Brincadeira e Desenvolvimento Infantil
Brincadeira e Desenvolvimento Infantil
Brincadeira e Desenvolvimento Infantil
SOCIOCULTURAL CONSTRUTIVISTA1
Norma Lucia Neris de Queiroz
Diva Albuquerque Maciel2
Angela Uchôa Branco
Universidade de Brasília
Resumo: Como e por que as crianças brincam? Qual o significado desta atividade em
cada cultura? Estas questões da temática da brincadeira e sua relevância para a compreensão
científica do desenvolvimento infantil são discutidas neste estudo. Analisa-se o conceito da
atividade de brincar a partir de diferentes autores, privilegiando quem a vê como socialmente
construída. Aborda-se a importância da brincadeira do faz-de-conta como atividade que
promove a representação e a metarepresentação no desenvolvimento da criança. Finalmente
reflete-se sobre a brincadeira no contexto pedagógico vivenciado pelas crianças em instituições
de educação infantil, o papel do professor no desenvolvimento e educação infantil.
Abstract: How and why do children play? What does such activity means in different
cultures? These issues are discussed in this present paper, which stresses its relevance for the
scientific understanding of child development. The concept of play according to different
theorists is analyzed; especially those that conceive play as socially constructed activity. It is
verified the role of pretend-play as an activity of representation and metarepresentation along
child development. Finally on discusse how such theoretical ideas can be translated into
educational practices within the contexts of child care and preschool settings, stressing the role
of teacher in promoting child development and education.
Introdução
Em grande parte das sociedades contemporâneas, a infância é marcada pelo brincar, que
faz parte de práticas culturais típicas, mesmo que esteja muito reduzida face à demanda do
trabalho infantil que ainda se insere no cotidiano dos segmentos sociais de baixa renda. A
brincadeira permite à criança vivenciar o lúdico e descobrir-se a si mesma, apreender a
realidade, tornando-se capaz de desenvolver seu potencial criativo (Siaulys, 2005). Nesta
perspectiva, as que brincam aprendem a significar o pensamento dos parceiros por meio da
metacognição, típica dos processos simbólicos que promovem o desenvolvimento da cognição
(Kishimoto, 2002) e de dimensões que integram a condição humana (Andrensen, 2005; Branco,
2005).
Para a maioria dos grupos sociais, a brincadeira é consagrada como atividade essencial ao
desenvolvimento infantil. Historicamente, ela como lúdico sempre esteve presente na educação
infantil, único nível de ensino que a escola deu passaporte livre, aberto à iniciativa,
criatividade, inovação por parte dos seus protagonistas (Lucariello, 1995). Com o advento de
pesquisas sobre o desenvolvimento humano, observou-se que o ato de brincar conquistou mais
espaço, tanto no âmbito familiar, quanto no educacional; no Referencial Curricular Nacional
para a Educação Infantil (1998), a brincadeira está colocada como um dos princípios
fundamentais, defendida como um direito, uma forma particular de expressão, pensamento,
interação e comunicação entre as crianças. Assim, a brincadeira é cada vez mais entendida
como atividade que, além de promover o desenvolvimento global das crianças, incentiva a
interação entre os pares, a resolução construtiva de conflitos, a formação de um cidadão crítico e
reflexivo (Branco, 2005; DeVries, 2003; DeVries & Zan, 1998; Tobin, Wu & Davidson, 1989;
Vygotsky, 1984, 1987).
Hoje, pode-se afirmar que já foi superado parte do equívoco, de que o conteúdo
imaginário do brinquedo determinava a brincadeira da criança. Segundo Benjamin (1984),
“a criança quer puxar alguma coisa, torna-se cavalo, quer brincar com areia e torna-se
padeiro, quer esconder-se, torna-se ladrão ou guarda e alguns instrumentos do brincar
arcaico desprezam toda a máscara imaginária (na época, possivelmente vinculados a
rituais): a bola, o arco, a roda de penas e o papagaio, autênticos brinquedos, tanto mais
autênticos quanto menos o parecem ao adulto.” (pp. 76-77).
