém, o conceito estácorporificado
interiormente
apenasno (»/s/, que, portanto, é o único que tem história.
Esse parágrafoé desastroso.No adendo,Hegel náo só continua argumentandocon-
P aevolução,mas também contra entender as diferençasmediante uma série em que os
39o PARTElíl l LÓGICA

elementos superiores são produzidos a partir dos inferiores recursivamente por alguma hr.
mula. A Natureza não dá saltos, porque o Conceito se move mediante diferenças qualitativa.
Por conseguinte, Hegel também exclui a tabela periódica, Mendeleiev junto com Darwin.
Por ser apenas necessidade interior, a natureza possui grandes quantidades de contin-
gência dentro dela. Para Hegel, contingência é o mesmo que determinação a partir de
[.7 Gota. As coisas concretas particulares estão repletas dessa contingência e determinação a
partir de fora. É "a impotência da natureza manter as determinações do Conceito só de
maneira abstrata e expor a realizaçãodo particular à determinação externa" (-E/V,S 250;
1... iF
cf. ed. bus. p. 36). Isso impõe limites ao que a filosofia pode deduzir; e essa é a resposta
./d'tP'
}li..b. ao Sr. Krug, que desafioua filosofia natural a deduzir sua pena de escrever.Vemosno
b:lib particular apenas"rastrosda determinação conceitual" (SPZ/re/z der BeP @Z'elfímmng)
(.E]V,S 250, nota). É por issoque as classesnaturais contêm muita arbitrariedadee de-
sordem; para não Edar dos problemas criados por monstros, etc.
r' ./
Há três grandes estágios (E7V, S 252). Estes já coram esboçados na seção da ZaKíca
sobre Objetividade. Em primeiro lugar, temos a natureza concebida como massa.Essa
é a esfera da mecânica, e sua realização suprema é o sistema solar. Ela revela a forma do
Ser-para-si(/ürs/casei/z), que nessa esfera recebe a forma de um impulso (nr/eZ') na dire-
ção do centro. O sistema é ordenado e gira em torno de um ponto central. Porém, essa
forma ainda é matéria exterior; os diferentes corpos que desempenhamdiferentes papéis
são indistinguíveis na sua substância, sendo diferenciados só em seu papel-
Passamos,
então, para próximo estágio,em que as diferençasde forma se tornam
internas à matéria; e, nesseponto, temos a matéria diferenciada em diferentestipos de
substância.Os diferentes papéis requeridos pelo Conceito para compor uma unidade
ordenada estão na própria matéria. Porém, esseestágio ainda é o da unidade imediata da
forma com a sua matéria. Elas estão unidas apenas positivamente. A matéria estáiden-
tificada com a sua qualidade. Não é uma identidade interior que póe essapropriedade.
Ela deixa de ser ela mesma quando perde essapropriedade. Desse modo, ela é como o
Z)zziei/zdo primeiro livro da lógica.
Porém, com o mundo orgânico temos a Totalidade./brlirÁíei zz2e [existente par' si],

que se desenvolve por si mesma nas suas diferenças. A vida dessasdiferenças passaa ser
reunida num indivíduo natural e torna-se uma coisa só com a sua natureza mais intima.
[)esse modo, essanecessidade interior passa a ser expressa exteriormente e é intrínseca
a um ser natural. A vida passa a multiplicar-se em tonalidades separadas, não open's em
propriedades separadas. Essastotalidades são espécimes e também membros. Porém, eles
são produzidos e enter-relacionados por um só processo de vida.

