A Escrita Na Psicose e Seus Efeitos No Encontro Com Um Psicanalista Na Atenção Psicossocial

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Arquivos Brasileiros de Psicologia

ISSN: 0100-8692
[email protected]
Universidade Federal do Rio de Janeiro
Brasil

Campos Guerra, Andréa Máris


A escrita na psicose e seus efeitos no encontro com um psicanalista na atenção psicossocial
Arquivos Brasileiros de Psicologia, vol. 61, núm. 1, 2009, pp. 132-142
Universidade Federal do Rio de Janeiro
Rio de Janeiro, Brasil

Disponível em: http://www.redalyc.org/articulo.oa?id=229019189013

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Arquivos Brasileiros de Psicologia, v. 61, n. 1, 2009.

ARTIGO

A escrita na psicose e seus efeitos no encontro com um


psicanalista na atenção psicossocial

The writing at psychosis cases and its effects on the meeting with a
psychoanalyst at Mental Health services

Andréa Máris Campos GuerraI

I
Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais (PUC-Minas), Minas Gerais, Brasil

Endereço para correspondência

RESUMO

Este estudo partiu de um fragmento clínico de caso de psicose, atendido no setor público de cuidados,
no qual a escrita se destaca dentre as estratégias desenvolvidas pelo sujeito em sua tentativa de
estabilização. Após circunscrever a relação que entendemos possível entre a Psicanálise e a Saúde
Mental, utilizamos aquela como ferramenta teórico-clínica para analisarmos as articulações possíveis da
escrita na psicose a partir do ensino lacaniano, com o intuito de pensar seus efeitos na clínica da
atenção psicossocial. Percorremos os textos de Jacques Lacan, notadamente nas décadas de 1930, 1960
e 1970. Neles, respectivamente, a escrita é tomada como estereotipia ou expressão criativa; em seguida
como escrita do nome e enquanto o impossível de se escrever, que aparece no nó borromeano; e,
finalmente, a escrita possível da letra, entre Real e Simbólico. Retornando ao caso, extraímos as
consequências clínicas de sua escrita, acenando para a direção do tratamento possível das psicoses no
campo da atenção psicossocial.

Palavras-chave: Psicose; Escrita; Estabilização; Atenção psicossocial; Psicanálise lacaniana.

ABSTRACT

The text begins with a clinician case of psychosis, treated by the public mental health service, where the
subject had developed by himself a strategy of treatment that includes the writing. We propose a
discussion between the Psychoanalysis and the Mental Health, and then we discuss it based on Jacques
Lacan’s hypothesis for the writing on psychosis cases. We meet three possibilities: the idea of stereotypy
and its contrary, the creative process, by the 1930s decade; the idea of a name’s writing by the 1960s
decade and finally the idea of the letter’s writing by the 1970s decade. Coming back to the case, we
have tried to extract the consequences of the writing in this case and a treatment direction for other
cases.

Keywords: Psychosis; Writing; Stabilization; Psychoanalytical treatment; Mental health.


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1 INTRODUÇÃO

O encontro com A. aconteceu por ocasião de uma pesquisa sobre as estabilizações psicóticas1. Ele
estava referenciado em um Centro de Referência em Saúde Mental (CERSAM) 24 horas, que equivale ao
dispositivo Centro de Atenção Psicossocial (CAPS) 24 horas em Minas Gerais. O paciente não
administrava o dinheiro de sua pensão, não frequentava o serviço (era sua mãe quem o fazia por ele),
não tinha amigos e mal saía de casa. Vivia literalmente encarcerado em seu castelo. Ao menos era assim
que ele denominava o cômodo construído para ele pela mãe viúva, no segundo andar de sua residência.

Ele não é uma exceção em relação aos casos de psicose que encontramos nos dispositivos abertos e
substitutivos da rede pública de Saúde Mental, salvo, talvez, pela boa condição financeira. Esse caso
coloca em questão, igualmente, não só o limite clínico de nossa prática em Saúde Mental, como também
o alcance político de nossas ações. Aliás, essa é sempre uma questão para o psicanalista que se
encontra na rede pública de cuidados: como articular a dimensão clínica com o ideal político em jogo na
clínica psicossocial?

Sabemos que, nessa clínica, são diferentes as vias de articulação da Psicanálise com os ideais da
reforma psiquiátrica. Assistimos ao uso da Psicanálise como teoria de interpretação, como ferramenta de
intervenção, como inspiração política de inclusão pela singularidade, como chave de leitura para a
supervisão institucional, como polo dialógico junto à multiplicidade de outros referenciais teóricos e
clínicos. Enfim, verificamos seu uso como elemento que contribui para a consolidação do projeto ético de
respeito e tratamento à diferença que a psicose comporta, apostando na possibilidade de invenção de
soluções por parte do sujeito que nela se encontra estruturado.

Neste artigo, valemo-nos da Psicanálise como ferramenta teórico-clínica para analisarmos as


articulações possíveis da escrita na psicose a partir do ensino lacaniano, com o intuito de pensar seus
efeitos na clínica de atenção psicossocial. Articularemos a discussão por meio do fragmento de um caso
atendido em um CAPS no qual, malgrado a presença de uma escrita incessante e imperativa, o sujeito
avança com dificuldades no seu percurso de estabilização. Partamos da teoria.

