Tese Racismo Trajetoria Escolar PDF
Tese Racismo Trajetoria Escolar PDF
Tese Racismo Trajetoria Escolar PDF
Belém
2006
EVENICE SANTOS CHAVES
Belém
2006
Dados Internacionais de Catalogação-na-Publicação (CIP)
(Biblioteca de Pós-Graduação do CFCH-UFPA, Belém-PA-Brasil)
_________________________________________________________________________________
BANCA EXAMINADORA
__________________________________________
__________________________________________
__________________________________________
__________________________________________
__________________________________________
Dedico este trabalho às pessoas abaixo listadas, pela ordem em que entraram, de
modo muito significativo, na minha vida.
José Carlos, amigo e colega que, há muitos anos atrás, me seduziu para
retomar a pós-graduação.
Sara e Luciana, minhas filhas, pelo sentido que dão a minha vida.
À Sônia Sampaio, colega e amiga que, com prontidão e boa vontade, escreveu o
resumo em francês.
À Luciana, minha filha, que me ajudou a checar episódios e a digitar partes do capítulo
5.
À Lione e ao Jorge, minha irmã e meu cunhado, pela acolhida no sítio quando estava
muito cansada e precisava repousar.
i
SUMÁRIO
LISTA DE FIGURAS vi
LISTA DE TABELAS xi
RESUMO xii
ABSTRACT xiii
RÉSUMÉ xiv
Apresentação 1
1. Introdução 9
1.1. O racismo como modalidade de violência estrutural 16
1.2. As desigualdades raciais na universidade 42
1.3. Objetivo geral 50
1.3.1. Questões específicas 50
3. O caminho teórico-metodológico 82
3.1. O pesquisador 83
3.1.1. O pesquisador e a conduta ética 84
3.1.2. O pesquisador qualitativo como realizador de bricolagem 85
3.2. Fundamento epistemológico 86
3.3. A cultura 87
ii
4. Método 98
4.1. O estudo de caso como estratégia de pesquisa 98
4.2. A seleção dos casos 100
4.2.1. Critérios que orientaram a seleção dos casos 100
4.3. O número de casos 100
4.4. As participantes/informantes 101
4.5. Materiais e equipamentos 101
4.6. Técnica empregada: a entrevista narrativa 101
4.6.1. Temas constitutivos da entrevista narrativa 102
4.7. Instrumentos empregados na coleta de informações 103
4.7.1 O questionário sócio-demográfico 103
4.7.2. A lista de complementação de frases 104
4.8. Locais onde foram realizadas as entrevistas narrativas 105
4.9. Procedimentos empregados 105
4.9.1. Na coleta de informações 105
4.9.2. Na transformação dos conteúdos referentes aos itens do questionário
sócio-demográfico em dados
105
4.9.3. Na descrição das participantes/informantes 106
4.9.4. No tratamento das informações coletadas na entrevista narrativa 106
4.9.5. Na edição dos conteúdos referentes às informações coletadas através das 107
entrevistas narrativas
4.9.6. No processo de construção do sistema classificatório 107
4.9.7. Na análise e interpretação dos dados das entrevistas narrativas 108
4.9.8. Na transformação dos conteúdos da lista de complementação de frases em
dados e na análise
108
4.9.9. Na triangulação dos dados 109
iii
Anexos 379
vii
LISTA DE FIGURAS
LISTA DE TABELAS
RESUMO
ABSTRACT
Chaves, E. S (2006). Racism through female professors’academic and professional trajectories. Belém,
(pp.378). Phd thesis. Postgraduate program in Theory and Research of Behavior. Federal University of
Pará.
This research utilized an interdisciplinary theoretical and methodological apparatus and focused on social
and racial disparities along the academic and professional way of female professors. Brazilian literature
examined in Psychology field does not offer examples of qualitative researches about social and racial
disparities with an emphasis on black and white individuals. This way, and in this context, this study was
included and intended to answer the following questions: 1) are there elements which indicate social
disparities structurally produced that are related to the academic and professional trajectories of
individuals socially entitled as black, mulatto and white? 2) Are there elements indicating racial
disparities when comparing the life trajectories of those socially entitled as blacks and mulattos to those
of the ones socially called whites? Three female professors participated in this research: one socially
defined as white and two socially designated as blacks (a black-skinned and a mulatto). They concluded
post graduation and work in different departments in a Brazilian public university. A social demographic
questionnaire and a list for completing phrases were used as information was collected. The information
gathered was converted into data. Data organization included a categorization process. The results
showed that poverty, indicative of social disparities, was a reality for the participants during some periods
of their existential trajectories, though, when considering skin color, it was verified the existence of a
connection between the participant’s level of poverty and her skin color, and between the participant’s
level of poverty and career choices. The results also showed that the schooling process became their path
through their professional course in life and ascending social mobility; adversities that emerged along the
white, the black-skinned and the mulatto women’s life were overcome through support offered by
relatives and friends and through the use of personal strategies; that despite the black-skinned professor
finished her academic cycle, is a qualified professional who graduated in two different courses and has a
post graduation degree, she is still a target for racism, displayed either explicitly, either in disguised ways;
that racism toward black individuals, expressed directly or indirectly, was addressed both to the black-
skinned and the mulatto women in different episodes of their lives, while the white woman was only an
observer of racial social interactions in daily basis situations; that school and family are consolidated
institutions that reproduce racism against blacks; that school presented itself as a contradictory social
place since, although it pursues the development of citizens, it promoted social ostracism toward the
participants when they were poor children attending elementary school, putting them aside during
amusing activities, collaborating to the reproduction of social disparities. The results also showed a
paradox, from one hand the school is an institution responsible for the upbringing of citizens, on the other
hand, it presents itself as a place for the materialization of racism expressed in social interactions among
classmates or between the teacher and the student, regardless the grade in which the student is; that
racism against blacks is part of a subjectivity (re)construction process, though the meanings they attribute
to this process differ according to their phenotypes and experiences in social relations involving a race
issue; that the participants’ points of view toward racism and engagement in social movements against
racial discrimination are related to the way racism affected their lives, as well as to the visibility of this
phenomenon in the social world and/or in their personal experiences; that being a target for racism against
blacks generates singularities responsible for the constitution of the individual herself and for the
construction of an ethnic identity. The results of this study will help us in the understanding of racism’s
social and psychological aspects, in theoretical constructions about this issue, in identifying psychological
and social mechanisms of social inclusion that exclude the black, in identifying one’s psychological
mechanisms when facing racism, in the elaboration of strategies for racism research, in providing
subsidies to the creation and execution of programs that fight racism at school through curricular and
extracurricular activities.
Key words: school trajectory, professional trajectory, social and racial disparities, black, white.
xiv
RÉSUMÉ
racismo:
1) É um fenômeno universal, assinalado como tal por Guimarães (1999) e
McDougall (2001).
2) Como questão social universal, é um objeto de trabalho na ONU, através da
Comissão de Eliminação da Discriminação Racial (McDougall, 2001).
3) É um fenômeno social que se evidencia no Brasil, já explicitado pelo
movimento negro, desde há muito tempo, segundo Guimarães (1999) e Santos (1990),
embora camuflado, conforme Rodrigues (1995).
4) É um fenômeno social reconhecido pelo governo do nosso país como
constitutivo da sociedade brasileira, desde 1995 (Silvério, 2002).
5) É produtor de desigualdades sociais e materializa-se, no Brasil, através das
desigualdades raciais (Pereira, 1997; Santos, 1990; Teixeira, 2000).
6) Do ponto de vista psicológico, é produtor de opressão, isolamento social,
conflitos (Chaves, 2001), auto-imagem e auto-estima desvalorizadoras do si mesmo e da
identidade étnica (Cavalleiro, 2001; Gusmão, 1997).
A invisibilidade do fenômeno, no nosso país, foi evidenciada por Guimarães
(1999), ao ressaltar que, através da prática discursiva nacionalista da não racialidade,
retira-se a ilegitimidade da discriminação e da segregação, porém tal estratégia não
elimina a presença do racismo no cotidiano. Assim, continua o autor, o racismo está
presente em discursos e em práticas sociais, embora não seja juridicamente reconhecido.
A consulta bibliográfica também demonstrou que o racismo contra o negro é
escassamente estudado pela Psicologia brasileira (Ferreira, 1999a), o que me levou a
mergulhar em leituras de construções científicas sobre o referido tema, realizadas por
pesquisadores nacionais, em outras áreas do conhecimento científico.
Destarte, o trabalho que desenvolvia com os adolescentes, bem como os estudos
que efetuava, clarificaram duas condições que justificavam a relevância do racismo
como objeto de estudo científico: a necessidade de pesquisas, no âmbito da Psicologia, e
a possibilidade da realização de estudos interdisciplinares, visando a uma compreensão
histórica e culturalmente situada do fenômeno.
Iniciei a elaboração de um projeto de pesquisa centrado no racismo contra o
negro, tendo em vista conhecer mais sobre as relações sociais racializadas, contribuir,
no plano teórico e metodológico, com novas elaborações e fornecer subsídios para a
Evenice Santos Chaves O racismo na Trajetória Escolar e Profissional... 3
das relações racistas que perpassam as suas experiências sociais, ao longo do processo
de desenvolvimento. Essa processualidade configura-se nos cursos de vida, cujos
acontecimentos criam oportunidades para a pessoa atuar, relacionar-se, sentir, significar
e re-significar concepções e comportamentos, materializáveis nas situações interativas
com outros, que, conforme Simão (2004), nem sempre estão fisicamente presentes.
Rey (1997) aborda a subjetividade humana como constituída e constitutiva da
história social, argumentando que, por isso mesmo, o sujeito a organiza no convívio
com outros. Dessa forma, entende-se que a subjetividade traz em seu bojo a marca do
mundo social, através dos sentidos que a pessoa atribui às situações, aos eventos, às
relações, às suas próprias realizações, aos conflitos e às frustrações, como ator e autor
participante da vida na sociedade. Dito de outro modo, o processo de subjetivação
integra a unidade mundo social-sujeito das ações, organizando suas compreensões, seus
sentimentos, suas ações e imprimindo qualidade aos relacionamentos humanos, que se
estabelecem durante toda a trajetória existencial de cada um, em particular.
Para Hernández (2005), aportes multilaterais e transdisciplinares possibilitam a
compreensão de manifestações sociais e psicológicas de grupos e de seres humanos,
através do desvelamento da teia de relações e expressões pessoais, tácitas ou explícitas,
dialeticamente articuladas, com elaborações culturais e ideológicas. Esse pesquisador,
no entanto, adverte que integrar o social com o psicológico não significa psicologizar
fenômenos sociais mais amplos, nem sociologizar as situações sociais, porém, entender
como determinantes estruturais e das condições de vida material dos seres humanos se
entrelaçam. Adita que é necessário articular uma interpretação que englobe mecanismos
psicossociais, culturais e ideológicos e explane a conexão entre manifestações sociais da
subjetividade e situações humanas constituintes dos fenômenos sociais.
Nessa ótica, estudos centrados na interconexão entre a história social e os
processos de subjetivação podem prover conhecimentos sobre diferentes facetas
histórico-culturais do racismo contra o negro e sobre aspectos da singularidade de
sujeitos, cujos percursos se desenrolam em contextos sociais racializados. A referida
interconexão, portanto, confere relevância a pesquisas focalizadas na processualidade
inerente ao curso de vida das pessoas, que se desenvolvem nos contextos, nas situações
e nas instituições sociais, em movimentos sempre mediados pela participação de outros.
Bento (2002a) ressalta que as pessoas de fenótipo branco são esquecidas como
Evenice Santos Chaves O racismo na Trajetória Escolar e Profissional... 6
1
UFBA = Universidade Federal da Bahia.
Evenice Santos Chaves O racismo na Trajetória Escolar e Profissional... 7
pela Folha de São Paulo e Instituto Datafolha (Rodrigues, 1995), a partir da coleta de
informações com cinco mil pessoas, em diferentes regiões do Brasil. Os achados desse
trabalho demonstraram a existência do que o autor denominou de racismo cordial no
Brasil: existe, porém é negado ou disfarçado.
Portanto, um estudo centrado no racismo contra o negro, que englobasse o
percurso escolar de pessoas, até a conclusão do ciclo formal de estudos e os seus
percursos profissionais, como professoras do ensino de terceiro grau, tornou-se
imprescindível, pois poderia revelar sobre a ocorrência do fenômeno em diferentes
graus de ensino e na universidade, como local de trabalho. A presente pesquisa seguiu
essa trilha e será descrita em nove capítulos.
O primeiro capítulo, a introdução, versa sobre conceitos de racismo, de
preconceito de cor e de preconceito de raça; funções do racismo; mecanismos sociais e
psicossociais de subordinação racial; a unidade inclusão/exclusão social; a
categorização social e a opressão; o racismo como uma questão ética; o racismo como
modalidade de violência estrutural; os primeiros estudos realizados no Brasil sobre o
negro; saberes psicológicos empregados no ínicio do século XX para hierarquizar
negros e brancos e para orientar avaliações psicológicas; pesquisas recentes focadas na
temática do negro, empreendidas no âmbito da Psicologia brasileira; as desigualdades
raciais na universidade brasileira; o objetivo geral deste estudo e as questões a serem
respondidas.
O segundo capítulo aborda os enfoques científicos sobre o racismo no Brasil,
focalizando o racismo científico e o embranquecimento; a ideologia da democracia
racial brasileira; a estrutura econômica e social da escravidão como modelo para a
interpretação das relações raciais e os contextos específicos como explicação para a
manutenção das desigualdades raciais.
O terceiro capítulo enfoca o arcabouço teórico-metodológico que orientou este
estudo, focalizando aspectos epistemológicos; aspectos relativos ao pesquisador; os
conceitos de cultura; o significado e a narrativa como fundamentos teóricos ao método;
a interpretação, requisitos para a sua realização e a avaliação da pesquisa qualitativa.
O quarto capítulo trata do método empregado nesta pesquisa: a estratégia de
investigação empregada; a seleção e o número de casos estudados; a técnica e os
instrumentos utilizados na coleta de informações; os critérios empregados nos diversos
Evenice Santos Chaves O racismo na Trajetória Escolar e Profissional... 8
INTRODUÇÃO
atitudes, as quais, embora constituídas por conteúdos sociais, não são os únicos
determinantes de qualquer comportamento preconceituoso.
O preconceito é, antes de tudo, um fenômeno socialmente elaborado, que se
expressa em idéias culturalmente construídas, das quais se apropriam os seres humanos.
Essas idéias são constitutivas do processo de construção de suas subjetividades e dos
sentidos que dão significação às experiências sociais humanas. Devido à sua natureza
eminentemente social, o preconceito explicita a que quadro referencial de valores, de
mundo e de ser humano, cada pessoa adere (Cavalcante, 2004). Dessa forma, não
apenas as atitudes, mas outros processos sociais e psicológicos, como, por exemplo,
formas hegemônicas de se impor padrões em uma dada sociedade, ideologias que
circulam nos contextos sociais, escolhas e sentimentos, fazem parte do preconceito, o
que confere a essa categoria o lugar de um processo sócio-psicológico.
Conforme Fernandes (1965), o preconceito de cor é o conglomerado de fatores
estruturais, cognitivos e emocionais, que configura um padrão assimétrico de
relacionamento humano, explicitado em uma relação racial. Nessa perspectiva, observa-
se a delimitação do preconceito de cor como um fenômeno sócio-psicológico.
Guimarães (2004) cita que as pesquisas brasileiras realizadas até os anos 1960
não focalizavam o racismo, mas o preconceito de cor e o preconceito racial. Adita que a
introdução do termo foi realizada por Carlos Hasenbalg, no final da década de 1970.
Hasenbalg (1979) conceituou o racismo como uma elaboração ideológica, materializada
nas práticas sociais de discriminação racial. Quatro anos depois, ele reafirmou o racismo
como a expressão de práticas discriminatórias e de estereótipos culturais sobre ‘papéis
apropriados’ ao negro (Hasenbalg, 1983).
A despeito do refinamento conceitual que situa o racismo como uma elaboração
social e que envolve mais fatores que a idéia biológica de raça e preconceito, não há
unidade na conceituação do termo. Aqui, isso é considerado como salutar, do ponto de
vista científico, pois evidencia diferentes esforços na direção do entendimento das
diversas facetas que constituem o fenômeno.
Munanga (1998), por exemplo, cita que existem duas vertentes de conceituação
do racismo contra o negro. Na primeira, ele é compreendido como qualquer situação
conflituosa envolvendo pessoas e implica em desigualdade. Na segunda, entende-se o
racismo como uma ideologia vinculada à história da cultura ocidental do século XIX,
Evenice Santos Chaves O racismo na Trajetória Escolar e Profissional... 11
que utiliza argumentos biológicos para hierarquizar grupos humanos, tendo em vista a
relação de exploração de um sobre outro.
Guimarães (1999) enfoca quatro conceitos de racismo, veiculados na literatura:
são explicações empregadas por seres humanos para justificarem as suas preferências,
os privilégios e as desigualdades entre as pessoas; são atitudes discriminadoras e
preferências que levam ao tratamento diferencial dirigido a outras pessoas a quem se
inferioriza, a partir de suas características fenotípicas ou culturais; são manifestações
explicitadas por diferentes mecanismos, que mantêm a reprodução de desigualdades
sociais e econômicas entre grupos humanos; são características racializadas, usadas para
identificar grupos humanos que ocupam posições de desvantagem, nos planos político,
social e cultural.
Como se observa, as conceituações abrangem diversas dimensões do racismo:
concepção ideológica, atitudes, comportamentos, assimetria nas relações sociais e
desigualdades, porém, nos diversos conceitos, essas dimensões apresentam-se de modo
compartimentalizado. Então, perde-se de vista a abrangência do fenômeno, pois, em
cada uma das conceituações anteriormente descritas, alguma categoria constitutiva do
mesmo é privilegiada, em detrimento de outras.
Fenômeno social multifacetado, o racismo envolve a estrutura da sociedade, as
decisões políticas, os modos de vida social, os relacionamentos humanos assimétricos,
construídos e reconstruídos na cultura, os mecanismos sociais inerentes à sua
operatividade e processos psicológicos. Tal complexidade requer a consideração da
dimensão estrutural, relacional e psicológica do racismo, quando da conceituação do
termo. Contudo, dada a amplitude do fenômeno, os pesquisadores, ao realizarem seus
estudos, efetuam recortes, o que implica na produção de vários conceitos.
Retomando as diferentes conceituações apresentadas, concebe-se que todas
fazem parte do que socialmente é denominado de racismo e pode-se tentar superar a
suposta independência entre os conceitos a partir da compreensão do termo racismo
como um construto, conceituado por Mendonça (1988) como construções conceituais
abstratas, elaboradas a partir de outros conceitos. Evidentemente, os conceitos que
alicerçam um construto devem ser constitutivos do fenômeno que se objetiva
cientificamente significar.
Sem pretender o consenso ou esgotar o seu significado, situa-se o termo racismo
Evenice Santos Chaves O racismo na Trajetória Escolar e Profissional... 12
para que, sob a forma de guarda, os negros continuassem a proteger alguns de seus
algozes, o que implicou na continuidade das suas subjugações aos detentores do poder
econômico. Do ponto de vista social, os mecanismos de cerceamento à liberdade, assim
como as vias de difusão social de atributos condizentes com o lugar de inferioridade a
que foram obrigados a assumir, funcionaram como ancoragem para a formação cultural
de uma desqualificadora imagem psicológica do negro.
Por outro lado, a repressão à prática religiosa e ao ritual dos tambores contribuiu
para a associação entre o candomblé e o mal, ainda presente nas crenças de muitos
brasileiros, conforme se constata na vida cotidiana, onde muitos expressam esse ponto
de vista, relacionam tal culto a coisa de negro, desqualificando a religião e esse grupo
étnico.
Verifica-se, ainda, que a exclusão do acesso à escola foi politicamente planejada
e implementada, porquanto, após a abolição, os negros sequer tinham residência fixa. A
esse respeito, Aquino, Vieira, Agostino e Roedel (2002) revelam que as favelas no Rio
de Janeiro começaram a ser construídas pelos libertos, porque saíram da escravidão,
porém foram despejados nas ruas. Esses autores afirmam que o escravismo deixou
como marca a integração dos negros na pobreza.
Em suma, a assimetria nas relações sociais e os impedimentos legais, em função
da etnia e do lugar social ocupado, são característicos dos processos de inclusão
produtores de exclusão social, gerados e alimentados pela elite branca e pelo Estado.
Freire (1977), com muita propriedade, menciona que a constituição histórica da
sociedade brasileira traz, no seu bojo, a discriminação e a submissão da população,
desde os seus primórdios. O controle coercitivo, a violação de direito à expressão
cultural, a restrição ao ir e vir, a restrição ao acesso a bens e serviços, no mínimo,
necessários à sobrevivência sócio-psicológica, são marcos que atravessam um longo
período histórico da inclusão do negro na sociedade brasileira, que, para a sobrevida da
estrutura de privilégios para alguns, necessita manter a exclusão social de outros.
A ciência brasileira do final do século XIX colaborou com a ordem social que
desqualificava o grupo étnico negro e, muitos dos seus construtores, representantes da
elite econômica, elaboraram saberes, os quais foram empregados para justificar a
hierarquização e o controle sociais.
Os primeiros estudos brasileiros centrados no negro foram de autoria de Nina
Evenice Santos Chaves O racismo na Trajetória Escolar e Profissional... 20
2
A obra em questão é o livro denominado “As colectividades abnormais”, cujos conteúdos do primeiro
capítulo, intitulado “A abasia choreiforme epidemica no norte do Brasil”, refere-se a uma comunicação
proferida por Nina Rodrigues no 3º Congresso Médico Brasileiro, realizado na Bahia, em 15 de Outubro
de 1890. Os conteúdos do capítulo seguinte, denominado “A loucura epidêmica de Canudos”, foram
publicados em 1898, na França, nos Annales Médico-Pshychologiques, (maio-junho). Essas informações
estão contidas em Rodrigues (1939).
Evenice Santos Chaves O racismo na Trajetória Escolar e Profissional... 21
mas é pouco relevante, ou, ainda, que ele existe, é relevante e não tem sido privilegiado
como objeto de pesquisa. À primeira vista, a hipótese da pouca relevância pode ser
considerada como plausível, pois é consoante interpretar a relevância de um tema
tomando-se como critério as publicações disponíveis. Porém, isso significa banalizar o
fenômeno social do racismo contra o negro e aceitar, de forma até ingênua, que em
Psicologia só se pesquisa e publica o que é relevante, do ponto de vista das demandas
brasileiras. Então, uma outra questão decorre: por que a temática, presente no nosso
cotidiano, não tem sido privilegiada na agenda da pesquisa?
Retomando Ferreira (1999a), após constatar o número limitado de estudos, o
mesmo consultou um pesquisador, doutor em Psicologia, sobre possíveis razões que
justificassem a escassez de pesquisas centradas em pessoas que intitulou de afro-
descendentes. Ouviu do referido investigador que esse dado poderia ser tomado como
indicativo da inexistência de preconceito racial entre os psicólogos, todavia, ainda
assim, “a Psicologia estaria negando uma diferença que efetivamente existe nas pessoas
desta população” (p. 78). Ferreira, então, levantou outras hipóteses: 1) o reduzido
número de trabalhos científicos disponíveis pode evidenciar a falta de interesse do
pesquisador psicólogo para com a população de afro-descendentes e isso sugere que se
está construindo “uma Psicologia branca” (p. 79); 2) a raça e a origem étnica não são
consideradas como relevantes no estudo do ser humano.
O estudo de Ferreira, apesar de apresentar informações sobre os 12 trabalhos de
modo muito genérico, permitiu identificar que onze das investigações encontradas
contribuem para descortinar algumas questões referentes ao racismo no Brasil: a
constatação científica da sua existência frente ao afro-descendente; a negação da
presença do racismo nas relações sociais cotidianas pela criança negra e por adultos que
ocupavam diferentes lugares sociais; a ausência de relações racistas entre adolescentes
brancos e negros, portadores de deficiência mental; a presença de conteúdos racistas na
literatura juvenil e em propaganda veiculada na sociedade; o resgate da compreensão de
aspectos da cultura negra, presentes no cotidiano brasileiro e no nigeriano; o resgate da
identidade étnica a partir da inserção de afro-descendentes no movimento negro e
conseqüente enfrentamento às questões de discriminação na sociedade.
Todavia, um estudo identificado por Ferreira (1999a) apresentou como resultado
a concepção racista de que a criança negra é menos inteligente que a branca. Tal questão
Evenice Santos Chaves O racismo na Trajetória Escolar e Profissional... 24
3
CAPES = Coordenação de Aperfeiçoamento do Pessoal do Ensino Superior.
Evenice Santos Chaves O racismo na Trajetória Escolar e Profissional... 25
Interações 2002-2004 5 33
desejos, no mundo capitalista. Por fim, afirmaram que as duas propagandas analisadas
fortaleciam a autodiscriminação, por parte de membros dos grupos minoritários, através
da internalização de auto-imagens desvalorizadoras.
Como relevância desse estudo, menciona-se a análise de propagandas como uma
estratégia que revela a televisão, e a publicidade que nela circula, enquanto instrumentos
de colaboração ao processo de manutenção de ideologias que supervalorizam o grupo
étnico branco, o apresenta como modelo e, ainda, expõem as posições sociais
socialmente prescritas para o branco e para o negro, na nossa sociedade. Destarte, as
duas propagandas, além de serem fábricas de desejos de consumo, contribuem, através
da veiculação de duas formas de discriminação indireta, para a manutenção das
desigualdades sociais e raciais. No plano psicológico, os anúncios publicitários atuam
sobre o processo de construção de auto-imagens, compatibilizando-o com a valoração
social auferida à cor da pele e ao poder aquisitivo, posto que expõem a hierarquização
dos grupos étnicos como naturais e não como valores socialmente construídos e
mantidos pelas elites hegemônicas, que são brancas.
Em 2003, três artigos foram publicados: dois teóricos e um relativo a pesquisa
empírica. Os conteúdos dos mesmos serão explicitados a seguir.
Silva (2003) elaborou um artigo, focalizando o preconceito. Partindo da tese de
Luiz Mott de que Zumbi era homossexual, o autor denunciou que o movimento negro
não aceita a atribuição dessa opção sexual àquele herói negro. Em seguida, discorreu
que o homossexualismo nem sempre foi tratado com preconceito, exemplificando que
na Grécia antiga era até privilégio dos homens e, no século XVIII, a medicina
psiquiátrica foi a primeira a rotular a opção sexual por parceiros do mesmo sexo como
uma doença. Conforme o autor, pairam dois preconceitos sobre o negro homossexual,
os quais geram um duplo sofrimento nas pessoas que se encontram nessa condição. Por
fim, situou o preconceito que recaí sobre os grupos minoritários como uma questão
eminentemente ética, porquanto faz parte de uma intolerância para com as diferenças e
nega o lugar de iguais a qualquer outro, ou seja, a seres humanos que estão no mundo.
Apesar de singelo, esse artigo é importante porque revela a dimensão ética do
preconceito, bem como o preconceito entre negros que lutam contra as desigualdades
raciais. Clarifica, pois, que em cada grupo étnico e em cada um de seus membros, habita
algum tipo de preconceito, o que precisa ser enfrentado, porque, como já declarado por
Evenice Santos Chaves O racismo na Trajetória Escolar e Profissional... 33
manifesta. A apropriação dessa literatura, por parte Lima e Vala (2004a), seria
proveitosa, pois geraria uma revisão teórica sobre o racismo e o preconceito de cor no
Brasil. É pertinente ressalvar que a Psicologia brasileira ainda não construiu uma teoria
sobre o racismo.
Lima e Vala (2004b) estudaram o efeito da cor da pele na avaliação do sucesso e
do fracasso de negros e brancos, por parte de estudantes universitários brancos.
Coletaram dados com 78 estudantes brancos, do curso de Psicologia de uma
universidade particular, localizada em Aracajú, porém os autores informaram que
apenas foram analisados aqueles relativos a 71 participantes.
Empregaram-se três tipos de instrumentos, na coleta dos dados. O primeiro
continha um cenário que descrevia uma situação, onde um grupo de brasileiros obtinha
sucesso econômico e social, acompanhado de uma fotografia de três homens, brancos
ou pretos, que representavam o grupo de sucesso. O mesmo procedimento foi utilizado
em outro cenário apresentado, só que o mesmo reproduzia uma situação de fracasso. O
segundo instrumento constava de uma lista de traços, denominados pelos autores de
naturais e culturais e, dentre eles, os participantes deveriam atribuir aqueles traços que
julgassem representar o grupo de sucesso ou o de fracasso. O terceiro instrumento a ser
preenchido foi uma escala tipo Likert, onde os participantes deveriam indicar a cor da
pele dos três homens que viam na foto. Os pesquisadores ressaltaram que as fotos eram
das mesmas pessoas, manipulando-se a aparência e roupa.
Os resultados obtidos mostraram que não houve uma relação significativa entre a
cor da pele e a atribuição de traços. Destaca-se que na lista de traços, anteriormente
validada pelos pesquisadores, apenas o conjunto daqueles intitulados como positivos
diferenciou-se significativamente do conjunto dos intitulados como negativos.
Ao analisarem a relação entre cor da pele, características culturais e sucesso, os
resultados indicaram que os negros avaliados como pessoas de sucesso eram descritos
como branqueados, em termos de características culturais. Dito de outro modo, os
negros que obtiveram sucesso, vistos como embranquecidos, não foram avaliados a
partir de características naturalizadas.
Os autores concluíram que o racismo encoberto, dirigido ao negro, não mais se
expressa pela negação de características positivas e, conseqüentemente, pela atribuição
de traços naturalizados, porém pela atribuição de características culturais avaliadas
Evenice Santos Chaves O racismo na Trajetória Escolar e Profissional... 38
encontraria nos Estados Unidos, fundamentada na imaginação de que viajaria para lá, e
uma redação sobre o que encontraria nos países árabes/mulçumanos, calcada na
imaginação de que havia recebido uma viagem, como prêmio, para os referidos países.
Os instrumentos foram preenchidos individualmente, em uma situação coletiva.
Finda a análise qualitativa e quantitativa dos dados, os pesquisadores verificaram
que os estudantes brancos, morenos e negros representaram o Brasil e os Estados
Unidos mais favoravelmente. Em relação ao nosso país, os negros focalizaram temas
mais favoráveis que os autoclassificados como morenos e brancos, inclusive em termos
de desenvolvimento econômico. Nesse tema, os morenos e os brancos abordaram os
efeitos negativos desse desenvolvimento e os estudiosos interpretaram que isso sugere a
adoção do ponto de vista dos países mais desenvolvidos. Outro achado foi o de que os
negros expressam, em suas escolhas temáticas e atitudinais, vontade de manter uma
fronteira mais delineada entre grupos e, também, buscam reconhecer especificidades
positivas do Brasil e dos brasileiros. Os morenos, por sua vez, demonstraram
dificuldades de tender a se influenciar pelas opiniões, crenças e discursos do grupo mais
influente, que se supõe ser o branco. Esse dado é interpretado como indicativo de que o
moreno sofre intensas pressões, para se integrar na cultura do grupo branco.
Com relação à representação social dos Estados Unidos, a tendência da atitude
do negro foi positiva, frente aos movimentos sociais e aos direitos humanos, a do
moreno centrou-se na relevância atribuída ao tema indivíduo face às normas, enquanto a
do branco expressou uma atitude desfavorável frente a diversos aspectos daquela
sociedade, notadamente no que se refere ao que os autores intitulam de interações
interpessoais.
Relativamente aos países árabes/mulçumanos, as representações dos três grupos
étnicos foram similares em termos da cultura, de atitude favorável e de neutralidade.
Durandegui e Souza Filho (2004) concluíram que diferenças nas representações
e projetos de negros, morenos e brancos revelam dificuldades entre os grupos, porém
essas são abrandadas por discursos de conciliação e omissões.
O destaque dessa pesquisa está na busca de compreensão sobre a representação
do Brasil, pelos grupos constituídos por pessoas cromaticamente diferentes. Contudo, os
resultados exigem cautela, porquanto as tarefas que fundamentaram os dados foram
diferentes: a) falar sobre o próprio país, onde se concretizam as próprias experiências
Evenice Santos Chaves O racismo na Trajetória Escolar e Profissional... 40
sociais, para um amigo; b) imaginar que se vai fazer uma viagem a um país
desconhecido e explicitar expectativas sobre o que encontrará nele; c) imaginar que se
recebeu como prêmio uma viagem para uma variedade de países (árabes/mulçumanos) e
expor as expectativas sobre o que se vai encontrar nos mesmos. Esse limite, de natureza
metodológica, compromete a comparação entre os dados intra e interparticipantes e, por
implicação, os próprios resultados da pesquisa.
No ano de 2005, somente um artigo foi divulgado e o mesmo revela uma
novidade: a atuação da universidade, através da extensão, em ações de combate ao
racismo. Silva, Paiva e Miranda (2005) descreveram o processo de construção e de
atuação do Grupo de Inculturação Afrodescendente Raízes da Terra, na Cidade de São
João Del Rey, criado em 1995, por cinqüenta e dois integrantes.
Segundo os autores, o trabalho desenvolvido, nesse grupo, teve a duração de oito
anos e contou com a participação de estudantes estagiários. As intervenções realizadas
pelos extensionistas centraram-se em grupos operativos, com o emprego de recursos
metodológicos da pesquisa-ação e com o apoio da análise institucional. Os grupos
operativos visavam a re-construção da memória coletiva dos participantes sobre a
afrodescendência, o desenvolvimento da identidade étnica afrodescendente, como
também a elaboração e a implementação coletiva de ações sociais mobilizadoras, com o
intuito de re-significar aspectos da cultura negra e de ocupar diferentes espaços da
cidade, para expressá-los. As informações que fundamentaram o artigo foram obtidas
nos diários de campo de estagiários, na Ata de Registro Civil do Raízes da Terra e em
uma entrevista semi-estruturada, realizada com a coordenadora do referido grupo.
