Biblia Apocrifa PDF
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I - BÍBLIA
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GERALDO J. A. COELHO DIAS
Branca
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BÍBLIA E NATUREZA. A VISÃO TEOLÓGICA DA DEFESA E PROTECÇÃO DO COSMOS
1 - Bíblia e Natureza.
A visão teológica da defesa e protecção do cosmos*
Introdução
* Texto inédito.
1
Contra Apionem, I, 8.
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É preciso ter em conta a terminologia. O que os católicos chamam Deuterocanónicos, os Protestantes
chamam Apócrifos; e o que os Católicos chamam Apócrifos, chamam os Protestantes Pseudoepígrafos.
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autenticidade, mas não da canonicidade dos Livros Sagrados, isto é, de quem seria
o autor do livro sagrado, mas não qual a lista dos livros sagrados.
Modernamente, com a importância dada à Bíblia, no Ocidente, quase todos
recorrem a ela para encontrar resposta e solução para os grandes problemas da
humanidade. A ciência moderna, eminentemente racional, chegou mesmo a
estabelecer uma dicotomia entre Razão e Revelação, entre Ciência e Bíblia, lan-
çando sobre esta a acusação de obscurantismo, sobretudo no que toca à criação
do mundo, ao aparecimento do homem, à diversidade das línguas e a tantos e
tantos milagres, que a Bíblia narra.
Uma melhor compreensão das literaturas antigas e dos géneros literários
permite, hoje, aos estudiosos da Ciência e da Bíblia, uma visão mais moderada
e correcta, porque, como já dizia Galileu, “A Bíblia não diz como vai o céu, mas
como se vai para o céu”. Na verdade, são dois caminhos paralelos, que até podem
completar-se, na medida em que, como dizia alguém,”muita ciência leva a Deus,
pouca ciência afasta de Deus”.
Vamos nós, hoje, aqui e agora, percorrer o caminho da relação entre a
Bíblia e a Natureza, tentando descobrir o que da Bíblia se pode tirar para o que,
agora, se chama Ecologia, questões ambientais, defesa e respeito pela natureza, e
constitui um aspecto tão importante do planeta terra em que vivemos e que urge
defender para termos qualidade de vida, uma vida melhor na plena acepção da
palavra.
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Le Monde de la Bible, Nº 161, Paris, 2004.
4
DELITZSCHE, Friedrich – Babel und Bibel, Leipzig, 1902, obra que em 1921 tinha publicado
63.000 exemplares.
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TERRA, J. E. Martins – A Bíblia e a natureza, São Paulo, Edições Loyola, 1986.
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6
ALVES, Fr. Herculano – A Terra no Antigo Testamento, in “Bíblica. Série científica”, Ano XII,
Nº 12, 2003,95-144.
7
BENBASSA, Attias – Israel, la Terre et le Sacré, 2ª ed., Paris, Flammarion, 2001; CORTESE,
Enzo – La terra di Canaan nelle storia sacerdotale del Pentateuco, Brescia, Paideia editrice, 1972; Cfr. o
caderno - Da nossa Terra à Terra Prometida - XXVI Semana Bíblica Nacional, “Bíblica. Série científica”,
Ano XII, Nº 12, 2003.
8
VON RAD, Gerhard – Estúdios sobre Antiguo Testamento, Salamanca, Ediciones Sigueme, 1976,
81-93.
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lah). Mas, porque se tratava de facto duma dádiva de Javé, os hebreus tinham de
ter consciência de que não eram senhores absolutos daquela terra; tinham-na só
na condição de administradores: “Nenhuma terra será vendida definitivamente
porque a terra pertence-me, e vós sois apenas estrangeiros e meus hóspedes” (Lv.
25,23). Em certa medida, para salvaguardar este direito de Deus e evitar a ilusão
é que no antigo Israel se instituiu a festa do Jubileu, como o retorno das terras
aos seus anteriores possessores (Lv.23) e se proclamou o facto sagrado de deixar
baldias as terras por altura da festa dos Tabernáculos, de sete em sete anos (Ex.
23,10; Lv. 25, 1s). Por aqui se vê a importância que tinha a terra da Promessa
como terra da posse de Javé, enquanto as terras estrangeiras não eram terras de
Javé e, por isso, eram terras impuras (1Sm 26,19; Os. 9,3; Am. 7,17).
Para realçar o valor da terra onde os hebreus se vão instalar, desde o Êxodo
se assinala a sua singularidade, pois é uma terra abençoada por Deus (Lv. 26,3-12;
Nm. 13,23.28;14,7-8; 24,3-7; Dt. 28,2-7.11-12), onde “corre leite e mel” (Ex.3,8).
Esta expressão, tantas vezes repetida como estribilho de garantia e de qualidade
(Ex 3,17; 13,5; 33,3; Lv. 20,24; Nm. 13,27;14,8;16,13; Dt.6,3;11,9; 26,9.15; 27,3;
31,20; Js. 5,6; Jr. 11,5; 32,22; Ez. 20,6.15), certamente, afirmava a mais valia da-
quela terra no contexto do Médio Oriente, em que as terras são áridas, desertas,
quase sem água, sem grande vegetação e pouco aptas para a agricultura, o que
não sucedia com a terra que veio a ser de Israel. Isso mesmo prova-o a missão
dos exploradores de Canaã enviados por Moisés, e que regressaram ao deserto
de Cadés com grande e emblemático cacho de uvas trazido do vale de Escol,
afirmando: “Fomos à terra onde nos enviaste; lá, em verdade corre leite e mel, e
estes são os seus frutos” (Nm. 13,27). Uvas daquelas chegadas à secura do deserto
eram a evidência da promessa feita! Note-se, porém, que a expressão é conhecida
nos textos de Ugarit e ali serve apenas, de forma relativa, em face das terras inós-
pitas do deserto, para sublinhar a possibilidade de pastos para o gado dos campos
e para as abelhas silvestres. A ideia exagerada de abundância e fertilidade não
parece, pois, ser o clímax original e significativo de tão estereotipada e repetida
expressão bíblica.
2º. Terrra Santa. A bênção e a santidade da terra, onde os hebreus se ins-
talaram, foram confirmadas, ao longo dos tempos, pela presença do santuário de
Javé em Jerusalém. O único passo, em que à terra se associa o qualificativo “santa”,
aparece no Ex.3,5, a respeito da teofania a Moisés e é repetido em Act. 7,22. Isto,
certamente, tendo presente também o passo de Ex.9,29 em que se afirma que
“do Senhor é a terra”, repetido, aliás, no Sl. 24(23),1, e tudo, precisamente, por
causa da presença do Templo.
O denominativo “Terra Santa” ganhou força com a tradição cristã da visita
aos lugares da passagem de Jesus Cristo pela Judeia, sobretudo com o multipli-
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car-se das peregrinações e, por isso mesmo, tornou-se sinónimo de Israel, Judeia,
Palestina.
A sociedade bíblico-hebraica era uma sociedade eminentemente rural e
pastoril, que procurava promover o homem no ideal duma felicidade centrada
na poética da natureza e da família. Um salmo de tipo sapiencial descreve a feli-
cidade do homem bíblico em ambiente rural: “Comerás o fruto das tuas mãos. A
tua esposa será como videira fecunda na intimidade do teu lar; os teus filhos serão
como rebentos de oliveira ao redor da tua mesa” (Sl. 128/127, 2-3). Pelo contrário
da sociedade europeia actual dominada pelo capitalismo industrial e mesmo pelo
capitalismo rural que antes de mais e acima de tudo procura o lucro. Agora tudo
se vê pelo lado económico; a sociedade dessacralizou-se completamente. De forma
curiosa, porém, a sociedade industrial, tecnocrática, hegemónica e desenfreada do
nosso tempo, criou anticorpos que, evidentemente, vão fazer a defesa da natureza
e como que levar-nos saudosamente ao mundo bíblico e rural. Apareceram, então,
os movimentos ambientalistas, as associações ecológicas, os Verdes, a Quercus,
e outras instituições que, aos olhos dos cidadãos podem parecer contestatárias,
mas que, de facto, assumem, com todas as veras da sua luta, uma atitude que
não hesitaríamos em classificar de verdadeiramente bíblica, que nos transporta
à doutrina da criação e dos primeiros capítulos do Génese9.
Na verdade, em vários livros da Bíblia, mas sobretudo no de Job, encontrá-
-mos listas de fenómenos naturais relacionados com a acção criadora de Deus
(Jb. 39-41; Sir. 43; Sl. 104). Naturalmente, tais afirmações têm valor teológico e
religioso, exprimem a convicção de que, sem Deus, não se pode compreender a
cosmovisão bíblica.
Para quem não está entrosado com a leitura da Bíblia, valeria a pena trazer
à colação alguns textos mais significativos e esclarecedores: Job é, sem dúvida,
o mais eloquente dos livros da Bíblia a este respeito, exactamente porque quer
provar a existência e providência divina em relação à natureza e ao mundo, de
que os homens se devem servir com respeito.
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BOFF, Leonardo – Saber cuidar: Ética do humano - compaixão pela terra, 3ª ed., São Paulo,
Editorial Vozes, 1999.
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Conclusão
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2 - As festas na Bíblia*
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naneia, Israel chegou ao Deus Javé, único, transcendente e santo, não sem que a
“baalização” do culto de Javé constituísse uma tentação permanente, por causa
da sedução que o exteriorismo festivo exercia sobre as pessoas.
Dentro da História Comparada das Religiões, qualquer festa em honra de
Deus comporta uma dimensão sagrada de associação do homem ao tempo e ao
plano salvífico de Deus e é isso, essencialmente, que distingue uma festa religiosa
de compromisso sacralizante duma qualquer festa antropológica em que se vê
apenas a distinção e ruptura com a vida banal quotidiana, o simples prazer social
de estar com os outros, de fazer a “coesão social” no gozo do lazer para combater
o stress da lufa-lufa do trabalho, refazendo o gosto de viver no “in illo tempore”
do paraíso distante e perdido. Toda a festa, numa simples visão antropológica, é
positiva e boa; mas a festa religiosa, porque pretende levar o homem a uma relação
transcendente, exige do mesmo homem uma disposição interior de comunhão
com Deus. Deste modo, as festas podem implicar uma atitude latrêutica ou de
adoração, eucarística ou de acção de graças, e estas festas, naturalmente, são de
alegria e de louvor. Mas a festa religiosa pode assumir também uma dimensão de
humildade em que a criatura exterioriza a sua pobreza e necessidade de Deus ou
dos santos e, então, a festa leva a uma atitude impetratória ou de súplica, ou a uma
atitude propiciatória ou de sacrifício para obter perdão de faltas conscientemente
cometidas e sinceramente assumidas.
É neste húmus natural que a revelação bíblica se vai enxertar, fazendo a
osmose dos vários ritmos e provocando, em definitivo, a semelhança, a diferença
e também, porque não dizê-lo, a singularidade das festas bíblicas judaicas.
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Nos textos de Qumran, aquilo que mais faz ressaltar a diferença ou ruptura da seita com a religião
oficial de Jerusalém é a questão do calendário. A Comunidade de Qumran não aceitou os costumes intro-
duzidos ao tempo dos Macabeus, que considerava sacerdotes ímpios, ilegítimos descendentes de Sadoc. Por
isso, os essénios recusaram adoptar o calendário lunar e seguiram um calendário próprio (cfr. Livro dos
Jubileus), que poderia explicar as diferenças dos Evangelhos Sinópticos e S. João quanto à data da Páscoa,
segundo propôs Annie Jaubert - La date de la Cène, Paris, 1957. A obrigação de “conservar íntegra a Lei
de Moisés”, como prescreve em Qumran a Regra da Comunidade (1 QS,3), tem a sua clara estipulação
no preceito:”Não vão sequer contra uma das palavras de Deus nos seus tempos, nem antecipem os tempos
nem os atrasem em qualquer das suas festas” (1 QS,13-14). Sobre este ponto, o Documento de Damasco
ainda é mais claro e conclusivo.
