Tese Racismo Trajetoria Escolar PDF

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UNIVERSIDADE FEDERAL DO PARÁ

CENTRO DE FILOSOFIA E CIÊNCIAS HUMANAS


DEPARTAMENTO DE PSICOLOGIA EXPERIMENTAL
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM TEORIA E PESQUISA DO COMPORTAMENTO

EVENICE SANTOS CHAVES

O RACISMO NA TRAJETÓRIA ESCOLAR E

PROFISSIONAL DE PROFESSORAS UNIVERSITÁRIAS

Belém
2006
EVENICE SANTOS CHAVES

O RACISMO NA TRAJETÓRIA ESCOLAR E

PROFISSIONAL DE PROFESSORAS UNIVERSITÁRIAS

Tese apresentada ao Programa de Pós-Graduação


em Teoria e Pesquisa do Comportamento, como
parte dos requisitos para a obtenção do título de
Doutor em Psicologia.

Orientador: Prof. Dr. Olavo de Faria Galvão

Belém
2006
Dados Internacionais de Catalogação-na-Publicação (CIP)
(Biblioteca de Pós-Graduação do CFCH-UFPA, Belém-PA-Brasil)
_________________________________________________________________________________

Chaves, Evenice Santos


O Racismo na trajetória escolar e profissional de professoras
universitárias / Evenice Santos Chaves; orientador, Olavo de Faria
Galvão. - 2006

Tese (Doutorado) - Universidade Federal do Pará, Centro de


Filosofia e Ciências Humanas, Programa de Pós-Graduação em
Teoria e Pesquisa do Comportamento, Belém, 2006.

1. Comportamento humano. 2. Experiências de vida. 3.


Desenvolvimento da personalidade. 4. Racismo. 5. Relações raciais.
I. Título.

CDD - 20. ed. 150.1943


_______________________________________________________________________________
O RACISMO NA TRAJETÓRIA ESCOLAR E
PROFISSIONAL DE PROFESSORAS UNIVERSITÁRIAS

EVENICE SANTOS CHAVES

BANCA EXAMINADORA

__________________________________________

Prof. Dr. Olavo de Faria Galvão (Orientador UFPA)

__________________________________________

Profa. Dra. Elizabeth Tunes (UnB)

__________________________________________

Profa. Dra. Ana Cecília de Sousa Bastos (UFBA)

__________________________________________

Profa. Dra. Regina Célia Brito (UFPA)

__________________________________________

Prof. Dr. José Moysés Alves (UFPA)

Dissertação defendida e aprovada em 24/04/2006.


DEDICATÓRIA

Dedico este trabalho às pessoas abaixo listadas, pela ordem em que entraram, de
modo muito significativo, na minha vida.

À Memória das seguintes pessoas:

Everaldo, meu pai, que me ensinou, pelo exemplo, o valor


do trabalho e foi um fiel aliado.

Daniel, meu tio, que, desde cedo, me ensinou a gostar de


estudar e a ser disciplinada nesse empreendimento.

Enedite, minha tia, que me dedicou carinho, atenção e


apoio, em diferentes momentos do meu ciclo de vida.

Seu Cláudio, que me acolheu como a uma filha, durante


os meus anos de graduação em Brasília.

Mário, pelo salutar convívio e amizade.

Aos abaixo citados, que permanecem na lida do cotidiano:

Berenice, minha mãe, cuja severidade, ao longo da minha infância e


adolescência, me fez aprender a enfrentar adversidades, sem temê-
las.

Faninha, minha madrinha, pelo afeto e incentivo às minhas investidas, rumo a


novos horizontes existenciais, no meu período de juventude.

Helena, pelo companheirismo e solidariedade em momentos anteriores da


minha vida.

Fátima e Cida, pelos laços de irmandade, respeito, amizade, compreensão e


cumplicidade, que nos une há mais de trinta e cinco anos.
Maria, Vina, Clara, Claudinho e Célia, pelo vínculo bastante familiar que
construímos nos anos 1970, embora não sejamos consangüíneos.

Antônio Marcos, pelo companheirismo em desafiantes jornadas e pela


dedicação, nos meus momentos mais críticos.

Vivaldo, professor e colega que, no início da minha carreira docente,


valorizou a minha escolha pela extensão universitária e me
incentivou.

José Carlos, amigo e colega que, há muitos anos atrás, me seduziu para
retomar a pós-graduação.

Sara e Luciana, minhas filhas, pelo sentido que dão a minha vida.

Eduardo, por sua generosidade e pela genuína amizade.


AGRADECIMENTOS

Ao professor Olavo de Faria Galvão, meu orientador, pelo respeito às diferenças


teórico-metodológicas, pela confiança depositada e pela colaboração.

À CAPES, pelo apoio financeiro, sem o qual seria impossível a realização do


doutorado.

Às participantes/informantes, pela disponibilidade em fornecerem informações, pela


sinceridade, pela coragem em revelarem acontecimentos que perpassaram as suas vidas
e pela confiança em mim depositada.

Ao companheiro Antônio Marcos Chaves, que administrou a nossa casa praticamente


durante todo o período de realização do meu doutorado, cuidando, com muito zelo, da
minha alimentação, no último mês da jornada. Além disso, foi o leitor e o interlocutor
nos momentos de redação da pesquisa, colaborando, de forma inestimável, na revisão
do texto e no ordenamento das referências bibliográficas.

Ao Eduardo, com quem pude contar em todos os momentos da minha estada em


Belém, para a realização do doutorado.

À Olívia, mãe de Eduardo, pelo carinho, amizade e momentos de lazer que me


proporcionou, durante a minha estada em Belém.

À Thrissy, pela amizade, apoio em momentos cruciais, respeito e colaboração na


transcrição das entrevistas, na edição, na digitação de partes deste trabalho e na tarefa de
ir a bibliotecas tirar xerox de materiais.

À Marilice, que foi uma companhia constante, divertida, interlocutora em conversas


sobre o caminho político deste país e companheira em muitas situações.

À Simone e ao Emmanuel, pela amizade expressa, companhia e zelo para comigo.

À Rosângela Darwich, pelos momentos de respeitosas discussões acadêmicas, as quais


alegraram as minhas tardes de quarta-feira, em um semestre de 2002.
À Roberta, ao Leonardo e ao Daniel, colaboradores na digitação deste trabalho, na
checagem de episódios e, ainda, meus interlocutores no local onde ‘me internei’ para
analisar dados, interpretá-los e redigir os capítulos 5, 6, 7, 8 e 9.

À Sônia Sampaio, colega e amiga que, com prontidão e boa vontade, escreveu o
resumo em francês.

À Luciana, minha filha, que me ajudou a checar episódios e a digitar partes do capítulo
5.

À Sara, minha filha, que redigiu o resumo em inglês.

Ao Yoanny, que fez questão de formatar alguns capítulos.

À Neide, que cuidou da minha casa, durante o meu período de doutorado.

À Lione e ao Jorge, minha irmã e meu cunhado, pela acolhida no sítio quando estava
muito cansada e precisava repousar.
i

SUMÁRIO

LISTA DE FIGURAS vi
LISTA DE TABELAS xi
RESUMO xii
ABSTRACT xiii
RÉSUMÉ xiv

Apresentação 1

1. Introdução 9
1.1. O racismo como modalidade de violência estrutural 16
1.2. As desigualdades raciais na universidade 42
1.3. Objetivo geral 50
1.3.1. Questões específicas 50

2. Enfoques científicos sobre o racismo no Brasil 52


2.1. O racismo científico 53
2.1.1. O darwinismo social 58
2.1.2. A versão brasileira do darwinismo social 61
2.1.3 O embranquecimento 66
2.2. O aporte da democracia racial brasileira 70
2.3. A estrutura econômica e social da escravidão como modelo interpretativo
das relações raciais
76
2.4. Contextos específicos como explicação para a manutenção das
desigualdades raciais
79

3. O caminho teórico-metodológico 82
3.1. O pesquisador 83
3.1.1. O pesquisador e a conduta ética 84
3.1.2. O pesquisador qualitativo como realizador de bricolagem 85
3.2. Fundamento epistemológico 86
3.3. A cultura 87
ii

3.4. O significado e a experiência humana 89


3.5. A narrativa 90
3.6. A interpretação científica 92
3.6.1. Requisitos para a interpretação científica 93
3.7. A avaliação da pesquisa qualitativa 96

4. Método 98
4.1. O estudo de caso como estratégia de pesquisa 98
4.2. A seleção dos casos 100
4.2.1. Critérios que orientaram a seleção dos casos 100
4.3. O número de casos 100
4.4. As participantes/informantes 101
4.5. Materiais e equipamentos 101
4.6. Técnica empregada: a entrevista narrativa 101
4.6.1. Temas constitutivos da entrevista narrativa 102
4.7. Instrumentos empregados na coleta de informações 103
4.7.1 O questionário sócio-demográfico 103
4.7.2. A lista de complementação de frases 104
4.8. Locais onde foram realizadas as entrevistas narrativas 105
4.9. Procedimentos empregados 105
4.9.1. Na coleta de informações 105
4.9.2. Na transformação dos conteúdos referentes aos itens do questionário
sócio-demográfico em dados
105
4.9.3. Na descrição das participantes/informantes 106
4.9.4. No tratamento das informações coletadas na entrevista narrativa 106
4.9.5. Na edição dos conteúdos referentes às informações coletadas através das 107
entrevistas narrativas
4.9.6. No processo de construção do sistema classificatório 107
4.9.7. Na análise e interpretação dos dados das entrevistas narrativas 108
4.9.8. Na transformação dos conteúdos da lista de complementação de frases em
dados e na análise
108
4.9.9. Na triangulação dos dados 109
iii

5. A organização dos dados da entrevista narrativa 110


5.1. O suporte teórico 110
5.2. A organização dos dados 111
5.3. A elaboração do sistema classificatório 112
5.3.1. Temas emergentes 112
5.4. O sistema classificatório decorrente dos dados produzidos pela entrevista
narrativa realizada com a participante/informante preta 113
5.4.1. O tema família 114
5.4.2. O tema escola 117
5.4.3. O tema trabalho 119
5.4.4. O tema militância 122
5.4.5. O tema relações interpessoais 125
5.4.6. O tema obstáculos 127
5.4.7. O tema facilidades 127
5.4.8. O tema lazer 128
5.4.9. O tema racismo 128
5.4.10. O tema estratégias de enfrentamento 131
5.4.11. O tema pessoalidade 132
5.4.12. O tema perspectivas 137
5.5. O sistema classificatório decorrente dos dados produzidos pela entrevista
narrativa realizada com a participante/informante parda 137
5.5.1. O tema família 137
5.5.2. O tema escola 141
5.5.3. O tema trabalho 144
5.5.4. O tema militância 146
5.5.5. O tema relações interpessoais 146
5.5.6. O tema obstáculos 152
5.5.7. O tema facilidades 153
5.5.8. O tema lazer 153
5.5.9. O tema racismo 154
5.5.10. O tema estratégias de enfrentamento 156
5.5.11. O tema pessoalidade 156
iv

5.6. O sistema classificatório decorrente dos dados produzidos pela entrevista


narrativa realizada com a participante/informante branca 160
5.6.1. O tema família 160
5.6.2. O tema escola 163
5.6.3. O tema trabalho 166
5.6.4. O tema militância 168
5.6.5. O tema relações interpessoais 169
5.6.6. O tema obstáculos 172
5.6.7. O tema facilidades 173
5.6.8. O tema lazer 174
5.6.9. O tema racismo 174
5.6.10. O tema estratégias de enfrentamento 175
5.6.11. O tema pessoalidade 176
5.6.12. O tema perspectivas 180
5.7. Sobre a elaboração do sistema de categorias 180

6. Paula, a participante/informante preta 182


6.1. Descrição da participante/informante 182
6.2. Análise da entrevista: uma descrição explanatória 182
6.2.1. Início do ciclo de vida de Paula 182
6.2.2. Um novo evento na vida da família de origem de Paula 184
6.2.3. A fixação da família na Cidade E 185
6.2.4. O estilo de vida da família na Cidade E 185
6.2.5. Inserindo-se na escola e completando o ciclo formal de estudos 189
6.2.6. Superando adversidades, tendo em vista concluir o ciclo de estudos 208
6.2.7. A trajetória profissional 215
6.2.8. Qual o olhar de Paula sobre si mesma? 230
6.2.9. Qual o olhar de Paula sobre o papel do racismo contra o negro em sua
vida? 231
6.2.10. O projeto profissional de Paula 233
6.3. A análise da lista de complementação de frases 234
6.4. A triangulação 238
v

7. Ilma, a participante/informante parda 243


7.1. Descrição da participante/informante 243
7.2. Análise da entrevista narrativa: uma descrição explanatória 243
7.2.1. Os anos iniciais do ciclo de vida de Ilma 243
7.2.2. Um novo evento na vida da família de origem de Ilma 248
7.2.3. O novo estilo de vida da família 248
7.2.4. Inserindo-se na escola e completando o ciclo formal de estudos 254
7.2.5. Superando adversidades, tendo em vista concluir o ciclo de estudos 276
7.2.6. A trajetória profissional 277
7.2.7. Qual o olhar de Ilma sobre si mesma? 289
7.2.8. Qual o olhar de Ilma sobre o papel do racismo contra o negro em sua
vida? 290
7.2.9. O projeto profissional de Ilma 292
7.3. A análise da lista de complementação de frases 295
7.4. A triangulação 299

8. Marise, a participante/informante branca 303


8.1. Descrição da participante/informante 303
8.2. Análise da entrevista narrativa: uma descrição explanatória 303
8.2.1. Os anos iniciais do ciclo de vida de Marise 303
8.2.2. O estilo de vida na família de origem 303
8.2.3. Inserindo-se na escola e completando o ciclo formal de estudos 308
8.2.4. Superando adversidades, tendo em vista concluir o ciclo de estudos 327
8.2.5. A trajetória profissional 328
8.2.6. Qual o olhar de Marise sobre si mesma? 333
8.2.7. Qual o olhar de Marise sobre o papel do racismo contra o negro em sua
vida? 334
8.2.8. O projeto profissional de Marise 334
8.3. A análise da lista de complementação de frases 334
8.4. A triangulação 337

9. Considerações finais 339


vi

Referências Bibliográficas 367

Anexos 379
vii

LISTA DE FIGURAS

Figura 1. Tamanho da população brasileira, branca, preta e parda, nos anos de


1890 a 1940 67

Figura 2. Tamanho da população brasileira, branca, preta e parda, de 1940 a 2000 69

Figura 3. Percentual de modalidades de ocupações em 1950 77

Figura 4. Formação escolar da população brasileira branca e não branca com 10


anos de idade ou mais em 1950 78

Figura 5. O tema família, categorias, subcategorias e marcadores temporais 116

Figura 6. O tema escola, categorias, subcategorias e marcadores temporais 118

Figura 7. O tema trabalho, as categorias formal e informal, subcategorias e


marcadores temporais 120

Figura 8. O tema trabalho, a categoria outros trabalhos desenvolvidos,


subcategorias e marcadores temporais 122

Figura 9. O tema militância, categorias, subcategorias e marcadores temporais 124

Figura 10. O tema relações interpessoais, categorias, subcategorias e marcadores


temporais 126

Figura 11. O tema obstáculos, categoria e marcadores temporais 127

Figura 12. O tema facilidades, categoria e marcadores temporais 128

Figura 13. O tema lazer, categoria e marcador temporal 128


viii

Figura 14. O tema racismo, categorias, subcategorias e marcadores temporais 130

Figura 15. O tema estratégias de enfrentamento, categorias e marcadores


temporais 132

Figura 16. O tema pessoalidade, as categorias auto-atribuição de características,


enfermidade, subcategorias e marcadores temporais 133

Figura 17. O tema pessoalidade, a categoria preferências e marcadores temporais 133

Figura 18. O tema pessoalidade, a categoria avaliações e marcadores temporais 135

Figura 19. O tema perspectivas, categorias e marcadores temporais 137

Figura 20. O tema família, quatro categorias constitutivas, subcategorias e


marcadores temporais 139

Figura 21. O tema família, as categorias estilo de vida na família de origem,


realização de tarefas, perdas, reconstruções familiares, subcategorias e
marcadores temporais 140

Figura 22. O tema escola, categorias, subcategorias e marcadores temporais 142

Figura 23. O tema trabalho, as categorias formal e informal, subcategorias e


marcadores temporais 145

Figura 24. O tema militância, categorias e marcadores temporais 146

Figura 25. O tema relações interpessoais, as categorias relativas ao convívio da


entrevistada com grupos de pessoas, subcategorias e marcadores
temporais 147
ix

Figura 26. O tema relações interpessoais, as categorias amizades e apoio social,


subcategorias e marcadores temporais 149

Figura 27. O tema obstáculos, categorias e marcadores temporais 152

Figura 28. O tema facilidades, categorias e marcadores temporais 153

Figura 29. O tema lazer, categoria e marcador temporal 154

Figura 30. O tema racismo, categorias, subcategorias e marcadores temporais 155

Figura 31. O tema estratégias de enfrentamento, categorias e marcadores


temporais 156

Figura 32. O tema pessoalidade, as categorias auto-atribuição de características e


aspirações, subcategorias e marcadores temporais 157

Figura 33. O tema pessoalidade, a categoria avaliações e marcadores temporais 159

Figura 34. O tema família, as categorias e subcategorias constitutivas e


marcadores temporais 161

Figura 35. O tema escola, categorias, subcategorias e marcadores temporais 164

Figura 36. O tema trabalho, as categorias formal e informal, subcategorias e


marcadores temporais 167

Figura 37. O tema militância, categoria, subcategorias e marcadores temporais 168

Figura 38. O tema relações interpessoais, as categorias relativas ao convívio da


entrevistada com grupos de pessoas, subcategorias e marcadores
temporais 170
x

Figura 39. O tema obstáculos, categorias e marcadores temporais 173

Figura 40. O tema facilidades, categorias e marcadores temporais 173

Figura 41. O tema lazer, categoria e marcadores temporais 174

Figura 42. O tema racismo, categorias e marcadores temporais 175

Figura 43. O tema estratégias de enfrentamento, categorias, subcategorias e


marcadores temporais 176

Figura 44. O tema pessoalidade, a categoria auto-atribuição de características,


subcategorias e marcadores temporais 176

Figura 45. O tema pessoalidade, a categoria avaliações, subcategorias e


marcadores temporais 178

Figura 46. O tema perspectivas, categoria e marcador temporal 180


xi

LISTA DE TABELAS

Tabela 1. Número de publicações em quinze periódicos de Psicologia, de janeiro


de 1997 a fevereiro de 2006 25

Tabela 2. Publicações focalizadas na temática do negro, em oito periódicos de


Psicologia, de janeiro de 1997 a fevereiro de 2006 26

Tabela 3. Percentual de estudantes que ingressaram no ensino de terceiro grau,


segundo a cor e a universidade pública 45

Tabela 4. Percentual de negros e brancos na população dos Estados da Bahia,


Maranhão, Paraná, Rio de Janeiro e Distrito Federal e percentual de
ingresso às respectivas universidades públicas 45

Tabela 5. O racismo em diferentes localidades 234

Tabela 6. O racismo em instituições sociais 236

Tabela 7. O racismo como fenômeno social segregador 237

Tabela 8. O racismo em diferentes localidades 296

Tabela 9. O racismo em instituições sociais 297

Tabela 10. O racismo como fenômeno social segregador 298

Tabela 11. O racismo em diferentes localidades 335

Tabela 12. O racismo em instituições sociais 336

Tabela 13. O racismo como fenômeno social segregador 337


xii

RESUMO

Chaves, E. S. (2006). O Racismo na Trajetória Escolar e Profissional de Professoras Universitárias.


Belém, (pp.378). Tese de Doutorado. Programa de Pós-Graduação em Teoria e Pesquisa do
Comportamento. Universidade Federal do Pará.

A pesquisa proposta empregou um aporte teórico-metodológico interdisciplinar e enfocou as


desigualdades sociais e raciais no percurso escolar e profissional de professoras universitárias. A
literatura brasileira consultada na área da Psicologia não fornece exemplares de pesquisas qualitativas
sobre desigualdades sociais e raciais, focalizadas no negro e no branco. Nesse contexto, inseriu-se o
presente estudo, que objetivou responder às seguintes questões: 1) há indicadores de desigualdades
sociais, produzidas estruturalmente, que perpassaram a trajetória escolar e profissional da pessoa
socialmente intitulada de preta, de parda e de branca? 2) há indicadores de desigualdades raciais, quando
se compara o percurso de vida da pessoa socialmente intitulada de preta e parda com o da pessoa
socialmente denominada de branca? Participaram do estudo três professoras universitárias: uma
socialmente definida como branca e duas como negras (preta e parda), pós-graduadas e lotadas em
diferentes departamentos de uma universidade pública brasileira. Na coleta de informações, empregou-se
a entrevista narrativa, um questionário sócio-demográfico e uma lista de complementação de frases. As
informações coletadas foram submetidas a tratamento, que as transformaram em dados. A organização
dos dados incluiu o processo de categorização. Os resultados mostraram que a pobreza, indicador de
desigualdades sociais, fez parte de momentos da trajetória existencial das participantes/informantes, mas,
ao se considerar a cor, verifica-se que há uma relação entre grau de pobreza e a cor das mesmas e entre o
grau de pobreza e as escolhas dos cursos que as levaram à profissionalização; que a escolarização foi via
de profissionalização e de mobilidade social ascendente para as mesmas; que as adversidades, surgidas ao
longo do percurso escolar da branca, da preta e da parda foram superadas, com o apoio social de parentes
e/ou amigos e com emprego de estratégias pessoais de enfrentamento às dificuldades; que para a preta, o
fato de completar o ciclo de estudos, e ser uma profissional qualificada por dois cursos de graduação e um
de pós-graduação, não a eximiu de ser objeto do racismo, quer através de manifestações explícitas, quer
através de formas camufladas; que o racismo contra o negro, expresso na discriminação direta ou indireta,
foi dirigido à preta e à parda, em diferentes momentos dos seus cursos de vida, enquanto a branca foi
apenas observadora de interações sociais racializadas, em situações do seu cotidiano; que a escola e a
família consolidaram-se como reprodutoras do racismo contra o negro; que a instituição escolar
apresentou-se como um espaço social contraditório, porque, apesar de objetivar a formação de cidadãos,
promoveu a exclusão social das participantes/informantes, quando eram crianças pobres e freqüentavam o
ensino de primeiro grau, ao colocá-las à margem da participação em atividades recreativas, colaborando
na reprodução das desigualdades sociais; que, paradoxalmente, enquanto formadora de cidadãos, a escola
apresenta-se como local de materialização do racismo, expresso em interações sociais entre colegas ou
entre professora e aluna, independentemente do grau de ensino; que o racismo contra o negro faz parte do
processo de (re)construção da subjetividade das participantes/informantes, porém as significações que
atribuem a esse fenômeno social diferem, em função dos seus fenótipos e experiências nas relações
sociais racializadas; que os seus posicionamentos face ao racismo, e engajamento em movimentos sociais
de combate à discriminação racial, relacionam-se ao modo como ele afetou as suas vidas, bem como à
visibilidade desse fenômeno, no mundo social e/ou nas suas experiências pessoais; que ser objeto do
racismo contra o negro gera singularidades constitutivas do si mesmo e da formação da identidade étnica.
Os resultados do estudo poderão contribuir na compreensão de aspectos sócio-psicológicos do racismo,
em construções teóricas sobre o tema, na identificação de mecanismos psicossociais de inclusão social
excludente do negro, na identificação de mecanismos psicológicos de enfrentamento ao racismo, na
elaboração de estratégias de pesquisa sobre o racismo; no fornecimento de subsídios para a elaboração e
implementação de programas de combate ao racismo na escola, através de atividades curriculares e
extracurriculares.
Palavras-chave: trajetória escolar, trajetória profissional, desigualdades sociais e raciais, negro, branco.
xiii

ABSTRACT

Chaves, E. S (2006). Racism through female professors’academic and professional trajectories. Belém,
(pp.378). Phd thesis. Postgraduate program in Theory and Research of Behavior. Federal University of
Pará.

This research utilized an interdisciplinary theoretical and methodological apparatus and focused on social
and racial disparities along the academic and professional way of female professors. Brazilian literature
examined in Psychology field does not offer examples of qualitative researches about social and racial
disparities with an emphasis on black and white individuals. This way, and in this context, this study was
included and intended to answer the following questions: 1) are there elements which indicate social
disparities structurally produced that are related to the academic and professional trajectories of
individuals socially entitled as black, mulatto and white? 2) Are there elements indicating racial
disparities when comparing the life trajectories of those socially entitled as blacks and mulattos to those
of the ones socially called whites? Three female professors participated in this research: one socially
defined as white and two socially designated as blacks (a black-skinned and a mulatto). They concluded
post graduation and work in different departments in a Brazilian public university. A social demographic
questionnaire and a list for completing phrases were used as information was collected. The information
gathered was converted into data. Data organization included a categorization process. The results
showed that poverty, indicative of social disparities, was a reality for the participants during some periods
of their existential trajectories, though, when considering skin color, it was verified the existence of a
connection between the participant’s level of poverty and her skin color, and between the participant’s
level of poverty and career choices. The results also showed that the schooling process became their path
through their professional course in life and ascending social mobility; adversities that emerged along the
white, the black-skinned and the mulatto women’s life were overcome through support offered by
relatives and friends and through the use of personal strategies; that despite the black-skinned professor
finished her academic cycle, is a qualified professional who graduated in two different courses and has a
post graduation degree, she is still a target for racism, displayed either explicitly, either in disguised ways;
that racism toward black individuals, expressed directly or indirectly, was addressed both to the black-
skinned and the mulatto women in different episodes of their lives, while the white woman was only an
observer of racial social interactions in daily basis situations; that school and family are consolidated
institutions that reproduce racism against blacks; that school presented itself as a contradictory social
place since, although it pursues the development of citizens, it promoted social ostracism toward the
participants when they were poor children attending elementary school, putting them aside during
amusing activities, collaborating to the reproduction of social disparities. The results also showed a
paradox, from one hand the school is an institution responsible for the upbringing of citizens, on the other
hand, it presents itself as a place for the materialization of racism expressed in social interactions among
classmates or between the teacher and the student, regardless the grade in which the student is; that
racism against blacks is part of a subjectivity (re)construction process, though the meanings they attribute
to this process differ according to their phenotypes and experiences in social relations involving a race
issue; that the participants’ points of view toward racism and engagement in social movements against
racial discrimination are related to the way racism affected their lives, as well as to the visibility of this
phenomenon in the social world and/or in their personal experiences; that being a target for racism against
blacks generates singularities responsible for the constitution of the individual herself and for the
construction of an ethnic identity. The results of this study will help us in the understanding of racism’s
social and psychological aspects, in theoretical constructions about this issue, in identifying psychological
and social mechanisms of social inclusion that exclude the black, in identifying one’s psychological
mechanisms when facing racism, in the elaboration of strategies for racism research, in providing
subsidies to the creation and execution of programs that fight racism at school through curricular and
extracurricular activities.
Key words: school trajectory, professional trajectory, social and racial disparities, black, white.
xiv

RÉSUMÉ

Chaves, E. S. (2006). Le Racisme dans la Trajectoire Scolaire et Professionnelle de Professeurs


Universitaires. Belém, (pp.378). Thèse de Doctorat. Programme de Post-graduation en Théorie et
Recherche sur le Comportement. Université Fédérale du Pará.

La recherche proposée a utilisé un apport théorico-méthodologique interdisciplinaire et elle a traité


des inégalités sociales et raciales dans le parcours scolaire et professionnel de professeurs universitaires.
La littérature brésilienne consultée dans le domaine de la Psychologie ne fournit pas d'exemplaires de
recherche qualitatives sur les inégalités sociales et raciales, concentrées sur le blanc et sur le noir. Dans
ce contexte, on a introduit cette étude, dont le but était de répondre aux questions suivantes: 1) Y a t'il des
indicateurs d'inégalités sociales, produites structurellement, qui ont outrepassé la trajectoire scolaire et
professionnelle de la personne socialement intitulée noire, métisse et blanche? 2) Y a t'il des indicateurs
d'inégalités raciales, lorsque l'on compare le parcours de vie de la personne socialement intitulée noire et
métisse avec celui de la personne dénommée blanche? Trois professeurs universitaires participent à
l'étude: une socialement définie comme blanche et deux comme noires (noire et métisse), post-graduées et
venant de départements différents d'une université brésilienne. Dans la collecte d'informations, on a
utilisé l'entrevue narrative, un questionnaire socio-démographique et une liste de complémentation de
phrases. Les informations recueillies ont été soumises à un traitement qui les a transformées en données.
L'organisation des données a inclus le processus de catégorisation. Les résultats ont montré que la
pauvreté, indicateur d'inégalités sociales, fait partie de moments de la trajectoire existentielle des
participants/informateurs, mais on vérifie, lorsque l'on considère la couleur, qu'il y a une relation entre le
degré de pauvreté et les choix des cours qui les ont conduites à la professionnalisation; que la
scolarisation a été une voie de professionnalisation et de mobilité sociale ascendante pour elles; que les
adversités apparues au long du parcours scolaire de la blanche, de la noire et de la métisse ont été
surmontées avec le soutien social de parents et/ou d'amis et avec l'usage de stratégies personnelles pour
faire face aux difficultés; que pour la noire, le fait de compléter le cycle d'études et d'être une
professionnelle qualifiée par deux cours de graduation et un cours de post-graduation, ne l'a pas exemptée
de faire l'objet de racisme, soit à travers de manifestations explicites, soit sous des formes camouflées;
que le racisme contre le noir, exprimé dans la discrimination directe ou indirecte, a été dirigé à la noire et
à la métisse, à divers moments de leur chemin de vie, alors que la blanche a juste été une observatrice
d'interactions sociales racialisées, dans des situations de leur quotidien; que l'école et la famille se sont
consolidées comme des reproductrices du racisme contre le noir; que l'institution scolaire s'est présentée
comme un espace social contradictoire, parce que, bien qu'elle vise à la formation de citoyens, elle a
engendré l'exclusion sociale des participants/informateurs, quand ils étaient des enfants et fréquentaient
l'école primaire, en les mettant en marge de la participation à des activités récréatives, collaborant ainsi à
la reproduction des inégalités sociales; que, paradoxalement, en tant que formatrice de citoyens, l'école se
présente comme un lieu de matérialisation du racisme, exprimé dans des interactions sociales entre
collègues ou entre professeur et élève, indépendamment du degré d'enseignement; que le racisme contre
le noir fait partie du processus de (re)construction de la subjectivité des participants/informateurs, mais
les significations qu'ils attribuent à ce phénomène social diffèrent en fonction de leurs phénotypes et de
leurs expériences dans les relations sociales racialisées; que leurs positionnements face au racisme et leur
engagement dans les mouvements racistes de combat à la discrimination sociale, ont à voir avec le mode
selon lequel elle a affecté leurs vies, ainsi que la visibilité de ce phénomène, dans le monde social et/ou
dans leurs expériences personnelles; que le fait de faire l'objet de racisme contre le noir engendre des
singularités constitutives de soi-même et de la formation de l'identité ethnique. Les résultats de l'étude
pourront contribuer à la compréhension d'aspects socio-psychologiques du racisme, dans des
constructions théoriques sur le thème, dans l'identification de mécanismes psychosociaux d'inclusion
sociale qui excluent le noir, dans l'identification de mécanismes psychologiques d'affrontement au
racisme, dans l'élaboration de stratégies de recherche sur le racisme; dans l'apport de subventions pour
l'élaboration et l'implémentation de programmes de lutte contre le racisme à l'école, à travers d'activités
curriculaires et extra-curriculaires.
Mots-clé: trajectoire scolaire, trajectoire professionnelle, inégalités sociales et raciales, noir, blanc.
APRESENTAÇÃO