No decorrer dos oito anos, inicialmente verificou-se que o estigma que recaía
sobre o negro foi o ponto de identificação para a formação do grupo e, ainda, a base
para contestar-se a posição marginal. A unidade grupal forneceu referências para os
seus membros se fortalecerem e, em um dado momento, os participantes notaram que
assumiam uma posição preconceituosa e re-significaram os seus objetivos, buscando
parcerias. As parcerias empreendidas envolveram a Universidade Federal de São João
Del Rey, pessoas negras da comunidade, a Igreja Católica e um grupo de dança da
mesma cidade.
No plano psicológico, bem como na processualidade das atuações, emergiu uma
conscientização sobre os ganhos secundários que a condição de estigmatizados
Evenice Santos Chaves O racismo na Trajetória Escolar e Profissional... 41
total. Por outro lado, os brancos estão super representados, no que concerne ao acesso à
Pop Ing Pop Ing Pop Ing Pop Ing Pop Ing
Negra 79,2 42,6 75.1 42,8 22,4 8,6 38,2 20,3 53,6 32,3
Branca 20,2 50,8 24,8 47 76,2 86,5 61,7 76,8 45,9 63,7
apenas fragmentos, com alguns referentes ao ensino de primeiro e de segundo graus, por
parte de diferentes entrevistados. Também, com relação à trajetória profissional, as
informações contemplam: o ingresso na carreira docente; os postos ocupados; a
realização de mestrado e/ou doutorado; os locais de realização desses cursos, de modo
muito genérico, e publicações. Observa-se que não há descrições de como os
professores desenvolveram ou desenvolvem as suas atividades na universidade, o que
sugere duas questões: ou Ribeiro (2001) não empregou nem a técnica do depoimento,
nem da história de vida, ou não captou limites de uma ou de outra, quando da coleta de
informações. Ademais, a pesquisadora não tece considerações sobre a metodologia
empregada em seu estudo, quando das considerações finais.
Em quinto lugar, não há menção ao modo como as informações coletadas foram
transformadas em dados, nem alusão à organização dos mesmos. De outro modo,
descreveu informações fornecidas por entrevistados específicos, sem nenhuma
articulação entre as mesmas, o que se reflete na utilização do termo ‘a maioria’, quando
da exposição de resultados.
Em sexto lugar, há imprecisões e destaca-se, como exemplo: a afirmação de que
16 participantes atingiram o topo da carreira e as informações descritas, em um dos
capítulos da tese, especificam que apenas um docente é professor titular; a afirmação de
que não houve nenhum relato claro dos professores negros acerca de discriminação por
parte de colegas, quando, além das duas situações de conflito já expostas nos resultados,
há um relato de aprovação em concurso público e a não contratação da docente negra,
que, inclusive, procurou a reitoria para protestar e, ainda assim, foi preterida. Também,
há o relato de um professor que, ao esperar, com um aluno, outro docente desocupar
uma sala para ministrar a sua aula, foi ignorado pelo colega, o qual se dirigiu ao
estudante, como se ele fora o professor, pedindo desculpas por ter avançado no horário e
subtraído o seu tempo de aula.
As questões metodológicas apontadas fragilizam os resultados de Ribeiro (2001)
e mostram que algumas pesquisas qualitativas são empreendidas sem rigor, embora se
disponha de muitas obras científicas, cujos conteúdos fornecem suporte necessário para
a realização de um estudo qualitativo metodologicamente consistente.
Sumarizando, as construções científicas realizadas por Queiroz (2000), Teixeira
(2000) e Ribeiro (2001), bem como as análises efetuadas, mostram a relevância de
Evenice Santos Chaves O racismo na Trajetória Escolar e Profissional... 49
desiguais por natureza, dada às diferentes aptidões inatas que fazem de alguns
superiores e de outros inferiores.
De acordo com Schwarcz (2000), a partir das diferenças entre culturas e povos, o
darwinismo social bifurcou-se em dois enfoques: o determinismo geográfico, cuja
suposição básica era a de que o futuro de qualquer civilização vincula-se a fatores
geográficos como o solo, a vegetação, o clima e o vento; o determinismo racial, cuja
suposição básica era a de que um grupo racial, e cada um de seus indivíduos em
particular, constituía um agregado de elementos morais e físicos, inerentes à sua raça.
Esses determinismos detinham poder causal explicativo e, conforme Schwarcz
(2000), o estudo da relação entre as dimensões geográficas e as civilizações explicaria
como as condições geográficas determinam a qualidade de uma cultura. Por outro lado,
continua a autora, o caráter explicativo do determinismo racial fundamentou-se no
princípio de que as raças humanas configuravam produtos finais, eram representativas
de diferentes tipos humanos, e o mesmo permitia o entendimento de cada um dos seus
indivíduos, a partir do conjunto de características físicas e morais próprias da sua raça.
Tomando por base as formulações de autores como Banton (1977), Blanc
(1994), Darwin, (1871/1944), Niésturj (1972/1984), Rossato e Gesser (2001), Santos
(2002), Schwarcz (1983; 2000), Spencer (1862/1904) e Wieviorka (1995; 2002), pode-
se sintetizar o aporte teórico darwinista social da seguinte forma:
Em decorrência da ação de um processo seletivo produzido pela natureza, as
culturas e os povos apresentam-se em diferentes estágios de desenvolvimento, com o
branco europeu ocupando o topo da superioridade cultural e racial, manifestada na
condição civilizada da organização econômico-social, nos estilos de vida, nos valores
culturais, na aparência física, na inteligência, nos comportamentos, na moral, nos
costumes e na espiritualidade. As demais culturas e povos encontram-se em estágios
anteriores de desenvolvimento, conformando as inferiores e as raças selvagens, em
todos os aspectos constitutivos da condição humana. Os tipos biologicamente puros,
separados por uma distância evolutiva, ao cruzarem com os inferiores produzem a
aparição de um ser mestiço, social e racialmente degenerado.
A diversidade na conformação geográfica da terra produz distintas condições
climáticas, as quais influenciam qualitativamente no modo de ser das culturas e dos
povos. As diferentes culturas não vivem em harmonia, porque a competição é um
Evenice Santos Chaves O racismo na Trajetória Escolar e Profissional... 60
fenômeno natural, assim como a luta entre os povos e a sobrevivência dos mais
evoluídos, social e racialmente falando. Esse processo advém da própria natureza, que
opera no mundo e produz a sua divisão, verificada através dos diferentes estágios em
que se encontram as regiões geográficas e os povos, condições demarcadoras do mundo
civilizado e dos mundos selvagens.
Em síntese, o darwinismo social especifica a existência de tipos biologicamente
puros que conformam raças humanas; a existência de uma distância evolutiva entre elas;
a concepção de que o cruzamento entre as raças resulta em degeneração racial e social;
a suposição de um continuum de natureza evolutiva; a predominância, no
comportamento expresso pelo sujeito, das especificidades relativas ao seu grupo racial e
cultural; a divisão do mundo a partir da geografia, da raça e da cultura de uma dada
população.
No contexto do racismo científico, nenhum dos autores consultados até aqui
conceituaram o termo raça. Contudo, a partir das formulações já abordadas, infere-se
que raça significa um grupo humano enquanto variação dentro de uma espécie ou um
grupo humano constitutivo de uma dada espécie dentre várias, cujo genótipo e fenótipo
demarcam diferenças qualitativas dentro da mesma espécie ou entre espécies,
respectivamente.
Wieviorka (1995) salienta que o racismo científico foi bem aceito por grande
parte da população da Europa, apenas sendo questionado quando das atrocidades
nazistas cometidas com base no darwinismo social e, portanto, da aplicação de noções
pertinentes ao racismo científico. Santos (1998), no entanto, menciona que ainda
existem resquícios desse modelo em uma vertente de investigações, realizadas pela
antropologia física norte-americana e pela brasileira, visíveis nos estudos que buscam
identificar marcadores de “raça”, a partir de grupos sanguíneos. Para esse estudioso, tais
pesquisas têm pontos de convergência com tipologias classificatórias características do
paradigma do racismo científico.
O darwinismo social foi exportado para outros países, inclusive para o Brasil,
onde influenciou diversas produções científicas e a vida social, contastando-se que
resquícios de tal paradigma ainda se fazem presentes, por exemplo, nos sistemas
classificatórios de cor empregados para categorizar os membros da população em
diferentes classes, a partir de características fenotípicas, na concepção racista do negro
Evenice Santos Chaves O racismo na Trajetória Escolar e Profissional... 61
como inferior, que circula em nosso cotidiano, e nas práticas sociais racializadas. Essa
questão aparece com clareza na pesquisa de Guimarães (2000a).
nascidos no Brasil; a raça negra, constituída pelos africanos e a raça vermelha, formada
pelos selvagens indígenas.
A raça branca, também denominada de ariana, o tipo humano mais evoluído
física, moral e psiquicamente, já percorreu as etapas do processo evolutivo e situa-se no
ápice da pirâmide do desenvolvimento da humanidade. Por natureza, adapta-se melhor
às novas situações e, por serem superiores na cultura, no físico, no intelecto e na moral,
o próprio nível de evolução permite que avaliem as etapas de desenvolvimento porque
passam os outros grupos, assim como as pessoas que conformam os evolutivamente
inferiores, inclusive em termos de suas consciências morais.
As raças negra e indígena são inferiores no plano cultural, físico, psíquico e
moral, mas o indígena localiza-se no mais baixo patamar da pirâmide evolutiva. Por
outro lado, há uma especificidade característica da raça negra, que a diferencia das
demais: a sensualidade, manifestada em comportamentos próximos às perversões
sexuais mórbidas.
Rodrigues (1894) destaca o mestiço, híbrido, como central em suas teses raciais.
Argumenta que eles não conformam uma unidade antropológica e distribuem-se em
muitos grupos: mulatos de primeiro sangue; mulatos claros, com mais características da
raça branca; mulatos escuros, com mais características dos negros crioulos; mamelucos
ou caboclos, resultantes do cruzamento entre branco e índio, com alguns apresentando
mais características da raça branca; curibocas ou cafuzos, produtos do cruzamento entre
o negro e o índio e os pardos, resultado do cruzamento entre as três raças puras1.
Rodrigues (1894) descreve o mestiço como síntese de degenerações, pois essa
população misturada traz dos antepassados provenientes de raças inferiores, predicados
herdados. Contudo, o mestiço do cruzamento entre negro e branco, o mulato, que tende
a retornar a uma raça pura, branca ou negra, é superior aos demais, embora apresente
um desequilíbrio entre a inteligência, o afeto e a moralidade: quanto maior a
inteligência, menor o equilíbrio afetivo e menos possuidor de qualidades morais.
Na sua construção teórica, há uma ênfase especial à mulata. Rodrigues (1894) a
classifica como um tipo anormal, devido à sexualidade herdada do negro e manifestada
na luxúria, na volúpia, na magia, na faceirice, nos feitiços, nos dengos, nos quindins,
1
Apesar de ter organizado o sistema de classificação racial aqui apresentado, Rodrigues (1894) advertiu
que não existia um consenso entre os autores a respeito das categorizações tipológicas referentes aos
mestiços brasileiros.
Evenice Santos Chaves O racismo na Trajetória Escolar e Profissional... 65
2.1.3. O embranquecimento
Nogueira (1981) cita que a elite brasileira do final do século XIX comportava-se
segundo os padrões europeus e tinha a intenção de fazer do Brasil uma nação
europeizada, pois acreditava que “o estado atingido pela Europa era a meta a ser
buscada pela sociedade brasileira” (p. 187). Para o pensamento intelectual racista
daquela época, obviamente que as populações não brancas constituíam um impedimento
para o Brasil alcançar o topo do desenvolvimento evolutivo social. Nogueira (1981)
aponta Sílvio Romero (1851-1914), da Escola de Direito de Recife, como um
acadêmico, orientado pelo racismo científico, que se preocupou com a continuidade da
nossa sociedade.
Romero (citado por Nogueira, 1981) realizou um diagnóstico e classificou a
população brasileira em superior, constituída pela raça branca, e em inferior, constituída
pela raça negra e indígena, descrevendo o nosso povo como medíocre, devido aos seus
aspectos físicos, morais e à ausência de cultura. No prognóstico, vislumbrou uma
possibilidade de melhoria da raça brasileira, porque o fim do tráfico de africanos havia
estancado a presença de mais sangue negro no país. Além disso, enfatizou que a
imigração de europeus e a miscigenação do branco com o negro preservariam, no
acervo genético do mestiço, a superioridade da raça superior e a adaptação ao clima
inerente à inferior. Dessa mestiçagem, decorreria o embranquecimento da população
brasileira.
Seyferth (1998) também destacou o papel relevante desempenhado por Sílvio
Romero como um dos arquitetos intelectuais da ideologia do embranquecimento, ao
propor a inserção de imigrantes em todas as regiões do Brasil: a partir da miscigenação,
a superioridade da raça branca prevaleceria e daria lugar à emergência de um novo tipo
racial, ao tempo em que a própria seleção natural e a evolução social extinguiriam os
negros, os indígenas e os mestiços. Com tal argumentação, definiu o papel do imigrante
europeu enquanto contribuição à formação de um tipo racial brasileiro, que seria o
símbolo da unidade nacional.
Seyferth (1998) esclarece que as primeiras imigrações no Brasil ocorreram entre
1818 e 1850, com o objetivo de desenvolver no país um modelo agrícola de menor
escala, que competisse com os grandes latifúndios. Posteriormente, as imigrações foram
orientadas pelo objetivo de povoamento das terras no sul do país, em face das disputas
Evenice Santos Chaves O racismo na Trajetória Escolar e Profissional... 67
90
Pardos na População
80
70 63,53
60
50 43,97
40
30 41,4
20 21,23
14,65
e
10 14,63
0
1890 1940
Anos
3
Schwarcz (1998) informa que, em 1911, João Batista de Lacerda era diretor do Museu Nacional, teórico
do embranquecimento e defensor do ponto de vista de que o cruzamento das raças deveria ser realizado
de forma controlada, visando à garantia do embranquecimento da população brasileira.
Evenice Santos Chaves O racismo na Trajetória Escolar e Profissional... 69
100
Percentual da População
80
61
60 63,53 54,8 53,74
38,5 38,46
40
21,23
20 29,5
14,65
8,7 5,9 6,21
0
1940 1960 1980 2000
Anos
Legenda: Branco Preto Pardo
experiência social, sugere que no cenário brasileiro das relações afetivas entre o homem
e a mulher, parece existir um mundo para os brancos e um para os negros, embora o
paradigma do racismo científico tenha sido questionado desde a primeira metade do
século XX. Isso implica que as relações interpessoais são hierarquizadas a partir do
fenótipo e da etnia, mantendo-se a seletividade pela via do processo de socialização, no
ambiente familiar e, provavelmente, em outros contextos sociais.
Hasenbalg (1998a) interpreta que o ideal de embranquecimento configura uma
proposição racista, apresentada como solução harmonizadora para a lenta eliminação do
negro, porém a mesma não se concretizou, permanecendo no Brasil um continuum de
cor, referenciado por uma estética branca racista, a qual condiciona comportamentos e
atitudes dos não brancos e gera, no negro, a sua própria autonegação. Assim é que, no
século XX, o embranquecimento firmou-se culturalmente através da supervalorização
de padrões culturais, estéticos, de valores eurocêntricos e americanos e da imposição
dos mesmos a todas as camadas da população. Nesse cenário, o negro, para sobreviver
em um mundo brasileiro hegemonicamente branco, teve que incorporar a branquitude.
Conforme Bento (2002a), o embranquecimento colocou o branco como sujeito
representativo da humanidade e modelo universal da espécie humana. Mas, assegura a
pesquisadora, esse processo foi criado e é mantido pela elite branca nacional, a qual,
contraditoriamente, afirma que o branqueamento é uma questão do negro brasileiro. A
referida investigadora, então, coloca a questão do embranquecimento também como
uma questão branca, na medida que se omite ou se distorce o lugar ocupado pelo branco
na construção e manutenção das relações sociais racializadas, salientando que a
discriminação “é um dos primeiros sintomas da branquitude” (Bento, 2002a, p. 27).
Carone (2002) expõe que no século XIX a ideologia do embranquecimento
mudou de conotação: inicialmente consolidada como um projeto inerente aos medos, às
preocupações e às necessidades das elites brancas, transformou-se em um desejo negro
de embranquecer ou de obter os privilégios da branquitude. A autora indaga: “como é
que um problema explícito das elites brancas passou a ser interpretado ideologicamente
como um problema dos negros – o desejo de branquear?” (p. 17).
não branca na nossa nação. A pesquisadora assevera que esse mandatário elaborou uma
via de integração dos não brancos no mercado de trabalho, regulamentada pela Lei dos
2/3, de dezembro de 1930, a qual controlou a imigração de estrangeiros e regularizou a
inserção dos não brancos na esfera ocupacional. Ao lado da nova lei, expõe a estudiosa,
o governo exerceu grande controle policial sobre a população, inclusive proscrevendo,
no ano de 1938, a Frente Negra Nacional, fundada em 1931, em São Paulo.
Outro passo do governo Vargas foi o acolhimento da idéia de brasilidade na
política de integração nacional, atualizada na noção da mestiçagem como síntese do
encontro racial entre o branco, o negro e o índio (Damasceno, 2000). Os autores
consultados são unânimes em citar que, no mundo acadêmico, Gilberto Freyre foi o
formulador da ideologia da mestiçagem e da idéia de democracia racial brasileira,
escamoteadoras da existência do racismo no Brasil.
Santos (2002), em trabalho de dissertação de mestrado, menciona como eixos
que configuram o aporte teórico produzido por Gilberto Freyre a contraposição à idéia
biológica de raça, a noção do português como o benévolo colonizador do Brasil e o
mestiço como representante da sociedade brasileira.
De acordo com essa pesquisadora, Freyre assim teorizou: a partir do princípio
evolucionista de Lamarck de que as características produtoras de adaptação ao meio
ambiente são transmitidas a outras gerações, Freyre negou o papel da imutabilidade
natural das raças humanas e ressaltou a fusão de culturas nas terras colonizadas pelo
português. Esse, culturalmente mestiço, relacionou-se de forma amistosa com os
habitantes de regiões tropicais, inclusive sexualmente com negras e índias, produzindo
novas miscigenações entre diferentes raças. No contexto cultural, concretizou-se uma
amigável relação senhor-escravo, com o primeiro representando a brancura, a força, a
virilidade, a inteligência e o segundo, encarnando o negror, a sensualidade, a doçura, a
esperteza, a expansividade e a adaptabilidade ao trabalho agrícola.
Para Bento (2002a), a base da ideologia de democracia racial brasileira é a idéia
de que o relacionamento sexual entre o senhor e a mulher negra ou indígena eliminou o
preconceito, a discriminação racial e harmonizou as relações sociais. Guimarães
(2000b) argumenta que a ideologia da mestiçagem fundamentou-se na noção de que no
Brasil não existia raça, pois a população não era branca, nem negra, nem indígena,
porém formada por um povo mestiço, representativo da nação brasileira.
Evenice Santos Chaves O racismo na Trajetória Escolar e Profissional... 73
Outro aspecto que merece ser lembrado diz respeito à miscigenação, a qual decorreu da
ausência de mulheres brancas na colônia e da necessidade de povoamento das terras
brasileiras, como garantia de posse aos portugueses.
O enfoque de Paiva (2001) mascara a compreensão do lugar que o negro e o
mestiço ocupam na sociedade brasileira, perpetuando o mito da democracia racial. Para
Guimarães (2000b), a noção de mestiçagem, de que formamos um povo mestiço,
embota o entendimento da posição do negro e do índio no processo de participação
social: são aceitos apenas como pilares da brasilidade, mas, no plano cultural, os
brancos, europeu e americano, continuam sendo o referencial, os que possuem a
capacidade de produzir melhor civilização. Além disso, o autor diz que no plano
político as ofertas ao negro são apenas simbólicas.
Apesar da noção do mestiço como representante do povo brasileiro, pouco se
fala sobre o mesmo, no nosso contexto:
O silêncio revela talvez um misto de desprezo por aquele que não é puro (se isso existisse), mas
pertence, inclusive biologicamente, ao grupo dos legítimos brasileiros (se isso, também,
existisse) e de receio de estar se auto-criticando, expondo sua parcela “racial” híbrida. Há
séculos a visão e os discursos sobre os mestiços no Brasil se constroem de forma enviesada e
velada (Paiva, 2001, p. 47).
Sobre o silêncio que mantém o mito da democracia racial, Machado (2002)
analisou o papel da ideologia do embranquecimento e da mestiçagem no Fórum
Internacional de História e Cultura do Sul da Bahia. Denominado “Os Povos da
Formação do Brasil”, foi organizado por autoridades políticas da Bahia e acadêmicos e
realizado durante as comemorações pelos 500 anos da “descoberta do Brasil”, em 2000.
A análise empreendida pelo autor evidenciou que, nos desenhos de cartazes e
folders relativos ao evento, o branco veio em destaque, em primeiro lugar, seguido do
índio e do negro; nas sessões de comunicações, dentre os 15 trabalhos apresentados,
apenas 1 discutiu contribuições africanas; dentre as 10 palestras, apenas 1 abordou os
africanos; nas 2 mesas redondas, não houve nenhum trabalho centrado no negro; nas 5
sessões de painéis, apenas em 1 houve referência ao turismo cultural. Esse, segundo
Machado (2002), foi o lugar destinado ao negro e ao indígena, através de exibições de
aspectos de suas culturas de origem, em palcos instalados fora do espaço coberto onde
aconteceram os trabalhos.
O aludido pesquisador ressalta que o evento foi quase integralmente dedicado a
Evenice Santos Chaves O racismo na Trajetória Escolar e Profissional... 75
23,5
60,83
Empregadores Brancos
Empregado Branco
Empregadores Amarelos
Empregado Mulato 82,66
Empregadores Negros
Empregado Negro
Empregadores Mulatos
Empregado Amarelo
Fonte: Percentuais obtidos a partir de dados censitários relativos a 1950, produzidos pelo
IBGE e apresentados por Fernandes (1972).
a branca, evidencia que, em 1950, a democracia racial era um mito, pois os negros não
estavam integrados no mercado de trabalho do mesmo modo que os brancos. Nota-se
que na condição de empregadores, as desigualdades sociais e raciais eram gritantemente
visíveis.
É evidente que quanto menor a inserção do membro de um grupo étnico no
mercado de trabalho, menor a escolaridade daqueles que constituem o referido grupo.
Conforme os dados censitários de 1950, os pretos e os pardos estavam quase que
totalmente excluídos da escolarização formal, o que pode ser visualizado na Figura 4.
Segundo Castro (1998), a partir dos resultados das pesquisas fundamentadas em
dados censitários de 1950, interpretou-se que o negro não estava integrado na sociedade
de classes e, naquele momento de transição entre o modelo agrário de inspiração
escravocrata e o capitalismo industrial, o preconceito e a discriminação eram resquícios
das relações sociais escravistas.
Fernandes (1972), articulador do citado referencial interpretativo, atribuiu o
preconceito e a discriminação racial às formas de relacionamento dispensadas pelo
senhor ao escravo, nas quais ele era considerado como um subalterno. Ainda aditou que
essa assimetria construiu um padrão cultural de relações sociais calcado na orientação
racial e em atitudes desfavoráveis do branco para com os negros e os mulatos. Concluiu
que o preconceito racial, instalado pela organização social escravista definiu linguagens,
comportamentos, vestuários, ocupações, direitos e obrigações para os cativos e, como
Evenice Santos Chaves O racismo na Trajetória Escolar e Profissional... 78
100
Percentual
Elementar (%)
50 Médio (%)
Superior (%)
0,07
0,06
4,3
3,6
2,5
0,1
1,8
0,6
1,5
0,5
0,2
0,4
0
Brancos Pardos Negros Amarelos Sem
Declaração
Fonte: Percentuais obtidos a partir de dados censitários relativos a 1950, produzidos pelo IBGE e
apresentados por Fernandes (1972).
O CAMINHO TEÓRICO-METODOLÓGICO
3.1. O pesquisador
Denzin e Lincoln (2000) expõem que um pesquisador está localizado na história,
a qual orienta e restringe qualquer investigação, e compartilha visões de mundo, aportes
teóricos e metodológicos com uma comunidade científica, a qual possui uma tradição na
realização de pesquisas orientadas por uma determinada perspectiva.
Do ponto de vista ontológico, o pesquisador, como qualquer outro ser humano,
caracteriza-se como ser socialmente construído: localiza-se numa cultura que o constitui
e é por ele constituída; convive com outros em um eterno processo de relacionamentos
sociais, os quais, juntamente com as especificidades culturais situadas na história social
e pessoal, possibilitam-lhe construir e reconstruir a sua concepção sobre o que vem a ser
Evenice Santos Chaves O racismo na Trajetória Escolar e Profissional... 84
3.3. A cultura
Guareschi e cols. (2003) enfatizam que o conceito de cultura é um dos mais
relevantes nos Estudos Culturais. Para Amsterdam e Bruner (2002), falar sobre o que é
cultura remete à Antropologia e esses pesquisadores salientam que os antropólogos,
contemporaneamente, questionam as suas próprias competências sobre como definir
cultura, explanar como a conhecemos, como ela deve ser pensada e qual o seu papel na
vida cotidiana das pessoas. Ainda afirmam que tudo isso decorre da tensão de duas
compreensões antropológicas sobre a cultura.
Um entendimento considera a cultura como exterior a seus membros, refere-se a
tudo que precede a existência das pessoas e modela o processo de conscientização do
ser humano que nasce em uma sociedade, num dado tempo e momento. A segunda
entende a cultura como intrínseca a seus membros, pois são eles que negociam
conjuntamente o significado de suas vidas públicas (Amsterdam e Bruner, 2002).
De acordo com esses pesquisadores, da primeira concepção resulta o enfoque
antropológico sócio-institucional, para o qual a cultura é um conjunto de arranjos
construídos, visando a garantir a manutenção da vida. Tais arranjos se expressam em
regras sobre os fatos da existência, consolidada em um sistema de trocas e nos métodos
de resolução de conflitos, pouco modificáveis. Na segunda concepção, tem-se o enfoque
interpretativo-construtivista, que compreende a cultura como os sistemas construídos
pelos humanos em interação, para a aquisição de significados comuns que permitam a
negociação.
Amsterdam e Bruner (2002) questionam a noção de que os fatos falam por si só
e argumentam que eles surgem de narrativas e, portanto, derivam da base interpretativa
do sujeito, ser de relação. Ademais, destacam que a partir da compartilhada atividade
Evenice Santos Chaves O racismo na Trajetória Escolar e Profissional... 88
3.5. A narrativa
Entende-se a narrativa, uma modalidade de discurso, como histórias elaboradas e
relatadas por uma pessoa, a qual, direta ou indiretamente, esteve ou está envolvida em
acontecimentos e ações que se desenrolaram, ou se desenrolam, em diferentes espaços
do mundo social e em diversos tempos socialmente construídos.
Brockeimer (2000) assegura que, em uma perspectiva cultural, as narrativas de
vida são eventos culturais, construídos e re-construídos de acordo com os contextos de
elaboração e, ainda, com as convenções inerentes à cultura e aos grupos culturais, nas
quais o narrador está inserido. Ademais, afirma que apesar dessas especificidades, cada
pessoa atribui uma significação pessoal aos acontecimentos que perpassam a sua vida.
Desse modo, salienta-se que a re-construção de aspectos de uma história de vida,
Evenice Santos Chaves O racismo na Trajetória Escolar e Profissional... 91
integral das falas gravadas e, posteriormente, a sua conferência. Adita-se que as falas
transcritas ainda constituem informações.
Denzin e Lincoln (2000) enfatizam que, após a transcrição, o texto deve ser
editado como uma unidade significativa, visando ao posterior trabalho interpretativo.
Ferreira (1999b) destaca a edição de uma entrevista como favorecedora da compreensão
do leitor e da análise, assinalando que, nesse processo, o pesquisador deve manter os
conteúdos das falas e a seqüencialidade na qual foram relatadas.
Quando da edição, outro importante aspecto a ser considerado é a garantia do
anonimato do narrador, a troca de nomes das pessoas citadas na narrativa, de
instituições e das atividades de trabalho dos personagens que fizeram parte da história
construída. Com a edição, as informações passam por um tratamento e se transformam
em dados.
Já na década de 1980, Runyan (1984) abordou a análise das narrativas de vida,
sugerindo que o pesquisador inicialmente deve refletir sobre os conteúdos narrados,
buscando identificar os tópicos relativos às especificidades do narrador, às ações, às
experiências relatadas, aos detalhes referentes ao ambiente, ao contexto histórico, à
influência da história social na trajetória de vida do narrador e aos demais conteúdos
que, porventura, constituam outros tópicos. Em seguida, o pesquisador deve refletir
sobre as relações entre os conteúdos e os objetivos da pesquisa.
Observa-se que a sugestão de Runyan, ainda que muito genérica, aponta para a
classificação dos conteúdos relatados, procedimento que gera a organização do material
verbal em temas, tradicionalmente denominados de categorias. Ryan e Bernard (2003)
salientam que sem a identificação de categorias temáticas, um pesquisador qualitativo
não terá, na sua investigação, dados para descrever, para comparar e para explicar. Em
suma, pode-se dizer que não poderá realizar uma interpretação científica.
Com relação à análise dos conteúdos de uma narrativa, Ryan e Bernard (2003)
citam que a análise de textos narrativos requer a identificação de temas e sub-temas; a
classificação de conteúdos identificados em temas e sub-temas; a tomada de decisão a
respeito de quais dos temas identificados são relevantes para os objetivos da pesquisa e
a vinculação dos temas às orientações teóricas que fundamentam a análise.
Os temas, forma de classificar conteúdos, são concebidos por Ryan e Bernard
(2003) como construtos abstratos que relacionam expressões contidas em um texto,
Evenice Santos Chaves O racismo na Trajetória Escolar e Profissional... 95
pesquisa diz respeito a divergências que resultados obtidos apontam com relação a
expectativas teóricas do pesquisador ou a algum ponto de vista do denominado senso
comum. Para Gaskell e Bauer (2003), esse critério evita que o estudioso empregue nas
interpretações apenas evidências seletivas, compatíveis com suas expectativas, e
introduz, como tarefa, a realização de uma discussão sobre a confirmação ou não de
expectativas teóricas ou do senso comum, o que contribui para a construção teórica.
Priorizando os referenciais teórico-metodológicos descritos; considerando que a
função comunicativa da linguagem permite que os participantes/informantes organizem
suas falas em narrativas, via de expressão das suas experiências de vida e interpretações
sobre acontecimentos; considerando o que cada participante/informante selecionou
como significativo no momento das interações com a pesquisadora e no momento de
reflexividade exigidos durante todo o processo de coleta das informações, construiu-se
um método para nortear o presente estudo, o qual destaca a processualidade da vida de
cada participante/informante e as significações que atribuíram às ocorrências passíveis
de análise e de inteligibilidade científica, dada:
• A competência humana em elaborar uma compreensão sobre as próprias
experiências e os fenômenos sociais.
• A competência humana em criar significados para os fenômenos sociais e para
as suas experiências.
• A competência humana em empregar a linguagem e, através da narrativa, relatar
sobre aspectos de sua vida, a partir do que selecionou como significativo em um
momento específico.
• A existência de recursos metodológicos que permitem transformar práticas
discursivas sobre eventos e acontecimentos da vida cotidiana em conhecimento
científico.
Desse modo, o relato verbal como forma simbólica que expressa um conjunto de
conteúdos perpassados por significações sociais, veiculadas e atualizadas na cultura, foi
foco de análise, objetivando revelar processos sociais e psicológicos produtores de um
entendimento sobre o racismo contra o negro.
CAPÍTULO 4
MÉTODO
4.4. As participantes/informantes
A partir dos critérios acima descritos, três mulheres compuseram o universo da
pesquisa: uma, definida socialmente como parda, apresentando, como características
fenotípicas, pele marrom escura, cabelos crespos e negros, lábios e nariz volumosos;
outra, socialmente definida como branca, apresentando, como características
fenotípicas, pele alva, cabelos lisos e negros, nariz afilado e lábios finos; a terceira,
socialmente definida como preta, apresentando, como características fenotípicas, pele
negra, cabelos encarapinhados, nariz achatado e lábios grossos. Desse modo, as
participantes/informantes representaram tipos polares brasileiros: branco e negro (preto
e pardo).
1
O nome atribuído a cada participante/informante é fictício.
Evenice Santos Chaves O racismo na Trajetória Escolar e Profissional... 107
2
Na articulação desse método, contribuições de autores como Ryan e Bernard (2003), Runyan (1984) e
Smith (2002) foram imprescindíveis.
Evenice Santos Chaves O racismo na Trajetória Escolar e Profissional... 109
‘O racismo no Brasil...’.
‘O racismo na cidade onde resido...’.
‘O racismo no bairro onde resido...’.
Intitulou-se a segunda categoria de “o racismo contra o negro em instituições
sociais”, a qual agrupou os conteúdos aditados pelas participantes/informantes aos itens
abaixo especificados:
‘O racismo na minha família de origem...’.
‘O racismo na família que constituí...’.
‘O racismo nas escolas que freqüentei...’.
‘O racismo na universidade...’.
‘O racismo no local onde trabalho...’.
Denominou-se “o racismo como fenômeno relacional” à terceira categoria,
agrupando-se na mesma os conteúdos acrescentados pelas participantes/informantes aos
itens a seguir:
‘O racismo nas relações sociais em geral...’.