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Nm. 28,11-15. Na sua reforma religiosa, Neemías aproveita para integrar a festa
da Neoménia dentro do seu plano espiritual no calendário festivo da comunidade
restaurada após o Exílio (Ne.10,33-34).
Que belo exemplo de didáctica pastoral! Os profetas não se limitam a conde-
nar e a proscrever ritos pagãos; aproveitam-nos, espiritualizam-nos e inculcam a
moralização e conversão do coração. É curioso que, no NT, S. Paulo ainda se vai
preocupar em levar os cristãos, convertidos do paganismo, a superar a tendência
natural para o culto dos astros e das forças da natureza, os célebres “eôns” ou
demiurgos deste mundo (1 Cor. 5,7-8; Col. 2,16-20).
- O Sábado é outra festa que Israel assumiu e espiritualizou. Na língua he-
braica existe uma evidente relação entre “sete” (Cheba`) e Sábado, “descanso”
(Chabbat ). Mas, a divisão da semana em sete dias não é uma invenção judaica.
Se Israel, religiosamente, é um caso à parte, por força da revelação, do ponto
de vista cultural está inserido no âmbito da cultura dos povos da Meia-Lua ou
Crescente Fértil que, da Mesopotâmia se estende ao Egipto. Qualquer que seja
a origem da palavra hebraica Chabbat, há uma evidente semelhança entre ela
e a palavra acádica Chappatu. Mais uma vez transparece aqui o contacto com
a Mesopotâmia, sobretudo aquando do Exílio de Babilónia; aliás, os nomes dos
meses babilonenses irão sobrepor-se aos nomes antigos dos meses no calendário
posterior de Israel. Efectivamente, na Mesopotâmia, desde há muito que se
dividia a semana em sete dias, conforme nos indicam a tábua XI da Epopeia
de Guilgamesh2 e os textos cananeus de Ugarit, a actual Ras Chamra, na costa
mediterrânica da Síria.
A legislação sobre o Sábado faz parte de todas as colecções jurídicas do
AT. Encontra-se no Decálogo (Ex. 20,8-11; Dt. 5,12-16); no Código elohista da
Aliança (Ex. 23,12); no Código sacerdotal (Ex. 31,12-17; 35,1-3); no Decálogo
ritual (Ex. 32,34) e na Lei da Santidade (Lv. 23,3; 26,2). O Livro dos Números
aponta os sacrifícios próprios do dia de Sábado (Nm. 28,9) e o escriba Neemías, na
reforma pós-exílica, faz a ameaça de castigos contra os transgressores do Sábado
(Ne. 13,15-22). Vejamos, entretanto, alguns textos legislativos do Pentateuco que
apresentam variantes importantes, principalmente no que se refere às motivações
da observância do Sábado.
O texto javeísta de Ex.16,21-30 aponta como razão do descanso sabático a
consagração do Sábado a Javé. Mas, aqui, já se pode ver a tentativa de espiri-
tualização dum acontecimento do deserto. Nós diríamos que, a partir do facto
histórico, se quis encontrar a justificação do tabu do trabalho sabático, fazendo
uma releitura litúrgica. A transferência do Sábado para o deserto, como dia de
2
A epopeia de Gilgamesh ,versão de Pedro Támen, Lisboa, Edições António Ramos, 1979, 91.
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dádiva de Javé ao seu Povo: “Se Israel conservou o Sábado, este conservou Israel”,
eis uma máxima rabínica. Por isso, a tradição sacerdotal fez da observância do
Sábado uma forma e uma ocasião para o povo eleito participar na santidade de
Deus (Ex. 20,11; 31,12-17); deu-lhe alcance moral. Daí deriva o rigor contra os
transgressores que são excluídos do povo (Ex. 31,14-15; Nm. 15,32.36) e a benção
sobre os que o observam mesmo com perdas até no seu negócio, como declara
um belo texto de Isaías que, hoje, bem poderia servir de travão à apetência dos
comerciantes vorazes que buscam o lucro desenfreado, esquecidos da dimensão
religiosa da vida do homem sobre a terra: “Eis o que diz o Senhor: Respeitai o
direito, praticai a justiça, porque a minha salvação não tardará a vir e a minha
vitória a revelar-se. Feliz o homem que assim procede, e o filho do homem que
a ela se aplica, que guarda o sábado sem o profanar, que guarda as suas mãos de
toda a má obra. Não diga o estrangeiro, que se entregou ao Senhor:”O Senhor
com certeza me excluirá do seu povo”. E não diga o eunuco:”Eu sou apenas um
lenho seco”. Eis, com efeito, o que diz o Senhor: Aos eunucos que guardarem os
meus sábados, que escolherem o que Me é agradável, e se afeiçoarem à minha
Aliança, dar-lhes-ei, na minha casa e dentro das minhas muralhas, um monumento
e um nome mais valioso que os filhos e as filhas; dar-lhes-ei um nome sempiterno
que não perecerá. Quanto aos estrangeiros que se entregarem ao Senhor para
servir e amar o Seu nome, para serem Seus servos, se guardarem o sábado sem
o profanar e forem fiéis à minha Aliança, conduzi-los-ei ao Meu santo Monte...
porque a minha Casa será chamada Casa de Oração para todos os povos” (Is.
56,1-8; Cfr. Ez. 20,11-13).
Os cristãos não terão dificuldade em passar para o Domingo, Dia do Senhor,
todas as virtualidades teológicas do Sábado judaico. A teologia litúrgica cristã,
partindo do facto histórico da Ressurreição de Jesus, vai preencher o Domingo de
significado anamnésico e aproveitar os elementos teológicos essenciais do Sábado
judaico. O Domingo passa a ser o dia litúrgico por excelência do cristianismo
pois, pela Sua Ressurreição, através da Eucaristia, Jesus prolonga-se na história
com uma dimensão supra-histórica e meta-temporal. O papa S. Gregório Magno
afirmava: “Nós, pois, o que está escrito acerca do Sábado recebemo-lo em espírito,
praticámo-lo em espírito. O Sábado significa descanso. Todavia, o verdadeiro
Sábado já o possuímos, o nosso Redentor, Jesus Cristo, Senhor”3.
Como se vê, os profetas e sacerdotes do Exílio bem como os escribas pos-
teriores tentaram a espiritualização e moralização das observâncias do Sábado,
3
“Nos itaque hoc quod de Sabbato scriptum est, spiritaliter accipimus, spiritaliter tenemus.
Sabbatum enim requies dicitur. Verum autem Sabbatum ipsum redemptorem nostrum Jesum Christum
Dominum habemus” , Epistolarum Liber XIII, 1, “Patrologia Latina”, 77, 1253-1255.
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4
BÍBLICA, Lisboa, Ano III, Nº 4, 1995. Actas da XVIII Semana Bíblica Nacional: “A Festa e
as Festas na Bíblia e na Vida”; ARTOM, Elia S. - La vita di Israele , Florença, Casa Editrice di Israel,
1950; GUGENHEIM, E. - Le judisme dans la vie quotidienne, Nouvelle Édition, Paris, Albin Michel,
1970; MAERTENS, Thierry - Fiesta en honor a Yavé, Madrid, Ediciones Cristiandad, 1964 (tradução
do francês); MAISONNEUVE, D. de la - Les fêtes juives, Supplément au “Cahier Évangile”, Nº 86;
MARTIN-ACHARD, R. - Essai biblique sur les fêtes d´Israel , Genebra, Labor et Fides, 1974; VAN
GOUDOEVER, J. - Fêtes et Calendriers bibliques , Paris, 1967; VAUX, Roland de - Institutions de
l´Ancien Testament , Vol. II, Paris, Les Éditions du Cerf, 1960, 371-382.
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AS FESTAS NA BÍBLIA
de Deus como soberano do universo que escolheu Israel como Povo Eleito e da
igualdade de todos os homens perante Deus.
2º Neoménia ou festa da Lua Nova, Novilúnio, assinalando o começo de cada
mês lunar (Nm. 28,11-14; Is. 66, 22-23; Ez. 46,1-6; Am. 8,4-5).
3º Páscoa (Pesah /Matsot, em hebraico, Ex.12; 13,1-10; 23, 15; 34, 18-21;
Dt. 16,1-8; Esd. 6,19-22; 2 Cor. 35,1-19). De origens agro-pastoris, recebeu uma
dimensão histórico-anamnésica como recordação da libertação da escravidão do
Egipto. Típico desta festa é a manducação do cordeiro, resíduo de origem pastoril
e dos pães ázimos ou sem fermento (Matsot) ou de farinha nova, resto de tradição
agrícola. Cfr. o Seder Pascal dos judeus ou ritual da celebração tradicional da
Páscoa.
4º Pentecostes (Chavuot = Semanas , Ex. 23, 16; 34,22-23; Lv. 23 ; Dt. 16,9-12;
2 Cor. 8), celebrada 50 dias depois da Páscoa, recorda a chegada ao Sinai, onde
Moisés recebeu de Deus o Dom da Lei (Mattan Thorah ). Também se chama das
Semanas por se celebrar no dia a seguir à sétima semana: 7x7=50.
5º Tabernáculos ou Tendas/Cabanas ou das Colheitas (Sukkot, em hebraico,
Ex. 23,14-17; 34,22; Lv. 23, 39-42; Dt. 16,16-17; 31,10-11; Cfr. 2 Cor. 8,12-13; Ne.
8,14-17; 2 Mac. 10,7; Zc. 14,16-19; Jo. 7, 37-38). Celebrava-se logo no começo do
ano, no mês de Tichri, entre Setembro/Outubro, e lembra a estadia no deserto,
quando os israelitas, demandando a Terra Prometida, habitavam em tendas,
como peregrinos. Acabou por se tornar festa da alegria, festa da Alegria da Lei
(Simhat Thorah), a festa histórica da Aliança com aclamação a Javé e libação da
água, celebrada de forma popular ao sabor da natureza com cânticos e em tendas
feitas de ramos de árvores.
6º Ano Novo (Roch Hachanah, em hebraico, Ez. 40,1; Cfr. Nm. 29, 1-2; Lv.
23,23-25). É uma autêntica festa de aclamação a Deus como senhor da criação,
no Outono, em princípios de Setembro segundo o ritmo agrário antigo, e vem
consagrada na Michná.
7º Dedicação do Templo ou Festa das Luzes (Hanukkah, em hebraico, 1
Mac. 4,59; 2 Mac. 1,8-9,18-23; 6,7; Cfr. Jo. 10,22-38) comemora a inauguração
ou purificação do Templo de Jerusalém reconstruído pelos Macabeus em 164
a. C. e celebra-se logo a seguir à festa dos Tabernáculos, no mês de Kisleu. A
designação de Festa das Luzes, segundo a explicação de Flávio Josefo, deriva do
facto de, com ela, “ter brilhado de novo a luz da liberdade” (Antiguidades judaicas,
XII, 316) e com ela os judeus querem significar a fidelidade à Aliança de Javé. Por
isso festeja-se com uma semana de iluminações em que é de particular significado
o candelabro de 9 braços, o Hanukkah, distinto do de 7 braços, o Menorah, pois
a luz do Templo profanado se conservou milagrosamente durante oito dias.
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Conclusão
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AS FESTAS NA BÍBLIA
ção sagrada de dia semanal para o Senhor, “sinal” religioso no meio dos povos
para o renascimento espiritual de Israel. Preceituado pelo Senhor ao Seu Povo
Eleito, o Sábado é como que o compêndio de todos os mandamentos. Por isso,
uma sentença espiritual antiga afirmava solenemente: “Se Israel observasse um
só Sábado como se deve, sem dúvida que o Messias havia de chegar. O Sábado é
igual a todos os outros preceitos da Torá” (Êxodo Rabbá , 25,12).
Nas festas bíblicas, algumas das quais assumidas cronologicamente pelo cris-
tianismo como datas da acção salvífica de Deus e, portanto, momentos cairológicos
da benevolência divina sobre a humanidade, é todo o povo crente que expande a
sua alegria, afirma a sua confiança e faz acção de graças, confessando a sua total
fidelidade ao Deus da Aliança.