Uma via de legitimação da relevância de um tema, como objeto de investigação


científica, é a sua ocorrência no cotidiano. No ano de 2000, atuando em atividade de
extensão universitária, numa instituição escolar, defrontei-me com um fenômeno social
que, apesar de fazer parte das relações sociais cotidianas brasileiras, desde o nosso
período colonial, é ideologicamente manipulado e ainda permanece invisível para a
maioria da população: o racismo contra o negro.
Remetendo-me à atuação, trabalhei, naquele ano, em uma escola pública de
primeiro grau, localizada em um bairro de periferia de Salvador, desenvolvendo uma
atividade extracurricular com doze adolescentes, voluntários, idades entre onze e
quatorze anos, que cursavam a quarta série do ensino fundamental na referida escola e
moravam no bairro onde a instituição de ensino localizava-se. O trabalho, além de
envolver esses adolescentes, contou com a participação de dois estudantes do curso de
Psicologia da Universidade Federal da Bahia, na condição de estagiários.
Empregando o delineamento da pesquisa-ação, construí um grupo em educação
para a saúde (Chaves, 2003a). O tema identificado e trabalhado foi o racismo contra o
negro, a partir de solicitações dos adolescentes e, também, das interações entre os
mesmos, que ocorreram no início do grupo de discussão. No curso das minhas ações, na
extensão universitária, esse tema constituiu-se como uma novidade.
A atuação e a temática do racismo contra o negro foram abrindo caminho para
questões a serem desveladas e, como enfatiza Rey (1999), as idéias surgem em qualquer
espaço da vida profissional, vão assumindo um nível teórico mais global, iniciando
articulações, produzindo análises e interpretações que suplantam o caso individual e
geram uma produção conceitual.
Assim, a constatação de relações racistas, na singularidade do grupo educativo,
desdobrou-se na necessidade de transpor aquele caso individual para a verificação da
abrangência mais coletiva do fenômeno do racismo, em outros espaços e situações do
mundo social. O caminho que segui foi a consulta à literatura, onde constatei que o
Evenice Santos Chaves O racismo na Trajetória Escolar e Profissional... 2

racismo:
1) É um fenômeno universal, assinalado como tal por Guimarães (1999) e
McDougall (2001).
2) Como questão social universal, é um objeto de trabalho na ONU, através da
Comissão de Eliminação da Discriminação Racial (McDougall, 2001).
3) É um fenômeno social que se evidencia no Brasil, já explicitado pelo
movimento negro, desde há muito tempo, segundo Guimarães (1999) e Santos (1990),
embora camuflado, conforme Rodrigues (1995).
4) É um fenômeno social reconhecido pelo governo do nosso país como
constitutivo da sociedade brasileira, desde 1995 (Silvério, 2002).
5) É produtor de desigualdades sociais e materializa-se, no Brasil, através das
desigualdades raciais (Pereira, 1997; Santos, 1990; Teixeira, 2000).
6) Do ponto de vista psicológico, é produtor de opressão, isolamento social,
conflitos (Chaves, 2001), auto-imagem e auto-estima desvalorizadoras do si mesmo e da
identidade étnica (Cavalleiro, 2001; Gusmão, 1997).
A invisibilidade do fenômeno, no nosso país, foi evidenciada por Guimarães
(1999), ao ressaltar que, através da prática discursiva nacionalista da não racialidade,
retira-se a ilegitimidade da discriminação e da segregação, porém tal estratégia não
elimina a presença do racismo no cotidiano. Assim, continua o autor, o racismo está
presente em discursos e em práticas sociais, embora não seja juridicamente reconhecido.
A consulta bibliográfica também demonstrou que o racismo contra o negro é
escassamente estudado pela Psicologia brasileira (Ferreira, 1999a), o que me levou a
mergulhar em leituras de construções científicas sobre o referido tema, realizadas por
pesquisadores nacionais, em outras áreas do conhecimento científico.
Destarte, o trabalho que desenvolvia com os adolescentes, bem como os estudos
que efetuava, clarificaram duas condições que justificavam a relevância do racismo
como objeto de estudo científico: a necessidade de pesquisas, no âmbito da Psicologia, e
a possibilidade da realização de estudos interdisciplinares, visando a uma compreensão
histórica e culturalmente situada do fenômeno.
Iniciei a elaboração de um projeto de pesquisa centrado no racismo contra o
negro, tendo em vista conhecer mais sobre as relações sociais racializadas, contribuir,
no plano teórico e metodológico, com novas elaborações e fornecer subsídios para a
Evenice Santos Chaves O racismo na Trajetória Escolar e Profissional... 3

construção e implementação de projetos de combate ao racismo contra o negro na


escola, que possam vir a ser desenvolvidos em atividades curriculares e
extracurriculares, nos diferentes graus de ensino.
A revisão da literatura permitiu o enquadramento do estudo do racismo contra o
negro nos Estudos Culturais. Segundo Shepperson e Tomaselli (2004), os Estudos
Culturais podem ser conceituados como um campo de pesquisa onde se investiga tanto
os processos bloqueadores do desenvolvimento da pessoa e suas implicações, como
aqueles processos que possibilitam o desenvolvimento do ser humano, a expressão de
suas habilidades e decorrentes conseqüências.
Shepperson e Tomaselli (2004) destacam a interdisciplinaridade como principal
especificidade dos Estudos Culturais, acentuando que a mesma é condição básica para a
apreensão de dimensões constitutivas das diversas condições humanas, ao passo que a
transdisciplinaridade proporciona estabelecer relações dialéticas entre questões sociais
específicas, com a finalidade de se obter uma integrada compreensão das múltiplas
dimensões do contexto humano.
Guareschi, Medeiros e Bruschi (2003) mencionam que os Estudos Culturais
focalizam-se em práticas sociais cotidianas, nas quais o sujeito se expressa através de
suas ações, sempre ancoradas em contextos históricos, atravessados pelo poder e pela
política.
Em síntese, os Estudos Culturais buscam o rompimento de fronteiras entre as
disciplinas, na medida que uma pesquisa enquadrada nesse campo apropria-se de
conhecimentos sobre um dado tema, elaborados em diferentes áreas, tendo em vista a
complementaridade entre saberes científicos produzidos e um entendimento mais global
sobre determinado objeto em estudo. Eacosteguy (2003), referindo-se à Psicologia,
afirma que os Estudos Culturais objetivam compreender inter-relações entre dimensões
constitutivas de uma dada cultura, processos culturais, institucionais e os particulares
contextos, sociais e políticos, que articulam o modo através do qual a cultura relaciona-
se com a subjetividade humana.
De acordo com Shepperson e Tomaselli (2004), em se tratando dos Estudos
Culturais, a interdisciplinaridade não é homologação da indisciplina intelectual, mas a
redefinição de um campo de estudos, onde as pesquisas são orientadas por objetos
comuns a várias disciplinas, enfocados de maneira interdisciplinar. Salientam como
Evenice Santos Chaves O racismo na Trajetória Escolar e Profissional... 4

objetos de estudo compartilhados por diferentes áreas do conhecimento, a etnicidade, o


gênero, o corpo, a masculinidade, a classe social, a literatura, a nação, a cultura popular
e a mídia.
Então, imbricada na relevância do racismo contra o negro, enquanto objeto de
estudo, está a sua complexidade e a necessidade de abordá-lo de forma interdisciplinar,
com disciplinamento teórico. Na presente pesquisa, tal enfoque foi empregado sob uma
condição: a de complemento entre conhecimentos sobre o racismo contra o negro,
gerados em diferentes áreas de estudo, e respectivas disciplinas, que partilhavam a
concepção do ser humano como socialmente construído, em contextos políticos e
sociais, demarcados por diferentes temporalidades.
A minha tomada de decisão em abordar o racismo contra o negro, de forma inter
e transdisciplinar, exigiu que me munisse de conhecimentos provenientes de diversas
áreas, elaborados por diferentes autores, todos eles constituindo aportes já consolidados,
os quais, no cenário científico, não representavam novidade. Contudo, o meu modo
pessoal de articulá-los difere daqueles realizados pelos autores consultados, que
construíram os conhecimentos fincados em outros objetivos, diferentes dos meus. Logo,
a integração que realizei delineou outra forma de articulação entre diferentes conteúdos
científicos.
Além disso, essa integração, a partir de um olhar construído na Psicologia, abriu
espaço para uma investigação sobre as desigualdades sociais e raciais, centrada nas
experiências humanas que atravessaram trajetórias de vida, nos diferentes espaços do
cotidiano de participantes/informantes preta, parda e branca. Os conteúdos das
narrativas construídas, no processo de coleta de informações, produziram dados sobre
acontecimentos vinculados às desigualdades, sociais e raciais, que fizeram parte dos
seus cursos de vida e participaram da configuração e re-configuração de aspectos das
suas singularidades.
Bruner (1997) assevera que o discorrer sobre as próprias vivências e o si mesmo
é fonte geradora de dados para uma Psicologia culturalmente situada, que focaliza o que
as pessoas verbalizam sobre os seus mundos, considerando-se aquele em que relata
viver ou ter vivido, e os possíveis, ou seja, aqueles que podem vir a ser. A posição
teórica desse estudioso traz à baila que, no entendimento das relações raciais, a
subjetividade é relevante, pois, em última instância, cada pessoa é produtora ou objeto
Evenice Santos Chaves O racismo na Trajetória Escolar e Profissional... 5

das relações racistas que perpassam as suas experiências sociais, ao longo do processo
de desenvolvimento. Essa processualidade configura-se nos cursos de vida, cujos
acontecimentos criam oportunidades para a pessoa atuar, relacionar-se, sentir, significar
e re-significar concepções e comportamentos, materializáveis nas situações interativas
com outros, que, conforme Simão (2004), nem sempre estão fisicamente presentes.
Rey (1997) aborda a subjetividade humana como constituída e constitutiva da
história social, argumentando que, por isso mesmo, o sujeito a organiza no convívio
com outros. Dessa forma, entende-se que a subjetividade traz em seu bojo a marca do
mundo social, através dos sentidos que a pessoa atribui às situações, aos eventos, às
relações, às suas próprias realizações, aos conflitos e às frustrações, como ator e autor
participante da vida na sociedade. Dito de outro modo, o processo de subjetivação
integra a unidade mundo social-sujeito das ações, organizando suas compreensões, seus
sentimentos, suas ações e imprimindo qualidade aos relacionamentos humanos, que se
estabelecem durante toda a trajetória existencial de cada um, em particular.
Para Hernández (2005), aportes multilaterais e transdisciplinares possibilitam a
compreensão de manifestações sociais e psicológicas de grupos e de seres humanos,
através do desvelamento da teia de relações e expressões pessoais, tácitas ou explícitas,
dialeticamente articuladas, com elaborações culturais e ideológicas. Esse pesquisador,
no entanto, adverte que integrar o social com o psicológico não significa psicologizar
fenômenos sociais mais amplos, nem sociologizar as situações sociais, porém, entender
como determinantes estruturais e das condições de vida material dos seres humanos se
entrelaçam. Adita que é necessário articular uma interpretação que englobe mecanismos
psicossociais, culturais e ideológicos e explane a conexão entre manifestações sociais da
subjetividade e situações humanas constituintes dos fenômenos sociais.
Nessa ótica, estudos centrados na interconexão entre a história social e os
processos de subjetivação podem prover conhecimentos sobre diferentes facetas
histórico-culturais do racismo contra o negro e sobre aspectos da singularidade de
sujeitos, cujos percursos se desenrolam em contextos sociais racializados. A referida
interconexão, portanto, confere relevância a pesquisas focalizadas na processualidade
inerente ao curso de vida das pessoas, que se desenvolvem nos contextos, nas situações
e nas instituições sociais, em movimentos sempre mediados pela participação de outros.
Bento (2002a) ressalta que as pessoas de fenótipo branco são esquecidas como
Evenice Santos Chaves O racismo na Trajetória Escolar e Profissional... 6

participantes de estudos, nas pesquisas brasileiras sobre relações raciais, e, em


decorrência, o racismo é maciçamente focalizado como uma questão apenas do negro.
Nas referências consultadas, não encontrei nenhum estudo enfocando percursos de vida
de pessoas negras e brancas ao mesmo tempo, no que concerne às relações raciais
brasileiras. Desse vazio, emergiu a necessidade de realizar um estudo que considerasse
o negro e o branco como pessoas que, através de suas ações, contribuem para a
manutenção do racismo contra o negro ou lutam, por diferentes vias, para a sua
modificação, na direção da igualdade racial.
Consoante com o grupo de adolescentes e com o que a literatura me esclareceu,
o racismo foi definido como tema desta pesquisa e a escola configurou-se como uma
instituição social reprodutora do fenômeno (Cavalleiro, 2001). Esses focos remeteram a
quatro questões: 1) se a instituição escolar é mantenedora do racismo, como a pessoa
preta e a parda enfrentaram essa adversidade e concluíram o ensino de terceiro grau? 2)
como transcorreu a trajetória escolar do preto, do pardo e do branco? 3) como a pessoa
branca, no seu percurso escolar, portou-se diante do racismo contra o negro? 4) o que a
escolaridade propiciou à pessoa preta, à parda e à branca?
Perpassando tais questões, as experiências de vida de negros e brancos, no
mundo escolar, quer como alunos, quer como profissionais do ensino, passaram a fazer
parte da possibilidade de pesquisar trajetórias de sujeitos sociais com escolaridade de
terceiro grau, posto que as experiências de seres humanos na instituição escolar,
enquanto objeto do racismo, produtor do mesmo, ou indiferente a ele, é psicológica, o
que legitima o fenômeno como objeto de estudo da Psicologia.
Queiroz (2000) afirma que poucos estudos foram realizados abordando o
racismo contra o negro, no ensino de terceiro grau. A pesquisadora, investigando as
desigualdades raciais em uma universidade pública, relata que:
... o constrangimento em lidar com a cor está presente em muitos espaços. A UFBA1 não é,
evidentemente, uma exceção. Em outros âmbitos, também acadêmicos, além do distanciamento
com relação à questão, os pesquisadores têm, em muitos casos, se deparado com fortes
resistências institucionais para investigar acerca das características raciais dos grupos aí
presentes. Esse tema está, não raro, cercado de negações, receios, reticências e resistências
(Queiroz, 2000, p.17).
As afirmações acima coadunam com o resultado de uma pesquisa implementada

1
UFBA = Universidade Federal da Bahia.
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pela Folha de São Paulo e Instituto Datafolha (Rodrigues, 1995), a partir da coleta de
informações com cinco mil pessoas, em diferentes regiões do Brasil. Os achados desse
trabalho demonstraram a existência do que o autor denominou de racismo cordial no
Brasil: existe, porém é negado ou disfarçado.
Portanto, um estudo centrado no racismo contra o negro, que englobasse o
percurso escolar de pessoas, até a conclusão do ciclo formal de estudos e os seus
percursos profissionais, como professoras do ensino de terceiro grau, tornou-se
imprescindível, pois poderia revelar sobre a ocorrência do fenômeno em diferentes
graus de ensino e na universidade, como local de trabalho. A presente pesquisa seguiu
essa trilha e será descrita em nove capítulos.
O primeiro capítulo, a introdução, versa sobre conceitos de racismo, de
preconceito de cor e de preconceito de raça; funções do racismo; mecanismos sociais e
psicossociais de subordinação racial; a unidade inclusão/exclusão social; a
categorização social e a opressão; o racismo como uma questão ética; o racismo como
modalidade de violência estrutural; os primeiros estudos realizados no Brasil sobre o
negro; saberes psicológicos empregados no ínicio do século XX para hierarquizar
negros e brancos e para orientar avaliações psicológicas; pesquisas recentes focadas na
temática do negro, empreendidas no âmbito da Psicologia brasileira; as desigualdades
raciais na universidade brasileira; o objetivo geral deste estudo e as questões a serem
respondidas.
O segundo capítulo aborda os enfoques científicos sobre o racismo no Brasil,
focalizando o racismo científico e o embranquecimento; a ideologia da democracia
racial brasileira; a estrutura econômica e social da escravidão como modelo para a
interpretação das relações raciais e os contextos específicos como explicação para a
manutenção das desigualdades raciais.
O terceiro capítulo enfoca o arcabouço teórico-metodológico que orientou este
estudo, focalizando aspectos epistemológicos; aspectos relativos ao pesquisador; os
conceitos de cultura; o significado e a narrativa como fundamentos teóricos ao método;
a interpretação, requisitos para a sua realização e a avaliação da pesquisa qualitativa.
O quarto capítulo trata do método empregado nesta pesquisa: a estratégia de
investigação empregada; a seleção e o número de casos estudados; a técnica e os
instrumentos utilizados na coleta de informações; os critérios empregados nos diversos
Evenice Santos Chaves O racismo na Trajetória Escolar e Profissional... 8

momentos da investigação e os procedimentos empregados.


O quinto capítulo expõe a organização dos dados coletados pela entrevista
narrativa e conseqüente sistema classificatório.
O sexto capítulo descreve a participante/informante de cor socialmente intitulada
preta; a análise e a interpretação da sua entrevista narrativa; a análise e a interpretação
da lista de complementação de frases e a triangulação dos dados.
O sétimo capítulo apresenta a descrição da participante/informante de cor
socialmente intitulada parda; a análise e a interpretação da sua entrevista narrativa; a
análise e a interpretação da lista de complementação de frases e a triangulação dos
dados.
O oitavo capítulo traz a descrição da participante/informante de cor socialmente
intitulada branca; a análise e a interpretação da sua entrevista narrativa; a análise e a
interpretação da lista de complementação de frases e a triangulação dos dados.
O nono capítulo, as considerações finais, discute os principais resultados
encontrados à luz dos objetivos do estudo; tece apreciações sobre o método empregado;
aponta a necessidade de realização de outras pesquisas e as contribuções deste trabalho.
Por fim, acrescento que redigi a apresentação na primeira pessoa porque julguei
que ela descreve parte da minha trajetória na extensão universitária. Ainda
adiciono que usei algumas referências secundárias neste trabalho, por não ter
acesso aos trabalhos originais e avaliar que conteúdos provenientes dessas fontes
eram importantes.
CAPÍTULO 1

INTRODUÇÃO

Segundo Guimarães (2004), nas décadas de 1950 e 1960, o racismo, enquanto


objeto de estudo científico, era compreendido como ideologia política ou como uma
doutrina. No cenário internacional, Banton e Miles (2000) mencionam que, até o final
dos anos 1960, o termo racismo era conceituado, na maior parte dos manuais e
dicionários, “como doutrina, dogma, ideologia ou conjunto de crenças” (p. 458). Para
esses estudiosos, na conceituação do racismo como doutrina, o elemento crítico era a
noção de cultura enquanto algo determinado pela raça e isso justificava o argumento da
supremacia racial.
De acordo com Guimarães (2004), na década de 1970, nos Estados Unidos, na
Europa e, também, no Brasil, modificou-se o entendimento conceitual do que é o
racismo. Banton e Miles (2000), no entanto, afirmam que já nos anos 1960, houve um
acréscimo de conteúdos no conceito de racismo, o qual passou a “incorporar práticas,
atitudes e crenças” (p. 458). Destarte, continuam esses pesquisadores, “o racismo denota
todo o complexo de fatores que geram a discriminação racial e designa, às vezes, mais
livremente, também aqueles fatores que produzem as desvantagens raciais” (p. 458).
Retomando o contexto sociológico brasileiro, Guimarães (2004) discorre que, a
partir de 1955, os estudiosos incorporaram o conceito do preconceito racial e de
preconceito de cor, no estudo das relações racializadas. O autor supracitado assinala a
contribuição de Oracy Nogueira na conceituação do preconceito racial e a de Florestan
Fernandes, em 1965, na elaboração conceitual de preconceito de cor.
Para Nogueira (1985), o preconceito racial são atitudes adversas, dirigidas aos
membros de uma dada população estigmatizada, dada a sua descendência étnica ou a
sua aparência. Assim, formulou duas variantes do preconceito racial: o preconceito de
origem, fundamentado na suposição de que a pessoa descende de um dado grupo étnico,
e o preconceito de marca, cujo fundamento é a sua aparência, incluindo-se na mesma o
fenótipo, o sotaque e os gestos. Oberva-se que Nogueira especificou os fundamentos
sociais que demarcam o preconceito racial, mas o atrelou a um processo psicológico, as
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atitudes, as quais, embora constituídas por conteúdos sociais, não são os únicos
determinantes de qualquer comportamento preconceituoso.
O preconceito é, antes de tudo, um fenômeno socialmente elaborado, que se
expressa em idéias culturalmente construídas, das quais se apropriam os seres humanos.
Essas idéias são constitutivas do processo de construção de suas subjetividades e dos
sentidos que dão significação às experiências sociais humanas. Devido à sua natureza
eminentemente social, o preconceito explicita a que quadro referencial de valores, de
mundo e de ser humano, cada pessoa adere (Cavalcante, 2004). Dessa forma, não
apenas as atitudes, mas outros processos sociais e psicológicos, como, por exemplo,
formas hegemônicas de se impor padrões em uma dada sociedade, ideologias que
circulam nos contextos sociais, escolhas e sentimentos, fazem parte do preconceito, o
que confere a essa categoria o lugar de um processo sócio-psicológico.
Conforme Fernandes (1965), o preconceito de cor é o conglomerado de fatores
estruturais, cognitivos e emocionais, que configura um padrão assimétrico de
relacionamento humano, explicitado em uma relação racial. Nessa perspectiva, observa-
se a delimitação do preconceito de cor como um fenômeno sócio-psicológico.
Guimarães (2004) cita que as pesquisas brasileiras realizadas até os anos 1960
não focalizavam o racismo, mas o preconceito de cor e o preconceito racial. Adita que a
introdução do termo foi realizada por Carlos Hasenbalg, no final da década de 1970.
Hasenbalg (1979) conceituou o racismo como uma elaboração ideológica, materializada
nas práticas sociais de discriminação racial. Quatro anos depois, ele reafirmou o racismo
como a expressão de práticas discriminatórias e de estereótipos culturais sobre ‘papéis
apropriados’ ao negro (Hasenbalg, 1983).
A despeito do refinamento conceitual que situa o racismo como uma elaboração
social e que envolve mais fatores que a idéia biológica de raça e preconceito, não há
unidade na conceituação do termo. Aqui, isso é considerado como salutar, do ponto de
vista científico, pois evidencia diferentes esforços na direção do entendimento das
diversas facetas que constituem o fenômeno.
Munanga (1998), por exemplo, cita que existem duas vertentes de conceituação
do racismo contra o negro. Na primeira, ele é compreendido como qualquer situação
conflituosa envolvendo pessoas e implica em desigualdade. Na segunda, entende-se o
racismo como uma ideologia vinculada à história da cultura ocidental do século XIX,
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que utiliza argumentos biológicos para hierarquizar grupos humanos, tendo em vista a
relação de exploração de um sobre outro.
Guimarães (1999) enfoca quatro conceitos de racismo, veiculados na literatura:
são explicações empregadas por seres humanos para justificarem as suas preferências,
os privilégios e as desigualdades entre as pessoas; são atitudes discriminadoras e
preferências que levam ao tratamento diferencial dirigido a outras pessoas a quem se
inferioriza, a partir de suas características fenotípicas ou culturais; são manifestações
explicitadas por diferentes mecanismos, que mantêm a reprodução de desigualdades
sociais e econômicas entre grupos humanos; são características racializadas, usadas para
identificar grupos humanos que ocupam posições de desvantagem, nos planos político,
social e cultural.
Como se observa, as conceituações abrangem diversas dimensões do racismo:
concepção ideológica, atitudes, comportamentos, assimetria nas relações sociais e
desigualdades, porém, nos diversos conceitos, essas dimensões apresentam-se de modo
compartimentalizado. Então, perde-se de vista a abrangência do fenômeno, pois, em
cada uma das conceituações anteriormente descritas, alguma categoria constitutiva do
mesmo é privilegiada, em detrimento de outras.
Fenômeno social multifacetado, o racismo envolve a estrutura da sociedade, as
decisões políticas, os modos de vida social, os relacionamentos humanos assimétricos,
construídos e reconstruídos na cultura, os mecanismos sociais inerentes à sua
operatividade e processos psicológicos. Tal complexidade requer a consideração da
dimensão estrutural, relacional e psicológica do racismo, quando da conceituação do
termo. Contudo, dada a amplitude do fenômeno, os pesquisadores, ao realizarem seus
estudos, efetuam recortes, o que implica na produção de vários conceitos.
Retomando as diferentes conceituações apresentadas, concebe-se que todas
fazem parte do que socialmente é denominado de racismo e pode-se tentar superar a
suposta independência entre os conceitos a partir da compreensão do termo racismo
como um construto, conceituado por Mendonça (1988) como construções conceituais
abstratas, elaboradas a partir de outros conceitos. Evidentemente, os conceitos que
alicerçam um construto devem ser constitutivos do fenômeno que se objetiva
cientificamente significar.
Sem pretender o consenso ou esgotar o seu significado, situa-se o termo racismo
Evenice Santos Chaves O racismo na Trajetória Escolar e Profissional... 12

como um construto, conceituando-o como a modalidade de violência construída


socialmente na história da humanidade, atrelada à formação econômica, à ideologia e à
etnicidade, manifestada, de múltiplas formas, nas relações sociais, nas quais os atores
sociais orientam suas ações interativas a partir de crenças, constituídas de conteúdos
referentes às diferenças étnicas entre pessoas e grupos sociais, tendo-se como resultante
a emergência de diversos processos psicológicos.
O papel do racismo na sociedade é delimitado pela ideologia subjacente que lhe
dá corpo e se expressa nas crenças raciais. Nas, (citado por Bloom, 1974), sublinha
quatro funções das crenças raciais:
1. Propicia justificativas de ordem moral, objetivando manter a assimetria na
sociedade, através da negação de direitos e de privilégios a determinados grupos.
2. Impede ações de grupos subordinados na direção das mudanças em suas
situações e na sociedade, o que iguala o racismo aos fundamentos da sociedade.
3. Alicerça a ação política e proporciona força contra movimentos na direção da
mudança, concebendo-os como ameaça à incerteza econômica e social.
4. Atua como justificador da situação econômica, através da argumentação de
que mudanças significarão pobreza para as massas e decréscimo no padrão de vida dos
dominantes.
Guimarães (1999) menciona que existem mecanismos sociais de subordinação
racial, nos quais as crenças raciais, difundidas através do processo de socialização,
operam como estigmas, com a função de demarcar fronteiras entre os grupos humanos.
Cita como estigmas: o de raça, calcado na crença racista de uma herança genética
definidora de atributos morais, psicológicos e intelectuais de uma pessoa ou grupo
social; o de etnia, fundamentado na identidade cultural, regional ou nacional de grupos
humanos; o de classe, alicerçado em bens culturais e materiais, a partir dos quais se
definem as qualidades morais ou intelectuais de grupos e de pessoas.
Os estigmas e as funções do racismo incorporam a unidade inclusão/exclusão
social como constitutiva desse fenômeno. Para Sawaia (1999), essa unidade concretiza-
se na sociedade através da exclusão, para ser possível a inclusão, afirmando que “todos
estão inseridos de algum modo (...) a grande maioria da humanidade inserida através da
insuficiência e das privações, que se desdobram para fora do econômico” (p. 8).
Com relação aos negros escravizados, Chaves (1998), a partir da análise de
Evenice Santos Chaves O racismo na Trajetória Escolar e Profissional... 13

documentos históricos, descreveu que a própria condição de escravização no nosso país,


ou seja, da inclusão do negro na sociedade brasileira, trouxe, no seu bojo, a proibição da
expressão da cultura negra, a dissolução de vínculos familiares, comunitários e afetivos,
construídos nas relações cotidianas, pois, ao desembarcarem em terras brasileiras, eram
dispersos para diferentes localidades e proibida a manutenção da proximidade entre
membros de uma mesma comunidade ou família de origem.
Submetendo-se por opressão aos padrões culturais do colonizador; sendo
coagidos e distanciados do exercício da liberdade enquanto possibilidade de tentar o
diferente; sendo vítimas de preconceito a partir de sua aparência física; sendo
destinatários de crenças culturais sobre sua inferioridade, nada mais plausível que o
entendimento da inclusão social excludente do grupo étnico negro, na nossa sociedade,
condição ainda presente no contexto brasileiro. Ressalta-se, no entanto, que, no curso da
temporalidade, práticas sociais de diferenciação e opressão sobre membros do grupo
negro se modificaram, através da reinvenção de formas de subjugação, inferiorização e
inclusão excludente, expressas em desigualdades sociais e raciais.
O racismo contra o negro fundamenta-se em categorizações e, historicamente,
tem se expressado nas práticas sociais cotidianas, demarcadas por diversas polarizações
categoriais como, por exemplo, branco/negro, maioria/minoria, superior/inferior.
Essas categorizações sociais produzem relações interpessoais atravessadas pela
opressão. Para Prilleltensky e Austin (2001), a opressão é “um estado de subjugação e
um processo de exclusão e de exploração” (p. 41). Os referidos autores esclarecem que
a opressão envolve desigualdades estruturais, as quais se manifestam em práticas do
dia-a-dia, e caracteriza-se pela obstrução da ação social em processos participativos;
pelo mascaramento das desigualdades; pela promoção hegemônica de formas
específicas de conhecimento; pelo ato de se ignorar as diferenças entre as pessoas,
frente ao exercício do poder, e pela reprodução da injustiça.
Em suma, no fenômeno social do racismo contra o negro, a categorização social
e o processo histórico de inclusão/exclusão organizam uma referência, a partir da qual
se elaboram preconceitos e consolidam-se discriminações raciais, que perpassam os
relacionamentos humanos. Nesses processos relacionais, o poder, solidificado através
da coesão e da solidariedade de alguns parceiros sociais, pertencentes a um grupo
hegemônico, garante a emergência e a manutenção de relações sociais racializadas, que
Evenice Santos Chaves O racismo na Trajetória Escolar e Profissional... 14

discriminam, hostilizam, humilham, subjugam, diferenciam e segregam sujeitos sociais,


nos grupos e nas instituições, mas, ao mesmo tempo, garante privilégios àqueles que
subjugam.
A compreensão dessa contradição, que nega igualdade de direitos a algum grupo
ou a alguns partícipes de qualquer relação social racializada, remete à discriminação,
outra dimensão constitutiva do racismo. Discriminar significa instituir distinções, que
demarcam fronteiras entre os iguais e os diferentes.
Em se tratando do racismo, interessa focalizar a discriminação racial. Silva
Júnior (2002) a conceitua como a via através da qual esse fenômeno social se efetiva e
se materializa nos comportamentos. Para o referido estudioso, há duas categorias de
discriminação: uma, atrelada a fatores de natureza social, que obstaculiza ou impede o
acesso de determinadas pessoas a algumas instituições ou a direitos sociais, e a outra,
que inclui um conjunto de comportamentos, os quais atravessam as relações sociais, e se
expressam em diferentes ações. Silva Júnior (2002), entretanto, afirma que essas
categorias de discriminação se interpenetram.
O enfoque teórico da discriminação por interesse clarifica a interpenetração entre
as duas categorias de discriminação racial acima descritas, evidenciando que elas são
constitutivas e constituem um mesmo processo. Bento (2002a) advoga que a abordagem
à discriminação racial focalizada no interesse vai além do enfoque no preconceito, pois
descortina que o racismo origina-se em processos psicossociais. Essa pesquisadora
descreve quatro desses processos, intrínsecos ao racismo brasileiro contra o negro: o
privilégio dos brancos enquanto espólio da escravidão; a elaboração social e a difusão
de uma concepção negativa do negro; a vantagem auferida pela cor ao grupo étnico
fenotipicamente branco e o silêncio do branco sobre o papel que desempenha nas
relações racializadas. Bento (2002a) os expõe da seguinte forma:
Enquanto espólio da escravidão, o grupo étnico branco manteve a branquitude
como modelo de referência para a espécie humana e a elite branca apropriou-se
simbolicamente desse referencial, o que colocou esse grupo como superior aos demais,
garantiu privilégios e manteve a sua hegemonia, em termos políticos, econômicos e
sociais.
Tais vantagens, auferidas pela cor, fortalecem a auto-estima do referido grupo,
favorece o desenvolvimento e a manutenção de referenciais positivos sobre o si mesmo,
Evenice Santos Chaves O racismo na Trajetória Escolar e Profissional... 15

bem como a autovalorização de características pessoais dos membros do grupo étnico


socialmente intitulado de branco. Assim, o anseio do citado grupo étnico em manter
seus interesses, perpassado ou não pelo sentimento de rejeição ao negro, pode suscitar a
discriminação. Essa, por outro lado, produziu a elaboração e a difusão de um conceito
negativo sobre os membros do grupo negro, que macula a sua identidade étnica,
enfraquece as suas auto-estimas e os faz sentirem-se culpados pelas discriminações, das
quais são objetos.
Além desses, o silêncio ou a distorção sobre o lugar social ocupado pelo grupo
branco, nas relações racializadas, resguardam os seus interesses e situa o racismo como
uma questão apenas do negro. Esse processo implica na ausência de reconhecimento,
por parte de membros da etnia branca, do seu papel na manutenção das desigualdades
raciais, permitindo que se justifique o racismo apenas como um legado da escravidão.
Bento (2002a) adverte que, no âmbito acadêmico, os estudos mantêm os brancos
afastados das análises e das avaliações sobre o racismo, e, geralmente, se atribui as
discriminações raciais contra o negro às desigualdades sociais e às ‘carências’ pelas
quais passam os pobres.
Note-se que a pobreza também é encontrada entre as pessoas brancas, porém, as
análises centradas apenas nesse indicador de desigualdade social eliminam o olhar sobre
a desigualdade racial. Ademais, brancos pobres são portadores do privilégio simbólico
da cor e essa prerrogativa coloca os negros no mais baixo patamar de pobreza, situação
visível em indicadores como saúde, educação e ocupação.
Bento (2002a) sublinha que os processos produtores e mantenedores de
privilégios adjudicados a um grupo étnico, em detrimento de outro, aliado ao
sentimento de rejeição ao grupo étnico negro, desembocam na dimensão moral da
exclusão, enquanto ausência de comprometimento político com o sofrimento do outro.
Assevera que os promotores dessa exclusão, expressa na desvalorização desse outro
como pessoa, compartilham, além da ausência de um comprometimento moral, a
distância psicológica, relativamente àqueles que são excluídos.
Agora, é imperativo destacar que, no âmbito das relações interpessoais, a
discriminação racial pode se manifestar de forma aberta (discriminação direta), o que
lhe dá visibilidade, ou de forma velada (indireta), o que lhe confere invisibilidade.
Oliveira (2004) coloca que os atos de discriminação indireta são reveladores da inter-
Evenice Santos Chaves O racismo na Trajetória Escolar e Profissional... 16

relação entre o preconceito e a discriminação, ao tempo em que evidenciam o disfarce


do preconceito, expõem uma ilusória aceitação da pessoa negra e a ausência de
reconhecimento aos seus direitos.
Oliveira (2004) menciona que, no nosso país, embora haja leis que coíbam o
racismo e observe-se a ausência de confrontos entre negos e brancos, no cotidiano dos
brasileiros, existe uma desarticulação entre a esfera pública e os espaços públicos, nos
quais a discriminação racial é perpetrada, pois, na vida diária, ocorrem situações
interativas entre pessoas negras e brancas, nas quais, ao mesmo tempo, o racismo contra
o negro é ocultado e expresso.
Do exposto até então, conclui-se que o racismo contra o negro, enquanto
processo relacional, configura-se como uma questão ética, porque, conforme Bezerra
(2001), a ética centra-se precisamente no ser humano enquanto ser em relação com
outros, e, por isso, só nas ações compartilhadas pode-se atuar eticamente.
Ancorado em outros estudiosos, Bezerra (2001) declara que a ética incide sobre
o comportamento humano enquanto produto de influências sociais, o direciona, como
também as ações coletivas. Seu papel é o de dimensionar comportamentos individuais e
grupais, tendo em vista a promoção da existência humana calcada na justiça e na
resolução dos conflitos de interesses.
Assim, no interjogo das relações sociais, a ética é, como acentua Cavalcante
(2004), o compromisso com o outro. Para a citada pesquisadora, não é apenas o
conhecimento que baliza as relações entre as pessoas, porque, no plano ético, entra em
jogo a responsabilidade, a alteridade, o comprometimento com o outro e a
vulnerabilidade, sempre presente em qualquer encontro entre sujeitos.
O panorama traçado sobre o racismo contra o negro reflete a contribuição de
pesquisadores de áreas como a Sociologia, a Antropologia, a Psicologia, a Educação e o
Direito. Subsídios dos seus estudos permitiram a elaboração desta articulação teórica,
focalizada em questões conceituais relativas ao racismo, às suas dimensões constitutivas
e a processos psicossociais, elaboradores e mantenedores da operatividade desse
fenômeno, considerando-se as nossas especificidades histórico-culturais.

1.1. O racismo como modalidade de violência estrutural


Entende-se, aqui, a violência estrutural como um mecanismo de opressão e de
Evenice Santos Chaves O racismo na Trajetória Escolar e Profissional... 17

segregação, gerador de desigualdades, intencionalmente organizadas na formação social


e econômica brasileira. O racismo contra o negro, produto de um processo de inclusões
sociais excludentes, insere-se, de forma histórica, em tal modalidade de violência.
Hasenbalg (1983), ao se referir à estrutura das desigualdades raciais, enfatiza o
diferente ponto de partida entre negros e brancos, após a abolição da escravatura.
Menezes (1997), a partir da análise de documentos históricos, organizou uma
reconstrução da inserção social do negro no Brasil, tendo-se que o seu trabalho desnuda
algumas especificidades do período compreendido entre a abolição da escravização e o
período republicano.
No final da monarquia, ressaltou a citada pesquisadora, foi instituída uma
Guarda Negra, com a função de proteger a família real, auferindo-se prestígio e
libertação aos negros que dela participava. Também sublinhou que, a partir da abolição,
os negros tornaram-se agregados dos seus ex-donos, a quem dispensavam, por dever,
cuidados e cortesias e aqueles que não se subjugavam eram rotulados de vagabundos,
perigosos em potencial e precisavam ser vigiados pela polícia.
Observa-se, desde já, que mesmo após libertos, os negros eram contidos por um
processo de submissão e de controle coercitivo, constituídos como uma forma de
ordenamento social, visando à sua inclusão social excludente. A esse respeito, Menezes
(1997) expôs que alguns atos políticos oportunizaram normatizações regulamentadoras
da repressão à liberdade, da obrigatoriedade do trabalho, do direito à participação dos
brasileiros no processo eleitoral e na educação formal.
Segundo a autora, durante o processo da abolição, a legislação referente ao uso
da liberdade impunha ao negro fixar-se em residência próxima ao local onde antes vivia
e o mesmo não poderia mudar-se para outro município, por um período de cinco anos.
Também deveria ter um trabalho fixo e, caso não o possuísse, era considerado como
perigoso, vadio, o mesmo ocorrendo se andasse nas ruas à noite, ainda que retornando
do trabalho. Quando não se comportava conforme tais exigências legais, era recolhido à
prisão, de modo sumário, ato realizado pelo juiz de paz ou pela polícia, também
detentora desse poder.
Menezes (1997) particulariza a descrição da situação em Salvador, onde, até o
ano de 1980, os negros eram presos e encaminhados para a Colônia de Pedra Preta sob a
justificativa da averiguação, permanecendo nessa condição por 90 dias, ou por tempo
Evenice Santos Chaves O racismo na Trajetória Escolar e Profissional... 18

indeterminado, sem que houvesse um processo formalizado ou notificação à justiça.