2 A ESCRITA E A PSICOSE NO ENSINO LACANIANO

A escrita é correntemente considerada uma possibilidade de estabilização, um modo de suplência aos


casos de psicose, ainda que seja uma solução raramente encontrada na clínica. O estudo de Lacan sobre
Joyce talvez tenha estimulado essa associação. O que, entretanto, a prática clínica com os psicóticos na
verdade testemunha é uma variedade muito grande de relações entre a escrita e as soluções psicóticas.

Essa noção atravessa vicissitudes consequentes ao próprio avanço da teoria lacaniana em seu conjunto.
Segundo Sauvagnat (1999), Lacan trabalha a questão da escrita em toda sua obra, havendo, ao menos,
três momentos em que uma nova proposição é por ele apresentada. A primeira é elaborada na década
de 1930, com seus estudos sobre a “esquizografia” como escrita inspirada. A segunda proposta aparece
na década de 1960, com a escrita a partir do traço unário, que teria que dar conta da inscrição do
Nome-do-Pai. E, por fim, na década de 1970, assistiríamos à escrita que faz nó entre Real, Simbólico e
Imaginário, bem como ao que resiste a se escrever, à escrita de um impossível remetido à relação
sexual. Sigamos essa trajetória.

2.1 ANOS 1930: A PSICOPATOLOGIA E O ELOGIO DA ESCRITA

Lacan, na década de 1930, hesita entre uma concepção estereotipada da escrita na psicose e outra na
qual a escrita é exaltada em sua potência criativa e reveladora dos conflitos típicos de sua época. No
texto “Écrits inspirés: schizographie”, de 19312, publicado originalmente no periódico Annales medico-
psychologiques e, posteriormente, incorporado à edição francesa de sua tese de doutoramento, Lacan
(1932-1975) comenta as práticas poéticas e epistolares de uma professora primária psicótica. Ele se
inspira nos trabalhos de linguística pós-saussuriana de Pfersdorff e Henri Delacroix sobre o mesmo caso.
A razão do exame desse caso é a reticência da doença da qual se supõe que os transtornos elementares
se exprimiriam mais facilmente pela escrita. O termo esquizografia é forjado do termo esquizofasia, que
designa a existência de uma dissociação. No caso estudado, a maioria dos escritos da paciente era
absurdamente incoerente, “contrastando com o caráter absolutamente normal de sua linguagem falada
e a integridade de suas funções intelectuais” (HULAK, 2006, p. 18).

A pesquisa de Lacan já se apresenta muito seletiva. Ele não se pergunta simplesmente se a paciente é
louca, mas sobre quais fundamentos repousa seu delírio polimorfo, acrescentando que talvez os escritos
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ajudassem a resolver a questão. Na discussão dos elementos psicopatológicos, ele destaca que a doente
afirma ser-lhe imposto o que ela exprime, não de uma maneira irresistível nem mesmo rigorosa, mas
sob um modo já previamente formulado. É, no sentido forte do termo, uma inspiração, tanto mais
presente quanto mais a professora esteja só (LACAN, 1932-1975). Duas convicções contraditórias são
acrescentadas. De um lado, ela é acompanhada de um estado de astenia no qual seus escritos
experimentam “verdades de ordem superior” imediatamente compreensíveis pelo destinatário de suas
cartas. E, de outro lado, uma convicção negativa, a de que ela experimenta, quanto a ela própria, nada
compreender disso. Tudo isso acompanhado do sentimento de fazer evoluir a língua.

O conjunto, avalia Lacan, é idêntico à estrutura de todo delírio. Ela associa a uma astenia passional,
colorindo os estados de influência e de interpretação, uma formulação minimal e reticente do delírio, e
um fundo paranóico. O fenômeno elementar aqui vale como resumo da personalidade e, a escrita, como
sua manifestação empobrecida. O fenômeno elementar da ‘inspiração’ parece se tratar de uma forma
vazia, cuja expressão limite é a estereotipia aos moldes das palavras intercambiáveis das estrofes de
uma canção. Longe de motivar a melodia, é a estereotipia que sustenta essas estrofes e legitima, no
caso, seu não sentido (LACAN, 1932-1975). Esta vacuidade formalista aparece em primeiro plano,
enquanto a astenia passional lhe confere um assentimento, diz Lacan, de onde o fenômeno da
‘inspiração’ apresentar uma dimensão passional e outra intelectual simultaneamente.

Ainda que algumas fórmulas desse escrito sejam felizes, o mais frequente são as escórias da
consciência, as palavras silábicas, as sonoridades obsedantes, as banalidades, as assonâncias, os
automatismos diversos, enfim, o que Lacan sintetiza em uma palavra: estereotipia. A ideia de déficit se
destaca nessa leitura. “É quando um pensamento é curto e pobre que o fenômeno automático o
suplencia. Ele é sentido como exterior porque suplenciando um déficit do pensamento. Ele é julgado
como válido porque evocado por uma emoção astênica” (LACAN, 1932-1975, p. 375, tradução nossa).

O interessante é que, em um curtíssimo espaço de tempo no mesmo ano, Lacan (1932-1987) parece
passar dessa leitura deficitária para seu contrário, positivando a escrita psicótica, que nada parecerá
limitar. Assim, os escritos de Aimée – estudados em seu doutoramento – não mostrariam estereotipia
alguma. Eles também foram utilizados como meio de realização do diagnóstico, mas colocavam em
evidência a riqueza afetiva da paciente. “A escrita de certos psicóticos como criação autêntica parece,
então, excluir o uso bruto da repetição (estereotipia): é uma ‘nova sintaxe’” (SAUVAGNAT, 1999, p. 40,
tradução nossa).

