Reflexões Baseadas Na Psicologia Sobre Efeitos Da Pandemia COVID-19 No Desenvolvimento Infantil
Reflexões Baseadas Na Psicologia Sobre Efeitos Da Pandemia COVID-19 No Desenvolvimento Infantil
Reflexões Baseadas Na Psicologia Sobre Efeitos Da Pandemia COVID-19 No Desenvolvimento Infantil
1590/1982-0275202037e200089
Resumo
De forma inquestionável, a pandemia da COVID-19 ameaça a saúde física e mental da população na contemporaneidade.
Embora as crianças sejam menos contaminadas na forma sintomática e grave da COVID-19, essas podem ser mais afetadas
no âmbito do desenvolvimento psicológico por serem uma população vulnerável. O presente artigo aborda aspectos
conceituais da Teoria do Caos no desenvolvimento e do estresse tóxico, associados aos conceitos de autorregulação e
enfrentamento do estresse (coping), visando subsidiar reflexões, do ponto de vista psicológico, sobre os efeitos potenciais
da condição da adversidade da pandemia no desenvolvimento das crianças e na parentalidade. A fundamentação
teórico-conceitual oferece suporte à compreensão dos tipos de enfrentamento adaptativo ou desadaptado frente a essa
experiência adversa e potencialmente traumática da contemporaneidade.
Palavras-chave: Autorregulação; Coping; Criança; Estresse; Pandemias.
Abstract
Unquestionably, the COVID-19 pandemic threatens the physical and mental health of the population nowadays. In
despite of the children are less contaminated in the symptomatic and severe way, these children could be more impacted
in the psychological development, as they are a vulnerable population. The present paper addresses the conceptual
aspects of Chaos Theory in development and toxic stress, associated with the concepts of self-regulation and coping of
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Universidade de São Paulo, Faculdade de Medicina de Ribeirão Preto, Programa de Pós-Graduação em Saúde Mental. Av. Tenente
Catão Roxo, 2650, Campus Monte Alegre, 14051140, Ribeirão Preto, SP, Brasil. Correspondência para/Correspondence to: M.B.M.
LINHARES. E-mail: <[email protected]>.
2
Pontifícia Universidade Católica de Campinas (PUC-Campinas), Centro de Ciências da Vida, Programa de Pós-Graduação em Psicologia.
Campinas, SP, Brasil.
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Como citar este artigo/How to cite this article
Linhares, M. B. M., & Enumo, S. R. F. (2020). Reflexões baseadas na Psicologia sobre efeitos da pandemia COVID-19 no desenvolvimento
infantil. Estudos de Psicologia (Campinas), 37, e200089. https://doi.org/10.1590/1982-0275202037e200089
Desde o início do ano de 2020, o mundo enfrenta uma grave crise mundial com a pandemia devido
à infecção pelo novo coronavírus denominado Severe Acute Respiratory Syndrome Coronavirus 2 (SARS-
CoV-2, Síndrome Respiratório Aguda Grave 2), que provoca a Coronavirus Disease 2019 (COVID-19),
detectado na China em dezembro de 2019 (Organização Pan-Americana de Saúde [OPAS], 2020). Trata-se
de um problema de saúde que ainda não tem tratamento farmacológico comprovadamente eficaz, nem
vacina como medida preventiva efetiva (Goodman & Borio, 2020). Nesse sentido, no cenário mundial, para
o enfrentamento da pandemia adotou-se como medida não-farmacológica o distanciamento e isolamento
social, sendo estratégias de controle da disseminação da contaminação na população pelo distanciamento
físico e redução da mobilidade. Sabe-se que essas são as medidas possíveis no momento, porém não se deve
perder de vista que o distanciamento social certamente poderá ter impactos negativos em diferentes níveis, a
saber: de forma particular, nas pessoas; de forma ampliada, em seus diferentes contextos de desenvolvimento
(desde o contexto familiar, comunidade local, cidades, estados e país); e de forma globalizada, nas relações
internacionais (Liang, 2020).