Note-se que ainda hoje a mídia, aqui e ali, denuncia prisões irregulares e até mortes
arbitrárias, de pessoas de cor negra.
Menezes (1997) descreve que aspectos da cultura negra também passaram por
interdições: durante as cerimônias religiosas, proibiu-se a prática da capoeira e do toque
dos tambores, submetendo-os ao controle policial, com a imprensa atuando como
difusora do bloqueio à liberdade de expressão da cultura africana. Conforme a citada
estudiosa, só em 1938 eliminou-se a proibição ao toque de tambores, graças ao
movimento de organização dos negros, mas a liberdade de culto religioso somente foi
oficializada em 1976.
O processo de inclusão/excludente do negro na nossa sociedade pós-escravista
não termina com o anteriormente descrito. Ainda foram excluídos do direito de votar e,
portanto, participar da escolha de seus representantes, no plano político nacional e
regional. Segundo Menezes (1997), a reforma eleitoral, instituída em 09 de janeiro de
1881, normatizou como critérios para a participação das pessoas nas eleições o censo
pecuniário e a condição de saber ler e escrever, quando o censo demográfico de 1872
enumerava que 83% de analfabetos constituíam a população brasileira. Isso significa
dizer que se negou ao contingente de negros, analfabetos, o exercício do voto, só
legalmente instituído àqueles não escolarizados na segunda metade do século XX.
Outro aspecto abordado no estudo realizado por Menezes (1997), diz respeito ao
projeto de educação primária, aprovado em setembro de 1882, que continha a
obrigatoriedade de freqüência à escola, para as crianças com idade entre sete a quatorze
ou quinze anos. Tal requisito era regulado pela oferta de instituições de ensino
disponíveis, todavia deixava de vigorar quando essas se localizavam dois quilômetros
além da residência para os meninos e um quilômetro e meio para as meninas. Diante de
tal legislação, muitos negros, jovens e adultos libertos, analfabetos e sem residência
fixa, foram objetos de exclusão, situação que os deixou em desvantagem, no processo
de escolarização. Hasenbalg (1983), ao analisar dados da PNAD1 de 1979, observou
que, dentre os analfabetos, os negros ainda compunham o maior contingente.
A partir do cenário descrito, verifica-se que a exploração do aspecto de
reconhecimento, aliado à recusa dos que não se submetiam, criou o momento propício
1
PNAD: Pesquisa Nacional de Amostra por Domicílios, realizadas pelo IBGE – Instituto Brasileiro de
Geografia e Estatística.
Evenice Santos Chaves O racismo na Trajetória Escolar e Profissional... 19

para que, sob a forma de guarda, os negros continuassem a proteger alguns de seus
algozes, o que implicou na continuidade das suas subjugações aos detentores do poder
econômico. Do ponto de vista social, os mecanismos de cerceamento à liberdade, assim
como as vias de difusão social de atributos condizentes com o lugar de inferioridade a
que foram obrigados a assumir, funcionaram como ancoragem para a formação cultural
de uma desqualificadora imagem psicológica do negro.
Por outro lado, a repressão à prática religiosa e ao ritual dos tambores contribuiu
para a associação entre o candomblé e o mal, ainda presente nas crenças de muitos
brasileiros, conforme se constata na vida cotidiana, onde muitos expressam esse ponto
de vista, relacionam tal culto a coisa de negro, desqualificando a religião e esse grupo
étnico.
Verifica-se, ainda, que a exclusão do acesso à escola foi politicamente planejada
e implementada, porquanto, após a abolição, os negros sequer tinham residência fixa. A
esse respeito, Aquino, Vieira, Agostino e Roedel (2002) revelam que as favelas no Rio
de Janeiro começaram a ser construídas pelos libertos, porque saíram da escravidão,
porém foram despejados nas ruas. Esses autores afirmam que o escravismo deixou
como marca a integração dos negros na pobreza.
Em suma, a assimetria nas relações sociais e os impedimentos legais, em função
da etnia e do lugar social ocupado, são característicos dos processos de inclusão
produtores de exclusão social, gerados e alimentados pela elite branca e pelo Estado.
Freire (1977), com muita propriedade, menciona que a constituição histórica da
sociedade brasileira traz, no seu bojo, a discriminação e a submissão da população,
desde os seus primórdios. O controle coercitivo, a violação de direito à expressão
cultural, a restrição ao ir e vir, a restrição ao acesso a bens e serviços, no mínimo,
necessários à sobrevivência sócio-psicológica, são marcos que atravessam um longo
período histórico da inclusão do negro na sociedade brasileira, que, para a sobrevida da
estrutura de privilégios para alguns, necessita manter a exclusão social de outros.
A ciência brasileira do final do século XIX colaborou com a ordem social que
desqualificava o grupo étnico negro e, muitos dos seus construtores, representantes da
elite econômica, elaboraram saberes, os quais foram empregados para justificar a
hierarquização e o controle sociais.
Os primeiros estudos brasileiros centrados no negro foram de autoria de Nina
Evenice Santos Chaves O racismo na Trajetória Escolar e Profissional... 20

Rodrigues (1862-1906). Tomando por base teorias européias, Rodrigues (1939)2


elaborou uma versão do racismo científico, ancorando-a na polarização branco/negro.
Com base em tipologias e patologias, descreveu o perfil da população mestiça brasileira
como inferior e, ainda, as suas supostas características culturais e raciais.
Na mesma obra, fundamentando-se na Psicologia das Massas, analisou o
movimento de massa de Canudos, descreveu a personalidade de Antônio Conselheiro,
taxando-o de louco, e a despersonalização da multidão liderada por ele, considerando-a
mentalmente contagiada por imitação. Rodrigues (1939) situou esse trabalho no campo
da Psicologia Social, ao afirmar que “o estado mental participa sempre da psychologia
social e da psychologia collectiva” (Rodrigues, 1939, p. 88).
Para Matamala (1980), um princípio básico da Psicologia das Massas, objeto da
Psicologia Social, é o de que um acontecimento de massas decorre de circunstâncias
concretas, inerentes a um grupo social, enfatizando que essa é a dimensão psicossocial
dos denominados fenômenos de massa. Tal aspecto está presente no trabalho de
Rodrigues (1939).
A produção teórica de Nina Rodrigues sobre Belo Monte responsabilizou a
loucura de Antônio Conselheiro como a causa daquele movimento social, o que, do
ponto de vista político e ideológico, produziu uma legitimação científica alienante para
a luta de Canudos.
Rodrigues (1894) também efetuou diagnósticos de crianças que cometeram
crimes na Bahia. As noções racistas da inferioridade dos negros, dos mestiços e da
determinação da hereditariedade sobre as condutas criminosas, foram os princípios
orientadores dos seus estudos de caso, cuja composição técnica envolvia a análise do
histórico familiar e da vida social do denominado criminoso, o exame craniométrico
(Rodrigues, 1939) e a hipnose (Rodrigues, 1894).
O caráter racista dessas produções foi posteriormente contestado pela ciência,
como se verá em outro capítulo, e nada restou desses trabalhos de Nina Rodrigues como
contribuição a um modelo psicológico que possa ser empregado na compreensão das

2
A obra em questão é o livro denominado “As colectividades abnormais”, cujos conteúdos do primeiro
capítulo, intitulado “A abasia choreiforme epidemica no norte do Brasil”, refere-se a uma comunicação
proferida por Nina Rodrigues no 3º Congresso Médico Brasileiro, realizado na Bahia, em 15 de Outubro
de 1890. Os conteúdos do capítulo seguinte, denominado “A loucura epidêmica de Canudos”, foram
publicados em 1898, na França, nos Annales Médico-Pshychologiques, (maio-junho). Essas informações
estão contidas em Rodrigues (1939).
Evenice Santos Chaves O racismo na Trajetória Escolar e Profissional... 21

relações raciais brasileiras.


Masiero (2002) realizou uma pesquisa, fundamentada na análise de documentos,
explicitando que, no início do século XX, os saberes psicológicos estruturaram
estratégias com o objetivo de se estudar comportamentos, doenças mentais e a
inteligência do ser humano. De acordo com o estudioso, trabalhos foram desenvolvidos
por médicos, filósofos, antropólogos e educadores, comumente referidos como
psicólogos, os quais se orientavam pela tese racista de inferioridade do negro, da
degeneração do mestiço e pelo movimento da eugenia.
A associação entre a “raça” negra e a doença mental, além de cientificamente
orientada pela teoria racista, era evidenciada pelos estudiosos, a partir de justificativas
decorrentes dos levantamentos que indicavam maior contingente de negros e mestiços
recolhidos em colônias para loucos (Masiero, 2002), como exemplificado abaixo:
A população de Pernambuco era em 1929 de 2.916.000 habitantes conforme a estimativa da
Diretoria Geral de Estatística do Estado. Os negros devem estar aí representados por 174.960
pessoas e todas as outras raças com 2.741.040 (...) verifica-se que para 100.000 indivíduos 187
negros são internados por psicopatias contra 107 de todas as outras raças. (Pernambucano e
Campos, citados por Masiero, 2002, p. 123-124).
Masiero (2002) encontrou que, em situações da prática profissional, o teste de
inteligência, importado da Europa e inspirado nas diferenças individuais, ressaltadas
pela visão racista de Galton, foi um instrumento empregado na avaliação da capacidade
intelectual das raças. A esse respeito, cita que o teste de inteligência, elaborado por
Binet, foi utilizado em avaliações de negros e brancos, no ano de 1932, para estimar as
suas capacidades intelectuais:
... num estudo comparativo da capacidade intelectual dos negros e dos brancos, 5% de
supernormais entre os brancos e 0,8% entre negros. Equivale dizer que, numa população de
10.000 negros, haveria probabilidade de existir 80 de inteligência superior, ao passo que numa
população de 10.000 brancos deveriam produzir-se 500. (Viana, citado por Masiero, 2002, p.
196).
Com relação à prevenção eugênica, Masiero (2002) identificou que, entre 1920 e
1930, o conhecimento psicológico reinante contribuiu na implantação de medidas
disciplinares e de profilaxia às práticas religiosas da cultura negra, consideradas como
evolutivamente inferior, notadamente no Rio de Janeiro, em São Paulo, em Pernambuco
e na Bahia.
Masiero (2002) relata, por exemplo, que, no ano de 1934, a Assistência a
Evenice Santos Chaves O racismo na Trajetória Escolar e Profissional... 22

Psicopatas do Estado e a Secretaria de Segurança de Pernambuco ampliaram os seus


serviços, organizando um procedimento para a avaliação de pais-de-santo e de terreiros,
os quais só poderiam funcionar depois de autorização oficial, fundamentada em laudos,
como o seguinte:
Este ano prosseguiu normalmente o registro das seitas africanas e centros espíritas. Elevou-se a
13 o número de autorizações fornecidas à Comissão de Censura das Casas de Diversões, da
Secretaria de Segurança Pública, sendo examinados pelo Serviço 23 responsáveis (...). São os
seguintes os requisitos para o fornecimento dessas autorizações: 1º) saúde psiquiátrica completa
de babalorixá ou médium de centro espírita; 2º) determinação de I. M. [idade mental] e Q.I.
(escala Binet-Simon-Terman, revisão pernambucana) e perfil psicológico de Rossolimo
(adaptação pernambucana) feitos pelo Instituto de Psicologia; 3º) entrega de estatutos e
regulamentos das seitas e centros espíritas, assim como as listas dos dias de funções; 4º) registros
desses centros em livro especial; 5º) compromisso de não se entregarem à prática ilegal da
medicina e permitirem visitas de nossos auxiliares (Cerqueira, citado por Masiero, 2002, p.36).
Do exposto até então, constata-se que os anos iniciais da Psicologia no Brasil
foram de grande colaboração às práticas institucionais repressoras, com as quais a nossa
disciplina contribuiu para a manutenção de controles sociais racistas, dirigidos aos
negros.
Após esse período, a literatura consultada indica que a Psicologia, por muito
tempo, silenciou sobre o negro e a discriminação racial. Estudos sobre o racismo contra
o negro são escassos nessa área de conhecimento, uma vez que o tema não tem sido
privilegiado nas agendas de pesquisa.
Ferreira (1999a), através da análise de documentos científicos, buscou identificar
a temática do racismo em trabalhos publicados ou apresentados em congressos,
registrados documentalmente na Biblioteca de Psicologia da Universidade de São Paulo
e na da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo. De início, fez um levantamento
bibliográfico, cobrindo o período de 1987 a 1998, e, como resultado dessa etapa,
identificou 3.862 artigos, distribuídos em 30 periódicos; 393 teses de doutorado e 656
dissertações de mestrado, perfazendo um total de 4.909 publicações. A seguir,
selecionou os trabalhos publicados “que incluíam a temática dos afro-descendentes” (p.
73) e verificou que, do universo total, apenas 12 focalizaram o tema em questão: 2
dissertações de mestrado, 3 teses de doutoramento e 7 publicações que incluíam artigos
e resumos de estudos apresentados em congressos.
O resultado desse trabalho sugere duas hipóteses: o fenômeno do racismo existe,
Evenice Santos Chaves O racismo na Trajetória Escolar e Profissional... 23

mas é pouco relevante, ou, ainda, que ele existe, é relevante e não tem sido privilegiado
como objeto de pesquisa. À primeira vista, a hipótese da pouca relevância pode ser
considerada como plausível, pois é consoante interpretar a relevância de um tema
tomando-se como critério as publicações disponíveis. Porém, isso significa banalizar o
fenômeno social do racismo contra o negro e aceitar, de forma até ingênua, que em
Psicologia só se pesquisa e publica o que é relevante, do ponto de vista das demandas
brasileiras. Então, uma outra questão decorre: por que a temática, presente no nosso
cotidiano, não tem sido privilegiada na agenda da pesquisa?
Retomando Ferreira (1999a), após constatar o número limitado de estudos, o
mesmo consultou um pesquisador, doutor em Psicologia, sobre possíveis razões que
justificassem a escassez de pesquisas centradas em pessoas que intitulou de afro-
descendentes. Ouviu do referido investigador que esse dado poderia ser tomado como
indicativo da inexistência de preconceito racial entre os psicólogos, todavia, ainda
assim, “a Psicologia estaria negando uma diferença que efetivamente existe nas pessoas
desta população” (p. 78). Ferreira, então, levantou outras hipóteses: 1) o reduzido
número de trabalhos científicos disponíveis pode evidenciar a falta de interesse do
pesquisador psicólogo para com a população de afro-descendentes e isso sugere que se
está construindo “uma Psicologia branca” (p. 79); 2) a raça e a origem étnica não são
consideradas como relevantes no estudo do ser humano.
O estudo de Ferreira, apesar de apresentar informações sobre os 12 trabalhos de
modo muito genérico, permitiu identificar que onze das investigações encontradas
contribuem para descortinar algumas questões referentes ao racismo no Brasil: a
constatação científica da sua existência frente ao afro-descendente; a negação da
presença do racismo nas relações sociais cotidianas pela criança negra e por adultos que
ocupavam diferentes lugares sociais; a ausência de relações racistas entre adolescentes
brancos e negros, portadores de deficiência mental; a presença de conteúdos racistas na
literatura juvenil e em propaganda veiculada na sociedade; o resgate da compreensão de
aspectos da cultura negra, presentes no cotidiano brasileiro e no nigeriano; o resgate da
identidade étnica a partir da inserção de afro-descendentes no movimento negro e
conseqüente enfrentamento às questões de discriminação na sociedade.
Todavia, um estudo identificado por Ferreira (1999a) apresentou como resultado
a concepção racista de que a criança negra é menos inteligente que a branca. Tal questão
Evenice Santos Chaves O racismo na Trajetória Escolar e Profissional... 24

sugere a existência de pesquisador(es) que, ideologicamente, ainda interpreta(m)


resultados de estudos ancorados no racismo de cunho biológico, o qual apregoa a
inferioridade intelectual do negro. Ferreira, Calvoso e Gonzáles (2002) argumentam que
o pesquisador, como pessoa, é participante ativo e norteador do conhecimento que
produz, e esse traz, implicitamente, as suas experiências e pontos de vista, estruturados
nas interpretações sobre o objeto em estudo, sempre vinculado a um contexto e a uma
história. Vê-se, então, que nem o pesquisador nem a ciência são desprovidos de
ideologias, e isso não é novidade, pois, de há muito, essa questão é teoricamente posta.
Entretanto, considera-se que é deveras importante apontar aquelas pesquisas que
implicam na inferiorização de qualquer ser humano, negando a sua condição de
igualdade, sem a mínima consideração a contextos sociais e a oportunidades que
favorecem, dificultam ou impedem o desenvolvimento pleno das capacidades humanas.
Em síntese, a interpretação de uma criança negra como portadora de menos
inteligência que a branca, no contexto acadêmico da Psicologia brasileira, revela o
emprego da ideologia racista do final do século XIX, veiculada como científica. Essa é
constitutiva da estrutura das desigualdades raciais e a interpretação supracitada remete à
afirmação de Hasenbalg (1983) de que fatores constitutivos das desigualdades raciais
não devem ser buscados apenas no passado, porque eles também atuam no presente.
Guimarães (1999) ressalta que, contemporaneamente, a igualdade de direitos é
constitucionalmente garantida a todos os brasileiros, independentemente da etnia, e
inexistem justificativas ideológicas legitimadas por leis, a favor do racismo contra o
negro. Tal conquista, adita esse estudioso, não o eliminou do nosso país, porquanto,
após o processo de escravização, o racismo consolidou-se na pobreza, na destituição do
lugar dos negros na cultura, na economia e na violência verbal, fundamentada em
estigmas de cor da pele e de classe, os quais são exteriorizados nas falas que incorporam
a noção de inferioridade.
Com o objetivo de traçar um quadro mais atualizado das publicações sobre a
temática negra, em periódicos de Psicologia, realizou-se um levantamento nas revistas
disponíveis no portal de periódicos da CAPES3, acesso livre. Os critérios para a eleição
dessa fonte foram a fidedignidade da mesma e o número de obras cadastradas.
Inicialmente procedeu-se à identificação dos periódicos, períodos cobertos, número de

3
CAPES = Coordenação de Aperfeiçoamento do Pessoal do Ensino Superior.
Evenice Santos Chaves O racismo na Trajetória Escolar e Profissional... 25

exemplares de cada periódico e número de artigos publicados em cada revista durante o


período coberto. Os resultados estão expostos na Tabela 1.

Tabela 1. Número de publicações em quinze periódicos de Psicologia,


de janeiro de 1997 a fevereiro de 2006.
Periódicos Períodos Número de exemplares Número de artigos
Estudos de Psicologia 1997-2004 19 242

Interação em Psicologia 2000-2005 9 107

Interações 2002-2004 5 33

Memorandum: Memória e 2001-2005 9 77


História em Psicologia

Psicologia: Ciência e 2003-2004 8 96


Profissão

Psicologia: Reflexão e Crítica 1997-2005 23 369

Psicologia: Teoria e Pesquisa 2000-2005 17 117

Psicologia: Teoria e Prática 1999-2005 12 125

Psicologia Clínica Não especifica 9 71

Psicologia da Educação 2005 1 8

Psicologia & Sociedade 2002-2005 9 92

Psicologia em Estudo 2001-2005 12 188

Psicologia Escolar e 2001-2005 8 63


Educacional

Psicologia Hospitalar 2002 1 10

Psicologia USP 1997-2005 18 283


Fonte: Portal de Periódicos da CAPES, acesso livre.

Os dados mostram que de janeiro de 1997 a fevereiro de 2006 foram publicados


1.833 artigos nas 15 revistas científicas analisadas, mas, desse total, apenas dezesseis
focalizaram temáticas do negro, o que perfaz um percentual de apenas 0,87% das
publicações, nas referidas revistas.
Tal percentual indica a continuidade da escassez de pesquisas realizadas na
Psicologia, centradas na temática do negro, como relatado por Ferreira (1999a).
Contudo, é impossível comparar o número de artigos identificados por esse autor,
Evenice Santos Chaves O racismo na Trajetória Escolar e Profissional... 26

publicados entre 1987 a 1998, com aqueles encontrados no presente levantamento,


cobrindo, como já citado, o período de janeiro de 1997 a fevereiro de 2006, porque
Ferreira não especificou o número de artigos que localizou, citando apenas que foram 7
publicações, entre artigos e resumos de estudos apresentados em congressos.
Considerando-se os periódicos consultados, verifica-se um tímido aumento no
número de publicações que tomam como objeto de estudo aspectos vinculados à cultura
negra e ao racismo contra o grupo étnico negro. Observa-se, ainda, uma tendência na
Psicologia brasileira em construir conhecimentos científicos que, de um modo geral,
ignoram a questão do racismo contra o negro, transformando esse fenômeno social em
um epifenômeno.
No levantamento realizado, identificaram-se os periódicos com artigos
focalizados na temática negra, o número e o ano de publicações, em cada um deles. Os
resultados estão expostos na Tabela 2.

Tabela 2. Publicações focalizadas na temática do negro, em oito


periódicos de Psicologia, de janeiro de 1997 a fevereiro de 2006.
Periódicos Número de artigos Período coberto
Estudos de Psicologia 1 1997-2004

Memorandum: Memória e 5 2001/2005


História em Psicologia

Psicologia: Ciência e 1 2003-2004


Profissão

Psicologia: Reflexão e Crítica 1 1997-2005

Psicologia: Teoria e Pesquisa 2 2000-2005

Psicologia & Sociedade 2 2002-2005

Psicologia em Estudo 3 2001-2005

Psicologia USP 1 1997-2005


Fonte: Quinze periódicos de Psicologia disponíveis no Portal da CAPES, acesso livre.

Posteriormente, procedeu-se à leitura dos artigos. Dentre os 16 localizados, 5


centram-se em religiões afro-brasileiras e 11 em temas vinculados ao racismo contra o
negro. Esses últimos, por abordarem conteúdos relacionados ao objeto de investigação
desta pesquisa, serão descritos a seguir, com o intuito de traçar um panorama sobre
Evenice Santos Chaves O racismo na Trajetória Escolar e Profissional... 27

aspectos do racismo que tem sido o foco de interesse de diferentes pesquisadores, na


área de Psicologia.

Nos anos 1990, a Revista de Psicologia da USP publicou um pequeno artigo,


escrito por uma conceituada antropóloga, cujos destinatários, sem sombra de dúvidas,
eram os pesquisadores da área de Psicologia. Schwarcz (1997) não especificou o
objetivo do seu trabalho, assinalando, no entanto, que o artigo centrava-se na relevância
de se reconhecer a importância dos modelos naturais para a compreensão de
especificidades humanas, porém advertindo que não se pode atribuir ao reino da
natureza o que é decorrente da cultura. Sobre o impacto da publicação do livro "The
Bell Curve”, no ano de 1994, nos Estados Unidos, a autora discorre que a explicação
das diferenças humanas pela noção biológica de raça, oriunda do século XIX, ainda
ocorria no século XX. Ressaltou que no século XIX mensuravam-se as diferenças entre
grupos humanos através da frenologia e do cômputo de índices craniométricos,
atribuindo-as à Biologia, que hierarquizava supostas raças humanas. Porém, no final do
século passado, Murray e Hernstein substituíram a palavra raça por etnia, todavia
permaneceram atribuindo à Biologia as diferenças entre escores de inteligência, obtidos
por pessoas que compunham diferentes grupos étnicos, verificadas através do emprego
de testes mentais. A estudiosa, então, teceu críticas à transformação das diferenças em
desigualdades, interpretadas dentro de um referencial de hierarquias valorativas, as
quais caracterizam a humanidade pela via das desigualdades ontológicas, decorrentes da
biologização das diferenças entre os grupos humanos, desprezando-se o papel da cultura
na constituição da humanização dos povos.
O trabalho de Schwarcz (1997) é relevante porque ressalta a abertura de um
periódico de Psicologia para a publicação de artigos elaborados por uma cientista de
outra área, inclusive criticando fundamentos teóricos e resultados de pesquisa
nitidamente racistas, produzidos no âmbito da Psicologia. Ademais, o artigo insere
nessa área o debate sobre a operatividade do conceito biológico de raça, que, entretanto,
não foi continuado pelos nossos pesquisadores.
O terceiro milênio inaugurou o aparecimento de publicações centradas no
preconceito e no racismo. O tema preferencial em 2002 foi o processo de construção da
identidade do negro.
Guareschi e cols. (2002) realizaram uma pesquisa, visando a compreender como
Evenice Santos Chaves O racismo na Trajetória Escolar e Profissional... 28

o cotidiano de adolescentes pobres e negros, residentes em uma favela de Porto Alegre,


era perpassado por discriminações e, também, a identificar que sentidos esses jovens
elaboravam, no processo de construção de suas identidades. Os participantes do estudo
foram dezesseis adolescentes, oito do gênero masculino e oito do feminino, com idades
entre quinze e dezoito anos. Os pesquisadores fizeram uma entrevista com cada um
deles e seis grupos de discussão.
Os resultados indicaram que os discursos dos adolescentes giravam em torno de
temas focalizados pela mídia e pela discriminação entre classes, manifestadas através
das diferenças; que as desigualdades sociais eram evidenciadas na pobreza dos
adolescentes e que as desigualdades raciais, expressas no racismo, faziam parte do seus
cotidianos. Também mostraram que as avaliações de alguns deles sobre discursos
racializados os mobilizavam para identificarem desigualdades entre negros e brancos,
emergindo sentidos vinculados à contestação e à resistência ao racismo. Outrossim,
alguns adolescentes acomodavam-se frente às desigualdades. Os autores interpretaram
que a acomodação do adolescente negro frente às discriminações contribui para a
manutenção dos discursos orientados pelo mito da democracia racial e sustenta a
invisibilidade das desigualdades raciais.
Esse estudo, com características de pesquisa-ação, dado emprego do grupo de
discussão, tem o mérito de criar situações coletivas que permitem ao adolescente
construir uma compreensão sobre o papel do racismo em suas vidas e na constituição de
sua identidade social, ao tempo em que produz um conhecimento sobre formas de
expressão do racismo no cotidiano de jovens favelados e seu impacto na construção da
identidade étnica.
Ferreira (2002) redigiu um ensaio, fundamentado em alguns acontecimentos que
perpassaram a vida social de membros de uma família negra, explicitando que nesse
trabalho procurou “ampliar a compreensão sobre alguns processos envolvidos na
construção da identidade do brasileiro afro-descendente” (p.71). Para tal, analisou
pequenos depoimentos de três mulheres, pertencentes à mesma família negra.
Descreveu que a família era do tipo nuclear, composta pelo pai, pela mãe e por
três filhos, sendo dois de gênero feminino e um do gênero masculino. Atentando para o
processo de construção das identidades, ressaltou cinco acontecimentos que marcaram
transições na re-construção das mesmas, nessas pessoas.
Evenice Santos Chaves O racismo na Trajetória Escolar e Profissional... 29

O primeiro acontecimento abordado referiu-se à ausência de conversas sobre


questões raciais e experiências de preconceito na família, quando os filhos eram
crianças, enfatizando-se que quando focalizadas, eram feitas de forma jocosa e
consideradas como insignificantes.
O segundo acontecimento aludiu à cor que os filhos atribuíam aos pais e a si
próprio: o genitor e o irmão sempre foram considerados como de cor preta; Neusa era
designada como branca; Rosa se autoclassificava como morena e Sandra como mulata.
O terceiro acontecimento envolveu as experiências de duas irmãs que as levaram
a perceberem-se como diferentes, através da desvalorização da estética negra e dos
referenciais de beleza, centrados na estética branca. Um, advém do depoimento de Rosa,
segunda filha do casal, que relatou ter se descoberto como diferente no início da sua
vida escolar, dada a sua cor escura. A mesma avaliava que era sujeira e, ao banhar-se
sozinha, se esfregava, com vigor, para retirá-la do corpo. O autor não precisa o período
da vida escolar ou a série que ela cursava, quando isso ocorreu. O outro acontecimento,
descrito por Sandra, a filha mais velha, explicitou que, na escola, experienciou o
preconceito, devido à textura do seu cabelo. Uma vez o alisou, mas foi ridicularizada.
O quarto acontecimento, alusivo a uma situação de racismo explícito, foi
exposto por Sandra: membros da sua família compareceram à festa de aniversário de um
conhecido, mas o seu pai chamou a atenção do filho, porque amigos estranhos queriam
ingressar na festa. Esse evento os fez desistir de entrar. Ressalta-se que o pesquisador
não especificou que membros da família estavam presentes naquela ocorrência, nem fez
menção ao período do curso de vida de Sandra e dos irmãos, quando isso aconteceu.
O quinto acontecimento relatado foi o de que, na atualidade, todos os membros
da família se autodefinem como negros, independentemente da tonalidade da pele. O
autor do ensaio ressaltou que eles já militavam no movimento negro.
Ferreira (2002) interpretou que Rosa e Sandra inicialmente referenciavam-se
pela estética branca, porém as experiências com o preconceito racial desencadearam a
reconstrução de um processo identitário nos membros daquela família, que se tornaram
negros. Ressalta que o processo de reconstrução da identidade envolve a ocorrência de
situações nas quais a pessoa negra passa por experiências em que é vista como
portadora de menor valor, conscientizando-se, então, da rejeição e passando a incluir-se
no grupo dos racialmente discriminados: os afro-descendentes. O estudioso concluiu
Evenice Santos Chaves O racismo na Trajetória Escolar e Profissional... 30

que rejeições, bem como a aquisição de informações sobre aspectos histórico-culturais


da experiência social dos negros, são condições que influenciam a identidade.
A importância do trabalho de Ferreira (2002) está na identificação de rupturas e
de reconstruções no permanente processo de construção da identidade étnica, a partir de
ocorrências que tomaram lugar nas experiências sociais de pessoas negras, relatadas
pelas mesmas.
O papel da mídia como transmissora de estereótipos raciais foi objeto de um
estudo realizado por Roso e cols. (2002). Esses pesquisadores analisaram os conteúdos
ideológicos embutidos em duas propagandas transmitidas pela televisão: uma, referente
a uma calça jeans, a Blue Steel, e outra, referente à telefonia, veiculada pela Embratel.
O objetivo do estudo foi o de elaborar um entendimento sobre o que as propagandas
representam, a que se referem e o que está sendo transmitido.
Com relação à propaganda da calça jeans, os pesquisadores ressaltaram que os
close-ups eram maciçamente dirigidos ao casal branco. Os personagens brancos, suas
aparências e as roupas que usavam eram indicativos de que representavam o padrão de
beleza e de costumes hegemônicos, expressos no estilo clean, enquanto os negros, bem
como o de aparência latina, representavam o estilo das minorias, evidentemente inferior
ao do branco. Os estudiosos interpretaram que a mensagem transmitida, a partir dos
modos de vestir, é a de que se a pessoa de um grupo minoritário usar o jeans igual ao
dos brancos, se tornará tão bacana quanto eles. Assim, comprar a calça iguala a minoria
à maioria e a faz pensar que não será discriminada ou excluída.
Outro aspecto enfatizado foi o local, o tipo de movimento da câmara e a música
que acompanhava os passos dos protagonistas dos dois grupos, fatores que remetiam a
situações de assalto: os bandidos, representados pela minoria, atacavam, e as vítimas,
protagonistas do grupo majoritário, reagiam, observando-se que a última verbalização
era de um negro, cuja fala era de imposição, autoritarismo e afronta. Essa ação foi
interpretada pelos investigadores como representativa do único momento onde membros
da minoria detinham o poder de reivindicar, porém a reivindicação de um objeto
desejado assentava-se no desejo da maioria. Então, continuam os pesquisadores, a
análise do enredo desvelou contradições da sociedade de consumo, que fomentam o
acesso de todos aos produtos, todavia a minoria não tem acesso à aquisição do que é
veiculado. Dessa forma, a simulação de um acontecimento que se assemelha com a de
Evenice Santos Chaves O racismo na Trajetória Escolar e Profissional... 31

um roubo, atribuído a membros da minoria, é abrandada, pois o negro não é um


assaltante, apenas quer saber do branco onde ele comprou a calça jeans.
Roso e cols. (2002) descreveram que na propaganda da Embratel, a anunciante
era branca, jovem, vestia-se de branco, mas apenas a gola da roupa era exposta.
Também aparecia um casal branco, formado por portugueses obesos de meia idade, com
a mulher segurando um rolo de massas, e uma jovem negra, uniformizada de empregada
doméstica, com roupas justas e curtas. No enredo, o casal detinha o poder sobre o
telefone e a doméstica que, para obter a permissão de usá-lo, lança mão da sedução. Os
close-ups focalizavam, preponderantemente, as pernas e as nádegas da negra e aqueles
dirigidos à portuguesa focavam gestos e posturas, indicativos do quão era brava.
Os pesquisadores aditaram que a propaganda significava o telefone como um
instrumento para suavizar a saudade, aproximar e mudar as relações sociais entre as
pessoas. Ainda fomentava a ilusão de um mundo sem barreiras, onde as pessoas são
iguais e as que não o são, precisam sê-lo.
Roso e cols. (2002) interpretaram que os estereótipos, contidos nas duas
propagandas, transmitiam a mensagem do negro como vadio: na primeira, os rapazes
representantes do grupo minoritário estavam parados na rua, como assaltantes ou
vagabundos, enquanto que na segunda, a empregada estava uniformizada, porém em um
botequim. Na propaganda da Embratel, transmitia-se a imagem da negra como objeto
sexual, sedutora do português e a da senhora branca como a de uma esposa ciumenta.
Por outro lado, o seu marido foi caricaturado como o bondoso português, que apenas
ajuda a empregada a dirimir a saudade.
Os pesquisadores também interpretaram que a propaganda da Embratel punha
em relevo a herança colonial e, apesar da bondade do português, a diferença entre o ser
branco e o ser negro estava explícita, pois o primeiro era detentor do dinheiro e do
telefone e o segundo, uma mulher negra, não possuía o referido bem, não era escrava,
mas não era patroa. Ainda assinalaram que as falas desnudavam os tipos de relações
entre brancos e negros, pois as propagandas indicavam que os brancos sempre têm as
respostas, decidem e mandam, enquanto às minorias só compete perguntar e obedecer.
Roso e cols. (2002) concluíram que a divisão das pessoas, a partir das roupas e
da aparência, é um ponto representativo da realidade social em que se vive: a
estratificação dos grupos pela classe social e a propaganda como via de produção de
Evenice Santos Chaves O racismo na Trajetória Escolar e Profissional... 32

desejos, no mundo capitalista. Por fim, afirmaram que as duas propagandas analisadas
fortaleciam a autodiscriminação, por parte de membros dos grupos minoritários, através
da internalização de auto-imagens desvalorizadoras.
Como relevância desse estudo, menciona-se a análise de propagandas como uma
estratégia que revela a televisão, e a publicidade que nela circula, enquanto instrumentos
de colaboração ao processo de manutenção de ideologias que supervalorizam o grupo
étnico branco, o apresenta como modelo e, ainda, expõem as posições sociais
socialmente prescritas para o branco e para o negro, na nossa sociedade. Destarte, as
duas propagandas, além de serem fábricas de desejos de consumo, contribuem, através
da veiculação de duas formas de discriminação indireta, para a manutenção das
desigualdades sociais e raciais. No plano psicológico, os anúncios publicitários atuam
sobre o processo de construção de auto-imagens, compatibilizando-o com a valoração
social auferida à cor da pele e ao poder aquisitivo, posto que expõem a hierarquização
dos grupos étnicos como naturais e não como valores socialmente construídos e
mantidos pelas elites hegemônicas, que são brancas.
Em 2003, três artigos foram publicados: dois teóricos e um relativo a pesquisa
empírica. Os conteúdos dos mesmos serão explicitados a seguir.
Silva (2003) elaborou um artigo, focalizando o preconceito. Partindo da tese de
Luiz Mott de que Zumbi era homossexual, o autor denunciou que o movimento negro
não aceita a atribuição dessa opção sexual àquele herói negro. Em seguida, discorreu
que o homossexualismo nem sempre foi tratado com preconceito, exemplificando que
na Grécia antiga era até privilégio dos homens e, no século XVIII, a medicina
psiquiátrica foi a primeira a rotular a opção sexual por parceiros do mesmo sexo como
uma doença. Conforme o autor, pairam dois preconceitos sobre o negro homossexual,
os quais geram um duplo sofrimento nas pessoas que se encontram nessa condição. Por
fim, situou o preconceito que recaí sobre os grupos minoritários como uma questão
eminentemente ética, porquanto faz parte de uma intolerância para com as diferenças e
nega o lugar de iguais a qualquer outro, ou seja, a seres humanos que estão no mundo.
Apesar de singelo, esse artigo é importante porque revela a dimensão ética do
preconceito, bem como o preconceito entre negros que lutam contra as desigualdades
raciais. Clarifica, pois, que em cada grupo étnico e em cada um de seus membros, habita
algum tipo de preconceito, o que precisa ser enfrentado, porque, como já declarado por
Evenice Santos Chaves O racismo na Trajetória Escolar e Profissional... 33

Fernandes (1972), o brasileiro tem preconceito de ter preconceito.