No Novo Testamento, o Cristianismo, sem desdizer dos acontecimentos
salvíficos do Povo de Israel, antes motivado pelo jogo do Tipo e do Antítipo, fez,
como vimos, a transposição teológica do Sábado judaico para o Domingo cristão,
enchendo a Pascoa e o Pentecostes com um novo significado cristológico, que
Jesus, premonitoriamente indicou naquele conhecido passo, aquando da festa
dos Tabernáculos: “Do seio daquele que acredita em mim, correrão rios de água
viva”, e que o Evangelista comenta:”Jesus falava do Espírito, que deviam receber
os que nele acreditassem” (Jo. 8,18-19).
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Festas Judaicas
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AS FESTAS NA BÍBLIA
Para os judeus, a contagem dos anos começa com a criação do mundo esta-
belecida no ano 3760 antes de Cristo e faz-se por meio de letras, omitindo-se os
milhares: h”n”t = 5755-3760 = 1995.
Caso deseje encontrar o ano cristão (AD), correspondente a qualquer ano
judaico, ajunta-se 1289 para os primeiros 3 meses e 1240 para os restantes. Assim,
5699 é= 699+1239= 1938 AD. Também se pode apenas juntar ao ano cristão o
número 3760: 1939+3760=5699.
Os cálculos cronológicos cristãos colocam o ano do Nascimento de Jesus
Cristo no ano hebraico de 3760/61 + 1995= 5755. Ora, somando, sem contar o 1º
algarismo, temos: (5)755 +1240= 1995 A(nno)D(omini) (ou E(ra) C(omum)!
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Para cumular a diferença entre o ano solar e o lunar ajunta-se um 13º mês,
o VeAdar ou Adar Cheni, segundo Adar. No período de 19 anos, a diferença
entre o ano solar e o lunar é de 7 anos. Logo, nesse período de 19 anos, terá de
haver 7 anos embolísticos ou ajuntados: 3º, 6º, 8º,11º,14º,17º,19º.
Por aqui se vê a complicação que representa o esforço de encontrar a equi-
valência das festas bíblico-judaicas no nosso Calendário cristão.
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OS PATRIARCAS. AS ORIGENS DE UM POVO
Falar dos patriarcas implica, desde logo, levantar uma série de interrogações.
A visão uniforme, seguida por estes capítulos do Gn., complica-se tremendamente
quando os estudamos à luz dos métodos crítico-científicos modernos.
Veremos desde logo, que a história dos patriarcas não é um manual de história,
não contem a biografia desses homens extraordinários, mas, pelo contrário, deixa-
-nos um pouco no limiar, precisamente, porque a intenção primária de quem fez a
redacção global desses capítulos não era dizer o que se passou mas tentar levar-nos
a viver na fé aquilo que essas figuras, algo misteriosas, preanunciam.
Por isso, temos de ver os patriarcas com um duplo olhar – olhar científico
e olhar religioso. É a visão dos nossos dois olhos que nos dá a probabilidade do
objecto que está diante de nós. Não devemos ter medo, devemos ver diferente.
O olhar científico, com que vamos analisar os patriarcas, vai-nos levantar
problemas, pôr questões, talvez até nos leve a duvidar da historicidade daquilo
que nos é narrado. E é bom que assim seja. A Bíblia não foi escrita para preen-
cher a nossa curiosidade; a Bíblia foi escrita para orientar a nossa vida de fé. O
olhar científico com que vamos ver os patriarcas poderá deixar-nos frustrados e
até negativos em relação a tudo isto. Mas há um outro olhar, um olhar religioso,
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OS PATRIARCAS. AS ORIGENS DE UM POVO
A fonte Eloísta essa não, essa é do século VIII e vê o problema que surgiu
depois da divisão do Reino de David e Salomão quando, em 931, os dois irmãos
Jeroboão e Roboão rivalizaram entre si e quiseram cada um ser rei. Roboão fica
no Sul com o pequeno reino de Judá e Benjamim, com a capital em Jerusalém,
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GERALDO J. A. COELHO DIAS
e Jeroboão vai para o Norte, criando o Reino do Norte, o reino maior com as
dez tribos, com a capital em Tirça fixada depois definitivamente na Samaria.
E há rivalidade em todos os aspectos, políticos e religiosos e assim vão-se criar
centros de fé, centros religiosos no Norte que de certo modo combatem o Templo
de Jerusalém. Estes centros do norte estão abertos a toda a influência vinda de
povos estrangeiros. Daí a paganização do culto, a introdução do culto de Baal, o
culto de Astarté, os cultos fáceis de fecundidade e de fertilidade. Era preciso que
alguém chamasse a atenção para isto, pusesse cobro, um limite a esta adulteração,
a este abastardamento religioso. Então surgem os profetas, pregando a aliança,
chamando à fidelidade e ao temor de Deus.
E aí estão os patriarcas. Eles hão-de aparecer como modelo desta perfeição e
desta fidelidade. Os patriarcas já não são uns homens quaisquer, pecadores como
outros, são puros, são santos. E assim aparece a fonte de fé. Só nos vai aparecer a
partir da primeira aliança de Deus com Abraão, possivelmente no capítulo 15. A
história anterior, da criação do mundo, não interessa à fonte E. Interessam-lhe sim,
os patriarcas, exemplares perfeitos, verdadeiros homens crentes e modelos de fé.
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OS PATRIARCAS. AS ORIGENS DE UM POVO
Podemos hoje estabelecer um paralelo entre esse acto de fé, quando no Templo se
ofereciam as primícias e o nosso acto de fé, o nosso Credo quando nos preparamos
na Eucaristia para apresentar cada Domingo as ofertas do pão e do vinho que vão
ser Corpo e Sangue do Senhor. Para uma melhor compreensão do que dissemos
vamos ler Deuteronómio 26,5 -10, e veremos como isto é um autêntico credo de
fé, história que recorda o ano espiritual e de certo modo etnológico que liga um
hebreu crente aos patriarcas – “Meu pai era um arameu errante...” Meu pai
quem? Abraão, Isaac e Jacob.
É claro que para chegarmos daqui à síntese do Génesis, foi preciso tempo,
houve uma longa caminhada, caminhada em que a fonte J é mais longa, ocu-
pando-se das origens do mundo, de Abraão, de Isaac, de José. A fonte E começa
abruptamente, quase que diria nacionalisticamente, com Abraão, ocupando-se,
depois, de Isaac, de Jacob e alguma coisa dos profetas. A fonte P que pretende
fazer a síntese é a mais pontual. Aparece logo nas origens do mundo mas, em
grandes passadas, como que lançando as arcadas do tempo para chegar a Abraão.
É todo o capítulo I, é o capítulo V, é de certo modo a síntese do VI e IX, depois é
o capítulo X, da árvore dos povos e o capítulo XI. A fonte sacerdotal faz arcadas;
o que está para trás interessa-lhe na medida em que ela anda para a frente, até
chegar a Abraão; a partir daí espraia-se, porque aí está o seu centro de interes-
se. A partir daí ela quer construir a fé de Israel – Porque é que Israel tem um
Templo? Porque é que Israel paga o dízimo ao Templo? Porque é que em Israel
há a circuncisão? Porque é que em Israel há a observância do sábado? Estes são
pontos fundamentais das práticas religiosas do povo hebraico. Tendo aparecido
mais tarde, são, todavia, projectados nas origens patriarcais.
Esta fonte Sacerdotal depois, praticamente, desaparece com a história de
José que é uma história mais tardia, de origem sapiencial.
Este é o primeiro ponto, extremamente complicado, que tentei resumir
para podermos, desde o início, abarcar a complexidade dos textos da História
Patriarcal.
Ao lermos a história do Génesis sobre os patriarcas, pensemos sempre que
estamos diante de uma acumulação, de uma sedimentação de vários estratos
literários e que cada um desses estratos tem a sua missão a desempenhar, que nós
poderemos descobrir desde que tenhamos olhos para nos darmos conta da sua
complexidade.
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GERALDO J. A. COELHO DIAS
Deus, isto é, descrever a génese do povo eleito. Esta génese etnológica, que diz
respeito a todo um povo, não se fez de repente; demorou séculos e podemos dizer
que, historicamente, ela se foi fazendo ao longo de 5 séculos, desde o século XVIII
até ao século XIII a.C.. Mas esta génese que demorou tanto tempo só foi escrita
definitivamente nos princípios do século IV a.C..
Por isso, a árvore genealógica dos patriarcas é também complexa e artificial,
porque os redactores não tinham bilhetes de identidade, nem havia arquivo das
famílias; foi, por isso, preciso fazer reconstruções.
O capítulo X da Tábua dos Povos, por exemplo, atribui a pessoas aquilo que
são nações, isto é, chama Kuch àquilo que é a Etiópia, Misraim ao homem que
de facto é o Egipto.
O hagiógrafo, o autor sagrado, falando de pessoas pensa em termos de terras
e povos. Há como que uma corporificação concentrada num indivíduo; é por isso
que a árvore dos patriarcas também mais que uma árvore de pessoas fisiológi-
cas é uma árvore sociológica de tribos, de clãs, de pequenos grupos, de famílias
corporizados numa pessoa. Daí que essa pessoa colectivizada seja o epónimo, o
antepassado onde tem origem uma nação, um povo, uma tribo, uma família.
Quando falamos de Abraão temos de pensar que, para o escritor sagrado,
Abraão, que era pessoa, é sobretudo todo o grupo que dele nasceu, o grupo de
famílias que se tornou uma vasta tribo. Quando fala de Jacob, está a falar de uma
pessoa que dá origem a todo um povo e, portanto, é a árvore genealógica deste
povo que ele tem mais presente do que o indivíduo que se perde nas brumas da
antiguidade.
Estas histórias dos Patriarcas, enquanto representantes dos seus clãs, são
narrativas independentes de vários grupos de famílias que, com o tempo se foram
justapondo, aproximando e unindo de modo que se criou uma árvore genealógica
única onde é fácil estabelecer o relacionamento dos vários clãs, dos vários mem-
bros. Portanto, houve a personificação e deste modo os patriarcas são os pais de
uma família unificada que justifica a unidade do povo hebreu, do povo de Deus
enquanto povo eleito de Deus.
O hagiógrafo, falando das famílias patriarcais, desde logo nos quer chamar
a atenção para a unidade religiosa, sociológica e etnográfica de todo o povo
hebreu.
Deste modo, esquartejando o texto da História Patriarcal, podem-se distinguir
pequenos ciclos de histórias patriarcais:
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OS PATRIARCAS. AS ORIGENS DE UM POVO
O grande ciclo de Jacob vai do capítulo 28,10 ao capítulo 35. Este é o ciclo
central, talvez até fosse este o ponto de partida para a explicação de toda a árvo-
re genealógica porque é ele que vai concentrar os do sul e os do norte e depois
formar a confederação das chamadas doze tribos de ocupação da Palestina. Mas,
Jacob aparece-nos como um homem do deserto que vem das zonas da Arábia, da
Transjordânia e que depois se vai fixar no centro da Palestina ocupando zonas
que se centram à volta de dois grandes santuários cananeus – Siquém e Betel.
Estamos já para norte de Jerusalém, naquilo que será o Reino do Norte.
Podíamos ainda falar dum outro ciclo, o ciclo de Israel, que nos aparece
quase fundido no ciclo de Jacob, apenas no capítulo 32,39 e no capítulo 35,10.
Israel é exactamente o nome que vai perseverar e qualificar todo o povo eleito.
Ele é o caminho da fusão de todos estes ciclos, de todas estas tradições.
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GERALDO J. A. COELHO DIAS
de tipo sapiencial, sem lugar fixo, que pretende mostrar como os patriarcas, que
estão na origem do povo eleito, acabaram por estar ligados à permanência no
Egipto formando aí as doze tribos que irão habitar a terra da Palestina.