A posição de Lacan parece ficar ainda mais clara no ano seguinte, ao escrever “O problema do estilo e a
concepção psiquiátrica das formas paranóicas da experiência” (LACAN, 1933-1987)3. Ali, ele localiza os
temas ideacionais e os atos significativos do delírio dos paranóicos, bem como suas produções plásticas
e poéticas sob três rubricas. Primeiramente, destaca “a significação eminentemente humana desses
símbolos” (LACAN, 1933-1987, p. 379), utilizados pelos psicóticos, que seriam análogos às criações
míticas, assim como os sentimentos que os animam seriam análogos à inspiração dos artistas. Sob um
segundo aspecto, estaria a repetição que, longe de reenviar a uma forma vazia e deficitária, colocaria
em jogo uma “identificação iterativa do objeto”, caracterizando o delírio com uma fecundidade próxima à
dos processos de criação poética. Por fim, em um terceiro ponto, ‘o mais notável’, destaca o valor de
realidade social desses delírios, situados, “com muita frequência, em um ponto nevrálgico das tensões
sociais da atualidade histórica” (LACAN, 1933-1987, p. 379). O conjunto apresenta uma contribuição à
civilização humana e ao problema do estilo, que esse conjunto resumiria de alguma maneira.

Lacan opera um retorno ao contrário articulado pela passagem da repetição, estigmatizada como
estereotipia no primeiro caso, para a amplitude criativa do processo psicótico, presente no segundo, o
caso Aimée. Fato é que nesse período, o centro do processo de criação está situado, para Lacan, na
escrita dos paranóicos. Não percamos esta assertiva de vista.

2.2 ANOS 1960: A ESCRITA DO NOME-DO-PAI

Na década de 1960, uma nova reversão se opera. É, ao contrário, o Nome-do-Pai que resume sozinho o
processo de escrita. A partir de seus trabalhos sobre a instância da letra, Lacan tenta apreender o
movimento do recalcamento originário. Ele coloca em discussão a hipótese de W. M. Flinders Petrie,
retomada por J. Février, a propósito da escrita fenícia, pois considera que ela justifica sua, então,
concepção de traço unário, cuja falha deixaria o sujeito presa do significante no real. Como podemos
observar na aula de 10/1/1962, de O seminário, livro 9: a identificação (LACAN, 1961-1962), a
escrita aqui converge para a função da nomeação e se deixa identificar com a aplicação do Nome-do-Pai.
Perguntando-se sobre o que é um nome, Lacan mostra que essa noção é mais apropriada para designar
o primordial do que o termo identificação. Também mostra que os nomes são heterônomos, na medida
em que resultam de uma nomeação pelo Outro.
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Ao discutir a contribuição de dois célebres pesquisadores britânicos ao tema do nome, o filósofo B.


Russell e o egiptólogo Gardiner, Lacan critica ambos. O primeiro, por ficar muito focalizado no aspecto
denotativo, e o segundo, por considerar os nomes puramente fonéticos, ainda que localizasse no nome
algo de não traduzível. Lacan assenta-se sobre a teoria de Petrie e Février que demonstraram não poder
o alfabeto fenício originário simplesmente derivar de uma simplificação dos hieróglifos ou de um
mecanismo referencial, mas antes supõem dever ter sido composto pela utilização de símbolos sem
significação alguma, utilizados inicialmente para classificar os objetos. As significações seriam, então,
apagadas para formar um conjunto de elementos diferenciais, responsável pelo ato de nomeação.

Lacan considera, nessa lição, que o movimento originário da escrita consiste em impor sobre a
linguagem vocalizada uma bateria de traços diferenciais de origem externa. Esta seria a especificidade
da escrita: a criação de um conjunto de elementos diferenciais impostos sem nenhuma significação na
linguagem humana, permitindo esse ato, no retorno, exprimir a estrutura fonética da linguagem. O
fenômeno da escrita consistiria, então, no apagamento do sentido e na aplicação de uma bateria de
significantes, que Lacan chama de traço unário. Seria como uma espécie de realização de uma castração
‘positiva’, permitindo ao sujeito adquirir certa identificação pelo abandono de uma relação direta com o
objeto originário. Ao mesmo tempo, já indica a escrita de um traço sobre um ponto de apagamento
original.

Nós teríamos, então, um curioso movimento no qual um tema que estava no início ligado à subjetividade
psicótica – e notadamente a alguns de seus modos de repetição – se torna uma característica da
‘castração simbólica’ do neurótico, enquanto realização pela escrita da metáfora do Nome-do-Pai.
O avanço teórico que ele provoca é o seguinte: o ‘Nome-do-Pai’ não é mais um significante ideal que
estabiliza o universo para o sujeito, mas um ato, uma enunciação originária, uma ‘Urverdrängung’ pela
qual uma renúncia ao objeto alienante permite ao sujeito existir como separado, tanto que tudo o que o
sujeito pode manifestar posteriormente não fará senão reenviar a esta ‘Urverdrängung’ (SAUVAGNAT,
1999, p. 41, tradução nossa).

O coração do sujeito, sua nomeação primária, repousará assim sobre uma escrita que não é para ser
decifrada, em uma oposição notável ao inconsciente freudiano colocado como sendo para ser decifrado.
No texto “Posição do inconsciente” (1960/1964-1998), Lacan coloca a metáfora do Nome-do-Pai no
princípio da separação, reenviando esse significante (Nome-do-Pai) ao que o promove, a saber, o objeto
causa do desejo, o objeto a. Ainda que fora do campo da psicose, a escrita comparece como cifra que
faz inscrição. E, mesmo que reenviando ao Nome-do-Pai, acena para o objeto a e aponta para a
operação subjetiva de separação do Outro. Forja, pois, para nós, elementos cruciais à discussão da
estabilização na psicose, no sentido daquilo que nela pode operar enquanto escrita.