‘O racismo na minha vida...’.
‘O racismo é...’.
Conteúdos escritos em cada item, que poderiam compor mais de uma frase,
foram decompostos em frases.
Os dados foram analisados de acordo com o procedimento empregado na análise
daqueles decorrentes da entrevista narrativa.
Circunstâncias
Deslocamento
Momento da infância
Moradia
Meio social
Momento da infância
Momento da infância/momento da juventude
Situação social
Adolescência
Sem especificação temporal
Momento da adolescência/juventude
Infância/momento da juventude
Infância/momento da idade adulta
Avô materno
Avó materna
Mãe
Avô materno
Momento da infância
Momento da infância/sem especificação temporal
Avó materna
Momento da infância
Mãe
Perdas
Momento da juventude
Momento da idade adulta
Idade adulta
Reconstruções familiares
Mudança de residência
Percurso escolar
Momentos da infância
Adolescência
Juventude
Idade adulta
Rotinas escolares
Momentos da infância
Atividade predileta
Adolescência/juventude
Contribuições escolares
Momento da infância
Momento da adolescência
Idade adulta
Momento da infância
Juventude
Desempenho acadêmico
Momentos da infância
Juventude
Adolescência/juventude
Momento da idade adulta
Escolhas
Interesses
Tema
Informal
Momentos da adolescência
Formal
Momento da adolescência/juventude
Idade adulta
Subsídios
Histórico do Departamento T
Idade adulta
1
GTI é uma sigla empregada na referência ao Grupo de Trabalho Interministerial.
Evenice Santos Chaves O racismo na Trajetória Escolar e Profissional... 122
idade adulta.
‘Jornada de trabalho’ constitui-se de um, concernente à etapa relativa às
atividades diárias de labor da participante/informante, desde o período da juventude até
a sua idade adulta.
‘Atividades atuais’ é constituída por um que faz menção aos trabalhos
desenvolvidos pela entrevistada, durante a coleta de informações, por conseguinte, em
um momento da sua idade adulta, e por um pertinente ao seu engajamento no trabalho,
nesse mesmo momento.
Afazeres
Formação do GTI
Desistências
Momento da adolescência
Momentos da adolescência
Juventude
Momentos da adolescência
Momentos da idade adulta
Engajamento
Idade adulta
Convívio familiar
Momentos da infância
Adolescência
Momento da infância/adolescência
Momento da idade adulta
Amizades
Idade adulta
Apoio Social
Infância
Infância/adolescência
Vizinhos
A categoria “amizades” engloba sete episódios que dizem respeito aos amigos
da participante/informante, na sua idade adulta.
A categoria “apoio social” agrupa cinco subcategorias, incluindo vinte
episódios, abaixo apresentados:
‘Membros da família de origem’ agrupa um sobre o apoio fornecido à
Evenice Santos Chaves O racismo na Trajetória Escolar e Profissional... 127
entrevistada pelo avô materno, durante a sua infância, e quatro, explicitando os cuidados
dispensados pela avó materna à sua saúde, durante sua infância e adolescência.
‘Vizinhos’ abrange sete, relacionados ao suporte social fornecido por uma
vizinha, em situações nas quais a participante/informante realizava a sua matrícula
escolar, de um momento da infância a momentos da adolescência, e um, que inclui o
convite para trabalhar, feito por outra vizinha, em um momento da sua adolescência.
‘Colegas’, constituída por três, que dizem respeito a tipos de suporte social
dispensados por colegas à entrevistada, em um momento da sua adolescência.
‘Família construída’ engloba três, cujos conteúdos enfatizam a família atual da
participante/informante como um ponto de apoio, na sua idade adulta.
‘Movimento social’ congrega um, referente ao movimento negro enquanto
suporte social para a entrevistada, em sua idade adulta.
Dificuldades sociais
Infância/juventude
Momentos juventude
Habilidades pessoais
Momentos da infância
Adolescência
Infância/adolescência
Juventude
Momento da infância/idade adulta
Divertimento
Idade adulta
Invisibilidade
Mascaramento
Ocultação
Dissimulação
Ambivalência
Momento da infância
Perplexidade
Momento da infância
Conscientização
Momento da infância
Visibilidade
Discriminação racial
Indiferença
Momentos da infância
Idade adulta
Inferiorização
Momento da infância
Momentos da idade adulta
Idade adulta
Aparência
Momentos da juventude
Momento da idade adulta
Embranquecimento
Momentos da juventude
LEGENDA:
Negritude
Tema
Momento da infância/idade adulta
Aprendizagens
Categoria
Luta
Fuga
idade adulta.
Figura 16. O tema pessoalidade, as categorias auto-atribuição de características,
enfermidade, subcategorias e marcadores temporais.
PESSOALIDADE
Auto-atribuição de características
Valorizadora LEGENDA:
Momento da adolescência
Tema
Facilitadora
Categoria
Idade adulta
Subcategoria
Limitadora
Enfermidade
Infância/adolescência
Preferências
Adolescência
Idade adulta
Avaliações
Sociedade brasileira
Ascensão social
Posição Social
Atividade docente
Desempenho profissional
Curso de graduação
Racismo
Preconceito racial
Movimento negro
Relações interpessoais
Momento atual
Projetos
Moradias
Infância/momentos da adolescência
Juventude
Meio social
Infância/momento da adolescência
Ciclo de vida á vivido
Situação social
Infância/momento da adolescência
Avó paterna
LEGENDA:
Sem especificação temporal
Tema
Pai
Categoria
Sem especificação temporal
Irmãos Subcategoria
Mãe
Infância/momento da adolescência
Pai
Infância/momento da adolescência
Fonte: Entrevista narrativa realizada com a participante/informante parda.
outro, aludindo ao sexo das crianças com quem conviveu. Um, entre a infância e um
momento da adolescência, especifica tarefas não delegadas à participante/informante.
Oito, localizáveis em momentos da sua adolescência, focalizam alterações na vida dos
membros da família, após o falecimento da mãe. Por fim, dez, situados em sua
juventude, são relacionados às mudanças no seu convívio com membros da família.
Figura 21. O tema família, as categorias estilo de vida na família de origem, realização
de tarefas, perdas, reconstruções familiares, subcategorias e marcadores temporais.
FAMÍLIA
Maneira de viver
Infância
Infância/momento da adolescência
Momentos da adolescência
Juventude
Práticas educativas
Infância/adolescência
Momento da adolescência/juventude
Juventude
Realização de tarefas
Momentos da adolescência
Perdas
Momento da adolescência
Momento da idade adulta
Reconstruções familiares
Adolescência
Constituição de família
Tipo de escola
Momento da infância
Adolescência
Ciclo de vida já vivido
Percurso escolar
Infância
Adolescência
Juventude
Momentos da idade adulta
Desempenho acadêmico
Indicação
LEGENDA:
Momento da idade adulta
Infância
Momento da juventude
Sem especificação temporal
Escolha
Momento da adolescência
abrangem o seu ciclo de vida já vivido, são concernentes à natureza das escolas onde ela
e os seus irmãos estudaram.
“Percurso escolar” agrupa quatro subcategorias e engloba vinte e quatro
episódios.
‘Transcurso no ensino primário’ encerra três, referentes às escolas onde ela
estudou e dois à tarefa de alfabetizadora, exercida por sua mãe, todos situados na
infância da participante/informante.
‘Transcurso no ensino secundário’ conecta cinco, relativos às escolas que
freqüentou, durante a sua adolescência.
‘Transcurso no ensino superior’ é composta por um que aponta o ingresso da
entrevistada na universidade, em sobre a minimização de um sentimento e um, que
aborda sua justificativa para tal. Todos se situam na juventude.
‘Transcurso no ensino de pós-graduação inclui três, que explicitam seus
movimentos para realizar o mestrado e seis, as suas ações para inserir-se no doutorado.
Todos se localizam em momentos da sua idade adulta.
“Desempenho acadêmico” reúne episódios situados em momentos da idade
adulta da entrevistada: quatro centram-se no período em que cursou o mestrado, com
três especificando suas atuações como estudante, um focaliza seus sentimentos em sala
de aula; treze concentram-se no doutorado, com um expressando seu sentimento frente à
aprovação e doze relacionando-se a atuações da mesma como discente.
“Inserção em órgão colegiado” é constituída por quatro subcategorias,
contendo onze episódios, todos localizados em um momento da idade adulta da
participante/informante.
‘Indicação’ aglutina dois, atinentes à sua designação para candidatar-se a
representante discente, por parte de alguns colegas.
‘Disputa em eleição para representante discente’ agrupa um sobre a eleição;
um sobre a competição entre candidatas; um sobre o pensamento de uma docente acerca
da sua candidatura e um se refere à eleição da entrevistada.
‘Atuação como representante discente’ conecta dois, que ressaltam suas ações
no exercício do cargo.
‘Desistência do papel de representante discente’ inclui três, que explicitam a
recusa da participante/informante em candidatar-se ao mesmo cargo, para concorrer a
Evenice Santos Chaves O racismo na Trajetória Escolar e Profissional... 144
um segundo mandato.
“Questionamentos à competência pessoal” compõe-se de nove episódios,
alusivos a desqualificações dirigidas a uma realização acadêmica da entrevistada e por
dois que fazem menção a ações do seu professor orientador, frente às mesmas. Todos
ocorreram em um momento da sua idade adulta.
“Incentivos na trajetória escolar” inclui nove episódios situados na infância da
entrevistada: três dizem respeito a condições construídas por seu pai, objetivando o
engajamento dos filhos nos estudos; seis são atinentes a atuações da mãe, tendo em vista
incitar o envolvimento dos filhos nos estudos. Dois, localizados em um momento da sua
juventude, são relativos ao seu envolvimento nos estudos, devido à condição de
monitora e de bolsista, e três, sem especificação temporal, mencionam comportamentos
do pai que fortaleciam o interesse da participante/informante pelos estudos.
“Escolha” atrela episódios, situados em um momento da sua adolescência: um
assinala a indecisão da entrevistada frente à escolha do curso de graduação e seis
abordam os motivos que a influenciou.
Atividade informal
Atividade formal
Infância/momento da adolescência
Momentos da adolescência
Juventude
Momentos da idade adulta
Momento da adolescência/juventude
Momento da adolescência
Juventude
Momentos da idade adulta
Conduta sedutora
LEGENDA:
Momento da adolescência
Tema
Namorados
Categoria
Momento da adolescência
Juventude
Momentos da idade adulta Subcategoria
Amizades
Adolescência
Juventude
Infância/juventude
Momentos da idade adulta
Adolescência/momento da idade adulta
Juventude/idade adulta
Apoio social
0
Membros da família de origem
Momento da adolescência
Juventude
Momentos da idade adulta
Parentes
Infância
Adolescência
Vizinhos
Infância
Amigas
Colegas
LEGENDA:
Momento da juventude
Juventude Tema
Momentos da idade adulta
Namorados Categoria
Dificuldades sociais
Infância
Momentos da adolescência
Juventude
Dificuldades pessoais
Adolescência
Momentos da idade adulta
dois abordam um conflito de papéis frente a grupos com os quais poderia estabelecer
vínculos de amizades, durante a realização do mestrado, um alude ao quão foi difícil
demonstrar que tinha capacidade, durante o curso de mestrado; um é concernente à sua
insegurança como docente, quando começou a ministrar aulas na Universidade X, e um
faz referência ao seu comportamento de estudar com os alunos.
Subsídios sociais
Infância
Juventude Fonte: Percentuais
Momento da idade adulta
obtidos a partir de
Habilidades pessoais
dados censitários
Momentos da idade adulta produzidos pelo
Fonte: Entrevista narrativa realizada com a participante/informante parda.
LEGENDA: Tema Categorias Marcador temporal
momento da sua adolescência, com nove assinalando brincadeiras das quais participou,
dois abordando passeios que realizava, um expondo que poucas meninas residiam em
sua rua, um ressaltando que raramente brincava com elas, um especificando o espaço
para o lazer na sua casa e um expondo o partilhar desse com os meninos; três, situados
em momentos da sua adolescência, tendo-se que dois aludem aos entretenimentos
compartilhados no lar com os irmãos e um assinala a diversão partilhada com colegas
do cursinho; três, situados na sua juventude, abordam as atividades sociais que realizava
com o namorado; sete, ocorridos em momentos da sua idade adulta, com dois enfocando
passeios efetuados na Cidade B, três enfatizando a presença de uma colega da Cidade A
no seu grupo de diversão, um aludindo a um dado passeio propiciado por essa colega e
um abordando um tipo de diversão partilhado com o grupo de colegas, também amigos.
Divertimentos
Infância/momento da adolescência
Momentos da adolescência
Momentos da juventude
Momentos da idade adulta
Invisibilidade
Mascaramento
Juventude
Momento da idade adulta
Discriminação étnica
Inferiorização
LEGENDA:
Infância/adolescência
Adolescência
Tema
Segregação
Categoria
Adolescência
Momento da idade adulta
Ciclo de vida já vivido
Subcategoria
Luta
Momento da adolescência
Momentos da idade adulta
Fuga
Momento da adolescência
Momentos da idade adulta
Auto-atribuição de características
Valorizadora
Aspirações
Avaliações
Condição econômica
Meio social
Meio universitário
Universidade
Trajetória escolar
Trabalho
Desempenho profissional
Racismo
Origem étnica
Vizinhos
Professores
Companheiros
Pessoas LEGENDA:
Momento da idade adulta
Tema
Características pessoais
Categoria
Momento da idade adulta
Subcategoria
Estilo de vida na trajetória profissional
Moradia
Infância
Situação social
Infância/juventude
Infância
Infância/adolescência
Infância/momento da idade adulta
Infância
Momento da adolescência
Maneira de viver
Infância
Adolescência
Infãncia/juventude
Ciclo de vida já vivido
Práticas educativas
Momento da infância
Infância/juventude
Realizaçãs de tarefas
Infância/adolescência
Reconstruções familiares
referente ao fato da sua mãe confeccionar as roupas dos filhos, durante a infância da
participante/informante, e dois, situados em um momento da sua adolescência, relativos
à atividade de costureira que sua genitora desempenhou.
A categoria “estilo de vida na família de origem” abrange três subcategorias
que abrangem vinte e cinco episódios.
‘Maneira de viver’ engloba três, situados na infância da participante/informante,
alusivos a um cuidado dispensado pela mãe à saúde dos filhos; sete concentrados na sua
adolescência, sendo um atinente à ausência de participação da entrevistada em festas,
um, à permanência de sua progenitora no lar, um, ao comportamento do seu pai de não
prestar informações, um, à ausência do seu genitor no ambiente doméstico e três à
intermediação da mãe da participante/informante entre a mesma e o seu progenitor; um,
que se estende da sua infãncia à juventude, o qual assinala brigas entre o pai e a mãe;
oito, situados na idade adulta da entrevistada, com um aludindo à intermediação de uma
cunhada nas suas negociações com um irmão, dois abarcando o lugar da sua mãe como
ponto de aglutinação dos membros da família, um mencionando a figura materna
enquanto pólo de segurança para os filhos, um referente à figura do pai como uma
pessoa ausente, um relativo à inexistência do sentimento de união entre os irmãos e dois
concernentes à qualidade de cumprimentos entre os membros da família, em duas festas
eminentemente familiares, e um último, que ressalta a ausência de manifestação de atos
carinhosos do seu genitor para com os filhos, em todo o ciclo de vida já vivido pela
participante/informante.
‘Práticas educativas’ engloba um, versando sobre a insistência da mãe para que
os filhos fizessem a primeira comunhão, em um momento da infância da entrevistada,
dois, localizados entre a sua infância e a juventude, sendo um referente à valorização do
estudo, por parte de sua mãe, e outro que ressalta a não priorização dos estudos, pelo
seu pai.
‘Realização de tarefas’ abrange três, atinentes a atividades realizadas no lar
pelas pearticipante/informante, da infância à adolescência.
“Reconstruções familiares” conecta cinco subcategorias, com nove episódios,
situados em momentos da idade adulta da entrevistada.
‘Constituição da casa própria’ aglutina dois alusivos ao passar a residir sozinha
e um à comunicação dirigida à sua mãe sobre a decisão de mudar-se da casa dos pais.
Evenice Santos Chaves O racismo na Trajetória Escolar e Profissional... 163
Tipos de escola
Infância
Adolescência
Ciclo de vida já vivido
Percurso escolar
Infância
Momento da adolescência
LEGENDA:
Transcurso no ensino médio
Tema
Momentos da adolescência
Categoria
Transcurso no ensino superior
Subcategoria
Juventude
Desempenho acadêmico
Infância
Adolescência
Infância/idade adulta
Infância
Rotinas escolares
Momentos da infância
Momentos da adolescência
Infância
Escolha
Momento da adolescência
diz respeito à sua condição de melhor aluna na classe; dois, localizados na sua
adolescência, com um relativo ao destaque que lhe era conferido, nas escolas, pelo fato
de ser estudiosa e dois relativos ao seu comportamento de estudar; um, temporalmente
situado da infância à idade adulta, alusivo às ressalvas dos professores sobre suas boas
notas, durante o seu percurso escolar.
“Escolhas” agrega seis episódios, localizados em um momento da adolescência
da entrevistada, sobre os fatores que influenciaram na escolha de um determinado curso
de graduação.
Atividade informal
Momento da adolescência
Juventude
Atividade formal
Convívio familiar
Infância
Idade adulta
Infância
Adolescência
Juventude
Momentos da idade adulta
Momentos da juventude
Namorados
Juventude
Momento da idade adulta
Marido
Momento da adolescência
Amizades
Infância
Adolescência
Juventude
Idade adulta
Apoio social
Infância
Momentos da adolescência
Infância/adolescência
Protetora LEGENDA:
Amigos Categoria
Juventude
Momentos da idade adulta Subcategoria
Dificuldades sociais
Infância
Momentos da adolescência
Juventude
Juventude/momento da idade adulta
Dificuldades pessoais
Momento da adolescência
Momento da juventude
Facilitação social
Momento da infância
Habilidades pessoais
Momento da juventude
Momentos da idade adulta
Divertimentos
Infância
Momento da juventude
Momentos da idade adulta
Obscurecimento
Infância/adolescência
Momento da adolescência
Discriminação étnica
Momento da adolescência
Momento da idade adulta
Momento da adolescência
Momento da idade adulta
Significado do racismo
nove sublinham as suas ações visando à obtenção de uma bolsa de iniciação científica.
‘Coletiva’ envolve seis episódios, verificando-se que três são referentes à
realização de um teste, à aprovação e à admissão em um emprego, por oito pessoas,
incluindo-se, aí, a participante/informante, em um momento da sua juventude, e três
são relativos a ações conjuntas, nas quais a entrevistada participou com colegas, para
permanecerem em vigília.
Luta
Individual LEGENDA:
Momento da adolescência
Juventude Tema
Coletiva Categoria
Momento da juventude
Subcategoria
Momentos da idade adulta
Marcador temporal
Fonte: Entrevista narrativa realizada com a participante/informante branca.
Auto-atribuição de características
Valorizadora
Avaliações
Condição econômica
Ocupação de espaço
Aprendizagem escolar
Desempenho escolar
Preconceito racial
Colegas
Amizades
Namoro
Vida conjugal
Características pessoais
Estratégia de enfrentamento
Tomada de decisão
Apoio social
Projetos
tinha uma espirituosidade muito grande e se divertia com tudo” ... “Meu avô era muito
engraçado, ria de tudo, era muito debochado, fazia graça com tudo” ... “O meu avô
tinha aquele humor do qual já lhe falei, brincalhão, pegava a vida bem leve, tinha uma
forma bem divertida de ver a vida.”... “Minha avó era tão braba, muito brava,
bravíssima e perdia a paciência com tudo”... “A minha avó sempre foi uma pessoa
muito, muito braba”.
Há dados indicativos de que a entrevistada atribuiu aos seus avós o lugar de
pessoas significativas:
“Meu avô foi o meu grande referencial.” ... “O meu avô foi a grande figura
para mim” ... “A minha avó também foi uma grande figura para mim, só que ela
era muito braba” ... “Por causa da brabeza da minha avó, a minha
identificação sempre foi maior com o meu avô”.
Paula não conviveu diuturnamente com sua mãe, haja vista que a mesma era
empregada doméstica e residia no local de trabalho: “Só via a minha mãe nos fins de
semana” ... “Não a chamava de mãe” ... “Eu a chamava de Marcela, embora seu nome
fosse Marcelina”. Ao discorrer sobre o seu relacionamento com ela, relatou: “... A
minha relação com ela foi mais de irmã” ... “Depois que comecei a crescer, todos
achavam que éramos irmãs e foi uma relação mais ou menos assim, de irmãs” ...
“Nossa relação era de irmã” ... “Tivemos um bom convívio”.
Os dados obtidos não fazem referências a rotinas, obrigações e deveres de Paula
no cotidiano familiar, quer durante o período em que residiu com os avós, quer após se
mudar. Todavia, há evidências indiretas dos cuidados e da proteção que os seus avós lhe
ofereceram, discerníveis nos dados ausentes, pois não há relatos sobre privações, no que
concerne à alimentação, ao abrigo, ao vestuário, nem, tampouco, referentes à realização
de trabalhos no lar que pudessem interferir na sua vida escolar, durante a infância, a
adolescência e parte da sua juventude.
Existem indícios dos cuidados dispensados pela avó à saúde de Paula, durante a
infância e a adolescência:
“Minha avó forneceu-me apoio e eu coloco ênfase no seu cuidado para com a
minha questão de saúde” ... “Tinha alergia nas vias aéreas e minha avó andava
comigo para todos os lugares, tentando conseguir um tratamento” ... “Tive toda
essa infraestrutura da minha avó, se não fosse ela, eu nem sei, ela cuidava de
Evenice Santos Chaves O racismo na Trajetória Escolar e Profissional... 188
Essa suposição pode ser tomada como um indício do histórico descaso das
políticas públicas para com a educação das pessoas pertencentes aos segmentos
desprivilegiados da sociedade. Contudo, ao mesmo tempo, explicita a resistência das
denominadas ‘minorias’ à situação de desvantagem social, através da busca e do
emprego de recursos alternativos, com o objetivo de suprir a omissão do Estado, no que
diz respeito ao acesso à escola.
Sem especificar os motivos, Paula mudou de escola: ...“Na terceira série
primária, eu fui para a Escola Antônia Sales” ... “Cursei a terceira, a quarta e a quinta
séries”. Não há dados sobre a natureza dessa instituição, porém de práticas educativas
professadas nesse colégio, as quais revelam uma educação de cunho cívico e religioso:
“Cantávamos o Hino Nacional, o Hino do Estado Azul e o Hino do Colégio, que
já não me lembro mais, depois é que entrávamos na sala de aula” ... “Pela
manhã, estudavam as meninas e, pela tarde, estudavam os meninos” ... “Lá no
colégio de freiras, antes de entrarmos para a sala de aula, tínhamos que fazer
uma fila, ouvir as orações, rezar e cantar” ... “Durante o mês de maio,
tínhamos que fazer a coroação da Nossa Senhora” ... “No dia 31, e durante
todo o mês de maio, cantávamos um hino, havia uma encenação com crianças
vestidas de anjo, que jogavam pétalas de flores na imagem de Nossa Senhora”.
Na Escola Antônia Sales destacou-se em matemática e é interessante apontar a
significação atribuída pela participante/informante à instituição escolar multisseriada,
que freqüentou anteriormente:
“Como eu tinha facilidade de gravar as coisas, tinha uma memória muito boa,
acabei me beneficiando, porque... no terceiro ano mudei de colégio e, ao
ingressar em outro, já sabia a matéria do pessoal da quarta série” ... “Então, de
certa forma, fui beneficiada por estudar em uma escola multisseriada”.
Destacou-se em matemática e, por isso, ocupou o lugar de monitora, conforme
indicam os seguintes dados:
“Comecei a dar aulas na terceira série primária, ajudando a freira na sala de
aula” ... “Uma freira, que era a Irmã Teresa, me pedia ajuda e eu ficava
sentada junto as coleguinhas para ajudar na Matemática” ... “Voltando àquela
escola primária, na ajuda às colegas que tinham dificuldade com matemática,
eu ficava circulando pela sala de aula, cada dia sentava ao lado de alguém que
Evenice Santos Chaves O racismo na Trajetória Escolar e Profissional... 191
tinha dúvidas”.
Pode-se dizer que a ação da professora de delegar-lhe o papel de auxiliar no
ensino da matemática, funcionou como um incentivo para que continuasse tendo bom
desempenho na disciplina. De fato, os resultados que Paula obteve nas avaliações em
matemática situavam-se no patamar da excelência: “... Tinha facilidade, nunca tirei
nota menor que 10 em Matemática”. Além disso, a monitoria repercutiu na valorização
social dessa entrevistada, pois o dado de que “tinha uma moral na sala de aula, não
é?”, é um indício dessa valorização.
A Escola Antônia Sales também foi palco para o seu primeiro contato com o
racismo contra o negro: ... “Talvez o meu primeiro contato com a questão racial tenha
sido em um colégio” ... “Tinha nove anos, cursava a terceira série primária e estudava
em um colégio lá no Bairro da Goiabeira, mantido por religiosas, que ainda hoje
existe”. Em outro momento, afirmou categoricamente: “como já lhe disse, o meu
primeiro contato com o racismo foi na escola”, descrevendo o acontecimento:
“Voltando àquele dia em que chegou alguém na sala da Irmã Teresa, época em
que a música La Bamba estava fazendo o maior sucesso, tocava no rádio para
lá lá lá lá bamba, alguém entrou na sala de aula e perguntou: ‘quem quer
participar de uma dança, dançar La Bamba? Levante a mão para ensaiar’.
Levantei a mão, eu queria, imagina, La Bamba, achava lindo, queria dançar La
Bamba, então levantei e fiquei esperando. Várias crianças também levantaram.
Olhei para a irmã, minha professora, que estava falando: ‘vai você, vai você,
vai você’, foi chamando... e não me chamou. Como ela não me chamou, eu
sentei”.
Os dados acima fornecem pistas referentes ao mascaramento do racismo contra o
negro, naquele espaço escolar, pois o evento descrito sugere a sua presença no cotidiano
daquela instituição. Ademais, Paula procurou saber a causa da sua exclusão:
“Depois, ao final da aula, fui perguntar para ela o porquê dela não ter me
chamado se eu estava em pé, eu queria ir. Ela ficou muito agoniada para me
explicar... não sabia como fazê-lo e eu insistindo, querendo uma resposta, até
que ela me disse assim: ‘sabe, na escola tem umas crianças mais bonitinhas e
para esses negócios temos que escolher as crianças mais bonitinhas’”.
A explicação fornecida pela freira vincula-se diretamente à categorização social.
Evenice Santos Chaves O racismo na Trajetória Escolar e Profissional... 192
Amsterdam e Bruner (2002) afirmam que o ato de categorizar faz parte do cotidiano das
pessoas, que empregam a classificação categorial como um instrumento para orientar os
seus relacionamentos com outros seres humanos. Isso, explicam os autores, decorre da
inserção dos sujeitos numa dada cultura, onde, através de ações de seus membros, idéias
socialmente construídas oferecem explicações naturalistas para vários fenômenos
sociais.
Os conteúdos descritos, referentes à explicação fornecida pela religiosa, são
indicativos do emprego da categoria branco/negro como critério para a seleção das
crianças que deveriam participar da dança. Aquela professora, ao explicitar que apenas
as crianças ‘mais bonitinhas’ deveriam ser escolhidas para participarem de
determinados eventos, expressou a valorização do fenótipo branco como critério para a
inclusão de alguns escolares naquela atividade. O significado social e ideológico da
preferência traz, de forma implícita, a noção de inferioridade do negro, em termos da
estética corporal.
Essa forma de inferiorizá-lo, compatibiliza-se com a noção de naturalização da
categorização social. Para Amsterdam e Bruner (2002), a mesma gera nas pessoas o
entendimento de que é natural, inato, o ato de categorizar as pessoas e as suas ações,
apenas no âmbito da intencionalidade, o que dificulta enxergar a existência de outros
determinantes das ações humanas, como os estruturais e os circunstanciais.
De acordo com a perspectiva teórica de Amsterdam e Bruner (2002), é possível
inferir que a freira categorizou as crianças brancas como as mais bonitas e realizou as
escolhas para a dança de forma intencional, referenciando-se na concepção naturalizada
da supremacia estética do branco sobre o negro.
Essa suposta superioridade da categoria branca sobre a negra tem raízes
estruturais. Com relação à valorização social da estética branca, Bernardino (2002)
expõe que a mesma decorre da incorporação do ideal de branqueamento, por membros
da sociedade brasileira, e uma de suas características é a valorização da estética branca e
desvalorização da negra. Assinala-se que esse processo social, construído a partir da
segunda metade do século XIX, foi legitimado por intelectuais que se orientavam pelo
racismo científico. O mesmo é difundido e popularizado até hoje, constituindo-se em
uma especificidade da dimensão estrutural do racismo contra o negro no Brasil.
Amsterdam e Bruner (2002) assinalam que nem todas as pessoas e grupos
Evenice Santos Chaves O racismo na Trajetória Escolar e Profissional... 193
sociais aderem às mesmas categorias numa dada cultura, porém advertem que sempre
existe a proeminência do uso hegemônico de um sistema categorial sobre outro.
Segundo esses pesquisadores, a referida hegemonia desvela a função das categorias
como instrumentos de poder que promovem a coesão social de grupos que classificam
eventos, pessoas e situações, a partir das mesmas referências.
O referido aporte teórico sustenta o entendimento de que a categoria branco é
hegemonicamente difundida como constituída por atributos estéticos superiores. Supõe-
se que esse referencial foi empregado pela freira na seleção de crianças para
participarem da atividade recreativa, em um contexto de sala de aula onde havia as
brancas e uma negra.
Outra forma de inclusão social excludente a que a participante/informante foi
submetida, e que traz implícita a desvalorização estética do negro, é sugerida pelo
seguinte dado:
“As freiras gostavam de fazer teatrinhos, tinha uma Pastorinha famosa. Pô, eu
nunca fui escolhida para participar da Pastorinha. Nesse teatrinho, havia um
quadro chamado ‘Os Negrinhos’, mas sempre escolhiam uma criança mais
clara para participar dele e pintavam-na com um pó preto, feito a partir da
rolha de cortiça queimada. Nunca fui escolhida para representar, tinha uma
vontade, mas nunca fui escolhida”.
A ocorrência de situações sociais perpassadas pelo racismo contra o negro na
escola, nas quais Paula foi objeto de discriminação racial, indica que essa instituição é
mantenedora de relações sociais racializadas. A presente pesquisa apresenta dados que
revelam o lugar da escola de primeiro grau como reprodutora de crenças sobre a
inferioridade do negro em termos de estética, tal como ocorre na nossa sociedade, e,
desse modo, a escola atuou como colaboradora na manutenção do racismo contra o
negro em nossa sociedade. Destarte, não se pode atribuir a responsabilidade por tal
racismo ao processo de escravização do negro, à medida que mantenedores atuam nos
relacionamentos humanos que ocorrem em instituições sociais, todavia, de forma
atualizada e mascarada.
No contexto da sociedade, a escola desempenha funções sociais e, aqui, destaca-
se o seu papel na manutenção do reprodutivismo social. Chaves (1986) afirma que a
partir de um ponto de vista reprodutivista, a escola, como meio de socialização, visa ao
Evenice Santos Chaves O racismo na Trajetória Escolar e Profissional... 194
equilíbrio de uma dada sociedade, e, para cumprir tal função, precisa manter as relações
sociais tal como se apresentam nessa mesma sociedade.
Como instituição, portanto, a escola cumpre o papel social de mantenedora da
hegemonia do branco nas relações sociais e Bruner (1998) coloca que as instituições são
socialmente construídas com o objetivo de impor uma matriz acerca do que faz parte da
realidade. Os dados anteriormente expostos indicam que a Escola Antônia Sales,
enquanto instituição, reproduzia e mantinha a inclusão social excludente de uma criança
negra, como ocorre em outras esferas da vida social, nas quais o negro é desvalorizado e
desqualificado pelo seu fenótipo.
A despeito do indicativo de relações socias racializadas entre a entrevistada e a
sua professora, Irmã Tereza, nenhum evento sugere a existência de problemas nas
relações interpessoais entre as duas, após o acontecimento racista naquela escola.
Retomando ao acontecimento vivenciado por Paula na escola, um dado fornece
indícios sobre a interpretação que fez acerca da dificuldade da professora, ao justificar a
sua exclusão da dança: ...“Senti que ela me disse aquilo com muita dó, porque sabia
que ela gostava de mim, pois eu a ajudava na Matemática, entende?” ... “Ela me disse
mortificada, não queria dizer, só falou porque insisti para ter uma resposta”.
Esses episódios demonstram que a reflexão realizada por Paula sobre a ação de
sua professora em excluí-la da dança, envolveu a dimensão da afetividade. Assim, a
partir de tal indicativo, é possível explanar que a participante/informante, qualificando
aspectos envolvidos naquela situação interativa, realizou a seguinte interpretação: o fato
de ser preterida não eliminava os afetos positivos da sua professora em relação à sua
pessoa. Tal explanação também é corroborada pela ausência de dados relativos a
mudanças na qualidade das interações sociais entre a entrevistada e sua professora, que
a situação escolar demandava.