Do ponto de vista do estudo dos povos que formam o povo de Israel encon-
tra-se, pois, uma grande complicação. Podemos contudo dizer que estes cinco
ciclos de Abraão, de Isaac, de Jacob, de Israel e de José são o xadrez político dos
povos que se situam no tabuleiro sociológico da Palestina e que, fundidos, vão
dar depois o povo de Israel, enquanto povo de Deus. Sobre este ponto ainda hoje
restam dúvidas, muitas interrogações, e eu estou a tentar mostrar estas complica-
ções para vermos toda a problemática que atrapalha os exegetas e os estudiosos
da Sagrada Escritura e que muitas vezes as pessoas que lêem a Escritura só com
a fé, não têm.
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OS PATRIARCAS. AS ORIGENS DE UM POVO
não tenham uma história. Os seus nomes nunca aparecem na história dos outros
povos, embora nomes parecidos com os deles apareçam entre os povos semitas
do Oriente desde o século XVIII até ao século III a.C..
Os dados da Bíblia levam-nos a situar os Patriarcas no II milénio antes de
Cristo no contexto das migrações dos povos do Médio Oriente quando muita gente
andava de lado para lado e se dava a passagem da civilização nomádica para a
civilização sedentária, quando começava a aparecer o urbanismo. Assim sendo, o
que caracteriza os patriarcas, em primeiro lugar, é a vida nomádica de pastores,
que com os seus rebanhos andam ao sabor da transumância, procurando pasto
para o gado. São dominantemente pastores. Abraão aparece logo com muitas
ovelhas, carneiros e até rebanhos. O centro de interesse da sua vida é o nomadismo,
o andar de lado para lado e ver onde é que há água, árvores e pastos.
A organização social destes homens é em clã, isto é, em pequenos grupos
de famílias, sendo de sublinhar a importância do chefe principal da família que
assume várias funções. Ele é chefe, juiz, sacerdote e às vezes profeta. Para quem
esteve em África, para quem esteve em território de missões, é fácil compreender
a importância disto, se compararmos a organização tribal dos povos indígenas
em que o soba é a autoridade máxima até do ponto de vista religioso, com direito
de vida e de morte sobre os outros.
Depois, se o patriarca é chefe, é juiz, é sacerdote e é profeta e vejam, que isto
vai aparecer atribuído a Abraão, como vai aparecer atribuído a Jacob, então há
uma espécie de propriedade colectiva, há um grande sentido de solidariedade,
de defesa de uns pelos outros, há um grande sentido de pacifismo, não fazendo
mal, mas tendo em contrapartida o grande sentido de defesa contra quem lhes faz
mal. Impera a lei da vingança. Vejam como os filhos de Jacob, de modo justiceiro
e bárbaro defenderam a honra da sua irmã Dina (Gn. 34).
Há uma moral também muito permissiva. A moral dos nómadas é uma mo-
ral natural ainda pouco evoluída, de modo que o próprio incesto é muitas vezes
facilitado pela lei dos casamentos endogâmicos, porque eles casam entre homens
e mulheres da sua família, da sua tribo, precisamente para defender a pureza da
raça; ora isso pode levar a incestos, como é o caso do incesto de Lot com suas
filhas (Gn. 19,30-38). Compreende-se, assim, a preocupação pelos casamentos
endogâmicos. Quando os patriarcas, como Abraão, vão para o sul com os seus
rebanhos, procuram sempre encontrar para os filhos, no norte, no seu lugar de
origem, mulheres da sua raça, da sua tribo. Daí Isaac ir buscar Rebeca no norte
da Mesopotâmia (Gn. 24) e Jacob ir também encontrar as suas mulheres na
Mesopotâmia (Gn. 29). Há também a poligamia: um homem precisa de várias
mulheres, porque é através da mulher que vem a fecundidade e a riqueza, e os
homens precisavam de se multiplicar, pois as crianças morriam muitas vezes ao
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GERALDO J. A. COELHO DIAS
nascer pelo que era preciso ter muitas. A mulher tem, de facto, muita importância
na história patriarcal e tem muita importância também do ponto de vista teoló-
gico, doutrinal. Ao lado dos patriarcas aparecem as matriarcas, as grandes mães
da nossa fé: Sara, Rebeca, Raquel. A mulher tem que ser defendida. Quando um
homem quer casar tem de dar o mohar e o amazal à família da mulher (Gn.
29,20; Ex. 21,7), tem de pagar o imposto como garantia de a tratar bem, porque
ela é um bem que lhe é dado. Por sua vez a mulher tem um grande respeito pelo
marido; daí que ela saiba cobrir a sua cara quando sai (Gn. 24,65). Talvez esta
seja a origem do véu que usam as mulheres árabes casadas, que só tiram o véu em
casa diante dos seus maridos.
Salientaria ainda a lei do levirato (Gn. 38,11) como garantia da felicidade
pela procriação, o princípio da poligamia.
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OS PATRIARCAS. AS ORIGENS DE UM POVO
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OS PATRIARCAS. AS ORIGENS DE UM POVO
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se pretende ver o presente à luz dum passado glorioso que se torna o momento
heróico, grandioso, de toda a evolução posterior; mas o passado, de facto, contém
as experiências posteriores e é assim que há sagas relativamente a povos, tribos,
pessoas e santuários. Disso, a história oriental está cheia.
As lendas são pequenas histórias, sobretudo acerca de uma pessoa, em que
se quer fazer realçar a importância e o alcance dessa pessoa para aqueles que
devem vir depois.
As etiologias são histórias “anedóticas” que procuram dar a explicação dum
acontecimento para encontrar no passado a sua própria causa. Neste sentido, a
história patriarcal está cheia de narrativas etiológicas de nomes que têm todos um
significado com valor religioso: “És Abrão, passarás a ser Abraão, porque Abraão
quer dizer ‘o meu pai é alto’ ora tu vais passar a ser ‘pai dum grande povo’ – Ab-ra-
am”. A tua mulher chama-se Sarai, – princesa – vai passar a ter um valor universal
para todo o povo, é “princesa” sem determinativo de qualquer espécie, e assim
sucessivamente para tantos nomes: Jacob, possivelmente “aquele que engana”, e
Israel “aquele que luta com Deus” porque a sua pessoa vai protagonizar toda a luta
pela fidelidade do povo hebraico descobrindo-se aquele movimento quaternário
da História da Salvação: o Homem peca Deus castiga; o Homem arrepende-se
Deus perdoa. E o nome dos filhos de Jacob todos têm um sentido: “José”; porquê?
Porque vai “aumentar”; Benjamim, o “filho da mão direita”; todos os nomes da
história patriarcal são portadores duma dimensão religiosa.
Esta ideia-força da promessa e da aliança, todavia não é pura retroprojec-
ção da fé posterior de Israel; com efeito, à luz dos documentos extra-bíblicos,
encontramos também entre os povos daquele tempo histórias em que se pretende
mostrar o mesmo fenómeno, que era corrente: Deus que faz “a aliança” também
faz “promessas”.
Para o nómada que vive “ao deus dará”, a ideia de Deus implica a ideia
de peregrinação em que Deus está sempre a garantir terra fértil, fecundidade
dos rebanhos. Por isso mesmo, estas duas ideias-força promessa, aliança, já
são anteriores a Israel. Na história dos filhos de Jacob em Siquém (Gn. 34), nós
vamos encontrar uma pequena tribo paralela ao clã de Jacob, que era chamada
dos “filhos da aliança”, da aliança que se fazia por meio da imolação do animal,
normalmente por meio do burro. Este era um animal precioso, o único meio de
transporte, o automóvel daquele tempo. Estes filhos da aliança eram também
chamados os “Ben-Hamor” os “filhos do burro”, porque eles matavam um burro
no rito da aliança.
A história da aliança de Abraão (capítulo 15) é também descrita em termos
semelhantes.
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OS PATRIARCAS. AS ORIGENS DE UM POVO
A fonte Javista, diz que quando Deus criou o mundo já pensava no seu povo
– Israel. Toda a história estava interessada em Israel.
Quando Deus fala a Abraão, para o Javista, este homem está a antecipar
toda a dádiva da salvação e, por isso, ele será uma bênção não só para seu povo,
mas para todos os povos, de modo que aí aparece o universalismo da salvação
através de um descendente de Abraão da monarquia de David. Compreendemos
agora porque é que, assumindo esta teologia, S. Mateus começa a genealogia de
Jesus Cristo desta maneira: “Livro da geração de Jesus Cristo..., filho de David,
filho de Abraão”. Não se pode dissociar o binónio Abraão do binónio David. Em
Abraão começa de facto, para o Javista, toda a esperança da salvação que nos
há-de chegar por Jesus Cristo, filho de David.
É assim pois que o ciclo de Abraão está todo ele visto na perspectiva da
monarquia de David. O texto fundamental que se vai reflectir na redacção final
da história patriarcal é Génesis 12,1-3: “Sai da tua terra... Eu te abençoarei”. É
a ideia de bênção que vai atravessar toda a história da salvação no documento
Javista. Curiosamente, para isso é preciso que antes o Javista aponte toda a his-
tória do mal, e é por isso que para o Javista a história do mal do homem é como
que um prelúdio de toda a história da misericórdia de Deus. A história do mal
do Homem começa no capítulo 3 do Génesis, atinge um volume universal com
o Dilúvio, mas o seu clímax é a narrativa da Torre de Babel; todos os povos são
dispersos e todas as línguas são confundidas. A totalidade do pecado, do mal,
pode ter solução na vontade misericordiosa de Deus. Essa vontade de misericórdia
vai ter resposta na História de Abraão e dos outros patriarcas. São dois aspectos
complementares da fonte Javista.
Outro capítulo interessante nesta história do livro do Génesis é o 12,10-20,
que narra um aspecto curioso, uma atitude especial de Abraão quando este,
vendo sua mulher ser cobiçada pelo Faraó no Egipto, para escapar à morte, lhe
entrega a sua mulher dizendo que é sua irmã. Este problema é complicado até
porque se encontram em textos paralelos extra-bíblicos referências a este tema da
mulher esposa e irmã. Enquanto o Javista diz que ele recusou, o Eloísta dá outra
interpretação. Porquê? Porque, ao fim e ao cabo, o Faraó não viola a esposa de
Abraão porque ele também é objecto da bênção prometida a Abraão. Começa
a ganhar consistência a ideia de que Abraão é uma bênção para todos os outros
53
GERALDO J. A. COELHO DIAS
povos. O texto mostra o conflito entre Israel e os povos do sul da Palestina ligados
ao Egipto. Há referência à existência dos Filisteus e um convite para que este povo,
aparentemente espúrio, se una ou, pelo menos, entre em pactos de amizade com
a monarquia davídico-salomónica.
Texto interessante é também o do capítulo 13 em que Abraão se separa do
seu sobrinho Lot. É uma narrativa que pretende explicar a existência dos moabitas
e amonitas, habitantes de terras férteis do rio Jordão, e um convite para que se
unam ao reino de Judá, também eles, portanto, povos antigos existentes e sobre-
viventes no tempo de David-Salomão. Porquê? Porque na história das origens eles
já estavam unidos num parentesco que um dia havia de os juntar.
O capítulo 15 é a história da aliança de Deus com Abraão prometendo
descendência numerosa e a própria posse da terra. Não há dúvida nenhuma que
estamos diante duma narrativa de tipo popular em que o sacrifício dos animais se
torna o garante de toda a aliança. Para o Javista esta aliança é também garantia
das promessas que se realizarão definitivamente não com Abraão mas com o
reinado de David-Salomão, o qual atinge o máximo da sua extensão, chegando
ao Egipto pelo sul e à Mesopotâmia pelo norte.
Outro aspecto de espiritualização são os capítulos 18-19 sobre Sodoma e
Gomorra. Estamos perante uma lenda cultural ligada ao santuário cananeu de
Mambré e, ao mesmo tempo, uma etiologia que pretende explicar aquele fenóme-
no geológico espantoso que, quem vai hoje à Palestina, ainda pode contemplar.
Quando descemos de Jerusalém e olhamos o Mar Morto lá ao fundo, ficamos
espantados com as grandes formações de sal-gema que aí se encontram. Como é
que se formou tudo isso? Era a interrogação das sociedades antigas. Só por acção
de Deus e como consequência de grandes castigos.