De forma específica, o corpo de conhecimentos sobre os aspectos psicológicos das pessoas, no
contexto da pandemia, precisa ser construído. Esses aspectos estão recebendo atenção concomitantemente ao
avanço do curso natural da doença. O painel de especialistas convocado pela Academia Britânica de Ciências
Médicas (UK Academy of Medical Sciences) e pela instituição de caridade de pesquisa em saúde mental MQ:
Transforming Mental Health indica como prioridade a obtenção de dados de alta qualidade sobre os efeitos
da pandemia na saúde mental de toda a população e de grupos vulneráveis, destacando-se os efeitos no
cérebro, em termos de função, cognição e saúde mental de pacientes com COVID-19 (Holmes et al., 2020).
Os efeitos diretos e indiretos psicológicos e sociais exigem intervenções integradas entre diversas áreas de
conhecimento (Holmes et al., 2020; van Bavel et al., 2020).
Estudos de revisão da literatura têm contribuído para atualizar sobre esses efeitos, destacando haver
sintomas de confusão mental, raiva e estresse pós-traumático (Brooks et al., 2020; Ornell, Schuch, Sordi,
& Kessler, 2020). Contudo, no momento, os estudos empíricos sobre outcomes psicológicos são escassos
(Maia & Dias, 2020; Qiu et al., 2020) e os estudos prospectivo-longitudinais, em especial os que tenham
delineamento de coorte/2020, ainda são inexistentes. Diante desse quadro, a Organização Mundial da
Saúde, por meio do seu diretor geral Tedros Ghebreyesus, em 2020, recomendou aos países: “preparem-
se, detectem-se, protejam, tratem, reduzam o ciclo de transmissão, inovem e aprendam” para enfrentar a
M.B.M. LINHAREES & S.R.F. ENUMO
pandemia (OPAS, 2020). O aprendizado é fundamental não apenas para entender os diferentes aspectos da
epidemia, especialmente dos dados epidemiológicos e do curso da COVID-19, assim como deve-se atentar
para o aprendizado dos impactos psicológicos na área de saúde mental dos indivíduos.
A Psicologia destaca-se nesse contexto por reunir fundamentação teórica-conceitual e evidências
científicas que podem ser aplicadas e generalizadas, contribuindo para uma compreensão dos aspectos
psicológicos durante a grave crise contemporânea da pandemia da COVID-19. Os estudos atuais mostram
influências dessa situação no comportamento das pessoas no cotidiano e causando ansiedade, medo,
depressão e pânico (Holmes et al., 2020; Jiao et al., 2020). Contudo, ainda existem poucos dados sobre os
impactos que esse período de transição caracterizado por insegurança e incertezas causará especificamente
2 no funcionamento psicológico de crianças (Muratori & Ciacchini, 2020).
A Teoria do Caos no desenvolvimento (Evans & Wachs, 2010) apresenta uma releitura da Teoria
Bioecológica de Bronfenbrenner (2011), em que os diferentes sistemas são compreendidos no contexto
das adversidades. De acordo com Bronfenbrenner, o desenvolvimento humano tem quatro componentes:
pessoa, processo, contexto e tempo. As características da pessoa, tais como genética, fisiologia, gênero,
temperamento, nível de atividade, entre outras, se relacionam com o contexto proximal de desenvolvimento
humano, representado por cuidadores familiares, em especial os pais e os professores no ambiente educacional.
Os processos proximais, que envolvem as interações diretas do organismo com outras pessoas, objetos e
símbolos, impulsionam sobremaneira o desenvolvimento humano. Além dos processos proximais, os distais
também afetam o desenvolvimento de forma indireta, como por exemplo as condições de emprego dos pais
ou mesmo valores e crenças de uma determinada cultura. Esses processos impulsionam o desenvolvimento
por meio de participação ativa da interação entre pessoa e contextos, de forma a ser progressivamente mais
complexa e prolongada no tempo.