Outro ponto a ser enfatizado é o de que as próprias colegas da entrevistada não
atuaram de forma passiva frente ao racismo dirigido à mesma, pela professora, copiando
o modelo fornecido e reproduzindo-o. Focalizando as relações interpessoais entre a
participante/informante e seus colegas, na infância e durante a adolescência, há dados
indicativos de que, inclusive as da Escola Antônia Sales, não reproduziram o racismo
contra o negro, a partir do modelo fornecido pela professora ou por qualquer outro
agente: "... Nunca tive dificuldades referentes ao racismo com os colegas na escola
Evenice Santos Chaves O racismo na Trajetória Escolar e Profissional... 195
achava feia, com cara de cavalo, era branca”... “Levei um susto, porque eu, em
absoluto, não me achava feia... me achava até jeitosinha, digamos assim, nunca
me achei feia”.
McNamee (1998) situa uma crise como um processo psicológico engendrado por
elementos constitutivos de uma dada cultura, a qual explicita a existência de fronteiras
em comunidades interativas, a partir da identificação das diferenças que separam as
pessoas. Conforme a referida estudiosa, o sujeito, ao identificar a distinção entre o
centro e a margem, elabora a idéia de estar sendo identificado com algo diferente do que
ele é e, dessa forma, emerge a consciência do não fazer parte do centro, contudo das
margens, o que interfere na sua identidade pessoal. No entanto, o ser social pode
deslocar-se para além da crise, se coordenar práticas discursivas, vislumbrar a
possibilidade de atuar de outras maneiras, tendo-se, como conseqüência, a reconstrução
da sua identidade.
É importante assinalar que, de forma compatível com as formulações de
McNamee (1998), a diferenciação social despertou a consciência de Paula para a
discriminação racial e marcou uma transição, pois, a partir do ‘susto’ decorrente da
discriminação e da constatação da ineficácia de seu padrão de beleza no espaço escolar,
emergiu um processo de aprendizagem sobre a categorização social das etnias.
Nesse sentido, a escola, através da ação de uma professora, contribuiu para a sua
conscientização sobre o racismo contra o negro: “ ...comecei a perceber que as crianças
que ela tinha escolhido eram as mais claras e, na verdade, a única negra na sala era
eu, que não tinha sido escolhida”. Esse aspecto remete à afirmação de Simão (2002) de
que a interação social participa do processo pessoal de construção de conhecimento.
Dados fornecem indícios para a interpretação de que Paula, naquele momento da
sua vida escolar, explorou a contradição inerente às relações sociais entre o negro e o
branco, transformando-a em uma estratégia sobre como se comportar no cotidiano de
uma sociedade racista:
“Fui crescendo, sacando e ficando cada vez mais sacadora, percebendo a
escola da vida” ... “Aí você já sabe como se virar, vai aprendendo como tem
que jogar também, porque é um jogo” ... “Tem que aprender como jogar para
poder vingar, se não for assim não vinga”.
Mishler (2002) intitula de pontos de virada os incidentes que modificam o modo
Evenice Santos Chaves O racismo na Trajetória Escolar e Profissional... 198
escrevia para pessoas que não sabiam fazê-lo, “sempre estava lendo ou escrevendo
cartas para pessoas da vizinhança” ... “Estava no curso primário quando fazia as
cartas de amor”, compartilhava informações, “as leituras coletivas para a vizinhança,
como ler notícias de jornal, enfim, tudo eu lia para os vizinhos” ... “Eu lia jornais e
histórias de cordel para a vizinhança” e os entretinha, “fazendo as minhas
montagenzinhas de dramatizações... com a molecada, logicamente com a vizinhança”.
Enfim, sintetizou: “sempre fazia um monte de coisa..., tudo”.
É preciso assinalar que tais atividades continuaram a ser realizadas durante a
adolescência da participante/informante: “naquela época, ninguém tinha televisão
ainda, comprávamos histórias de cordel lá no ‘O Popular’ e, à noite, me reunia com a
vizinhança e lia as histórias para todos”.
Os dados relativos às atividades que Paula desenvolvia com e para membros da
sua comunidade remete aos valores. Prilleltennsky e Austin (2001) fazem referência aos
valores pessoais, aos relacionais e aos coletivos. Aditam que os primeiros citados são
constituídos pela determinação, pela autonomia, pelo crescimento pessoal e pela saúde;
os relacionais são formados pela diversidade humana, pela participação democrática e
pela colaboração, enquanto os coletivos é composto pela justiça social e pelo suporte às
estruturas comunitárias.
Conjetura-se que as atividades realizadas por Paula são compatíveis com esse
quadro referencial de valores coletivos e relacionais, posto que as suas ações dirigidas a
vizinhos expressam o seu respeito às diferenças, pois realizava tarefas que exigiam
habilidades das quais só ela era portadora, sem, entretanto, oprimir os companheiros que
não as possuíam. Ainda colaborava com os mesmos na direção da satisfação de suas
necessidades sociais e, também, participava, por escolha, das situações coletivas de
lazer.
Prilleltennsky e Austin (2001) aditam que os valores pessoais e coletivos são
dialéticos, interdependentes, porquanto os pessoais promovem, na pessoa, a habilidade
de escolher objetivos, porém considerando a necessidade de outros e o crescimento
pessoal de membros de uma comunidade. O comportamento da participante/informante
de escolher atividades de lazer, conduzí-las e elaborar textos para dramatizar com seus
vizinhos pode ser entendido como orientado pela autonomia e pela autodeterminação,
contudo esses valores integravam a sua necessidade àquelas de seus vizinhos.
Evenice Santos Chaves O racismo na Trajetória Escolar e Profissional... 200
para docência no ensino primário, Paula almejou ingressar na universidade, ainda que o
seu primeiro trabalho formal proporcionasse melhorias financeiras. Porém, antes de se
submeter ao exame vestibular, passou por dois grupos de conflitos: um de aproximação-
esquiva, decorrente da sua aspiração à universidade e do caminho traçado pelo partido
político, e outro, de aproximação-aproximação, referente à atração por dois cursos de
graduação.
Como via de expressão do primeiro conflito, expõe-se o seguinte dado:
“Ficava pensando: ‘pô, de lá eu já vim e agora eu vou voltar? Eu fiz todo um
percurso e vou voltar?’”... “Não poderia voltar ou ser operária porque não
estaria dando um retorno para uma família que esperava de mim” ... “Queria
cursar a universidade, mas o conflito era grande” ... “Os conflitos,
proletarização ou não, universidade ou não, permaneciam”.
O outro conflito centrava-se na escolha do curso universitário e assim foi
expresso: “ainda tenho essa facilidade com matemática, por isso também fiquei confusa
quando da escolha do curso que deveria fazer na universidade” ... “Vinha sempre a
questão do Curso S, do Curso E” ... “Enfim, um ano de conflito..., talvez um pouco
menos”.
O conflito, enquanto processo psicológico, é vivenciado por uma pessoa, porém
estrutura-se a partir de determinadas circunstâncias sociais, nas quais estão envolvidos
relacionamentos interpessoais.
Nas situações vivenciadas por Paula, são patentes as circunstâncias sociais
desencadeadoras dos conflitos. No primeiro, anteriormente relatado, observa-se a
incompatibilidade entre as pressões exercidas por aqueles que delineavam os rumos dos
militantes do partido político – irem para o campo – e a necessidade de melhorias na
condição de vida de seus familiares, cuja possibilidade atrelava-se à sua escolarização.
Assim, circunstâncias sociais de natureza política e de natureza econômica, aliada ao
seu desejo de realizar um curso universitário, foram fontes produtoras do conflito
aproximação-esquiva.
O segundo, aparentemente decorrente apenas das preferências da entrevistada, é
produto do seu processo de escolarização até então, onde diferentes circunstâncias
acadêmicas e contato com conteúdos escolares, através de livros e de professores,
possibilitou que gostasse de diferentes disciplinas. Todavia, o fato de ter que escolher
Evenice Santos Chaves O racismo na Trajetória Escolar e Profissional... 204
fazendo outro tipo de amizade” ... “Então..., fora do meu grupo, só interagia
com pouquíssimas pessoas”.
Embora tenha sublinhado que, “sentávamos juntos de alguns colegas, batíamos
papo, lanchávamos juntos”, justificou seu distanciamento de muitos dos companheiros
que compunham a turma do mestrado.
“Como eu fui com um grupo, não tive a oportunidade de perceber se os colegas
da Universidade Z não abriam espaços para nos relacionarmos com eles” ...
“Por isso, não sei nem lhe dizer se os colegas de lá não abriram espaço ou se
nós é que não procuramos abri-lo, porque já tínhamos um grupo pronto”.
Afora as justificativas acima descritas, há dados que revelam uma autocrítica:
“Será, talvez, que eu é quem não tentei abri-lo, porque não sentia necessidade,
já estava com um grupo formado, composto por oito pessoas?” ... “Não sei lhe
dizer o que rolou, porque também não tentei abrir espaços com as outras
pessoas” ... “Não dá para avaliar se aqueles colegas não abriam espaços para
relacionamentos comigo e com as pessoas do meu grupo” ... “Todos do meu
grupo eram da Cidade E... e penso que, às vezes, nem temos tempo para
fazermos outras amizades”.
A despeito disso, ressalvou outro tipo de relacionamento com os docentes: “Na
Universidade Z, mantive mais relações com os professores, com os quais não tive
problemas, muito pelo contrário” ... “Alguns professores faziam... reuniões com toda a
turma”. Ainda deu destaque à gentileza e à receptividade dos mestres:
“Achei que os professores da Universidade Z foram muito amáveis com o nosso
grupo: preocupados, querendo saber como estávamos vivendo, muito amáveis
mesmo, querendo cuidar, oferecendo almoços, jantares, todas essas coisas” ...
“Nesse sentido, eles foram muito amáveis”.
Por fim, no ano de 2004, ingressou no doutorado: “estou cursando o doutorado
na Área Alfa-alfa...”.
Sintetizando a sua atuação como estudante, a partir do curso secundário, Paula
verbalizou: “Na universidade e no secundário, tive uma boa atuação, sempre tirei boas
médias” ... “Não tive grandes dificuldades durante o mestrado”.
Em suma, ao se considerar o percurso escolar descrito, conclui-se que, em todos
os anos escolares, essa participante/informante teve um bom desempenho acadêmico e,
Evenice Santos Chaves O racismo na Trajetória Escolar e Profissional... 208
estourava minha pele” ... “Hoje em dia eu fico pensando! era um tipo de
equizema que, na adolescência, transformou-se nessa alergia das vias aéreas”
... “Minha avó forneceu-me apoio e eu coloco ênfase no seu cuidado para com a
minha questão de saúde”... Tinha alergia nas vias aéreas e minha avó andava
comigo para todos os lugares, tentando conseguir um tratamento”.
A participante/informante dá a conhecer que, durante a infância e a adolescência,
o apoio social fornecido pela avó, visando minimizar os danos causados em sua saúde
pela alergia, foi relevante: “Tive toda essa infra-estrutura da minha avó, se não fosse
ela eu nem sei, ela cuidava de mim, eu fui cuidada por ela o tempo todo” ... “Eu fico
pensando: era difícil, mas minha avó ia para tudo quanto é lugar, enfrentava filas,
tratamento público”.
A precariedade da infra-estrutura característica dos bairros pobres, cujos
residentes constituem ‘minorias’, pode favorecer o aparecimento de reações alérgicas, e,
por conseguinte, é oportuno hipotetizar que essa especificidade do racismo do meio
ambiente possivelmente relacionava-se com o adoecimento de Paula. De fato, Ratcliffe
(2000) salienta que particularidades do racismo do meio ambiente interferem na saúde
das pessoas, produzindo morbidez e até mortalidade, em muitos dos residentes de locais
socialmente desprivilegiados.
Outro infortúnio citado pela entrevistada foi a ausência de recursos financeiros
durante grande parte do seu ciclo de vida já vivido: “logicamente que as minhas
dificuldades financeiras foram muitas”. A escassez de dinheiro ameaçou a sua
continuidade na escola e, por isso, engajou-se precocemente no trabalho informal: “na
adolescência... eu... dava aulas em casa”. Durante parte da adolescência ainda realizou
outra atividade, com a finalidade de obter recursos financeiros que contribuíssem com a
sua manutenção na instituição escolar.
Como bem salientou:
“Até parte da minha adolescência, conseguia dinheiro de transporte para ir à
escola dando aula particular” ... “Quando estava no ginásio, em determinados
períodos, trabalhava aos domingos em uma fábrica de sapatos e ganhava algum
dinheiro, pois precisava dele... para freqüentar as aulas” ... “Quando fui para a
escola normal, pagava, muitas vezes, minha passagem de ônibus com o dinheiro
que ganhava ministrando as aulas particulares de Matemática, para os meus
Evenice Santos Chaves O racismo na Trajetória Escolar e Profissional... 210
em diferentes momentos de sua trajetória escolar, contou com a ajuda de várias pessoas
para que pudesse suprir necessidades, visando à continuidade do seu percurso escolar.
Dificuldades financeiras que competiram com a sua permanência na instituição
escolar não anularam algumas de suas características pessoais, as quais contribuíram
para a sua continuidade na escola. Ela mesma destacou a atenção que dispensava às
aulas, já nos anos iniciais do curso primário, que tinha memória privilegiada e facilidade
para aprender: “... via, ouvia e aprendia”.
Expôs que desde a terceira série primária “lia muito” e, durante a adolescência,
“... escrevia com facilidade” ... “Gostava de fazer dramatizações, até escrevia e
montava os textos” ... “Lembro-me que desde cedo escrevia dramatizações para o
pessoal ... montar”. Ainda discorreu que redigiu uma peça aos doze ou treze anos:
“nunca me esqueço, outro dia estava atrás de uma peça que talvez tenha sido a
primeira que escrevi e é muito engraçado você rever”.
Outro aspecto a ser focalizado é a sua iniciativa de ir à busca de livros, durante a
adolescência, para satisfazer a sua necessidade de ler: “como não tinha muitas obras
para ler, ia à Biblioteca da Universidade X, na Rua das Flores, e lá permanecia lendo:
lia tudo que me passava pela frente, tudo o que me interessava”.
Mais uma vez, observa-se que uma estratégia de enfrentamento de luta foi
empregada pela entrevistada, visando ultrapassar limites decorrentes da sua condição de
pobreza. Desse modo, o seu comportamento de dirigir-se a uma biblioteca para ler é
indicativo de um movimento pessoal na direção de novos caminhos, objetivando
superar um obstáculo e ampliar os seus conhecimentos.
Após a conclusão do segundo grau, profissionalizante, e da inserção no primeiro
emprego formal, Paula decidiu residir com amigos. Isso sugere que, ao dispor de
condições mínimas para caminhar longe do cotidiano da sua família de origem, realizou
a primeira reconstrução familiar, significativa de mudança no seu estilo de vida:
“depois fui morar com algumas pessoas daquele meu grupo político, penso que no
Bairro do Cajueiro”. Enfatizou que “aquele era o período da vida em comunidade,
morava no bairro do Cajueiro com os meus amigos e todos nós tínhamos uma atuação
política”. Também enfocou o fenótipo das pessoas com quem passou a residir: "eles
eram brancos e eu a única negra".
Sem especificar o motivo de outras mudanças de local de residência, nem indicar
Evenice Santos Chaves O racismo na Trajetória Escolar e Profissional... 213
com quem partilhou duas moradias, enfatizou: “depois, morei na Rua dos Jasmins”...
“Posteriormente, na Rua das Flores, no Bairro do Abacateiro”.
Nos referidos locais, cujas populações até hoje são constituídas por pessoas
socialmente privilegiadas, ocorreram acontecimentos racistas envolvendo Paula:
“Na rua das Flores, as vizinhas sempre vinham me oferecer emprego, embora
eu fosse moradora”... “No bairro do Abacateiro foi barra, foi barra pelo
seguinte: durante muito tempo, com raríssimas exceções, as pessoas não
falavam comigo quando estava próxima a elas no elevador, mas, de vez em
quando, perguntavam se estava procurando emprego”.
Outros dados indicam que o racismo contra a entrevistada transcendeu o edifício
em que residia, estendendo-se à rua: “naquele prédio, até as pessoas se acostumarem
comigo, como vinham me oferecer um emprego!”... “No elevador, na porta do prédio,
na rua, sempre vinham me oferecer emprego de doméstica: ‘estou precisando de
empregada, você não quer?’”.
Os episódios racistas marcam uma nova mudança no seu cotidiano, pois, como
ressaltou,“nos outros lugares onde morei, nunca tinha arranjado emprego assim, com
tanta facilidade”.
Esse é um indicador de que o racismo contra o negro, dirigido à sua pessoa,
apresentava-se independentemente da sua posição social. Ocupar uma nova, a qual
propiciava o seu reconhecimento social como uma pessoa pertencente à classe média e
exercer uma atividade que exigia um determinado nível de escolaridade, não a livrou de
tornar-se objeto do racismo, ao adentrar em um espaço social maciçamente branco:
“apesar de ser uma pessoa conhecida, ainda assim me ofereciam empregos a toda
hora”.
Em suma, há indicativos de que está ideologicamente estabelecida na nossa
sociedade uma relação entre ser negra e empregada doméstica. Tal relação, explicitada
em dados desta pesquisa, demonstra que a ascensão social do negro não elimina o
racismo contra o mesmo, conforme teorizado em estudos financiados pela Unesco, nas
décadas de 1930 e 1940 (Castro, 1998).
Outro dado especifica aspectos de sua aparência que produziam reatividade
negativa nas pessoas, o que, mais uma vez, reflete a desvalorização e a desqualificação
social da estética negra:
Evenice Santos Chaves O racismo na Trajetória Escolar e Profissional... 214
“No final dos anos setenta, em 1978, 1979, andava com um black-power desse
tamanho e era um choque para a vizinhança, que ficava um pouco assustada”...
“Vez por outra, vinha alguém me dar um conselho: ‘porque tu não cortas?’,
‘porque tu não passas uma pasta?’” ... “Uns conselhos assim, meio que
indiretos”.
É interessante frisar que, apesar do fenótipo negro, quando usava adereços
mascaradores da intensidade da textura crespa dos seus cabelos, o comportamento que
pessoas dirigiam a Paula era diferente:
“Quando eu estava de trancinha, é interessante isso, nunca achava ninguém,
nenhuma senhora para me oferecer emprego, mas era só tirar as trancinhas, e
pentear o cabelo de forma convencional, que sempre achava uma senhora para
me oferecer emprego de doméstica”.
Esse dado indica que, em algumas situações, a indumentária usada pelo negro,
que reflete maior poder aquisitivo, evita os constrangimentos ao mesmo, expressos em
relações sociais racializadas. Mas isso não significa dizer que se apresentar socialmente
com adereços que poderiam indicar maior poder aquisitivo elimina o racismo dirigido à
pessoa negra, em certas situações.
Voltando às reconstruções familiares da partticipante/informante, ela casou-se e
construiu o seu próprio lar: “eu vivo com o Francelino, que tem filhos brancos, porque
os filhos dele não são meus filhos, porém filhos que eu criei” ... “É, tenho uma família
que acabei construindo... com marido e filhos”.
Paula abordou a diferença de cor entre ela e o seu companheiro, expressando o
seu ponto de vista sobre o que as pessoas pensam da sua união multirracial:
“Meu companheiro é branco, brinco com ele e digo, ‘com certeza as pessoas
devem pensar: esse cara deve ter alguma coisa de anormal, porque não é
possível’” ... “As pessoas olham demais quando estou com o meu companheiro
e realmente deve estar passando mil coisas pelas suas cabeças, como, por
exemplo: ‘deve ter alguma coisa de inferior nesse homem, para ter escolhido...
viver com uma negra, não é normal e deve ter alguma coisa de errado’”.
Essa união é duradoura e constitui, na atualidade, o seu único vínculo familiar:
“as pessoas da minha família original foram morrendo, perdi todo mundo” ...
“Bom, a minha família atual é o que me resta hoje”.
Evenice Santos Chaves O racismo na Trajetória Escolar e Profissional... 215
que o último trabalho que realizei foi em 1986 e depois disso fiquei só
apoiando” ... "De certa forma, acabei abandonando a minha segunda profissão,
coisa que gostava de fazer, por falta de tempo”.
Desse modo, há evidências de que abdicou de realizar as atividades profissionais
proporcionadas pelo Curso N, ainda que gostasse, devido à sobrecarga de trabalho.
O espaço da universidade contribuiu para a criação da Organização Estadual 1
de Luta contra a Discriminação Racial, na Cidade E. Embora participasse do movimento
negro, foi na Universidade X, no ano de 1978, que as articulações para criar uma
instituição local, representativa desse movimento, ocorreram:
“Eu e alguns negros começamos a nos reunir, dentro da própria Universidade
X, dentre eles a Eliana e o Frederico” ... “Comecei a me reunir com um grupo
para criar a Organização Estadual 1 de Luta Contra a Discriminação Racial”
... “Naquele período, criamos a Organização Estadual 1 de Luta Contra a
Discriminação Racial” ... “O momento de criação dessa entidade, como já lhe
disse, é o mesmo da criação de outras no Brasil, todas buscando denunciar o
racismo e o mito da democracia racial” ... “Criamos a Organização Estadual 1
de Luta Contra a Discriminação Racial, que só começou a ter vida jurídica a
partir de 1980, porém as discussões e o seu processo de construção iniciaram-se
bem antes, retomando, inclusive, a figura do Zumbi como um dos símbolos
negros”.
A Universidade X ainda proporcionou à participante/informante a oportunidade
de militar no movimento docente. Não há dados que especifiquem mais detalhadamente
a sua atuação, porém, um realça a participação: “na Universidade X, sempre me engajei
no processo político, é nesse sentido que sou uma das fundadoras da Associação de
Professores”.
Outro ponto revelado pelos dados foi o fato de ter sido objeto do racismo contra
o negro, quando concorreu a um cargo na administração superior, naquela instituição de
ensino. Durante a campanha sofreu discriminação racial: “só me senti vítima do racismo
uma vez, quando, em uma peça de teatro, fui representada como macaca”.
Ao fazer refrência a esse episódio, a participante/informante também focalizou a
questão do racismo contra o negro no cotidiano da Universidade X: “o racismo existe
na Universidade X, mas naquele espaço... as pessoas têm um cuidado maior”. Ao
Evenice Santos Chaves O racismo na Trajetória Escolar e Profissional... 218
função, apenas 1 é negro, ainda assim estrangeiro, e não fez o curso superior no Brasil.
O autor também expõe que na Universidade de Brasília há apenas 14 docentes negros,
de um total de 1.400. Para Carvalho (2002), isso reflete o panorama da segregação
racial na academia brasileira.
Coligado a esse fato, tem-se a invisibilidade do racismo contra o negro no Brasil
e, por conseguinte, nas universidades públicas. A difusão do mito da democracia racial,
a ausência de circulação de dados sobre os percentuais de docentes negros nessa
instituição, visando à conscientização de todos os seus membros sobre o fenômeno,
como também a naturalização da inclusão social excludente do negro na academia,
possivelmente relacionam-se com a invisibilidade do racismo contra os pertencentes a
essa etnia, nos espaços universitários.
Outra faceta abordada pela entrevistada se refere à manutenção da negritude, por
parte de professores universitários negros, o que está refletido nos seguintes dados:
“Para os poucos negros que conseguem chegar à universidade e serem bem
sucedidos na profissão, a maior dificuldade é continuar sendo negro” ... “Eu
até reconheço a dificuldade dentro da universidade, porque para muitas pessoas
negras que conseguiram ascender, é difícil continuarem sendo negras,
continuarem lutando, porque ficam isoladas em um determinado lugar que, em
princípio, não é para elas” ... “A maior dificuldade é continuar brigando para
que outros negros cheguem lá, ocupem também esse espaço e você não fique
como uma exceção que justifica a regra”.
Os dados citados remetem a um produto do embranquecimento: a incorporação
de valores e de modos de condutas, cujas referências são os padrões brancos, europeus e
americanos, hegemônicos, valorizados e impostos pelo processo de socialização. Por
isso, a pessoa negra, para ser socialmente aceita, tem que se branquear.
Além de enfatizar a presença do racismo contra o negro na nossa universidade,
Paula apontou razões históricas para a manutenção desse fenômeno em nosso país: “é
uma questão difícil, até porque a escravidão foi um processo muito longo no país,
foram 374 anos que a população negra foi destituída, inclusive, da sua humanidade”.
Em seguida, abordou uma conseqüência do regime escravocrata em nossa
cultura contemporânea:
“Então, a sociedade brasileira se acostumou e naturalizou a situação da
Evenice Santos Chaves O racismo na Trajetória Escolar e Profissional... 221
população negra, ela acha normal, acha que é isso mesmo” ... “Um percentual
muito grande da população brasileira acha normalíssima a discrepância na
escolaridade entre negros e brancos, nem percebe.” ... “É como se fosse uma
abstração, mas os excluídos são pessoas com cor, com cara e com sexo”.
Dessa forma, ao se naturalizar a situação de inclusão social excludente do negro,
engloba-se a noção colonialista da sua inferioridade, por essência, e incorpora-se, como
normal, que ele ocupe posições sociais abaixo daquelas preenchidas pelo branco, em
diferentes temporalidades.
Finalmente, há um dado refletindo a avaliação realizada pela entrevistada sobre
o racismo contra o negro como uma problemática nacional a ser resolvida:
“Se pretos e pardos representassem só 5% da sociedade, a situação era uma,
mas 47% é um percentual muito grande para que a população não se preocupe,
porque diz respeito ao desenvolvimento do país” ... “Dessa forma, toda a
sociedade brasileira deveria estar voltada para a busca de solução, todavia não
é o que acontece e mesmo a esquerda brasileira, que trata da questão da classe
social e dos excluídos, atua como se esses não tivessem cor, sexo ou cara”.
Conforme Bento (2002a), o branco, no nosso país, omite-se frente ao racismo
contra o negro. Assim, pode-se afirmar que o negro torna-se irrelevante, principalmente
para as elites políticas, enquanto um contingente de brasileiros que poderá contribuir
para o desenvolvimento econômico e social do país, caso tenha acesso à moradia digna,
à escola, ao emprego e a salários que permitam o acesso a bens e serviços. A inclusão
social excludente, então, conforma um problema da nação brasileira, como expressaram
os dados acima mencionados.
Levando em conta a vida social de Paula, alguns conteúdos por ela relatados são
indicativos de que, mesmo como docente do ensino superior, continuou a ser objeto do
racismo contra o negro, em diversas situações e espaços sociais. Ressaltou, entretanto,
que os acontecimentos perpassados por relações racializadas aconteceram antes da nova
Constituição, “as cenas de racismo, dirigidos contra mim ... foram antes da legislação
de 1988”. A entrevistada descreveu episódios nos quais estão explícitas ocorrências de
racismo direcionadas à sua pessoa em um edifício, em uma loja e na via pública. Assim
os explicitou:
“Certa vez, tive uma experiência muita engraçada com um... servente, pessoa
Evenice Santos Chaves O racismo na Trajetória Escolar e Profissional... 222
senhor quer revistar justo a minha?’ No discute para cá, discute para lá,
discute para cá, discute para lá, acabei parando na gerência e já estava
estressada. Fui jogando tudo em cima do gerente, abri a bolsa e joguei tudo em
cima dele”.
“Retornando da Universidade X, fui pegar o Raimundo, meu filho adotivo, que
era pequeno e estava na casa do Luis..., o Luis Washington. Já na rua com ele,
buscava pegar um táxi, para nos dirigirmos à nossa casa. Como não passava
táxi, comecei a andar com o garoto, que estava calçado, mas... nu: era
pequeno... tinha sujado a roupa, enfim, estava nu. Andava na direção da Rua
das Tulipas, quando passou um senhor em um carro... preto, não sei que tipo de
carro era, buzinou, eu olhei e ele perguntou: ‘é seu filho?’ Olhei para ele e
resolvi não responder, não tinha porque dar conta da minha vida, continuei
andando. Andava devagar para acompanhar o passo do pequeno... mas...
quando cheguei na esquina já havia um aparato policial, pois o senhor tinha
chamado a polícia, porque decerto eu estava roubando o moleque. Armou-se
toda uma confusão, até aceitarem a explicação de que eu não estava roubando a
criança”.
“Há uma outra situação... que foi muito engraçada. Estava andando no
comércio, não me lembro para onde ia, e em frente à ‘Grande Loja’ fui
abordada por um investigador, que falou para mim: ‘senhora, tem que ir
comigo até a delegacia’. Tomei um susto, olhei para ele e disse: ‘eu, por que?’,
ao que o investigador respondeu: ‘porque hoje..., é, tem uma queixa na
delegacia, duma senhora que foi roubada pela empregada doméstica e a
inscrição...’. Depois de um tempo percebi que a palavra inscrição estava no
lugar de descrição: ‘e a inscrição da empregada doméstica é a senhora,
inclusive a roupa’. Ela está com calça jeans, blusa não sei o que e sapato não
sei o que. Parecia mesmo com a roupa que eu vestia. Ele continuou, ‘então a
senhora tem que ir comigo lá’, ao que respondi: ‘ah, mas não vou mesmo meu
filho, não vou. Se quiser me levar vai ser a força, porque de livre e espontânea
vontade eu não vou..., não vou’. Começamos uma discussão no meio da rua,
que chamou a atenção do pessoal da loja, cujo gerente me conhecia. Ele
aproximou-se e explicou para o investigador quem eu era. O investigador ficou
Evenice Santos Chaves O racismo na Trajetória Escolar e Profissional... 224
desesperado e, naquele momento, falei para ele: ‘não, mas agora eu quero ir
na delegacia com o senhor’. Ele retrucou: ‘agora eu não quero lhe levar’. Eu
coloquei: ‘agora eu quero ir’”.
As situações racistas, parte das experiências sociais da participante/informante,
não constituem novidade, mesmo porque alguns eventos semelhantes, aqui e ali, são
noticiados pela imprensa. Contudo, a descrição das mesmas, como objeto de estudo
científico, tem o mérito de gerar dados, os quais colocam em xeque a ideologia
circulante da democracia racial brasileira, indicando-a como mascaradora do racismo
contra o negro, no cotidiano brasileiro.
Dessa ideologia decorre uma falsa problemática que, inclusive, está presente em
parte da literatura científica: é difícil, se não impossível, delimitar quem é negro no
Brasil. Todavia, Bernardino (2002) acentua que, no plano social, o negro brasileiro é
identificável pela diferença fenotípica, reconhecível quando do emprego da punição e
irreconhecível quando da participação em benefícios sociais.
Certamente que o racismo brasileiro contra o negro é de marca, não de origem,
portanto, social e não biológico. Isso é evidenciado nas relações sociais racializadas e
nos indicadores sociais produzidos pelo próprio Governo.
Voltando à posição social da entrevistada como docente do ensino superior, há
indicativos de que, na Universidade X, estabeleceu outras modalidades de relações
interpessoais:
“Meu departamento é meio... isolado, no que diz respeito a trocas com os
outros, porém eu me relaciono com diferentes departamentos e com outros
setores da Universidade X” ... “Meus amigos, na Universidade X, não estão,
necessariamente, em meu setor de trabalho”.
Transitando em diferentes momentos nos diversos espaços de trabalho, a
participante/informante consolidou amizades para além do departamento onde é lotada:
“tenho pessoas muito amigas mesmo... em outros setores, pessoas com quem, inclusive,
mantenho amizade fora do espaço da Universidade X”. Há um dado, entretanto, que
focaliza uma situação peculiar, decorrente da posição social que lhe foi delegada, ao
exercer um cargo na administração superior da Universidade X:
“Por exemplo, quando estava ocupando um cargo na administração superior da
Universidade X, comecei a receber muitos convites e ficava avaliando que essas
Evenice Santos Chaves O racismo na Trajetória Escolar e Profissional... 225
quisesse... no passado, hoje não mais, hoje eu acho que não faria mais essa opção”...
“Mas no passado, se tivesse tido condição, teria me qualificado na Área T”.
Observa-se que a participante/informante selecionou o que verbalizou sobre suas
insatisfações, expondo apenas uma, vinculada à sua formação profissional. Com isso, se
obtêm o indício de que evitou falar sobre outras, as quais, provavelmente, poderiam
envolver relacionamentos interpessoais entre ela e profissionais e/ou estudantes.
Declarou que “hoje eu não tenho nenhuma insatisfação na Universidade X...,
não, hoje não”. Porém, reportando-se ao passado, reafirmou que esteve insatisfeita,
devido a impossibilidade de uma realização:
“Mas no passado, se tivesse tido condição, teria me qualificado na Área T” ...
“Anteriormente eu não tinha condições de sair da Cidade E, exatamente por
causa da minha família, e fui adiando” ... “Porém, no passado, realmente teria
feito doutorado nessa área”.
Com o passar dos anos, entretanto, parece ter superado tal insatisfação, porque
seu interesse relativo à área de estudos para realizar o doutorado modificou-se: “depois
mudei de idéia, não quero mais e já estou procurando a Área Alfa-alfa”.
as grandes” ... “Acabei elegendo algumas coisas pelas quais eu brigo” ...
“Hoje, por exemplo, eu acho que só brigo por causas bem graves, já não brigo
por qualquer coisa, porque é muito desgastante ficar brigando por pequenas
coisas” ... “Acho que o fato de não brigar muito com as pessoas também
facilita” ... “Por isso, às vezes, eu consigo me segurar diante do racismo” ...
“Tenho toda a calma, mas, de vez em quando, se alguém pisa no meu calo eu...”
... “Isso demora, tenho o pavio muito longo, não sou uma pessoa de pavio
curto” ... “É, já escolho com o que perder a paciência e normalmente consigo
tirar de letra, porém, um dia desse a perdi com uma delegada”.
Esse dados remetem à noção de si mesma, monstrando que ela é processual e se
reconstrói a partir de re-significações oriundas de novas experiências de vida.
Outra característica auto-atribuída refere-se a um sentimento de medo, pois
relatou que “em função da morte de minha genitora, fiquei com medo de também ter
diabetes” ... “Esse é um dos medos que tenho”. O receio de vir a ser portadora dessa
enfermidade, devido à herança genética, define seus hábitos alimentares, “sempre comi
pouquíssimo doce, com medo de engordar, ter pressão alta e diabetes”. Isso sugere
uma estratégia preventiva.