As narrativas Javistas procuram explicar todos os fenómenos históricos e até
geológicos em função da bênção prometida para o Reino Davídico-Salomónico.
Já vimos que o Eloísta é do século VIII a.C. e procura explicar a luta entre as
dez tribos do Reino do Norte com capital na Samaria e as duas tribos do Reino
do Sul – Reino de Judá – com capital em Jerusalém.
O Reino do Norte está aberto às infiltrações pagãs; para o Eloísta, de ori-
gem profética – o profeta Amós está muito próximo do Eloísta – é preciso levar
aquelas tribos à fidelidade à Aliança de que os patriarcas foram modelos. Por
isso os patriarcas são purificados de todos os defeitos, e assumem uma dimensão
verdadeiramente exemplar. Eles são os modelos da vida religiosa. É assim que a
fonte Eloísta vai insistir na ideia da aliança porque ela é uma exigência permanente
54
OS PATRIARCAS. AS ORIGENS DE UM POVO
55
GERALDO J. A. COELHO DIAS
Por isso, a ideia da Aliança do capítulo 15, volta a aparecer aqui e esta
narrativa acaba por se tornar premonitória, exemplar e significativa para todo
o povo hebraico.
Afinal, em Abraão o que é importante é a maneira como cada um deve
pessoalmente responder quando a palavra de Deus lhe toca de perto.
São estratificações diferentes da tradição, mas que nos levam a descobrir o
alcance didáctico deste texto, o que ele significa para nós sacerdotes que ouvimos a
palavra de Deus, para nós religiosos que fazemos votos de pobreza, de obediência
e castidade, para nós leigos que recebemos o baptismo do nosso compromisso com
Jesus Cristo. Como para Abraão, a obediência à Palavra de Deus é uma fonte
de bênçãos. A fonte Eloísta revela uma preocupação moralizante, que deriva dos
profetas e que transfere para a época dos patriarcas essa preocupação. É à luz
dessa perspectiva que essas velhas histórias patriarcais são interpretadas.
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OS PATRIARCAS. AS ORIGENS DE UM POVO
O ciclo de Jacob é um ciclo bastante laical. Deus não está muito presente
na história de Jacob, tirando três momentos importantes:
1.° - Quando procura fugir perante a hostilidade do irmão Esaú, Jacob tem
que emigrar. No momento da saída ele é favorecido pela garantia da protecção
divina – é a história do sonho de Betel (Gn. 28), santuário do Reino do Norte.
Betel, quer dizer casa de Deus. É toda uma lenda ligada à volta deste santuário,
mas uma lenda que acaba por ser sacralizada, espiritualizada e se torna uma
garantia, da presença de Deus, que defende este homem no momento da
saída, como o protegerá no momento da entrada; por isso Jacob vê Deus sob a
forma duma escada sugerida pela imagem dos zigurates, aquelas torres grandes
da Babilónia, que, no fundo, significam a intervenção divina no mundo dos
homens.
2.º - Quando regressa (Gn. 32,1-2), Jacob que é protegido pela garantia da
protecção divina, ao chegar aos confins da Palestina, em Mahanaim, que quer
dizer acampamento, vê um exército de anjos. Então, toma consciência de que,
efectivamente, não esta só na luta que vai travar com outros povos, concretamente
com o irmão Esaú. Ele não está só, Deus está com ele e é por isso que ele faz neste
capítulo uma autêntica oração de súplica.
3.º - Quando congraçado com o irmão, vai atravessar o rio Jacob que naquela
ocasião marca as fronteiras da Palestina (Gn. 32,22 s). Ele vai entrar na Terra
Prometida.
Os limites das terras são sempre, segundo as tradições antigas, defendidas
por espíritos, bons ou maus, bons que protegem, maus que hostilizam e, portan-
to, impedem a passagem a quem não for querido. Jacob luta com o anjo, o anjo
que é o símbolo das lutas que o povo hebraico, introduzido na terra prometida
vai travar com o seu próprio Deus. O importante neste texto é descobrir como
este homem, na luta pela fidelidade, acaba por ser herdeiro da bênção divina,
recebendo um nome significativo: “Eu te abençoarei daqui para a frente. Forte
contra Deus serás forte por Deus, serás Israel”.
4. Conclusão
57
GERALDO J. A. COELHO DIAS
58
SINGULARIDADE E ORIGINALIDADE DOS PROFETAS CLÁSSICOS, ESCRITORES
4 - Singularidade e originalidade
dos Profetas Clássicos, Escritores, no Antigo
Testamento*
Introdução
A palavra bíblica Profeta chega hoje até nós como um sema ou nome de
significado distorcido. Quase sempre, quando falamos de profetas, pensamos em
adivinhos ou magos, homens de poder misterioso ou falacioso, perscrutadores do
futuro. Não é esse, de maneira nenhuma, o sentido autêntico da palavra na Bíblia.
Podemos dizer que, em grande parte, aquela desfocagem se deve à hipertrofia que
o Cristianismo provocou ao fazer a aproximação do Novo ao Antigo Testamen-
to, conforme aquilo de Santo Agostinho “Nouum enim Testamentum in ueteri
uelabatur: Vetus Testamentum in Nouo reuelatur”1. Com efeito, a preocupação
cristã de mostrar a harmonia dos dois Testamentos, bem como a tentativa de esta-
belecer um nexo cronológico entre Jesus Cristo, reconhecido como Messias pelos
cristãos, e os textos proféticos do AT acerca do Messias levou a que se distorcesse
a perspectiva do profetismo bíblico, acentuando-se a nota de futuridade, fazendo
do profeta um anunciador antecipado de Jesus Cristo.
De facto, os profetas começaram a ser vistos como anunciadores à distância da
vinda do Messias e do acontecimento Cristo, quase como adivinhos do tempo da
sua chegada e até dos pormenores do seu nascimento e da sua paixão. O anúncio
das Escrituras tinha sido explorado nesse sentido pelo Evangelista Mateus para
reconstituir a Infância de Jesus: “tudo isso aconteceu para que se cumprisse a
Escritura que diz...”. Nessa linha se habituaram os cristãos a ver Isaías (Deutero-
-Isaías) com os cânticos do Servo de Javé (Is. 42-53) como o 5.º evangelista da Pai-
xão? E Jeremias com seus discursos acerca do sofrimento do Messias e destruição
de Jerusalém (Jr. 6) não é um precursor dos impropérios sobre Jesus?
Pois bem, ainda antes de ensaiarmos uma definição do profetismo bíblico, a
primeira coisa a fazer é situar o profetismo no contexto das religiões e civilizações
* Texto inédito.
1
AUGUSTINUS HIPPONENSIS - Sermones. Sermo 160, “PL”, 38, 876, Linea 36.
59
GERALDO J. A. COELHO DIAS
Era o mais espalhado, pois cada povo via nele a forma imediata de contacto
com a divindade. A magia, enquanto arte de adivinhação, era uma parte importan-
te e integrante das religiões antigas. Em algumas, como no Egipto, estava mesmo
oficializada e os faraós viviam rodeados de magos, quase como funcionários reais.
Competia-lhes fazer presságios para o bem comum e debelar as forças adversas.
2
ALBRIGHT, William Foxwell - De la Edad de Piedra al Cristianismo, Santander, Ediciones “Sal
Terrae”, 1959; NOTH, Martin - El Mundo del Antiguo Testamento, Madrid, Ediciones Cristiandad,
1976.
3
GARCIA CORDERO, M. - La Biblia y el legado del Antiguo Testamento, Madrid, BAC, 1977.
4
NEHER, André - L´essence du prophétisme, Paris, Calmann-Lévy, 1972.
60
SINGULARIDADE E ORIGINALIDADE DOS PROFETAS CLÁSSICOS, ESCRITORES
2. Profetismo social
3. Profetismo místico
5
Ex., 7,14-11.
6
CAGNI, Luigi - Le profezie di Mari, Brescia, Paideia Editrice, 1995.
61
GERALDO J. A. COELHO DIAS
Não raro, a intervenção dos profetas extáticos está ligada à celebração duma
liturgia, como que para influenciar o deus em nome do qual o profeta age, tornan-
do-o, assim, permeável à revelação pretensamente divina. É assim que deveríamos
considerar os profetas de Baal, que se opuseram a Elias no monte Carmelo (1 Re.
18, 20-40; 22,1-18).
4. Profetismo escatológico
7
BLENKINSOPP, J. - Une histoire de la prophétie en Israel. Depuis le temps de l´instalation
en Canaan jusqu’à la période hellenistique, Paris, Cerf, 1993 (Col. « Lectio divina », 152). Tradução
do inglês, Londres, 1984; GONÇALVES, Francolino J. – Os videntes e os visionários no profetismo do
Antigo Testamento, in “Fenomenologia e Teologia das Aparições”. Congresso Internacional de Fátima,
Santuário de Fátima, 1998, 557-574.
62
SINGULARIDADE E ORIGINALIDADE DOS PROFETAS CLÁSSICOS, ESCRITORES
8
JENNI, E; WESTERMANN, W. - Diccionario Teologico Manual del Antiguo Testamento, I,
Madrid, Ediciones Cristiandad, 1978,744-750.
9
IDEM - Ibidem, 872-883.
63
GERALDO J. A. COELHO DIAS
1.3. Adivinho: Qoses, que inicialmente está associado aos mais representativos
de Israel e até parece apreciado (Is. 3,2).
1.4. Profeta: Nabi´10, aparece 315 vezes no AT. É palavra de origem incerta,
talvez acádica, NABU, que significa “chamar”. Indica, portanto, alguém que
chama, feito pregoeiro de mensagem (Ne. 6,7), arauto, porta-voz de Deus (Ex.
4,14-17), “homem de Deus” (1 Re. 17,18). Este nome, que no AT se aplica a homens
que exercem formas diversas de actividade profética, embora por vezes posto em
sinonímia com Halôm (Sonhador) e outros (Dt. 13,4), acabou por se tornar o termo
técnico distintivo para designar os profetas clássicos, que a tradução Grega dos
LXX normalmente traduz por Profeta. Evitava, assim, o carácter divinatório, que
se ligava aos antigos profetas denominados Visionários, Videntes, ou Adivinhos.
Neste sentido, é que Jeremias se sabe chamado a ser Nabi (Jr.15), encarregado por
Deus para agir como profeta proclamando a palavra de Javé (Jr. 19,14;26,12), e o
mesmo se diga de Ezequiel (Ez.14,4). Profetas posteriores como Ageu e Zacarias
encabeçam os seus livros designando-se por Nabi (Ag. 1,1.3.12;2,1.10; Zc. 1,1.7).
O texto dos LXX e da Vulgata traduz normalmente o termo NABI por
PROFÉTES//PROPHETA, indicando com ele uma categoria de agentes privi-
legiados e inspirados daquilo que, genericamente, se chama a revelação divina.
Na verdade, a palavra grega “Profétes”, do ponto de vista nominal, é composta
de dois elementos: PRO, prefixo com vários significados + FETES. Portanto:
FÉTES = Aquele que fala, substantivo do verbo “Femi”, dizer, falar.
PRO de lugar = Diante de, em presença de. O profeta é o que fala diante do
povo, do rei ou de alguém a quem deve transmitir uma mensagem.
PRO de substituição = Em vez de, substituição. O profeta fala em nome de
Deus como seu mandatário e porta-voz.
PRO de tempo = De antemão, anterioridade. O Profeta pode, de antemão,
com antecedência, anunciar uma mensagem. Mas esta, como veremos, é uma
função rara e deve ser apreendida na curta duração. A ideia do profeta, que vê à
distância de centenas ou milhares de anos, deve ser posta de lado.
Deste modo, o Profeta é aquele que fala diante de alguém a quem transmite
uma mensagem da parte de Deus, por vezes, anunciando algo que, nos desígnios
divinos, está para acontecer. Os termos Nabi (hebraico) ou Profeta (grego, latim
e línguas novilatinas) põem em evidência a consciência que os profetas clássicos
tinham de ser chamados directamente para a missão, que Deus lhes confiava,
por vezes numa acção abrupta e inopinada, quase forçada, a que não podiam
resistir.