2.3 ANOS 1970: A ESCRITA COMO NÓ

A terceira consideração da escrita em Lacan responde, de alguma maneira, ao que se apresenta como
falha onde surgem os fenômenos elementares. É um tipo de solução inversa à que, até então, se
apresenta. A partir de 1973, Lacan não se contenta mais em examinar a questão da escrita a partir das
“pequenas letras da ciência”, utilizadas em seus matemas que visavam a uma transmissão integral do
saber psicanalítico. O próprio ideal de transmissão integral pelos matemas, cuja escrita exige a língua
para sua tradução, esbarra na ex-sistência, no que não se pode dizer todo. Na medida em que exige a
linguagem para sua leitura, os matemas já são significados e acrescidos de significação, perdendo sua
materialidade real. Além disso, a inconsistência do Outro – S (A) – conduz Lacan a estabelecer as
relações entre Imaginário (corpo), Real (pulsão) e Simbólico (linguagem), orientadas pela discussão do
que os ata enquanto nó.

É na aula de 15/5/73 de O seminário, livro 20: mais, ainda (1972/1973-1982), que ele explicará o
uso do nó como escrita. Ele tenta responder a uma questão colocada por Aristóteles – a de que o
homem pensa com sua alma –, interrogando a articulação da linguagem com o que faz substância do
pensamento, neste caso, o gozo. A solução borromiana se assenta sobre essa resposta: “eute peço que
recuses o que te ofereço, porque não é isso”. “Não é isso, quer dizer que, no desejo de todo pedido, não
há senão a petição do objeto a, do objeto que viria satisfazer o gozo” (LACAN, 1972/1973-1982, p. 171,
tradução nossa). É o que mostra a dobra na roda de barbante ao evidenciar a reciprocidade entre sujeito
e objeto a.

A escrita do nó formaliza e bloqueia o mais-de-gozar, e não o objeto pulsional que, na gramática binária
do sistema significante, estava em jogo. Na passagem de dois para três, do sistema binário para o nó
borromeu, a perspectiva do objeto se desloca (DE LOGIVIÈRE, 1987).

Sabemos que o objeto a comparece como aquilo que um pedido supõe de vazio e que só pela metonímia
pode evidenciar o desejo, que nenhum ser suporta. Para o ser falante, a causa do desejo é, quanto à
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estrutura, estritamente equivalente à divisão do sujeito. Lacan supõe que o sujeito representaria para si
objetos inanimados em função da ausência da relação sexual. Seria de maneira a-sexuada que o objeto
e o Outro se apresentariam para o sujeito. Seria enquanto substitutos do Outro que os objetos seriam
reclamados e se fariam causa do desejo. “Um desejo sem outra substância que não a que se garante
pelos próprios nós” (LACAN, 1972/1973-1982, p. 171).

A extração do objeto a indica a impossibilidade do encontro sexual. O ponto central é o fato de a


copulação ser excluída de seu espaço de representação. Essa exclusão assumida vem realmente cobrir
uma ausência central concernente ao Outro do gozo. O que está em jogo na escrita dos nós, para Lacan,
é a tentativa de forjar um substituto a este Outro faltoso, a partir dos nós que representam todos Um.
“Será que isto esclarece para vocês sobre o interesse que há a partir da rodinha de barbante? A dita
rodinha é certamente a mais eminente representação do Um, no sentido de que ela encerra apenas um
furo” (LACAN, 1972/1973-1982, p. 172-73, tradução nossa).

O furo coloca a questão do espaço e ensaia um novo estatuto para a escrita. Se o que corta a linha é o
ponto, e o ponto tem zero dimensão, a linha será definida como tendo uma. Por seu turno, a linha corta
a superfície, que se define em duas dimensões. E, como a superfície corta o espaço, este terá três
dimensões. O espaço “lacaniano”, entretanto, rompe com o espaço euclidiano. Lacan busca as relações
de vizinhança, as continuidades, em uma leitura do espaço que acolhe a topologia singular e retorcida
do sujeito do inconsciente. Ao cortar o espaço, a linha faz um furo, separa um interior de um exterior.
Mas, em se tratando do sujeito do inconsciente, esse corte se efetiva em uma Banda de Moebius que
instala uma relação de continuidade entre interior e exterior.

FIGURA 1 – BANDA DE MOEBIUS

Se percorrermos uma das superfícies dessa banda, veremos que ora estamos em seu interior, ora
estamos em sua superfície externa. Assim também o inconsciente, presente na superfície do discurso do
sujeito falante, revela sua maior intimidade, revela aquilo que o determina. O nó borromeano apresenta
articulação entre o que a linguagem comporta, o buraco (Simbólico), o que faz consistência
(Imaginário), e o que resiste a se escrever (Real). Dessa maneira, a escrita, definida como aquilo que
deixa de traço a linguagem, terá a ver com o nó borromeano na medida em que ele encerra um modo
do sujeito comparecer no discurso, de habitar a linguagem. De onde poderíamos extrair uma primeira
diferença da escrita, já que realizada como amarração dos três registros no espaço tridimensional a
partir dos nós.