A seção sobre Mecânica começa com a derivação de espaço, tempo, matéria e


movimento. Em seguida, o segundo capítulo, "Mecânica Finita", trata da gravidade.
ALDEIA NA NATUREZA 391

O terceirocapitulo, ' tronomia", trata da realização da mecânica na ordem, no sistema


.llH. Esta é a "mecânica absoluta" da Lógica.
O espaçoé a própria exterioridade; é a determinação primeira, abstrata,básica,da

Fi;=E?=.?;n=B!;ri=:
Oespaçonão é apenasuma propriedade das coisas, porque ele estápresente mesmo que
alassejamtiradas. Porém, ele tampouco é uma realidade substancial; ele não possui rea-
lidadepor si mesmo (E7\CS 254, adendo). Kant está carreto à sua maneira quando diz
.ue eleé uma forma simples. Porém, ele está equivocado, como de hábito, ao concebê-lo
demaneirasubjetiva. O espaço não é meramente subjetivo, mas é a forma no sentido
daabstração
pura, a pura realidadeabstratado natural, do exterior; logo, ele tem de ser
cuido (.E/V,S 254, nota). Ele é uma "sensibilidade insensível e uma insensibilidade
vel. As coisas naturais estão no espaço, e o espaço, sendo natureza sujeita à condição
daexterioridade,permanece como o fundamento da natureza" (.ÊW,S 254, adendo).'
Hegel também deduz do Conceito a triplicidade das dimensões e deduz a sua Efta de
diferenciação
daexterioridade
dessa
realização
(.Ê.Ar,
S 225).
Porém,essaexistência exterior imediata contém negatividadeporque ela não pode
existirsó como exterior, logo, ela estáem contradição. Hegel vê negaçãoprimeiro no
ponto(/IN S 256), na tentativa de chegar, a pa'tir da exterioridade, à identidade singu-
larconsigomesmo. Porém, para a natureza do espaço isso significa a sua própria nega-
ça, ou seja,o Eito de não ter extensão,de modo que o ponto passaa constituir a linha,
alinha, a superHcie, e esta, todo o espaço
Porém,essanegatividade possui existência real enquanto tempo. Neste, o espaço náo
estámais em repouso, condição em que suas partes apenas coexistem. Ele passa a estar
emmovimento. O tempo é a facedo Nada, do devir. Ele é a negaçãoda exterioridade do
espaço,
maso é também de um modo puramente exterior (ZIW.S 257). Assim, o tempo
tambémé uma forma pura de sensibilidade, uma "sensibilidade insensível" (wnf//z/zacóe
Sf/z/z#cóêel/).
Ele é o princípio da subjetividade, logo, do movimento, maspermanecen-
doexteriore, em consequência,como simples devir (.EI/V.$ 258). Ele tampouco é um
recipiente.
Não deveríamosdizer que tudo devém e passano tempo, mas,antes, que o
própriotempo é o devir, o que devém e passa,"o Cronos que para tudo e que destrói
tudoo que Em nascer" (.ÊW.S 258, nota; cf. ed. bus., p. 55). O natural enquadra-se
nesse
devir porque ele não concorda plenamente com o seu conceito.
Assimsendo, espaçoe tempo não são recipientes, mas também não são apenas
propriedadesdas coisas; eles são condições das coisas, visto que constituem as formas
exteriores
sem as quais as coisas não existiriam. "0 tempo é meramente essaabstra-
çãodo destruir [...]. As próprias coisassão o que é temporal. A tempora]idadeé a sua

Traduzidocom base na tradução inglesa de M. J. Petry, /]Qlgf/ PíbsopA7 ofJyar&re. Londres, 1970
39z PARTElll l LÓGICA

determinação objetiva. Por isso, é o processo das coisas eeetivasque constitui o tempo"
(.ÊI/V.S 258, adendo;cf. ed. liras. p. 56).9
Porém, a negaçãodo espaçopelo tempo não é satisfatória, pois ainda não temos nada
além de um Ruir que se esvai. Assim como a sua unidade no Devir, o tempo e o espaço