10
IDEM - Ibidem, 22-46.
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SINGULARIDADE E ORIGINALIDADE DOS PROFETAS CLÁSSICOS, ESCRITORES
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GERALDO J. A. COELHO DIAS
66
SINGULARIDADE E ORIGINALIDADE DOS PROFETAS CLÁSSICOS, ESCRITORES
Desenrola-se segundo três coordenadas ou pólos, que, não raro, revestem forma
de contestação 11.
3.1. Pólo religioso. Certamente, a mensagem dos profetas aprofunda a
doutrina transmitida pela revelação ao longo dos tempos, quer no que se refere
à teologia realçando a santidade e a justiça de Deus, levando à descoberta do
monoteísmo ético, quer à antropologia conduzindo a um maior conhecimento
do homem como criatura de Deus e ao respeito pelo seu semelhante. Faz,
portanto, a denúncia do indiferentismo religioso e da religiosidade paganizante,
que aproximava o culto de Javé do culto de Baal, alerta para o formalismo e
exterioridade mágica no culto de Javé mesmo nos santuários patriarcais (Am.
5,4-6), assim como para o automatismo dos ritos sem alma nem exigência moral
(Is. 1, 2-31; 58,1-8; Jr. 31,31-34; Am. 4,4-5; 5, 21-24; Ml. 1,6-2,9; Zc. 7,4-6). A
denúncia profética da religião não era para combater a religião em si, mas um meio
de levar à pureza da religião. Por essa razão, os profetas com seu carismatismo
aparecem quase opostos ao funcionalismo institucional dos sacerdotes.
3.2. Pólo social. A criação dum clima de fraternidade e igualdade era um dos
objectivos da Lei da Aliança (Ex. 20), que pretendia formar um povo diferente
daqueles que, ao tempo, viviam sob a opressão dos governantes. Daí os apelos e a
crítica que os profetas fazem aos governantes, reis e juízes, quando eles se afastam
da dita lei. Por outro lado, não deixam de ser incisivas as denúncias de injustiça
social, as censuras aos ricos e às senhoras burguesas, que, esquecendo a miséria
dos pobres e dos fracos, viviam escandalosamente na abundância e no desprezo
do seu semelhante (Is. 1,11-17; Jr. 7,1-15; Am. 6; Mq. 2,1-11).
3.3. Polo político. A vida do povo de Israel com a sua dimensão teocrática
não podia escapar à missão destes profetas. Acima das oscilações governativas dos
reinos de Judá e de Israel, das suas alianças políticas com potências estrangeiras,
os profetas exigiam a fidelidade à Aliança do Sinai que, constituiu a verdadeira
Constituição de Israel como Povo Eleito de Javé (Is. 1; 5-7; Jr. 11,1-16; Am. 7).
Aos próprios reis, em momentos de angústia e de procura de socorros políticos,
os profetas dirão simplesmente: “Se não acreditardes não subsistireis” (Is. 7,9.
Cfr. Jr. 4,23-26). Por isso, um profeta da envergadura de Isaías até combate as
alianças de Judá com o Egipto (Is. 30,6-8;31,1-3) e a Assíria (Is. 10,5-15; 14,24-
-25), parecendo, em contrapartida, favorecer a sujeição à Babilónia. Estes profetas
são, na verdade, os salvaguardas da fidelidade a Javé, rei e senhor do Povo Eleito
e, por isso, intervêm frequentemente na vida política. Por um lado, vê-se que
anunciam o castigo e o caos, por outro deixam antever um recomeço e uma luz
11
DIAS, Geraldo Coelho - Bíblia e Contestação, “Igreja e Missão”, 2ª Série, Ano XXIII, 1971,
17-38.
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GERALDO J. A. COELHO DIAS
de esperança, como faz Isaías no célebre “Consolai, consolai o meu povo” (Is.
40,1-2), enquanto Ageu e Zacarias permitem esperar a restauração, como o fará
Amós, talvez em texto de época persa (Am. 9,11-15, por oposição a Am. 5,1-3).
68
SINGULARIDADE E ORIGINALIDADE DOS PROFETAS CLÁSSICOS, ESCRITORES
uma mensagem. Podem ter implicações com o fenómeno extático e, às vezes, até
parecem consequência dum estado psíquico perturbado ou anormal, mas têm
sempre um alcance didáctico e significativo; são, portanto, formas de tornar mais
impressionante a mensagem e, por isso, são acompanhadas duma palavra profética
que lhes dá sentido. Muitas se encontram mesmo entre os profetas mais realistas,
como por exemplo: Isaías a andar nu e descalço (Is. 20,1-5); Jeremias com o cinto
bolorento, a bilha quebrada, o jugo ao pescoço (Jr. 13,1-11; 19, 27); Ezequiel com
a sua doença e viuvez e o desenho de Jerusalém num ladrilho (Ez. 3,25- 27; 4,1-3;
24,15-27); Amós e as suas visões (7-8); Oseias e a sua vida conjugal (1-3).
Em resumo, a linguagem dos profetas é, sem dúvida, a mais complicada da
Bíblia, a que exige mais acuidade hermenêutica. Por outro lado, no estado actual
do cânone bíblico, levou bastante tempo a sedimentar-se em livro, podendo nós
dizer que a redacção final dos livros proféticos só foi exarada após o Exílio de
Babilónia (586-538 a. C.).
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Conclusão
12
A época persa favoreceu a escatologização dos livros proféticos, cfr. REVENTLOW, H. Graf
(Editor) - Eschatology in the Bible and in Jewish and Christian Tradition, Sheffield, Sheffield Academic
Press, 1997, 169-188.
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SINGULARIDADE E ORIGINALIDADE DOS PROFETAS CLÁSSICOS, ESCRITORES
que a nação repele e persegue. Apelando para a condição da sua vocação ca-
rismática, que perturbou a sua própria vida, eles sentem-se como delegados de
Javé, defensores da Aliança do Sinai e da Lei Moisaica e, portanto, testemunhas
e intérpretes da história do Povo hebraico. Sem grandes oráculos relativamente
ao futuro, vivem no seu tempo e falam aos homens do seu tempo, por mais que se
dêem conta da marcha da história segundo os desígnios de Deus. Neste sentido,
eles fizeram avançar a vaga de fundo, que as promessas aos Patriarcas continham
e a ideia do Messianismo foi desenvolvendo. São estes os pontos principais que os
chamados Três Profetas Maiores e os 12 Profetas Menores nos permitem apre-
ender no período que vai do séc. VIII ao séc. IV a. C., o “tempo dos Profetas”,
segundo a Bíblia Hebraica.
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A SABEDORIA DOS MAIS VELHOS: A REVELAÇÃO BÍBLICA E A SOLIDARIEDADE HUMANA
O ano de 1993 foi proclamado pela Assembleia Geral das Nações Unidas
como “Ano Internacional da Família”. É também o “Ano Europeu da Pessoa Idosa
e do Encontro de Gerações”. Por tal motivo, foi assumido para tema do “Plano
Diocesano de Pastoral de Braga” e a paróquia das Aves, dirigida pelo dinâmico e
“atrevido” Padre Fernando, a quem saúdo com admiração, a paróquia da Vila das
Aves, repito, sempre na crista das iniciativas diocesanas, tomou-o como motivação
das suas Sétimas Jornadas Culturais.
Por tudo isto, para dar o pontapé de saída, eu propus-me tratar a temática: “A
Sabedoria dos mais velhos: A Revelação Bíblica e a Solidariedade Humana”.
Portugal, com a Europa, já sente o envelhecimento da população e o peso
dos reformados. A Terceira Idade pesa em termos sociais e económicos e parece
incomodar as gerações mais novas, preocupadas com o emprego, numa sociedade
onde o progresso material favorece o consumismo e condiciona o desenvolvimento
cultural das pessoas. Há que tentar o reencontro das gerações sem saudosismos
inúteis mas na procura dos valores que dignificam e enriquecem o homem na
sua racionalidade.
A Terceira Idade, os anciãos ou nossos mais velhos, porque velhos em idade,
não podem simplesmente ser considerados inúteis e pesados e não devem muito
menos ser, por isso, desprezados. Na cadeia das realizações humanas, a eles de-
vemos, certamente, muito do progresso do nosso tempo; foram eles, ainda sem
seguros de trabalho nem Caixa de Previdência nem Abono de Família que cria-
ram, educaram e lançaram a geração que, hoje, na plenitude da vida, constitui a
fina-flor do país de que eles foram e são as raízes indispensáveis.
E se isto é verdade em termos económico-sociais, aqui e agora, porque estamos
em Jornadas Culturais, eu prefiro realçar e reflectir sobre o património de sabe-
doria humana – a sabedoria da experiência vivencial que eles nos transmitiram
como precioso legado cultural e espiritual. Mais, porém, de que agarrar-me à
* Publicado em: 7ªs Jornadas Culturais de Vila das Aves. Vila das Aves: Fábrica da Igreja de S.
Miguel das Aves, 1994. p. 13-36.
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I – Os Sábios na Bíblia
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A SABEDORIA DOS MAIS VELHOS: A REVELAÇÃO BÍBLICA E A SOLIDARIEDADE HUMANA
Pelo que dissemos, já se vê que não é o saber teórico, técnico, a ciência espe-
culativa ou empírica que se aprende nas escolas e universidades, demasiado ligada
ao conceito de razão ou logos, herdada da mentalidade grega onde o muito saber
não anda, frequentemente, de braço dado com a sabedoria. Não. A sabedoria
bíblica é o sabor, o apreciar o valor da vida e das coisas. Como tal é sempre cha-
mada em hebraico Hokmáh, porque composta de dois elementos ou componentes
paradoxais: uma qualidade natural, inata, do homem, e um atributo divino
dado a certos homens: José, (Gn. 41,8); Moisés, (Nm. 11,17); David e Salomão,
(1 Re. 3,4-12 = oração a pedir a sabedoria!), Daniel (1,17), Esdras.
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A SABEDORIA DOS MAIS VELHOS: A REVELAÇÃO BÍBLICA E A SOLIDARIEDADE HUMANA
O sábio bíblico nunca se pode fechar a Deus, nunca se pode refugiar na torre
de marfim do seu saber humano, vaidoso e egoísta. Diz o Livro dos Provérbios:
“Não há sabedoria, nem prudência nem conselho contra Deus” (Pr. 21,30). E
acrescenta à maneira do nosso rifão “o homem põe e Deus dispõe”.
O homem de sabedoria deve ter um “coração franco” (Rohad leb), uma
mente aberta e larga como as praias do mar (1 Rs. 5,9).
O homem que escuta e reflecte, que recebe e transmite a sabedoria, é o
paradigma e a imagem do verdadeiro sábio segundo a perspectiva dos Livros
Sapienciais, e a Sabedoria uma espécie de testamento que um pai transmite ao
filho (Pr. 1,8.10; 2,1; 3,1.11.21; 4,1.20; 5,1,etc.). Atenda-se à carinhosa admoestação
paternal (“Meu filho”) tantas vezes aqui repetida.
Dentro da ambivalência dos acontecimentos, com um grande sentido da lei
dos opostos, o sábio descobre e dá a conhecer o sentido pragmático que leva o
homem a ser mais humano, a fazer o esforço de se tornar melhor: “Adquirir fortuna
vale a pena, mas pode ser inútil no dia da cólera de Deus” (Pr. 11,4). “Estômago
farto calca aos pés o favo de mel, mas ao faminto tudo parece doce” (Pr. 22,7).
Esta sabedoria no A.T. nunca é concebida como acontecimento de salvação,
dentro do sistema soteriológico cristão enquanto descida de Deus ao homem por
mediação de Cristo. Ainda estamos longe do sentido redentor do cristianismo,
daquilo que Gerardo Von Rad chama “a patética da redenção” 1 que leva o cris-
tão, imitador de Cristo, a superar as limitações pessoais e sociais, numa palavra,
à santificação e perfeição do “Sede perfeitos como o Pai do Céu” (Mt. 5,48).