Ao se autocaracterizar intelectualmente, a entrevistada ressaltou seu crescimento
cognitivo durante a adolescência, atribuindo-o à sua militância política: “fiquei muito
mais cabeça na parte política, porque a participação partidária exigia muito de mim”.
Há outros conteúdos que enfatizam o auto-reconhecimento das próprias habilidades
intelectuais, nesse mesmo período de vida, expressos nos relatos de que “gostava de
escrever” ... “eu gostava de ler” ... “lia e gostava de escrever”.
Esses dados, calcados em vivências da entrevistada, demonstram que a pessoa
humaniza-se, constrói e reconstrói a sua pessoalidade a partir de suas inserções sociais,
participações em processos coletivos, posições sociais que ocupa e relacionamentos
interpessoais que estabelece ao longo do ciclo de vida. Assim, o social e o psicológico
integram-se como faces da mesma moeda.
6.2.9. Qual o olhar de Paula sobre o papel do racismo contra o negro em sua
vida?
A condição de ser uma pessoa preta, objeto do racismo em diferentes situações,
Evenice Santos Chaves O racismo na Trajetória Escolar e Profissional... 232
adquiriu uma significação pessoal para Paula e balizou diversos aspectos de sua vida.
Um ponto a ressaltar é a consciência de que é negra e de como esse fenótipo está
presente, como marca, na sua existência:
“Descobrir-se como negro torna-se uma coisa fundamental na vida” ... “Eu
acho básico e você não consegue mais se desligar disso, porque, enfim, está no
seu cotidiano, está na sua vida, está nas suas relações cotidianas e então você
não consegue se desligar”.
Essa marca cromática, ponto de partida para a desigualdade racial, refletiu nos
caminhos pelos quais enveredou, em diferentes momentos do seu ciclo de vida já
vivido: “então..., para mim, acabou marcando escolhas de vida, o que faço e a
militância”... “O racismo é um negócio que... marca toda a vida, acaba marcando
todas as ações”. Paula também estruturou, em seu repertório, um comportamento de
alerta, decorrente da sua inserção na categoria daqueles socialmente discriminados, o
que é explicitado no seguinte episódio: “acho que o racismo acaba fazendo com que
você... fique mais perspicaz para enxergar determinadas coisas, cuja maioria das
pessoas não está preocupada em enxergar”.
Apesar de movimentar-se reafirmando a sua negritude em uma diversidade de
posições e espaços sociais, ao longo do seu percurso de vida, a entrevistada ressaltou
que “é difícil não abrir mão de ser negra em todos os espaços de inserção social”. No
entanto, há ausência de dados que forneçam evidências elucidativas das dificuldades
enfrentadas, ao não descartar sua pertença ao grupo étnico negro.
Viver sob a égide da violência estrutural do racismo, durante parte do seu ciclo
de vida já vivido, e ser objeto do racismo em muitas situações sociais, engendraram
modos de enfrentamento que, na sua idade adulta, culminaram com o desenvolvimento
da tolerância: “uma estratégia que também uso para enfrentar o racismo na minha vida
é a de minimizar determinadas coisas..., para sobreviver” ... “Acabo passando por
cima de algumas coisas”.
Observa-se, através de dados, que também passou a comportar-se de modo
educativo frente às pessoas racistas: “nunca perco a oportunidade de mostrar para as
pessoas porque estão sendo racistas” ... “Se ficar com raiva, não conseguirei mostrar,
por isso eu consigo me segurar, ser bem didática, bem pedagógica, para que elas
aprendam que estão sendo racistas”.
Evenice Santos Chaves O racismo na Trajetória Escolar e Profissional... 233
aspirações futuras frente à vida pessoal. Porém, dada a sua militância do movimento
negro e o seu gosto pelo trabalho que desenvolve na Universidade X, é pertinente
levantar as seguintes questões: a possibilidade de unificar o trabalho docente com a
militância social tornou a atividade acadêmica mais relevante naquele momento em que
poderia se aposentar? Essa confluência é o incidente crítico a direcionar seus projetos
para o futuro?
O racismo no bairro onde Resido em um bairro no centro da cidade, circulo por diversos
resido... lugares e atitudes 'abertas' de racismo não se costuma presenciar.
Essa é uma característica do racismo brasileiro: 'cordial no trato',
mas contundente na discriminação.
Fonte: Lista de complementação de frases preenchida pela participante/informante preta.
Isso significa dizer que tal fenômeno sócio-psicológico tem uma temporalidade de
longa duração. A noção estrutural do tempo de longa duração, caracterizada por
Volvelle (1995) como a idéia da continuidade de um acontecimento social no tempo e
no espaço, não implica na idéia de que o racismo contra o negro se expressa do mesmo
Evenice Santos Chaves O racismo na Trajetória Escolar e Profissional... 235
modo ao longo da história social, mas circunscreve a sua permanência, graças a novos
mantenedores que ocorrem em diversos momentos dessa história.
Outrossim, apesar de se observar melhorias em indicadores sociais relativos aos
negros, os dados censitários continuam a apontar que, ao longo do tempo, diferenças
percentuais nos mesmos indicadores sociais permanecem, quando se comparam negros
e brancos. Nota-se que resultados de pesquisas realizadas por órgãos governamentais,
como aqueles já apresentados em outro ponto deste trabalho, indicam uma histórica
discriminação social e racial às quais os negros, enquanto grupo étnico, estão
submetidos nos quesitos educação, trabalho e ocupação, quando comparados ao grupo
étnico branco.
Esse aspecto clarifica a noção do tempo de longa duração, assim como a condição
estrutural do racismo brasileiro contra o negro. No dizer da participante/informante,
esse racismo “é bastante entranhado na cultura brasileira”.
Em síntese, os dados fornecidos pela mesma, embora advenham das suas
experiências sociais e dos sentidos que conferiu às mesmas, são compatíveis com
resultados de estudos, já enfatizados em outros capítulos desta pesquisa, que desnudam
o caráter estrutural do racismo contra o negro no Brasil.
Observa-se que os dados relativos à complementação das frases apresentam
diferentes especificidades, quando se focaliza separadamente as instituições sociais: no
item família, os conteúdos aditados são indicativos de advertência, enquanto que no
item escola, os conteúdos acrescentados indicam conflitos entre pessoas, mascaramento
e inibição do racismo.
Com relação à segunda categoria, seus itens e a complementação das frases, pela
participante/informante, estão na Tabela 6.
Tomando-se o que redigiu no item família, constata-se que a primeira frase é
sugere que a sua avó a educava sinalizando a submissão do negro ao branco, em nossa
sociedade. Por isso mesmo, infere-se que o ‘conselho’ fornecido pela avó, para que não
se postasse como subalterna ao se relacionar com pessoas brancas, pode ser significado
como uma forma de resistência que o negro deveria assumir, para colocar-se em um
patamar de igualdade, nas relações sociais com os brancos.
A segunda frase também constitui uma prática educativa e explicita um possível
significado social da escolarização: via de mobilidade social ascendente, a qual
Evenice Santos Chaves O racismo na Trajetória Escolar e Profissional... 236
O racismo na família que Meus filhos, não são meus filhos de sangue, são filhos do meu
constituí... marido, eu os criei, são pessoas sensíveis à questão racial.
O racismo nas escolas que Tive alguns entreveros com colegas e professores.
freqüentei... Havia uma professora de geografia que insistia em dizer que eu não
era negra, pois não havia negros no Brasil, havia sim, dizia ela,
'mulatos'.
O racismo no local onde Trabalho na universidade e percebo o cuidado que as pessoas tem
trabalho... para não serem tachadas de racistas.
Fonte: Lista de complementação de frases preenchida pela participante/informante preta.
O racismo é... Uma doutrina que tem por base a supremacia de uma raça em
relação a outras.
O racismo nas relações sociais Nas relações socias, o racismo se concretiza pela discriminação
em geral... racial, há uma superposição da população negra nos estamentos
mais pobres da sociedade.
A população negra apresenta desvantagens, em relação à população
não negra, em todos os indicadores sociais.
O racismo na minha vida... Desde muito cedo entendi que a extrema pobreza em que vivia com
a minha família era porque éramos pretos.
Fui criada por meus avós, minha mãe trabalhava em casa de
família, meus avós eram de Garças e lá os donos são brancos e os
empregados são os pretos.
Fonte: lista de complementação de frases preenchida pela participante/informante preta.
6.4. A triangulação
A análise comparativa dos dados decorrentes do emprego da entrevista narrativa,
do questionário sócio-demográfico e da lista de complementação de frases apontou
inconsistências.
Ao se considerar os dados provenientes do questionário sócio-demográfico e da
entrevista narrativa, constata-se que: 1) na entrevista narrativa, a participante/informante
discorreu que até os vinte anos de idade residiu em uma casa com seus avós maternos e
com a sua mãe, a qual convivia no lar apenas nos finais de semana, porque era
empregada doméstica e dormia no local de trabalho, todavia, no questionário sócio-
demográfico, pontuou que residia naquela casa com seus avós maternos e com um
irmão; 2) na entrevista narrativa, a mesma não verbalizou nenhum conteúdo referente ao
seu pai, mas no instrumento mencionado escreveu que ele era trabalhador braçal,
analfabeto e que faleceu durante a sua juventude; 3) na entrevista narrativa, há ausência
de alusão a qualquer evento que relacione o pai à sua mãe, contudo, no questionário
sócio-demográfico afirmou que a sua genitora era pensionista.
Destarte, no questionário sócio-demográfico introduziu um irmão na constelação
de sua família de origem e excluiu a sua mãe biológica da composição familiar, ao
passo que na entrevista narrativa não fez referências ao mano, fazendo supor que era
filha única. Na entrevista narrativa, não forneceu informações sobre o pai, passando a
Evenice Santos Chaves O racismo na Trajetória Escolar e Profissional... 239
entrevista narrativa, o que também deve ter uma significação pessoal, a qual não foi
desvelada neste estudo. Não obstante, ao escrever, no questionário sócio-demográfico,
que o progenitor faleceu durante a sua juventude e que a mãe era pensionista, forneceu
indicativos de que o seu pai não era um desconhecido, porém uma pessoa de quem tinha
notícias.
Gaskell e Bauer (2003) ainda mencionam que as inconsistências entre dados
podem decorrer de limitações metodológicas. De acordo com essa afirmativa, as
discrepâncias anteriormente citadas poderiam ser atribuídas à técnica utilizada no estudo
e, então, cabe a seguinte questão: será que a entrevista narrativa e os temas empregados
na sua condução não proporcionaram à entrevistada um espaço para que falasse algo
sobre o seu pai e o seu irmão, conforme o fez no questionário sócio-demográfico?
O número de informações fornecidas pela participante/informante na entrevista
narrativa é um indício de que os temas condutores foram abrangentes e, por isso
mesmo, abriam espaços para que ela se reportasse ao seu genitor e ao seu mano. Mas, a
despeito disso, não fez menção aos mesmos.
Relativamente aos instrumentos, após a realização da entrevista narrativa, eles
foram entregues para serem preenchidos. Os mesmos foram preenchidos em outro local,
sem a presença da pesquisadora, sem limite de tempo para a devolução. É preciso
acrescentar que a participante/informante demorou aproximadamente três meses para
devolvê-los à pesquisadora. Supõe-se que o período de tempo decorrido entre o
fornecimento de informações na entrevista narrativa e o preenchimento do questionário
sócio-demográfico obscureceu, na sua memória, alguns conteúdos que havia
verbalizado durante a entrevista narrativa, o que favoreceu a obtenção de outras
informações.
A comparação entre dados da entrevista narrativa e da lista de complementação
de frases ainda apontou outra contradição: conteúdos da entrevista narrativa indicaram a
ocorrência de apenas um incidente racista na vida escolar da participante/informante.
Porém, no instrumento já citado, conteúdos sublinham que desavenças incidiram em
relacionamentos entre ela, professores e colegas, por conta do racismo contra o negro.
Ainda sobre o racismo, nos dados decorrentes da entrevista narrativa, não há
referência a conversas sobre esse tema entre a participante/informante e qualquer de
seus parentes, na sua família de origem. Porém, ao completar uma frase, no segundo
Evenice Santos Chaves O racismo na Trajetória Escolar e Profissional... 241
instrumento utilizado nesta pesquisa, aludiu a verbalizações de sua avó, dirigidas a sua
pessoa, no sentido de que não deveria ser submissa ao branco e que deveria estudar para
ser alguém na vida.
Outro aspecto a ressaltar é a caracterização que a participante/informante fez dos
seus enteados, como pessoas sensíveis ao racismo, na lista de complementação de
frases, sobre o que não discorreu na entrevista narrativa.
As discrepâncias identificadas, anteriormente expostas, conduzem às seguintes
afirmações: que outros acontecimentos perpassados pelo racismo contra o negro, além
dos descritos na entrevista narrativa, fizeram parte do seu percurso escolar; que, no
contexto da sua família de origem, práticas educativas foram empregadas por sua avó,
para que se fortalecesse e pudesse vir a se relacionar com pessoas brancas em condição
de igualdade; que a recomendação de sua cuidadora para que continuasse os estudos é
indicativa da sua confiança no processo de escolarização, como via de superação do
lugar social ocupado por uma pessoa negra e pobre, no contexto das desigualdades
sociais e raciais presentes na cultura brasileira e que os enteados expressavam, para a
participante/informante, um ponto de vista, ou outros comportamentos, indicativos das
suas rejeições ao racismo contra o negro.
Verifica-se que frases adicionadas à lista de complementação trazem novos
dados, quando comparados àqueles conteúdos verbais obtidos através da entrevista
narrativa. Isso demonstra que, ao se empregar diversas fontes na coleta de informações,
é possível realizar a integração de diferentes dados, identificarem-se inconsistências ou
complementaridades.
Focalizando a lista de complementação de frases, Rey (1999) defende que esse
instrumento possibilita ao participante/informante de uma pesquisa a elaboração de
conteúdos mais reflexiva e menos imediata, os quais são redigidos para completar as
frases propostas pelo(a) pesquisador(a). Esse aporte é aqui tomado como fundamento à
interpretação de que os conteúdos acrescentados aos itens propostos, particularmente
àqueles referentes ao racismo na escola de primeiro e de segundo graus e ao racismo em
sua família de origem, suscitaram, na participante/informante, novas reflexões,
emergindo outras informações. Todavia, as mesmas não invalidaram as anteriores, mas
as complementaram.
Em síntese, o processo de triangulação ressaltou que o emprego de múltiplas
Evenice Santos Chaves O racismo na Trajetória Escolar e Profissional... 242
1
Ilma tem como características fenotípicas a cor parda, os lábios grossos e os cabelos pretos e crespos,
critérios empregados nesta pesquisa para selecioná-la como participante/informante parda.
Evenice Santos Chaves O racismo na Trajetória Escolar e Profissional... 244
como tal, envolve a solidariedade. Os dados descritos indicam que, naquela comunidade
pobre, a amizade e a solidariedade ocorriam, notadamente diante das carências que
poderiam ser superadas através do compartilhamento de objetos. Dessa forma, os pais
de Ilma estenderam o entretenimento a outras crianças da vizinhança, cujos patamares
financeiros não permitiam a propriedade daquele instrumental. O partilhar a televisão
sugere um modo de vida mais coletivo, solidário e menos individualista, no seio da
comunidade onde a entrevistada e seus familiares residiam.
Além do lazer propiciado pela televisão, Ilma brincou muito:
“Durante a minha infância no Bairro 10, a molecada ia toda para o nosso
quintal, que era enorme, daqueles assim, sabe?” ... “... Brinquei mais de
carrinho, de empinar papagaio..., jogar peteca com os meninos, porque tinha
muito menino na rua” ... “Pulei corda” ... “Cresci brincando com meninos,
junto com meninos!” ... “Nas tardes de chuva, sentávamos na sala para
assistirmos televisão”... “Quando o quintal estava seco, brincávamos de bola”.
A entrevistada justificou porque as brincadeiras, das quais participava, eram
compartilhadas com meninos: “de menina, éramos eu, a minha irmã e mais umas
duas... que moravam mais adiante” ... “Contudo, nós brincávamos pouco” ... “Brinquei
muito pouco de boneca”.
Alguns parentes também contribuíram para o lazer de Ilma: “minha madrinha e
meu tio também nos levavam para passear, pois tinham carro” .... “Nós íamos passar
as férias na casa de tia Tatiana, que sempre foi uma tiazona para todos”.
Referindo-se àquela etapa da sua vida, a participante/informante discorreu que
“quando eu não estava na escola, estava no quintal...” ... “Brincávamos muito no
quintal, porque o papai não deixava nós irmos para a rua”. Embora não tenha
mencionado a ocorrência de atos violentos no Bairro 10, supõe-se que os mesmos
ocorriam naquele local, porque, ainda hoje, esse bairro, majoritariamente constituído
por negros e pobres, tem, dentre os seus moradores, alguns envolvidos em noticiários
policiais, por participação em brigas, em assassinatos, em depredações, em estupros, em
roubo, em furto e, ainda, por envolvimento no tráfico e uso de drogas.
Tal especificidade remete à situação dos negros após a abolição da escravatura,
quando foram jogados na rua, sem emprego, sem escolaridade e sem perspectiva de
escolarização. A situação marginal desembocou na miséria social, que atravessou o
Evenice Santos Chaves O racismo na Trajetória Escolar e Profissional... 246
casas, está a mudança de profissão do seu pai. Com o aluguel de tabernas, passou a ser
um pequeno comerciante, realizando um trabalho que o fixava próximo da casa em que
residiam. Isso, provavelmente, relacionava-se a duas questões: 1) a sua condição de
saúde, abalada por um distúrbio psicológico, possivelmente o impediu de continuar a
exercer a profissão de taxista e de ausentar-se do lar, por um período relativamente
longo; 2) a atividade de comerciante desempenhada em uma baiúca, colada à sua
residência, permitia que estivesse próximo aos filhos, pudesse educá-los e controlá-los
cotidianamente.
Em resumo, o conjunto de dados sobre os acontecimentos que sucederam o
falecimento da mãe da entrevistada indica transformações na vida dos integrantes
daquela família; rompimentos com parentas maternas; afastamento do convívio com a
vizinhança do Bairro 10, como, por exemplo, com as crianças com as quais Ilma
brincava, e o distanciamento de Acácia, vizinha e amiga, que auxiliava a sua genitora,
“depois que mudamos do Bairro 10, afastamo-nos um pouco da Acácia”, pessoa
positivamente avaliada por Ilma, “Acácia era uma pessoa super agradável, não era
brigona e brincava conosco”. Enfim, uma ruptura com o modo de morar e estilo de
vida anteriores.
Dessas alterações, derivou outro jeito de viver, caracterizado pelo isolamento
social da participante/informante, como sugerem os seguintes dados:
“No Bairro 13, não consegui fazer amizade com ninguém” ... “Não me dava
com ninguém” ... “Sempre tinha muita dificuldade em fazer amizades” ... “Era
só do estudo para casa, do estudo para casa” ... “Ficava dentro de casa” ...
“Não tinha muitas amizades..., eu não tinha grupo de amigos”.
Ao passar a residir no Bairro 12, o seu isolamento social foi atenuado, pois,
conforme declarou: “no Bairro 12, eu consegui fazer amizade com umas... pessoas que
moravam em frente e que, também, não tinham mãe”. Dessa amizade, surgiu o primeiro
namorado, aos 17 anos. O interesse de Ilma pelo rapaz a fez tornar-se ativa, chegando
mesmo a empregar uma estratégia de enfrentamento de luta, com o objetivo de ser
notada: “eu ajeitava a porta da casa para as suas irmãs verem que eu a arrumava” ...
“Ele começou a se interessar” ... “Pediu para namorar” ... “Aceitei”. Esse dado indica
que a sua dificuldade em se relacionar com as pessoas passava por um processo de
transformação, gerado pelo seu interesse em construir relações amorosas.
Evenice Santos Chaves O racismo na Trajetória Escolar e Profissional... 253
escolas também eram pobres, em termos da estrutura física, dos recursos materiais para
a prática pedagógica, da precária formação dos professores e dos seus baixos salários.
Tais achados compatibilizam-se com os dados anteriormente citados, os quais
trazem, de forma implícita, a informação de que a escola pública que Ilma freqüentou na
infância, localizada em um bairro de periferia da Cidade E, era pobre e caracterizava-se
pela baixa qualidade do ensino. É oportuno salientar que Ratcliffe (2000) menciona
como uma das características do racismo do meio ambiente a qualidade dos serviços
disponíveis nos bairros habitados pelas ‘minorias’.
Assim, competia aos pais da participante/informante suprir algumas deficiências
da instituição escolar. Para tanto, disponibilizavam, no próprio lar, o acesso dos filhos
aos livros. Ademais, o pai comprava o material escolar necessário e a mãe materializava
a sua ajuda através do acompanhamento doméstico nas tarefas escolares. O progenitor
também ressaltava a relevância da escolarização; “papai dizia que era uma coisa muito
importante, que o estudo era mais importante que qualquer outra coisa” ... “Ele
sempre disse isso”.
Dividindo tarefas e responsabilidades, os seus genitores criaram condições para
que os seus filhos, crianças pobres que freqüentavam uma escola com insuficiência de
recursos, se interessassem pelos estudos e alcançassem um desempenho acadêmico que
os permitissem avançar, através da aquisição de conhecimentos e das conseqüentes
promoções para séries mais avançadas.
Resumindo, completar os anos escolares relativos ao ensino primário foi uma
realização da entrevistada, porém o seu desempenho acadêmico contou com uma infra-
estrutura familiar. A mesma estendeu-se do apoio social fornecido por suas tias e uma
vizinha à mãe de Ilma, para que a mesma pudesse dispensar atenção à escolarização dos
seus filhos; aos discursos do pai sobre a importância do estudo para a vida prática, até a
disponibilidade, no lar, de um conjunto de instrumentos para a leitura, objetivando-se
criar situações que oportunizassem o contato das crianças com vários conteúdos
educativos.
O mérito da participante/informante em concluir o curso primário implicou em
seu ingresso no curso secundário, que, àquela época, só se realizava através de uma
seleção, aqui entendida como um primeiro exame vestibular. Ilma se submeteu a essa
avaliação e foi aprovada: “fiz admissão e o ginásio na Escola 3...”.
Evenice Santos Chaves O racismo na Trajetória Escolar e Profissional... 258
Foi durante o ginásio que o racismo dirigido à entrevistada ocorreu. Dados sobre
a segregação entre os estudantes fundamentam tal afirmação:
“No ginásio, realmente eu não tinha amigos brancos” ... “No ginásio e no
científico eu tinha poucos amigos, tinha pouquíssimas pessoas...” ... “Parando
para pensar..., as minhas duas amigas, a do ginásio, que me acompanhou
durante quase todo o ginásio, e a do científico, também eram negras” ...
“Morenas..., mais morenas do que... mais para o negro do que para o
branco...”.
Esses conteúdos são indicadores da presença de discriminação racial entre as
estudantes na escola, pois, no plano da convivência social, quando freqüentou o curso
secundário e o colegial, a entrevistada permaneceu apartada das colegas, exceto de duas
negras. Através da discriminação indireta, que dissimula o racismo e o torna invisível,
instaurou-se uma barreira que separava as negras das demais colegas.
Segundo Oliveira (2004), o preconceito racial é revelado, mesmo naquelas
situações em que uma pessoa quer escondê-lo. Logo, de forma compatível com essa
afirmação, a segregação entre colegas, que ocorreu na escola onde Ilma estudou, é um
exemplo de discriminação indireta e, conseqüentemente, do racismo sutil, expresso no
bloqueio aos relacionamentos interpessoais entre todas as estudantes. Dessa forma, o
preconceito se manifestou de modo não aparente, ou até imperceptível, conferindo um
caráter seletivo à expressão do racismo no espaço escolar.
A discriminação indireta, conceituada por Oliveira (2004) como uma prática
social empregada por pessoas para ocultar o preconceito racial, envolve, dentre outras
coisas, o reconhecimento do outro. A inexistência de relacionamentos interpessoais com
a quase totalidade dos colegas, que abrangeu a trajetória da participante/informante
durante o período em que cursou o ginásio e o científico, é indicativa da indiferença das
mesmas para com a entrevistada e, por conseguinte, da ausência do seu reconhecimento
como uma pessoa portadora do direito à interação com todos os companheiros na
escola. Usurpar do negro um direito é característica básica do racismo.
Embora objeto do racismo contra o negro na escola, esse fenômeno foi invisível
para Ilma: “talvez até tivesse sofrido, mas nunca, nunca percebi, porque eu cresci no
meio de gente que era da mesma cor ou até mais negra que eu”.
Torres (2001) assinala que nos países da América Latina, nos quais há muita
Evenice Santos Chaves O racismo na Trajetória Escolar e Profissional... 259
sociais como algo promovido por uma sociedade que hierarquiza os grupos sociais, pelo
critério econômico. Desse modo, acanhava-se diante da sua própria condição de vida,
sem enxergar que a mesma era histórica e culturalmente construída.
Presume-se que a preponderância do seu olhar sobre a circunstância da pobreza
que a acompanhou, pelo menos durante a infância e a adolescência, também contribuiu
para que não percebesse a discriminação racial da qual foi objeto:
“Como já disse, não me lembro de ter sofrido discriminação pelo fato de ser
negra, filha de negros” ... “Pessoalmente, nunca me senti segregada pela minha
cor” ... “No colégio, eu nunca senti isso..., nunca senti na pele que eu era
discriminada pela minha cor, mas sim pela minha condição social”.
Contraditoriamente, também relatou: “mas, pensando bem, acho que eu mesmo
me discriminava: sempre me achei menos bonita que as minhas colegas, menos
inteligente” ... “Achava que todos eram superiores a mim...”. Tais conteúdos remetem
ao racismo contra o negro, pois esse fenômeno social articula-se, dentre outras coisas,
na idéia da superioridade estética e intelectual do grupo étnico branco, concepção
difundida, de há muito, na sociedade brasileira.
Retomando a trajetória escolar da participante/informante, ao cursar o terceiro
ano científico, também se preparou para o vestibular: “fiz o 3º ano conjuntamente com o
cursinho: o 3º ano na Escola 4 e o pré-vestibular no Cursinho 5”. Contudo, a
incompatibilidade entre pobreza e freqüência a um cursinho levou o seu pai a empregar
uma estratégia de enfrentamento, da qual resultou a obtenção de uma bolsa de estudos
para que Ilma pudesse freqüentar o pré-vestibular: “no período do cursinho, o papai
pleiteou uma bolsa, porque meus dois irmãos já haviam estudado lá e tinham sido
aprovados no vestibular” ... “Estudei no Cursinho 5, durante todo o tempo, com a
bolsa..., não paguei”.
No ano que precedeu o exame vestibular, a entrevistada dedicou-se aos estudos,
com afinco: “estudei bastante, estudava todo final de semana, não parava” ... “Eu
realmente estudei, porque queria mesmo passar no vestibular”.
É admissível que, naquele momento, Ilma atentasse para a possibilidade de
mudança na sua condição econômica, através da escolarização formal. Por isso, aspirava
à aprovação no vestibular, ao ingresso na universidade e ao diploma do curso superior,
o que, futuramente, permitiria o seu engajamento em uma atividade de trabalho, cujo
Evenice Santos Chaves O racismo na Trajetória Escolar e Profissional... 262
muito difícil para mim, porque meus irmãos tinham muito ciúme dessa minha relação
com a família dele”.
O relacionamento amoroso também foi foco de outra modificação no seu dia-a-
dia, porquanto lhe proporcionou uma vida social mais ativa: “depois que eu comecei a
namorar o Nando, a coisa ficou mais..., eu fazia muitos programas com ele” ... “Foi
uma época de atividade social muito intensa: íamos ao clube, ao cinema, ao
barzinho...”.
Conforme constatam os dados, a universidade instituiu-se na vida de Ilma como
um espaço propiciador de novas oportunidades e experiências sociais, que repercutiram
como pontos de virada, modificadores do seu curso de desenvolvimento: contribuiu na
sua formação acadêmica e desempenhou uma função socializadora, ao se constituir
enquanto contexto que favoreceu o estabelecimento de amizades e a articulação de um
namoro. Esse, desdobrou-se no convívio da participante/informante com membros da
família de seu namorado e com a sua participação em atividades de lazer.
Durante os anos em que cursou a graduação, a entrevistada residiu com os
membros da sua família de origem, usufruindo o provimento financeiro que lhe era
oferecido pelo pai, o qual lhe permitiu freqüentar um curso universitário sem necessitar
engajar-se em qualquer atividade de trabalho formal, para se auto-sustentar.
Dados referentes à sua situação financeira, durante essa travessia, elucidam a
inexistência de dificuldades econômicas que interferissem na continuidade dos estudos.
Longe disso, ocorreram facilidades:
“Morava perto da Universidade X, ficava na esquina de casa e a maioria das
pessoas que por lá passavam de carro, e iam para aquele local, ofereciam
carona” ... “... Tinha o crédito educativo e a bolsa, de monitoria ou de pesquisa,
então não havia dificuldade financeira” ... “Consegui comprar meus livros,
conseguia comprar parcelado” ... “Papai sempre me ajudou, nunca deixou de
fazê-lo, quando eu precisava de livros...”.
Embora Ilma não tenha se referido ao seu desempenho acadêmico durante o
curso universitário, um dado anteriormente descrito suscita a afirmação de que o mesmo
foi bom, a ponto de proporcionar o exercício da função de monitora e de bolsista de
iniciação científica. Com esse mérito pessoal e o apoio social fornecido pelo seu pai, ela
concluiu a graduação, habilitando-se a exercer uma profissão que o grau obtido lhe
Evenice Santos Chaves O racismo na Trajetória Escolar e Profissional... 267
proporcionou.
Alguns anos depois tentou retornar à Universidade X, como estudante, para
realizar o mestrado: submeteu-se à seleção, foi aprovada, “... mas não tinha orientador
disponível”. Deslocou-se, então, para outra universidade, localizada na Cidade A,
submeteu-se ao processo seletivo, foi aprovada e cursou esse nível de pós-graduação.
O racismo fez parte desse percurso escolar e a entrevistada atribuiu as situações
de discriminação pelas quais passou à sua procedência: “na Universidade Y, eu me senti
discriminada porque era da Região Tropical 1...”.
A partir dessa justificativa, é possível afirmar que a discriminação dirigida à
participante/informante, no espaço universitário, expressa, de acordo com Guimarães
(1999), um mecanismo de subordinação racial, fundamentado na identidade regional
dos grupos humanos, intitulado pelo autor de estigma de etnia. Nesse processo,
categorizam-se as pessoas e os grupos humanos, a partir dos seus locais de origem, em
superiores e inferiores, e tais valorações produzem relações sociais assimétricas.
Dados sugerem que, durante o mestrado, um colega de Ilma, de cor branca,
também proveniente da sua cidade de origem, recebeu um tratamento diferente daquele
que lhe foi dispensado por uma professora:
“... Não consegui fazer amizade com a Professora Pâmela, como o Alberto fez”
... “Ela não quis ser fiadora do apartamento que aluguei com a Amanda” ...
“Aquilo me chateou muito...” ... “Queria ter o mesmo nível de amizade que o
Alberto tinha com aquela professora e não consegui”.
Essa diferenciação de tratamento pode ser compreendida como decorrente de
uma sintonia entre a Professora Pâmela e o Alberto e da ausência dessa entre a docente
e Ilma, o que é plenamente aceitável e justifica, por si só, a amizade da mestra com o
estudante. Mas outros episódios fornecem pistas para a compreensão de que a referida
professora dirigia uma certa hostilidade para a participante/informante:
“Houve a eleição para a escolha de um representante discente junto ao
Colegiado” ... “Competi com uma colega que diziam ser a menina dos olhos da
Professora Pâmela...” ... “A Professora Pâmela, que era a sua orientadora,
achou que eu tinha imposto o meu nome”.
Também há conteúdos relativos à sutileza com que tentou impugnar o trabalho
de dissertação de mestrado de Ilma: “a Professora Pâmela quis até questionar os meus
Evenice Santos Chaves O racismo na Trajetória Escolar e Profissional... 268
dados, quis questionar os gráficos” ... “Porém meu orientador disse-lhe que não, que
era aquilo mesmo...”.
Não há dados referentes à ocorrência de desavenças entre a entrevistada e a
professora Pâmela, que possam estar na raiz das hostilidades. Também não há dados
que desabonem as ações da entrevistada, em relações sociais travadas no contexto da
pós-graduação. Que razões, além do racismo, podem justificar o comportamento da
docente frente a Ilma? Há indícios de que outro mecanismo social de subordinação
também operou: o racial. Para Guimarães (1999), ele fundamenta-se na noção de raça
como um elemento que diferencia os grupos humanos, a partir do estigma da aparência
física. Os conteúdos até aqui elencados, referentes ao processo relacional entre a mestra
e a estudante, assinalam a provável presença do racismo na relação professora-aluno, no
ensino de pós-graduação.
Relativamente aos professores do mestrado, é pertinente citar a indiferença dos
mesmos às intervenções realizadas por Ilma nas reuniões do Colegiado, quando exerceu
o papel de representante discente: “contudo era assim: durante as reuniões, os
professores não..., ignoravam-me como a representante discente” ... “Eu me sentia
muito desrespeitada”.
A hostilidade de Pâmela para com a entrevistada, quando eleita representante
discente, e a indiferença dos docentes às suas colocações nas reuniões do Colegiado,
remetem à afirmação de Fernandes (1972) de que o branco só percebe o negro no
enfrentamento de uma situação concreta onde esse também é protagonista.