Em outra perspectiva, Lacan (1971-1986) retoma, neste mesmo período, sua definição da escrita como
traço em que se lê um efeito de linguagem, apresentada em “Lituraterra”. Aqui, porém, a linha desse
traço mergulha no espaço dimensionado pelo inconsciente, que ultrapassa a binariedade
interior/exterior, revelando uma nova dimensão da linguagem que tenta, então, destacar a partir da
experiência clínica. A letra seria litoral entre saber e gozo, posto que separa dois domínios que não têm
absolutamente nada em comum, nem mesmo uma relação recíproca, o domínio do Simbólico e o
domínio do Real. Não se trata de fazer fronteira entre os dois, adverte-nos ainda Lacan (1971-1986),
pois a fronteira, ao separar dois territórios, simbolizaria que eles são da mesma natureza. A letra
escreve a radicalidade da diferença de consistências entre saber, elucubração em torno da verdade e
gozo, desfrute do que essa verdade tem de inacessível. Diz mais de um litoral do que de uma fronteira,
portanto.
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“A borda do furo no saber, que a Psicanálise designa justamente como de abordagem da letra, não seria
o que ela desenha?” (LACAN, 1971-1986, p. 23, tradução nossa). A letra seria uma espécie de franja
que avança entre as duas consistências de naturezas diversas, desenhando ou escrevendo essa borda
tão pouco precisa no ser falante. Lacan é cuidadoso ao avançar e diz que tudo isso não impede o que ele
disse do inconsciente enquanto efeito de linguagem. A letra suporia sua estrutura como necessária e
suficiente. A questão é, antes, como o inconsciente comandaria essa função de letra.

Pensar, pois, a relação entre letra e inconsciente nos conduz inevitavelmente a discutir a posição da
letra em face do significante. E, quanto a esse aspecto, Lacan é enfático logo de saída. A letra não se
confunde com o significante. “A escritura, a letra, estão no Real, o significante, no Simbólico” (LACAN,
1971-1986, p. 28, tradução nossa). Além disso, não podemos atribuir uma primariedade da letra em
relação ao significante. Ela simbolizaria efeitos de significantes, mas isso não exigiria que ela estivesse
presente nesses mesmos efeitos, nos quais o significante não serve senão de instrumento. Seria mais
importante o exame “disto que a partir da linguagem chama do litoral ao literal” (LACAN, 1971-1986, p.
23, tradução nossa), disso que a letra, em síntese, escreve. E o que é esse literal, senão a letra
enquanto redução mínima do sujeito, enquanto sua escrita?

“É disso que resulta só haver comunicação na análise por uma via que transcende o sentido, aquela que
provém da suposição de um sujeito no saber inconsciente, ou seja, no ciframento” (LACAN, 1973-2003,
p. 555). Essa cifra que localiza o que há de particular em cada sujeito está para além de seu tipo clínico,
ganha a forma do objeto a e assenta-se sobre a materialidade da letra. É onde o núcleo Real de cada
sujeito o singulariza.

Assim, a clínica passa a ser orientada pelo tratamento desse “resíduo irredutível” (LACAN, 1966-2003, p.
222) que queda da divisão que estrutura o sujeito. A ele, a noção de letra enquanto autorreferente,
enquanto escritura que funciona como referente fundamental, idêntica a si mesma, comparece como
elemento essencial. O sintoma pode, então, ser concebido no registro da escrita como a forma com a
qual cada um goza do inconsciente, na medida em que o inconsciente o determina, seja na neurose,
seja na psicose.

Avançando sobre as aporias internas a seu próprio discurso, Lacan se distancia cada vez mais de um
modelo explicativo característico das ciências para um modelo mostrativo4, típico da matemática. Como
ele mesmo afirma em “O aturdito” (LACAN, 1972-2003, p. 479), “Minha topologia não é de uma
substância que situe além do Real aquilo que motiva uma prática. Não é teoria. Mas ela deve dar conta
de que haja cortes do discurso tais que modifiquem a estrutura que ele acolhe originalmente”.

A topologia dá conta dos cortes discursivos que modificam a própria estrutura da linguagem que os
acolhe. Não é à toa que Lacan, nesta época, ressalta a anterioridade de lalíngua em relação à
linguagem. Lalíngua corresponde à língua mãe na qual habita o gozo inarticulado pela estrutura. A
escrita aqui, poderíamos pensar, implica na escrita do gozo junto às tramas da linguagem e ao que dela
e de seu cerzido escapa.

Lacan chega à redução topológica pela clínica e é nela que pretende aplicar sua escrita. Seja pela via do
mal-estar entre os sexos, explorado em O Seminário, livro 20, seja pela via da psicose. Ao oferecer
um exemplo que mostrasse para que serve a fileira de nós dobrados, recorre ao caso Schreber, com
suas frases interrompidas.
Estas frases interrompidas, que chamei mensagens de código, deixam em suspenso não sei que
substância. Percebe-se aí a exigência de uma frase, qualquer que ela seja, que seja tal que um de seus
elos, por faltar, libera todos os outros, ou seja, lhes retira o Um. (LACAN, 1972/1973-1982, p. 173).

O corte de uma das rodelas, que deixaria as outras duas livres, evidenciaria o desencadeamento
psicótico com seus fenômenos elementares. Não subsistiria, neste caso, o furo central do nó. A
articulação dos gozos sustentada pelo nó se desfaria e deixaria o gozo inarticulado para o sujeito. A
substância do gozo, aqui efeito da amarração borromeana, perder-se-ia, como um laço que se desfaz e
deixa livre o que continha.