Para o autor, quando a criança brinca, além de conjugar materiais heterogêneos (pedra,
areia, madeira e papel), ela faz construções sofisticadas da realidade e desenvolve seu potencial
criativo, transforma a função dos objetos para atender seus desejos. Assim, um pedaço de
madeira pode virar um cavalo; com areia, ela faz bolos, doces para sua festa de aniversário
imaginária; e, ainda, cadeiras se transformam em trem, em que ela tem a função de conduto,
imitando o adulto (Benjamin, 2002).
Neste trabalho, pretende-se olhar a temática da brincadeira enfatizando três aspectos:
primeiro analisar-se-á o conceito da atividade de brincar a partir de autores que a vêem como
construída social e culturalmente; segundo, será destacada a importância do faz-de-conta para o
desenvolvimento da criança pequena; e, por fim será vista a brincadeira no contexto pedagógico
vivenciado por crianças em instituições de educação infantil, com a intenção de orientar a
atuação de professores deste nível de ensino.
“A brincadeira é uma atividade que a criança começa desde seu nascimento no âmbito
familiar” (Kishimoto, 2002, p. 139) e continua com seus pares. Inicialmente, ela não tem
objetivo educativo ou de aprendizagem pré-definido. A maioria dos autores afirma que ela é
desenvolvida pela criança para seu prazer e recreação, mas também permite a ela interagir com
pais, adultos e coetâneos, bem como explorar o meio ambiente.
Como a criança é um ser em desenvolvimento, sua brincadeira vai se estruturando com
base no que é capaz de fazer em cada momento. Isto é, ela aos seis meses e aos três anos de
idade tem possibilidades diferentes de expressão, comunicação e relacionamento com o
ambiente sociocultural no qual se encontra inserida. Ao longo do desenvolvimento, portanto, as
crianças vão construindo novas e diferentes competências, no contexto das práticas sociais, que
irão lhes permitir compreender e atuar de forma mais ampla no mundo.
A brincadeira das crianças evolui mais nos seis primeiros anos de vida do que em
qualquer outra fase do desenvolvimento humano e neste período, se estrutura de forma bem
diferente de como a compreenderam teóricos interessados na temática (Brougère, 1998). A
partir da brincadeira, a criança constrói sua experiência de se relacionar com o mundo de
maneira ativa, vivencia experiências de tomadas de decisões. Em um jogo qualquer, ela pode
optar por brincar ou não, o que é característica importante da brincadeira, pois oportuniza o
desenvolvimento da autonomia, criatividade e responsabilidade quanto a suas próprias ações.
O termo cultura é entendido aqui a partir das formulações teóricas de Valsiner (2000),
para quem a cultura não se refere apenas a um grupo de indivíduos que compartilham
características semelhantes, mas deve ser compreendida como mediação semiótica, que integra
o sistema psicológico individual e o universo social das crianças dela participantes. É no
contexto da cultura que se dá a construção social, de significados, com base nas tradições, idéias
e valores do grupo cultural que cria e recria padrões de participação, dando origem ao
desenvolvimento de típicas categorias de pensamento e de recursos de expressão.
Fein (Spodek & Saracho, 1998) afirma que é muito “difícil definir a brincadeira, mas, em
certo sentido, ela se auto-define” (p. 210). A preocupação em conceituar o que é a brincadeira
não é apenas dos educadores, mas está na pauta de outros profissionais, dentre eles psicólogos,
filósofos, historiadores e antropólogos.
No ‘Ciclo de Debates sobre o Brincar’1, Carvalho, Salles, Guimarães e Debortoli (2005),
observaram a diversidade de discursos e concepções do ato de brincar. Examinando essa
questão, Spodek e Saracho (1998) apontam que a dificuldade em se chegar a uma definição
consensual sobre a brincadeira advém da falta de critérios para se classificar uma atividade
como tal; assim, em alguns contextos ou momentos uma atividade pode ser considerada
brincadeira, e deixar de sê-lo em outros, o que depende da relação que se estabelece com a
situação, do significado que assume para quem brinca.