A sabedoria no A.T. é uma actividade didáctica que contemplava a natureza
e a criação como realidades em si, embora cheias de sacralidade, consciente das
suas impotências e limitações. Só tardiamente os sábios foram levados a equacionar
questões teológicas, sobre Deus.
O Livro do Eclesiastes (Qohelet) é uma espécie de reflexão céptica sobre
o mundo e sobre o homem, um sinal de alarme 2; juntamente com o Livro de
Job, tratado filosófico-poético sobre a condição humana, estes dois livros são um
desafio para o homem crente na medida em que o levam a tentar perceber a
transcendência de Deus e a realidade da vida humana.
O humanismo da sabedoria bíblica tradicional não tem nada a ver com as
correntes filosóficas e ateias do humanismo contemporâneo (Br. 3,22), como o
Existencialismo e o Socialismo. Por isso, não apresenta uma teoria sistemática e
orgânica do universo e do homem; não há na Bíblia um sistema científico, não
há um ideal meramente humanista.
1
VON RAD, Gerhard – Sabiduria en Israel, Madrid, Ediciones Cristiandad, 1985.
2
IDEM – Ibidem, 389.
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O CLAMOR DOS POBRES NOS PROFETAS E O «MESSIAS DOS POBRES»
1º) O Político, lembrando aos reis e governantes que Israel é o Povo de Deus.
Por isso, nunca deverá pôr em causa nem postergar a Aliança do Sinai (Ex. 19)
que é a constituição básica da sua condição do Povo Eleito.
2º) O Social, acentuando a qualidade dos membros do Povo Eleito como
unidos pela fraternidade étnica e pela igualdade perante Deus, na consequência
da Aliança.
3º) O Religioso, defendendo a fé do povo no Deus da Aliança e combatendo
o formalismo dos ritos, a indiferença religiosa e a contaminação com os cultos
pagãos.
* Publicado em: SEMANA BÍBLICA NACIONAL, 12ª – Os Pobres na Bíblia e na Vida de Hoje.
Lisboa: Difusora Bíblica, 1990. p. 73-96.
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GERALDO J. A. COELHO DIAS
que cada profeta tem preocupações e matrizes de pregação que se prendem com
as circunstâncias do tempo e lugar em que vive e que dependem igualmente da
sensibilidade e idiossincrasia do seu temperamento e pessoa. Mesmo nos profetas,
vocacionados por Deus, o homem é sempre ele e as suas circunstâncias. A sua
pregação joga entre anúncio e denúncia. Possuídos pela força do espírito de Deus e
acicatados pelo «chicote da sua palavra» (Is. 11,4), os profetas são os guias espirituais
do povo hebraico. Aparecem em momentos críticos da vida da nação, chamados
pelo carisma da vocação divina, ousados e atrevidos, sem respeitos humanos, não
violentos mas prontos para a morte, como agitadores e contestatários que a nação,
muitas vezes, repele, persegue e mata. Estão conscientes de ser mensageiros de
Deus, de falar em seu nome; por referência à Aliança do Sinai, como princípio do
seu pregar e agir, lêem o presente e interpretam-no à luz das grandes coordenadas
das intervenções de Deus no passado para construir um futuro digno, criando o
optimismo da salvação. Com seus oráculos, mas sem grandes profecias futuroló-
gicas acerca do Messias, os profetas fizeram avançar a mentalidade religiosa do
povo, aprofundaram a fé monoteísta e incentivaram a vaga de fundo, alterosa e
profunda, generosa e exigente da dádiva da Salvação que havia de realizar-se na
plenitude dos tempos com a vinda do Messias.
Reler, hoje, os profetas bíblicos, significa descobrir a iniludível necessidade do
homem de todos os tempos, à luz da fé bíblica, ler e interpretar o presente vital e
histórico dentro das exigências que a nossa religião acarreta. De facto, os profetas
bíblicos, lendo os acontecimentos do seu tempo e analisando-os pelo prisma da
Aliança e seus mandamentos, procuravam levar o povo a sondar em profundidade
o seu comportamento ético-religioso para corrigir a trajectória do seu caminhar e
garantir o seu pleno e autêntico desenvolvimento, segundo a vontade de Deus. Os
profetas, pois, nunca poderão ser vistos por nós como bruxos, feiticeiros e adivinhos
do futuro, mas antes como educadores do povo bíblico para a dádiva da salvação
messiânica que, conforme as circunstâncias histórico-políticas, passará por três
fases sucessivas: o messianismo real-davídico, o messianismo pobre e sofredor e o
messianismo transcendente e divino.
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O CLAMOR DOS POBRES NOS PROFETAS E O «MESSIAS DOS POBRES»
Para a elaboração deste trabalho, fiz a leitura dos profetas de fio a pavio,
tentei o levantamento de todos os passos onde se fala da pobreza, dei-me conta
89
GERALDO J. A. COELHO DIAS
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O CLAMOR DOS POBRES NOS PROFETAS E O «MESSIAS DOS POBRES»
pecador (Hatta). De facto, para os profetas do séc. VIII, a pobreza é uma síndroma
de injustiça perante o qual ninguém pode ficar de boa fé.
Como profetas no Reino do Norte, salientam-se Amós e Oseias.
91
GERALDO J. A. COELHO DIAS
OSEIAS, na tragédia da sua vida pessoal vai ao reino do Norte, a Israel, pre-
gar, dum modo genérico e simbólico, a infidelidade do Povo Eleito que ele compara
à prostituição. Não combatendo directamente a injustiça social nem salientando
a pobreza, prega o regresso ao ideal do deserto; traça um quadro implacável da
infidelidade dos reinos de Israel e de Judá e sublinha a falta de conhecimento
de Deus e a ausência de abertura ao próximo (4,4-10;5,1-7). Os sacerdotes são
apontados como os maiores responsáveis deste estado de coisas.
Teve maior duração mas, nem por isso, deixa de ser mais responsável. A
simples existência do Templo de Javé em Jerusalém deve aparecer como índice
de maior responsabilidade moral e não simples pára-raios protector.
No século VIII salientam-se os profetas Isaías e Miqueias.
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O CLAMOR DOS POBRES NOS PROFETAS E O «MESSIAS DOS POBRES»
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GERALDO J. A. COELHO DIAS
dez geiras de vinha produzirão apenas um barril, uma medida de semente não
dará mais que um alqueire.
Ai dos que madrugam para procurarem a embriaguez e se retardam pela
noite inflamados pelo vinho! Tudo são cítaras e harpas, pandeiretas e flautas, e
muito vinho nos seus banquetes; e não reparam nas obras do Senhor nem con-
sideram a obra das suas mãos. Por isso o meu povo será desterrado sem de nada
se dar conta. Os seus grandes serão consumidos pela fome. Por isso, a habitação
dos mortos alargará o seu seio e abrirá a sua boca, sem medida; a ela descerão
os nobres e a plebe, o seu fausto de que tanto se gloriavam. O moral será abaixa-
do, o homem será humilhado, e os olhos altivos serão abatidos. E o Senhor dos
Exércitos será exaltado na Sua sentença, o Deus santo mostrará a Sua santidade
pelo julgamento. Os cordeiros pastarão como nas suas pastagens, e os cabritos
comerão as suas ruínas.
Ai dos que arrastam castigos sobre si mesmos com as cordas dos bois, e os
pecados com as sogas dos carros! Os que dizem: «Que Ele se apresse, que faça
sem demora a Sua obra, para que nós a vejamos; que o plano do Santo de Israel
se execute, para que o conheçamos»!
Ai dos que ao mal chamam bem, que têm as trevas por luz e a luz por trevas,
que têm o amargo por doce e o doce por amargo!
Ai dos que se têm por sábios e se julgam espertos!
Ai dos que são valentes para beber vinho, e fortes para misturar licores.
Ai dos que por uma dádiva absolvem o ímpio, e negam a justiça ao inocente!
Por isso, assim como a língua do fogo devora a estopa, e a erva seca se consome
na chama, a raiz deles far-se-á em podridão e a sua flor disssipar-se-á como o
pó, porque rejeitaram a lei do Senhor dos Exércitos, e desprezaram a palavra do
Santo de Israel. (5, 8-24)
«Ai dos que decretam leis injustas, e dos escribas que redigem prescrições
tirânicas, dos que afastam os pobres do tribunal, e tripudiam os direitos dos fracos
do meu povo, que fazem das viúvas a sua presa e roubam os bens dos órfãos!
Que fareis vós no dia do ajuste de contas, quando o furacão vier de longe?
A quem acudir em busca de auxílio, e onde deixareis as vossas riquezas? Só vos
resta dobrar a cerviz entre os cativos e cair entre os mortos. Apesar de tudo isto,
não se aplica a sua ira e a sua mão continua levantada» (10, 1-4).
São sete ais ou maldições que não podemos deixar de associar aos sete ma-
carismos ou bem-aventuranças de Mt. 5,3-12. Por isso, a pobreza aparece várias
vezes como castigo dos poderosos que comem «os despojos dos pobres», e resultado
da devastação assíria:
«O Senhor entrará em juízo contra os anciãos e os chefes do seu povo: «Vós
devorastes a Minha vinha, e os despojos dos pobres enchem as vossas casas. Por
94
O CLAMOR DOS POBRES NOS PROFETAS E O «MESSIAS DOS POBRES»
que razão calcais aos pés o Meu povo, e macerais o rosto dos pobres?» – Oráculo
do Senhor Deus dos Exércitos» (3,14-15; cfr. 7, 21-25; 9, 20; 32,7).
O profeta denuncia também os juízes iníquos que põem a ordem judicial ao
serviço dos poderosos e «afastam os pobres do tribunal» (10, 2). De facto, Isaías só
uma vez fala expressamente dos «ricos» (5, 8-10), sublinhando antes as autoridades
do país (1, 23), e dos juízes (5, 20, 23; 10, 2) verdadeiros responsáveis pela prosti-
tuição ao dinheiro com abandono da fidelidade à justiça que vem de Deus.
Para Isaías, ouro, prata e riqueza são os ídolos ou amantes dos poderosos
que, por causa disso, esquecem a Deus, desprezam o direito e a justiça e oprimem
os pobres e os fracos.
Contudo, o Proto-Isaías (1-39) já aponta para uma nova era sócio-religiosa
em que o rebento de Jessé (11, 11-16) julgará «os pobres e humildes» do país e
salvará o «Resto» de Israel (24-27). Assim, «o Senhor, será o refúgio do pobre na
tribulação» (25, 4) e os oprimidos exultarão no Santo de Israel (29, 18-19). O
Senhor será o seu «tesouro» (33, 2-6).
Como se vê, Isaías faz a passagem da crítica aos poderosos para a consolação
e restauração dos pobres (33, 17) numa dinâmica de esperança messiânica.
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GERALDO J. A. COELHO DIAS
funcionários sem alma, não ligam importância a Deus, só prestam culto à riqueza;
como diria Karl Marx, «são assalariados da burguesia» e não servidores de Deus.
O profeta, por conseguinte, conclui que Deus não poderá tolerar tal idolatria (2,
10) cujas componentes são a exploração, a opressão, a escravidão e roubo dos
pobres e humildes. Deste modo, com 8 séculos de antecedência, Miqueias ante-
cipa-se ao ensinamento de Jesus: «Vós não podereis servir a Deus e ao dinheiro»
(Lc. 16, 13; cfr. Mt. 6, 24).
SOFONIAS (640-630), nos finais do séc. VII a.C. prega a reforma religiosa.
Dirige-se sobretudo a este tipo de pessoas que, com práticas idolátricas, atentam
contra o verdadeiro culto de Javé (1, 4-6) e proclama o Juízo Universal do Dia do
Senhor. Os primeiros são os despreocupados de Deus:
«Ouvi os insultos de Moab e os sarcasmos dos filhos de Amon, quando In-
sultaram o Meu povo gloriando-se do seu território. E por isso, pela Minha vida!