tl
devem ter uma unidade subsistente, análoga ao Z).zie/n. Hegel deriva esta por meio do
lugar, do movimento e, por íim, da matéria. O ponto eoi uma primeira tentativa de
chegara algum centro subsistente; essatentativa Edhou. Agora, porém, a partir do movj-
mento do espaçopara o tempo e de volta, temos o ponto que alcançamaior concretude
l.... como o lugar. Em outras palavras,o tempo não pode ser só a negaçãodo espaçonem
..d'i+''
tl.,b o espaçoa do tempo, maselestêm de unir-se. E essaunidade é lugar. Este é a duração
L..+ (E)az/en zZmZ)az/rende); aquilo que permanece através do tempo. Deve haver algo du-
C radouro. Não pode tudo simplesmente fluir e esvair-se; isso não produziria nenhuma
1:.1
=í: existência.A duraçãoé o lugar como o aqui e o agora (-Ê7\C
S 260).
Porém, o lugar passapela mesmadiabéticapor que passao ponto. Ele é negativoeu
si. Portanto, ele é indiferente a si mesmo; não há nada que o distinga de todos os demais;
ou ele só pode ser distinguido a partir de cora. Como o espaço e o tempo, ele é ilimitado,
continuando em outro. Ele requer um sistema de referência cora de si mesmo para ser de-
terminado. Assim, ele é exterior a si mesmo; e encontramo-nos, uma vez mais, em processo
de mudança. Porém, agora temos o lugar em mudança, e isso é movimento (.E7vlS 261).
Porém, não podemos apenas dar meia-volta; movimento não é apenas a negação abs-
trata do espaço;é mudança eEetivade lugar, e isso requer que haja alguma unidade entre
os dois lugares. Paraque haja movimento, deve haver matéria (-ÊW,S 261).
Assim sendo, para que haja unidade real de tempo e espaço deve haver matéria, uma
realidade que é .p.zr/eiexlzaparref e, não obstante, possui alguma unidade. Ela é identi-
dade e, não obstante, diferença. Porém, visto que ela não é simples identidade consigo
mesma,ela tem de estarem movimento. Matéria e movimento sãocorrelativos.Ambos
devemservistos como a unidade de espaçoe tempo. O movimento relaciona o espaço
com o tempo. "Sua essência é ser a unidade imediata de espaço e tempo; ela é tempo rea-
lizando a si mesmo e subsistindo no espaço ou espaço pela primeira vez verdadeiramente
diferenciado pelo tempo" (/IZ, S 261, adendo; cf. ed. bus., p. 64). O tempo só se torna
real quando há algo em mudança; e o espaçosó é realmente diferenciado quando algo se
move daqui paralá. Em outras palavras,a negaçãodo espaçopelo tempo só setorna real
através da matéria em movimento; porque a matéria congele realidade, e seu movimento
é o cancelamentode suaexterioridadeque o tempo estavatentando ser.
Hegel parte, então (ZIW,S 262), para a dedução da gravidade. A matéria é tanto
atração quanto repulsão, pelos mesmos tipos de razõesque vimos na seçãosobre Quan-
tidade. Sendo a unidade negativa dessesmomentos, ela é um particular, um centro, mas

9Traduzido com basena tradução inglesa de M. J. Perry, /]rg?/} P/ZoiapÁyofJUal#rr. Londres, 1970; moda
ficado pelo autor.
ALDEIA NA NATUREZA 393

que
aindaestá separado da exterioridade da matéria. Isso é a gravidade. Temos aí o início
dasubl
etividade mas ela ainda continua sempre cora de si mesma. O ponto central para
ruma sempre está Gola dela.
.qud'l'
Assim seguimos naturalmente até o sistema total dessescorpos; neste, temos a me-

cânicaabsoluta -- o sistema solar.


Porém,isso nos traz até a unidade de forma e matéria. A forma encontrou a si mesma
atéria.Ou a matéria, em suatotalidade, encontrou agorao centro pelo qual estava
bando.Assim, chegamosao próximo degrau escalaacima, que é a matéria quali-
não apenasmatéria gravitacional homogênea, mas matéria com uma natureza
substancialespecífica (.ÊN. S 27 1).
Ern outraspalavras,começamoscom a mera exterioridade. Porém, a exterioridade
nãopode subsistir por si mesma; então, mediante a atração e a repulsão, ela chega à
jfavidade; e esta se desenvolve como sistema; e, a partir deste, prosseguimos até ver
l matériacomo diferenciada. "Seu ser-dentro-de-si(/niicóseZn) abstrato, embotado, a
lpesadez
generalizada, Êoi resolvida na forma; esta é maür/ gz/ z/l#ca2a" (.EW. S 271).'''

