20 Poemas de Manoel Antônio Pina

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Galeria Virtual MANUEL ANTÓNIO PINA A LUZ DAS PALAVRAS

22 POEMAS
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OS TEMPOS NÃO

Os tempos não vão bons para nós, os mortos.


Fala-se de mais nestes tempos (inclusive cala-se).
As palavras esmagam-se entre o silêncio
que as cerca e o silêncio que transportam.

É pelo hálito que te conheço no entanto


o mesmo escultor modelou os teus ouvidos
e a minha voz, agora silenciosa porque nestes tempos
fala-se de mais são tempos de poucas palavras.

Falo contigo de mais assim me calo e porque


te pertence esta gramática assim te falta
e eis por que não temos nada a perder e por que é
cada vez mais pesada a paz dos cemitérios.

Manuel António Pina in AINDA NÃO É O FIM NEM O PRINCÍPIO DO MUNDO CALMA É APENAS UM POUCO TARDE (Assírio & Alvim, 1974)

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JÁ NÃO É POSSÍVEL

Já tudo é tudo. A perfeição dos


deuses digere o próprio estômago.
O rio da morte corre para a nascente.
O que é feito das palavras senão as palavras?

O que é feito de nós senão


as palavras que nos fazem?
Todas as coisas são perfeitas de
nós até ao infinito, somos pois divinos.

Já não é possível dizer mais nada


mas também não é possível ficar calado.
Eis o verdadeiro rosto do poema.
Assim seja feito: a mais e a menos.

Manuel António Pina in AINDA NÃO É O FIM NEM O PRINCÍPIO DO MUNDO CALMA É APENAS UM POUCO TARDE (Assírio & Alvim, 1974)

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PALAVRAS NÃO

Palavras não me faltam (quem diria o quê?),


faltas-me tu poesia cheia de truques.
De modo que te amo em prosa, eis o
lugar onde guardarei a vida e a morte.
De que outra maneira poderei
assim te percorrer até à perdição?
Porque te perderei para sempre como
o viajante perde o caminho de casa.

E, tendo-te perdido, te perderei para sempre.


Nunca estive tão longe e tão perto de tudo.
Só me faltavas tu para me faltar tudo,
as palavras e o silêncio, sobretudo este.

Manuel António Pina in AINDA NÃO É O FIM NEM O PRINCÍPIO DO MUNDO CALMA É APENAS UM POUCO TARDE (Assírio & Alvim, 1974)

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OUTRAS COISAS

Outras coisas no entanto


o amor e o desamor e também a
morte que nas coisas morre subitamente
o lugar onde vais de súbito

De súbito faltas-me debaixo dos pés


e noutros lugares De ti é possível dizer
que te ausentaste para parte incerta
deixando tudo no teu lugar

Está tudo na mesma Também a mim


tempo não me falta lugar sim
Onde cairás morta, Ror da infância?
De súbito faltam-me as palavras

Manuel António Pina in AINDA NÃO É O FIM NEM O PRINCÍPIO DO MUNDO CALMA É APENAS UM POUCO TARDE (Assírio & Alvim, 1974)

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PALAVRAS

Palavras perpetradas em silêncio


na cama, lugar de assassinos.
Escondo-me para morrer. Nenhuma lógica é mais mortal
que esta estúpida perversão, esta morte.

Estúpidos lençóis; escrita de


corpos grosseiros; crimes passionais.
Falta-me uma palavra essencial,
um som perverso para morrer: um sonho.

Contraem-se os músculos na vigília.


Preciso do sono e do movimento dos corpos
para dirigir devidamente o pequeno crime
da tua morte. Agora calo-me um pouco.