Chaves (2003b) publicou um artigo teórico, objetivando contribuir com a
reconstrução histórica da Psicologia Social no Brasil. No trabalho, abordou a influência
de idéias advindas do evolucionismo biológico e social, nos primórdios da construção
desse campo da Psicologia, em nosso país. Discorreu que o paradigma do racismo
científico foi impulsionado por Nina Rodrigues (1862-1906). Conteúdos desse trabalho
já foram sublinhados neste capítulo. Uma implicação apontada pela autora foi a
hegemonia desse paradigma no contexto brasileiro, até a década de 1930, mas, a partir
de então, perdeu terreno como via científica explicativa das diferenças entre os grupos
humanos. Porém, o racismo permaneceu, enquanto fenômeno socialmente construído.
A relevância do referido estudo concentra-se na explicitação de raízes históricas
racistas na ciência brasileira, questão silenciada no cenário da nossa Psicologia. Aliás,
Harris (1997), ao aludir à história universal da referida disciplina, ressalta que a
reconstrução da mesma tem ignorado, por demais, a influência dos fatores políticos e
ideológicos na sua trajetória. Isso, para o autor, obscurece a visão de como os contextos
sociais exercem influências nos temas orientadores de pesquisas e em conteúdos
científicos produzidos.
Pereira, Torres e Almeida (2003) realizaram um estudo experimental, com o
objetivo de verificar o efeito de um discurso que justificava a discriminação racial sobre
as formas de expressão do preconceito racial. Os participantes foram 120 estudantes que
cursavam o primeiro ano de graduação em Psicologia e esses foram aleatoriamente
alocados em dois grupos. Distribuiu-se aos grupos um texto, descrevendo a situação da
gerente de um estabelecimento comercial, que necessitava contratar uma vendedora
para a loja. Por isso, anunciou a oferta de emprego em um jornal, solicitando às
interessadas a remessa dos seus currículos, para serem analisados. A avaliação dos
mesmos indicou que os dois melhores eram de duas mulheres, com características
profissionais e competências idênticas. A gerente, então, as convocou para uma
entrevista e, nessa situação, observou que uma era de cor negra e a outra, de cor branca.
No grupo controle, acrescentou-se que quando a gerente defrontou-se com a cor da pele
das moças, sem ter dúvidas ou apresentar justificativas, contratou a branca. No grupo
experimental, aditou-se uma justificativa para a contratação, na qual a gerente não se
percebia como uma pessoa preconceituosa.
Evenice Santos Chaves O racismo na Trajetória Escolar e Profissional... 34

Na coleta de dados, aplicou-se uma escala de sete pontos, solicitando-se aos


estudantes que indicassem a sua preferência pessoal pela cor da pele de vendedores,
quando se dirigiam a uma loja, para fazerem compras. Com o intuito de se avaliar os
princípios organizadores referentes à tomada de decisão da gerente, foi aplicada uma
escala do tipo Likert, de sete pontos, contendo oito adjetivos e os estudantes deveriam
indicar o quanto cada um deles se aplicava à decisão da gerente. Para avaliar a tendência
à tomada de decisão dos alunos, acerca da contração da pessoa de pele negra ou branca,
pediu-se aos participantes que se colocassem no lugar da gerente e indicassem a sua
decisão, posicionando-a em um item apresentado sob a forma de diferencial semântico,
com a tendência à contratação da negra situada no lado esquerdo e a de contratação da
branca localizada no lado direito.
Os resultados indicaram que: a preferência dos alunos, quando entram em uma
loja para fazerem compras, independe da cor das vendedoras; os estudantes julgaram
membros da nossa sociedade como preferindo o atendimento realizado por pessoas de
cor branca; a representação dos estudantes sobre a discriminação efetuada pela gerente
organizava-se em torno da avaliação da sua capacidade profissional e da percepção do
quanto ela foi justa, verificando-se que os participantes do grupo experimental
consideraram a decisão da gerente injusta, mas tenderiam a tomar a mesma, ou seja,
contratar como vendedora da loja a moça de cor branca.
Pereira, Torres e Almeida (2003) interpretaram que o isentar-se de ser
preconceituoso e afirmar que a sociedade brasileira o é, explicita uma ambigüidade,
decorrente da utilização de argumentos conflitantes, que circulam na sociedade. Assim,
os conteúdos sociais expressos pelos participantes constituem, para os pesquisadores, o
campo representacional das relações raciais brasileiras. Eles ainda apontaram, como
limite do delineamento empregado na pesquisa, a impossibilidade do mesmo de prover
a verificação de processos ideológicos subjacentes à construção dos discursos
analisados, por que os mesmos são construídos nas históricas relações que os grupos
estabelecem em cada cultura e essa não é passível de ser experimentalmente
reconstruída.
A pesquisa descrita é relevante porque insere o método experimental no rol das
formas de investigação do racismo contra o negro no Brasil. Embora se observe que os
autores apontaram um limite do delineamento experimental, os resultados conformam a
Evenice Santos Chaves O racismo na Trajetória Escolar e Profissional... 35

interpretação já elaborada por Fernandes (1972), de que o brasileiro tem preconceito de


ter preconceito. Esse posicionamento pessoal de membros da nossa população fortalece
a invisibilidade do racismo contra o negro no Brasil, e também atua como um dos
mantenedores da dissimulação de ações racistas. Um resultado obtido por Pereira,
Torres e Almeida (2003), relativo à avaliação da decisão da gerente, por parte dos
estudantes, evidencia essa dissimulação: aqueles que julgaram a escolha da moça de cor
branca como uma decisão de natureza profissional, se posicionaram mais
favoravelmente à discriminação. Mas, aqui, questiona-se: como atribuir a escolha a um
profissionalismo, se as duas moças estavam na mesma condição, quanto à competência
para ocupar o cargo de vendedora? Certamente que o critério cromático foi o incidente
crítico e a justificativa para a contratação, assentada no suposto profissionalismo da
gerente, nada mais é que uma forma de se mascarar a discriminação racial.
O ano de 2004 ofereceu aos estudiosos do racismo três publicações: uma teórica,
que abordou aportes teóricos sobre o racismo, e duas pesquisas de natureza quantitativa,
que focalizaram temáticas constitutivas desse fenômeno social.
Lima e Vale (2004a) detiveram-se em enfoques que se concentram nos modos
contemporâneos de expressão do preconceito e do racismo. Abordando esses fenômenos
no contexto norte-americano, esses estudiosos mencionaram que novas formas de
manifestação do racismo contra o negro estadunidense surgiram, a partir de 1970, e que
as mesmas têm sido estudadas pela Psicologia Social norte-americana, resultando em
quatro pontos de vista teóricos, quais sejam:
O racismo simbólico, decorrente da resistência dos brancos aos direitos civis
conquistados pelos negros, em 1970. Essa forma de racismo se expressa na percepção
do negro como uma fonte de ameaça à cultura e aos valores brancos, nas crenças de que
os afro-americanos estão avançando muito na luta pela igualdade de direitos, bem como
no desejo branco de limitar as políticas de ação afirmativa.
O racismo moderno, que se explicita nas crenças e nas avaliações que apregoam
a inexistência de discriminação no presente, porque atualmente os negros podem
competir e consumir o que aspiram; que os afro-americanos, enquanto grupo étnico,
estão em um processo muito rápido de ascensão econômica e ocupam espaços onde não
são bem aceitos; que os negros têm construído demandas e utilizado meios injustos ou
inadequados para supri-las e que as instituições sociais estão fornecendo mais atenção
Evenice Santos Chaves O racismo na Trajetória Escolar e Profissional... 36

ao negro do que eles merecem.


O racismo aversivo, configurado em um paradoxo norte-americano, decorrente
da crença em uma sociedade cristã e democrática e da real segregação do negro, que é
violentamente objeto de discriminação nessa mesma sociedade.
O racismo ambivalente advém das seguintes percepções: os negros, quando
comparados aos brancos, estão em desvantagem e, ao mesmo tempo, são considerados
como desviantes. Tal contradição se expressa em relacionamentos onde aparentemente
se aceita o negro, porém os comportamentos dos brancos revelam o preconceito.
Com relação à Europa, Lima e Vala (2004a) destacaram que o ponto de vista
formulado para explicar o preconceito contra membros de grupos étnicos, provenientes
de ex-colônias, é intitulado de preconceito sutil. Esse se manifesta de forma disfarçada,
através da defesa de valores tradicionais; da percepção de que os membros dos referidos
grupos étnicos atuam de modo incorreto e censurável, quando procuram a realização
social; do exagero das diferenças culturais entre os europeus e os não europeus,
desqualificando-se aspectos da cultura dos imigrantes e, ainda, através da ausência de
simpatia e de admiração para com eles.
Com relação ao Brasil, Lima e Vala (2004a) afirmaram que, no ponto de vista do
racismo cordial, as novas formas de expressão do racismo se manifestam em conteúdos
de piadas, em ditos populares e em brincadeiras, com fundamentos raciais. Os autores
concluíram que os modos velados de expressão do racismo são mais perniciosos que o
racismo explícito, porque são mais difíceis de serem identificados e combatidos.
O trabalho de Lima e Vala (2004a) aborda, preferencialmente, construções
teóricas elaboradas nos Estados Unidos e na Europa, cujas condições históricas,
culturais e contextuais diferenciam o racismo presente naqueles países do racismo
brasileiro. Por outro lado, esses pesquisadores situam a noção brasileira do racismo
cordial como um aporte teórico, quando Turra e Venturini (1995) cunharam a expressão
apenas para designar que o nosso racismo é velado. Enfoques teóricos contemporâneos
sobre o racismo no Brasil foram consolidados por sociólogos e antropólogos, como será
visto no próximo capítulo.
Ao fazer um balanço da área, Guimarães (2004), pesquisador sociólogo, enfatiza
que no estudo do racismo contra o negro, o desafio atual é o de se identificar as suas
formas ampliadas de expressão, em nosso país, e os modos sutis através dos quais ele se
Evenice Santos Chaves O racismo na Trajetória Escolar e Profissional... 37

manifesta. A apropriação dessa literatura, por parte Lima e Vala (2004a), seria
proveitosa, pois geraria uma revisão teórica sobre o racismo e o preconceito de cor no
Brasil. É pertinente ressalvar que a Psicologia brasileira ainda não construiu uma teoria
sobre o racismo.
Lima e Vala (2004b) estudaram o efeito da cor da pele na avaliação do sucesso e
do fracasso de negros e brancos, por parte de estudantes universitários brancos.
Coletaram dados com 78 estudantes brancos, do curso de Psicologia de uma
universidade particular, localizada em Aracajú, porém os autores informaram que
apenas foram analisados aqueles relativos a 71 participantes.
Empregaram-se três tipos de instrumentos, na coleta dos dados. O primeiro
continha um cenário que descrevia uma situação, onde um grupo de brasileiros obtinha
sucesso econômico e social, acompanhado de uma fotografia de três homens, brancos
ou pretos, que representavam o grupo de sucesso. O mesmo procedimento foi utilizado
em outro cenário apresentado, só que o mesmo reproduzia uma situação de fracasso. O
segundo instrumento constava de uma lista de traços, denominados pelos autores de
naturais e culturais e, dentre eles, os participantes deveriam atribuir aqueles traços que
julgassem representar o grupo de sucesso ou o de fracasso. O terceiro instrumento a ser
preenchido foi uma escala tipo Likert, onde os participantes deveriam indicar a cor da
pele dos três homens que viam na foto. Os pesquisadores ressaltaram que as fotos eram
das mesmas pessoas, manipulando-se a aparência e roupa.
Os resultados obtidos mostraram que não houve uma relação significativa entre a
cor da pele e a atribuição de traços. Destaca-se que na lista de traços, anteriormente
validada pelos pesquisadores, apenas o conjunto daqueles intitulados como positivos
diferenciou-se significativamente do conjunto dos intitulados como negativos.
Ao analisarem a relação entre cor da pele, características culturais e sucesso, os
resultados indicaram que os negros avaliados como pessoas de sucesso eram descritos
como branqueados, em termos de características culturais. Dito de outro modo, os
negros que obtiveram sucesso, vistos como embranquecidos, não foram avaliados a
partir de características naturalizadas.
Os autores concluíram que o racismo encoberto, dirigido ao negro, não mais se
expressa pela negação de características positivas e, conseqüentemente, pela atribuição
de traços naturalizados, porém pela atribuição de características culturais avaliadas
Evenice Santos Chaves O racismo na Trajetória Escolar e Profissional... 38

como positivas, ao negro que obtêm sucesso.


A partir do contexto geral da pesquisa, supõe-se que as características culturais,
julgadas como positivas, relacionavam-se aos homens que representavam o grupo étnico
branco e os negros, representados como pessoas de sucesso social, portavam essas
características. Isso remonta à desqualificação de aspectos culturais do grupo étnico
negro e seus representantes, para obterem sucesso, têm que negá-las e embranquecer.
Um valor dessa pesquisa está no enfoque interpretativo ao branqueamento.
Todavia, deve-se atentar para os resultados da validação da lista de traços, os quais
demonstraram que a dimensão de traços de cultura positivos não se diferenciou da
dimensão de traços de natureza positivos, o que também ocorreu com os traços de
cultura e de natureza negativos. Tal ausência de discriminação compromete os achados
do estudo de Lima e Vala (2004b).
Outro limite desse estudo experimental é a impossibilidade de se estudar a
cultura como contexto de produção e manutenção do embranquecimento no Brasil. O
entendimento do nosso processo de branqueamento biológico e cultural passa pela
compreensão do papel que as dimensões de natureza histórica, cultural e social exercem
na delimitação e continuidade modificada desse processo, o que significa dizer que
estudos sobre o embranquecimento requerem outro delineamento de pesquisa. Todavia,
não se advoga aqui a inviabilidade de pesquisas experimentais no estudo do racismo,
pois se defende que o próprio estudo de Lima e Vala (2004b) mostra a sua ocorrência e
o branqueamento como o produto de um processo de subordinação racial. Defende-se,
porém, que autores apontem limites do delineamento empregado em suas pesquisas,
como fizeram Pereira, Torres e Almeida (2003), em estudo já anteriormente descrito.
Durandegui e Souza Filho (2004) realizaram uma pesquisa, com o objetivo de
descrever as representações sociais de adolescentes negros, morenos e brancos, sobre o
Brasil, os Estados Unidos e os países árabes/mulçumanos. Os participantes foram 219
alunos de escolas públicas do Rio de Janeiro, que cursavam o segundo grau, com 31 se
autodefinindo como negros, 88 como morenos e 100 como brancos.
Para identificarem as representações sociais dos estudantes, os pesquisadores
empregaram um instrumento, contendo questões sobre dados pessoais, espaço para a
autoclassificação de cor e a solicitação de três tarefas, a cada participante: a redação de
uma carta, apresentando o Brasil a um colega de outro país; uma redação sobre o que
Evenice Santos Chaves O racismo na Trajetória Escolar e Profissional... 39

encontraria nos Estados Unidos, fundamentada na imaginação de que viajaria para lá, e
uma redação sobre o que encontraria nos países árabes/mulçumanos, calcada na
imaginação de que havia recebido uma viagem, como prêmio, para os referidos países.
Os instrumentos foram preenchidos individualmente, em uma situação coletiva.
Finda a análise qualitativa e quantitativa dos dados, os pesquisadores verificaram
que os estudantes brancos, morenos e negros representaram o Brasil e os Estados
Unidos mais favoravelmente. Em relação ao nosso país, os negros focalizaram temas
mais favoráveis que os autoclassificados como morenos e brancos, inclusive em termos
de desenvolvimento econômico. Nesse tema, os morenos e os brancos abordaram os
efeitos negativos desse desenvolvimento e os estudiosos interpretaram que isso sugere a
adoção do ponto de vista dos países mais desenvolvidos. Outro achado foi o de que os
negros expressam, em suas escolhas temáticas e atitudinais, vontade de manter uma
fronteira mais delineada entre grupos e, também, buscam reconhecer especificidades
positivas do Brasil e dos brasileiros. Os morenos, por sua vez, demonstraram
dificuldades de tender a se influenciar pelas opiniões, crenças e discursos do grupo mais
influente, que se supõe ser o branco. Esse dado é interpretado como indicativo de que o
moreno sofre intensas pressões, para se integrar na cultura do grupo branco.
Com relação à representação social dos Estados Unidos, a tendência da atitude
do negro foi positiva, frente aos movimentos sociais e aos direitos humanos, a do
moreno centrou-se na relevância atribuída ao tema indivíduo face às normas, enquanto a
do branco expressou uma atitude desfavorável frente a diversos aspectos daquela
sociedade, notadamente no que se refere ao que os autores intitulam de interações
interpessoais.
Relativamente aos países árabes/mulçumanos, as representações dos três grupos
étnicos foram similares em termos da cultura, de atitude favorável e de neutralidade.
Durandegui e Souza Filho (2004) concluíram que diferenças nas representações
e projetos de negros, morenos e brancos revelam dificuldades entre os grupos, porém
essas são abrandadas por discursos de conciliação e omissões.
O destaque dessa pesquisa está na busca de compreensão sobre a representação
do Brasil, pelos grupos constituídos por pessoas cromaticamente diferentes. Contudo, os
resultados exigem cautela, porquanto as tarefas que fundamentaram os dados foram
diferentes: a) falar sobre o próprio país, onde se concretizam as próprias experiências
Evenice Santos Chaves O racismo na Trajetória Escolar e Profissional... 40

sociais, para um amigo; b) imaginar que se vai fazer uma viagem a um país
desconhecido e explicitar expectativas sobre o que encontrará nele; c) imaginar que se
recebeu como prêmio uma viagem para uma variedade de países (árabes/mulçumanos) e
expor as expectativas sobre o que se vai encontrar nos mesmos. Esse limite, de natureza
metodológica, compromete a comparação entre os dados intra e interparticipantes e, por
implicação, os próprios resultados da pesquisa.
No ano de 2005, somente um artigo foi divulgado e o mesmo revela uma
novidade: a atuação da universidade, através da extensão, em ações de combate ao
racismo. Silva, Paiva e Miranda (2005) descreveram o processo de construção e de
atuação do Grupo de Inculturação Afrodescendente Raízes da Terra, na Cidade de São
João Del Rey, criado em 1995, por cinqüenta e dois integrantes.
Segundo os autores, o trabalho desenvolvido, nesse grupo, teve a duração de oito
anos e contou com a participação de estudantes estagiários. As intervenções realizadas
pelos extensionistas centraram-se em grupos operativos, com o emprego de recursos
metodológicos da pesquisa-ação e com o apoio da análise institucional. Os grupos
operativos visavam a re-construção da memória coletiva dos participantes sobre a
afrodescendência, o desenvolvimento da identidade étnica afrodescendente, como
também a elaboração e a implementação coletiva de ações sociais mobilizadoras, com o
intuito de re-significar aspectos da cultura negra e de ocupar diferentes espaços da
cidade, para expressá-los. As informações que fundamentaram o artigo foram obtidas
nos diários de campo de estagiários, na Ata de Registro Civil do Raízes da Terra e em
uma entrevista semi-estruturada, realizada com a coordenadora do referido grupo.
No decorrer dos oito anos, inicialmente verificou-se que o estigma que recaía
sobre o negro foi o ponto de identificação para a formação do grupo e, ainda, a base
para contestar-se a posição marginal. A unidade grupal forneceu referências para os
seus membros se fortalecerem e, em um dado momento, os participantes notaram que
assumiam uma posição preconceituosa e re-significaram os seus objetivos, buscando
parcerias. As parcerias empreendidas envolveram a Universidade Federal de São João
Del Rey, pessoas negras da comunidade, a Igreja Católica e um grupo de dança da
mesma cidade.
No plano psicológico, bem como na processualidade das atuações, emergiu uma
conscientização sobre os ganhos secundários que a condição de estigmatizados
Evenice Santos Chaves O racismo na Trajetória Escolar e Profissional... 41

proporcionava e, como implicação, os estigmas foram re-significados. Manifestações de


preconceito, por membros da comunidade, perpassaram as atividades do grupo, com o
preconceito configurando o primeiro obstáculo enfrentado, o qual se manifestava
quando buscavam uma igreja para a realização de missas inculturadas.
Como atividades desenvolvidas pelo Raízes, constatou-se a reconstrução e
transmissão de elementos culturais afro-brasileiros, que abarcavam estudos sobre a
participação do negro no nosso país e suas raízes históricas; a influência da religião
africana nos centros de umbanda e de candomblé brasileiros; a organização e a
realização de festas, que envolviam outros membros da comunidade; a construção e
manutenção de um grupo de danças, formado por crianças e adolescentes; a confecção
de roupas e de penteados para os membros do grupo de dança; a realização de missas
mensais inculturadas; a composição e a adaptação de cantos religiosos. As reuniões de
grupo eram quinzenais, os membros mais antigos funcionavam como referência e
exerciam cargos de coordenação.
No processo existencial do Raízes, surgiram contradições, continuidades e
rupturas nas parcerias e no grupo. Observou-se um período de grande mobilização e
apoio popular, manifestados na visibilidade do reconhecimento social conferido ao
grupo. Ainda incidiram fatores enfraquecedores do movimento no grupo, determinantes
do estado atual de desmobilização: a partir do ano de 2003, houve um enfraquecimento
do vínculo com a igreja, devido às contradições identificadas após a mudança de direção
da paróquia, pois o padre responsável pela mesma, onde o grupo se reunia, passou a
questionar a sua atuação e solicitou a desocupação do salão comunitário. Isso gerou uma
desmobilização, decorrendo daí a alta rotatividade na participação de pessoas, no grupo.
Verificou-se, também, a ausência de valorização de transmissão da memória coletiva e
esse fator favoreceu a evasão de membros das reuniões do grupo. Como decorrência, as
atividades realizadas pelo Raízes da Terra decresceram, nos últimos dois anos.
O relato desse trabalho leva a perceber a importância da extensão universitária,
como forma de prestação de serviços à comunidade e como propiciadora de um
ambiente social favorecedor da atuação do aluno em situações concretas, onde questões
sócio-psicológicas são objeto de suas atuações, enquanto estagiários. Apesar dessa
relevância, a sistematização do artigo é limitada, em termos teórico-metodológicos, com
total ausência de descrição das atividades realizadas pelos estagiários e professores e de
Evenice Santos Chaves O racismo na Trajetória Escolar e Profissional... 42

indicação do curso de graduação a que estavam vinculados.


Tais vazios apenas ajudam a manter o olhar discriminador que reina em parte do
mundo acadêmico, sobre as atividades de extensão. Elas geralmente são vistas como de
menor valor que as de pesquisa, embora constituam espaços propícios para a realização
de investigações, prestação de serviços de qualidade à comunidade e aquisição de
conhecimentos sobre a vida concreta das pessoas e das instituições.
Ressalta-se que nas pesquisas descritas, particularmente naquelas de natureza
qualitativa, há um descaso com princípios metodológicos, pois nenhuma das focalizadas
descreve os procedimentos empregados na coleta de informações, na transformação das
informações em dados, na organização dos mesmos, observando-se que apenas Roso e
cols. (2002) especificaram os referenciais orientadores das interpretações. Essas
questões depõem contra a qualidade dessa modalidade de pesquisa, embora haja um
corpo disponível de conhecimentos metodológicos a serem empregados como suporte
na estruturação de estudos. É importante salientar que pesquisa qualitativa não significa
o rompimento com a metodologia científica.
Por fim, acrescenta-se que os estudos publicados em periódicos disponíveis no
portal da CAPES, entre janeiro de 1997 e fevereiro de 2006, não focalizaram trajetórias
de vida, tampouco o racismo contra o negro no espaço escolar, incluindo-se o terceiro
grau. Essas questões, centrais nesta pesquisa, serão abordadas em seguida.

1.2. As desigualdades raciais na universidade


Hasenbalg (1983) assinala que, no quadro das desigualdades raciais brasileiras, o
acesso de negros ao sistema educacional é restrito, principalmente nos graus escolares
mais avançados.
De fato, no cotidiano da instituição universitária, nota-se que os negros ainda se
encontram, em grande maioria, à margem do acesso ao ensino de terceiro grau e,
também, do exercício profissional da docência. Desse modo, a instituição universitária,
supostamente democrática, é, paradoxalmente, um espaço para brancos.
Queiroz (2000) expõe que não existe um quadro nacional, construído através de
pesquisas, sobre a inserção de diferentes grupos étnicos no ensino superior, nos
diferentes cursos, e que os percursos de atores sociais negros até ingressarem no terceiro
grau são praticamente desconhecidos. Conclui-se, pois, que, na agenda das pesquisas
Evenice Santos Chaves O racismo na Trajetória Escolar e Profissional... 43

acadêmicas, o tema do negro na universidade é uma área de estudo não explorada.


Orientada pela questão do acesso do negro à universidade pública, Queiroz
(2000), no ano de 1997, realizou uma pesquisa, coletando dados de vestibulandos que se
inscreviam para o exame, na Universidade Federal da Bahia. Da população total de
inscritos, 91,3% dos aprovados responderam e devolveram o questionário inerente à sua
investigação. A partir do sistema de classificação de cor empregado pelo IBGE, a
pesquisadora constatou que 50,8% dos alunos que ingressaram eram brancos e 35,4%
eram de etnia negra. Além desse percentual, a estudiosa chamou atenção para a
população de negros na Bahia, à época da pesquisa, que era de 79,2%.
Os dados acima devem ser olhados com cautela, porque não se pesquisou o
número de jovens da população branca e negra com o segundo grau completo e,
portanto, aptos a ingressarem na universidade, para, a partir dos percentuais calculados,
computarem-se o daqueles que foram aprovados em cada grupo étnico, e, em seguida,
efetuar-se as comparações com o total da população branca e negra do Estado da Bahia
e da cidade de Salvador. Esse tratamento forneceria a medida de quantos concluíram o
segundo grau, quantos ingressaram na universidade pública e indicaria um valor
numérico mais preciso dos excluídos. Também há que se considerar a razão entre o
número da população escolar apta a ingressar na universidade e o número de vagas
oferecidas, pois essas são restritas, em relação a tal população. Todavia, uma pesquisa
com tal escopo é difícil de ser empreendida por apenas um(a) investigador(a).
Por isso mesmo, embora os resultados obtidos por Queiroz (2000) apresentem
vazios sobre a relação etnia-acesso ao ensino superior na Universidade Federal da
Bahia, localizada na Cidade de Salvador, os mesmos são esclarecedores quanto à
supremacia branca no embate e, como estudo pioneiro, representa grande contribuição,
porquanto inicia uma linha de pesquisa que procura dar visibilidade às desigualdades
raciais, as quais permeiam o ingresso de jovens negros, na universidade pública
brasileira.
Sobre os cursos onde estavam inseridos os negros, os dados obtidos por Queiroz
(2000) demonstraram que, enquanto os brancos concentravam-se mais nos de maior
prestígio social, os negros concentravam-se nos de menor prestígio: 82% de brancos na
área de exatas e ciências biológicas, contra 60,4% dos negros em Letras, curso que,
segundo a referida pesquisadora, foi avaliado pela CAPES, em 1995, como o de menor
Evenice Santos Chaves O racismo na Trajetória Escolar e Profissional... 44

eficiência na formação profissional.


Na mesma pesquisa, procurando entender a motivação para a escolha do curso,
Queiroz (2000) obteve o dado de que 59,1% dos negros escolheram Letras devido à
menor concorrência. Interpreta-se, aqui, que a escolha do negro por um curso de menor
prestígio sugere um processo de desvalorização de si mesmo, a partir da consciência da
menor competência para a concorrência, em função da inserção social, do modo de vida
e da história escolar. O dado também é sugestivo de que a realização do curso permite a
continuidade da vida de trabalho, necessária à sobrevivência do negro pobre.
Visando a identificar a relação entre cor e acesso ao ensino de terceiro grau no
cenário brasileiro, Queiroz (2002) comparou dados oriundos de estudos realizados com
graduandos que ingressavam na universidade pública, em cinco localidades brasileiras:
Universidade Federal da Bahia, Universidade Federal do Maranhão, Universidade
Federal do Paraná, Universidade Federal do Rio de Janeiro e Universidade de Brasília.
As pesquisas que serviram de base para Queiroz (2002) foram empreendidas por
diferentes pesquisadores, nos estados onde as universidades, acima listadas, estavam
localizadas. Os dados foram coletados através de um questionário, que continha os
mesmos itens, incluindo a cor dos estudantes, conforme a classificação empregada pelo
IBGE, que categoriza a nossa população em branca, parda, preta, amarela e indígena.
A análise comparativa, realizada pela referida autora, mostrou que em todas as
universidades estudadas, o maior contingente de alunos que ingressou nas mesmas era
de cor branca, seguida da parda, da preta, da amarela e da indígena, respectivamente.
Esse resultado, exposto na Tabela 3, mostra que a dimensão estrutural do racismo contra
os não brancos se expressa no acesso ao ensino de terceiro grau, pois, historicamente,
pessoas de cor branca conformam o grupo étnico brasileiro com maior chance de acesso
à escola, maior nível de escolaridade, melhor ocupação e renda, no Brasil.
Elegendo o negro e o branco como foco, e tomando dados do último censo
realizado pelo IBGE, Queiroz (2002) também comparou o percentual da população
negra e branca em cada estado e o contingente de estudantes negros e brancos que
ingressaram na universidade. Os resultados são apresentados na Tabela 4.

De acordo com os dados, mesmo na Bahia e no Maranhão, que possuem um expressivo


número de negros na população, o percentual dos que ingressaram nas universidades é
inferior ao dos brancos, embora esse grupo étnico constitua menos de 1/4 da população
Evenice Santos Chaves O racismo na Trajetória Escolar e Profissional... 45

total. Por outro lado, os brancos estão super representados, no que concerne ao acesso à

Tabela 3. Percentual de estudantes que ingressaram no ensino de


terceiro grau, segundo a cor e a universidade pública.

Cor UFBA UFMA UFPR UFRJ UnB

Branca 50,8 47 86;5 76,8 63,7

Parda 34,6 32,4 7,7 17,1 29,8

Preta 8 10,4 0,9 3,2 2,5

Amarela 3 5,9 4,1 1,6 2.9

Indígena 3,6 4,3 0,8 1,3 1.1


Fonte: Percentuais apresentados por Queiroz (2002).

universidade, posto que o percentual dos alunos que ingressaram em todas as


universidades públicas federais estudadas suplanta o percentual da população branca em
cada um dos estados, conforme expõe a Tabela 4. Isso denota o caráter seletivo da
escola e o seu lugar na reprodução das desigualdades sociais e raciais.

Tabela 4 - Percentual de negros e brancos na população dos Estados


da Bahia, Maranhão, Paraná, Rio de Janeiro e Distrito Federal e
percentual de ingresso às respectivas universidades públicas.

Cor %BA %MA % PR %RJ % DF

Pop Ing Pop Ing Pop Ing Pop Ing Pop Ing

Negra 79,2 42,6 75.1 42,8 22,4 8,6 38,2 20,3 53,6 32,3

Branca 20,2 50,8 24,8 47 76,2 86,5 61,7 76,8 45,9 63,7

Fonte: Percentuais apresentados por Queiroz (2002).


Legenda: Pop = População
Ing = Ingressos

Apesar dos dados quantitativos fornecerem um panorama da dimensão estrutural


do racismo contra o negro em nosso país, eles não mostram as dificuldades enfrentadas
pelos negros, durante os seus percursos escolares. Ademais, a literatura consultada
demonstra que são raras as pesquisas qualitativas que abarcam essa questão.
Evenice Santos Chaves O racismo na Trajetória Escolar e Profissional... 46

Teixeira (2000) estudou a trajetória escolar de professores universitários negros,


lotados na Universidade Federal Fluminense. A pesquisadora justificou a escolha de
uma universidade pública como campo da investigação porque, na sua ótica, a mesma é
uma via de mobilidade social ascendente. O objetivo do estudo foi “compreender
melhor os mecanismos que determinam o sucesso daqueles que conseguem chegar até a
universidade” (p. 48).
Essa autora coletou informações sobre a trajetória escolar de vinte e um
professores participantes da investigação e, empregando a técnica da entrevista,
identificou dois processos de ascensão social: um, de natureza individual, relativo à
atitude positiva da pessoa frente às adversidades, e outro, de natureza mais coletiva,
referente à rede de solidariedade e às relações de ajuda, sem as quais os projetos
educacionais dos participantes fracassariam.
O relato do estudo publicado por Teixeira (2000), apesar de valorizar um
importante problema e pesquisá-lo com um enfoque qualitativo, deixa vazios com
relação à descrição da metodologia empregada e à análise dos resultados. A autora não
expôs o procedimento empregado, o tipo de entrevista utilizado, os itens investigados,
como organizou as informações coletadas, como interpretou os dados, nem os
resultados como um todo, apenas citou os dois mecanismos já descritos. Convém
salientar que transcreveu o relato de uma participante, sem tê-lo submetido a nenhum
tratamento, o que significa empregar a informação bruta como um resultado de
pesquisa, perspectiva metodologicamente inadequada.
Em sua pesquisa de doutoramento, Ribeiro (2001) realizou um estudo, visando a
“compreender como se deu a trajetória escolar e profissional de professores/as negros/as
das Universidades Públicas do Estado de São Paulo” (p. 19). Para tal, entrevistou 17
docentes do ensino de terceiro grau, 5 professoras e 12 professores, dos quais, conforme
enfatizou, coletou depoimentos, empregando a memória como recurso metodológico, a
técnica da história de vida e princípios da pesquisa documental.
Os resultados descritos asseveram que os entrevistados foram pobres durante o
período de escolarização; que o apoio familiar foi crucial no percurso escolar de todos
eles; que estudaram em escolas públicas de boa qualidade; que a maioria fez opção por
um curso de graduação da área tecnológica; que todos tiveram um desempenho escolar
muito bom; que a maioria ingressou na docência nos anos 1980; que as relações
Evenice Santos Chaves O racismo na Trajetória Escolar e Profissional... 47

interpessoais entre professores negros e brancos não foram bem explicitadas na


pesquisa; que todos, a exceção de um, tinham atingido o topo da carreira; que a maioria
dos professores ocupa ou ocupou cargos administrativos na instituição universitária, e
fora, representando-a em outros países; que alguns são militantes do movimento negro;
que nenhum docente relatou claramente que foi objeto de discriminação por parte de
colegas e que a maioria silencia sobre o ser negro. Dados, entretanto, evidenciaram duas
situações de conflito: uma, relativa à tentativa de anulação de um concurso público, no
qual uma negra foi aprovada, outra, referente a artimanhas para a não contratação de um
professor negro, que atendia aos critérios definidos no edital do concurso ao qual se
submeteu, fato só superado através da ação do Diretório Central de Estudantes da
Universidade de São Paulo.
A pesquisa empreendida por Ribeiro (2001) tem a relevância de buscar entender
a trajetória escolar e profissional de negros, contudo apresenta limites metodológicos,
expostos a seguir.
Em primeiro lugar, a pesquisadora empregou a categoria negro como cor. Ora,
essa categoria engloba a cor preta, a parda e é possível que a diferença cromática exerça
influência em muitos aspectos das trajetórias escolares e profissionais dos membros da
categoria negro.
Em segundo lugar, relata que empregou a memória como recurso metodológico,
um erro conceitual, pois a memória é uma habilidade dos seres humanos e, de forma
alguma, é designada como recurso metodológico na literatura acadêmica inerente a
métodos, técnicas e instrumentos de pesquisa.
Em terceiro lugar, a estudiosa tomou como sinônimos os termos entrevista,
depoimento e história de vida, quando os dois últimos citados são modalidades de
entrevista, mas diferem quanto aos seus objetivos e modo de condução da interação
entre entrevistador e entrevistado. Conforme Queiroz (1988), o depoimento é focalizado
em um acontecimento que foi vivido ou presenciado por quem fornece as informações,
interessando ao pesquisador apenas os conteúdos verbais ligados ao referido
acontecimento: caso o entrevistado fuja do mesmo, o entrevistador o reconduz ao foco
do que está sendo investigado. Na história de vida, Queiroz (1988) salienta que o
pesquisador introduz o tema e o entrevistado relata o que quer e como quer.
Em quarto lugar, não há descrição dos percursos escolares dos participantes,
Evenice Santos Chaves O racismo na Trajetória Escolar e Profissional... 48

apenas fragmentos, com alguns referentes ao ensino de primeiro e de segundo graus, por
parte de diferentes entrevistados. Também, com relação à trajetória profissional, as
informações contemplam: o ingresso na carreira docente; os postos ocupados; a
realização de mestrado e/ou doutorado; os locais de realização desses cursos, de modo
muito genérico, e publicações. Observa-se que não há descrições de como os
professores desenvolveram ou desenvolvem as suas atividades na universidade, o que
sugere duas questões: ou Ribeiro (2001) não empregou nem a técnica do depoimento,
nem da história de vida, ou não captou limites de uma ou de outra, quando da coleta de
informações. Ademais, a pesquisadora não tece considerações sobre a metodologia
empregada em seu estudo, quando das considerações finais.
Em quinto lugar, não há menção ao modo como as informações coletadas foram
transformadas em dados, nem alusão à organização dos mesmos. De outro modo,
descreveu informações fornecidas por entrevistados específicos, sem nenhuma
articulação entre as mesmas, o que se reflete na utilização do termo ‘a maioria’, quando
da exposição de resultados.
Em sexto lugar, há imprecisões e destaca-se, como exemplo: a afirmação de que
16 participantes atingiram o topo da carreira e as informações descritas, em um dos
capítulos da tese, especificam que apenas um docente é professor titular; a afirmação de
que não houve nenhum relato claro dos professores negros acerca de discriminação por
parte de colegas, quando, além das duas situações de conflito já expostas nos resultados,
há um relato de aprovação em concurso público e a não contratação da docente negra,
que, inclusive, procurou a reitoria para protestar e, ainda assim, foi preterida. Também,
há o relato de um professor que, ao esperar, com um aluno, outro docente desocupar
uma sala para ministrar a sua aula, foi ignorado pelo colega, o qual se dirigiu ao
estudante, como se ele fora o professor, pedindo desculpas por ter avançado no horário e
subtraído o seu tempo de aula.
As questões metodológicas apontadas fragilizam os resultados de Ribeiro (2001)
e mostram que algumas pesquisas qualitativas são empreendidas sem rigor, embora se
disponha de muitas obras científicas, cujos conteúdos fornecem suporte necessário para
a realização de um estudo qualitativo metodologicamente consistente.
Sumarizando, as construções científicas realizadas por Queiroz (2000), Teixeira
(2000) e Ribeiro (2001), bem como as análises efetuadas, mostram a relevância de
Evenice Santos Chaves O racismo na Trajetória Escolar e Profissional... 49

investigações que também enfoquem a instituição universitária, considerando-se a etnia


e as trajetórias escolares e profissionais de pretos e pardos.
Ao abordar a dimensão relacional do racismo contra o negro na universidade,
Carvalho (2002) menciona que essa instituição silencia sobre as relações racializadas
que ocorrem no seu espaço. O estudioso argumenta que o silêncio é evidente na maior
parte das investigações empreendidas no nosso país sobre a discriminação racial, pois a
maioria das pesquisas realizadas não focaliza o tema do racismo na instituição
universitária.
De fato, na literatura consultada, trabalhos sobre as relações sociais racializadas
entre professores e alunos negros, na universidade, não foram encontrados, mas há
relatos de acontecimentos perpassados pelo racismo. Carvalho (2002) expõe duas
situações interativas entre docentes e estudantes, nas quais alunos negros foram
racialmente discriminados: na Universidade de Brasília, em um curso de Engenharia,
um professor, responsável por uma disciplina com 31 alunos que a freqüentavam,
dirigiu-se para o restaurante universitário, acompanhado de vários desses estudantes,
dentre os quais estava o único negro da turma. O docente, então, o indicou e verbalizou
para os alunos: “há um corpo estranho entre nós” (p. 98); em outra situação, na mesma
universidade, em uma sala de aula onde um negro fazia parte do grupo de alunos, um
professor dirigiu-se aos estudantes e falou: “todos sabemos que os negros são
intelectualmente inferiores, mas isso não constitui razão para que os tratemos mal” (p.
97). Carvalho (2002) atesta a veracidade das situações acima elencadas, ao assegurar
que as informações por ele transmitidas são fidedignas.
Relativo ao racismo entre estudantes do terceiro grau, Massart (2002), estudou
as experiências sociais de universitários cabo-verdianos negros, na cidade do Rio de
Janeiro, salientando o dado de uma estudante, que residia há três anos naquela cidade: a
mesma relatou que durante a sua graduação, no curso de Engenharia, era excluída do
círculo de relacionamentos interpessoais, não conseguia fazer parte dos grupos em sala
de aula e apenas um colega, residente em Duque de Caxias, a convidava para formarem
um grupo. Isso desvela a existência de relações racializadas entre graduandos, no
contexto universitário.
Dada a premência de pesquisas sobre trajetórias de negros escolarizados e
relações racializadas, o presente estudo focalizou-se na temática do racismo, abordando
Evenice Santos Chaves O racismo na Trajetória Escolar e Profissional... 50

o percurso escolar e profissional de uma professora socialmente denominada de preta,


de outra, socialmente denominada de parda e de uma socialmente denominada de
branca, que atuavam como docentes em uma universidade pública. A pesquisa realizada
buscou contemplar a investigação das trajetórias existenciais durante todo o processo de
escolarização formal, de ingresso e de atuação no mercado de trabalho do ensino de
terceiro grau das professoras que diferiam em termos cromáticos, pois, só comparando
os percursos de pessoas pertencentes aos dois grupos étnicos, negro e branco, pode-se
constatar se o racismo interfere ou não na trajetória de vida escolar e profissional do
negro e como ele faz parte da vida do branco.
Em termos gerais, esta pesquisa buscou responder às seguintes questões: 1) há
indicadores de desigualdades sociais, produzidas estruturalmente, que perpassaram o
percurso escolar e profissional da pessoa socialmente intitulada negra e branca? 2) há
indicadores de desigualdades raciais, quando se compara o percurso de vida da pessoa
socialmente intitulada de negra com o da pessoa socialmente denominada de branca?