Essasegunda esfera corresponde à Essência. Agora, a forma diferenciada diferencia a


própriamatéria. E assim elas estão em relação uma com a outra; mas ainda exteriormen-
teou mediante uma unidade meramente oculta.
Essaesferasesubdivide em três partes, cuja articulação não é fácil de entender. Hegel
admiteque esta é a parte mais difici] da ]yafz/7óiZosopó/e (.ÊN. S 273, adendo). O que
será
exposto a seguir parece constituir a ideia central.
Primeiro,temos a simples diferenciação das qualidades físicas. Elas são tomadas
comoqualidadessimples. Cada uma delas é internamente não articulada, como era de
inícioa própria matéria. Elas não possuem centro interior, mas ainda são concebidas
comocorposrelacionados com um centro pela gravidade, que, nessadialética, assumeo
papelde relacionaiidade com outros.
Esseprimeiro capítulo aborda essasqualidades físicas simples em três cases.Em pri-
meirolugar, nós as vemos em diferentes corpos celestes, no sol como fonte de luz, na lua,
noscometas,nos planetas. Em segundolugar, vemos essasqualidades nos elementos,
sendo
que Hegel aborda os quatro clássicos -- ar, fogo, água, terra e atribui a cada um
certas
propriedades e certas afinidades conceituais. Em terceiro lugar, vemos todos eles
emprocesso,em interação, no processometeorológico.
Issonos dá um quadro da unidade de um sistema enquanto unidade negativa e, em
consequência,
da individualidade real (.Ê7vl$ 289). Alcançámos aqui uma natureza similar
aojef("Se/&JÜscóêe//": "si-mesmidade"); e isso sevê agora na matéria, nos objetos. Isso

Ibidem
394 PARTElli l LÓGICA

quer dizer que se considera que eles têm unidade interior e processointerior, ou que têm
vida distinta de sua relaçãocom outros na gravidade. Não se trata de qualidadesHsicu
simples, mas de objetos que constituem o brz/i de atividade interior ou energia interior.
A explicaçãodesseestágioé dada em quatro partes Em primeiro lugar, vemosa "si-
-mesmidade" ["se@çA/zeif"]na propriedade da gravidade específica. Desse modo, o corpo
confere a si mesmo o seu "ser-dentro-de-si" (/nsicóie/n) específico. Em outras palavras,
..PH -#'

-':' «.:ll começamos a explicar as propriedades do corpo por seus parâmetros internos. Passa-

mos, então, para a coesão. Mas chegamos a uma interioridade mais elevadacom o Som
C (JklZzag)
. Este é uma espéciede cancelamento ideal da exterioridade da coisa em diferen-
.ir+'l BP

1 .. Jb: tes partes; é a expressãode sua vibração interior. Ele é, portanto, uma espéciede reco-
l,.l: lhimento na idealidade de sua existência material, da espacialidade na temporalidade. É
algo como a alma do seu corpo. Ele estrêla quando sofre violência e estremece(erzi erf)
dentro de si mesmo; ou também quando, triunfante, conseguese manter. Em quarto
lugar, o tipo de unidade que o JilZa/zgrepresentano plano ideal se dá materialmente com
o calor, que derrete e dissolve a diferença interna.
Assim, em terceiro lugar, isso nos leva a uma forma mais elevadade interioridade,
em que os objetos possuem não só uma unidade interior, mas aparecemproduzindo a si
próprios a partir de um processointerno. Não só nos deslocamosda qualidade simples
para uma articulação interna que está na sua base, mas estamos nos encaminhando para
ver a forma como plenamente corporificada nela; o objeto com sua qualidade específica
é produzido pela forma. Por conseguinte, embora, na segunda fase, o objeto tenha a sua
própria individualidade em contraposiçãoà relação com um centro (gravidade),agora
ele se desloca diretamente para Gerada relação, porque o vemos como um processo inte-
rior com um centro próprio (como todo processodeve ter). Não é precisodizer que ele
se desloca para o limiar da vida.
Nessecapítulo, Hege! tenta derivar, /moerzz#a,o magnetismo e a eletricidade, e guia-
nos através da transição para o quimismo. O quimismo revela-nos a relatividade das
substânciase propriedades imediatas. Vê-las implementadas numa forma de vida visível,
unificada, é o próximo estágio: vida.