Manuel António Pina in AINDA NÃO É O FIM NEM O PRINCÍPIO DO MUNDO CALMA É APENAS UM POUCO TARDE (Assírio & Alvim, 1974)

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AMOR COMO EM CASA

Regresso devagar ao teu


sorriso como quem volta a casa. Faço de conta que
não é nada comigo. Distraído percorro
o caminho familiar da saudade,
pequeninas coisas me prendem,
uma tarde num café, um livro. Devagar
te amo e às vezes depressa,
meu amor, e às vezes faço coisas que não devo,
regresso devagar a tua casa,
compro um livro, entro no
amor como em casa.

Manuel António Pina in AINDA NÃO É O FIM NEM O PRINCÍPIO DO MUNDO CALMA É APENAS UM POUCO TARDE (Assírio & Alvim, 1974)

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A POESIA VAI

A poesia vai acabar, os poetas


vão ser colocados em lugares mais úteis.
Por exemplo, observadores de pássaros
(enquanto os pássaros não
acabarem). Esta certeza tive-a hoje ao
entrar numa repartição pública.
Um senhor míope atendia devagar
ao balcão; eu perguntei: «Que fez algum
poeta por este senhor?» E a pergunta
afligiu-me tanto por dentro e por
fora da cabeça que tive que voltar a ler
toda a poesia desde o princípio do mundo.
Uma pergunta numa cabeça.
— Como uma coroa de espinhos:
estão todos a ver onde o autor quer chegar? —

Manuel António Pina in AINDA NÃO É O FIM NEM O PRINCÍPIO DO MUNDO CALMA É APENAS UM POUCO TARDE (Assírio & Alvim, 1974)

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[4 DE JULHO DE 1965]

segundo fontes geralmente bem


os altos interesses nacionais
foi recebido carinhosamen-
pretende para fins matrimoniais

entre os países membros da otan


as suas provas de doutoramento
sua excelência o presidente da
a conferência do desarmamento

excelentíssimo senhor director


ardilosos amigos do alheio
nosso prezado colaborador
atrasos na entrega do correio

não perca esta excelente ocasião


da santa madre igreja faleceu
resposta em carta à administração
de casa dos seus pais desapareceu

Manuel António Pina in AINDA NÃO É O FIM NEM O PRINCÍPIO DO MUNDO CALMA É APENAS UM POUCO TARDE (Assírio & Alvim, 1974)

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CALO-ME

Calo-me quando escrevo


assim as palavras falam mais alto e mais baixo.
Nada no poema é impossível e tudo é possível
Mas não arranjo maneira de entrar no poema
e de sair de mim e por isso a minha voz é profunda e rouca
e por isso me calo (e como me calarei?)
No entanto ninguém é tão falador como eu
Nem há palavras que não cheguem para não dizer nada.

E vós também: não me faleis de nada ou falai-me.


Porque não sabeis o que dizeis .

Manuel António Pina in AINDA NÃO É O FIM NEM O PRINCÍPIO DO MUNDO CALMA É APENAS UM POUCO TARDE (Assírio & Alvim, 1974)

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VOLTO DE NOVO AO PRINCÍPIO

A ideia de isto cansa-me


em qualquer sítio fora de qualquer sítio
onde o meu cansaço é só um conceito.
(Há qualquer coisa que quer falar e apenas foge;

as palavras perseguem a sua miragem,


e eu sou o lugar onde tudo isto se passa fora de mim,
a Literatura, o cansaço e a ideia de isso.
Já não tenho palavras para não dizer qualquer coisa.)

Volto de novo ao princípio de tudo,


ao lado de fora, onde fala de isto;
o que aí falta está parado
sobre a Literatura.

Manuel António Pina in AQUELE QUE QUER MORRER (Assírio & Alvim, 1978)

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O CAMINHO DE CASA

O que foi perdido


ficou eternamente
sobre o coração como a sombra de outra pessoa.
Nunca sentiste a morte

no coração como uma grande sombra


que o Trabalho, a Empresa, dissipam?
O que está por baixo de ti, ó Família,
ó estúpida Paz, ó Razão, ó Cólera,

acorda agora com as sombras,


os perdidos sonhos latejam,
o olho das trevas fita
o que temo dizer.