1.3. Objetivo geral


Descrever e analisar as trajetórias escolares e profissionais de professoras
universitárias, identificando como o racismo fez parte dos seus ciclos de vida já vividos
e participou na elaboração de sentidos e de outros aspectos de suas subjetividades.

1.3.1. Questões específicas


O estudo visou a responder as seguintes questões:
Como transcorreu a trajetória existencial da pessoa socialmente intitulada de
preta, de parda e de branca?
Como transcorreu a trajetória escolar da pessoa socialmente intitulada de preta,
de parda e de branca?
Como transcorreu a trajetória profissional da pessoa socialmente intitulada de
preta, de parda e de branca?
Como o racismo contra o negro perpassou as experiências sociais da pessoa
socialmente intitulada de preta, de parda e de branca?
Que sentidos foram elaborados, nas experiências sociais com o racismo contra o
negro, pela pessoa socialmente intitulada de preta, de parda e de branca?
Evenice Santos Chaves O racismo na Trajetória Escolar e Profissional... 51

Que aspectos de suas subjetividades foram influenciados pelo racismo contra o


negro?
A partir da literatura consultada e dos objetivos propostos, teve-se a expectativa
de que esta pesquisa, ao propor a comparação de trajetórias existenciais do negro e do
branco, possa vir a contribuir em mudanças de foco, no estudo do racismo. Sobre novas
formas de pesquisar, Rey (2000) afirma:
... o desenvolvimento de uma visão diferente sobre o problema também possui implicações
epistemológicas e metodológicas, pois a forma com que representamos uma transformação
teórica não se reduz à criação de novas categorias, mas inclui também a modificação da
representação geral dominante sobre um campo de estudo, o que traz como conseqüência
reformulações nas formas e vias de produção do conhecimento (p. 55).
CAPÍTULO 2

ENFOQUES CIENTÍFICOS SOBRE O RACISMO NO


BRASIL

No século XIX, o Brasil subordinou-se cientificamente ao continente europeu.


No rastro da submissão, consolidou-se a versão brasileira da primeira teoria científica
para explicar as diferenças entre brancos e não-brancos que habitavam o nosso país. Por
isso, compreender o percurso científico brasileiro do estudo do racismo contra o negro
demanda uma descrição de como esse fenômeno foi inicialmente abordado na Europa.
Durante o século XIX, a ciência européia centrou-se no fenômeno social do
racismo, através do estudo das raças. A noção de raça, inicialmente construída pela
ciência biológica, foi empregada pelo colonialismo europeu para categorizar culturas,
grupos sociais e pessoas oriundas das Américas, da África, da Ásia e da Austrália, tendo
em vista a dominação desses povos. Apesar da suposta cientificidade, Ladson-Billings
(2000) aponta que essa idéia biológica de raça não reflete conhecimento científico,
porém decisões políticas e sociais.
Destarte, a Europa, que dominava os movimentos de suas colônias espalhadas
em outros continentes, necessitou elaborar conhecimentos científicos que passassem a
explicar e legitimar a supremacia cultural e racial de europeus. Diferenciações baseadas
em raça assentaram-se na construção de categorias para o enquadramento de diferentes
culturas e povos.
Amsterdam e Bruner (2002) salientam que, longe de serem eventos causados por
forças da natureza ou pelo criacionismo que diferenciou as raças humanas, as categorias
são elaborações sociais, derivam das noções produzidas por sujeitos sociais acerca de
como o mundo é e são empregadas tanto no contexto científico quanto nas diferentes
situações da vida cotidiana.
Amsterdam e Bruner (2002) expõem que qualquer sistema de categorias reflete
um conjunto de prioridades de uma cultura e essa especifica duas relevantes funções: a
Evenice Santos Chaves O racismo na Trajetória Escolar e Profissional... 53

hegemônica, que implica na imposição de um sistema classificatório, por um grupo aos


demais, visando dominá-los, e a de promover coesão dentro de grupos culturais. Então,
acrescentam esses pesquisadores, as categorias não significam sistemas classificatórios
inocentes, porém estão sob o controle dos seres humanos, são formuladas com alguma
finalidade, impõem, em larga escala, estruturas ideológicas, as quais estabelecem a
preponderância de um grupo sobre outros e produzem significados sobre as condutas
expressas na vida cotidiana. De acordo com essas colocações, o racismo científico,
focalizado a seguir, implantou a idéia biológica de raça, categorizou culturas, grupos
humanos, pessoas e cumpriu as funções culturais anteriormente citadas.

2.1. O racismo científico

A Europa do final do século XVIII já revestia de caráter científico os sistemas


classificatórios que categorizavam os animais. Niésturj (1984) aponta que Lineu (1707-
1778), na Suécia, classificou o reino animal diferenciando o homem dos antropóides e
colocando-o em escala superior, porém próximo aos macacos. Indo além, considerou os
humanos como constituindo um gênero formado por seres especiais, categorizando-os
na espécie homem racional. Contudo, Niésturj (1984) salienta que Lineu, atrelado à
forte influência da Igreja, atribuiu uma origem divina à espécie dos seres humanos,
argumentando que a racionalidade constituía uma partícula da sabedoria de Deus.
O trabalho de Lineu imprimiu a noção de um ser que pensava, característica que
o tornava bastante diferenciado de outros animais, além da idéia de imutabilidade da
espécie, à medida que Deus, certamente, construiu o homem à sua imagem e
semelhança, crença religiosa ainda presente no cotidiano dos cristãos ocidentais.
Wieviorka (2002) salienta que o modelo de classificação das espécies elaborado
por Lineu propiciou o surgimento de um saber científico na Europa, o qual classificou
os seres humanos e demonstrou que a denominada raça branca era superior às demais.
Niésturj (1984) acentua que a França do século XVIII corroborou a noção das
diferenças entre o ser humano e os antropóides, através da defesa desse ponto de vista
pelo naturalista Buffon (1707-1788), para quem as faculdades espirituais humanas eram
de origem divina. Niésturj (1984) também salientou que, na França do início do século
XIX, George Cuvier (1769-1832) defendeu a idéia da invariabilidade das espécies e,
nesse mesmo período, começou a transitar nas rodas científicas européias a noção de
Evenice Santos Chaves O racismo na Trajetória Escolar e Profissional... 54

evolução da natureza que circunda o ser humano.


Como ressalta Blanc (1994), ainda que zoólogos como Cuvier defendessem uma
criação divina poligenista, cuja justificativa era a extinção de algumas espécies e o
aparecimento de outras, graças às mudanças geológicas, consolidava-se a idéia de que
as espécies eram fixas, não evoluíam, tampouco geravam novas, diferentes das iniciais.
De acordo com o citado pesquisador, o ponto de vista sobre a extinção das
espécies, embora criacionista, era contraditório com a visão da onipotência divina. Por
isso, acentua Blanc (1994), a partir dessa contradição, surgiu na França outra orientação
teórica evolucionista, a qual buscava conciliar o criacionismo com a transformação e
com o surgimento de novas espécies. Construída em 1809 por Jean-Baptiste Lamarck
(1744-1829), também deísta, a nova teoria concebia que a transformação, e não as
extinções, era a agente responsável pelas mudanças observadas nas espécies, através do
tempo. Além disso, pressupunha a transmissão de caracteres adquiridos, decorrentes da
adaptação do seres vivos ao ambiente.
As noções das diferenças entre as espécies e da transmissão de caracteres
adquiridos constituíram o eixo sobre o qual a teoria evolucionista de Herbert Spencer
(1820-1903) provavelmente inaugurou o enfoque do racismo científico.
Spencer (1862/1904), poligenista, coincidentemente inglês, portanto de um país
colonialista, empregou o modelo dos sistemas classificatórios biológicos para explicar
as diferenças entre as sociedades e os povos. Apesar de afirmar que as sociedades e as
espécies se modificavam, enfatizou que, no caso das espécies humanas, as mudanças
não implicavam necessariamente em evolução. A partir dessa concepção, classificou os
povos em superiores e inferiores e as sociedades em evoluídas e primitivas. No sistema
classificatório, categorizou os europeus como os mais evoluídos e os povos das
sociedades primitivas, indígenas e indianos, como menos evoluídos. Com relação às
sociedades, atribuiu à européia industrial o lugar de mais evoluída, em função da sua
diversificação, expressa na organização e na divisão do trabalho, enquanto que as
sociedades primitivas foram definidas como homogêneas, porque os seus habitantes,
menos evoluídos, não tinham a capacidade de modificar as suas condições de vida e, por
conta desse limite, não realizavam mudanças econômicas que pudessem promover
evolução.
Dessa forma, Spencer (1862/1904) introduziu no contexto da ciência o
Evenice Santos Chaves O racismo na Trajetória Escolar e Profissional... 55

evolucionismo social, a partir da naturalização da vida social e de uma diferenciação


entre os povos, decorrente da própria evolução biológica, cuja operatividade produziu
modificações evolutivas na espécie humana, tornou alguns grupos mais aptos e outros
menos aptos. Com base nessas concepções, formulou o princípio de que, na evolução
social, há, de forma natural, uma luta pela supremacia entre os povos e entre as pessoas,
cujo resultado é a persistência e a dominação do mais forte, superior, e a subalternidade
do mais fraco, inferior.
Na época da publicação de Spencer, Darwin (1859/1981) já havia defendido o
monogenismo, contudo não foi imune ao eurocentrismo, à noção de superioridade dos
europeus e, também, elaborou um enfoque evolucionista social racista. Darwin
(1871/1974) dividiu os humanos em duas raças, a dos civilizados que, diga-se de
passagem, era constituída por europeus, e a dos selvagens, composta por indígenas,
africanos e indianos. Ainda declarou, no seu aporte evolucionista, que as raças humanas
diferenciavam-se em várias qualidades, devido à evolução biológica: na adaptação ao
clima, no próprio aspecto físico, na capacidade mental e na constituição emocional,
sustentando que a análise comparativa entre os povos superiores e os inferiores
apontava tais diferenças. O mesmo autor destacou:
Por conseguinte, quando os selvagens de qualquer raça foram constrangidos inesperadamente a
mudar de modo de vida, tornaram-se mais ou menos estéreis e a saúde de seus filhos ficou
afetada da mesma maneira e pelas mesmas causas que a dos elefantes e do leopardo da Índia, de
muitos símios americanos e de uma quantidade de animais de todos os tipos, arrancados de suas
condições naturais... Seguramente as raças civilizadas podem suportar mudanças de todos os
gêneros muito melhor do que os selvagens e sob este aspecto fazem lembrar os animais
domésticos, pois embora estes últimos às vezes sejam prejudicados em seu estado físico (ex. o
cão europeu na Índia), só raramente se tornam estéreis (Darwin, 1871/1974, p. 226-227).
Nesse trecho da sua obra, Darwin ignorou totalmente o papel do processo
colonizador que submeteu os africanos, os australianos e os indianos, esquecendo-se de
enfocar, por exemplo:
• As condições sob as quais ocorreram mudanças decorrentes dos violentos processos
de colonização.
• A destituição da cultura dos subordinados e a imposição de práticas sociais oriundas
das culturas dominadoras.
• A subnutrição a que os colonizados foram submetidos, sua conseqüência no estado
geral de saúde e, especificamente, no aparelho reprodutor.
Evenice Santos Chaves O racismo na Trajetória Escolar e Profissional... 56

• Os estupros e as fertilizações perpetrados pelos colonizadores nas mulheres das


culturas colonizadas, visando ao aumento da população e da mestiçagem,
garantidora do povoamento das terras colonizadas.
• A mortalidade dos colonizados, decorrente de violências físicas infringidas aos
mesmos, assim como a resistência enfrentada pelos colonizadores, que, inclusive,
também pereceram quando dominados pelos colonizados.
Apesar de Darwin ter elaborado um aporte teórico sobre o evolucionismo social,
Blanc (1994) fornece um indicativo de que ele, ao final de sua vida, relatou para o
evolucionista Alfred Russel Wallace (1823-1913):
Na civilização moderna, a seleção natural não tem nenhum papel e não são os mais aptos que
deixam mais descendentes. Os que vencem a corrida pela riqueza não são de modo algum os
melhores ou os mais inteligentes e é evidente que nossa população se renova a cada geração,
muito mais efetivamente nas classes inferiores que nas superiores (Blanc, 1994, p.185 – 186).
Evidencia-se uma mudança na concepção de Darwin sobre o papel do
mecanismo da seleção natural na sociedade civilizada, portanto européia, colonizadora e
exploradora, bem como o indicativo da suposta adaptação favorecendo, na Inglaterra, os
membros das classes inferiores e não os das superiores, dado o sucesso reprodutivo das
primeiras. Contudo, àquela altura, as suas obras intituladas “Origem das Espécies” e “A
Descendência do Homem e a Seleção Sexual” já haviam se transformado em
contribuição ao paradigma do racismo científico, porquanto o modelo evolucionista das
ciências biológicas influenciava na estruturação de outras ciências emergentes.
De acordo com Lewontin (1929/2002), o ponto central do modelo evolucionista
fundamentava-se nas variabilidades entre indivíduos dentro de uma mesma espécie e
entre espécies, o que delimitava a variação como o objeto prioritário de investigação e a
variabilidade como o pressuposto para a existência de um padrão mais adaptado, graças
aos mecanismos de seleção natural e sexual, em torno do qual as variações ocorriam.
Lewontin (1929/2002) asseverou que no final do século XIX o modelo gerou
uma concepção de espécie, assentada na tipologia:
Cada espécie era representada por uma descrição de tipo e um espécime real era depositado em
alguma coleção como representativo desse tipo, enquanto todos os outros indivíduos da espécie,
variando com relação ao “tipo” eram vistos como realizações imperfeitas do ideal subjacente. O
problema da biologia consistia, então, em dar uma descrição anatômica e funcionalmente
correta dos “tipos” e explicar suas origens (p.14).
Evenice Santos Chaves O racismo na Trajetória Escolar e Profissional... 57

O modelo evolucionista ainda influenciou as ciências que se estruturavam


naquela época. Thompson (1998) e Schwarcz (2000) destacam o papel desse modelo na
consolidação da Antropologia e Schwarcz (2000) ainda enfatiza a sua influência na
Sociologia.
Na Antropologia, Thompson (1998) cita que, em 1871, na Inglaterra, o
antropólogo Taylor publicou o livro, “Primitive Culture”, no qual defendeu o estudo da
evolução das culturas, desde a selvageria até o modo de vida civilizado, através do
emprego do método comparativo. Schwarcz (2000) complementa, informando que a
partir de seus estudos iniciais, a Antropologia elaborou a noção de desenvolvimento por
estágios, base para a compreensão do desenvolvimento do ser humano, da cultura e da
tecnologia.
Com relação à Sociologia que se desenvolvia na França, Schwarcz (2000)
declara que essa área do conhecimento científico incorporou a noção de fases do
desenvolvimento nos modos de pensar da humanidade, afirmando, ainda, que os seres
humanos evoluíam de forma pré-determinada.
Na interface entre a Antropologia Física e a Medicina, destaca-se a técnica da
craniometria, empregada nos estudos comparativos entre os seres humanos que
conformavam diferentes tipos, denominados de superior e de inferior. Segundo Corrêa
(2001), os craniometristas fundamentavam-se na noção de evolução mental e
interpretavam os índices cranianos, transladando dados morfológicos para a explicação
de dimensões psicológicas, através da análise comparativa entre medidas cefálicas de
pessoas oriundas de diferentes raças.
A visão tipológica evolucionista social também foi contemplada na produção
científica de Galton (1882-1911). Conforme Blanc (1994), aquele autor criou, em 1883,
a tese eugenista de aperfeiçoamento das raças humanas, a qual propunha a eliminação
das inferiores e o aperfeiçoamento das superiores, a partir do incentivo à reprodução
decorrente do cruzamento entre indivíduos considerados como os mais dotados.
Rossato e Gesser (2001) afirmam que a pesquisa realizada por Galton sobre a
inteligência organizou a crença de que características humanas como essa, moralidade,
habilidades sociais, preguiça, alcoolismo, patriotismo e tendência para cometer o
vandalismo eram hereditários. Para Galton, então, a capacidade dos humanos vinculava-
se à hereditariedade e não à educação e, na medida que as características das raças eram
Evenice Santos Chaves O racismo na Trajetória Escolar e Profissional... 58

imutáveis, as ditas inferiores deveriam ser eliminadas. Rossato e Gesser (2001)


enfatizam que, como recomendação, Galton introduziu a noção de prevenção, através da
eliminação das raças consideradas como inferiores, em prol da melhoria da humanidade.
Esses autores concluem que o movimento da eugenia, foi iniciado na Europa pelo
inglês, com o fim de advogar a superioridade da raça branca e a sua manutenção.
Wieviorka (1995) sintetiza que, na Europa do século XIX, diferentes disciplinas
produziram conhecimentos vinculados à classificação de populações e, na convergência
de campos de conhecimento ao pensamento racista, ainda houve contribuições de
teólogos, filósofos, historiadores, filólogos, escritores, poetas e viajantes, cujas
produções tomavam como base o fundamento biológico da classificação das espécies.
Em síntese, o enfoque contribuiu na consolidação do eurocentrismo, através do
racismo científico, explicitado em um aporte evolucionista social, produto de uma
construção coletiva, rubricado como darwinismo social. Esse, foi exportado para o
mundo colonizado, razão pela qual Wieviorka (2002) o denomina de racismo
universalista.

2.1.1. O darwinismo social


O darwinismo social é um modelo que unifica as formas de explicar as
diferenças entre as culturas, os grupos sociais e as pessoas, a partir da idéia biológica de
raça e do evolucionismo social.
Banton (1977) ressalta que esse modelo, contrapondo-se à divisão entre corpo e
espírito, desvencilhou o conhecimento científico da teologia cristã do deísmo,
sedimentando-se em explicações fincadas na causalidade natural. Apresenta-o como
norteado por quatro pilares básicos: a noção evolucionista de variabilidade, segundo a
qual as espécies não são imutáveis e, por isso, não existem na natureza tipos
permanentes; a noção de que as características individuais dos organismos são
transmitidas por hereditariedade; a concepção de que a natureza produziu mais
organismos que o necessário para a manutenção e a expansão das espécies; a idéia de
que, através de variações aleatórias, ocorre um processo de seleção natural, o qual
favorece alguns indivíduos.
De modo integrado com os fundamentos acima descritos, Blanc (1994) sublinha
como pressuposto básico do darwinismo social a noção de que os sujeitos humanos são
Evenice Santos Chaves O racismo na Trajetória Escolar e Profissional... 59

desiguais por natureza, dada às diferentes aptidões inatas que fazem de alguns
superiores e de outros inferiores.
De acordo com Schwarcz (2000), a partir das diferenças entre culturas e povos, o
darwinismo social bifurcou-se em dois enfoques: o determinismo geográfico, cuja
suposição básica era a de que o futuro de qualquer civilização vincula-se a fatores
geográficos como o solo, a vegetação, o clima e o vento; o determinismo racial, cuja
suposição básica era a de que um grupo racial, e cada um de seus indivíduos em
particular, constituía um agregado de elementos morais e físicos, inerentes à sua raça.
Esses determinismos detinham poder causal explicativo e, conforme Schwarcz
(2000), o estudo da relação entre as dimensões geográficas e as civilizações explicaria
como as condições geográficas determinam a qualidade de uma cultura. Por outro lado,
continua a autora, o caráter explicativo do determinismo racial fundamentou-se no
princípio de que as raças humanas configuravam produtos finais, eram representativas
de diferentes tipos humanos, e o mesmo permitia o entendimento de cada um dos seus
indivíduos, a partir do conjunto de características físicas e morais próprias da sua raça.
Tomando por base as formulações de autores como Banton (1977), Blanc
(1994), Darwin, (1871/1944), Niésturj (1972/1984), Rossato e Gesser (2001), Santos
(2002), Schwarcz (1983; 2000), Spencer (1862/1904) e Wieviorka (1995; 2002), pode-
se sintetizar o aporte teórico darwinista social da seguinte forma:
Em decorrência da ação de um processo seletivo produzido pela natureza, as
culturas e os povos apresentam-se em diferentes estágios de desenvolvimento, com o
branco europeu ocupando o topo da superioridade cultural e racial, manifestada na
condição civilizada da organização econômico-social, nos estilos de vida, nos valores
culturais, na aparência física, na inteligência, nos comportamentos, na moral, nos
costumes e na espiritualidade. As demais culturas e povos encontram-se em estágios
anteriores de desenvolvimento, conformando as inferiores e as raças selvagens, em
todos os aspectos constitutivos da condição humana. Os tipos biologicamente puros,
separados por uma distância evolutiva, ao cruzarem com os inferiores produzem a
aparição de um ser mestiço, social e racialmente degenerado.
A diversidade na conformação geográfica da terra produz distintas condições
climáticas, as quais influenciam qualitativamente no modo de ser das culturas e dos
povos. As diferentes culturas não vivem em harmonia, porque a competição é um
Evenice Santos Chaves O racismo na Trajetória Escolar e Profissional... 60

fenômeno natural, assim como a luta entre os povos e a sobrevivência dos mais
evoluídos, social e racialmente falando. Esse processo advém da própria natureza, que
opera no mundo e produz a sua divisão, verificada através dos diferentes estágios em
que se encontram as regiões geográficas e os povos, condições demarcadoras do mundo
civilizado e dos mundos selvagens.
Em síntese, o darwinismo social especifica a existência de tipos biologicamente
puros que conformam raças humanas; a existência de uma distância evolutiva entre elas;
a concepção de que o cruzamento entre as raças resulta em degeneração racial e social;
a suposição de um continuum de natureza evolutiva; a predominância, no
comportamento expresso pelo sujeito, das especificidades relativas ao seu grupo racial e
cultural; a divisão do mundo a partir da geografia, da raça e da cultura de uma dada
população.
No contexto do racismo científico, nenhum dos autores consultados até aqui
conceituaram o termo raça. Contudo, a partir das formulações já abordadas, infere-se
que raça significa um grupo humano enquanto variação dentro de uma espécie ou um
grupo humano constitutivo de uma dada espécie dentre várias, cujo genótipo e fenótipo
demarcam diferenças qualitativas dentro da mesma espécie ou entre espécies,
respectivamente.
Wieviorka (1995) salienta que o racismo científico foi bem aceito por grande
parte da população da Europa, apenas sendo questionado quando das atrocidades
nazistas cometidas com base no darwinismo social e, portanto, da aplicação de noções
pertinentes ao racismo científico. Santos (1998), no entanto, menciona que ainda
existem resquícios desse modelo em uma vertente de investigações, realizadas pela
antropologia física norte-americana e pela brasileira, visíveis nos estudos que buscam
identificar marcadores de “raça”, a partir de grupos sanguíneos. Para esse estudioso, tais
pesquisas têm pontos de convergência com tipologias classificatórias características do
paradigma do racismo científico.
O darwinismo social foi exportado para outros países, inclusive para o Brasil,
onde influenciou diversas produções científicas e a vida social, contastando-se que
resquícios de tal paradigma ainda se fazem presentes, por exemplo, nos sistemas
classificatórios de cor empregados para categorizar os membros da população em
diferentes classes, a partir de características fenotípicas, na concepção racista do negro
Evenice Santos Chaves O racismo na Trajetória Escolar e Profissional... 61

como inferior, que circula em nosso cotidiano, e nas práticas sociais racializadas. Essa
questão aparece com clareza na pesquisa de Guimarães (2000a).

2.1.2. A versão brasileira do darwinismo social


No final do século XIX, as elites brasileiras pressentiam que a libertação dos
escravos era iminente, por isso, debatiam-se com as questões de como sustentar a
prerrogativa da inferioridade dos negros e de como mantê-los nos seus devidos lugares.
Os intelectuais brancos da época, com alguns miscigenados, provinham da elite
econômica do país e, por essa razão, representavam politicamente o ponto de vista dos
dominadores. Essa casta da sociedade era eminentemente eurocêntrica e sempre
absorvia modelos europeus, desde os de etiqueta aos científicos. Consideravam-se como
superiores, em termos sociais, desqualificavam aqueles que não faziam parte da elite e
relacionavam-se de forma assimétrica com a população negra (Nogueira, 1981).
Naquele período do século XIX, os negros, em grande contingente no nosso
país, eram vistos pelo grupo econômico e socialmente hegemônico como uma ameaça,
porque poderiam vir a exigir os mesmos direitos usufruídos pelos brancos. Uma das
formas de controle social exercido pelos privilegiados foi a veiculação, através da
imprensa, de uma imagem negativa do negro, caracterizando-o como elemento nocivo e
prejudicial ao desenvolvimento do Brasil, dada as suas características comportamentais:
violento; libidinoso; imoral; alcoolista; desordeiro; produtor de práticas selvagens como
o samba e a capoeira; sem espírito familiar, devido à sensualidade e à infidelidade das
mulheres, e violência dos maridos, o que determinava uma forma animal de
relacionamento familiar (Santos, 2002).
A conjuntura da época foi propícia à absorção do racismo científico e sua re-
construção “à brasileira”. Schwarcz (1983) assinala que, no final do século XIX,
acadêmicos importaram livros da Europa, escritos por autores partidários do
darwinismo social, traduzindo-os, inclusive alguns de autores desconhecidos em seus
locais de origem. A pesquisadora chama atenção para a clara seleção desse enfoque
como fundamento à ciência brasileira.
Schwarcz (2000) discorre que, naquele momento social de implantação da
república e da construção de aspectos da cidadania, grande parte da intelectualidade
brasileira discutia e compreendia as questões nacionais, a partir do enfoque racial e
Evenice Santos Chaves O racismo na Trajetória Escolar e Profissional... 62

individual. Naquele contexto, as Escolas de Direito e as de Medicina desempenharam


relevante papel e destacaram-se em decorrência da produção, da difusão e da aplicação
dos conhecimentos científicos elaborados.
A Escola de Direito do Recife, orientando-se pelo paradigma do darwinismo
social, fundamentou-se nos seguintes princípios: raça como ponto de partida para a
construção de todo o conhecimento científico; a associação entre características
biológicas, morais e comportamentais com a raça negra e a criminalidade; a rejeição da
miscigenação e o processo de embranquecimento como possibilidade de refinamento do
povo brasileiro. Além disso, realizava construção teórica sobre a mestiçagem
(Schwarcz, 1983).
De acordo com Schwarcz (2000), a Escola de Direito de São Paulo, por outro
lado, produzia fundamentos políticos liberais, elaborando teses biológicas racistas e
planos políticos, inclusive, construindo projetos para a imigração da mão-de-obra
branca européia. Isso fez de São Paulo o lugar mais restritivo no acolhimento a
imigrantes, pois vetou a participação de orientais e de africanos e “a bancada paulista
limitou a admissão de trabalhadores a apenas alguns países da Europa – italianos,
suecos, alemães, holandeses, noruegueses, dinamarqueses, ingleses, austríacos e
espanhóis” (Schwarcz, 2000, p.20).
No que diz respeito às Escolas de Medicina, o contexto da época, demarcado
pela presença de epidemias, dentre as quais o cólera, a febre amarela e a tuberculose,
assim como o grande contingente de pessoas doentes e mutiladas, oriundas da Guerra
do Paraguai, fez surgir uma concepção de “missão higiênica.... do médico missionário”
(Schwarcz, 2000, p. 27). Coube ao Rio de Janeiro uma atuação centrada na doença e, à
Bahia, a atuação centrada no doente.
Partindo das questões de saúde que incomodavam as elites brasileiras, a Escola
de Medicina do Rio de Janeiro realizou pesquisas com enfoque na higiene pública.
Assim, no início do século XX, a compreensão das doenças tropicais propiciou a
implantação e a defesa de um modelo preventivo autoritário de intervenção social, com
a imposição de comportamentos e atitudes à população. Essa perspectiva produziu o
combate à miscigenação, a partir da afirmação de que o adoecimento era originário da
África e o processo de enfraquecimento da população brasileira era de cunho biológico,
decorrente da miscigenação (Schwarcz, 1983).
Evenice Santos Chaves O racismo na Trajetória Escolar e Profissional... 63

Conforme Schwarcz (2000), a eugenia foi cientificamente defendida através de


artigos publicados em revistas especializadas. Tais obras vinculavam raça à pobreza e à
higiene, pregando a necessidade de segregação da população e defendendo o emprego
de métodos eugênicos para o controle e a contenção das doenças. Em artigos científicos,
dirigidos a determinados grupos sociais, circulavam informações, como as expressas
nos seguintes conteúdos:
Nova ciência a eugenia consiste no conhecer as causas explicativas a decadência ou
levantamento das raças, visando a perfectibilidade da especie humana, não so no que se refere o
phisico como o intellectual. Os métodos tem por objetivo o cruzamento dos sãos, procurando
educar o instinto sexual. Impedir a reprodução dos defeituosos que transmitem taras aos
descendentes. Fazer exames preventivos pelos quais se determine a siphilis, a tuberculose, o
alcoolismo, a trindade provocadora da degeneração. Nesses termos a eugenia não é outra cousa
sinão o esforço para obter uma raça pura e forte. ... Os nossos males provieram do povoamento,
para tanto basta sanear o que não nos pertence (Brazil Médico, 1918, p.118–119, em Schwarcz,
2000, p. 29.).
Na Bahia, a partir da liderança de Nina Rodrigues, a Escola de Medicina teve
como objeto de investigação o criminoso, o doente (Schwarcz, 1983, 2000). Rodrigues
(1894; 1939) muniu-se de várias obras de autores europeus, elaborou uma versão
brasileira do darwinismo social e um aporte teórico para a análise do comportamento
criminoso. Nogueira (1981) destaca que os estudos empreendidos por aquele autor
situavam-se na interface entre a Antropologia e a Psicologia. Na versão nacional sobre
as raças humanas, fundamentada no evolucionismo social, Rodrigues (1894) articulou o
seguinte enfoque:
Do ponto de vista evolutivo, a raça humana divide-se em superior, composta
pelos grupos brancos, e em inferiores, formada pelos grupos negro e indígena, os
selvagens. As diferenças qualitativas entre os tipos raciais decorrem da seleção natural,
embora ela não opere sempre na direção do aperfeiçoamento, porque pode ocorrer uma
regressão, em termos morfológicos. As raças são representativas de tipos puros, porém a
mistura entre os mesmos produziu um outro tipo, o mestiço.
No Brasil, há menor parcela de tipos antropológicos puros e, conseqüentemente,
maior número de mestiços, resultantes de várias modalidades de cruzamentos. Assim,
em termos raciais, a população brasileira classifica-se nos seguintes tipos
antropológicos: raça branca, constituída por europeus e por brancos crioulos, ou seja,
Evenice Santos Chaves O racismo na Trajetória Escolar e Profissional... 64

nascidos no Brasil; a raça negra, constituída pelos africanos e a raça vermelha, formada
pelos selvagens indígenas.
A raça branca, também denominada de ariana, o tipo humano mais evoluído
física, moral e psiquicamente, já percorreu as etapas do processo evolutivo e situa-se no
ápice da pirâmide do desenvolvimento da humanidade. Por natureza, adapta-se melhor
às novas situações e, por serem superiores na cultura, no físico, no intelecto e na moral,
o próprio nível de evolução permite que avaliem as etapas de desenvolvimento porque
passam os outros grupos, assim como as pessoas que conformam os evolutivamente
inferiores, inclusive em termos de suas consciências morais.
As raças negra e indígena são inferiores no plano cultural, físico, psíquico e
moral, mas o indígena localiza-se no mais baixo patamar da pirâmide evolutiva. Por
outro lado, há uma especificidade característica da raça negra, que a diferencia das
demais: a sensualidade, manifestada em comportamentos próximos às perversões
sexuais mórbidas.
Rodrigues (1894) destaca o mestiço, híbrido, como central em suas teses raciais.
Argumenta que eles não conformam uma unidade antropológica e distribuem-se em
muitos grupos: mulatos de primeiro sangue; mulatos claros, com mais características da
raça branca; mulatos escuros, com mais características dos negros crioulos; mamelucos
ou caboclos, resultantes do cruzamento entre branco e índio, com alguns apresentando
mais características da raça branca; curibocas ou cafuzos, produtos do cruzamento entre
o negro e o índio e os pardos, resultado do cruzamento entre as três raças puras1.
Rodrigues (1894) descreve o mestiço como síntese de degenerações, pois essa
população misturada traz dos antepassados provenientes de raças inferiores, predicados
herdados. Contudo, o mestiço do cruzamento entre negro e branco, o mulato, que tende
a retornar a uma raça pura, branca ou negra, é superior aos demais, embora apresente
um desequilíbrio entre a inteligência, o afeto e a moralidade: quanto maior a
inteligência, menor o equilíbrio afetivo e menos possuidor de qualidades morais.
Na sua construção teórica, há uma ênfase especial à mulata. Rodrigues (1894) a
classifica como um tipo anormal, devido à sexualidade herdada do negro e manifestada
na luxúria, na volúpia, na magia, na faceirice, nos feitiços, nos dengos, nos quindins,

1
Apesar de ter organizado o sistema de classificação racial aqui apresentado, Rodrigues (1894) advertiu
que não existia um consenso entre os autores a respeito das categorizações tipológicas referentes aos
mestiços brasileiros.
Evenice Santos Chaves O racismo na Trajetória Escolar e Profissional... 65

enfim, na linguagem do desejo e da sensualidade.