Vygotsky (1998), um dos representantes mais importantes da psicologia histórico-
cultural, partiu do princípio que o sujeito se constitui nas relações com os outros, por meio de
atividades caracteristicamente humanas, que são mediadas por ferramentas técnicas e
semióticas. Nesta perspectiva, a brincadeira infantil assume uma posição privilegiada para a
análise do processo de constituição do sujeito; rompendo com a visão tradicional de que ela é
atividade natural de satisfação de instintos infantis, o autor apresenta o brincar como uma
atividade em que, tanto os significados social e historicamente produzidos são construídos,
quanto novos podem ali emergir. A brincadeira e o jogo de faz-de-conta seriam considerados
como espaços de construção de conhecimentos pelas crianças, na medida em que os
significados que ali transitam são apropriados por elas de forma específica.
Vygotsky (1998), quando discute em sua teoria a gênese e o desenvolvimento do
psiquismo humano, destaca que o processo de significação é elaborado por meio da atividade
em contextos sociais específicos; o que é interiorizado não é a ‘realidade em si mesma’
(conceito já ultrapassado na perspectiva socio-construcionista), mas o que esta significa tanto
para os sujeitos em relação, quanto para cada um em particular. Este movimento de
interiorização transformadora das significações não se dá de maneira passiva nem direta, pois o
sujeito reelabora, imprimindo sentidos privados ao significado compartilhado na cultura. Nesse
processo ele se apropria do signo em sua função de significação, observando seu duplo
referencial semântico, um formado pelos sistemas construídos ao longo da história social e
cultural dos povos, e o outro formado pela experiência pessoal e social, evocada em cada ação
ou verbalização do sujeito.
Para Vygotsky (1998), a criança nasce em um meio cultural repleto de significações
social e historicamente produzidas, definidas e codificadas, que são constantemente
ressignificadas e apropriadas pelos sujeitos em relação, constituindo-se, assim, em motores do
desenvolvimento. Neste sentido, o desenvolvimento humano para ele se distancia da forma
como é entendido por outras teorias psicológicas, por ser visto como um processo cultural que
ocorre necessariamente mediado por um outro social, no contexto da própria cultura, forjando-
se os processos psicológicos superiores, sendo a psique humana, nesta perspectiva,
essencialmente social.
Os processos psicológicos superiores para Vygotsky (1987) são constituídos
(...) pelos de domínio dos meios externos do desenvolvimento cultural e do pensamento: o
idioma, a escrita, o cálculo, o desenho, bem como pelas funções psíquicas superiores
especiais, aquelas não limitadas nem determinadas de nenhuma forma precisa e que têm
sido denominadas pela psicologia tradicional com os nomes de atenção voluntária,
memória lógica e formação de conceitos (p. 32).
O autor afirma, ainda, que o desenvolvimento humano é um processo dialético, marcado
por etapas qualitativamente diferentes e determinadas pelas atividades mediadas. O homem,
enquanto sujeito é capaz de transformar sua própria história e a da humanidade, uma vez que
por seu intermédio muda o contexto social em que se insere, ao mesmo tempo em que é
modificado.
Assim, o que caracteriza a atividade humana é o emprego de instrumentos, signos ou
ferramentas, que lhe dão um caráter mediado. Entretanto, instrumentos e signos são coisas
diferentes; os primeiros influenciam a ação humana sobre a atividade e são externamente
orientados. Já os segundos não modificam em nada o objeto da atividade, mas se constituem em
ferramenta interna dirigida ao controle do indivíduo, sendo orientados internamente.
Desta maneira, os objetos com os quais a criança se relaciona são significados em sua
cultura e a relação estabelecida com eles se modifica à medida em que a ela se desenvolve. Em
um primeiro momento esta relação é marcada pela predominância de sentidos convencionais,
característicos da cultura em que está inserida; o objeto, de certa forma, diz para a criança como
deve agir. Com o passar do tempo, de modo gradativo, a relação entre objeto significado e ação
se altera, tendo a brincadeira um lugar de destaque nessa mudança.