Agora que os
olhos se fecharam
fico acordado toda a noite
diante de uma coisa imensa.

Os amigos partiram.
Fomos todos embora.
Quem ficou aqui e onde,
E fala de isto agora?

Manuel António Pina in NENHUM SÍTIO (Assírio & Alvim, 1984)

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O ESPELHO

A corrupta luz da infância


ilumina o rosto de um
desconhecido, o meu rosto,
e olha-o com olhos cegos.

Eu sou apenas
esta voz de alguém,
esta música que não vem de
nenhum sítio, ouvindo-se a si mesma.

As palavras não chegam


para levar-me onde, fora
da infância, está alguma coisa:
isto que quer falar

e vê e é visto.
Não estou aqui, sonho
(eu, também um sonho)
fora de mim comigo.

Como me ouvirei?
Como me reconhecerei?
Poderei suportar o meu olhar
quando me vir, confundir-me nele?

Manuel António Pina in NENHUM SÍTIO (Assírio & Alvim, 1984)


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O CAMINHO DE CASA

Volto de noite para casa.


Tudo é memória fora de mim
ou onde em mim alguém conduz
fisicamente o automóvel.

Como não estarei


nem não estarei
em nenhum sítio, voltando
absolutamente para casa?

Subindo as escadas grave e inocente


como quem volta à noite para casa
e voltando para casa inteiramente
e adormecendo em mim como em casa?

Manuel António Pina in O CAMINHO DE CASA (Assírio & Alvim, 1989)

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ESPLANADA

Naquele tempo falavas muito de perfeição,


da prosa dos versos irregulares
onde cantam os sentimentos irregulares.
Envelhecemos todos, tu, eu e a discussão,

agora lês saramagos & coisas assim


e eu já não fico a ouvir-te como antigamente
olhando as tuas pernas que subiam lentamente
até um sítio escuro dentro de mim.

O café agora é um banco, tu professora de liceu;


Bob Dylan encheu-se de dinheiro, o Che morreu.
Agora as tuas pernas são coisas úteis, andantes,
e não caminhos por andar como dantes.

Manuel António Pina in UM SÍTIO ONDE POUSAR A CABEÇA (Assírio & Alvim, 1991)

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CAFÉ ORFEU

Nunca tinha caído


de tamanha altura em mim
antes de ter subido
às alturas do teu sorriso.

Regressava do teu sorriso


como de uma súbita ausência
ou como se tivesse lá ficado
e outro é que tivesse regressado.

Fora do teu sorriso


a minha vida parecia
a vida de outra pessoa
que fora de mim a vivia.

E a que eu regressava lentamente


como se antes do teu sorriso
alguém(eu provavelmente)
nunca tivesse existido.

Manuel António Pina in UM SÍTIO ONDE POUSAR A CABEÇA (Assírio & Alvim, 1991)

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[LUGARES DA INFÂNCIA]

Lugares da infância onde


sem palavras e sem memória
alguém, talvez eu, brincou
já lá não estão nem lá estou.

Onde? Diante
de que mistério
em que, como num espelho hesitante,
o meu rosto, outro rosto, se reflecte?

Venderam a casa, as flores


do jardim, se lhes toco, põem-se hirtas
e geladas, e sob os meus passos
desfazem-se imateriais as rosas e as recordações.

O quarto eu não o via


porque era ele os meus olhos;
e eu não o sabia
e essa era a sabedoria.

Agora sei estas coisas


de um modo que não me pertence,
como se as tivesse roubado.

A casa já não cresce


à volta da sala,
puseram a mesa para quatro
e o coração só para três.

Falta alguém, não sei quem,


foi cortar o cabelo e só voltou
oito dias depois, já o
jantar tinha arrefecido.

E fico de novo sozinho,


na cama vazia, no quarto vazio.
Lá fora é de noite, ladram os cães;
e eu cubro a cabeça com os lençóis.