Rodrigues (1894) ainda lançou mão do determinismo geográfico, dividindo o
Brasil em quatro zonas antropológicas: sul, extremo sul, centro e norte. Comparou o
norte com as duas regiões do sul e apontou a existência de um desequilíbrio entre as
mesmas, salientando que o clima da primeira supracitada propiciava a imigração de
brancos e as suas adaptações. Esse fato era constatado pelo predomínio numérico dos
imigrantes nas regiões sulistas, onde não necessitavam do negro para se aclimatarem.
No norte, a população era grandemente constituída por indígenas, com escassez de
brancos e de negros. Já no centro do país, apesar de ter ocorrido a imigração de
portugueses e italianos, a população negra ainda era numerosa. O autor chamou atenção
para a necessidade da presença de brancos no norte, visando ao equilíbrio racial.
Rodrigues (1939)2, ainda influenciado por autores europeus e por movimentos
sociais que tomaram lugar no final do século XIX, no sertão brasileiro, formulou um
enfoque sobre movimentos de massa. Classificou seus estudos como pertencentes ao
campo da Psicologia Social e neles abordou as características das massas e o
comportamento do seu condutor, definindo-o tipologicamente como jagunço e produto
da mestiçagem, classificando-o como doente e portador de uma loucura que era
transmitida, por contágio, à multidão (Chaves, 2003b).
Os aportes teóricos construídos por Nina Rodrigues, fundamentados no racismo
científico europeu, exerceram grande influência na intelectualidade e na vida social
brasileira da época (Corrêa, 2001). A partir da obra publicada em 1894, constata-se que
a sua análise comparativa entre especificidades das zonas antropológicas brasileiras foi
acompanhada de recomendações, as quais visavam ao “equilíbrio racial” no país, o que
significa uma contribuição de Nina Rodrigues à idéia de embranquecimento da
população brasileira.
Revestidas de caráter científico, essas recomendações não passaram de um
conjunto de concepções ideológicas para justificar a dominação e a opressão das elites
sobre os demais, porque, no caso brasileiro, era necessário preservar a hegemonia da
elite branca e o colonialismo interno. Naquele momento da nossa história social, o fim
do escravismo e a instauração da república eram iminentes e tais acontecimentos
tornavam necessária a permanência social do negro na condição de inferior.
2
A obra publicada em 1939 é constituída pelos trabalhos realizados por Nina Rodrigues em 1890, 1897 e
1898.
Evenice Santos Chaves O racismo na Trajetória Escolar e Profissional... 66

2.1.3. O embranquecimento
Nogueira (1981) cita que a elite brasileira do final do século XIX comportava-se
segundo os padrões europeus e tinha a intenção de fazer do Brasil uma nação
europeizada, pois acreditava que “o estado atingido pela Europa era a meta a ser
buscada pela sociedade brasileira” (p. 187). Para o pensamento intelectual racista
daquela época, obviamente que as populações não brancas constituíam um impedimento
para o Brasil alcançar o topo do desenvolvimento evolutivo social. Nogueira (1981)
aponta Sílvio Romero (1851-1914), da Escola de Direito de Recife, como um
acadêmico, orientado pelo racismo científico, que se preocupou com a continuidade da
nossa sociedade.
Romero (citado por Nogueira, 1981) realizou um diagnóstico e classificou a
população brasileira em superior, constituída pela raça branca, e em inferior, constituída
pela raça negra e indígena, descrevendo o nosso povo como medíocre, devido aos seus
aspectos físicos, morais e à ausência de cultura. No prognóstico, vislumbrou uma
possibilidade de melhoria da raça brasileira, porque o fim do tráfico de africanos havia
estancado a presença de mais sangue negro no país. Além disso, enfatizou que a
imigração de europeus e a miscigenação do branco com o negro preservariam, no
acervo genético do mestiço, a superioridade da raça superior e a adaptação ao clima
inerente à inferior. Dessa mestiçagem, decorreria o embranquecimento da população
brasileira.
Seyferth (1998) também destacou o papel relevante desempenhado por Sílvio
Romero como um dos arquitetos intelectuais da ideologia do embranquecimento, ao
propor a inserção de imigrantes em todas as regiões do Brasil: a partir da miscigenação,
a superioridade da raça branca prevaleceria e daria lugar à emergência de um novo tipo
racial, ao tempo em que a própria seleção natural e a evolução social extinguiriam os
negros, os indígenas e os mestiços. Com tal argumentação, definiu o papel do imigrante
europeu enquanto contribuição à formação de um tipo racial brasileiro, que seria o
símbolo da unidade nacional.
Seyferth (1998) esclarece que as primeiras imigrações no Brasil ocorreram entre
1818 e 1850, com o objetivo de desenvolver no país um modelo agrícola de menor
escala, que competisse com os grandes latifúndios. Posteriormente, as imigrações foram
orientadas pelo objetivo de povoamento das terras no sul do país, em face das disputas
Evenice Santos Chaves O racismo na Trajetória Escolar e Profissional... 67

territoriais com o Uruguai e com a Argentina.


Tomando por base as imigrações ocorridas em 1850, Rodrigues (1894), como já
mencionado, forneceu fundamentos “científicos” para a constatação dos efeitos do
embranquecimento, porquanto, nas zonas antropológicas do sul, a população branca já
predominava, porque o clima da região possibilitou a aclimatação dos europeus.
Seyferth (1998) afirma que as imigrações ocorridas entre 1880 e 1920 foram
orientadas pela ciência racista, objetivando o embranquecimento da nossa população.
Acrescentou que mais de 1.200.000 europeus vieram para o Brasil, o que caracterizou
esse período como aquele em que ingressou, no nosso país, o maior número de brancos
europeus, de diferentes origens, motivados pela política de embranquecimento da nossa
população.
Valores numéricos obtidos através de censos realizados em 1890 e em 1940 dão
suporte à afirmação de Seyferth (1998) de que a população branca aumentou
vertiginosamente, conforme se observa na Figura 1.

Figura 1. Tamanho da população brasileira, branca, preta


e parda nos anos de 1890 e 1940
100
Percentual de Brancos, Pretos

90
Pardos na População

80
70 63,53
60
50 43,97
40
30 41,4
20 21,23
14,65
e

10 14,63
0
1890 1940
Anos

Legenda: Branco Preto Pardo

Fonte: Percentuais obtidos a partir de dados censitários produzidos pelo IBGE,


apresentados por Pinto (1953/1998).
Os dados acima indicam que, a partir das imigrações realizadas entre 1880 e
1920, a população de pardos decresceu, o que pode ser tomado como um indicador da
eficiência do projeto político do embranquecimento. Vale relembrar que, fundamentado
Evenice Santos Chaves O racismo na Trajetória Escolar e Profissional... 68

no evolucionismo social, Rodrigues (1894) já apregoava que a miscigenação entre o


branco e o mulato com fenótipo mais característico do branco resultaria no nascimento
de pessoas aparentemente brancas, o que consolidaria o processo de embranquecimento
do brasileiro.
Seyferth (1998) denuncia que o processo de embranquecimento engendrado no
Brasil foi publicamente apresentado no Primeiro Congresso Internacional das Raças,
que aconteceu em Londres, no ano de 1911, e teve como representante do governo
brasileiro, João Batista de Lacerda3. O referido autor adita que Lacerda expôs, naquele
evento, a tese do embranquecimento do povo brasileiro, a qual se fundamentava no
princípio da seleção natural e no processo de miscigenação. Schwarcz (1998) menciona
que João Batista de Lacerda, ao expor a sua tese, apresentou um quadro que,
atualmente, faz parte do acervo do Museu de Belas Artes do Rio de Janeiro,
denominado A Marca de Caim, pintado em 1911 por Broccos. Essa obra de arte retrata
um caso de embranquecimento, onde:
Tem-se a avó, que é negra e olha para os céus, como que agradecendo o milagre. O pai, que é a
própria representação de um português, aparece com seu chinelão. A mãe, mais clara e com os
traços depurados, carrega ao colo uma criança, que preenche todo o centro da cena. O bebê é
branco e tem cabelos lisos, como a representar a força do branqueamento (Schwarcz, 1998, p.
94).
Schwarcz (1998) ainda salienta que Lacerda, na sua exposição, previu que o
processo de embranquecimento em curso no Brasil produziria uma população branca no
ano de 2015. A citada pesquisadora afirma que a previsão não foi bem acolhida pelos
congressistas, pois eles avaliaram que cem anos era muito tempo para findar o processo
de embranquecimento.
Conforme pode ser visto na Figura 2, dados censitários confirmam que, entre os
anos de 1940 e 1980, as populações negra e branca decresceram em tamanho, enquanto
a parda aumentou. Por outro lado, visualiza-se que o tamanho da população parda
permaneceu constante entre 1980 e 2000.
Esses dados sugerem que, apesar do projeto político do embranquecimento ter
sucumbido, as relações raciais brasileiras influenciam na miscigenação entre brancos e
pardos. Hasenbalg (1998a) assevera que apesar do casamento entre pessoas de

3
Schwarcz (1998) informa que, em 1911, João Batista de Lacerda era diretor do Museu Nacional, teórico
do embranquecimento e defensor do ponto de vista de que o cruzamento das raças deveria ser realizado
de forma controlada, visando à garantia do embranquecimento da população brasileira.
Evenice Santos Chaves O racismo na Trajetória Escolar e Profissional... 69

Figura 2. Tamanho da população brasileira branca preta e


parda de 1940 a 2000

100
Percentual da População

80
61
60 63,53 54,8 53,74
38,5 38,46
40
21,23
20 29,5
14,65
8,7 5,9 6,21
0
1940 1960 1980 2000
Anos
Legenda: Branco Preto Pardo

Fontes: Percentual obtido a partir de dados censitários relativos a 1940,


produzidos pelo IBGE e apresentados por Pinto (1998); percentual obtido a
partir de dados censitários relativos a 1960 e 1980, produzidos pelo IBGE e
apresentados por Piza (2000) e percentual obtido a partir de dados do IBGE
(2003), relativos ao Censo Demográfico de 2000.

diferentes fenótipos ser mais freqüente no Brasil, que em outras sociedades


multirraciais, há escassez de pesquisas sobre o tema. O estudioso analisou cinco estudos
realizados, concluindo que aproximadamente 80% dos casamentos entre pessoas de
diferentes fenótipos são racialmente endogâmicos, interpretando que tais casamentos
dão continuidade ao processo de embranquecimento, iniciado no período colonial,
embora, na atualidade, aconteçam a partir da seletividade endogâmica.
Seyferth (1998) corrobora a interpretação de Hasenbalg e acrescenta que,
contemporaneamente, existem crenças sobre resultados favoráveis do processo de
embranquecimento, porém no nosso mundo social concreto há um distanciamento
seletivo entre pessoas de diferentes fenótipos.
Estudos calcados em narrativas de vida que abordem acontecimentos sobre
segregação sexual entre grupos e pessoas fenotipicamente diversificadas parecem estar
por realizar, posto que a literatura consultada não as apresenta. Sodré (2000), inclusive,
chama atenção para a necessidade da realização de pesquisas norteadas pelas
experiências das pessoas. Rossato (em Rossato e Gesser, 2001), estudioso do racismo,
descendente de europeu e natural do Estado de Santa Catarina, relata que, durante a
adolescência, ele e suas irmãs foram orientados, no contexto familiar, para namorarem
pessoas da mesma origem étnica. A exposição feita por Rossato, sobre aspectos da sua
Evenice Santos Chaves O racismo na Trajetória Escolar e Profissional... 70

experiência social, sugere que no cenário brasileiro das relações afetivas entre o homem
e a mulher, parece existir um mundo para os brancos e um para os negros, embora o
paradigma do racismo científico tenha sido questionado desde a primeira metade do
século XX. Isso implica que as relações interpessoais são hierarquizadas a partir do
fenótipo e da etnia, mantendo-se a seletividade pela via do processo de socialização, no
ambiente familiar e, provavelmente, em outros contextos sociais.
Hasenbalg (1998a) interpreta que o ideal de embranquecimento configura uma
proposição racista, apresentada como solução harmonizadora para a lenta eliminação do
negro, porém a mesma não se concretizou, permanecendo no Brasil um continuum de
cor, referenciado por uma estética branca racista, a qual condiciona comportamentos e
atitudes dos não brancos e gera, no negro, a sua própria autonegação. Assim é que, no
século XX, o embranquecimento firmou-se culturalmente através da supervalorização
de padrões culturais, estéticos, de valores eurocêntricos e americanos e da imposição
dos mesmos a todas as camadas da população. Nesse cenário, o negro, para sobreviver
em um mundo brasileiro hegemonicamente branco, teve que incorporar a branquitude.
Conforme Bento (2002a), o embranquecimento colocou o branco como sujeito
representativo da humanidade e modelo universal da espécie humana. Mas, assegura a
pesquisadora, esse processo foi criado e é mantido pela elite branca nacional, a qual,
contraditoriamente, afirma que o branqueamento é uma questão do negro brasileiro. A
referida investigadora, então, coloca a questão do embranquecimento também como
uma questão branca, na medida que se omite ou se distorce o lugar ocupado pelo branco
na construção e manutenção das relações sociais racializadas, salientando que a
discriminação “é um dos primeiros sintomas da branquitude” (Bento, 2002a, p. 27).
Carone (2002) expõe que no século XIX a ideologia do embranquecimento
mudou de conotação: inicialmente consolidada como um projeto inerente aos medos, às
preocupações e às necessidades das elites brancas, transformou-se em um desejo negro
de embranquecer ou de obter os privilégios da branquitude. A autora indaga: “como é
que um problema explícito das elites brancas passou a ser interpretado ideologicamente
como um problema dos negros – o desejo de branquear?” (p. 17).

2.2. O aporte da democracia racial brasileira


Ao redor dos anos 1930, acontecimentos de natureza internacional, continental e
Evenice Santos Chaves O racismo na Trajetória Escolar e Profissional... 71

nacional demarcaram a necessidade de elaboração de um novo modelo explicativo para


as diferenças de cor entre os grupos que constituíam a população brasileira.
No plano internacional, Martinez-Echazábal (1998) expõe que no continente
europeu, nas décadas de 1910 e 1920, especificidades culturais das denominadas
sociedades primitivas foram destacadas pela vanguarda artística, através da divulgação
de produtos dessas culturas. Também discorre que, no início do século passado,
antropólogos norte-americanos realizaram estudos sobre as culturas das intituladas
sociedades primitivas, enquanto revolucionários na América Latina, índios e mestiços,
fizeram a Revolução Mexicana, em 1910, e ocuparam as páginas dos principais jornais.
Posteriormente, o mesmo aconteceu com os murais de Diego Rivera e com várias obras
de outros artistas mexicanos. Então, assinala Martinez-Echazábal (1998), a aproximação
entre a estética e a política penetrou no pensamento social da América Latina,
permitindo a visualização das pessoas que até aquele momento eram consideradas como
inferiores.
O mesmo autor sublinha que esses acontecimentos influenciaram cientistas
latino-americanos a dissociarem a noção biológica de raça da noção de cultura e,
continua o estudioso, Arthur Ramos, no Brasil, explicitou tal diferenciação no ano de
1939, quando, ao redigir a introdução do livro póstumo de Nina Rodrigues intitulado
“As Collectividades Anormaes”, sugeriu que se fossem trocados, naquele compêndio,
os termos raça e mestiçamento por cultura e aculturação, as construções de Rodrigues
estariam atualizadas.
Ramos (1956), em outra obra, também defendeu a teoria de Nina Rodrigues,
sugerindo a palavra cultura como substituta de raça. Nesse movimento, com finalidade
transformadora, afirmou:
Sobre o negro e o mestiço brasileiros ainda escreveu Nina Rodrigues vários trabalhos, sobre
questões de antropologia criminal e psicologia coletiva. Infelizmente, preso às teorias científicas
do seu tempo, Nina Rodrigues defendeu algumas teses hoje inadmissíveis, como a das
desigualdades raciais, da degenerescência da mestiçagem, com as conseqüências, na ordem
política e social, destes pontos de vista. Ele atribuiu a contingências de raça o que hoje
atribuímos a contingências de culturas... (p. 201).
Circunstâncias políticas no Brasil também influenciaram na substituição do
paradigma do racismo científico. Damasceno (2000) coloca que o governo do presidente
Getúlio Vargas enfrentou o problema do desemprego e de como integrar a população
Evenice Santos Chaves O racismo na Trajetória Escolar e Profissional... 72

não branca na nossa nação. A pesquisadora assevera que esse mandatário elaborou uma
via de integração dos não brancos no mercado de trabalho, regulamentada pela Lei dos
2/3, de dezembro de 1930, a qual controlou a imigração de estrangeiros e regularizou a
inserção dos não brancos na esfera ocupacional. Ao lado da nova lei, expõe a estudiosa,
o governo exerceu grande controle policial sobre a população, inclusive proscrevendo,
no ano de 1938, a Frente Negra Nacional, fundada em 1931, em São Paulo.
Outro passo do governo Vargas foi o acolhimento da idéia de brasilidade na
política de integração nacional, atualizada na noção da mestiçagem como síntese do
encontro racial entre o branco, o negro e o índio (Damasceno, 2000). Os autores
consultados são unânimes em citar que, no mundo acadêmico, Gilberto Freyre foi o
formulador da ideologia da mestiçagem e da idéia de democracia racial brasileira,
escamoteadoras da existência do racismo no Brasil.
Santos (2002), em trabalho de dissertação de mestrado, menciona como eixos
que configuram o aporte teórico produzido por Gilberto Freyre a contraposição à idéia
biológica de raça, a noção do português como o benévolo colonizador do Brasil e o
mestiço como representante da sociedade brasileira.
De acordo com essa pesquisadora, Freyre assim teorizou: a partir do princípio
evolucionista de Lamarck de que as características produtoras de adaptação ao meio
ambiente são transmitidas a outras gerações, Freyre negou o papel da imutabilidade
natural das raças humanas e ressaltou a fusão de culturas nas terras colonizadas pelo
português. Esse, culturalmente mestiço, relacionou-se de forma amistosa com os
habitantes de regiões tropicais, inclusive sexualmente com negras e índias, produzindo
novas miscigenações entre diferentes raças. No contexto cultural, concretizou-se uma
amigável relação senhor-escravo, com o primeiro representando a brancura, a força, a
virilidade, a inteligência e o segundo, encarnando o negror, a sensualidade, a doçura, a
esperteza, a expansividade e a adaptabilidade ao trabalho agrícola.
Para Bento (2002a), a base da ideologia de democracia racial brasileira é a idéia
de que o relacionamento sexual entre o senhor e a mulher negra ou indígena eliminou o
preconceito, a discriminação racial e harmonizou as relações sociais. Guimarães
(2000b) argumenta que a ideologia da mestiçagem fundamentou-se na noção de que no
Brasil não existia raça, pois a população não era branca, nem negra, nem indígena,
porém formada por um povo mestiço, representativo da nação brasileira.
Evenice Santos Chaves O racismo na Trajetória Escolar e Profissional... 73

Damasceno (2000) esclarece que, enquanto projeto político, a versão oficial da


mestiçagem como resultante do encontro de três raças, a partir da assimilação da negra e
da indígena pela branca, foi oficialmente explicitada em 1943, na introdução do Censo
Demográfico de 1940, escrita por Fernando de Azevedo, especialmente convidado para
elaborar o texto. Francisco (2000) afirma que a noção de democracia racial continua
sendo propagada, assimilada e reproduzida na sociedade brasileira, inclusive por
cientistas sociais.
Constata-se, no campo da História, que a divulgação da concepção da bondade e
do grande valor do português na construção da cultura brasileira continua difundida,
pois Paiva (2001) tece elogios à obra de Gilberto Freyre, considerando-a como aquela
que pioneiramente re-escreveu o grande papel desempenhado pelos lusitanos em nosso
país:
Freyre demonstrava com seu livro genial a enorme mobilidade e capacidade de adaptação dos
lusos e, por conseguinte, de sua administração no Brasil, mérito pouco compartilhado, segundo o
autor, entre os povos europeus... E quanto à miscibilidade brasileira, Freyre considerava-a uma
das principais heranças, se não a principal, deixadas pelos portugueses aos brasileiros... O
hibridismo brasileiro era, na visão freiryana, a grande riqueza do país e sua versão
multiculturalista valorizava, com argumentos e elaborações intelectuais pioneiras, essa
característica (Paiva, 2001, p. 40).
Todavia, na defesa do modo de pensar freyriano, Paiva (2001) esquece de
ressaltar que Freyre não enfocou as desigualdades raciais que existiam no país e, assim,
ignorou a presença do racismo contra o negro nas terras brasileiras. É interessante
destacar que o próprio Paiva (2001) cita que entre nós existem ditos populares
desqualificadores do negro, como, por exemplo, “serviço de preto” (p. 47).
Outro indicador da tentativa de escamotear o lugar social ocupado pelo negro,
estruturalmente definido pela escravatura implantada pelos portugueses no Brasil, está
presente em Paiva (2001), ao indicar grandes feitos portugueses que são revelados por
uma vertente contemporânea da História, a História Cultural, a qual, segundo o autor,
tem produzido estudos sobre a contribuição do povo português na introdução de frutas e
legumes, provenientes de outras paragens, na alimentação brasileira.
Observa-se que há a preservação de um enfoque científico dissimulador da
compreensão do papel dos portugueses no Brasil, posto que a colonização lusa teve o
caráter de explorar as nossas terras e não o de promover o desenvolvimento do país.
Evenice Santos Chaves O racismo na Trajetória Escolar e Profissional... 74

Outro aspecto que merece ser lembrado diz respeito à miscigenação, a qual decorreu da
ausência de mulheres brancas na colônia e da necessidade de povoamento das terras
brasileiras, como garantia de posse aos portugueses.
O enfoque de Paiva (2001) mascara a compreensão do lugar que o negro e o
mestiço ocupam na sociedade brasileira, perpetuando o mito da democracia racial. Para
Guimarães (2000b), a noção de mestiçagem, de que formamos um povo mestiço,
embota o entendimento da posição do negro e do índio no processo de participação
social: são aceitos apenas como pilares da brasilidade, mas, no plano cultural, os
brancos, europeu e americano, continuam sendo o referencial, os que possuem a
capacidade de produzir melhor civilização. Além disso, o autor diz que no plano
político as ofertas ao negro são apenas simbólicas.
Apesar da noção do mestiço como representante do povo brasileiro, pouco se
fala sobre o mesmo, no nosso contexto:
O silêncio revela talvez um misto de desprezo por aquele que não é puro (se isso existisse), mas
pertence, inclusive biologicamente, ao grupo dos legítimos brasileiros (se isso, também,
existisse) e de receio de estar se auto-criticando, expondo sua parcela “racial” híbrida. Há
séculos a visão e os discursos sobre os mestiços no Brasil se constroem de forma enviesada e
velada (Paiva, 2001, p. 47).
Sobre o silêncio que mantém o mito da democracia racial, Machado (2002)
analisou o papel da ideologia do embranquecimento e da mestiçagem no Fórum
Internacional de História e Cultura do Sul da Bahia. Denominado “Os Povos da
Formação do Brasil”, foi organizado por autoridades políticas da Bahia e acadêmicos e
realizado durante as comemorações pelos 500 anos da “descoberta do Brasil”, em 2000.
A análise empreendida pelo autor evidenciou que, nos desenhos de cartazes e
folders relativos ao evento, o branco veio em destaque, em primeiro lugar, seguido do
índio e do negro; nas sessões de comunicações, dentre os 15 trabalhos apresentados,
apenas 1 discutiu contribuições africanas; dentre as 10 palestras, apenas 1 abordou os
africanos; nas 2 mesas redondas, não houve nenhum trabalho centrado no negro; nas 5
sessões de painéis, apenas em 1 houve referência ao turismo cultural. Esse, segundo
Machado (2002), foi o lugar destinado ao negro e ao indígena, através de exibições de
aspectos de suas culturas de origem, em palcos instalados fora do espaço coberto onde
aconteceram os trabalhos.
O aludido pesquisador ressalta que o evento foi quase integralmente dedicado a
Evenice Santos Chaves O racismo na Trajetória Escolar e Profissional... 75

elogios aos estrangeiros que participaram do processo colonizador brasileiro, ou seja, o


foco centrado no branco, na sua cultura e nas suas contribuições. Também destacou que,
na comitiva de intelectuais e políticos participantes do evento, apenas 3 negros
estiveram incluídos e, ainda assim, eram africanos.
Esse estudo mostra que o projeto político de supervalorização do branco, e da
ocultação das desigualdades, continua sendo mantido através de alianças entre o mundo
político e o acadêmico. Na pesquisa de Machado (2002), também chama atenção a
ausência de trabalhos sobre os mestiços, símbolo da democracia racial.
Retomando o mito da democracia racial, Hasenbalg (1998b) salienta que o
mesmo não significa apenas uma invenção acadêmica, porém está presente nas formas
de pensar da população brasileira e constitui um modo de dificultar a identificação do
racismo pelos sujeitos sociais, inclusive pelos próprios negros discriminados. Todavia,
o pesquisador ressalta que, ao lado do mito que nega o racismo, várias pessoas afirmam
a sua existência no Brasil.
Francisco (2000) assegura que a difusão da noção do brasileiro como um povo
miscigenado e a de democracia racial consolidam modos das nossas elites recriarem o
racismo, através de uma narrativa que tem a função política de mascarar as contradições
entre as classes sociais, evitar conflitos de classe e despolitizar as relações entre os
grupos de elite dominantes e os grupos subalternos.
Para esse pesquisador, o mecanismo de controle social é a homogeneização entre
todas as cores no plano político, ideológico e cultural. Porém, tal sociedade homogênea,
propagada pela ideologia da miscigenação e da democracia racial, não se sustenta no
mundo concreto, no Brasil. Nesse, a pessoa negra consolida um grupo étnico-cultural
social, econômica e politicamente desvalorizado, enquanto o branco solidifica um grupo
social valorizado econômica, política e socialmente.
Segundo Hasenbalg (1998b), a noção de democracia racial cumpre o papel de
obscurecer a percepção dos brasileiros sobre o nosso racismo de inibir a emergência e a
manutenção de violência física, atravessando as relações sociais racializadas.
A democracia racial, como modelo interpretativo das relações raciais brasileiras,
favorece a circulação cotidiana da noção identitária da brasilidade mestiça, de igualdade
entre as pessoas de diferentes matizes cromáticas, mas, contraditoriamente, em 20 de
novembro de 1995, o Brasil reconheceu oficialmente que o racismo existe no país,
Evenice Santos Chaves O racismo na Trajetória Escolar e Profissional... 76

através do decreto presidencial que implantou um Grupo de Trabalho Interministerial,


com o objetivo de construir e estimular a implantação de políticas sociais dirigidas à
população negra (Silvério, 2002). No cenário internacional, reconheceu-o na
Conferência de Durban, em 2001.
O enfoque da democracia racial é considerado por Rosenberg (2000) como a
primeira interpretação brasileira às relações raciais. Conclui-se, aqui, que o mesmo está
fundamentado na elaboração de um falso modelo de relações, escamoteia desigualdades
de oportunidades, privilégios obtidos a partir da cor e, ainda, gera o sentimento de
fracasso em negros que não ascendem socialmente: se todos são iguais, aqueles negros
que não ascendem socialmente são os únicos responsáveis pelas suas condições de
inferioridade e pela própria exclusão de processos de participação social.

2.3. A estrutura econômica e social da escravidão como modelo


interpretativo das relações raciais
Na década de 1950, a Unesco financiou pesquisas sobre o racismo no Brasil. Sob
a coordenação do acadêmico Florestan Fernandes, investigações foram realizadas por
diversos estudiosos, notadamente em São Paulo, Rio de Janeiro e na Bahia, entre 1950 e
1960 (Fernandes, 1972). Empregaram-se dados censitários como fonte de pesquisa e os
resultados revelaram desigualdades raciais assustadoras, expressas em indicadores como
trabalho, renda e educação.
É importante destacar que, conforme Castro (1998), naquele período, o Brasil
atravessava um momento privilegiado de produção industrial, fundamentado na
substituição das importações. Isso equivale dizer que o contexto daquela época era um
grande absorvedor de mão-de-obra e o processo de crescimento econômico deveria
produzir um aumento de renda, o qual, certamente, modificaria qualitativamente os
modos de vida dos trabalhadores. Todavia, desigualdades sociais, atravessadas pelas
raciais, foram a tônica, no que concerne à ocupação, à renda e à escolaridade de brancos
e não brancos. A Figura 3 apresenta percentuais referentes a modalidades de ocupações
de brancos e não brancos, em meados do século passado.
Como se observa, a população negra, considerando-se pretos e mulatos4, tanto
na condição de empregados como na de empregadores, quando comparada com
4
A denominação “mulato” foi empregada no Censo de 1950.
Evenice Santos Chaves O racismo na Trajetória Escolar e Profissional... 77

Figura 3. Percentuais de modalidades de ocupações em 1950


Percentuais de Empregados Brasileiros Brancos e Percentuais de Empregadores Brasileiros Brancos e Não
Não Brancos em 1950 Brancos em 1950
0,31 12,49
15,36
3,09
1,75

23,5
60,83
Empregadores Brancos
Empregado Branco
Empregadores Amarelos
Empregado Mulato 82,66
Empregadores Negros
Empregado Negro
Empregadores Mulatos
Empregado Amarelo

Fonte: Percentuais obtidos a partir de dados censitários relativos a 1950, produzidos pelo
IBGE e apresentados por Fernandes (1972).

a branca, evidencia que, em 1950, a democracia racial era um mito, pois os negros não
estavam integrados no mercado de trabalho do mesmo modo que os brancos. Nota-se
que na condição de empregadores, as desigualdades sociais e raciais eram gritantemente
visíveis.
É evidente que quanto menor a inserção do membro de um grupo étnico no
mercado de trabalho, menor a escolaridade daqueles que constituem o referido grupo.
Conforme os dados censitários de 1950, os pretos e os pardos estavam quase que
totalmente excluídos da escolarização formal, o que pode ser visualizado na Figura 4.
Segundo Castro (1998), a partir dos resultados das pesquisas fundamentadas em
dados censitários de 1950, interpretou-se que o negro não estava integrado na sociedade
de classes e, naquele momento de transição entre o modelo agrário de inspiração
escravocrata e o capitalismo industrial, o preconceito e a discriminação eram resquícios
das relações sociais escravistas.
Fernandes (1972), articulador do citado referencial interpretativo, atribuiu o
preconceito e a discriminação racial às formas de relacionamento dispensadas pelo
senhor ao escravo, nas quais ele era considerado como um subalterno. Ainda aditou que
essa assimetria construiu um padrão cultural de relações sociais calcado na orientação
racial e em atitudes desfavoráveis do branco para com os negros e os mulatos. Concluiu
que o preconceito racial, instalado pela organização social escravista definiu linguagens,
comportamentos, vestuários, ocupações, direitos e obrigações para os cativos e, como
Evenice Santos Chaves O racismo na Trajetória Escolar e Profissional... 78

conseqüência das relações sociais assimétricas, foram imputadas ao negro e ao mulato a


tolerância e a acomodação racial.

Figura 4. Formação escolar da população brasileira branca e não


branca, com 10 anos de idade ou mais, em 1950
97,8
96,3
90,2

100
Percentual

Elementar (%)
50 Médio (%)
Superior (%)

0,07
0,06
4,3

3,6
2,5

0,1
1,8

0,6

1,5
0,5

0,2
0,4

0
Brancos Pardos Negros Amarelos Sem
Declaração

Fonte: Percentuais obtidos a partir de dados censitários relativos a 1950, produzidos pelo IBGE e
apresentados por Fernandes (1972).

Em suma, para Fernandes (1972), a discriminação e o preconceito raciais eram


de natureza estrutural, representavam a presença do passado nas relações sociais e, por
isso, os brancos não vitimizavam, deliberada e diretamente, os negros e mulatos, pois:
... a cor não é um elemento importante na percepção do branco e na consciência racial do mundo
pelo branco. Até agora ele nunca se sentiu ameaçado pela desintegração da escravidão. O branco
só percebe o negro ou o mulato e tem consciência dele quando enfrenta uma situação concreta,
inesperada, ou quando a sua atenção é dirigida para questões relacionadas com o “problema de
cor” (Fernandes, 1972, p.72).
Como possibilidade de integração do negro e do mulato na sociedade de classes
brasileira, Fernandes (1972) ressaltou que a mesma só ocorreria pela lenta ascensão
social desses grupos, pois era no quesito mobilidade social que o preconceito e a
discriminação contribuíam na manutenção das relações raciais, ao conservar as pessoas
de cor à margem, dada as desiguais oportunidades políticas, econômicas e educacionais.
Um aspecto que chama atenção nesse referencial interpretativo é o lugar de
vítima que o branco ocupa nas relações raciais: herdou da escravidão um modo de se
relacionar com os negros; comporta-se diante desses de forma inconsciente, dada a
herança social de uma forma de relacionamento; ignora a situação social e opressiva dos
Evenice Santos Chaves O racismo na Trajetória Escolar e Profissional... 79

negros, porém, ao se sentir ameaçado, nota e reage às suas presenças.


Defende-se, aqui, que a omissão do branco frente às desigualdades sociais e
raciais não significa estar inconsciente das mesmas, porquanto, até no plano simbólico,
ter o fenótipo branco já aufere vantagens, o que salienta as distinções e discriminações.
Tanto é que, na literatura consultada, não se encontrou nenhum estudo brasileiro
abordando humilhações pelas quais passou o branco, em função do seu fenótipo.
Conforme Munanga (1998), o racismo foi instalado, difundido e mantido por
sujeitos sociais e, portanto, sua origem é sócio-cultural. Dessa forma, continua o autor, a
cultura impõe valores e normas, consolidadores das formas de expressão do racismo no
processo relacional entre negros e brancos e, também, de frustrações sociais que afetam
cada pessoa e a convivência social. Conclui que essas questões não são consideradas na
interpretação marxista clássica, ancorada apenas em uma perspectiva econômica, cujas
características marcantes são a de ignorar a pessoa como um agente ativo e construtor
da cultura, ou simplesmente considerá-la como manipulada pela estrutura social.

2.4. Contextos específicos como explicação para a manutenção das


desigualdades raciais
Tal modelo interpretativo do racismo contra o negro tem origem nos estudos
pioneiros realizados por Carlos Hasenbalg, no final dos anos 1970, quando analisou
dados produzidos pela Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios. Essa, de acordo
com o autor, trouxe novas informações sobre a situação sócio-econômica dos segmentos
raciais que compunham a sociedade brasileira.
Em seu estudo, Hasenbalg (1983) concluiu que pretos e pardos continuavam em
desvantagem social nos itens ocupação, renda, escolaridade e, conseqüentemente, na
mobilidade social ascendente, quando comparados com brancos. Constatada a presença
perversa do racismo, que diferenciava os estilos de vida dos brasileiros, Hasenbalg
(1983) elaborou o seguinte aporte teórico:
As desigualdades sociais e as raciais não se explicam apenas pelo passado
escravista, porque a situação social não se reproduz da mesma maneira. Apesar da raça,
um atributo socialmente construído, permanecer como um relevante critério para a
inserção de grupos em diferentes posições na hierarquia social, as funções do
preconceito e da discriminação renovam-se na estrutura social vigente e relacionam-se
Evenice Santos Chaves O racismo na Trajetória Escolar e Profissional... 80

com vantagens materiais e simbólicas dos brancos, obtidas através da desqualificação de


negros e pardos.
No Brasil, a distribuição geográfica de brancos e não brancos contribui para as
desigualdades raciais, pois se constata que, nas regiões mais subdesenvolvidas, as
oportunidades educacionais e econômicas são menores que nas regiões mais ao sul,
onde se concentra a população branca. Embora esse padrão tenha emergido no período
escravocrata, políticas posteriores de estímulo ao desenvolvimento privilegiaram
determinadas regiões. Por outro lado, a violência simbólica contra os negros e os pardos
gera, nas pessoas pertencentes a esses grupos, aspirações compatíveis com os padrões
socialmente impostos.
O modelo explicativo de Hasenbalg (1983) desvela o papel de cada momento da
sociedade na manutenção do racismo contra o negro. Entretanto, no momento que o
construiu, desconsiderou que pretos e pardos não são sujeitos passivos, pessoas que não
buscam mobilidade social ascendente. Isso acontece (Nogueira, 1992; Figueiredo,
2002), porém em pequena parcela. De acordo como os estudos realizados pelos dois
últimos autores referidos, pode-se interpretar que há um enfrentamento ativo do negro
às condições adversas, aliado a apoios sociais que agregam às suas estratégias de
enfrentamento. Contudo, ressalta-se que os casos individuais de mobilidade social não
significam mudanças nas posições ocupadas pelo grupo étnico negro no contexto social
brasileiro, nem a ausência de discriminação racial dirigida a seus membros.
A partir de estudos realizados por outros pesquisadores, Hasenbalg (1998b)
ampliou o seu modelo explicativo, denominando-o de modelo brasileiro de racismo
contra o negro, expondo-o do seguinte modo: o mito da democracia racial, através do
elogio da mestiçagem, integra simbolicamente os negros, porém, no plano da vida
concreta, os mesmos continuam na posição de subordinados, social e economicamente
falando. O mito é responsável pela nacionalização de símbolos da cultura negra, porém
os negros são submetidos a um processo de socialização fundamentado na cultura
branca, hegemônica.
Esse aspecto cria diferenciações para a inserção dos negros nos espaços sociais:
existem alguns onde as relações raciais os segregam de brancos, como o do trabalho, o
do namoro, o do casamento, o da escola e o do contato com a polícia. Em outros, no
entanto, a cor não é relevante enquanto fator de segregação nas relações sociais, como
Evenice Santos Chaves O racismo na Trajetória Escolar e Profissional... 81

na igreja, no futebol, em atividades de lazer, em blocos carnavalescos, em terreiros


religiosos e na prática da capoeira. Nesses espaços, a convivência entre as pessoas de
diferentes fenótipos reforça a idéia de um convívio pacífico entre os grupos étnicos,
constituídos por pessoas de diferentes fenótipos.
A complementação de Hasenbalg (1998b), acima explicitada, é indicativa da
incursão de pesquisas em ambientes concretos que fazem parte da vida social, nos quais
as diferenciações colocam o negro no seu devido lugar. Ressalta-se, porém, que, para
alguns, enquanto brasileiros, “somos todos iguais”.
A explanação do racismo ainda necessita da compreensão de como as práticas
sociais racistas afetam a pessoalidade da pessoa negra, no contexto social brasileiro.
Nesse particular, a Psicologia pode oferecer contribuições.
CAPÍTULO 3

O CAMINHO TEÓRICO-METODOLÓGICO

Os objetivos da presente pesquisa conduziram ao enfoque qualitativo, na medida


que focalizaram experiências das participantes/informantes ao longo das suas trajetórias
de vida, bem como suas projeções com relação aos planos profissionais.
Denzin e Lincoln (1994) caracterizam a pesquisa qualitativa como uma atividade
que, através do emprego de um método de investigação composto por práticas materiais
e interpretações, objetiva dar visibilidade a processos e a significados. De acordo com
tais autores, essa modalidade de pesquisa abarca como informações o ponto de vista
individual dos participantes/informantes, tendo em vista elaborar uma compreensão dos
mundos experienciais em estudo.
A pesquisa qualitativa, como qualquer modalidade de investigação científica,
pressupõe uma construção teórico-metodológica, cujas referências são as contribuições
de estudiosos que tornam pública para a comunidade científica as suas realizações
teórico-epistemológicas, teórico-explicativas e teórico-metodológicas. Assim, oferecem
ferramentas a partir das quais cada outro pesquisador tem a possibilidade de empregá-
las e produzir novos conhecimentos.
Nesta parte do trabalho, explicitar-se-ão contribuições de autores que foram
relevantes na configuração do caminho teórico-metodológico construído. O mesmo foi
possível dada a apropriação de um conjunto de conhecimentos científicos, produzidos
por diversos pesquisadores, no âmbito de diferentes disciplinas, observando-se que tais
conhecimentos mantêm relações de complementaridade. A articulação metodológica
empreendida para orientar este estudo traz, também, de forma explícita ou implícita, as
crenças científicas da pesquisadora, decorrentes da colaboração de outros acadêmicos.
Além disso, as suas experiências pessoais cotidianas também marcam as escolhas
realizadas pela investigadora.
Evenice Santos Chaves O racismo na Trajetória Escolar e Profissional... 83

Conforme Cole (1997), a metodologia integra a teoria à prática. Dessa forma,


situa-a como uma unidade que, para Prilleltensky e Austin (2001), contempla uma
dialética entre conceitualizações e aplicações. Ademais, a realização de uma pesquisa
fundamenta-se na escolha de um paradigma.
Montero (2001a) assinala que, do ponto de vista social, o paradigma articula um
conjunto de idéias e procedimentos orientadores da prática científica de interpretação da
atividade dos seres humanos. A autora salienta que um paradigma inclui as concepções
do pesquisador sobre a sua pessoa, enquanto construtor de conhecimento, sobre o
mundo e sobre as relações interpessoais.
Montero (2001b) também enfatiza que na construção crítica do conhecimento, o
paradigma se expressa em diferentes modalidades: na dimensão ontológica, ou seja, na
concepção da natureza dos seres humanos e da construção da realidade; na dimensão
epistemológica, relativa à construção do conhecimento; na dimensão ética, referente à
questão da diversidade e da abrangência do outro; na dimensão política, que diz respeito
à liberdade como aceitação à inclusão do outro e ao seu acesso em espaços públicos e na
dimensão metodológica, concernente aos modos através dos quais o conhecimento é
produzido em contextos específicos.
Tomando por base as diretrizes anteriormente especificadas, assim como as
fundamentações teóricas consideradas como básicas na realização desta pesquisa,
passar-se-á a explicitar os tópicos constitutivos da trilha teórico-metodológica que
norteou o presente trabalho.