A importância do brincar para o desenvolvimento infantil reside no fato de esta atividade
contribuir para a mudança na relação da criança com os objetos, pois estes perdem sua força
determinadora na brincadeira. “A criança vê um objeto, mas age de maneira diferente em
relação ao que vê. Assim, é alcançada uma condição que começa a agir independentemente
daquilo que vê.” (Vygotsky, 1998, p. 127).
Na brincadeira, a criança pode dar outros sentidos aos objetos e jogos, seja a partir de sua
própria ação ou imaginação, seja na trama de relações que estabelece com os amigos com os
quais produz novos sentidos e os compartilha (Cerisara, 2002).
A brincadeira é de fundamental importância para o desenvolvimento infantil na medida
em que a criança pode transformar e produzir novos significados. Em situações dela bem
pequena, bastante estimulada, é possível observar que rompe com a relação de subordinação ao
objeto, atribuindo-lhe um novo significado, o que expressa seu caráter ativo, no curso de seu
próprio desenvolvimento.
Para Vygotsky (1998), a criação de situações imaginárias na brincadeira surge da tensão
entre o indivíduo e a sociedade e a brincadeira libera a criança das amarras da realidade
imediata, dando-lhe oportunidade para controlar uma situação existente (Cerisara, 2002). As
crianças usam objetos para representar coisas diferentes do que realmente são: pedrinhas de
vários tamanhos podem ser alimentos diversos na brincadeira de casinha, pedaços de madeira de
tamanhos variados podem representar diferentes veículos na estrada. Na brincadeira, os
significados e as ações relacionadas aos objetos convencionalmente podem ser libertados. As
crianças utilizam processos de pensamento de ordem superior como no jogo de faz-de-conta,
que assume um papel central no desenvolvimento da aquisição da linguagem e das habilidades
de solução de problemas por elas (Meira, 2003).
Vygotsky (1998) definiu a zona de desenvolvimento proximal (ZPD) como:
(...) a distância entre o nível de desenvolvimento real, que se costuma determinar através
da solução independente de problemas, e o nível de desenvolvimento potencial,
determinado através da solução de problemas sob a orientação de um adulto ou em
colaboração com os companheiros mais capazes (p. 97).
A brincadeira é, assim, a realização das tendências que não podem ser imediatamente
satisfeitas. Esses elementos da situação imaginária constituirão parte da atmosfera emocional do
próprio brinquedo. Nesse sentido, a brincadeira representa o funcionamento da criança na zona
proximal e portanto, promove o desenvolvimento infantil (Vygotsky, 1998). Entretanto,
Vygotsky chama a atenção quando afirma que definir “o brinquedo como uma atividade que dá
prazer à criança, é incorreto” (p. 105), porque para ele, muitas atividades dão à criança prazeres
mais intensos que a brincadeira: por exemplo, uma chupeta para um bebê mesmo que isso não
leve à saciação da fome. Ele destaca, ainda, que há brincadeiras em que a própria atividade não
é tão agradável, como as que só agradam às crianças (entre cinco e seis anos de idade) se elas
considerarem o resultado interessante. Os jogos esportivos podem ser outro exemplo (não
apenas os esportes atléticos, mas os que têm como regra, ganhadores e perdedores). Estes são
freqüentemente acompanhados de desprazer para a criança que não alcança o resultado
favorável, isto é, aquela que perde a partida.
Assim, o prazer não pode ser visto como uma característica definidora da brincadeira
(Cerisara, 2002). Entretanto, não se deve ignorá-lo, pois ela preenche necessidades da criança e
cria incentivos para colocá-la em ação, que é de fundamental importância, uma vez que
contribui para mudanças nos níveis do desenvolvimento humano. Para Cerisara (2002), todo
avanço nestes está relacionado a alterações acentuadas nas motivações, tendências e incentivos.
Torna-se, então, necessário lembrar que os interesses mudam em função do desenvolvimento e
da maturidade do sujeito, pois, o que atrai um bebê não o faz a uma criança um pouco mais
velha. Portanto, a maturidade das necessidades é um tópico importante na teoria da Psicologia
histórico-cultural.