Manuel António Pina in UM SÍTIO ONDE POUSAR A CABEÇA (Assírio & Alvim, 1991)

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[AOS MEUS LIVROS]

Chamaram-vos tudo, interessantes, pequenos, grandes,


ou apenas se calaram, ou fecharam os longos ouvidos
à vossa inútil voz passada
em sujos espelhos buscando
o rosto e as lágrimas que (eu é que sei!)
me pertenciam, pois era eu quem chorava.

Um bancário calculava
que tínheis curto saldo
de metáforas; e feitas as contas
(porque os tempos iam para contas)
a questão era outra e ainda menos numerosa
(e seguramente, aliás, em prosa).

Agora, passando ainda para sempre,


olhais-me impacientemente;
como poderíamos, vós e eu, escapar
sem de novo o trair, a esse olhar?
Levai-me então pela mão, como nos levam
os filhos pela mão: sem que se apercebam.

Partiram todos, os salões onde ecoavam


ainda há pouco os risos dos convidados
estão vazios; como vós agora, meus livros:
papéis pelo chão, restos, confusos sentidos.
(E só nós sabemos
que morremos sozinhos.
Ao menos escaparemos
à piedade dos vizinhos...)

Manuel António Pina in FAREWELL HAPPY FIELDS (Assírio & Alvim, 1992)

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NENHUMA MÚSICA

«O gato olha-me
ou o meu olhar olhando-o?
E eu o que vejo senão
a mesma Única solidão?

Chamo-o pelo nome,


pela oposição.
Em vão:
sou eu quem responde.
Virou-se e saltou
para o parapeito
real e perfeito,
sem nome e sem corpo.
(Também eu estou,
como ele, morto).»

Manuel António Pina in CUIDADOS INTENSIVOS (Assírio & Alvim, 1994)

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THEO

Às vezes o gato fitava


com estranheza
o que de nós (um excesso)
se interpunha entre nós e o gato,
a nossa presença.

Manuel António Pina in CUIDADOS INTENSIVOS (Assírio & Alvim, 1994)

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FORMA,
SÓ FORMA

Brincarei ainda na infância


lembrando-me agora?
E que recordação
me pensa a esta hora?

o que sou passou


pela minha existência,
tenho uma presença
mas já lá não estou:

sou também lembrança


de alguém em algum sítio,
onde não alcança
o que, lembrado, sinto.
E aí repousa já
tornado esquecimento
um dia que virá
há muito, muito tempo.

Manuel António Pina in CUIDADOS INTENSIVOS (Assírio & Alvim, 1994)

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AS VOZES

A infância vem
pé ante pé
sobe as escadas
e bate à porta
— Quem é?
— É a mãe morta
— São coisas passadas
— Não é ninguém

Tantas vozes fora de nós!


E se somos nós quem está lá fora
e bate à porta? E se nos fomos embora?
E se ficámos sós?

Manuel António Pina in NENHUMA PALAVRA E NENHUMA LEMBRANÇA (Assírio & Alvim, 1999)

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TODAS AS PALAVRAS

As que procurei em vão,


principalmente as que estiveram muito perto,
como uma respiração,
e não reconheci,
ou desistiram e
partiram para sempre,
deixando no poema uma espécie de mágoa
como uma marca de água impresente;
as que (lembras-te?) não fui capaz de dizer-te
nem foram capazes de dizer-me;
as que calei por serem muito cedo,
as que calei por serem muito tarde,
e agora, sem tempo, me ardem;
as que troquei por outras (como poderei
esquecê-las desprendendo-se longamente de mim?);
as que perdi, verbos e
substantivos de que
por um momento foi feito o mundo.
E também aquelas que ficaram,
por cansaço, por inércia, por acaso,
e com quem agora, como velhos amantes sem
desejo, desfio memórias,
as minhas últimas palavras.

Manuel António Pina in ATROPELAMENTO E FUGA (Assírio & Alvim, 2001)

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