Os episódios já descritos substanciam a interpretação de que uma posição
escolar assumida pela negra, embora democraticamente eleita para ocupá-la, distinguiu-
a como alguém possivelmente não capacitado para fazê-lo. Isso delimita, na nossa
cultura, as diferenças raciais como demarcadoras de privilégios para alguns e de
subjugação para outros: as regalias são destinadas àqueles denominados de brancos, que
se consideram como superiores, no plano cultural e/ou étnico. Por outro lado, o
destinatário da subjugação é o negro, alcunhado de cultural e etnicamente inferior.
Em suma, portadora da ‘marca’ negra, a participante/informante foi excluída do
círculo de relacionamentos interpessoais da docente, foi objeto da indiferença de
professores nas reuniões do Colegiado, verificando-se que naquela instituição de ensino
superior não havia lugar para a negra, oriunda de uma região rotulada como ‘atrasada’,
Evenice Santos Chaves O racismo na Trajetória Escolar e Profissional... 269
Angélica também era discriminada e rotulada pelas demais colegas da sua cidade: “todo
mundo sempre falou que ela era diferente” ... “Que ela era muito porra-louca”.
Buscando explicar a razão para tal rótulo, Ilma interpretou que “a Angélica era
chamada de porra-louca porque era extrovertida: a mais divertida, gostava muito de se
divertir”. Outra interpretação, no entanto, pode ser focalizada na questão racial, pois ao
conviver e ‘se misturar’ com aquelas pessoas, Angélica, a moça da Cidade A, recusava
a suposta superioridade da sua origem cultural e/ou racial, igualando-se àqueles
reputados como inferiores.
Angélica mantinha um intenso convívio social com as colegas que compunham
‘o grupo dos excluídos’: “ela sempre fazia programas conosco” ... “... Saíamos muito
com a Angélica” ... “Íamos ao karaokê” ... “Certa vez, fomos à sua casa na praia”.
Isso demonstra que, no âmbito da vida concreta, nem todas as pessoas da Cidade A
eram racistas, todavia, salienta-se que, dentre os colegas de Ilma na Universidade Y,
Angélica representava uma minoria.
A constituição do ‘grupo dos excluídos’ evidencia o emprego de uma estratégia
de enfrentamento, pelos mestrandos que se sentiam discriminados. Formaram uma
aliança, com o intuito de se fortalecerem, através do apoio e da solidariedade, de
resistirem às desigualdades e aos possíveis desmandos que, porventura, viessem a ser
perpetrados contra eles. Em uma ocasião, inclusive, valeram-se do enfrentamento direto
às condições adversas:
“O Antero, que fazia parte do grupo dos excluídos, falou-me: ‘Ilma, tu tens que
ser a nossa representante, porque se nós ficarmos nas mãos desses meninos da
Universidade Y estaremos perdidos, nós que somos de fora’” ... “Eu falei: ‘ta,
vocês lançam o meu nome’ e eles lançaram”.
A participante/informante concorreu ao cargo de representante discente,
disputando-o com outra mestranda. Elegeu-se, contudo isso gerou uma animosidade:
“isso criou uma inimizade entre mim e a Adriana, a colega com quem competi, pois ela
ficou chateadíssima e deixou de falar comigo”. Apesar dessa ocorrência, a entrevistada
enfrentou a situação, desempenhando o seu papel até o final do mandato: “não sei, só
sei que acabei sendo uma representante discente que comparecia a todas as reuniões”
... “Depois, realizava uma outra com os colegas, para repassar os assuntos
discutidos”.
Evenice Santos Chaves O racismo na Trajetória Escolar e Profissional... 271
uma docente: “a Professora Pâmela havia comentado com ele, meu orientador, que eu
ficava muito tempo calada na sala de aula” ... “Ela achava que eu tinha muito a
contribuir e não o fazia...”. O silêncio de Ilma ocorreu nas demais disciplinas que
freqüentou: “durante o mestrado, o Professor Pinheiro perguntava porque não
participava nas aulas”.
Na literatura consultada, não foram encontrados trabalhos sobre relações
racializadas entre professores e alunos negros, na universidade. Deparou-se, porém, com
relatos de Carvalho (2002), sobre a ocorrência de duas situações em que docentes
emitiram juízos racistas sobre alunos negros. Esses relatos configuram situações de
discriminação racial direta, enquanto que, nas experiências de Ilma com professores, as
manifestações do racismo ocorreram pela via da discriminação indireta.
Sem dúvida, relações entre professores e alunos, nas quais o primeiro é o
discriminador e o segundo é o discriminado, quer direta ou indiretamente, interferem no
desempenho acadêmico do estudante e na sua auto-estima, como sugerem os dados
sobre o mutismo da entrevistada em sala de aula, durante o mestrado.
Assim, diante da discriminação a que foi submetida e da sua frágil auto-estima,
Ilma enfrentou uma limitação pessoal: “... eu... tive muita dificuldade em mostrar que
também tinha capacidade” ... “Na Universidade Y só consegui mostrar que tinha
capacidade ao final do curso, quando fui a primeira a concluir a dissertação”.
Embora demonstrasse competência e esforço pessoal, evidenciados no término
da pesquisa em tempo hábil, até antes dos demais colegas, o seu próprio orientador quis
protelar a defesa da dissertação, e, desse modo, anular a realização da entrevistada como
a pioneira da turma: “quando cheguei com a dissertação pronta, o meu próprio
orientador tentou segurar” ... “Porém disse-lhe: ‘não Pinheiro, eu tenho que terminar
porque quero voltar pra a Cidade E agora em março...’”.
Adita-se que o professor orientador da participante/informante pouco contribuiu,
durante a elaboração da dissertação:
“Meu orientador era uma pessoa super legal” ... “Contudo, ele não..., ele não
lia, não me ajudou muito na dissertação” ... “A fiz praticamente sozinha” ...
“Mostrava para ele o que já havia realizado e complementava: ‘ agora eu vou
fazer assim...’”.
Esses conteúdos fornecem pistas para a interpretação de que o professor Pinheiro
Evenice Santos Chaves O racismo na Trajetória Escolar e Profissional... 273
atuou com indiferença, mas inexistem dados que permitam inferir sobre o motivo de tal
tratamento dispensado às demandas da mestranda. Afirma-se, apenas, que o docente não
cumpriu a sua atribuição acadêmica de professor orientador de uma dissertação de
mestrado.
Vale citar que a Professora Pâmela não foi a única a interrogar sobre a qualidade
e a conclusão da pesquisa de dissertação daquela mestranda: “todavia, ainda tentaram
questionar se o trabalho já estava realmente pronto, se dava mesmo para aproveitar”
... “O professor Pinheiro acabou me apoiando”. O descrédito intelectual conferido a
Ilma ainda pode ser visualizado nos seguintes dados:
“Não acreditaram que fui a primeira a defender a dissertação” ... “Não
acreditaram..., realmente não acreditaram” ... “Foi um comentário geral, todo
mundo percebeu e comentou” ... “O comentário era o de que ninguém
acreditava, todo mundo pedia para ver se estava tudo pronto” ... “Diretamente,
nunca falaram nada para mim”.
A desqualificação à realização da participante/informante nada mais era que uma
forma de expressão da discriminação indireta e materializá-la, através da desvalorização
intelectual de uma aluna negra, obscureceu, para a mesma, a possibilidade de elaborar a
suposição de que alguns professores e alunos de um curso de pós-graduação poderiam
estar atuando de forma racista. Essa interpretação, caso seja viável, é indicativa da
forma camuflada como a discriminação perpetrada resvalou-se na conveniência, pois, na
instituição universitária, a discriminação e o preconceito são expressos de modo velado,
com o intuito de não se infringir um significado da instituição universitária: a unidade
da diversidade.
Ainda pode-se conjeturar que a discriminação indireta, empregada contra a
entrevistada, era de natureza racista. Destarte, tal forma de manifestação do racismo
mascarou as relações racializadas em ‘respeito’ à legislação em vigor, que o coloca
como crime inafiançável e, também, mantém ações consideradas como ‘politicamente
corretas’, aos olhos de outros. Apesar disso, a fraude individual, que conscientemente
incompatibiliza o discurso e o comportamento expresso nas relações socias, existe.
O conjunto de dados já elencados demonstra que, mesmo na adversidade, Ilma
foi competente para enfrentar as discriminações, a sua baixa auto-estima e atingir a
meta: tornar-se mestre. Todavia, as situações de discriminação pelas quais passou,
Evenice Santos Chaves O racismo na Trajetória Escolar e Profissional... 274
monitoramento nos estudos, atividade anteriormente realizada pela sua mãe. Isso
requereu que aprendesse a estudar sozinha, porém o seu desempenho acadêmico foi
afetado: “após o falecimento da minha mãe, acho que caí um pouco nos estudos,
porque não tinha mais aquela pessoa que me acompanhava”.
Malgrado a nova situação, ela foi capaz de concluir o secundário e o colegial, os
quais transcorreram em um momento crítico do seu curso de vida, sem inscrever na sua
história escolar a experiência da reprovação.
seu anterior sentimento de vergonha, gerado pela sua condição social, deu lugar ao
sentimento de incapacidade intelectual, portanto, de inferioridade.
Cinco anos depois de afastar-se da Instituição T, uma universidade pública abriu
concurso, todavia, devido à baixa auto-estima, a entrevistada não se submeteu a essa
seleção: “em um dado momento, houve um concurso para a Disciplina Beta, na
Universidade X, e eu não fiz porque achava que não era capaz” ... “Imagina: ser
professora da Universidade X, eu não tinha essa capacidade!”.
Novamente, uma depreciativa concepção de si mesma foi o impedimento para
que enfrentasse o concurso e a conseqüente situação de disputa, na qual competiria com
outras pessoas. Posteriormente, ao ler a publicação do resultado desse concurso, ou seja,
a divulgação do nome dos aprovados, arrependeu-se de não ter participado: “eu pensei:
‘poxa, mas a Adenir nem era da área, ela estudou só para o concurso e passou. Eu
deveria ter feito’” ... “Também eu achava que era inferior!”.
A elaboração do seu sentimento de inferioridade não ocorreu no vazio, mas,
como afirma Silva (2003), o outro é peça capital no processo de constituição do si
mesmo. Para a citada autora, o si mesmo, constitutivo da subjetividade, conserva
diferentes vozes, de diversas pessoas, bem como os lugares interditados ou possíveis de
serem ocupados por alguém. Com relação à entrevistada, parda, os discursos e as
práticas sociais, próprios da cultura brasileira racista, que maculam a imagem social do
grupo étnico negro, juntamente com a sua condição de vítima da violência estrutural do
racismo e de discriminações raciais, confiscaram a possibilidade de ver-se como apta a
ocupar um lugar e posição social destinados, hegemonicamente, aos brancos.
Ilma, ao defrontar-se com a desqualificação do negro, presente na nossa cultura
e nas relações sociais discriminadoras, as quais participaram do seu percurso de vida,
elaborou uma significação de si mesma como pessoa intelectualmente inferior, o que
conduz à afirmação de que era portadora de uma baixa auto-estima. Para Rey (2005), a
auto-estima é uma configuração de sentidos que o sujeito produz em relação a si
mesmo, no âmbito das suas experiências concretas. Assegura que nelas cada sujeito é
um participante ativo e sente algo em cada uma das suas vivências, que acontecem em
diferentes espaços sociais.
Retomando o concurso que Ilma se negou a prestar, salienta-se que a aprovação
da Adenir, sem formação compatível com a área para a qual foi aprovada, assim como a
Evenice Santos Chaves O racismo na Trajetória Escolar e Profissional... 281
formação da entrevistada, consoante com tal área, foram dois condicionantes que a
mobilizaram a ingressar como professora substituta, na Universidade X. Um ano depois
prestou concurso, foi aprovada e, desde então faz parte do quadro efetivo de docentes da
citada universidade. Desse modo, retornou à docência no ensino superior, oito anos após
a breve experiência como professora de terceiro grau, na Instituição T.
É certo que a participante/informante enfrentou o concurso, “investi, estudando
muito... para submeter-me ao concurso na Universidade X”, contudo necessitou de
muito apoio do namorado: “o Nilson me incentivou para fazer o concurso na
Universidade X, me incentivou muito...” ... “Estudou comigo e...” ... “A aula prática,
eu dei para ele..., treinei com ele” ... “Nilson sempre me fez crescer muito, tanto
profissional quanto pessoalmente” ... “Nilson me deu essa levantada”.
Verifica-se que o apoio social não se restringiu à instigação verbal realizada por
Nilson, com o intuito de fortalecê-la para enfrentar a situação de concurso. Tanto é que
estudou com a entrevistada como se fosse submeter-se à seleção. Esse evento é
indicativo da insegurança da mesma, interpretação corroborada pelo seguinte dado:
“parece que eu estou sempre precisando de alguém que me incentive e me impulsione”.
O seu namorado, ao concretizar um apoio social, suplementou a sua insegurança,
forjando uma participação como estudante dos conteúdos do concurso, o que não
respondia às suas necessidades, mas às dela. Já na década de 1990, Beck e Freeman
(1993) constataram, no exercício da atividade clínica, que há pessoas cujas estratégias
empregadas em relacionamentos interpessoais direcionam-se a outras que respondem de
modo protetor às suas necessidades de afeição e de apoio social.
Esses autores também concluíram que sujeitos fragilizados fogem de situações
que possam implicar em sofrimento, desenvolvem temores e crenças, os quais podem
gerar uma auto-imagem negativa. Neste caso em estudo, aspectos dessa modalidade de
auto-imagem aparecem, por exemplo: em conteúdos enunciadores do fracasso da
entrevistada quando se submeteu a um concurso público para docente, em uma
universidade pública na Cidade B, e não conseguiu fazer a prova; na fuga de um outro,
na Cidade E, por achar-se incompetente; na visão de si mesma como uma pessoa
inferior e nas crenças negativas sobre a própria capacidade de enfrentar situações para
as quais se julgava incompetente.
Em suma, muitas experiências sociais de Ilma, os significados sociais e os
Evenice Santos Chaves O racismo na Trajetória Escolar e Profissional... 282
“As insatisfações com a profissão são as condições materiais” ... “Temos pouco
espaço para trabalharmos, poucos equipamentos, não temos sala para os
professores” ... “Faltam salas para a orientação de alunos”.
Agora, cita-se o motivo principal que levou a entrevistada a optar pela docência,
na Universidade X: “foi a questão financeira que me chamou, apesar do salário não ser
lá essas coisas” ... “O que me incentivou foi o salário, primeiro o salário, depois a
oportunidade de voltar a estudar conteúdos teóricos de uma dada área”.
Uma decisão individual é construída em processos existenciais e, ao mesmo
tempo, cada pessoa em particular é representativa de uma coletividade. Destacando-se
aquela formada pelo grupo étnico negro, histórica e socialmente discriminada no Brasil,
é imperativo destacar que a educação pode ser entendida por membros desse grupo
como um caminho para a superação das desigualdades sociais e raciais, ou seja, como
uma porta de acesso à mobilidade social ascendente, processo que aconteceu na
trajetória de vida da participante/informante.
Munanga (2004) aborda que proposições para a superação das desigualdades
entre o branco e o negro, no Brasil, foram difundidas por movimentos negros, entre as
décadas de 1930 e de 1970, da seguinte forma: a Frente Negra, criada em 1931, e outros
desses movimentos que emergiram e submergiram entre os anos de 1945 e 1970,
buscaram construir uma outra imagem para o negro, sedimentada naquela difundida
pela ideologia da democracia racial. Conforme o pesquisador, o discurso ideológico
desse enfoque propunha que, para ser aceito pelo branco, o negro deveria modificar-se,
deixar de ser ‘promíscuo’, ‘autodestrutivo’, ‘preguiçoso’, engajar-se na educação formal
e absorver o modelo da branquitude.
Com essa perspectiva, continua Munanga (2004), parte dos movimentos negros
desenvolveu ações, englobando o incentivo à educação, a incorporação de um ‘bom
comportamento’, a propaganda de produtos para alisar os cabelos crespos e a rejeição a
qualquer manifestação cultural dos áfricos, considerados como culturalmente inferiores.
A noção da educação como via de superação da rejeição ao negro parece ter sido
internalizada pelos pais da participante/informante, os quais não hesitaram em valorizá-
la e em investirem na escolaridade dos filhos. Supõe-se que a entrevistada apropriou-se
dessa perspectiva, o que é sugerido, até aqui, pela sua continuidade nos estudos e
ausência de qualquer relato sobre a influência da cultura africana em seu estilo de vida.
Evenice Santos Chaves O racismo na Trajetória Escolar e Profissional... 289
pessoal, pois “às vezes, a minha inabilidade para lidar com as pessoas me fazia ser
agressiva”.
Quanto ao trabalho na universidade, nota-se que o exercício docente implicou
em muitas convivências: “como docente na Universidade X comecei a conviver com a
diversidade”. Isso contribuiu para que superasse a incompetência em relacionar-se com
outros, cujas ações e pontos de vista divergiam do seu.
“Iniciei um convívio com as diferenças profissionais e fui aprendendo...,
adquirindo outras habilidades” ... “Enquanto professora, na Universidade X,
comecei a entender mais as pessoas” ... “Adquiri mais capacidade para lidar
com as pessoas, tornei-me mais tolerante...” ... “Estou bem melhor, muito
mais... tranqüila... no meu relacionamento com as pessoas, no meu local de
trabalho”.
Observa-se que a reconstrução de aspectos da visão de si mesma incorporou a
tolerância, a habilidade para compreender a perspectiva de outros e a maior serenidade
nas relações interpessoais. Outras aquisições pessoais tomaram lugar, todas endereçadas
à superação do sentimento de inferioridade que a acompanhou, em muitos momentos e
situações:
“Como docente na Universidade X comecei a me valorizar como pessoa...” ...
“Aos poucos, enquanto docente, fui obtendo maior confiança no meu trabalho”
... “Fui crescendo aos poucos... amadurecendo, sentindo-me mais segura com
relação a tudo...”.
Verifica-se que a presença do outro na (re)construção do si mesmo foi constante,
embora, em diferentes situações, esse outro a acolhesse, ou a rejeitasse, ou estabelecesse
barreiras e fronteiras nas interações sociais. Tudo isso promoveu atualizações na visão
da entrevistada sobre a sua pessoa, ampliando o foco do conhecimento sobre a sua
singularidade e, em decorrência, alterando o seu processo de desenvolvimento. Esse,
como os dados demonstram, é dinâmico, graças às relações eu-outro, concretizadas nos
acontecimentos situados em diferentes tempos, espaços e situações sociais.
7.2.8. Qual o olhar de Ilma sobre o papel do racismo contra o negro em sua
vida?
Como algumas análises anteriores salientaram, o racismo contra o negro, do qual
Evenice Santos Chaves O racismo na Trajetória Escolar e Profissional... 291
assumir minha parte negra”. Os dados ausentes não permitem entender porque o
rompimento do vínculo matrimonial gerou essa necessidade de resolver o provável
conflito de identidade étnica. Nessa direção, buscou se fortalecer para solucionar o
conflito, mas esse movimento pessoal foi efêmero:
“Após a separação, quando retornei à Cidade E, fiz parte, por um tempo, da
Organização Estadual I de Luta Contra a Discriminação Racial, para assumir a
minha condição de afrodescendente” ... “Freqüentei durante um tempo” ...
“Contudo, tive muita dificuldade com uma pessoa daquela organização, porque
ela é uma pessoa muito difícil”... “Então me afastei”.
Embora justifique sua saída daquela organização, seu desligamento parece
refletir outra questão, qual seja: o quão embaraçoso era admitir-se como negra. Afora os
dados já focalizados em outros pontos deste trabalho, que indicam a sua dificuldade em
enxergar o racismo dirigido à sua pessoa, é plausível lançar mão de outros argumentos,
expostos em seguida, que debilitam a justificativa apresentada como motivo para o seu
abandono da militância em um movimento negro.
Em primeiro lugar, aquela organização era constituída por um conjunto de
pessoas, não só por aquela com a qual a participante/informante não conseguia manter
um razoável relacionamento. Assim, essa dificuldade, por si só, não explica a sua
desistência, pois o objetivo de fortalecer-se para incorporar a identidade negra, através
do seu engajamento na militância, poderia ser alcançado em outro movimento negro
instituído, que existia na Cidade E.
Se tais argumentações são admissíveis, então é pertinente interpretar que a sua
decisão em desligar-se da organização enraizava-se em um conflito socialmente
instigado: branquear-se para ser aceita no mundo dos brancos, mantendo uma distância
racial do grupo étnico negro, ou assumir-se como negra, enfrentando os conseqüentes
desafios, provenientes da assunção dessa condição étnica.
Para pesquisadores como Figueiredo (2002) e Munanga (2004), a coação é uma
das prescrições ideológicas da democracia racial para que os negros incorporem o
modelo da branquitude, quer no plano estético, quer no comportamental, quer no
intelectual, quer no quadro referencial de valores, todos intrincados. Por isso mesmo,
embora o conflito de Ilma frente à sua identidade étnica seja individual, produto dos
sentidos que elaborou em suas vivências, os seus conteúdos e significações são sociais,
Evenice Santos Chaves O racismo na Trajetória Escolar e Profissional... 294
A partir dessa elaboração teórica, supõe-se que a posição social ocupada pela
participante/informante no presente, seus relacionamentos interpessoais e os contextos
nos quais têm atuado mudaram a qualidade de suas interações sociais e, ao mesmo
tempo, o conhecimento que vem produzindo sobre si mesma, suas ações e sentimentos.
Tal re-articulação, social e psicológica, transforma, concomitante e qualitativamente, o
processo de produção de sentidos subjetivos, o qual ocorre no eixo da contradição entre
o antigo e o novo, ou, como colocou Rey (2005), na tensão gerada pelo rompimento e
pela criação, produtora de novos sentidos.
Então, sentidos anteriores reconstroem-se no presente, permitindo ao sujeito
também se projetar no futuro, pela via da imaginação e da criatividade. Planejar um
momento vindouro, divisando outro modo de posicionar-se etnicamente no mundo
social, é uma forma de Ilma buscar romper com um passado sem identidade étnica
definida ou significada, por ela mesma, como pessoa inferior. Ao arquitetar a assunção
da negritude, a participante/informante busca ultrapassar a tensão gerada por uma
configuração anterior de sentido, calcada naquilo que Munanga (2004) delimitou como
a situação de pertencer/não pertencer à etnia negra, porque se é mestiço. Nessa dinâmica
existencial, a entrevistada articula um novo sentido, ou seja, outra significação pessoal
para a sua condição de ser negra, começando a assumir-se como tal e a orgulhar-se da
origem africana.
negros, foi criada em um ambiente familiar onde todos silenciavam sobre o racismo.
Provavelmente, esse silêncio colaborou para que o fenômeno se tornasse invisível para a
mesma, dificultando-lhe a sua identificação. A manutenção da ‘cegueira’ continuou
enquanto esteve casada, através do silêncio em torno do racismo imperou, e, como bem
salientou a participante/informante, ele ‘não era percebido’.
Conteúdos apostos aos itens sobre as instituições escolares que freqüentou e ao
seu local de trabalho são contraditórios. Referindo-se às escolas nas quais estudou,
aditou que não percebeu a presença do racismo, mas, de forma ambivalente, registrou
que o racismo ‘é sutil’ na universidade. Ora, ela freqüentou como aluna e ainda a
freqüenta, enquanto estudante de doutorado e docente. Como não perceber o racismo
nas escolas onde estudou e afirmar que ele manifesta-se com sutileza na universidade?
Tal contradição induz à interpretação de que a sutileza através da qual o racismo
permeia as relações sociais na escola não impediu que a participante/informante
captasse a ocorrência do fenômeno, pelo menos no ensino de terceiro grau, e isso
desbanca a sua afirmação de que não detectou a presença do racismo nas instituições
escolares onde transitou e transita. A partir dos dados e do paradoxo, entretanto, não é
possível afirmar se a sutileza do racismo foi captada pela mesma em comportamentos
discriminatórios dirigidos à sua pessoa ou a outros, e ela as observou.
O conteúdo acrescentado ao item sobre o racismo no seu local de trabalho, a
universidade, também corrobora a afirmativa de que apesar da sutileza do racismo que
perpassa as relações sociais, a participante/informante o identifica, com perspicácia.
A terceira categoria, os itens constitutivos e a complementação dos mesmos,
pela participante/informante, são descritos na Tabela 10.
7.4. A triangulação
Considerando-se as diferentes composições familiares da família de origem da
participante/informante, a comparação dos dados, oriundos da entrevista narrativa e do
questionário sócio-demográfico, indicou discrepâncias: 1) na entrevista narrativa,
relatou que durante a sua infância viveu no seio de uma família nuclear, porém sempre
havia a presença de tias em sua residência, para auxiliar a mãe nas tarefas domésticas.
No questionário sócio-demográfico, entretanto, registrou que, nesse mesmo período do
seu desenvolvimento, residia com os pais, irmãos e uma tia; 2) na entrevista narrativa,
ressaltou que uma cunhada residia na mesma casa em que morava, juntamente com o
pai e os irmãos, durante a sua juventude. Todavia, no questionário sócio-demográfico
omitiu a companheira de seu irmão da composição familiar; 3) na entrevista narrativa,
assinalou que em um momento da sua idade adulta retornou à casa paterna, contudo
excluiu essa informação, no questionário sócio-demográfico.
Evenice Santos Chaves O racismo na Trajetória Escolar e Profissional... 300
cursou o mestrado.
C) Escreveu, no instrumento, que não sente a existência do racismo nas relações
sociais em geral e no bairro onde mora, mencionando, também, na entrevista narrativa,
que nunca se sentiu segregada devido à sua cor, contudo, afirmou, na mesma entrevista,
que o seu sentimento de inferioridade relacionava-se à sua cor.
As contradições listadas adquirem significação nas próprias incongruências,
identificadas através da triangulação. O contraditório, então, fornece indícios para a
interpretação de que se admitir como um objeto do racismo contra o negro é árduo para
a participante/informante. Por isso, suas negações sobre a presença desse fenômeno, em
diferentes espaços e relações sociais, podem ser vistas como subterfúgios empregados
enquanto estratégia de enfrentamento para fazer face à sua condição de negra, portanto
vulnerável a investidas racistas, no bojo das relações sociais.
Do exposto até então, as inconsistências apontadas não comprometem resultados
obtidos nesta pesquisa, mesmo porque os seus objetivos não estão centrados na vida
familiar da participante/informante. Alguns aspectos foram incluídos por conformarem
um contexto de desenvolvimento que contribuiu para que a participante/informante
concluísse o ciclo formal de estudos.
Dessa forma, a triangulação não invalidou dados, mas, ao contrário, permitiu
identificar relações de complementaridade entre alguns gerados por diferentes fontes.
Dito de outro modo, esclareceu, com mais acuidade, as distintas composições da família
de origem da participante/informante, nos períodos em que residiu naquele lar.
Ao selecionar-se o racismo como tema central, em torno do qual também se
empreendeu a triangulação, a análise das contradições entre dados suscitou reflexões
sobre o contraditório, daí resultando um entendimento de que o paradoxo advindo dos
dados coletados com a participante/informante parda reflete seu modo particular de
enfrentar o racismo.
CAPÍTULO 8
1
Apesar de se autoclassificar como parda, essa participante/informante tem o fenótipo branco, conforme
os critérios empregados para defini-lo nesta pesquisa.
Evenice Santos Chaves O racismo na Trajetória Escolar e Profissional... 304
pela mãe e pelos cinco filhos, “...três mulheres e dois homens”, e Marise ocupava uma
posição intermediária nessa ordem: “eu sou a filha do meio”.
As interações sociais, como também as atividades desenvolvidas no lar, foram
marcadas por características de seu pai. Marise citou que durante a sua infância e
adolescência, ele “...era ríspido” e, durante o período em que dependeu
economicamente do mesmo, ele “...foi muito..., não é nem austero, as coisas dele ele
tinha, era conosco que ele era muito... sovina”. Em sua adolescência, esse
comportamento do genitor levou sua mãe a desenvolver uma atividade remunerada:
“quando estava com... doze anos, a minha mãe começou a costurar para fora,
buscando conseguir um dinheiro para ajudar”... “...Visando a garantir um
dinheirozinho para ver se diminuíam as brigas em casa”. É importante assinalar que, da
infância à juventude da participante/informante, interações belicosas entre os seus
progenitores eram uma constante: “a minha vida familiar sempre foi muito permeada
por brigas entre o papai e a mamãe: nós como motivo”.
Foi a mãe de Marise quem buscou realizar uma atividade de trabalho, com o
intuito de obter uma renda para o suprimento, ainda que parcial, das necessidades
sociais emergentes. Desse modo, buscou, pelo menos, abrandar conflitos de interesses,
derivados da escassez de recursos financeiros do genitor e/ou da sua indisponibilidade
para colaborar no atendimento às necesidades sociais impostas pela adolescência de
seus filhos. Por outro lado, costurar para angariar dinheiro remete àquilo que Bastos,
Alcântara e Santos (2002) apontam como uma especificidade da instituição familiar: a
possibilidade de se auto-organizar, lançando mão da inovação e, conseqüentemente,
adequar-se a novas circunstâncias sociais e relacionais.
Assim, dados referentes à vida concreta de Marise mostram que apesar da
instituição familiar preservar, em muitos casos, a unidade, também se mantém pela via
do conflito e pelo emprego de estratégias que objetivam eliminar ou minimizar algum
de seus determinantes.
Marise conviveu mais com a mãe e irmãos e, ao se referir ao pai, afirmou que
durante a sua adolescência, “ele saía pela manhã para o trabalho e voltava à noite”,
mas sua mãe intermediava o contato dessa filha com o mesmo, “...ela sempre fazia o
intercâmbio entre nós e o papai”. A entrevistada também relatou que, ao longo do seu
ciclo de vida já vivido, “o papai nunca nos deu um abraço” ... “O papai não..., porque
Evenice Santos Chaves O racismo na Trajetória Escolar e Profissional... 305
sempre foi uma pessoa meio ausente”. Sua progenitora, no entanto, foi enfatizada como
“...uma figura muito presente, como uma base de segurança para nós”.
A presença materna como a cuidadora dos filhos é evidenciada em dados sobre
acontecimentos que tomaram lugar na vida da entrevistada, durante a sua infância:
“quem mais mantinha relação conosco era a minha mãe”. Foi ela quem providenciou
escola e atentou para a prevenção da saúde dos filhos, “o marco das nossas saídas era
ir ao posto de saúde tomar vacina” ... “A mamãe era quem levava os cinco filhos” ...
“Um sempre no braço e os outros quatro caminhando”. Também os incentivou a
assumirem uma religião, “foi a minha mãe quem insistiu para fazermos a primeira
comunhão”, propiciou lazer, “a mamãe nos levava para assistir a queima de fogos em
uma festa popular”, e garantiu, através do seu trabalho, o vestuário das crianças, “a
mamãe costurava para todos nós”. Sintetizando, Ilma asseverou: “sempre, sempre que
me lembro, era ela para tudo: para o colégio, para... as saídas na infância”.
Com relação à escolarização dos filhos, nas suas infâncias e adolescências, foi
fundamental a participação da sua genitora: “só conseguimos estudar porque a mamãe
ia atrás de colégio e de colégio público para nós”. Adiciona-se que “no primeiro
vestibular que uma das minhas irmãs prestou, a mamãe penhorou a sua aliança na
Caixa Econômica” ... “No período da minha outra irmã, a caçula, ela vendeu a sua
aliança, porque o meu pai disse que não pagaria a inscrição, nem o penhor”.
No presente caso, as brigas do casal provavelmente se agravaram a partir da
adolescência da participante/informante e de seus irmãos, devido às novas demandas
sociais que esse momento do processo de desenvolvimento dos filhos requeria. A mãe
da entrevistada, então, buscou angariar recursos para a manutenção de duas filhas na
escola e, possivelmente, eliminar um conflito de interesses.
Os conteúdos já focalizados demostram que apesar da família de Marise incluir-
se na categoria nuclear tradicional, a divisão de papéis entre o seu pai e a sua mãe foge
desse tipo de ordenamento familiar, onde o pai desempenha a função de provedor de
recursos financeiros, para a sobrevivência dos seus membros e educação dos filhos. É
certo que essa função relaciona-se ao seu poder aquisitivo e, em muitas famílias pobres,
as mães, e até as crianças, executam trabalhos, com o objetivo de contribuir na renda
famíliar e garantir a sobrevivência do grupo.
Os dados até aqui descritos sugerem que, na família da participante/informante,
Evenice Santos Chaves O racismo na Trajetória Escolar e Profissional... 306
durante a sua infância e adolescência, a contribuição financeira do seu pai era escassa.
Embora o seu trabalho rendesse um baixo salário, como a própria entrevistada colocou,
ele investia em objetos para si mesmo e era sovina, no que tange à disponibilização de
dinheiro para o atendimento de algumas necessidades dos filhos.
Tal especificidade levou a sua mãe a assumir o papel de provedora de recursos,
como, por exemplo, para o vestuário dos filhos e para suas inserções e permanências na
escola. Essa configuração indica que na nossa cultura, e em alguns lares pobres, como o
da entrevistada, embora haja a presença do pai e a continuidade da unidade familiar, o
trabalho da mulher e o seu envolvimento na criação da prole garantem o suprimento de
necessidades. Porém, o papel de provedora financeira não decorre da condição de
colaboradora, a partir da negociação com o seu marido sobre o partilhar de despesas.
A precária paticipação do genitor de Marise no aprovisionamento de recursos
financeiros e na prática de criação de filhos, funções socialmente construídas, coaduna
com a interpretação realizada por Bastos (2001) de que, ao se considerar práticas
culturais e idéias sobre a criação de filhos, é necessário transpor o destaque auferido aos
agentes socializadores e enfocar sujeitos sociais que se influenciam de modo recíproco.