3.1. O pesquisador
Denzin e Lincoln (2000) expõem que um pesquisador está localizado na história,
a qual orienta e restringe qualquer investigação, e compartilha visões de mundo, aportes
teóricos e metodológicos com uma comunidade científica, a qual possui uma tradição na
realização de pesquisas orientadas por uma determinada perspectiva.
Do ponto de vista ontológico, o pesquisador, como qualquer outro ser humano,
caracteriza-se como ser socialmente construído: localiza-se numa cultura que o constitui
e é por ele constituída; convive com outros em um eterno processo de relacionamentos
sociais, os quais, juntamente com as especificidades culturais situadas na história social
e pessoal, possibilitam-lhe construir e reconstruir a sua concepção sobre o que vem a ser
Evenice Santos Chaves O racismo na Trajetória Escolar e Profissional... 84

a realidade1, compreendê-la como contextualizada, socialmente situada e multifacetada;


que, como sujeito, localiza-se economicamente em um dado estrato social, assume
posições variadas em instituições diversas e em diferentes momentos da sua história
social; faz parte de uma dada etnia; tem um sexo, um gênero e transita em diferentes
espaços sociais.
Tudo isso contribui para as suas escolhas referentes às concepções de mundo, de
pessoa, de relacionamentos sociais, de justiça, de temática a ser pesquisada, porque a
sua inserção histórica, passível de modificações durante a trajetória de vida, provê
contextos de desenvolvimento, favorecedores ou desfavorecedores de seu olhar sobre
dimensões do cotidiano que geram um objeto de estudo.

3.1.1. O pesquisador e a conduta ética


Várias pesquisas de natureza qualitativa requisitam relações interpessoais entre o
pesquisador/participante e os participantes/informantes, tornando primordial a questão
ética. Nas interações que ocorrem durante o momento da coleta de informações,
manifestam-se aspectos de intimidade do mundo experiencial daqueles que fornecem as
informações necessárias à construção do conhecimento científico.
No desenrolar da coleta, as situações interativas entre os sujeitos construtores de
uma pesquisa são regidas por uma ética prescritiva, formulada pelo Conselho Nacional
de Saúde. Nela, um conjunto de direitos é garantido aos participantes/informantes,
desde a sua não identificação até o de se afastar da pesquisa quando assim o desejar. Ao
pesquisador compete explicitar os objetivos do estudo, obter o imprescindível
consentimento esclarecido, respeitar a integridade física, psicológica e as decisões do
participante/informante. Esses princípios éticos garantem a aplicação de um código de
direitos e de deveres, de caráter universalista.
Contudo, para além dessa ética prescritiva, Schwandt (2000) focaliza a ética
fenomenológica, inerente à situação de interação entre os participantes, consignando
lugar privilegiado à responsabilidade social, alicerçada no próprio processo interativo
que ocorre durante o ato de pesquisar.
Schwandt (2000) cita que diferentes filósofos e cientistas partilham princípios
que devem permear as experiências de encontro entre as pessoas: a ética da intimidade,
1
Compreende-se a realidade como as significações atribuídas pela pessoa a um conjunto de
acontecimentos próximos e distais, que fazem parte do seu cotidiano.
Evenice Santos Chaves O racismo na Trajetória Escolar e Profissional... 85

da atenção, da responsabilidade, da proximidade e da conexão com o outro. Essas


especificidades parecem ser cruciais nas interações entre o participante/pesquisador e
cada participante/informante, porque balizam o respeito ao outro e à diversidade, ainda
colocando o parceiro/colaborador como agente ativo e não apenas como objeto para a
coleta de informações.
A questão ética também está imbricada na finalidade da pesquisa. Sobre esse
ponto, Schwandt (2000) afirma que há dois enfoques, no contexto das epistemologias
interpretativas, no qual se incluem as pesquisas qualitativas: o primeiro, compartilhado
por alguns pesquisadores, defende o ponto de vista de que a interpretação deve gerar
conhecimentos críticos sobre as práticas sociais e educacionais antidemocráticas e
injustas, visando à sua erradicação e à transformação social; o segundo, partilhado por
outros investigadores, é defensor do ponto de vista de que a relação dialógica presente
no ato de pesquisar gera um subseqüente processo educativo e ambos são produtores de
trocas e de interpretações, as quais consolidam transformações. Sustenta-se, neste
trabalho, que os dois enfoques são complementares e podem colaborar em movimentos
de transformação social, objetivo último de cada uma das pesquisas realizadas no
contexto acadêmico.
Prilleltensky (2001) menciona que uma epistemologia compatível com a
transformação social necessita compreender o fenômeno humano e o fenômeno social.
Também assinala que as formulações teóricas sozinhas são desprovidas de significados
e esses só ocorrem quando validados através das experiências vividas pelas pessoas,
sujeitos de uma análise científica. Para o referido pesquisador, um cientista integra
paradigmaticamente a finalidade social da pesquisa, os seus fundamentos e os dados
produzidos a partir do mundo vivencial dos participantes/informantes. Isso é o que a
atividade de pesquisar propicia.

3.1.2. O pesquisador qualitativo como realizador de bricolagem

Uma característica requerida pela metodologia qualitativa é a habilidade do


pesquisador em elaborar articulações entre orientações teórico-metodológicas, segundo
um enfoque interdisciplinar, cujas peculiaridades já foram mencionadas em capítulo
anterior.
Denzin e Lincoln (2000) referem-se à interdisciplinaridade metodológica como
Evenice Santos Chaves O racismo na Trajetória Escolar e Profissional... 86

bricolagem, na qual o pesquisador desempenha diferentes papéis no ato de pesquisar: o


bricolador teórico, que emprega diversos referenciais interpretativos na compreensão de
um dado problema em investigação; o bricolador metodológico, que articula e usa um
conjunto de procedimentos para coletar e analisar as informações obtidas; o bricolador
interpretativo, que, a partir das compreensões elaboradas, produz um texto, interligando
as partes do trabalho realizado em um todo.
Na pesquisa realizada, empregou-se a bricolagem, orientada por relações de
complementaridade entre enfoques teóricos, métodos, técnicas e instrumentos, visando
ao alcance dos objetivos da investigação, porém sempre atentando para os nexos que
propiciam a interdisciplinaridade e não o já conhecido ecletismo.

3.2. Fundamento epistemológico


Ferreira, Calvoso e Gonzáles (2002) focalizam o pesquisador como participante
ativo do processo de produção do conhecimento, colocando-o no lugar de eixo
configurador daquilo que produz, porque na construção científica que elabora está
inserida a sua experiência, integrada às interpretações que confere ao objeto em estudo,
sempre intrincado a um contexto e a uma história. Ferreira e cols. (2002), no entanto,
salientam que a dimensão da pessoalidade do pesquisador, contida no conhecimento
científico que formula, se expressa em consonância com as contingências que operam
durante o processo de construção do conhecimento.
Então, pode-se situar que a existência do conhecimento científico subordina-se a
um sujeito que o constrói, sujeito esse cujo processo de humanização decorre da sua
inserção cultural e da sua atividade humana, concretizada em contextos específicos, em
diferentes situações e temporalidades.
A condição humana do sujeito produtor de conhecimento científico o situa no
mesmo patamar de qualquer pessoa elaboradora de conhecimentos de outra ordem. Rey
(1997) assevera que, no mundo social, ocorre a ação de cada ser humano sobre a
realidade e, a partir das experiências sociais, cada pessoa confere sentidos às suas
experiências pessoais. Para o estudioso, as inter-relações entre as dimensões do mundo
social, da experiência e da ação do sujeito geram a compreensão de que o ser humano e
o meio social estão sempre integrados no processo de construção do conhecimento. Esse
enfoque epistemológico qualitativo também é corroborado por Sampson (2001), ao
Evenice Santos Chaves O racismo na Trajetória Escolar e Profissional... 87

afirmar que a história social, a história pessoal, a cultura, os contextos, as relações


interpessoais, a comunicação e a ação humana integram-se no que denomina de
totalidade da ação.
Em síntese, essa perspectiva epistemológica delineia uma concepção de ser
humano como socialmente elaborado e agente que atua no mundo social, construindo-o
e sendo por ele construído, a partir da sua imersão nas temporalidades, nos contextos e
nas situações.

3.3. A cultura
Guareschi e cols. (2003) enfatizam que o conceito de cultura é um dos mais
relevantes nos Estudos Culturais. Para Amsterdam e Bruner (2002), falar sobre o que é
cultura remete à Antropologia e esses pesquisadores salientam que os antropólogos,
contemporaneamente, questionam as suas próprias competências sobre como definir
cultura, explanar como a conhecemos, como ela deve ser pensada e qual o seu papel na
vida cotidiana das pessoas. Ainda afirmam que tudo isso decorre da tensão de duas
compreensões antropológicas sobre a cultura.
Um entendimento considera a cultura como exterior a seus membros, refere-se a
tudo que precede a existência das pessoas e modela o processo de conscientização do
ser humano que nasce em uma sociedade, num dado tempo e momento. A segunda
entende a cultura como intrínseca a seus membros, pois são eles que negociam
conjuntamente o significado de suas vidas públicas (Amsterdam e Bruner, 2002).
De acordo com esses pesquisadores, da primeira concepção resulta o enfoque
antropológico sócio-institucional, para o qual a cultura é um conjunto de arranjos
construídos, visando a garantir a manutenção da vida. Tais arranjos se expressam em
regras sobre os fatos da existência, consolidada em um sistema de trocas e nos métodos
de resolução de conflitos, pouco modificáveis. Na segunda concepção, tem-se o enfoque
interpretativo-construtivista, que compreende a cultura como os sistemas construídos
pelos humanos em interação, para a aquisição de significados comuns que permitam a
negociação.
Amsterdam e Bruner (2002) questionam a noção de que os fatos falam por si só
e argumentam que eles surgem de narrativas e, portanto, derivam da base interpretativa
do sujeito, ser de relação. Ademais, destacam que a partir da compartilhada atividade
Evenice Santos Chaves O racismo na Trajetória Escolar e Profissional... 88

humana de adquirir e construir significados surge uma interpretação coletiva sobre os


eventos que constituem a cultura, sempre elaborada ou re-elaborada.
Retomando as duas perspectivas antropológicas, Amsterdam e Bruner (2002)
aditam que ambas conduzem ao jogo dialético da cultura e à negociação. Ainda afirmam
que os dois enfoques se complementam: a perspectiva social-institucional demarca a
relevância dos modos de institucionalização e legitimação consolidados em uma cultura,
objetivando a implantação e a manutenção da canonicidade, enquanto a interpretativo-
construtivista aponta para as pressões exercidas pela pessoa, ou pelo grupo social, na
canonicidade institucionalizada, a partir da construção de mundos possíveis.
Para Amsterdam e Bruner (2002), as culturas, no jogo dialético, constituem
compromissos negociados entre o canonicamente estabelecido e o imaginavelmente
possível, na medida que nela há competições, as quais visam ao controle sobre as
concepções da realidade, versões acerca de como os eventos e os acontecimentos são e
de como poderiam ser, além da elaboração de alternativas possíveis. Para esses
estudiosos, a dialética entre a dimensão canônica da cultura e os mundos imagináveis
propicia o dinamismo da cultura e, com isso, a elaboração da dialética está contida na
perspectiva social-institucional e na interpretativo-construtivista. Assim é que,
asseguram esses pesquisadores, a dimensão canônica são as formas de pensar, sentir,
atuar e afiliar-se, enquanto os mundos imagináveis são as possibilidades de
transformação do canônico.
Em síntese, observa-se que Amsterdam e Bruner (2002) problematizam modos
antropológicos compartimentalizados de se conceber a cultura, entendendo-a como um
conjunto de padrões constitutivos dos modos de vida coletivos e, ao mesmo tempo, por
eles constituídos. Conceituam, então, a cultura como o conjunto de sistemas simbólicos
institucionalizados e o processo permanente de transformação dos mesmos, decorrente
das ações humanas compartilhadas e da re-construção de significados sociais.
Araújo (1996) compreende a cultura do mesmo modo, defendendo que há uma
unicidade entre a mesma e os significados, a partir da interconexão realizada pelas
formas simbólicas, carregadas das significações. Complementa que tal processo permite
às pessoas instituírem a cultura de forma dinâmica, porque há, na mesma, permanências
e mudanças nos valores e nos significados, ao tempo em que os sujeitos vão construindo
e reconstruindo a si mesmos, de diferentes maneiras.
Evenice Santos Chaves O racismo na Trajetória Escolar e Profissional... 89

Miller (2000) afirma que, na Psicologia Cultural, não se pode compreender de


forma isolada a cultura e o comportamento da pessoa, porque estão integrados. Bruner
(1997) defende o entendimento do ser humano, e dos seus processos de mudança,
através do esclarecimento dos modos de participação nos sistemas simbólicos culturais.
Esse ponto remete ao significado, enquanto referencial interpretativo que permite ações
compartilhadas, e à linguagem, como via de expressão das experiências significativas.

3.4. O significado e a experiência humana


Conceitua-se o significado como um sistema de interpretações construído pelos
sujeitos sociais, a partir de suas experiências culturais, historicamente situadas e
mediadas pelas relações sociais, pela linguagem e por instrumentos.
Através desse sistema, o grupo social atribui significações às diversas situações
existenciais, que decorrem da sua vida concreta no mundo. Afora as significações
sociais, cada pessoa constrói, através do processo de subjetivação, uma significação
pessoal para os eventos ocorridos ou a ocorrerem em suas vidas, uma vez que refletem
sobre experiências passadas e fazem projetos para o futuro. Isso delimita o sentido, que,
apesar de individual, é constituído por significados sociais.
As situações existenciais configuram as experiências humanas. De acordo com
DeGrandpre (2000), elas decorrem da inserção do sujeito em práticas sociais, que
acontecem em diferentes situações, e a diversidade das vivências produz modificações
nas formas de entendimento das experiências e em suas significações. Menciona que a
experiência do sujeito no mundo concreto possibilita a aquisição de significados, cuja
qualidade contingente decorre de estruturas de superfície e de estruturas extensivas,
socialmente elaboradas. As estruturas de superfície são constituídas pelas atividades nas
quais a pessoa participou de forma desmotivada ou vivenciou de modo limitado. As
estruturas extensivas englobam as atividades em que a pessoa participou e teve
experiências prolongadas, das quais decorreram outras vivências, novas capacidades
comportamentais e novas compreensões.
DeGrandpre (2000) enfatiza que o significado tem a função de organizar o senso
de realidade, através do movimento da pessoa nos contextos familiares; de orientar as
ações do sujeito no mundo concreto; de propiciar a produção de outros significados; de
possibilitar à pessoa, de forma consciente, a antecipação de outros significados, os quais
Evenice Santos Chaves O racismo na Trajetória Escolar e Profissional... 90

são, ao mesmo tempo, definidos pelas experiências remotas.


Para DeGrandpre (2000), a natureza do significado é social e, por isso mesmo,
ele é função do que foi experienciado pelo ser humano. O referido pesquisador discorre
que o significado permanece no mundo, porém, como as experiências pessoais são
múltiplas, modifica-se, produz disrupção, enfim, é dinâmico. Também ressalta que a
dinâmica o torna dialético e relativo: modifica-se na temporalidade da ação, pois o ser
humano atua no mundo e esse responde, o que gera diferentes interpretações e consolida
um processo interativo, produtor de novos significados para episódios comportamentais.
A compreensão de que o significado é socialmente elaborado no contexto da
cultura e nas negociações entre as pessoas e entre os grupos sociais, depreende-se que a
linguagem, como afirma Miller (2000), é fundamental no processo de comunicação
cultural e constitui-se como um instrumento para criar, manter e propiciar a
comunicação social e as realidades psicológicas.
Lax (1998) esclarece que a ligação entre a cultura e o significado toma lugar na
conversação, produtora de uma narrativa ou história, cujo desenvolvimento resulta do
que cada um constrói em conjunto com outros atores sociais. Adiciona que a história de
cada ser humano é processual e definidora da pessoalidade, graças às interações que
cada ser humano estabelece e às maneiras de entendimento percebidas por outros, sobre
cada pessoa em particular. As citadas afirmações desembocam na narrativa, uma via de
acesso às experiências humanas.

3.5. A narrativa
Entende-se a narrativa, uma modalidade de discurso, como histórias elaboradas e
relatadas por uma pessoa, a qual, direta ou indiretamente, esteve ou está envolvida em
acontecimentos e ações que se desenrolaram, ou se desenrolam, em diferentes espaços
do mundo social e em diversos tempos socialmente construídos.
Brockeimer (2000) assegura que, em uma perspectiva cultural, as narrativas de
vida são eventos culturais, construídos e re-construídos de acordo com os contextos de
elaboração e, ainda, com as convenções inerentes à cultura e aos grupos culturais, nas
quais o narrador está inserido. Ademais, afirma que apesar dessas especificidades, cada
pessoa atribui uma significação pessoal aos acontecimentos que perpassam a sua vida.
Desse modo, salienta-se que a re-construção de aspectos de uma história de vida,
Evenice Santos Chaves O racismo na Trajetória Escolar e Profissional... 91

a articulação entre o que alguém viveu ou presenciou, emerge da própria situação


relacional onde a história pessoal é, a cada momento, re-elaborada e re-interpretada, à
luz dos significados culturais e das interpretações pessoais. Isso equivale dizer que os
conteúdos das narrativas são dinâmicos, sempre se atualizam e, jamais, conformam algo
pronto, alguma coisa armazenada na memória, como um espelho do que foi vivenciado
durante a trajetória de vida já transcorrida.
Bruner (1997) coloca que a narrativa interliga a dimensão canônica da cultura
com a idiossincrasia do ser humano. Sublinha que ela possibilita o entendimento da vida
pessoal, porque permite o compartilhamento que os seres humanos compartilhem uma
biografia, porque participam dos sistemas simbólicos e interpretativos da cultura onde
estão inseridos e, também, porque os significados são de domínio público, porquanto
são partilhados.
Jovchelovitch e Bauer (2003) citam como peculiaridades da narrativa de vida as
seguintes características: está atrelada ao contexto histórico onde é construída; configura
um ponto de vista pessoal sobre ocorrências que tomaram lugar em um dado tempo e
espaço; prioriza os acontecimentos experienciados pelo narrador e as interpretações que
faz dos mesmos e expressa aspectos dos mundos coletivo e individual, razão pela qual
pode revelar funções que desempenha tanto para os seus construtores, quanto para as
diversas dimensões constitutivas do mundo social.
Brockeimer (2000) ressalta que uma história narrada sempre tem o seu início no
momento em que está sendo re-construída, enfatizando como especificidades de uma
narrativa: a elaboração de uma história com centralidade e com uma estrutura que a
organiza ao redor de um protagonista; a elaboração do que já ocorreu centrada em um
momento presente, o que permite ao narrador localizar-se e posicionar-se no tempo; a
articulação da trajetória de vida, relatada a partir das noções de movimento e do tempo
como direção, considerando-se o total de acontecimentos, períodos que constituem a
trajetória relatada ou apenas alguns acontecimentos que ocorreram em um momento e
fazem parte dessa trajetória.
Jovchelovitch e Bauer (2003) relatam que na seqüencialidade dos conteúdos da
narrativa há uma dimensão cronológica e outra não cronológica, as quais conformam
um enredo. Esse, por sua vez, demarca o início e a finalização de uma história e constrói
o sentido para a narrativa que foi produzida. Esses pesquisadores salientam que, dada a
Evenice Santos Chaves O racismo na Trajetória Escolar e Profissional... 92

dimensão não cronológica, a compreensão de uma narrativa inclui tanto a seqüência


cronológica quanto a não cronológica, passíveis de serem desveladas através da
identificação de suas funções e do sentido produzido pelo enredo.
Outro ponto a ser destacado é salientado por Lax (1998), ao chamar atenção para
condicionantes que se inter-relacionam com as narrativas, tais como os potenciais e as
restrições políticas, econômicas e sócio-culturais. Contudo, ressalva que os mesmos não
restringem a possibilidade de opções narrativas e que esse aspecto integra a cultura e os
significados sociais como dimensões que participam da determinação das experiências e
das ações humanas.
Neste estudo, a narrativa é compreendida como uma expressão de experiências
de vida que se concretizam nos limites de condicionantes políticos, econômicos, sociais
e relacionais.

3.6. A interpretação científica


Um texto que é objeto de interpretação científica é o discurso relativo a uma
narrativa de vida. Spink e Lima (2004) mencionam que a interpretação conforma o
processo pelo qual o pesquisador produz sentidos para o discurso, considerado como
“matéria prima de pesquisa” (p. 105).
Schwandt (2000) expõe que, no enfoque interpretativo, os conteúdos relativos
aos atos humanos, sociais e significativos, são indicativos do tipo de ação que deve ser
compreendida no contexto de significados onde se insere, a partir do ponto de vista do
autor do texto em estudo. Gubrium e Holstein (2000) ressaltam que a atividade de
interpretar é mais que um ato habilidoso, porque, além da habilidade do interpretador,
requer o emprego de referenciais que orientem metodologicamente o ato interpretativo.
Salienta-se que na interpretação de textos, oriundos das conversações centradas
nas experiências humanas, é imprescindível o emprego de um método. Nessa direção,
Schwandt (2000) afirma que o interpretativismo e a hermenêutica compartilham o ponto
de vista de que compreender algo requer a consideração da situação onde as ações
humanas são construtoras de significados, pois ela propicia uma compreensão de ações
particulares.
Rey (1997) destaca que a hermenêutica visa à formulação de uma explanação
sobre as ações humanas. Relata que a mesma orienta-se pela especificação de critérios
Evenice Santos Chaves O racismo na Trajetória Escolar e Profissional... 93

para a prática de interpretar textos, tomando-se como objeto de análise a experiência


que se consolida em cada momento da ação, ou seja, da atividade prática. Considera que
a construção de sentidos para a ação constitui-se na própria ação da pessoa e não em
qualquer essência ou entidade nela localizada.
Enquanto critérios, Gubrium e Holstein (2000) propõem duas diretrizes para a
prática interpretativa, que intitulam de suporte analítico: 1) a interpretação deve abarcar
questões com continuidade por um longo período de tempo, as quais versam sobre as
realidades e/ou subjetividades construídas nos cenários cotidianos das pessoas. Por isso,
o processo interpretativo deve movimentar-se entre bases de referência institucional,
cultural e englobar diversos ambientes; 2) a prática interpretativa deve concentrar-se em
duas questões: o como e o quê. O conjunto de articulações sobre as mesmas indica o
porquê. Esse foco vai refletir as inter-relações entre as interações sociais, o contexto
mais imediato, o contexto mais amplo, assim como a construção dos significados pelos
sujeitos.
As orientações fornecidas por Gubrium e Holstein (2000) conduzem à
identificação, à descrição e à explanação dos fenômenos que são foco de uma pesquisa.
Acrescenta-se que interpretar significa apreender inter-relações entre condicionantes
sociais, circunstâncias de vida, interações sociais que perpassaram as experiências e os
atos da pessoa enquanto ser de relação, assim como os processos e mecanismos
psicológicos, decorrentes das situações vivenciadas, ao longo do ciclo de vida. Tudo
isso alicerçado em significados sociais e nos sentidos construídos, cujos conteúdos são
culturalmente situados.
Convém ressaltar que, na pesquisa, a interpretação demanda um trabalho prévio
sobre as informações coletadas e isso a diferencia das interpretações realizadas pelos
sujeitos sociais, no cotidiano de suas vidas.

3.6.1. Requisitos para a interpretação científica


Conteúdos das falas de um discurso que versam sobre as experiências de vida,
configuram um conjunto de informações, as quais só adquirem o status de dados a
serem interpretados após um tratamento realizado pelo pesquisador.
Geralmente, tais informações são coletadas através de entrevistas. Myers (2003)
cita como o primeiro momento de organização das informações coletadas a transcrição
Evenice Santos Chaves O racismo na Trajetória Escolar e Profissional... 94

integral das falas gravadas e, posteriormente, a sua conferência. Adita-se que as falas
transcritas ainda constituem informações.
Denzin e Lincoln (2000) enfatizam que, após a transcrição, o texto deve ser
editado como uma unidade significativa, visando ao posterior trabalho interpretativo.
Ferreira (1999b) destaca a edição de uma entrevista como favorecedora da compreensão
do leitor e da análise, assinalando que, nesse processo, o pesquisador deve manter os
conteúdos das falas e a seqüencialidade na qual foram relatadas.
Quando da edição, outro importante aspecto a ser considerado é a garantia do
anonimato do narrador, a troca de nomes das pessoas citadas na narrativa, de
instituições e das atividades de trabalho dos personagens que fizeram parte da história
construída. Com a edição, as informações passam por um tratamento e se transformam
em dados.
Já na década de 1980, Runyan (1984) abordou a análise das narrativas de vida,
sugerindo que o pesquisador inicialmente deve refletir sobre os conteúdos narrados,
buscando identificar os tópicos relativos às especificidades do narrador, às ações, às
experiências relatadas, aos detalhes referentes ao ambiente, ao contexto histórico, à
influência da história social na trajetória de vida do narrador e aos demais conteúdos
que, porventura, constituam outros tópicos. Em seguida, o pesquisador deve refletir
sobre as relações entre os conteúdos e os objetivos da pesquisa.
Observa-se que a sugestão de Runyan, ainda que muito genérica, aponta para a
classificação dos conteúdos relatados, procedimento que gera a organização do material
verbal em temas, tradicionalmente denominados de categorias. Ryan e Bernard (2003)
salientam que sem a identificação de categorias temáticas, um pesquisador qualitativo
não terá, na sua investigação, dados para descrever, para comparar e para explicar. Em
suma, pode-se dizer que não poderá realizar uma interpretação científica.
Com relação à análise dos conteúdos de uma narrativa, Ryan e Bernard (2003)
citam que a análise de textos narrativos requer a identificação de temas e sub-temas; a
classificação de conteúdos identificados em temas e sub-temas; a tomada de decisão a
respeito de quais dos temas identificados são relevantes para os objetivos da pesquisa e
a vinculação dos temas às orientações teóricas que fundamentam a análise.
Os temas, forma de classificar conteúdos, são concebidos por Ryan e Bernard
(2003) como construtos abstratos que relacionam expressões contidas em um texto,
Evenice Santos Chaves O racismo na Trajetória Escolar e Profissional... 95

delimitam conexões entre as mesmas e são representativos dos conceitos a serem


empregados pelo pesquisador, na descrição. Ryan e Bernard (2003) aditam que os temas
advêm da compreensão teórica que o pesquisador formula antes da coleta de
informações e, também, da própria situação de coleta, mas eles não podem ser
identificados fora do processo de análise.
Para os referidos metodólogos, a delimitação de temas em narrativas deve ser
conduzida por um método. Sugerem que, inicialmente, o pesquisador realize leituras do
material escrito para identificá-los, empregando técnicas como, por exemplo: repetição,
isto é, a apreensão de conteúdos que por várias vezes aparecem; similaridades e
diferenças, ou seja, a diferenciação na qualidade dos conteúdos; identificação de
transições, isto é, o reconhecimento de dicas indicativas de mudanças temáticas contidas
no próprio texto em análise, como parágrafos, pausas e frases; a identificação dos dados
ausentes, ou seja, de lacunas, do que não foi dito. O passo seguinte consiste na
classificação e no agrupamento dos conteúdos das falas em temas e sub-temas. Após
essa etapa, o pesquisador deve proceder ao exame dos dados qualitativos à luz da teoria,
ou seja, elaborar as interpretações.
Para Smith (2000), há etapas na pesquisa orientada por narrativas semelhantes
àquelas pertinentes à análise de conteúdo. Ancorado em contribuições de diferentes
pesquisadores, propõe o seguinte modelo:
A organização das informações implica em um sistema de códigos, o qual
especifica quais, dentre o material disponível, devem ser selecionadas. Tal sistema de
códigos envolve especificações de unidades do material a ser analisado, dimensões
orientadoras da classificação e da estruturação de critérios.
As unidades do material são classificadas em unidade de texto e unidade de
registro. A primeira diz respeito a todo o conjunto do material coletado que será objeto
de análise, enquanto a unidade de registro refere-se a segmentos do texto expressos em
palavras, frases ou em várias sentenças que delimitam os temas, considerados pelo autor
como o aspecto mais importante do texto. A partir da unidade de texto, cada tema deve
ser identificado com base em critérios e, em seguida, classificado. Os critérios
formulados devem propiciar a distinção entre as unidades de registro.
Embora Runyan (1984) já tenha exposto, na década de 1980, especificações que
orientem a análise na pesquisa qualitativa, Ryan e Bernard (2003) afirmam que os
Evenice Santos Chaves O racismo na Trajetória Escolar e Profissional... 96

pesquisadores raramente descrevem em seus artigos como procedem para identificar


temas nas pesquisas qualitativas.
Do exposto até então, observa-se que as metodologias qualitativas não dispõem
de um modelo unitário para ser empregado na análise das informações coletadas.
Contudo, estão disponíveis orientações teórico-metodológicas, as quais podem ser
empregadas na construção de um caminho metodológico a ser seguido, quando da
realização de uma investigação científica.
A presente pesquisa requereu interpretações de falas, efetuadas a partir de
contribuições dos autores anteriormente citados e da especificação de critérios próprios,
emergentes no processo de organização e análise dos dados.
Para além da coleta de informações, da análise e da interpretação dos dados, é
relevante, na pesquisa qualitativa, a avaliação metodológica do que foi construído
durante o processo de investigação.

3.7. A avaliação da pesquisa qualitativa


Gaskell e Bauer (2003) chamam atenção para o fato de que nas pesquisas
qualitativas os critérios a serem empregados para avaliá-las devem ser qualitativos e não
os relativos às pesquisas quantitativas. Citam o método da triangulação, a reflexividade
e a transparência dos procedimentos como critérios indicadores de confiabilidade, além
da surpresa, como um indicador de relevância da pesquisa.
Conforme Gaskell e Bauer (2003), a triangulação significa o emprego de mais de
uma perspectiva na realização da pesquisa, o que produz as reflexões do pesquisador
sobre os resultados encontrados, em consonância com os objetivos da investigação. Isso
demonstrará contradições e inconsistências e exigirá uma avaliação sobre a origem das
diferenças. Afirmam que inconsistências podem decorrer de limitações metodológicas e,
também, de diferentes ângulos sobre os quais uma dada questão foi enfocada.
Ainda com relação a indicadores de confiabilidade, Gaskell e Bauer (2003)
mencionam que os critérios de transparência e clareza nos procedimentos se referem à
descrição pormenorizada de tudo que compõe o método. Essa forma de proceder
permite a avaliação de cada etapa da pesquisa, assim como a possibilidade do emprego
do método por outros pesquisadores.
De acordo Gaskell e Bauer (2003), a surpresa como indício de relevância da
Evenice Santos Chaves O racismo na Trajetória Escolar e Profissional... 97

pesquisa diz respeito a divergências que resultados obtidos apontam com relação a
expectativas teóricas do pesquisador ou a algum ponto de vista do denominado senso
comum. Para Gaskell e Bauer (2003), esse critério evita que o estudioso empregue nas
interpretações apenas evidências seletivas, compatíveis com suas expectativas, e
introduz, como tarefa, a realização de uma discussão sobre a confirmação ou não de
expectativas teóricas ou do senso comum, o que contribui para a construção teórica.
Priorizando os referenciais teórico-metodológicos descritos; considerando que a
função comunicativa da linguagem permite que os participantes/informantes organizem
suas falas em narrativas, via de expressão das suas experiências de vida e interpretações
sobre acontecimentos; considerando o que cada participante/informante selecionou
como significativo no momento das interações com a pesquisadora e no momento de
reflexividade exigidos durante todo o processo de coleta das informações, construiu-se
um método para nortear o presente estudo, o qual destaca a processualidade da vida de
cada participante/informante e as significações que atribuíram às ocorrências passíveis
de análise e de inteligibilidade científica, dada:
• A competência humana em elaborar uma compreensão sobre as próprias
experiências e os fenômenos sociais.
• A competência humana em criar significados para os fenômenos sociais e para
as suas experiências.
• A competência humana em empregar a linguagem e, através da narrativa, relatar
sobre aspectos de sua vida, a partir do que selecionou como significativo em um
momento específico.
• A existência de recursos metodológicos que permitem transformar práticas
discursivas sobre eventos e acontecimentos da vida cotidiana em conhecimento
científico.
Desse modo, o relato verbal como forma simbólica que expressa um conjunto de
conteúdos perpassados por significações sociais, veiculadas e atualizadas na cultura, foi
foco de análise, objetivando revelar processos sociais e psicológicos produtores de um
entendimento sobre o racismo contra o negro.
CAPÍTULO 4

MÉTODO

Bauer, Gaskell e Allum (2003) argumentam que a pesquisa qualitativa obteve


independência científica e já fez superar a visão tradicional de que representava apenas
um tipo de estudo exploratório. Esses metodólogos enfatizam que, na atualidade, esse
tipo de investigação é academicamente considerado um empreendimento de pesquisa
autônomo. Isso significa dizer que não mais caminha à sombra de outras modalidades
de pesquisa, nem é realizada a partir de critérios inerentes às metodologias quantitativas.
Tal autonomia, no entanto, requer de qualquer pesquisador, que realiza uma
investigação de natureza qualitativa, a descrição detalhada do método empregado na
condução do estudo. Neste capítulo, serão descritas as etapas que compuseram o método
orientador desta pesquisa.