A Teoria Bioecológica (Bronfenbrenner, 2011) concebe o desenvolvimento humano ocorrendo em
diferentes sistemas interrelacionados, a saber: microssistema (onde ocorrem as relações proximais realizadas
face a face); mesossistema (envolve as interrelações entre dois ou mais contextos nos quais a criança participa
ativamente); exosssistema (a criança pode não ter relação direta com determinado contexto, mas eventos
que ocorram nesse ambiente podem afetar indiretamente seu ambiente); e macrossistema (engloba todos
os outros contextos ambientais, estabelecendo interconexões complexas). COVID-19 E DESENVOLVIMENTO INFANTIL
O contexto familiar consiste no primeiro microssistema em que se constroem as interações proximais face
a face significativas entre os cuidadores principais e as crianças em desenvolvimento (Bronfenbrenner, 2011).
Nesse microcontexto, os pais desenvolvem a função parental de cuidar e educar as crianças, conduzindo-as
até a maturidade para atingir sua autonomia, independência e comportamento adaptativo. De acordo com
Barroso e Machado (2015), a parentalidade representa o cuidado parental que inclui aspectos físico, emocional
e social que visam atingir desenvolvimento saudável das crianças. Os pais precisam ter comportamentos e
atitudes promotores de segurança e autonomia das crianças, a fim de desenvolver a capacidade de tomar
decisões, assim como assegurar o desenvolvimento de habilidades sociais. A parentalidade positiva promove
o cuidado físico (alimentação, higiene, vestuário para proteger), emocional (comportamento parental para
promover apego, segurança e autonomia para tomadas de decisão) e social (estimulação das relações
interpessoais ampliadas) (Linhares, 2015).
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ambiente físico para acomodar as demandas de trabalho, estudo e brincadeiras; sobrecarga de trabalho
doméstico; instabilidade no emprego, desemprego e problemas financeiros; falta ou irregularidade do suporte
regular dos serviços de saúde e assistência social e comunitária à família, separação de familiares, entre outros.
Deve-se lembrar que a morte ou ameaça da morte passa a ser um assunto em pauta em muitos momentos
ao vivo ou via mídia, que se associa a uma hipervigilância das crianças (Holmes et al., 2020). Pode-se destacar
o fato de que uma situação imprevisível no seu desfecho, com pouco poder de controle por parte do indivíduo,
constitui-se em um evento desencadeador de ansiedade, medos e desamparo (Skinner & Zimmer-Gembeck,
2016). Nesse sentido, o ambiente doméstico passou a ser um “nicho de desenvolvimento” contaminado
A situação atual da pandemia não apresenta evento precedente com características semelhantes,
considerando-se não só a questão de ser evento estressor prolongado, mas também bastante restritivo com
a medida de distanciamento social e interrupção de mecanismos de proteção ampliado ao indivíduo. Nesse
sentido, ainda se tem dificuldade de avaliação dos impactos psicológicos especificamente no desenvolvimento
das crianças.
Considerações Finais
da pessoa para lidar com a situação, levando ao desamparo, à depressão. Caso os familiares percebam
dificuldades de controle da situação, eles devem recorrer a um suporte social ou especializado possível de
forma remota. Os familiares devem procurar manter a regulação fisiológica, emocional e comportamental para
atingir a superação de um momento de grande desafio ao desenvolvimento humano, que exige planejamento,
raciocínio e flexibilidade. Além disso, a manutenção dos alicerces de competência, relacionamento e autonomia
do indivíduo são fundamentais para o enfrentamento adaptativo.
Certamente os estudos empíricos na área da Psicologia serão necessários para avaliar os impactos a
curto, médio e longo prazo. Estudos futuros prospectivo- longitudinais, e especialmente estudos do coorte
de 2020 e intergeracionais, serão essenciais para entender de forma aprofundada os impactos em diferentes
áreas do desenvolvimento das crianças expostas ao momento histórico da pandemia do COVID-19. Esta se
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Contribuição
Ambas as autoras participaram da concepção do artigo, redação e revisão da versão final do artigo.
Referências
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