Vygotsky (1998) afirma que não é possível ignorar que a criança satisfaz algumas
necessidades por meio da atividade do brincar. As pequenas tendem a satisfazer seus desejos
imediatamente, e o intervalo entre desejar e realizar, de fato, é bem curto. Já as crianças entre
dois e seis anos de idade são capazes de inúmeros desejos, e muitos não podem ser realizados
naquele momento, mas posteriormente por meio de brincadeiras. Vygotsky (1998) diz que,
(...) se as necessidades não realizáveis imediatamente, não se desenvolvessem durante os
anos escolares, não existiriam os brinquedos, uma vez que eles parecem ser inventados
justamente quando as crianças começam experimentar tendências irrealizáveis (p. 106).
Com isto, no espaço da sala de aula, a criança procura satisfazer seus desejos não
realizáveis imediatamente envolvendo-se em um mundo imaginário, onde os não realizáveis
podem ser concretizados; a este mundo é que se chama da brincadeira. O autor concebe a
imaginação como:
(...) um processo psicológico novo para a criança em desenvolvimento; representa uma
forma especificamente humana de atividade consciente, não está presente na consciência
de crianças muito pequenas e está totalmente ausente em animais. Como todas as funções
da consciência, ela surge originariamente da ação e na interação com o outro (p. 106).
Há, portanto, uma crença de senso comum que o brincar da criança é imaginação em
ação. Vygotsky (1998) considera que isto deveria ser invertido, uma vez que a imaginação, nas
crianças em idade da educação infantil e nos adolescentes, é o brinquedo sem ação. Desta
forma, fica claro que o prazer que estas vivenciam é controlado por motivações diferentes das
experimentadas por um bebê ao chupar sua chupeta.
Para o autor, nem todos os desejos não satisfeitos dão origem à brincadeira; quando uma
criança quer andar de velocípede e isto não pode ser imediatamente concretizado, ela não vai
para seu quarto e faz de conta que está andando de velocípede para satisfazer seu desejo, pois
não tem consciência das motivações e emoções que dão origem à brincadeira. Nessa
perspectiva, Vygotsky (1998) diz que o brinquedo difere muito do trabalho e de outras formas
de atividade, uma vez que nele a criança cria uma situação imaginária, algo reconhecido pelos
estudiosos, e que portanto não é novo. Ele afirma que a imaginação é característica definidora
da brincadeira e não um atributo de subcategorias específicas do brinquedo.
Cerisara (2002) coloca que toda situação imaginária que envolve o brinquedo já
pressupõe regras, ocultas ou não e que o contrário é verdadeiro, ou seja, todo jogo tem,
explicitamente ou não, uma situação imaginária envolvida. Nesse sentido, o faz-de-conta é em
especial significativo para o desenvolvimento infantil, por estar relacionado à imaginação.
Em um esforço para compreender a importância da atividade do brincar para o
desenvolvimento infantil, numa perspectiva co-construtivista, pode-se considerar que a criança,
desde seu nascimento, se integra em um mundo de significados construídos historicamente. É
por meio da interação com seus pares que ela se envolve em processos de negociação, dentre os
quais, os de significação e re-significação de si mesma, dos objetos, dos eventos e de situações,
construindo e reconstruindo ativamente novos significados.
Valsiner (1988) acrescenta que para analisar o desenvolvimento infantil deve-se
considerar os ambientes em que ocorre a atividade da brincadeira, que são fisicamente
estruturados, segundo os significados culturais das pessoas responsáveis pela criança. Valsiner
(2000) aponta, ainda, que ela ocupa um papel ativo na organização de suas atividades,
construindo uma versão pessoal dos eventos sociais que lhe são transmitidos pelos membros de
sua cultura. Esta construção é elaborada pelos processos de interação social, canalização e
trocas, fazendo uso de recursos e instrumentos semióticos co-construídos, cujos significados
estão presentes na “cultura coletiva”. Por último, o autor afirma que é preciso considerar que a
criança expressa a compreensão do mundo por meio da ação, e que cada classe social tem um
sistema designificação cultural próprio, relacionado às práticas típicas de seu grupo.
Pedrosa (1996), em consonância com Valsiner, afirma que a criança desde o seu
nascimento interage com um mundo de significados construídos historicamente; na relação com
seus parceiros sociais se envolve em processos de significação de si, dos outros e dos
acontecimentos de seu contexto cultural, construindo e reconstruindo ativamente significados.