A Vida é relatadaem três partes Em primeiro lugar, temoso mundo como um


todo, que, em certo sentido, é um organismo, mas não realmenteum organismo vivo,
'apenas o cadáver de um processo vital" (.Ê.N, S 337). Ele não retorna realmente para
si. Ele é exterior a si mesmo. No que se refere aos seus detalhes, ele de fato pertence às
formas precedentes;mas, em seu todo, ele revela uma ordem própria do Conceito e, por
isso, merece ser considerado aqui. Hegel considera sob essetítulo o seguinte: a história
do mundo e suadisposiçãogeográfica,os fenómenos geológicose o funcionamento da
atmosfera, do mar e da terra.
ALDEIA NA NATUREZA 395

porém,sendoVida, o mundo tem de converter-seem vida real. Assim, deve existir


. indivíduovivo real.A vida real é onde essanecessidade
interior é manifestadana
,validadeconcernente, onde a unidade do conceito é essencialpara a explicação do que
conhecendo.O organismo vivo na condição de matéria opera mediante as leis do
deito e acaba apresentando uma ordem que, em última instância, não só está relacio-

Dada
com o Conceito, masque também pode ser entendida mediante leis que não fazem
deferência
a essamesma unidade interior. O que os viventes fazem e são só pode mesmo
gr explicado em função de sua forma.
Assim,deve haver organismos vivos. O orgânico está relacionado de três modos com
suabaseinorgânica(.E7\rjS 342). Em primeiro lugu, ele é uno com o inorgânico, porque
oservivo, em certo sentido, tem o seu próprio inorgânico em si. Ele está constantemente
fazendode si mesmo uma só vida, através de um processo de digestão de si mesmo, por
assim
dizer (.EA/lS 342, adendo;cf ed. bus., p. 384). Ele se articula em membros e os
mantémno mesmo processode vida. Em segundo lugar, o indivíduo orgânico [em de estar
emcontraposiçãoao inorgânico pois se alimenta dele. Ele sabe que o inorgânico é ines-
sencial;
mas isso representa uma inversão, porque ele também é sustentado pelo todo que
éamplamenteinorgânico. Então, em terceiro lugar, temos o processo de reprodução, do
qualjá Chamas.O indivíduo torna-sedois e sucumbe na produção de um novo indivíduo.
O segundocapítulo trata, então, da forma mais baixa da vida orgânica real das plan-
tas.Hegel diz que estas brotam e se desdobram, mas carecem do elemento de retorno a
si mesmas.Elas crescem indefinidamente. Elas crescem até o múltiplo, mas não podem
reunirissonuma unidade. Elas não possuem diferenciação interna real, como, por exem-
plo,entranhas. Sem essadiferenciação e sem o momento de unidade que a acompanha,
elas
nãopodem se mover, não têm sensaçãode si(SeZ»f«(@óÕ,e estãorelacionadassó
comelementos,não com coisas.O seu if'/anão é realmente objetivo. Elas são interiores e,
assim,
sãoexteriores. Hegel, então, aborda as plantas em três processosdefinidos acima: o
processo
de formação, o processo de assimilação e o processo genérico ou de reprodução.
O animal, em contrapartida, é um iefrefletido em si mesmo, a unidade chega à univer-
salidade
subjetiva(.EI/\( S 350). O organismo animal retém a unidade na articulação dos seus
membros.Assim, os animais possuem automovimento (.Én/l S 351). Um animal tem uma
vozqueexpressaa sua alma e apresentaum livre "estremecer em si mesmo"(.É)ziü?m i slcÉ
Íf/6ü).Ele possui calor animal, como processo contínuo de dissolução de sua própria coesão
enovaprodução dos seusmembros. Ele pode parar de alimentar-se;e, acima de tudo, ele
temsensação,
que é a sua individualidade simples. Ademais, ele serelaciona com objetos, não
comelementos.Assim, a besta também tem uma relação teórica com coisas,bem como uma
Unidade
de teoria e prática em seu impulso de dar forma a coisas(.Bica/{gs/üeó).
Em seguida,Hegel percorre três processosreferentes aos animais. Como de hábito,
sensibilidade,
irritabilidade e reproduçãotêm seulugar. Porém,um dos temasimpor-
tantesé a relação estreita entre o processo de reprodução e a morte. O que os animais
buscamno outro sexo é o Gênero (GaazínK); eles sentem a sua insuficiência e é isso que
396 PARTElll l LÓGICA