Também no seminário seguinte, “Les non-dupes errent” (1973-1974), Lacan faz alusão ao nó, mas aqui
ele trabalha no âmbito da neurose a partir do caso do pequeno Hans. Na sessão de 11/12/1973, ele
retoma o caso, considerando-o como um precursor de suas elaborações sobre os nós, na medida em que
os circuitos e os trajetos geográficos, que a fobia de Hans exige, implicam diferentes tentativas de
enodamento que ora privilegiam o Imaginário, ora o Simbólico, ora o Real5, ainda que se tratando de um
enlace dos três em cada caso. Ele opõe o nó olímpico, que não se desfaz se uma das rodelas é cortada,
ao nó borromeano, cujo princípio é o de se desfazer justamente nesse caso. Ele considerava, nessa
lição, que os neuróticos funcionavam no nó olímpico.
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FIGURA 2 - NÓ OLÍMPICO

FIGURA 3 - NÓ BORROMEANO DE TRÊS ELEMENTOS

A escrita comparece como o que deve servir para fixar o objeto causa do desejo. Trata-se de cerzir o
objeto a no furo central do nó. Na medida em que o sujeito se define em relação ao objeto, a questão
que se coloca é como ele vai fixar esse objeto que, no nó, se localiza no entrecruzamento dos três
registros.

FIGURA 4 – TRISKEL COM OBJETO A

Chamamos, portanto, aqui de escrita a forma que toma a amarração dos três registros no nó
borromeano. Mas também aquilo que se escreve como apagamento de uma marca, rasura original que
escreve o sujeito sem texto que lhe anteceda, e a partir da qual o significante encadeia-se na produção
de sentido. Essa operação não somente permitirá o apagamento do objeto (voz), interiorizado a partir
de então, como também fará existir um sujeito a partir de seu bloqueio, de sua amarração. Isso se faz a
partir das três linhas (Real, Simbólico e Imaginário) que bloqueiam o objeto no centro do nó.

O sujeito é fundamentalmente algo que existe com o objeto (mas não é o objeto total, nem permanente,
é o objeto com que o sujeito vai se separar do Outro). Esse objeto sustenta a não medida comum entre
os sexos. O sujeito vai existir a partir desse objeto que se separa do Outro. Trata-se, pois, na amarração
borromeana, de fabricar um objeto e de lhe conferir uma consistência.

É, portanto, a esse convite de Lacan para operarmos com essa escrita que da substância do gozo faz
amarração, que empreendemos a leitura do fragmento de caso a seguir apresentado. Como pensar a
escrita nas psicoses? Como fazer dela um uso clínico? Quando Lacan apresenta o fenômeno das frases
interrompidas em Schreber remetido à escrita do nó, e não mais aos fenômenos de código e de
mensagem, ele localiza ali o desencadeamento provocado por uma desamarração, ou seja, pelo fato de
que alguma coisa, na escrita do sujeito, não será mais capaz de suplenciar a inexistência do gozo do
Outro. Quais as consequências clínicas que podemos extrair dessa escrita?
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4 A ESCRITA EM UM CASO DE PSICOSE: FRAGMENTO CLÍNICO

Acolhido pelo psiquiatra que o referencia e apaziguado pelo encontro com o olhar da secretária do
mesmo CAPS, A. inicia seu tratamento, marcado pela contingência dessa localização do objeto (olhar) no
campo do Outro. Trata-se de um caso de esquizofrenia, no qual o sujeito tenta ininterruptamente fazer-
se um corpo do gozo que entorna pela carne que habita.

Do retorno real do gozo, A. escreve, pinta, declama, delira e se apoia na mãe, na tentativa de forjar um
campo de contenção deste gozo à deriva no corpo. Seu psiquiatra reconhece a insuficiência e o risco da
estratégia de A. de se apoiar no olhar-objeto da secretária do CAPS e, avisado, convida A. a um novo
encontro: o encontro com uma analista, em visitas domiciliares, apoiado na prática entre vários.

Ele aceita o convite e os encontros se iniciam. A direção dada pela analista ao tratamento é a de
introduzir uma barra entre A. e seu Outro. Essa direção aparece na estratégia clínica de desidealizar o
saber do Outro, destituindo, na fala de A., o saber absoluto atribuído por ele a Antonin Artaud. Na época
de seu desencadeamento, A. fazia teatro e ensaiava uma peça desse autor. O deslize fonemático e fora-
do-sentido que, desde então, fixa o binômio ator-Artaud [artô] se desdobra em uma prática cotidiana de
declamar e representar suas peças diante da mãe. Chega mesmo a ser difícil diferenciar o que, na fala
de A., é citação de Artaud daquilo que é de fato seu, ator e autor... A analista introduz outros autores
nas leituras de A. e valoriza aqueles aspectos nos quais ele questiona as propostas de Artaud e introduz
as suas próprias.

Valendo-se da mesma direção quanto à relação com o Outro, a analista opera onde o sujeito pode
comparecer a partir do trabalho com a escrita. Quando ela começou a atendê-lo, ele havia parado de
escrever. Havia antes uma errância muito grande em sua escrita que não encontrava um ponto, um
referente que a orientasse. Ao iniciar o tratamento analítico, ele volta a escrever. Seus pequenos
cadernos tornam-se, então, escritos entregues à analista, que os xeroca e os devolve para que ele os
assine. A ideia é a de que ele dê um nome ao que escreve, introduzindo um ponto de parada para
introdução desse nome em que antes havia puro deslize, indiferenciação em relação ao Outro. Ele ia
escrevendo e dando para qualquer um seus livros sem cessar. Já havia feito isso dezenas de vezes. A
analista tenta introduzir uma pontuação nessa escrita – o que não deixa de ser um convite a uma
circunscrição do gozo disperso. Ela tenta introduzir nesse deslizamento um ponto de basta, algo que
possa favorecer uma nomeação e, portanto, uma amarração pela escrita possível do nome, um ponto de
ancoragem.