Nessa perspectiva, destaca-se a importância de interpretar a brincadeira levando em
consideração os contextos sociais específicos em que ela ocorre, não sendo possível separá-la
artificialmente deles; e, para compreendê-la, deve-se relacionar o valor e o lugar que lhe são
determinados pela cultura específica, porque só levando esta em consideração é que será
possível derivar o significado do brincar infantil em cada uma.
Assim, a percepção infantil sobre a atividade de brincar é marcada pela influência
cultural, que se torna o elemento de mediação que integra o sistema de funções psicológicas
desenvolvidas pelo indivíduo na organização histórica de seu grupo social, por meio dos
processos de interação, canalização e trocas, utilizando recursos e instrumentos semióticos co-
construídos de uma geração mais velha, com os quais a criança entra em contato.
A cultura, na concepção de Valsiner (2000), refere-se à organização estrutural de normas
sociais, valores, regras de conduta e sistemas de significados compartilhados pelas pessoas que
pertencem a certo grupo com uma história de convivência e relações de pertencimento. Para ele,
a cultura tem duas faces: a) como entidade coletiva (significados compartilhados); b) como
entidade pessoal (significados pessoais). A primeira é aprendida pela criança no contexto de
suas experiências em diferentes tipos de ambientes. Especialmente os pais e profissionais
responsáveis pelos cuidados e educação (escola, creches), devem procurar organizar o ambiente
de forma que este seja brincável, isto é, explorável (Dantas, 2002), e que incentive o brincar.
É impossível, porém, a criança fazer a brincadeira em um âmbito apenas relacionado à
livre fantasia; mesmo quando não imita os instrumentos dos adultos, sempre parte de
significados culturalmente construídos, pois é deles que ela recebe seus primeiros brinquedos,
embora tenha certa liberdade para aceitar ou recusar sugestões, muitos (bola, bonecas,
carrinhos) são, de certa forma, impostos como objetos de valor, e daí, graças à força de sua
imaginação, são transformados em brinquedos admirados e maravilhosos (Benjamin, 2002).
As crenças dos adultos sobre a brincadeira infantil são geradas em seus sistemas de
significado cultural. Neste sentido, Valsiner (1988) destaca que a criança, como ser ativo, no
processo ‘viver a brincadeira’, vai além da cultura de seus pais e professores, uma vez que
reconstrói as experiências adquiridas nos espaços familiares, escolares e comunitários. Ela,
assim, cria, para suas brincadeiras, funções e cenários novos para as sugestões sociais,
oferecidas por seu grupo; assim, ela externaliza sua subjetividade sobre os eventos sociais e, ao
mesmo tempo, reconstrói o significado social da brincadeira.
A subjetividade da criança vai se formando nas interações que estabelece com seus
parceiros nos contextos cotidianos. Valsiner (1989) acrescenta que o mundo adulto, dependendo
de seus valores culturais, oferece à criança uma variedade de sugestões e modos de interação
semioticamente marcados pelos modelos sexuais, muitas vezes estereotipados como masculino,
feminino ou indiferenciado. Esta é uma das sugestões sociais que levam a criança a brincadeiras
marcadas pelo gênero, de acordo com a cultura coletiva, o que frequentemente ocorre naqueles
em que o menino só pode brincar de carrinho, e menina, de casinha de boneca. As famílias
canalizam as ações, as percepções e representações da criança na direção de assumir um papel
social aprovado de acordo com suas crenças e valores.
Para Packer (1994) brincar é uma atividade prática, “na qual a criança constrói e
transforma seu mundo, conjuntamente, renegociando e redefinindo a realidade” (p. 273); “uma
construção da realidade, a produção de um mundo e a transformação do tempo e do lugar em
que ele pode acontecer” (p. 271). A participação da criança nesta atividade “requer um senso de
realidade compartilhado do que é verdadeiro ou falso, certo ou errado” (p.271).