Esses, conforme a autora, são ativos, construtivos, resistentes ou transformadores.
Verifica-se que o pai da entrevistada, por razões não explicitadas nos dados,
atuou como genitor, porém resistindo à idéia cultural do pai como provedor financeiro e
participante nas práticas de criação dos filhos. Isso equivale dizer que abdicou de
desempenhar papéis e responsabilidades culturalmente prescritos, ligados à paternidade.
A afirmação antecedente demonstra que, na família, nem todos os cônjuges incorporam
papéis sociais que lhes são atribuídos e, por isso, se negam a desempenhá-los na vida
prática. Todavia, deve-se considerar que na família de Marise, a abdicação do seu pai
implicou em sobrecarga de tarefas para a mãe, em conflitos familiares e em um padrão
de relacionamento interpessoal que repercutiu no convívio atual da entrevistada com os
seus irmãos.
Assim é que, referindo-se às brigas entre os seus pais, durante a sua infância e
adolescência, a participante/informante enfatizou:
“Essas coisas contribuíram para que não nos tornássemos irmãos muito
afetuosos” ... “Enquanto irmãos, não nos sentimos muito unidos” ...
“Atualmente, depois de crescidos, é que nos cumprimentamos na época de duas
Evenice Santos Chaves O racismo na Trajetória Escolar e Profissional... 307
eles sobre amigos...” ... “Eles lembram muito mais do que eu que faziam
amigos: tinham amigos” ... “Juntavam-se em grupos com os outros, com os
vizinhos” ... “Mas eu não conseguia”.
A escassez de amizades perpassou a adolescência da entrevistada, “eu tinha
poucos amigos”, e, talvez por isso, o seu cotidiano ficou circunscrito à realização de
tarefas solitárias: “durante toda a minha vida de primeiro e de segundo graus me
restringia a estudar e realizar atividades dentro da minha casa”. Marise também
discorreu que na adolescência “não ia a festas”.
Dados ausentes sugerem que ela não colaborava na realização de trabalhos
domésticos, mas desenvolvia alguns afazeres: “para ocupar o meu tempo, em casa,
fazia algumas coisas que aprendi no colégio de freira, como colchas de retalho
lindíssimas, de vários formatos: triângulo, quadrado” ... “Daquelas... rodinhas que
hoje estão muito na moda, para fazer bolsas e blusas” ... “Como não saía, assistia a
muitos filmes pela televisão”.
Isentar-se da realização de trabalhos domésticos, mas preencher o tempo livre
com atividades derivadas da aprendizagem escolar, compatibiliza-se com a afirmação
de Bastos (2001) de que a perspectiva cultural e hodierna de infância consagra a
atividade escolar como o ponto fundamental da vida da criança. Na vida de Marise, um
elemento constitutivo do currículo escolar da escola de primeiro grau que freqüentou,
até a quarta série, produziu aquisições, que generalizou e empregou para preencher o
seu tempo vago no lar e, ainda, as avaliou como relevantes para sua vida prática:
“confesso que foram boas para a minha vida, depois de ter chegado à adolescência,
porque meu pai não gostava muito que nós saíssemos” ... “A costura também foi útil
para mim, na época em que éramos muito carentes”.
A participante/informante residiu com seus pais até o início da idade adulta, mas
dados sobre eventos da sua vida em família assentam-se apenas nas dificuldades
financeiras que transpassaram a sua vida escolar na adolescência e na juventude, as
quais serão abordadas na descrição do seu percusso escolar, realizada a seguir.
dessa instituição escolar: “... pela parte da manhã era aberta para as pessoas que
podiam pagar uma mensalidade e à tarde forneciam um tipo de bolsa para as crianças
da redondeza”.
Como a sua família era pobre, e não podia pagar mensalidades escolares, sua
genitora tomou a iniciativa de pleitear uma bolsa para a filha: “minha mãe foi lá,
conversou e obteve uma bolsa para mim”. Isenta da mensalidade, a entrevistada
estudou durante alguns anos no Colégio M: “essas séries bem iniciais, fiz em um
colégio de freira..., defronte da minha casa” ... “Um colégio religioso, onde permaneci
até a quarta série... do primeiro grau”.
A natureza dessa instituição impunha uma educação cristã: “como esse colégio...
era de freira, existiam... alguns quesitos a serem seguidos” ... “Dentre eles, não lembro
muito bem se vigoravam da alfabetização à quarta série, a aula de religião”. Outra
característica era a disciplina Educação Artística, “não era culinária, era artes: artes,
educação artística, onde se trabalhava culinária, bordado e costura”. Além disso, a
roupa de educação física conformava-se às restrições religiosas frente à exposição do
corpo: “...tinha um elástico nas pernas, ficava como um babadinho e ainda tinha a saia
por cima”.
Relativamente às suas experiências no Colégio M, a participante/informante não
aludiu à convivência com colegas. Referiu-se, no entanto, à comemoração de festas na
escola, ressaltando um acontecimento que sinaliza sua inclusão social excludente:
“nunca fui convidada para dançar nenhuma quadrilha...”. Apesar disso, comparecia às
festividades, sempre acompanhada de sua genitora:
“Não fazíamos convites para festas escolares ao papai, mas a nossa mãe tinha
que ir” ... “Ela estava nestes momentos: festa de São João, mesmo eu não
dançando a quadrilha” ... “Mamãe freqüentava conosco as festas escolares” ...
“Era o maior orgulho levá-la”.
Sobre as professoras, mencionou o quão era destacada pelas mesmas, dado o seu
desempenho escolar: “eu era enfatizada como modelo” ... “Todas as minhas provas
tinham um O grandão” ... “Elas liam as minhas questões” ... “Mostravam as minhas
provas” ... “Essas passavam entre os colegas da turma”. Marise aditou que as docentes
não abriam mão de colocar a letra ‘O’, de ótimo, nas suas avaliações, “as professoras
faziam questão disso”, e justificou: “funcionava como reforço para quem tirou a nota...
Evenice Santos Chaves O racismo na Trajetória Escolar e Profissional... 310
brincando de pular corda e essas, provavelmente, não eram negras, porquanto ela
mesma declarou que o seu primeiro convívio com um negro foi no estágio oferecido
pela Empresa 1.
A condição de pobreza da participante/informante e a relevância que atribuiu ao
estágio, dada a remuneração que possivelmente supriu algumas de suas necessidades
sociais, sugerem que o branco também é vítima das desigualdades sociais, porém, ao se
considerar o negro, a essa se adita a desigualdade racial. Desse modo, o conjunto de
dados sobre a condição econômica de Marise e sobre os seus relacionamentos
interpessoais, explicitados até então, demonstram que pessoas fenotipicamente brancas
compartilham com os negros um lugar social caracterizado pela pobreza, ou seja, a
desigualdade social. Todavia, alguns brancos, embora pobres, se distanciam daqueles
pertencentes ao grupo étnico negro, ou seja, os que trazem a marca da origem africana
em seus fenótipos.
Conforme já enfatizado, Marise ressaltou que, no estágio, se relacionou
cotidianamente com uma pessoa negra, “extremamente competente”. Verifica-se que a
entrevistada salientou a capacidade do colega negro e é plausível supor tal destaque a
duas razões: como ênfase ao mérito de Coriolano como excelente trabalhador, ou como
alusão ao fato de que, apesar dele ser negro, portanto oriundo de uma etnia socialmente
considerada como inferior, também no plano intelectual, constituía uma exceção. Mas,
não há dados disponíveis que possam dar sustentação a nenhuma das suposições acima
formuladas.
Retornando à vida escolar da participante/informante, ressalva-se que a mesma
concluiu o terceiro ano colegial, todavia, nessa etapa, precisou realizar uma escolha
sobre o curso que deveria freqüentar na universidade. Ela ficou dividida entre o Curso C
e o Curso H, devido à influência de personagens de dois filmes:
“Assisti a um filme na televisão onde uma profissional da Área H se destacava”
... “Outro, onde uma profissional da área C atuava conjuntamente com a polícia
e conseguiam resolver um caso, não lembro como” ... “Isso foi decisivo para
ficar entre essas duas profissões”.
Ainda relatou um outro elemento que influenciou na sua escolha: “não escolhi o
Curso H porque julgava não ter uma boa redação” ... “Optei pelo Curso C” ... “Essa
foi a origem da minha escolha”. Assim, prestou vestibular na Universidade X, foi
Evenice Santos Chaves O racismo na Trajetória Escolar e Profissional... 315
socialmente privilegiados:
“Vivíamos correndo à biblioteca, fazendo empréstimo de livros, tentando suprir
a nossa desvantagem” ... “Nós, que emprestávamos da biblioteca, tínhamos
apenas três dias de disponibilidade” ... “Além do mais, existiam poucos
exemplares na biblioteca” ... “Às vezes, enfrentávamos o problema de só haver
um livro de determinado conteúdo” ... “Além disso, qualquer livro que um
professor indicasse, essas pessoas traziam na aula seguinte”.
Outro aspecto que diferenciava a entrevistada, e os membros do seu grupo, das
colegas com maior poder aquisitivo era a participação em atividades de lazer:
“Às vezes queríamos sair, sentar em um local para tomar alguma coisa e eu não
tinha dinheiro” ... “As colegas ricas comentavam sobre algumas festas que
iriam e perguntavam se nós não iríamos” ... “Na verdade, não falávamos para
elas que não iríamos porque não podíamos comprar o ingresso”.
A participante/informante sublinhou que “a nossa relação com a turma era de
preconceito nosso com relação a eles”, e há dados que corroboram essa afirmativa:
“Quando eu ou a Clotilde estávamos sozinhas, as colegas ricas, depois de uma aula, às
vezes convidavam para irmos à cantina: ‘vamos para a cantina, vocês não querem
ir?’” ... “Automaticamente respondíamos que não”. Além da recusa, há o relato de que
“nem cogitávamos a hipótese de acompanhá-las”.
Os conteúdos indicativos do preconceito sugerem a discriminação entre pessoas
brancas, gerada pela diversidade de nível sócio-econômico. Está implícita nessa
discriminação a noção de inferioridade financeira e é interessante destacar que, neste
estudo, a hostilidade frente aos economicamente privilegiados evidenciou-se entre
brancos. Assim, estudantes pobres e brancos excluíam aqueles ricos e brancos, das suas
convivências no espaço universitário.
Bento (2002a) afirma que uma dimensão do processo psicossocial de exclusão é
a exclusão moral, cuja característica primordial é a desvalorização de uns seres
humanos por outros. Segundo a autora, os excluídos são considerados como pessoas
desprovidas de valor e desprezíveis e, por isso mesmo, aqueles que não fazem parte de
um mesmo quadro de referência moral são objeto de descaso e avaliados com maior
severidade. A referida pesquisadora também assinala que “em certa medida, qualquer
um de nós tem limites morais, podendo excluir moralmente os demais em alguma esfera
Evenice Santos Chaves O racismo na Trajetória Escolar e Profissional... 317
de nossas vidas” (Bento, 2002a, p. 30). Em certo sentido, nota-se que Marise
reconheceu o processo de exclusão moral ao qual submeteu alguns colegas, ao afirmar a
natureza preconceituosa das suas relações com os mais abastados, durante a graduação:
“acho que é preconceito mesmo, nós rotulávamos muito...”.
Enquanto cursava as disciplinas da graduação, a entrevistada e os membros do
seu grupo militaram no movimento estudantil: “concorremos a uma chapa para a
Unidade C”, foram eleitos e atuaram “...como representantes de setor e participantes
de reuniões em outra Unidade, a D”. Em tais atuações, os movimentos de Marise, na
universidade, se ampliaram, observando-se que a meta principal dos estudantes, naquele
período, era a luta pela meia passagem, “nos engajamos e uma das nossas bandeiras
era a de conseguir a meia passagem, sem burocracia”, operacionalizada em
manifestações coletivas:
“Nas passeatas, saíamos caminhando da Universidade X até a casa do
Governador” ... “Fazíamos grupos organizados para pularmos a roleta” ...
“Ninguém pulava sozinho, pois a instrução era fazê-lo conjuntamente com
outras pessoas, para não sermos levados à garagem” ... “Se fôssemos, seria de
forma coletiva, o que daria mais força ao movimento”.
Essas ações implicaram em confinamentos: “durante a luta pela meia passagem,
em algumas ocasiões, nós, os estudantes, ficamos presos dentro de ônibus” ... “Certa
vez permanecemos por uma hora retidos na delegacia”.
Outro tipo de ação inerente à militâcia estudantil foi a sua atuação em sala de
aula e nas assembléias. Na classe, as tarefa eram a de promover uma discussão sobre o
tema condutor da próxima assembléia, a solicitação, a(o) professor(a), da liberação dos
alunos para participarem da mesma e, caso não houvesse a liberação, solicitar aos
colegas que “...não comparecessem para que ninguém levasse falta e a matéria não
fosse ministrada”.
Essa militância, pois, impulsionou Marise a participar, pela primeira vez, de
movimentos coletivos que visavam à transformação social. Isso, possivelmente,
ampliou o seu entendimento acerca da noção de direitos e contribuiu para redirecionar
as suas ações frente à desigualdade social. Se antes a sua indignação era dirigida a
colegas com maior poder aquisitivo, a participação no movimento estudantil a deslocou
para a estrutura social brasileira, a qual, ao categorizar grupos sociais pelo critério
Evenice Santos Chaves O racismo na Trajetória Escolar e Profissional... 318
econômico, dificulta o acesso do pobre à escola, desde a escassez de dinheiro para pagar
a passagem de ônibus à compra de material escolar.
Outro aspecto que merece ênfase é o desenvolvimento do espírito coletivo, a
partir da sua atuação em ações reivindicatórias estudantis, o que reverberou na sala de
aula: se antes a participante/informante afastava-se das colegas ricas e as rejeitava,
enquanto representante no movimento estudantil assumiu outro comportamento, pois
passou a requerer a solidariedade daquelas a quem, veladamente, hostilizava.
Desse modo, a universidade proporcionou à entrevistada, ao longo dos anos de
graduação, não apenas a aquisição de conhecimentos acadêmicos, o namoro e a
construção de um círculo de amizades. Também contribuiu, pela via da militância
estudantil, no desenvolvimento da reflexão e da crítica social frente às desigualdades
sociais, indispensáveis à compreensão de como a nossa formação econômico-social
privilegia alguns grupos em detrimento de outros. Ademais, a visão crítica da sociedade
engendrou-lhe o entendimento, transpassado pela ação, de que mudanças no contexto da
sociedade necessitam da participação de todos, inclusive das colegas ‘ricas’, ainda que
os papéis a serem desempenhados pelos atores sociais sejam diversificados.
Ao cursar as disciplinas da graduação, Marise enfrentou restrições financeiras e
buscou minimizá-las:
“Comecei a pensar em formas de ganhar uma importância a mais, para
conseguir comprar os livros e as minhas roupas” ... “Juntava um dinheirinho,
vendendo doces na universidade” ... “Não era muito, contudo era de onde
conseguia tirar alguma coisa... para comprar um metro de pano e fazer uma
saia, umas coisinhas assim”.
Paralelamente, procurou inserir-se em um projeto de pesquisa, como bolsista:
“Hoje, pensando, eu... lembro direitinho como abordei o Rodrigo” ... “Como
cheguei até ele, no Espaço de Estudos Verde” ... “Perguntei: ‘o professor
Rodrigo está?’” ... “‘Rodrigo, boa tarde, eu quero saber se estás aceitando
bolsista’” ... “‘Eu estou disposta a trabalhar aqui e quero saber como é que é
a questão da bolsa’” ... “‘Qual é o horário que queres?’” ... “Falei para ele
que estava muito disposta a trabalhar por duas razões” ... “Primeiro, porque
queria aprender e achava que ali iria aprender muito” ... “Em segundo lugar,
precisava, de alguma forma, pagar, no mínimo, a minha passagem de ônibus
Evenice Santos Chaves O racismo na Trajetória Escolar e Profissional... 319
dela..., comunicando que iria para a Cidade Amarela, ela me deu as passagens de
ônibus: uma de ida e uma de volta...”. O dinheiro para o bilhete de retorno funcionou
como uma base de segurança para Marise: “na Cidade Amarela guardei o da minha
passagem de volta durante... uns dois anos, porque diante de qualquer adversidade
poderia retornar à Cidade E”.
A entrevistada ingressou no doutorado, na Universidade Z, e os seus relatos
sobre acontecimentos, no mundo da pós-graduação, focalizam relações interpessoais
envolvendo um colega e um amigo, negros. Ao se referir àqueles com quem freqüentava
a mesma turma, destacou: “na minha turma de pós-graduação, lembrei agora, acho
que apaguei o Caio da minha... lembrança”.
Piza (2002), ao estudar a branquitude, através de entrevistas realizadas com vinte
mulheres brancas, menciona que muitas delas se esqueciam das pessoas negras, com
quem se relacionaram em momentos anteriores de sua vida, durante a relação dialógica
com a referida pesquisadora. Também complementa que muitas se empenhavam para
lembrarem de pessoas negras. Como exemplo, a pesquisadora cita um dado expresso
por uma das entrevistadas: “nossa! A minha memória se apagou para isso!” (Piza,
2002, p. 86).
Esse dado de Piza, apesar de ser o único disponível na literatura consultada, e o
desta pesquisa, sobre o entorpecimento na memória da participante/informante branca
relativamente a uma pessoa negra, sugerem a pouca significação atribuída, por algumas
pessoas brancas, às experiências sociais compartilhadas com aquelas negras.
Marise também expôs uma situação envolvendo colegas brancos e negros, que
ocorreu mais de uma vez, em uma situação de lazer:
“Caio saía conosco e na hora de escolher uma pizza o fazíamos em conjunto:
‘qual é o teu voto, num sei o que?’” ... “O Caio levava muito tempo para
responder” ... “Logo as pessoas diziam...: ‘não, então passa, o Caio aceita
qualquer coisa’”.
Tacca (2004) menciona que cada ser se constitui, e se reconhece, como pessoa,
nas relações com o outro. Os dados acima mostram que, nas situações interativas, havia
o reconhecimento de diferenças e vigorava um processo de escolha democrática, mas
para os colegas brancos. Dessa forma, a assimetria nas interações sociais concretizava-
se na vantagem dos ‘mais iguais’, expressa no direito de votarem e elegerem o que a
Evenice Santos Chaves O racismo na Trajetória Escolar e Profissional... 323
comportamentos.
Considerando a auto-isenção da entrevistada, nota-se que além de eximir-se de
responsabilidade, permanecia indiferente e neutra diante das interações que incluíam o
negro no grupo de colegas, de forma excludente. Será que Marise sempre esteve
submetida a aprendizagens que camuflavam ou dissimulavam a presença do racismo
contra o negro na nossa sociedade? Será que não se confrontou com cenas explícitas de
racismo que a alertasse sobre a ocorrência desse fenômeno no cotidiano brasileiro?
Dados mostram que foi expectadora de outras ocorrências racistas, durante o
período em que residiu na Cidade Amarela e freqüentou o curso de doutoramento.
Marise construiu uma amizade com Cristina, namorada de um pós-graduando negro,
assinalando que “a Cristina e o Cardoso, colegas da pós-graduação, conviviam com o
racismo”. Para demonstrá-lo, descreveu alguns eventos:
“Toda vez que perguntavam ‘quem é Cristina?’, respondiam: ‘ah, Cristina é
aquela que, que, que namora um negão’” ... “O porteiro do edifício onde
morávamos chamava o Cardoso de negão” ... “Quando alguém chegava e
perguntava para o porteiro ‘qual é o apartamento da Cristina?’, ele
respondia...: ‘Cristina, aquela que namora com o negão?’ ... “Era a referência
empregada para descrevê-la” ... “‘É a menina lá do Cajueiro que namora
aquele negão’” ... “Então todo mundo já sabia quem era a Cristina”.
Argumenta-se que a participante/informante cometeu um equívoco ao situar o
tratamento de ‘negão’, dispensado ao namorado da sua colega, como manifestação de
racismo. Evidentemente, ao se avaliar o emprego do termo ‘negão’ em referência a um
negro, enquanto uma discriminação racial explícita, demanda a consideração do
contexto. Considerando-se o texto produzido pela narrativa de Marise, observa-se que:
1) não há qualquer episódio demonstrando o emprego de um tratamento fundamentado
na cor da pele para identificar uma pessoa branca, com termos como, por exemplo,
‘brancão’, ‘aquele branco’, ‘aquele bem, bem, bem branquinho’; 2) durante a entrevista
narrativa, Marise não se apresentou como alguém sensível ao racismo; 3) ela não
dissimulou o seu distanciamento pessoal dos negros; 4) a entrevistada não camuflou que
o racismo contra o negro carece de significado em sua vida.
Relativo à sua distância social dos negros, a participante/informante afirmou:
“não tive amigos... negros, só mesmo na Universidade Z”. É relevante apontar que os
Evenice Santos Chaves O racismo na Trajetória Escolar e Profissional... 325
porém juntou-se ao grupo: “as reuniões aconteciam no edifício onde morávamos” ...
“Disseram isso para ele, que residia em um outro” ... “O Caio, que era negro e
orientando do Professor Raimundo, começou a freqüentar o nosso grupo de estudos”.
No episódio antecedente, ela explicita, com clareza, a cor da pele de Caio, mas,
por exemplo, não especifica abertamente a cor dos outros colegas com quem ía a
restaurantes ou que compunham o grupo de estudos. Isso sugere o emprego de uma
categorização social, calcada no pólo branco/negro, para diferenciar as pessoas, a partir
do critério de cor.
Outra questão relevante, diz respeito ao comportamento de Caio de procurar
integrar-se no grupo dos colegas brancos, possivelmente buscando a aceitação social.
Todavia, apesar de passar a fazer parte do círculo de estudos, o seu comportamento foi,
mais uma vez, posto em relevo: “no grupo de estudos, ele não falava” ... “Falava
pouquíssimas coisas, era mais de observar...”, assim como o atributo que lhe foi
designado pelos colegas de estudo: “dizíamos que era meio lacônico”.
Há outra diferenciação traçada entre Caio e os demais estudantes, no contexto da
pós-graduação: “com relação ao Caio perguntavam... ‘quem é Caio?’” ... ‘É aquele
que não fala, aquele que vive dormindo’”. Esses conteúdos são indicativos de
estereótipos construídos para valorar negativamente o negro que conquistou um lugar
em um curso de pós-graduação.
Conclusivamente, na Cidade Amarela, a participante/informante experienciou a
presença do racismo contra o negro nas relações sociais, porém os seus relatos mostram
que os percebeu somente quando os atos racistas eram claramente manifestados.
Participou, inclusive, de situações atravessadas por relações racializadas, nas quais,
provavelmente, colaborou com a discriminação indireta dirigida a um colega negro,
sem, contudo, considerá-las como constitutivas do racismo.
Essa é uma nefasta implicação do mito da democracia racial e da consideração
do racismo contra o negro como algo que envolve apenas os representantes desse grupo
étnico e não como um processo relacional, o qual abarca pessoas com diferentes
fenótipos. O mascaramento, conferidor de invisibilidade a atos racistas, retira do branco
a sua responsabilidade e obscurece a sua participação nas relações sociais racializadas.
Por outro lado, o privilégio da cor exime aqueles que tem o fenótipo branco de serem
objeto do racismo e, talvez, essa isenção contribua para que muitos integrantes desse
Evenice Santos Chaves O racismo na Trajetória Escolar e Profissional... 327
vendendo doces na universidade” ... “Não era muito, contudo era de onde
conseguia tirar alguma coisa... para comprar um metro de pano e fazer uma
saia, umas coisinhas assim”.
Em um momento posterior, concorreu a uma bolsa de iniciação científica, outra
forma de angariar recurso para ajudar a suprir a sua falta de dinheiro: “Assim, ao tempo
em que aprenderia mais, também teria dinheiro para investir em livros, roupas e...
transporte”.
Posteriormente, embora portasse uma bolsa de iniciação científica, envolveu-se
em uma atividade formal de trabalho, que a levou a trancar dois semestres e a atrasar a
conclusão do curso por dois períodos letivos: “interrompi os estudos durante dois
semestres”.
As adversidades, que atravessaram o percurso escolar da entrevistada, podem ser
consideradas como barreiras, concorrentes com a sua continuidade nos estudos, ou com
o seu desempenho escolar, durante a adolescência e a juventude. Contudo, os obstáculos
foram superados, verificando-se que não envolviam a necessidade de trabalhar, com a
finalidade de angariar recursos para contribuir nas despesas gerais da casa dos pais,
onde residia. Ao contrário, teve moradia e alimentação garantidas pelos genitores, até o
momento em que resolveu morar sozinha.
três postos de trabalho, “minha primeira função na Empresa Cinco foi a CCP” ...
“Depois passei para... a DTA” ... “Finalmente, para a função JTU”, o que é indicativo
do seu bom desempenho como funcionária. Apesar disso, aquela organização a
dispensou: “Fui demitida da Empresa Cinco”.
O primeiro trabalho formal não condizia com as suas aspirações profissionais:
“No Espaço de Estudos Verde, ao começar a coletar dados, a entendê-los e a
escrever relatórios, não conseguia me ver atuando em outros espaços, apenas
na universidade” ... “Naquela época, como bolsista, não conseguia visualizar
outra coisa que não fosse ensinar” ... “Desde a graduação fiz a opção para
trabalhar com pesquisa, no Espaço de Estudos Verde” ... “No Espaço de
Estudos Verde, com o Professor Rodrigo, defini que era isso o que eu queria” ...
“É por aí que eu não me imaginava em outro local de trabalho”.
A entrevistada transformou essa aspiração em realidade quando cursava o
mestrado, na Cidade Amarela: “meu ingresso no mercado de trabalho docente foi... na
Cidade Amarela... durante o doutorado”. Nessa época, estava casada com o Castilho,
colega de profissão, que era docente em uma instituição de ensino particular e “por
intermédio dele, fui convidada a fazê-lo no mesmo local”.
A entrevistada assegurou que sentiu-se segura ao ministrar aulas, “não fiquei, de
forma alguma, intimidada ao assumir uma turma, pela primeira vez, na faculdade” ...
“Sentia-me com bastante intimidade no gerenciamento das turmas”, atribuindo essa
segurança ao aprendizado anterior: “a experiência que tive na graduação e no mestrado
me ajudou muito, principalmente a de prática de ensino”.
Discorreu como realização profissional, nessa jornada, a orientação de alunos da
graduação em trabalhos práticos, alguns dos quais foram posteriormente apresentados
em reunião científica: “...alguns dos alunos que cursavam as disciplinas administradas
por mim e pelo Castilho apresentaram trabalhos no citado congresso...”, explicitando
satisfação: “foi bom, me senti muito... recompensada pelos alunos terem nos procurado
e expressarem que queriam tentar arrumar os trabalhos para apresentarem” ... “Foi
muito bom, gostei de ter feito isso, definiu a minha atuação na docência”.
Posteriormente, por conta própria, procurou outra faculdade para lecionar,
“depois busquei outra instituição de ensino”, sendo admitida: “o meu currículo foi...
bem aceito” ... “No outro dia fizeram contato comigo” ... “Compareci e fui
Evenice Santos Chaves O racismo na Trajetória Escolar e Profissional... 330
efetiva” ... “Até agora já orientei seis mestrandos, que concluíram o curso”.
A sua experiência em pesquisas e orientação de alunos do mestrado, habilitou
Marise para orientar estudantes do doutorado, “credenciei-me, há uns quatro meses
atrás, como orientadora de... doutorado” ... “Tenho uma aluna de doutorado”.
Sobre as suas atividades adiministrativas, destacou: “também consegui inserção
em outras instâncias” ... “Para mim... estava muito... longe, como um posto de
coordenação que assumi... recentemente” ... “Atualmente, faço parte de um Conselho
ligado à administração central da Universidade X”. A esse respeito, Marise avalia que
“chegar a assumir um cargo de coordenação reflete um certo reconhecimento, por
parte das outras pessoas, de que eu tenho capacidade para administrar...”.
Embora sinta-se reconhecida pelos pares, a participante/informante declarou-se
insatisfeita com alguns comportamentos de colegas:
“Também há uma insatisfação com relação à solidariedade de alguns docentes
que compõem algumas comissões” ... “Eles absorvem as regras do cargo, as
quais só penalizam o parceiro” ... “Quando estão desempenhando função em
uma comissão, designada através de portaria, esquecem que são professores”.
O salário e a ausência de reconhecimento pelo excesso de trabalho que realiza
também são fontes de insatisfações no labor universitário:
“Basicamente fico muito insatisfeita em não ser remunerada condignamente por
tudo o que faço” ... “Acrescentamos malditos relatórios, mostramos que
trabalhamos três vezes mais que a pontuação oficial máxima, porém não
ganhamos pontos pelo que realizamos a mais”.
Contudo, a entrevistada sente-se satisfeita em ser reconhecida, com a atividade
de pesquisa e com o que vem acumulando:
“Prezo ser reconhecida como a professora” ... “Gosto de ser referência para os
alunos” ... “Se eles querem discutir assuntos da minha área estou como
referência” ... “Isso é uma satisfação para mim” ... “além disso, tocar as
minhas pesquisas” ... “Adoro trabalhos de avaliação de qualidade de
Instituições” ... “outro ponto é o meu acervo de materiais e publicações
decorrentes”.
O trabalho como professora universitária também propiciou o seu engajamento
no movimento docente: “desde que comecei a dar aulas, na Universidade X, tenho me
Evenice Santos Chaves O racismo na Trajetória Escolar e Profissional... 332
O racismo na cidade onde Considero ameno, comparativamente a outras cidades que tive
resido... oportunidade de residir.
O racismo nas escolas que Estava presente nas formas de referências às crianças negras que as
freqüentei... freqüentavam, principalmente em contextos de brincadeiras.
8.4. A triangulação
Concernente ao racismo contra o negro, o primeiro aspecto a destacar é que, no
questionário sócio-econômico, a participante/informante especificou que o pai é pardo
e, na lista de complementação de frases, há um dado sobre manifestações do racismo
contra o negro, em sua família de origem. Vale salientar que, na entrevista narrativa, ela
caracteriza o seu genitor como a pessoa que tensiona os relacionamentos interpessoais,
no contexto familiar.
A triangulação desses dados permite articular uma complementaridade entre os
mesmos e identificar uma contradição: uma pessoa do grupo étnico negro é membro de
uma família multirracial, mas, em seu ambiente familiar, ocorrem práticas sociais de
desqualificação do negro. Será que o pai da participante/informante era e/ou é objeto de
desvalorizações geradas pela cor da sua pele em casa? Não há dados que permitam
confirmar ou rejeitar esse questionamento, contudo, chama atenção o fato dele ser o
elemento tensionador das interações sociais entre os membros da família, a ponto de
provocar brigas, relacionar-se com a participante/informante através da mediação de sua
mãe e jamais ter dirigido um comportamento carinhoso a essa filha, como apontam
dados da entrevista narrativa. Isso significa dizer que, por coincidência ou não, o
Evenice Santos Chaves O racismo na Trajetória Escolar e Profissional... 338
membro da família de cor parda era o produtor de conflitos e aquele que se relacionava
com os filhos de modo distante, em muitos momentos do ciclo de vida já vivido pela
participante/informante.
Outro ponto complementar entre dados, proveniente da entrevista narrativa e da
lista de complementação de frases, diz respeito à descrição de situações atravessadas
por relações sociais racializadas: se, na entrevista, a participante/informante expôs
acontecimentos que incluíam o racismo contra o negro e que os observou em um
momento da sua idade adulta, na lista de complementação de frases, além de ressaltar a
presença do racismo na sua família de origem, apontou a ocorrência da discriminação
racial na instituição escolar, em três níveis de ensino, e no bairro onde reside. Ademais,
no instrumento em foco, reconheceu a presença desse fenômeno social no nosso país,
atravessando as relações sociais de forma dissimulada ou direta.
Ainda cabe destacar que a participante/informante não verbalizou, na entrevista
narrativa, se não é objeto da discriminação racial, contudo, na lista de complementação
de frases, adicionou ao item “o racismo na minha vida”, o registro de que ‘não está
presente’. Além disso, não ser objeto do racismo, e ser de cor branca, dá sustentação à
colocação de Bento (2002b) de que a branquitude confere privilégios. Dentre eles, tem-
se o privilégio da cor, noção empregada em interpretações realizadas nesta pesquisa.
Finalizando, conclui-se, mais uma vez, que o emprego da triangulação dos dados
permite identificar relações de complementaridade entre aqueles advindos de diferentes
fontes. Aqui, a configuração geral da análise comparativa realizada fundamentou-se em
dados gerados pela entrevista narrativa, pelo questionário sócio-demográfico e pela lista
de complementação de frases.
CAPÍTULO 9
CONSIDERAÇÕES FINAIS
natureza à animalidade e divulgando modelos de pessoa racionais, nos quais elas são
afirmativas, seguras, responsáveis pela própria vida e pelas suas ações. Os referidos
pesquisadores aditam que o ato de manifestar emoções é socialmente interpretado como
evidência de problemas, o que implica na rejeição social e na perda de status como
pessoa respeitável.
Cavalcante (2004), ao analisar a formulação de Gordon Allport sobre um
elemento constitutivo do racismo, o preconceito, conclui que esse autor o aborda como
categoria psicológica, referenciando-se na racionalidade científica, ou seja, orientando a
sua análise pelo princípio da razão. Desse modo, assegura a estudiosa, Allport situa o
preconceito como uma questão centrada na carência de conhecimento, por parte do
preconceituoso.