O efeito interessante é o início da escrita de cartas com destinatário. Ele não escreve mais sob a
submissão das ideias de um Outro, dirigindo seu produto para um Outro anônimo, para qualquer um. Ele
começa a escrever para um primo, para um tio, e mesmo para a analista. Não só traz um texto seu –
quando antes mesclava ao seu texto recortes de citação de personalidades famosas –, como o endereça
a um outro que possa lhe conferir uma resposta. A primeira carta que escreve é para o irmão que tem o
mesmo nome de seu pai e cujo sobrenome é “Nascimento”. Ele começa a falar do nascimento do pai
para ele, a forjar, no real, uma versão do pai a partir de sua profissão de marceneiro. Vale dizer que é
deste ponto que, no discurso da mãe, o pai falha. Ela não reconhece em seu marido um profissional,
mas um homem que “encosta nela, que vive às custas de sua família”. Será deste ponto de falha do pai
que A. começará a constituir uma versão para ele, deslocando sua atividade de pintura das telas para
pedaços de madeira.

No que diz respeito à escrita, A. começou a numerar e a fazer, dos cadernos, novos escritos em série.
Como ele não se lembrava mais de quantos pequenos cadernos já havia escrito, pegou três cadernos e
os numerou de 57. A partir daí, cada caderno recebe um nome e um número. Ele marca a incerteza,
mas não fica perdido nela. Difícil não remeter essa tentativa à ausência de um significante original, S1,
que teria inaugurado a série a partir da qual o sujeito teria se inscrito. O Nome-do-Pai falha nessa
inscrição (aliás, falha sempre). E, como consequência nesse caso, um sujeito não se inscreve a partir de
uma ordem seriada de significantes, não funda uma cadeia com referentes em torno desse furo central.
Não faz letra. Seus significantes, reais, aparecem na escrita, nas alucinações, no trabalho delirante, na
versão de suas pinturas. Para criar uma série e fazer um nome – ainda que sem sentido –, ele inventa
uma numeração inaugural na qual não houve fundação do zero, do um e de sua consequente cadeia.
São três cadernos que demarcam o Um inaugural, não há “o” ponto a partir do qual a cadeia se escreva,
não há Pai que responda pelo impasse da castração em Freud ou pelo gozo do Outro em Lacan. A. Cruz,
seu patronímico, é o nome que ele escolhe para assinar essa nova série. Importante demarcar nesse ato
a tentativa de localização subjetiva no fora do sentido que o significante, na vertente do gozo, veicula.
Trata-se, nesse caso, de um tratamento do gozo e de um tratamento pelo significante. Não estamos
diante de um sujeito que tenta pelo delírio cerzir simbolicamente o real que o avassala, mas antes
diante de um sujeito que, no real, ou melhor, entre real e simbólico, tenta escrever-se e diferenciar os
três registros – real, simbólico e imaginário –, que aparecem em continuidade no seu texto.
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5 CONCLUSÃO: EFEITOS DA ESCRITA A PARTIR DO ENCONTRO COM O ANALISTA

Quando Lacan desloca a escrita do significante e lhe acrescenta a materialidade da letra, inaugura, na
teoria, a possibilidade de pensarmos o tratamento do gozo pela falta de sentido, por aquilo que o
significante não alcança. A discussão dessa nova versão da letra na década de 1970 acontece
paralelamente à introdução dos nós como mostração do real presente e determinante no cenário
analítico. Lacan está às voltas com aquilo que a linguagem não alcança, com sua debilidade. É aí que se
depara com uma outra escrita que fixa o gozo pelo não sentido, que bloqueia o objeto que separa o
sujeito do Outro, arrancando-lhe a possibilidade de fazer-se uno, completo, de realizar a relação sexual.

Se, no início de seus estudos sobre a psicose, Lacan oscilava entre a escrita como estereotipia ou como
excesso de criatividade, isso se dava, nos parece, em função de outra oscilação, a teórica. Lacan, o
psiquiatra, ensaiava seus passos na Psicanálise e não havia ainda, na década de 1930, encontrado um
aporte teórico que justificasse o que ele verificava na sua prática. Nos anos 1950, ao contrário, sua
construção sobre a escrita na psicose encontra, exatamente, um limite no estruturalismo. Em seu
esforço de recuperar a Psicanálise freudiana, ele se apoia incondicionalmente na lógica estruturalista,
chegando mesmo à beira da tautologia racionalista nessa aplicação. A escrita, nesse período, refere-se
ao Nome-do-Pai e ao traço unário como condicionantes essenciais da constituição da subjetividade. No
final de seu ensino, deparado com o limite da linguagem, Lacan se pergunta pelo estatuto da escrita em
si mesma. E encontra, na discussão da escrita de Joyce, uma nova formulação sobre a letra e sobre o
sujeito que ele nos apresenta com a teoria dos nós borromeanos.