- diz o Senhor dos Exércitos, Deus de Israel: Moab tornar-se-á como Sodoma e
os filhos de Amon como Gomorra: um campo de urtigas, uma região de sal, um
desastre eterno. O resto do Meu povo os saqueará. Os que subsistirem da Minha
gente serão os seus herdeiros» (1, 8-9).
Aí estão incluídos a família real de Jerusalém, os oficiais régios e até os sacer-
dotes; são acusados de «moda estrangeira», isto é, de vestir roupas importadas,
que a maioria do povo não podia ter, e assim manifestam o seu luxo e vaidade
que conseguiram por fraude e violência contra os fracos. São factores do ateísmo
prático que substitui Deus por realidades materiais e interesses pessoais. Por isso
o oráculo seguinte (1, 10-11) apresenta a cidade de Jerusalém apenas preocupada
por bens materiais e dirige-se aos comerciantes.
96
O CLAMOR DOS POBRES NOS PROFETAS E O «MESSIAS DOS POBRES»
O terceiro oráculo (1, 12-13) julga os que se sentem seguros nas suas proprie-
dades e riquezas, sentados nas suas próprias «fezes» (cfr. Jr. 48, 11).
São os aburguesados da vida, materialistas e ateus, indiferentes a qualquer
sentimento religioso. Contra todos estes, o profeta proclama o juízo do Dia do
Senhor e inaugura o tema da pobreza em espírito (2, 3).
Mas de maneira positiva, Sofonias foi o primeiro profeta a identificar o novo
Israel como um «povo de pobres», fazendo assim a moralização e espiritualização
da pobreza:
«Naquele dia não te envergonharás dos pecados que cometeste contra Mim,
porque exterminarei do meio de ti os teus orgulhos arrogantes; e cessarás de te
gloriar na Minha montanha santa. Sé deixarei subsistir no meio de ti um povo
humilde e modesto que porá a sua confiança no nome do Senhor. O resto de Israel
não mais cometerá iniquidades nem proferirá mentiras, não se achará mais na sua
boca língua enganadora. Poderão ser apascentados e repousar sem que ninguém
os inquiete». (3, 11-13).
Para ele, o pobre é a antítese do orgulhoso, aquele que vive em total subor-
dinação a Deus (3, 11) e em perfeita observância moral (3, 13). Por isso, o povo
messiânico, o Resto de Israel, não é necessariamente um povo de indigentes e
mendigos, mas antes o conjunto dos «Pobres de Javé» (Anawim = Humildes),
«povo humilde e pobre» (3, 12) que espera a resposta do Senhor.
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povo, que lançam armadilhas como caçadores de aves, e estendem as suas redes
para apanhar os homens.
Como gaiola cheia de aves, assim as suas casas estão cheias de rapinas. Por
isso, tornam-se ricos e poderosos; apresentam-se nédios e bem nutridos. Ultra-
passam mesmo os limites do mal. Não procedem com justiça para com o órfão,
mas prosperam! E não fazem justiça aos infelizes!» (5, 26-28).
Também ele introduz um oráculo de maldição contra o explorador rei Joa-
quim (22, 13-19).
O profeta sublinha também como todo o povo despreza a Palavra de Deus
e se deixa levar pela ganância do dinheiro (6, 9-30). Ricos e poderosos e até os
pobres, e isto é digno de nota em Jeremias relativamente aos outros profetas, todos
se dedicam à cobiça e ao culto dos bens materiais, perdendo o «conhecimento de
Deus» (21, 11s; 22, 5; 22, 13-19; 34, 8-22). Por isso, mais uma vez, Jeremias afirma
que o deus dos ricos, o dinheiro, é um ídolo, um falso deus Baal, que a ninguém
garante subsistência (2, 13), nem apoio, como perdiz que choca ovos alheios, um
deus sanguinário que vitima o direito, a justiça e o próximo:
«Como a perdiz que choca os ovos que não pôs, assim o que junta riqueza
fraudulentamente. No meio dos seus dias terá de as deixar, e seu fim será o de um
insensato» (17, 11; cfr. 9, 22; 22, 13).
Mas, Jeremias também apresenta como motivo de esperança e optimismo
um oráculo sobre o Rebento messiânico a exercer o direito e a justiça, em paralelo
com Is. 7,14 dando-lhe porém não o nome de Emanuel mas de Javé Siddeqenu,
isto é, Deus nossa Justiça: «Dias virão – oráculo do Senhor – em que farei brotar
de David um rebento justo que será rei, governará com sabedoria e exercerá no
país o direito e a justiça. Sob o seu reinado, Judá será salvo e Israel viverá em
segurança. Então será este o seu nome: «Javé-Nossa-Justiça».
Por esta causa, eis que chegarão os dias – oráculo do Senhor – em que já não
dirão: «Viva o Senhor que tirou do Egipto os filhos de Israel!». Mas sim: «Viva o
Senhor que tirou e reconduziu a linhagem de Israel da terra do Norte e de todas
as terras, para onde os exilara, e os fez habitar na sua própria terra» (23, 5-8).
E depois é o tema da Nova Aliança a abrir perspectivas de Restauração (31,
1-14, 23-25) prometendo abundância e o fim da fome.
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Por isso, Jerusalém é apostrofada como cidade sanguinária (22, 1-16) cheia
de crimes como panela ou marmita a cozer ao fogo (24, 3-11).
Apesar de tudo, anuncia a salvação ao Resto (14, 22) e prevê a purificação
do povo e a restauração de uma era de abundância (36, 1-15, 22-30).
MALAQUIAS faz ressaltar o amor de Deus pelo seu povo (1, 2-5) e apesar
da crítica e libelo de acusação aos sacerdotes (1, 6 s), que suscitará o juízo do Dia
do Senhor contra os que oprimem o operário (3, 5) fazendo aparecer a obra do
Messias, verdadeiro «Anjo da Aliança», sol e Justiça: «Assim falavam os que temem
o Senhor. Mas o Senhor ouviu atento; na Sua presença foi escrito a favor dos que o
temem e procuram refúgio no Seu nome. Eles serão para Mim um bem particular
no dia em que Eu agir, diz o Senhor dos Exércitos. Terei compaixão deles como
um pai se compadece do filho que o teme. Então vereis de novo a diferença que
existe entre o justo e o ímpio, entre quem serve a Deus e quem não o serve.
Porque, eis que vem um dia abrasador como uma fornalha. Todos os soberbos
e todos os que cometem a iniquidade serão como uma palha; este dia que vai chegar
queimá-lo-á, diz o Senhor dos exércitos, e nada ficará: nem raiz, nem ramos.
Mas para vós que temeis o Meu nome brilhará o sol de justiça trazendo a
salvação nos seus raios; saireis e saltareis como os bezerros de estábulo. Calcareis
os pecadores, porque serão como cinza debaixo das plantas de vossos pés, no dia
que Eu preparo, diz o Senhor dos exércitos» (3, 16-21; cfr. 3, 1.20).
ZACARIAS, já no séc. III (?), fecha os escritos dos profetas relembrando, por
um lado, o ensinamento antigo sobre os pobres e a justiça (2, 1-3). Mas é sobre-
tudo na segunda parte (9, 9-17) que Zacarias apresenta o «Messias dos Pobres»,
humilde e pacífico, aplicando a esta figura misteriosa o termo ‘ani = humilde,
pobre, exactamente o mesmo com que Sofonias classificava o povo humilde e
modesto do Resto de Israel (Sf. 3, 12): «Exulta de alegria, filha de Sião! Solta gri-
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tos de júbilo, filha de Jerusalém! Eis que o teu rei vem a ti: ele é justo e vitorioso,
humilde, montado num jumento, sobre um jumentinho, filho de uma jumenta.
Ele exterminará os carros de guerra de Efraim e os cavalos de Jerusalém; o aro
de guerra será quebrado. Proclamará a paz para as nações. O seu império irá de
um mar a outro mar e do Rio às extremidades da terra.
Quanto a ti, pelo sangue do teu pacto, tirarei os teus cativos da fossa (na qual
não há água). A ti, filha de Sião, voltarão os prisioneiros que esperam a libertação.
Em compensação dos dias do teu exílio, Eu te restituirei o dobro.
Eu reteso o Meu arco: a Judá, Eu armo-o como Efraim. Suscitarei os teus
filhos, ó Sião, contra os filhos de Javan, e farei de ti uma espada de herói! O Senhor
Deus aparecerá sobre eles e a sua flecha cintilará como o relâmpago. O Senhor
tocará a trombeta e avançará entre as procelas do Sul. O Senhor dos exércitos os
protegerá! Eles calcarão aos pés as pedras de funda, beberão o sangue como vinho,
ficarão saciados como chifres do altar. O Senhor seu Deus os salvará naquele dia;
apascentará o seu povo como um rebanho, como pedras brilhantes de diadema
sobre a terra. Ah! Que felicidade! Que beleza será a sua! O trigo dará vigor aos
jovens e o vinho doce, às donzelas» (9, 9-17).
E, assim, temos, necessariamente introduzido, como síntese da pregação dos
profetas exílicos, o tema do «Messias dos Pobres».
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A) Personalidade colectiva
B) Figura individual
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V - Conclusão
Hoje, a propósito dos pobres e da tão propalada opção pelos pobres, assiste-se
a leituras ideológicas dos profetas. Predomina a leitura política, socializante ou
marxista, daqueles que querem promover a luta de classes e eliminar os ricos. De
facto, nos profetas bíblicos encontramos uma violentíssima e severa denúncia da
opressão dos pobres; mas, repito, o pobre da Sagrada Escritura não é o proletário
de Marx.
Os profetas, a respeito dos pobres, seguem duas linhas de pensamento:
A) Os profetas do séc. VIII a.C. são os mais sociais e recriminatórios. Pre-
ocupam-se com a pobreza por confronto com a riqueza, denunciando os crimes
dos poderosos e ricos, denunciando tudo e todos. Vêem a pobreza no seu aspecto
económico, social, mas não se preocupam dos pobres pelos pobres. A sua denún-
cia da exploração e opressão dos pobres e fracos procura levar os prepotentes e
ricos à conversão e observância da Lei do Sinai. É que poderosos e ricos, mesmo
crentes e, o que é dramático, porque crentes, tendem a criar o ídolo do Mamona
da iniquidade (Lc. 16, 9), o vil metal que os fecha ao conhecimento do Deus vivo
e à prática da justiça. Hipotecam-se à riqueza e, como prática da sua idolatria,
só querem acumular bens, entesourar dinheiro, ainda que, para isso, tenham de
enganar, roubar, oprimir e escravizar ou ignorar os necessitados.
Mas os profetas não fazem programas de reforma social, não organizam
movimentos revolucionários, não promovem a luta de classes. Então, quem
evangelizaria os ricos?
Para eles, a solução do problema da pobreza não é uma questão social ou
política; é uma questão moral e religiosa. Por isso, com coragem e de maneira
atrevida, denunciando o mal, apelam à justiça e querem a fé prática no Deus
da fraternidade e da igualdade. Consequentemente, insistem sempre com ricos
e pobres, governantes e súbditos na necessidade do conhecimento de Deus, na
aplicação do seu Direito, na observância da sua Aliança.
B) Os profetas do Exílio fazem a passagem qualitativa da pobreza material,
sem a esquecer, para a pobreza espiritual; acentuam menos a falta de recursos
materiais, económicos e mais a situação de dependência e humilhação. Assim,
a pobreza, numa dimensão religiosa, é que permite confiar em Deus e não em
si mesmos, sem invocar o Santo Nome de Deus em vão. Os pobres, agora, são
classificados «pobres de Javé», têm de ser pessoas crentes, esvaziadas de si, aban-
donadas a Deus. Na pobreza material, por força da situação económica, há mais
possibilidade de fé e confiança; nela, pois, nascerá melhor a pobreza espiritual como
condição para a recepção do Reino de Deus que o Servo de Javé, feito Messias
dos Pobres, anuncia e prepara. Não se ignore, porém, como diz Jeremias, que
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Bibliografia
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