Nas afirmações de Valsiner (1998, 2000) e de Pedrosa (1996), a criança é um sujeito
ativo da co-construção cultural, o que garante que a cultura de sua geração ultrapasse a dos
adultos por ela responsáveis. Nesta perspectiva, torna-se necessário olhar a brincadeira para
além do conceito da atividade de brincar, e examinar o faz-de-conta, que tem despertado
especial interesse de teóricos, pesquisadores e profissionais que atuam com a educação infantil,
lembrando a importância dada por Bateson (1972) quando se refere aos processos de metacomu-
nicação, por meio dos quais as crianças se comunicam entre si, indicando se uma interação deve
ser interpretada como “luta” - fisionomia séria, sem sorriso, ou “brincadeira”- sorriso,
gargalhadas, gritinhos de alegria.
Considerações Finais
O tema da brincadeira vem sendo bastante pesquisado, desde o século XVIII em suas
diferentes vertentes. Apesar disso, percebem-se, ainda, lacunas de conhecimentos sobre o
conceito e os processos envolvidos na brincadeira. A maior preocupação, no entanto, não deve
se estabelecer um conceito universal e fechado sobre a atividade do brincar, mas ampliar as
pesquisas, buscando preencher as lacunas existentes e, paralelamente, subsidiar os docentes e
interessados no assunto para que possam realizar práticas educativas mais interessantes.
Com isso, o ato de brincar, uma ação mediada pelo contexto sociocultural e o significado
construído pela criança sobre a função de determinados objetos e da sua participação em certas
brincadeiras, não é estático. De um lado existe dependência dos sistemas de significação
coletivamente compartilhados pelo grupo a que a criança pertence, envolvendo crenças e
valores dos adultos responsáveis por ela (mãe ou professora).
De outro lado, existe a versão construída pela criança sobre os padrões sociais, a partir
dos referenciais transmitidos pelo grupo a que pertence, mas que são ressignificados no seu
cotidiano e nas suas interações com seus pares e com ‘outros sociais’. Desta forma, a criança
recria seu espaço de brincadeira, com novos cenários, inventando funções para os objetos,
dando-lhe um sentido de acordo com os padrões aprovados socialmente.
A brincadeira oferece às crianças uma ampla estrutura básica para mudanças das
necessidades e tomada de consciência: ações na esfera imaginativa, criação das intenções
voluntárias, formação de planos da vida real, motivações intrínsecas e oportunidade de interação
com o outro, que, sem dúvida contribuirão para o seu desenvolvimento.
Portanto, é imprescindível que os professores compreendam a importância da brincadeira
e suas implicações para organizar o processo educativo de modo mais positivo, contribuindo
para o desenvolvimento das crianças (Pontes & Magalhães, 2003). Sem esta compreensão,
corre-se o risco de uma prática educativa com equívocos, como por exemplo, professores
preocupados em desenvolver a brincadeira em sala de aula, objetivando atitudes de cooperação
entre os alunos, mas direcionando a atividade para a competição. No estudo de Palmieri (2003),
os professores confundem cooperação e competição, e geralmente não percebem estes
equívocos, acreditando que realizam um trabalho de grande qualidade para a formação dos
alunos e se estes não correspondem às suas expectativas, apontam a eles como incapazes ou
rotulam sua família como problemática. Nesse caso, o professor não está conseguindo fazer uma
reflexão crítica do seu próprio trabalho.
Os princípios norteadores da política educacional congelados no papel não provocarão
mudanças no contexto educacional. Mas, a administração pública deve proporcionar uma
formação continuada aos professores; diante de situações de insegurança, isto é, de ministrar
novos conteúdos e realizar propostas educativas que exigem conhecimentos diferentes dos que
os profissionais acreditam, a tendência dos educadores é desprezá-las, muitas vezes fazendo
críticas infundadas, apesar de reconheceram a importância dos novos conteúdos para o processo
de melhoria da qualidade de ensino. É preciso que o professor reconheça a importância do
princípio da brincadeira para o desenvolvimento infantil, estabelecido no Referencial Curricular
Nacional para a Educação Infantil, como uma conquista e efetivação dos direitos da criança
integrada à modalidade de educação infantil.
Referências