Como podemos nos valer desse percurso lacaniano na clínica com a psicose? No veio da discussão
empreendida por Lacan, podemos extrair uma indagação constante acerca do estatuto da psicose a
partir da escrita. De um lado, em uma vertente pejorativa, veremos a psicose ser pensada como déficit
que redunda na estereotipia ou que carece do Nome-do-Pai; já, por outro lado, teremos a psicose
pensada como potência criativa ou simplesmente como escrita possível de um sujeito. Mais do que
alcançar uma coerência em Lacan, interessa aos praticantes da clínica com a psicose seguir as trilhas
das questões que nascem dessa clínica e que culminam na constatação de que o real é indomável para
todos, sejam eles neuróticos, perversos ou psicóticos. A escrita, como operadora do manejo singular do
gozo, saber-fazer possível com ele, ou como efeito/causa de uma amarração possível dos registros resta
como o que, desse percurso lacaniano, podemos nos valer diante de cada caso que atendemos. Não se
trata de caneta e papel – ainda que eventualmente essa escrita concreta possa ter caráter de suplência
–, mas antes da maneira particular pela qual se ligam o simbólico e o real entre si, que é a maneira de
dar nome às coisas da vida (ZENONI, 2007). Nesse ponto, a letra se escreve. E é aí também que o
sujeito pode aprender a ‘fazer com’ seu estilo de se escrever na vida.

‘Aprender a fazer com’, eis o que o encontro com o analista pôde favorecer no fragmento de caso
apresentado. No encontro provocado pela analista com certa escansão na escrita, corolária de uma
escansão com o Outro, A. pôde iniciar o trabalho de dar nome às coisas da vida. São desses efeitos
recolhidos na clínica pelo psicanalista que sua contribuição pode se dar no campo da atenção
psicossocial. Aplicando seu saber nessa articulação fina que faz dialogar a tessitura única do sujeito com
suas possibilidades públicas de intervenção e entrada no mundo.

Tomar ao pé da letra o que diz o psicótico e dar a seu trabalho o estatuto de escrita pode favorecer a
estabilização. Secretariar não é apenas testemunhar a construção delirante apoiada no sentido, mas
também, e, sobretudo, seguir o estilo do sujeito nos ensaios de resposta que constrói à ausência do
significante no campo do Outro. Essa escrita pode atar os três registros da subjetividade humana. Ao
menos, é essa a aposta que guia a entrada do psicanalista no texto da atenção psicossocial em suas
diferentes possibilidades de trabalho com a escrita na psicose.

REFERÊNCIAS

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______.Da psicose paranóica em suas relações com a personalidade, seguido de primeiros
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ZENONI, A. Versões do Pai na Psicanálise lacaniana: o percurso do ensinamento de Lacan sobre a


questão do pai. Psicologia em Revista-PUC Minas Gerais, Belo Horizonte, v. 13, n. 1, p. 15-26,
2007.

Endereço para correspondência

Andréa Máris Campos Guerra


E-mail:[email protected]

Submetido em: 07/08/2008


Revisado em: 24/03/2009
Aceito em: 25/03/2009
Arquivos Brasileiros de Psicologia, v. 61, n. 1, 2009.

1
Trata-se da pesquisa que culminou na tese de Doutorado de minha autoria, intitulada “A estabilização
psicótica na perspectiva borromeana: criação e suplência”, aprovada junto ao Programa de Pós-
Graduação em Teoria Psicanalítica em abril de 2007, com estudos aprofundados na Université de Rennes
II,França, com financiamento da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior
(CAPES), e sob orientação de Ana Cristina Figueiredo.
2
O texto foi originalmente escrito e apresentado em conjunto com J. Levi-Valensi e P. Migault, e se
encontra acessível pela internet em diferentes endereços eletrônicos, como no site do Groupe de Travail
Lutecium <www.lutecium.org/Jacques_Lacan/transcription/schizographie.htm>. Ele não foi incluído na
edição brasileira da tese de doutoramento de Lacan.
3
O texto foi publicado originalmente no número 1 da revista surrealista Le Minotaure, em junho de
1933.
4
Em uma demonstração (SOURY, 1988), o que se discute são as configurações parciais e as
configurações impossíveis, especialmente as configurações parciais impossíveis. Desenhar, ao contrário
do demonstrar, seria mostrar as configurações completas e possíveis. Demonstrar é principalmente
demonstrar as impossibilidades, enquanto mostrar é principalmente mostrar as possibilidades.
5
Trata-se de três trajetos: 1. os pequenos circuitos que realiza, seja de metrô, seja de carroça, com sua
mãe, na dependência de seu desejo, no qual aparece a problemática fálica como fora do corpo, cujo
resultado é seu sintoma fóbico com os cavalos; 2. o grande circuito, que realiza com seu pai para o
zoológico ou para a casa de sua avó, e que relança o desejo de Hans, estando centrado no simbólico; 3.
o circuito especial, que constitui uma escapada que religa, de maneira nova, o zoológico da cidade em
que residia e a casa da avó. Neste o pai é convocado como pai real, transgressor da lei, aparecendo a
figura do bombeiro, e o convite de Hans para que seu pai despose sua própria mãe (a avó de Hans).
Nesse circuito, Anna, sua irmã, comparece como portadora do gozo feminino ou do gozo do Outro, cujo
retorno atípico coloca em questão a restauração da figura paterna pelo viés da identificação. Trata-se da
père-version que Hans constrói ao final de seu ‘tratamento’ e que, como bom neurótico, localiza o pai
como exceção, na medida em que sustenta uma mulher como causa de seu desejo, enquanto Anna
estará “sempre lá”, além da mãe em si mesma, encarnando o gozo suplementar feminino (SAUVAGNAT,
1999).

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