os abate. O Gênero, portanto, é a morte dos indivíduos; aliás, organismos inferiores


com frequênciamorrem imediatamente apóso ato de reprodução (.ÊW,S 369, adendo).
Somente o Espírito conseguesuportar o peso do Gênero sem perecer.
Em consequência,a Nalzó@ó/Zoiopó/e é concluída com uma passagemparao Espírito
a partir da morte do animado. TAdoença original do animal e o congênito germeda
1:.J\:
p' k./ morte é a sua inadequaçãoà universalidade" (.ÊI/V,S 375).:' O indivíduo estátentando
.v:

/'i: -'=l corporificar o universal em si, mas só pode Emerisso de modo abstrato, como simples
hábito, como o descambar para a regularidade. Porém, a vida requer que superemos
C constantemente a diferença. O desaparecimento da diversidade na regularidade estáas-
.d#'
sociado ao fim da tensão que sustém a vida, do que decorrem envelhecimento e morte. A
1...#
L..t própria enfermidade (-ÉI/V, S 371) é de Eito uma parte do sistemaque, acionadapor um
conflito com o exterior, fixa-seem suaprópria atividade e opera contra o todo. Assim,a
enfermidade nada mais é que a primeira Honreda morte, porque a morte de que falamos
a':.../ nada mais é que esseenrijecimento contra a tensão da vida.
O Espírito, portanto, provém da natureza. O animal afastou-se da gravidade ao mo-
ver a si mesmo, na sensaçãoque ele próprio teve, na voz que ele próprio ouve. Mas o
processo pleno, o Gênero, só existe no progresso infinito dos indivíduos. Assim, "a ideia
deve romper essaesferae tomar 6âlego,lavrando-sedessaexistênciainadequada"(.EN S
376, adendo).:: O próximo passoé o Espírito, como consciênciaque pode transportar
a ideia toda para a unidade. O objetivo da natureza é morrer, queimar a si mesma como
fénix, de modo que o Espírito possasurgir.
O Espírito provém da natureza. Ele também é anterior a ela, mas faz a si mesmo
provir da natureza. A sua liberdade infinita deixa a natureza livre para operar por sua
necessidadeinterior (ibidem), como vimos no final da Zck/c.z.
Porém, o Ge/rf deseja chegar à liberdade reconhecendo a si mesmo na natureza. E
issoé obra da filosofia da natureza. Nosso alvo é forçar o Proteu da naturezaa revelar
na exterioridade só o espelho de nós mesmos, a ser um reflexo livre do Ge2sf.Isso não
Eoifácil, porque o Conceito estáimerso numa grande quantidade de detalhesrefratários
(a,/2exspr/zsrik).
Porém, a razãodeve confiar em si mesma.Não podemosdeduzir todas
ascoisas;"portanto, não precisamosprocurar determinações do Conceito em toda parte,
mesmo que rastrosdelasestejampresentesem toda parte" (ZIW.S 368, adendo; cf. ed.
liras., p 522). Porém, podemos ter esperançade encontrar "a figura real do Conceito
que seencontra oculta sob a exterioridade recíproca das formas infinitamente numero-
sas" (ÉW. S 376, adendo; cf ed. bus., p. 556).
Com essaderivaçãodo Espírito, termina a filosofia da natureza.Voltemo-nos, agora,
para domínios em que a obra do espírito se evidencia com mais transparência;e, em
primeiro lugar, para a história, que é o desdobramento do espírito no tempo-

ti Traduzido com base na tradução inglesa de M. J. Petry, //eXf/} Pi/aiopÁy ofAbr re. Londres, 1970
Ibidem.

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