Na construção de conhecimentos científicos, o emprego da racionalidade como
referencial transcende a Gordon Allport, pois a literatura consultada sobre o racismo
contra o negro o enfoca de forma racional, desconsiderando-se o papel que as emoções
e que a ética relacional desempenham nas relações sociais racializadas. Madureira e
Branco (2005) afirmam que em Psicologia do Desenvolvimento, nos diferentes pontos
de vista teóricos, relega-se um papel secundário às emoções e o estudo dessa categoria
configura-se, contemporaneamente, como um dos mais relevantes desafios.
O racionalismo científico, embutido em estudos, está incorporado no conceito
ocidental de pessoa, daí decorrendo que essa tem desqualificado as emoções, enquanto a
ciência as tem desvalorizado como objeto de estudo. Tais questões mostram que é
necessário realizar pesquisas sobre o papel das emoções e das suas formas de expressão
nas relações sociais racializadas.
Esta pesquisa, um estudo sobre trajetórias de vida, portanto abrangendo o
processo de desenvolvimento humano, sugere que é importante desvelar porque uma
pessoa negra, objeto do racismo ao longo do seu curso de vida, omite as emoções que
emergiram nas situações atravessadas pelas desigualdades raciais vivenciadas. Essa é
uma questão que precisa ser investigada.
Como sujeito da sociedade ocidental, que pressiona a todos para a racionalidade,
e, também, como membro de uma comunidade científica racionalista, esta pesquisadora
admite o seu olhar teórico mais racional, embora tenha conferido atenção aos dados
referentes aos sentimentos e se apropriado de construções teóricas que vão além da
Evenice Santos Chaves O racismo na Trajetória Escolar e Profissional... 344
da discriminação a que esteve submetida, foi a primeira aluna da sua turma a concluir a
dissertação.
O segundo ponto é o de que enfrentou tentativas de questionamento à qualidade
da sua dissertação de mestrado, os comentários jocosos sobre o fato de tê-la concluído
antes que outros colegas e a defendeu na data que estipulou.
O terceiro ponto diz respeito à sua perseverança em inserir-se na docência: foi
reprovada no primeiro concurso a que se submeteu; no segundo, teve uma crise de
ansiedade e não conseguiu fazer a prova, o que implicou em outra reprovação; recusou-
se a fazer a sua inscrição em outro exame de seleção, por considerar-se incapaz, porém
tentou, pela terceira vez, ingressar como docente efetiva do ensino de terceiro grau em
uma universidade, buscou apoio social durante a fase de preparação para as provas, e foi
aprovada.
O enfoque nas realizações da participante/informante de cor parda mostra que
por trás do mérito de uma pessoa pobre e negra, está cravado em suas conquistas um
conjunto de dificuldades sociais, partícipes da articulação dos seus limites pessoais. Os
obstáculos que surgem, ao longo do curso de vida da pessoa negra e pobre, que busca a
mobilidade social ascendente através da via da escolarização, requerem um conjunto de
esforços para a superação de adversidades. No entanto, tais esforços permanecem
invisíveis e não são considerados, quando se avalia, quantitativamente, a escolaridade, a
ocupação e a renda do grupo étnico negro.
Um estudo qualitativo, como este, que se concentra em trajetórias de vida e
focaliza o racismo, nos percursos escolares e profissionais de pessoas pobres e negras,
as humaniza e expõe o quão tortuoso foi o caminho percorrido, para modificarem os
seus estilos de vida. Essa é uma contribuição da presente pesquisa ao entendimento de
que nem só o mérito pode ser empregado como critério para a avaliação de pessoas, em
diferentes instâncias da vida pública, pois nem todos partem do mesmo ponto, ou seja,
de situações que configuram igualdade de oportunidades, nem são tratados de forma
igualitária nas relações interpessoais, consolidadas em diferentes contextos da sociedade
e, particularmente, nas instituições de ensino. Tais diferenças remetem à necessidade de
realização de pesquisas sobre a dimensão ética que perpassa o estudo do racismo na
trajetória escolar de negros e brancos e dos limites do critério do mérito na avaliação e
alocação de pessoas para ocuparem diferentes posições e cargos.
Evenice Santos Chaves O racismo na Trajetória Escolar e Profissional... 347
adolescência, discriminava racialmente uma colega da sua irmã, com quem interagia.
Esse dado, como aquele de Chaves (2003a), mostram a necessidade de estudos sobre o
racismo entre crianças e adolescentes negros, com o intuito de se conhecer, pela via da
pesquisa, os fatores relacionados à presença do racismo entre pessoas que pertencem ao
mesmo grupo étnico.
A característica estilística de narrativa da participante/informante de cor branca
ressalta a sua autodeterminação para superar obstáculos, em diferentes momentos do seu
ciclo de vida já vivido, bem como para concretizar os seus objetivos. A sua narrativa
enfatiza a presença constante da timidez em seu repertório, expressa no retraimento que
dificulta a constituição de grupos de amigos. Porém, como ressalvou, não o é quando
buscava emprego, é considerada por todos como uma pessoa simpática, tem um dom
verbal que facilita a comunicação e se tornou mais extrovertida após seu ingresso, como
trabalhadora, em uma dada universidade.
Observa-se, ao longo do seu processo de desenvolvimento, a dialética entre a
permanência e a mudança de uma singularidade, expressa na contradição entre o ser
tímida em uma determinada situação e não sê-lo em outra. Bock e Gonçalves (2005)
afirmam que o conteúdo subjetivo das experiências humanas são expressões dos lugares
e das posições contraditórias, nos quais a pessoa experiencia a realidade e usa as suas
capacidades.
Os três casos analisados indicaram que a escola é via de expressão do racismo
contra o negro e, como tal, colaboradora na manutenção desse fenômeno social, em
todos os níveis de ensino. Este estudo explicitou a função reprodutivista da instituição
escolar e seu papel no processo de inclusão social excludente do negro e do branco.
Assim, evidenciou-se que as desigualdades sociais também atravessam a trajetória
escolar de pessoas pertencentes ao grupo étnico intitulado de branco, porém, ao negro,
aditam-se as desigualdades raciais.
Contudo, dados revelaram que, nos contextos cotidianos das escolas onde as três
participantes/informantes estudaram, as desigualdades não foram um foco de atenção de
professores. Outrossim, essas instituições de ensino isentaram-se de observar, destacar e
discutir como as desigualdades permeiam as relações sociais processadas no seu interior
e como as mesmas dificultam a trajetória escolar do aluno pobre e do aluno pobre e,
também, negro. Os dados sugerem que as ações educativas que ocorreram na escola
Evenice Santos Chaves O racismo na Trajetória Escolar e Profissional... 350
mantê-la. Note-se que residir em um bairro habitado por negros, até o início da sua
juventude, e ser valorizada pelas suas competências, foi um elemento importante para o
desenvolvimento dessa identidade étnica.
De outra forma, a participante/informante parda foi submetida a um processo de
embranquecimento, que dificultou a construção da identidade étnica negra. A sua
submissão a esse processo é evidenciada na rejeição de uma característica pessoal,
constitutiva do fenótipo negro: o seu cabelo, um dos elementos que marca o divisor
entre o ser branco e ser preto. Para disfarçar a textura do mesmo, durante a maior parte
do seu ciclo de vida já vivido, empregou artifícios, com a finalidade de modificá-la, na
direção de uma aproximação àquela inerente ao cabelo do branco.
Sua rejeição à textura do cabelo, a tentativa de branqueamento, através da busca
de modificação da sua aparência, a atribuição da cor preta à menina com quem brincava,
a ausência de incorporação de aspectos da cultura negra em sua vida, assim como a
invisibilidade ao racismo do qual foi objeto, não eliminaram outras percepções de que
era diferenciada racialmente, pois, em um ponto da entrevista narrativa, destacou que o
seu sentimento de inferioridade vinculava-se à cor, embora não se sentisse discriminada.
Ressalta-se que a nossa sociedade discrimina racialmente as pessoas, porém
mascara o racismo e empurra ao embranquecimento pessoas ‘de cor’. A pressão social
para se modificarem as afasta da sua etnia, com o intuito de que busquem se incluir em
uma sociedade referenciada por um modelo de ser humano branco e euro-americano.
Alguns dados desta pesquisa revelam que uma conseqüência nefasta dessa pressão
social sobre a participante/informante de cor parda manifesta-se na sua dificuldade de
desenvolver uma identidade étnica negra, porquanto buscou se aproximar culturalmente
do mundo dos brancos. Assim, não se define como de cor branca, contudo ainda não
assumiu a identidade étnica negra.
Do exposto até aqui, conclui-se que há diferentes modos de ser negro e a cor
parece relacionar-se com os mesmos. A pessoa preta foi exposta ao racismo explícito e,
desde cedo, teve mais oportunidade para conscientizar-se da sua condição de
etnicamente discriminada, o que refletiu em suas ações cotidianas, na sua aproximação e
convivência com outros negros, bem como na construção da identidade étnica. Por
outro lado, a exposição da pessoa de cor parda à discriminação indireta e ao proceso de
embranquecimento repercute em seu modo de vida distanciado de negros e dificulta a
Evenice Santos Chaves O racismo na Trajetória Escolar e Profissional... 353
construção de uma identidade étnica. Essa conclusão não pode ser generalizada para os
negros brasileiros e outros estudos que investiguem modos de ser negro no país são
necessários.
Outros achados desta investigação reafirmam que a pobreza, dimensão estrutural
da sociedade brasileira, herdada de um passado escravista, é um fator macro-social que
diferencia os brasileiros. Resultados obtidos mostram que a família de origem da
participante/informante branca também era pobre, porém não se pode esquecer que seu
pai é pardo, portanto um membro do grupo étnico que traz a marca das dessemelhanças
sociais e raciais cravadas em suas histórias de vida.
As três participantes/informantes iniciaram seus ciclos de vida no circuito da
pobreza, expressa nos seguintes indicadores: escolaridade dos seus pais e/ou cuidadores;
tipo de trabalho dos mesmos; os seus locais de residência; as dificuldades financeiras a
que suas famílias estiveram submetidas; o acesso a serviços necessários ao que se
denomina de ‘vida boa’ e os tipos de escola que freqüentaram, ao longo de suas
trajetórias escolares. Mas, ao se levar em conta os anos iniciais dos seus cursos de vida
e os indicadores acima mencionados observa-se uma relação entre cor e grau de
pobreza.
Os dados referentes aos indicadores de pobreza, já citados, indicam um inter-
relacionamento entre a cor dos pais ou cuidadores das participantes/informantes com os
seus níveis de escolaridade e ocupações. Assim, pais e cuidadores de cor preta eram
analfabetos, com ocupações que não requeriam nenhum tipo de escolaridade e, em
conseqüência, aqueles portadores de menor rendimento. De outra forma, os pais das
participantes/informantes parda e branca tinham algum nível de escolaridade: o primeiro
grau incompleto e, em decorrência, trabalhos que exigiam habilidades como escrever e
ler, o que lhes proporcionavam melhores salários, comparativamente ao avô materno e à
mãe da participante/informante de cor preta. Isso se reflete na dedicação das suas filhas
aos estudos, sem necessidade de trabalharem para custear o transporte para a escola, até
a conclusão da graduação. Conclui-se, pois, que, em relação às desigualdades sociais, a
família preta foi a que apresentou o maior grau de pobreza.
Elegendo-se os bairros onde as suas residências se situavam, enquanto viveram
até pelo menos o início de suas adolescências, observou-se uma relação entre a cor das
participantes/informantes e a localização dos referidos bairros. A entrevistada de cor
Evenice Santos Chaves O racismo na Trajetória Escolar e Profissional... 354
preta morou, até os 20 anos, no bairro mais distante do centro da cidade, ainda hoje
maciçamente habitado por pobres, precário em saneamento básico e com alto índice de
violência, segundo os noticiários. A participante/informante branca residiu até um
momento de sua idade adulta em um bairro mais próximo do centro da cidade,
atualmente urbanizado, com melhores condições de saneamento, grande supermercado,
lojas, serviços de saúde para a classe média disponíveis e, embora apresente índices de
violência, pode-se detectar pelos noticiários que são menores que aqueles relativos ao
bairro em que a de cor preta residiu. Comparativamente aos locais de residência das
participantes/informantes de cor preta e de cor branca, a entrevistada parda residiu, até
os 13 anos de idade, no segundo bairro mais distante do centro da cidade, onde ocorriam
alagamentos que atingiam a sua casa, constituindo-se em ameaças à integridade física
dos membros da família, dada a presença de animais nas águas que alagavam o quintal
da casa, como ratos e muçuns. Hoje, o referido bairro ainda apresenta essas mesmas
características e um elevado índice de violência.
Particularizando-se as participantes/informantes negras, resultados encontrados
apontaram que características da população dos bairros em que residiram, nos períodos
de vida já especificados, denotam um ponto de confluência entre as desigualdades
sociais e raciais. No caso daquela de cor preta, seus vizinhos eram egressos do êxodo
rural, pobres, negros e analfabetos, enquanto que em referência à de cor parda, a
vizinhança também era negra e analfabeta.
Outro indicador da relação entre a cor das participante/informante e os níveis de
pobreza, assenta-se na escolha dos cursos de segundo e de terceiro graus. A de cor preta
elegeu o curso pedagógico porque era profissionalizante e lhe permitiria trabalhar logo
após concluí-lo, como ocorreu, para auto-sustentar-se e ajudar financeiramente a sua
família de origem. A escolha de um curso de terceiro grau também se condicionou à
possibilidade de continuar ministrando aulas no ensino primário, para manter-se e
colaborar com a sua família.
Considerando-se as participantes/informantes de cor parda e de cor branca, as
escolhas dos cursos de segundo e de terceiro graus não se condicionaram à escassez de
recursos financeiros das suas famílias de origem. Isso não significa a inexistência de
dificuldades financeiras, ao longo de seus percursos escolares: a de cor branca e a de cor
parda freqüentaram o curso pré-vestibular porque obtiveram bolsas de estudos; a família
Evenice Santos Chaves O racismo na Trajetória Escolar e Profissional... 355
referida instituição.
Porém, ressalva-se que as oportunidades que a universidade lhe ofereceu não
podem ser consideradas como os únicos determinantes dos espaços que ela ocupou e
ocupa, enquanto trabalhadora, naquela instituição de ensino. Devem ser levadas em
conta algumas características pessoais como seus os interesses, o repertório para
competir e a motivação para ocupar funções em setores mais próximos da esfera do
poder de decisão. Esses aspectos da singularidade da participante/informante preta
podem ser tomados como partícipes na determinação de suas escolhas ocupacionais.
Com relação à participante/informante parda, a universidade pública, como local
de trabalho, propiciou apoios sociais de colegas, quando começou a atuar como docente,
com muita insegurança; o envolvimento em um movimento reivindicatório, o docente; a
realização do mestrado; o engajamento no doutorado; o desenvolvimento de atividades
de extensão; a expansão do seu ciclo de amizades e a modificação em sua auto-estima,
propiciada pelo reconhecimento ao trabalho que desenvolve. Tudo isso iniciou um
processo pessoal de autovalorização, que, atualmente, culmina com o seu projeto de
assumir a identidade étnica negra.
A participante/informante branca ingressou como docente em uma universidade
pública com o doutorado a concluir, por isso, deteve o poder de dispensar o primeiro
emprego em uma universidade pública e deslocar-se para outra instituição de ensino
superior, onde realizou concurso e permanece trabalhando. A universidade, como local
de trabalho, expandiu as suas amizades, que se configuram apenas no departamento
onde atua. Envolve-se em atividades de ensino, de pesquisa, de orientação a alunos da
graduação e da pós-graduação, de administração universitária e na militância docente.
Talvez a maior oportunidade que a universidade lhe oferece é a de ser pesquisadora,
aspiração que acalentou desde a graduação. Envolver-se em tais atividades colaborou
para que se tornasse mais expansiva, porém, observa-se que isso é verdadeiro nas
relações interpessoais que tomam lugar em situações de trabalho, pois, no tocante às
suas amizades, as mesmas circulam em torno de alguns colegas e o seu retraimento
ainda se expressa na dificuldade de estabelecer vínculos de amizade em outros espaços
sociais.
Continuidades e descontinuidades observadas no processo de desenvolvimento
das participantes/informantes demonstram que, em vidas concretas, esse não é linear,
Evenice Santos Chaves O racismo na Trajetória Escolar e Profissional... 358
qualitativo(a) como sujeito que deve primar pela ética, no contexto relacional da coleta
de informações; uma noção de pesquisador(a) como o sujeito que elabora um
conhecimento comprometido com a transformação social; uma atitude de
pesquisador(a) orientada por um ponto de vista multirreferencial e a perspectiva do(a)
pesquisador(a) como um(a) estudioso(a) que toma a experiência humana, consolidada
na vida social, como eixo configurador da pesquisa.
Embora se considere que esses princípios foram imprescindíveis na elaboração
deste trabalho, ainda se ressalta a relevância de outros recursos teóricos que deram
suporte à construção dos estudos de caso, os quais objetivaram responder às questões
norteadoras da pesquisa aqui apresentada.
Nesse ponto, destaca-se a organização dos dados da entrevista narrativa. O
primeiro desafio foi tratá-los em uma perspectiva do desenvolvimento humano, posto
que um estudo de trajetórias é um estudo desenvolvimentista. A proposta de Runyan
(1984) sobre o curso de vida orientou a elaboração de uma forma de organização dos
dados que propiciou articulá-los de modo a construir um sistema de categorias com um
tom de movimento, ao se formular um modelo descritor que interligou cada tema a
categorias, subcategorias e marcadores temporais, os quais indicaram a ocorrência de
episódios, ligados a cada categoria e subcategorias, em diferentes momentos do ciclo de
vida já vivido pelas participantes/informantes. Considera-se que esse modo de organizar
os dados forneceu um caráter de dinamicidade ao sistema categorial e indicou a
natureza desenvolvimentista do estudo de narrativas de vida.
Identificar relações entre elementos que possam vir a configurar um conjunto
formado por um tema, categorias e subcategorias, implica ter em mente, no momento da
elaboração do sistema categorial, e diante de determinados dados, tipos de relações que
poderão ser o fundamento sobre o qual diferentes episódios podem ser integrados em
uma dada categoria. Mas não apenas as relações de complementaridade, de semelhança
ou de contraste orientam a integração de conteúdos em uma categoria específica.
Adicionado às mesmas, tem-se o referencial teórico do pesquisador sobre o tema que
abrange cada categoria e/ou subcategorias.
A organização dos dados referentes às entrevistas narrativas possibilitou à
pesquisadora vislumbrar, concretamente, que a elaboração de um sistema de categorias
não prescinde de análise e de interpretação. Categorizar, analisar e interpretar são partes
Evenice Santos Chaves O racismo na Trajetória Escolar e Profissional... 362
durante parte de seu ciclo de vida já vivido e, ainda, desnudou que o seu pai não era
uma figura totalmente desconhecida.
Do exposto até aqui, verifica-se que as discrepâncias entre dados obtidos por três
fontes foram profícuas tanto na avaliação da consistência dos mesmos, quanto na
geração de outros, os quais contribuíram na compreensão de como o racismo se fez
presente ou ausente na vida familiar das três participantes/informantes. Também
revelaram como esse fenômeno se manifestou em outros momentos da vida escolar da
de cor preta; como era a sua composição familiar enquanto residiu com a sua família de
origem; que sabia algo sobre seu pai e que sua mãe usufruiu uma pensão, após a morte
do genitor de sua filha.
As interpretações realizadas foram subsidiadas por referenciais abordados na
parte teórica desta tese, como também por outros que se fizeram necessários para a
compreensão e explanação daquilo que foi captado durante as análises. Assim, uma
postura aberta para a incorporação de outros pontos de vista teóricos, em função do que
os dados requeriam, fundamentou as análises e as interpretações realizadas. Isso
permitiu à pesquisadora trabalhar com as dimensões estrutural, relacional e psicológica
do racismo, identificar e explanar processos e mecanismos psicológicos, como, por
exemplo, pontos de virada e modos de enfrentamento.
A interpretação dos dados compatibilizou-se com o modo como Patton (2002) a
considera: a atribuição de sentidos ao que é encontrado, através da construção de
explanações, da elaboração de conclusões, da extrapolação do que está nos livros e
realização de inferências, considerando-se os significados sociais e pessoais.
O emprego de referenciais teóricos nas interpretações coaduna com dois pontos
de vista científicos. O primeiro, formulado por Weinstein (1988), explicita que ao se
trabalhar com dados subjetivos deve-se considerar duas linguagens: a dos atores sociais
e a da teoria. O autor acrescenta que ao se eliminar uma delas ignora-se a experiência de
um dos lados envolvidos nesse processo. Como decorrência, esse estudioso menciona
que, ao se tratar com dados de natureza subjetiva, a tarefa interpretativa do pesquisador
deve incluir o ponto de vista do ator social participante de uma pesquisa, do(a)
pesquisador(a) e da teoria. O investigador é aquele que abstrai, ordena e elabora uma
versão unificada dos eventos e lhes confere um sentido, a partir do que foi explicitado
como vivências, pelos atores sociais participantes. O segundo referencial teórico,
Evenice Santos Chaves O racismo na Trajetória Escolar e Profissional... 365
Alvesson, A., & Sköldberg, K. (2003). Reflexive methodology: new vistas for
qualitative research. Thousand Oaks, CA: Sage.
Amsterdam, A. G., & Bruner, J. (2002). Minding the law. Cambridge, MA: Harvard
University Press.
Aquino, R. S. L., Vieira, F. A. C., Agostino, C. G. W., & Roedel, H. (2002). Sociedade
brasileira: uma história através dos movimentos sociais. Rio de Janeiro: Record.
Bauer, M. W., Gaskell, G., & Allum, N. C. (2003). Qualidade, quantidade e interesses
do conhecimento – evitando confusões. In M. W. Bauer, & G. Gaskell (Orgs.),
Pesquisa qualitativa com texto, imagem e som (2ª ed.) (P. A. Guareshi, Trad.) (pp.
17-36). Petrópolis, RJ: Vozes.
Beck, A., & Freeman, A. (1993). Terapia cognitiva dos transtornos da personalidade.
(A. E. Fillman, Trad.). Porto Alegre: Artes Médicas.
PA: Paka-Tatu.
Blanc, M. (1994). Os herdeiros de Darwin (M. Barros, Trad.). São Paulo: Página
Aberta.
Bloom, L. (1974). Psicologia social de las relaciones de raza (F. Mazía, Trad.). Buenos
Aires: Granica.
Bruner, J. (1997). Atos de significação (S. Costa, Trad.). Porto Alegre: Artes Médicas.
Carone, I. (2002). Breve histórico de uma pesquisa psicossocial sobre a questão racial
brasileira. In I. Carone, & M. A. S. Bento (Orgs.), Psicologia social do racismo:
estudos sobre branquitude e branqueamento no Brasil (pp. 13-24). Petrópolis, RJ:
Vozes.
Cole, M. (1997). Cultural psychology: a once and future discipline. Cambridge, MA:
Belknap Harvard.
Damasceno, C. M. (2000). “Em casa de enforcado não se fala em corda”: notas sobre a
construção social da “boa” aparência no Brasil. In A. S. A. Guimarães, & L. Huntley
(Orgs.), Tirando a máscara: ensaios sobre o racismo no Brasil (pp. 165-199). São
Paulo: Paz e Terra.
Darwin, C. (1981). A origem das espécies (E. Fonseca, Trad.) São Paulo: Hemus.
(Trabalho original publicado em 1859)
Denzin, N. K., & Lincoln, Y. S. (2000). The discipline and practice of qualitative
research. In N. K. Denzin, & Y. S. Lincoln (Orgs.), Handbook of qualitative
research. (pp. 1-28). Thousand Oaks, CA: Sage.
Fernandes, F. (1972). O negro no mundo dos brancos. São Paulo: Difusão Européia do
Livro.
Figueiredo, A. (2002) Novas elites de cor: estudo sobre os profissionais liberais negros
em Salvador. São Paulo: Annablume.
Fischer, A. H., & Jansz, J. (1995). Reconciling emotions with western personhood.
Journal of Theory of Social Behaviour, 25 (1), 59-80.
Freire, P. (1977). Educação como prática da liberdade. Rio de Janeiro: Paz e Terra.
Gaskell, G., & Bauer, M. W. (2003). Para uma prestação de contas pública. In M. W.
Bauer, & G. Gaskell (Orgs.), Pesquisa qualitativa com texto, imagem e som (2a ed.)
(P. A. Guareshi, Trad.) (pp. 470-479). Petrópolis, RJ: Vozes.
Gone, J. P., Miller, P. S., & Rappaport, J. (1999). Conceptual self as normatively
oriented: the suitability of a personal narrative for the study of cultural identity.
Culture and Psychology, 5, 371-398.
Guareschi, N., Oliveira, F. P., Giannechini, L. G., Comunello, L. N., & Nardini, M.
(2002). As relações raciais na construção das identidades. Psicologia em Estudo,
7(2), 55-64.
Lewontin, R. (2002). A tripla hélice: Gene, organismo e ambiente. (J. Viegas Filho,
Trad.). São Paulo: Companhia das Letras. (Trabalho original publicado em 1929)
Martins, G. A., & Lintz, A. (2000). Guia para elaboração de monografias e trabalhos
de conclusão de curso. São Paulo: Atlas.
Matamala, M. (1980) Psicologia Social. (2a ed.) (M. L. Aragão, Trad). Barcelona:
CEAC.
Meyer, C. B. (2001). A case in case study methodology. Field methods, 13(4), 329-352.
Niésturj, M. F. (1984). El origen del hombre (3a ed.) (S./T.). Moscu: Editorial Mir.
Nogueira, O. (1985). Tanto preto quanto branco: estudos de relações raciais (2a ed.).
Evenice Santos Chaves O racismo na Trajetória Escolar e Profissional... 374
Patton, M. Q. (2002). Qualitative research & evaluation methods. Thousand Oaks, CA:
Sage.
Prilleltensky, I., & Austin, S. (2001) Critical Psychology for critical action. The
International Journal of Critical Psychology, 2, 39-60.
Roso, A., Strey, M. N., Guareschi, P., & Bueno, S. M. N. (2002). Cultura e ideologia: a
mídia revelando estereótipos raciais de gênero. Psicologia & Sociedade, 14(2), 74-
94.
Ryan, G. W., & Bernard, H. R. (2003). Techiniques to identify themes. Field Methods,
15, 85-109.
Sampson, E. E. (2001). To think differently: the acting ensemble: a new unity for
Psychology inquiry. The International Journal of Critical Psychology, 1, 47-61.
Santos, G. A. (2002). A invenção do “ser negro”. São Paulo: EDUC; Rio de Janeiro:
Pallas.
Schwarcz, L. K. M. (1983). O espetáculo das raças. São Paulo: Companhia das Letras.
Shepperson, A., & Tomaselli, K. G. (2004). Cultural studies is the crisis: culturalism
and dynamic justice. Cultural Studies Critical Methodologies, 4, 257-268.
Silva Júnior, G. A. (2002). Reflexões étnicas sobre o processo formativo a partir de uma
perspectiva psicológica. Psicologia Ciência e Profissão, 22(4), 56-67.
Spink, M. J. P., & Lima, H. (2004). Rigor e visibilidade: a explicitação dos passos da
interpretação. In M. J. P. Spink (Org.), Práticas discursivas e produção de sentidos
no cotidiano: aproximações teóricas e metodológicas (pp. 93-122). São Paulo:
Cortez.
Evenice Santos Chaves O racismo na Trajetória Escolar e Profissional... 378
Torres, C. (2001). La equidad en materia de salud vista con enfoque étnico. Revista
Panamericana Salud Publica/Pan American Journal Public Health. 10(3), 188-201.
Ventorini, B., & Garcia, A. (2004). Relação interpessoal: da obra de Robert Hinde à
gestão de pessoas. Psicologia: Organizações e Trabalho, 4(2), 117-144.
Adiciono aqui, mais uma vez, que os seus relatos e os conteúdos das
informações fornecidas são a razão primeira para tal pesquisa, pois, conforme já
salientado para você, a mesma fundamenta-se em aspectos da sua história de vida e,
conseqüentemente, nas suas experiências.
Atenciosamente,
1. IDENTIFICAÇÃO
1.1 - Idade:______________
1.2 - Sexo: ______________
1.3 - Gênero: ___________
1.4 - Cor: ______________
1.5 - Escolaridade: ________________
1.6 - Renda: ______________________
1.7 - Atividade (s) de trabalho: _______________________________________
1.8 - Naturalidade: _____________________
1.9 - Cidade onde reside na atualidade: ________________________________
1.10 - Tipo de residência: ( ) Própria ( ) Própria financiada ( ) Aluguel
1.11 - Com quem reside: ___________________________________________
1.12 - Número de cômodos: _________________________________________
1.13 - Espaço ocupado pelos residentes nos cômodos: ___________________
2. RESIDÊNCIAS ANTERIORES
2.1 - Bairros onde residiu, considerando-se a cidade onde reside:
2.1.A - Na infância: ( ) Centro ( ) Periferia
2.1.B - Na adolescência: ( ) Centro ( ) Periferia
2.1.C - Na juventude: ( ) Centro ( ) Periferia
2.1.D - Na idade adulta: ( ) Centro ( ) Periferia
2.2 - Bairros onde residiu em outro(s) momento(s) da sua vida, excluindo a cidade
onde atualmente reside
2.2.A - Na infância: ( ) Centro ( ) Periferia
2.2.B - Na adolescência: ( ) Centro ( ) Periferia
2.2.C - Na juventude: ( ) Centro ( ) Periferia
2.2.D - Na idade adulta: ( ) Centro ( ) Periferia
3. TIPOS DE CASA ONDE RESIDIU:
3.1 - Na infância: ( ) Própria ( ) Própria financiada ( ) Aluguel
( ) Casa dos pais ( ) Casa de outros familiares
( ) Casa de amigos
4. CONFIGURAÇÃO DO LAR
4.1 - Na infância:
4.1.A - Número de residentes: _________
4.1.B - Graus de parentesco: ______________________________________
4.1.C - Número de cômodos: _________
4.1.D - Espaço ocupado pelos residentes nos cômodos: ________________
4.2 - Na adolescência:
4.2.A - Número de residentes: _________
4.2.B - Graus de parentesco: ______________________________________
4.2.C - Número de cômodos: _________
4.2.D - Espaço ocupado pelos residentes nos cômodos: ________________
4.3 - Na juventude:
5.3 - Na juventude:
( ) Pública ( ) Particular ( ) Particular com bolsa de estudo
6.2 - Na adolescência:
6.2.A - Grau de parentesco das pessoas: ________________________________
6.2.B - Amigos: _____________________________________________________
6.3 - Na juventude:
6.3.A - Grau de parentesco das pessoas: ________________________________
6.3.B - Amigos: _____________________________________________________
O racismo é_______________________________________________________
O racismo no Brasil________________________________________________
Prezada colega,
Venho solicitar a sua colaboração na pesquisa que estou realizando, tendo em vista a obtenção
do grau de Doutora em Psicologia.
O tema orientador do trabalho de investigação é o racismo, visando a identificar as suas
implicações na vida escolar e profissional de professoras universitárias afrodescendentes. O foco da
pesquisa centra-se no sucesso de cada participante/informante em completar o ciclo de estudos formais.
Para tal, buscar-se-á a descrição de sua trajetória escolar e profissional, o que será concretizado através
das suas verbalizações em uma entrevista e no preenchimento de dois questionários.
Por isso, você que tem uma experiência de vida única, é a pessoa mais importante para a
realização do presente trabalho, pois o conhecimento a ser produzido na pesquisa valoriza como ponto de
partida o mundo experiencial humano. A sua colaboração é fundamental.
A pesquisa visa a produzir contribuições teóricas e metodológicas, uma vez que o racismo tem
sido pouco estudado pela Psicologia, apesar de ser um fenômeno universal, reconhecido como tal pela
ciência e pela ONU; há escassez de enfoque transdisciplinar na investigação do tema; os estudos já
realizados centram-se, maciçamente, no fracasso do afro-descendente e não no seu sucesso escolar.
Acrescento que a sua participação poderá contribuir para que re-escreva a sua história pessoal e,
também, do ponto de vista científico, produzirá conhecimentos sócio-psicológicos que possam vir a ser
relevantes na compreensão do fenômeno do racismo e na articulação de estratégias educacionais que
propiciem o incremento de trajetórias escolares de outros brasileiros.
A pesquisa recolherá informações de pessoas intituladas de afro-descendente e branca, visando à
análise comparativa das trajetórias escolares e profissionais, das adversidades, dos mecanismos e
processos psicológicos emergentes, pois só através da comparação desses dois grupos poder-se-á
identificar o papel do racismo na vida escolar e profissional do preto, do pardo e do branco.
O presente trabalho não oferece riscos a você, pois relatará sobre adversidades escolares que já
superou. Caso, em algum momento do seu relato, sinta-se emocionalmente desconfortável, tenha a certeza
de que, como psicóloga, poderei fornecer apoio. As informações que vier a fornecer serão trabalhadas
para garantir o seu anonimato e impossibilidade da identificação de pessoas, locais e instituições.
Você terá a liberdade de escolher o que falar e como falar, a partir dos temas propostos pela
pesquisadora e de retirar-se da pesquisa em qualquer momento da coleta de informações, caso decida
assim proceder.
Caso concorde em participar, solicito a gentileza de explicitar a sua concordância, assinando esse
termo de consentimento livre e esclarecido.
_____________________________________________
Assinatura da Pesquisadora Responsável
Nome: Evenice Santos Chaves
End: Rua Serzedelo Corrêa, 1726 apto. 103. Batista Campos.
CEP: 66033-230
Fone: 224-4014
RG: 1459030-SSP/PA CRP: 01230-3ª região.
Belém, _______/_______/_______
____________________________ R.G__________________
Participante/Informante