4.1. O estudo de caso como estratégia de pesquisa


Runyan (1984) adverte que o Estudo de Caso não é um método para a coleta de
informações, porém uma estratégia que orienta a organização e a apresentação de dados
relativos a uma pessoa e suas circunstâncias de vida. Acrescenta que essa estratégia de
pesquisa possibilita a interpretação de informações pormenorizadas sobre uma cultura,
um evento ou uma pessoa. Para tal, salienta o estudioso, é necessário o emprego de
várias formas de coleta das informações.
Meyer (2001) afirma que o Estudo de Caso consiste na minuciosa investigação
da pessoa ou de grupos sociais, a qual propicia a análise de contextos e de processos
inerentes ao objeto em estudo. Runyan (1984) o conceitua como o conjunto sistemático
e detalhado de informações sobre uma pessoa, cuja unidade de análise é a sua própria
vida. Coloca que a mesma pode ser estudada através da reconstrução de aspectos da
história individual, da síntese das evidências obtidas através de diferentes fontes e das
interpretações decorrentes.
Apesar da distância temporal entre as formulações dos autores acima abordados,
Evenice Santos Chaves O racismo na Trajetória Escolar e Profissional... 99

constata-se que alguns aspectos delimitadores da peculiaridade do Estudo de Caso estão


presentes em Runyan (1984) e em Meyer (2001): o detalhamento das informações que
propiciam dados pormenorizados sobre o objeto em estudo e a compreensão do Estudo
de Caso como pertinente à investigação da singularidade.
Patton (2002) enfatiza que, em um Estudo de Caso, a análise qualitativa constitui
um modo específico de coletar informações, organizar dados e analisá-los, de forma que
é um processo, do qual resulta um produto: o caso estudado. Runyan (1984) menciona
que a estratégia do Estudo de Caso é indicada para as pesquisas que objetivam
compreender um problema específico e, também, para aquelas cuja especificidade é a
ação prática.
Meyer (2001) assinala que apesar do Estudo de Caso ser amplamente empregado
nas Ciências Sociais, as publicações são metodologicamente limitadas, porquanto os
pesquisadores não descrevem em detalhes as decisões que tomam para estruturarem as
formas de coleta de informações, para analisarem, interpretarem os dados e avaliarem as
suas pesquisas. Gaskell e Bauer (2003) defendem que a descrição dessas decisões é
importante porque propicia credibilidade pública, estabelece referências para discussões
construtivas e colabora no processo de formação de novos pesquisadores.
Meyer (2001) recomenda que a apresentação de um Estudo de Caso especifique
as decisões que orientaram a seleção dos casos, o número de casos envolvidos, as
técnicas e/ou os instrumentos empregados na coleta das informações, as formas através
das quais os dados foram analisados e interpretados, como também os procedimentos
empregados na avaliação da investigação.
Na verdade, Meyer (2001) propõe que o Estudo de Caso especifique os critérios
científicos utilizados em todos os momentos da pesquisa. Sem dúvida, tal recomendação
contribui para a consolidação do Estudo de Caso como relevante estratégia de pesquisa,
que pode vir a colaborar na compreensão de fenômenos sociais, dos processos e dos
mecanismos psicológicos.
Nesta pesquisa, empregou-se o Estudo de Caso como estratégia, pois ele se
compatibilizava com o objetivo proposto, o qual priorizava: a singularidade de aspectos
da cultura brasileira como criadora e mantenedora do racismo; os eventos da vida diária
que perpassaram a trajetória de vida das participantes/informantes e mantinham inter-
relações com o racismo contra o negro, numa cultura localizada; as particularidades
Evenice Santos Chaves O racismo na Trajetória Escolar e Profissional... 100

presentes no percurso existencial de pessoas vinculadas a diferentes etnias, socialmente


construídas, e às singularidades de cada participante/informante.

4.2. A seleção dos casos


Segundo Meyer (2001), a definição do número de casos, na pesquisa qualitativa,
não é orientada por amostragens estatísticas, mas pela escolha intencional de casos que
preencham categorias teóricas e forneçam exemplares de tipos polares. Isso equivale
dizer que a referida escolha é orientada pelas relevâncias das informações que podem
ser fornecidas pelas participantes/informantes sobre o fenômeno em estudo e, no caso
de pesquisas focalizadas no racismo contra o negro, as polaridades cromáticas são
fundamentais.
Apesar da intencionalidade do pesquisador operar na seleção de casos, Meyer
(2001) sugere a especificação dos critérios que subsidiam a escolha dos mesmos.

4.2.1. Critérios que orientaram a seleção dos casos


Os critérios empregados para a seleção dos casos também orientaram a definição
do número de casos.
Os critérios para garantir alguma similaridade entre as participantes/informantes
foram: ser brasileira; residir na mesma cidade; ter como endereço principal a mesma
cidade onde a maior parte do ciclo de vida já vivido transcorreu; ter concluído o curso
de mestrado; exercer a docência no ensino superior na universidade pública há, pelo
menos, cinco anos e aceitar voluntariamente participar da pesquisa.
Os critérios cromáticos empregados para definir diferenças foram: ser branco e o
ser negro (preto e pardo), conforme a definição social fenotípica que diferencia as
pessoas no Brasil e embasam o racismo no nosso país (cor da pele, tipo de cabelo,
formato do nariz e dos lábios) e estarem lotadas em diferentes departamentos.

4.3. O número de casos


O racismo como um processo relacional não consiste em uma questão apenas do
negro e, por isso, a presente pesquisa englobou um caso representado por pessoa de cor
branca, um por uma pessoa de cor preta e outro por uma pessoa de cor parda,
perfazendo um total de três casos.
Evenice Santos Chaves O racismo na Trajetória Escolar e Profissional... 101

4.4. As participantes/informantes
A partir dos critérios acima descritos, três mulheres compuseram o universo da
pesquisa: uma, definida socialmente como parda, apresentando, como características
fenotípicas, pele marrom escura, cabelos crespos e negros, lábios e nariz volumosos;
outra, socialmente definida como branca, apresentando, como características
fenotípicas, pele alva, cabelos lisos e negros, nariz afilado e lábios finos; a terceira,
socialmente definida como preta, apresentando, como características fenotípicas, pele
negra, cabelos encarapinhados, nariz achatado e lábios grossos. Desse modo, as
participantes/informantes representaram tipos polares brasileiros: branco e negro (preto
e pardo).

4.5. Materiais e equipamentos


Os materiais e equipamentos empregados durante a realização da pesquisa foram
um gravador manual; um microcomputador; uma impressora; disquetes; papel para
impressão; tinta para impressora; canetas esferográficas e marcadoras de texto.
Durante a coleta das informações, foi utilizado um gravador manual, para a
gravação dos conteúdos das entrevistas narrativas, e um disquete, para o preenchimento
das informações relativas aos instrumentos: questionário sócio-demográfico e lista de
complementação de frases.

4.6. Técnica empregada: a entrevista narrativa


De acordo com Jovchelovitch e Bauer (2003), a técnica da entrevista narrativa
objetiva gerar histórias e prioriza o ponto de vista do participante/informante sobre o
relato de experiências e acontecimentos concretizados na sua trajetória de vida e nos
contextos sociais, onde esteve imerso e atuou.
A entrevista narrativa configura-se como uma situação interativa entre o(a)
entrevistador(a) e o(a) entrevistado(a), engloba poucas falas do(a) pesquisador(a) e
muitas do(a) participante/informante. Durante a sua realização, compete ao pesquisador
apenas introduzir temas e questões, os quais podem ser definidos a priori, a partir da
literatura consultada, ou a posteriori, como decorrência de temática introduzida pelo(a)
participante/informante durante a coleta de informações. O(a) entrevistado(a) responde
aos temas e questões propostos pelo investigador, mas decide o que irá relatar e como o
Evenice Santos Chaves O racismo na Trajetória Escolar e Profissional... 102

fará (Jovchelovitch & Bauer, 2003).

4.6.1. Temas constitutivos da entrevista narrativa


Os temas foram previamente formulados e estruturados pela pesquisadora, a
partir da revisão da literatura sobre o racismo contra o negro, de sua experiência
profissional e das informações que definiu como necessárias para responder aos
objetivos do estudo. Os mesmos foram:
A) Vida escolar: na infância, na adolescência, na juventude e na idade adulta.
B) Dificuldades sociais que emergiram durante a trajetória escolar: na infância,
na adolescência, na juventude e na idade adulta.
C) Facilidades sociais que emergiram durante a trajetória escolar: na infância, na
adolescência, na juventude e na idade adulta.
D) Vida familiar: na infância, na adolescência, na juventude e na idade adulta.
E) Experiência com o racismo contra o negro na escola: na infância, na
adolescência, na juventude e na idade adulta.
F) Experiência com o racismo contra o negro em outros espaços da vida
cotidiana: na infância, na adolescência, na juventude e na idade adulta.
G) Mecanismos de enfrentamento às adversidades e, especificamente, ao
racismo contra o negro que empregou ou observou nos diferentes momentos da vida:
infância, adolescência, juventude e idade adulta.
H) Apoios fornecidos por pessoas significativas para a superação de dificuldades
que emergiram durante a trajetória de vida: na infância, na adolescência, na juventude e
na idade adulta.
I) Ingresso no ensino de terceiro grau.
J) Motivos que contribuíram para a escolha do curso de graduação realizado.
L) Facilidades que propiciaram a conclusão do curso de graduação.
M) Dificuldades enfrentadas durante o curso de graduação e as formas de
superação.
N) Realização de cursos de pós-graduação.
O) Motivo da escolha da atividade profissional como docente no ensino
superior.
P) Ingresso no mercado de trabalho docente.
Evenice Santos Chaves O racismo na Trajetória Escolar e Profissional... 103

Q) Habilidades pessoais que contribuíram para a inserção no mercado de


trabalho docente.
R) Facilidades sociais que propiciaram a inserção no mercado de trabalho
docente.
S) Trajetória profissional como docente.
T) Relações profissionais no exercício da docência de terceiro grau.
U) Relações de amizade na universidade.
V) Satisfações na profissão.
X) Insatisfações na profissão.
Z) Projeto profissional para o futuro.
W) Significado do racismo contra o negro na própria vida.

4.7. Instrumentos empregados na coleta de informações


Os instrumentos diferenciam-se das técnicas de pesquisa porque propiciam a
coleta de informações sem interação direta entre pesquisador e participante/informante.
Nesta pesquisa, o emprego adicional de instrumentos cumpriu um requisito da
estratégia do Estudo de Caso: a produção de informações intensivas, obtidas através de
diferentes fontes.
Dois instrumentos foram empregados: o questionário de informações sócio-
demográficas e a lista de complementação de frases.

4.7.1. O questionário sócio-demográfico


O questionário, tradicional instrumento empregado em pesquisas, é conceituado
por Martins e Lintz (2000) como “um conjunto ordenado e consistente de perguntas a
respeito de variáveis, e situações, que se deseja medir, ou descrever” (p.50). Muchelli
(1979) expõe que o questionário descortina, de forma direta ou indireta, o fenômeno em
estudo.
Neste trabalho, empregou-se um questionário de auto-aplicação, com perguntas
abertas e fechadas, objetivando o levantamento de informações sócio-demográficas, que
individualizou as participantes/informantes. As dimensões constitutivas do instrumento
foram: dados pessoais da participante/informante; dos pais, se ainda vivos; composição
familiar; moradia; escolaridade e renda.
Evenice Santos Chaves O racismo na Trajetória Escolar e Profissional... 104

Os itens constitutivos do questionário foram:


Identificação pessoal (idade, sexo, gênero, cor, escolaridade, renda, atividade(s)
de trabalho, naturalidade, cidade onde reside na atualidade).
Identificação dos pais (idade, cor, estado civil, escolaridade, profissão, bairro em
que residem na atualidade, tipo da residência e número de residentes).
Residência (bairros, tipos de residências, número de residentes, com quem
residiu, número de cômodos das residências onde viveu com os pais e onde mora,
espaço ocupado pelos residentes nos cômodos e grau de parentesco, considerando-se
onde morou durante a infância, a adolescência, a juventude e a idade adulta).
Tipo das escolas que a participante/informante freqüentou.
Pessoas e/ou as instituições que financiaram os seus estudos.

4.7.2. A lista de complementação de frases


Segundo Rey e Martínez (1989), a lista de complementação de frases é um
instrumento que proporciona a coleta de indicadores sobre o ponto de vista de uma
pessoa acerca de um determinado tema. Rey (1999) assinala que tal instrumento permite
ao participante/informante elaborar, de forma reflexiva e não imediata, os conteúdos
para completar as frases propostas pelo(a) pesquisador(a).
A lista de complementação de frases foi empregada para a obtenção de
informações sobre concepções de cada participante/informante acerca do racismo contra
o negro; a abrangência do referido fenômeno no Brasil; a(s) forma(s) de expressão do
racismo contra o negro em diferentes espaços e relacionamentos interpessoais; o
significado do racismo contra o negro na vida das participantes/informantes.
A lista, construída pela pesquisadora, foi composta por onze itens, formulados a
partir da revisão da literatura sobre o racismo contra o negro, de onde decorreram as
temáticas constitutivas de cada item, articuladas com os objetivos desta pesquisa. Os
itens foram:
O racismo é ___________________________________________________
O racismo na minha vida _________________________________________
O racismo na minha família de origem ______________________________
O racismo na família que constituí _________________________________
O racismo no Brasil _____________________________________________
Evenice Santos Chaves O racismo na Trajetória Escolar e Profissional... 105

O racismo na cidade onde resido ___________________________________


O racismo no bairro onde resido____________________________________
O racismo nas escolas que freqüentei________________________________
O racismo na universidade ________________________________________
O racismo no local onde trabalho ___________________________________
O racismo nas relações sociais em geral______________________________

4.8. Locais onde foram realizadas as entrevistas narrativas


Cada entrevistada escolheu o local de realização da entrevista, pela facilidade
para os seus deslocamentos: uma foi realizada no local de trabalho e duas em uma
residência, onde só estavam presentes a entrevistada e a entrevistadora.

4.9. Procedimentos empregados


Foram utilizados vários procedimentos, os quais serão especificados nos tópicos
seguintes.

4.9.1. Na coleta de informações


Inicialmente, a pesquisadora fez contato, separadamente, com três docentes,
lotadas em diferentes departamentos de uma universidade pública federal. Nesse,
descreveu os objetivos da pesquisa e solicitou as suas colaborações, informando-lhes
acerca do anonimato. Após as adesões e definições dos locais para a realização das
entrevistas, a pesquisadora e cada uma das participantes/informantes definiram a data e
o horário para a realização das entrevistas. As mesmas foram gravadas.
Finda cada entrevista narrativa, solicitou-se a colaboração das entrevistadas para
preencherem, em suas residências, o questionário sócio-demográfico, bem como a lista
de complementação de frases. Em seguida, entregou a cada uma delas um disquete
contendo os instrumentos de pesquisa, solicitando que o devolvesse tão logo concluído
o preenchimento dos mesmos. Não houve limite de tempo para a execução da tarefa.

4.9.2. Na transformação dos conteúdos referentes aos itens do questionário


sócio-demográfico em dados
Considerando-se que a elaboração realizada por um(a) pesquisador(a) sobre
Evenice Santos Chaves O racismo na Trajetória Escolar e Profissional... 106

qualquer informação coletada a transforma em dados, realizou-se uma articulação


seqüencial de itens constitutivos do questionário, o que conferiu aos mesmos o lugar de
dados. A seqüencialidade empregada para descrevê-los foi: nome1; sexo; gênero; idade;
cor; estado civil; profissão; renda; tipos de escola que freqüentou; escolaridade;
profissão dos pais; escolaridade dos pais; com quem residiu durante a infância e a
adolescência; tipo de casa; tamanho da casa; ocupação dos cômodos; localização da
residência em termos de bairro e cidade; com quem residiu durante a juventude; tipo de
casa; tamanho da casa; ocupação dos cômodos; localização da residência em termos de
bairro e cidade; com quem residia no momento da coleta de informações; tipo de casa;
tamanho da casa; ocupação dos cômodos e localização da residência, em termos de
bairro e cidade.
No contexto da metodologia empregada, o questionário sócio-demográfico visou
à descrição das participantes/informantes, a partir dos seus pontos de vista, e ao suporte
para a triangulação entre dados coletados pelas diferentes fontes.

4.9.3. Na descrição das participantes/informantes


Na descrição das participantes/informantes foram utilizados os seguintes dados
do questionário sócio-demográfico, nessa seqüência: sexo; gênero; cor autodeclarada;
idade das participantes/informantes; cor, ocupação e escolaridade dos pais; profissão e
local de trabalho das participantes/informantes; tipo de moradia atual e com quem
reside.

4.9.4. No tratamento das informações coletadas na entrevista narrativa


Finalizado cada encontro, a fita gravada foi transcrita por uma auxiliar de
pesquisa, da mesma área de estudos da pesquisadora e, portanto, sujeita aos mesmos
princípios éticos que norteiam a manipulação de informações de pessoas que atuam
como participantes de pesquisas. Em seguida, procedeu-se à conferência da transcrição,
que consistiu na escuta da fita e, concomitantemente, na leitura do texto inicialmente
transcrito. Esse trabalho foi realizado conjuntamente pela pesquisadora e pela auxiliar
que fez a transcrição inicial. O critério empregado para considerar como correta a
transcrição foi a concordância entre a pesquisadora e a auxiliar de pesquisa, com relação

1
O nome atribuído a cada participante/informante é fictício.
Evenice Santos Chaves O racismo na Trajetória Escolar e Profissional... 107

ao conteúdo escutado: diante de acordo, a transcrição inicial foi considerada como


correta e diante de desacordos o trecho da fita foi ouvido tantas vezes quantas
necessárias, até que chegassem a um consenso, com relação às verbalizações gravadas.
Posteriormente, foi realizada a revisão da conferência da transcrição, também
conjuntamente pela pesquisadora e pela auxiliar de pesquisa, obedecendo-se ao critério
empregado na etapa anterior. Esse procedimento visou a garantir maior fidelidade às
transcrições.
Após a revisão da conferência da transcrição, o registro digitado das falas foi
considerado como informações oriundas das entrevistas narrativas, cujos conteúdos
refletiam aspectos dos percursos de vida já vividos pelas participantes/informantes,
produzidos na situação de interação com a pesquisadora.

4.9.5. Na edição dos conteúdos referentes às informações coletadas através


das entrevistas narrativas
O processo de transformação das informações em dados foi realizado através da
edição dos conteúdos transcritos, referentes às falas de cada participante/informante. A
edição orientou-se pelos seguintes critérios: manutenção dos conteúdos relatados pelas
entrevistadas; manutenção da seqüencialidade das histórias contadas; garantia do
anonimato das participantes/informantes, através da substituição de todos os nomes que
pudessem levar às suas identificações ou de outras pessoas que citou; substituição dos
nomes de cidades, ruas e algumas instituições; eliminação de palavras ou trechos
repetitivos que não acrescentavam nenhum conteúdo novo às histórias contadas;
correção de palavras, concordâncias verbais e nominais, a partir da língua portuguesa e
de sua gramática.
A transcrição editada transformou a linguagem falada em linguagem escrita, as
informações em dados e buscou manter o anonimato de cada participante/informante.

4.9.6. No processo de construção do sistema classificatório


Os temas e subtemas identificados decorreram dos conteúdos relatados pelas
participantes/informantes, durante as entrevistas narrativas. Em cada uma delas, um
conjunto de dados resultou em um sistema de categorias, observando-se que alguns
temas e subtemas foram semelhantes nas três entrevistas realizadas.
Evenice Santos Chaves O racismo na Trajetória Escolar e Profissional... 108

Na construção do sistema classificatório, a identificação das unidades de registro


orientou-se pelo critério de que os conteúdos de cada uma delas deveriam ser diferentes
das demais, ou seja, as unidades de registro foram mutuamente exclusivas.
Cada conjunto de dados de uma entrevista foi classificado separadamente, tendo-
se que a classificação dos mesmos, provenientes das entrevistas narrativas, orientou-se
pelo seguinte método2.
Primeiramente, foram realizadas várias leituras da entrevista editada. Depois,
foram identificadas as unidades de registro, segmentos de conteúdos representativos de
um episódio (um conjunto de palavras, frases ou sentenças, independente do tamanho
das mesmas, que encerrava um significado social). Posteriormente, agruparam-se os
episódios, empregando-se a técnica de similaridades e diferenças. Em seguida, os
agrupamentos foram classificados em temas (construtos que integravam subitens
enquanto dimensões constitutivas do mesmo) e subtemas (dimensões constituídas por
episódios relacionados a um dado tema). Acoplaram-se demarcações de períodos de
desenvolvimento das participantes/informantes aos episódios, com o fim de identificar o
momento, nos seus ciclos de vida já vividos, em que os eventos relatados ocorreram.

4.9.7. Na análise e interpretação dos dados das entrevistas narrativas


A partir da identificação da relevância dos episódios, constitutivos de temas e
subtemas, para os objetivos do estudo, foram identificados e selecionados aqueles,
como também os fenômenos emergentes para as análises e as interpretações. Atribuiu-
se, então, um sentido teórico aos dados.

4.9.8. Na tranformação dos conteúdos da lista de complementação de frases


em dados e a análise
A partir dos conteúdos adicionados pelas participantes/informantes aos itens
propostos pela pesquisadora, três categorias foram construídas.
Denominou-se a primeira categoria construída de “a expressão do racismo em
diferentes localidades”, a qual agrupou os conteúdos acrescentados pelas entrevistadas
aos seguintes itens:

2
Na articulação desse método, contribuições de autores como Ryan e Bernard (2003), Runyan (1984) e
Smith (2002) foram imprescindíveis.
Evenice Santos Chaves O racismo na Trajetória Escolar e Profissional... 109

‘O racismo no Brasil...’.
‘O racismo na cidade onde resido...’.
‘O racismo no bairro onde resido...’.
Intitulou-se a segunda categoria de “o racismo contra o negro em instituições
sociais”, a qual agrupou os conteúdos aditados pelas participantes/informantes aos itens
abaixo especificados:
‘O racismo na minha família de origem...’.
‘O racismo na família que constituí...’.
‘O racismo nas escolas que freqüentei...’.
‘O racismo na universidade...’.
‘O racismo no local onde trabalho...’.
Denominou-se “o racismo como fenômeno relacional” à terceira categoria,
agrupando-se na mesma os conteúdos acrescentados pelas participantes/informantes aos
itens a seguir:
‘O racismo nas relações sociais em geral...’.
‘O racismo na minha vida...’.
‘O racismo é...’.
Conteúdos escritos em cada item, que poderiam compor mais de uma frase,
foram decompostos em frases.
Os dados foram analisados de acordo com o procedimento empregado na análise
daqueles decorrentes da entrevista narrativa.

4.9.9. Na triangulação dos dados


A partir dos dados advindos da técnica e dos instrumentos empregados, foram
efetuadas comparações intra-participante/informante, com o intuito de se identificar e
analisar consistências, complementaridades e contradições inter-dados.
CAPÍTULO 5

A ORGANIZAÇÃO DOS DADOS DA ENTREVISTA


NARRATIVA

Neste estudo, a entrevista narrativa abrangeu aspectos do mundo experiencial


das participantes/informantes, necessários para responder-se aos objetivos do estudo.
O caráter processual dos dados gerados pela entrevista narrativa requisitou uma base
teórica para subsidiar a construção do sistema de classificação dos conteúdos.

5.1. Suporte teórico


Runyan (1984) propôs um enfoque interacionista para orientar o estudo de vidas,
o qual denominou de curso de vida. Conforme o citado estudioso, o curso de vida diz
respeito a uma seqüência de eventos e de experiências que ocorrem do nascimento à
morte de um ser humano, na qual as situações sociais encontradas e as condições
pessoais influenciam-se reciprocamente.
Segundo Runyan (1984), o curso de vida tem duas dimensões: uma, temporal,
relacionada aos processos através dos quais as situações sociais, as condições pessoais e
os comportamentos influenciam-se mutuamente e outra, ecológica, vinculada aos
movimentos das pessoas em um mundo perpassado pela história e pela estrutura social.
Esse pesquisador salientou que uma orientação de curso de vida pode ser
empregada para analisar a experiência pessoal no transcorrer do tempo e para investigar
processos indicativos do movimento das pessoas em uma seqüência de acontecimentos.
Propôs, então, uma estratégia que denominou de ‘enfoque estágio-estado’, para a análise
do curso da experiência humana em domínios específicos como, por exemplo, a
trajetória educacional e a trajetória ocupacional, e para a análise de rotas ou processos
que ocorrem em um curso de vida, a partir de uma situação inicial.
Evenice Santos Chaves O racismo na Trajetória Escolar e Profissional... 111

Runyan (1984) mencionou que na referida estratégia o curso de vida conforma


uma seqüência composta por estágios e estados. Conceituou estágios como períodos
constitutivos de um processo e estados como as maneiras das pessoas comportarem-se
de um dado modo, em circunstâncias históricas e sociais específicas, dentro de cada
estágio. Além disso, afirmou que a demarcação de um conjunto de estágios possibilita a
classificação dos movimentos de seres humanos em seqüências particulares de estados.
As construções de Runyan (1984) sobre o curso de vida como orientação teórica
para o estudo das experiências humanas, como também a estratégia estágio-estado,
contemplam a dimensão macro-social, a micro-social e o modo singular como cada
pessoa atua no mundo das relações interpessoais. Por isso, a formulação do autor
constitui-se em um importante referencial para a organização de dados de natureza
biográfica.
Nesta pesquisa, o referencial elaborado pelo pesquisador supracitado subsidiou o
sistema de classificação dos conteúdos advindos das entrevistas narrativas.

5.2. A organização dos dados


Os dados foram organizados de forma processual, identificando-se categorias e
subcategorias ligadas a cada um dos temas. Categorias e subcategorias constituíram-se
de episódios, assinalando-se em que momento do desenvolvimento das entrevistadas
ocorreram os acontecimentos e as reflexões relatadas.
Para tal, definiram-se marcadores temporais a partir da noção de estágios, os quais
foram delimitados pelos seguintes períodos do desenvolvimento humano: início do ciclo
de vida, conceituado como o período compreendido entre a gestação e o momento do
nascimento das entrevistadas; infância, conceituada como o período composto por
diferentes momentos, o qual iniciou no nascimento das entrevistadas e terminou com os
seus ingresso na segunda etapa do ensino fundamental; adolescência, conceituada como
o período composto por diferentes momentos, o qual transcorreu entre o ingresso das
entrevistadas na segunda etapa do ensino fundamental e a conclusão do mesmo;
juventude, conceituada como o período composto por diferentes momentos, iniciado
com o ingresso das entrevistadas no ensino superior, prolongando-se até a conclusão de
um curso de graduação; idade adulta, conceituada como o período composto por
diferentes momentos, que se estendeu da conclusão de um curso superior, pelas
Evenice Santos Chaves O racismo na Trajetória Escolar e Profissional... 112

entrevistadas, até o momento da coleta de informações; ciclo de vida já vivido,


conceituado como um período composto por diferentes momentos, o qual cobria todo o
percurso de vida já transcorrido pelas entrevistadas, até o momento da coleta de
informações.
Empregaram-se graus escolares como critério para demarcar a mudança de um
estágio de desenvolvimento para outro, porque a trajetória escolar foi relevante foco de
análise e o percurso profissional das entrevistadas dependeu da escolarização.
Em alguns episódios, os conteúdos relatados ocorreram em um momento de um
estágio; em outros, durante todo o estágio e, ainda, em outros, perpassaram estágios.
Houve conteúdos não classificáveis nos períodos de desenvolvimento definidos, aos
quais se aditou o termo ‘sem especificação temporal’.
Em suma, organizou-se o sistema de classificação de conteúdos pontuando-se os
estágios de desenvolvimento e os estados contidos em cada um deles.

5.3. A elaboração do sistema classificatório


Construiu-se um sistema classificatório para cada conjunto de dados referentes a
um tema, em cada entrevista narrativa. Os conteúdos constitutivos dos episódios foram
mutuamente exclusivos e, depois de classificados, conformaram estados contidos em
cada estágio.

5.3.1. Temas emergentes


Levando-se em conta o conjunto de dados advindos das entrevistas narrativas,
onze temas foram identificados: família; escola; trabalho; militância; relações sociais;
dificuldades; facilidades; lazer; racismo; estratégias de enfrentamento e pessoalidade.
Os temas consolidaram construtos e cada um abrangeu categorias ou categorias e
subcategorias, os respectivos episódios e marcadores temporais. A conceituação dos
temas buscou englobar as dimensões contidas nas categorias, como se segue:
Família: conjunto de pessoas com diferentes singularidades, que compartilhavam
a mesma residência, o cotidiano de diferentes modos, eram unidas por laços de
consangüinidade e/ou de afetividade, mantinham interações sociais contínuas ou
descontínuas, as quais poderiam ser interrompidas por eventos causadores de rupturas.
Escola: instituição social de ensino, público ou privado, que ofereceu condições
Evenice Santos Chaves O racismo na Trajetória Escolar e Profissional... 113

e oportunidades para aquisições acadêmicas e/ou sociais e possibilitou a ocorrência de


interações sociais qualitativamente diferentes entre os membros que dela faziam parte.
Trabalho: atividades remuneradas ou não, ligadas a ocupações e posições sociais
específicas, desempenhadas por uma pessoa, de forma solitária ou grupal, em diferentes
espaços sociais.
Militância: participação de uma pessoa em grupos da sociedade civil, como co-
construtora de agendas e de ações ligadas a movimentos reivindicatórios, os quais visam
ao direito à participação e à inserção de diferentes grupos, em diversos espaços sociais.
Relações interpessoais: relacionamentos humanos qualitativamente diferentes,
sustentados por vários motivos, que propiciam o desenvolvimento de vínculos afetivos
positivos e/ou negativos, sentimentos pessoais de aceitação e/ou rejeição, realização
conjunta de ações, apoio ou afastamento social.
Obstáculos: situações sociais e/ou características pessoais produtoras de
empecilhos, os quais dificultam ou impedem a realização de atividades que levam à
consecução de objetivos.
Facilidades: situações sociais e/ou características pessoais que proporcionam a
realização de atividades e a consecução de objetivos.
Lazer: divertimentos decorrentes da participação de pessoas em atividades
recreativas.
Racismo: modalidade de violência social historicamente elaborada, atrelada à
formação econômica e à etnicidade, manifestada de diferentes formas nas relações
sociais e propiciadora de vivências que repercutem na pessoalidade dos seres humanos.
Estratégias de enfrentamento: padrões de comportamento humano empregados
por qualquer pessoa diante do que significa como dificuldade social e/ou pessoal, com o
intuito de enfrentá-la.
Pessoalidade: aspecto da singularidade de uma pessoa, referente ao modo como
se auto-caracteriza, define preferências, elabora perspectivas de vida e avalia diferentes
instituições, eventos e seres humanos.

5.4. O sistema classificatório decorrente dos dados produzidos pela


entrevista narrativa realizada com a participante/informante preta
A matriz classificatória integrou os temas, as categoriais, as sucategorias e os
Evenice Santos Chaves O racismo na Trajetória Escolar e Profissional... 114

marcadores temporais, como exposto a seguir.

5.4.1. O tema família


Sete categorias decorrem da classificação dos conteúdos interligados ao tema
família: “mudança do local de residência da família de origem”; “inserção social da
família de origem”; “composição familiar na família de origem”; “características
de membros da família de origem”; “atividades de membros da família de
origem”; “perdas” e “reconstruções familiares”. A Figura 5 apresenta um modelo
representativo do tema família.
“Mudança do local de residência na família de origem” é formada por duas
subcategorias:
‘Circunstâncias’, que comporta quatro episódios: um referente à gestação da
mãe da entrevistada; dois referentes ao nascimento da participante/informante, portanto,
ao início do seu ciclo de vida, e um referente à ocorrência que motivou o deslocamento
daquela família para outro local, em um momento da infância da entrevistada.
‘Deslocamento’, que abrange dois episódios relativos à migração da família para
outra cidade, também em um momento da infância da participante/informante.
“Inserção social da família de origem”, inclui três subcategorias:
‘Moradia’, que abarca um episódio referente ao local onde a entrevistada
residiu, de um momento da sua infância a um momento da sua juventude.
‘Meio social’, que engloba cinco episódios: quatro referentes a especificidades
do bairro onde residiu, em um momento da sua infância, e um episódio concernente a
características das pessoas residentes naquele local, de um momento da sua infância até
um momento da juventude.
‘Situação social’, que se constitui de cinco episódios: um referente à
desvantagem educacional de membros da sua família de origem, durante a sua
adolescência; um, sem especificação temporal, relativo ao analfabetismo de seus avós
maternos e vizinhos; dois atinentes ao local de trabalho do avô materno da
participante/informante, sem especificação temporal no seu ciclo de vida já vivido, e um
episódio relativo à ajuda financeira propiciada pela entrevistada a membros da sua
família de origem, de um momento da sua adolescência à juventude.
A categoria “composição familiar da família de origem” inclui cinco
Evenice Santos Chaves O racismo na Trajetória Escolar e Profissional... 115

episódios: quatro referentes às pessoas que criaram a participante/informante, desde a


infância até um momento da sua juventude, e um concernente ao contato que tinha com
a sua mãe, nesse mesmo período de desenvolvimento.
A categoria “características de membros da família de origem” constitui-se
de três subcategorias, todas sem especificação temporal no ciclo de vida já vivido pela
participante/informante, agregando quinze episódios:
‘Avô materno’, com cincos alusivos a aspectos da singularidade da referida
pessoa.
‘Avó materna’, composta por três relativos a particularidades comportamentais
dessa pessoa.
‘Mãe’, abarcando sete concernentes a algumas de suas características singulares.
A categoria “atividades de membros da família de origem” engloba três
subcategorias, totalizando sete episódios:
‘Avô materno’, constituída por um referente à sua ocupação, em um momento
da infância da participante/informante, e, ainda, por três que assinalam outra ocupação
do mesmo, de um momento da infância da entrevistada até outro momento, sem
especificação temporal no seu ciclo de vida já vivido.
‘Avó materna’, formada por um que especifica a ocupação da mesma, em um
momento da infância da entrevistada.
‘Mãe’, englobando um referente à ocupação de sua genitora, da infância até um
momento sem especificação temporal no ciclo de vida da entrevistada, e outro, também
concernente à atividade de trabalho de sua mãe, sem especificação temporal no ciclo de
vida já vivido pela participante/informante.
A categoria “perdas” inclui seis episódios: um sobre o falecimento do avô
materno, em um momento da juventude da entrevistada; dois acerca do falecimento da
mãe, em um momento da sua idade adulta; um atinente ao falecimento da avó materna,
também em um momento da idade adulta da entrevistada, e dois alusivos à sua situação
familiar, na idade adulta.
A categoria “reconstruções familiares”, agrupa três subcategorias, com sete
episódios:
‘Mudança de residência’, constituída de um referente à nova moradia da
participante/informante, em um momento da sua juventude.
Evenice Santos Chaves O racismo na Trajetória Escolar e Profissional... 116

Figura 5. O tema família, categorias, subcategorias e marcadores temporais.


FAMÍLIA

Mudanças do local de residência da família de origem

Circunstâncias

Início do ciclo de vida

Deslocamento

Momento da infância

Inserção social da família de origem

Moradia

Momento da infância/momento da juventude

Meio social

Momento da infância
Momento da infância/momento da juventude

Situação social

Adolescência
Sem especificação temporal
Momento da adolescência/juventude

Composição familiar na família de origem

Infância/momento da juventude
Infância/momento da idade adulta

Características de membros da família de origem

Avô materno

Sem especificação temporal

Avó materna

Sem especificação temporal

Mãe

Sem especificação temporal

Atividades de membros da família de origem

Avô materno

Momento da infância
Momento da infância/sem especificação temporal

Avó materna

Momento da infância

Mãe

Infância/sem especificação temporal


Sem especificação temporal

Perdas

Momento da juventude
Momento da idade adulta
Idade adulta

Reconstruções familiares

Mudança de residência

Momento da juventude LEGENDA:

Partilha de residência Tema

Momento da juventude Categoria


Sem especificação temporal

Família construída Subcategoria

Momento da idade adulta Marcador temporal

Fonte: Entrevista narrativa realizada com a participante/informante preta.


Evenice Santos Chaves O racismo na Trajetória Escolar e Profissional... 117

‘Partilha de residência’ agrupa um concernente às pessoas com quem residiu no


novo local, em um momento da sua juventude; um, referente a características
fenotípicas daquelas pessoas e dois com relação a outros locais onde residiu, sem
especificação temporal no ciclo de vida da entrevistada.
‘Família construída’, formada por um, alusivo à sua situação familiar atual, e
outro sobre membros constitutivos dessa família, todos situados na sua idade adulta.

5.4.2. O tema escola


A classificação dos conteúdos pertinentes a esse tema abrange nove categorias:
“percurso escolar”; “rotinas escolares”; “atividade predileta”; “contribuições
escolares”; “incentivos na trajetória escolar”; “desempenho acadêmico”;
“escolhas”; “interesses” e “conflitos”, conforme se observa na Figura 6.
A categoria “percurso escolar” é composta por quatro subcategorias
abrangendo quarenta e dois episódios:
‘Transcurso no ensino primário’ engloba oito referentes à vida escolar da
participante/informante, durante momentos da sua infância.
‘Transcurso no ensino secundário’, composta por onze sobre a vida acadêmica
da entrevistada, durante a sua adolescência.
‘Transcurso no ensino superior’ abarca doze, que dizem respeito ao trajeto
escolar da participante/informante na sua juventude.
‘Transcurso no ensino de pós-graduação’ inclui onze alusivos à realização de
cursos de graduação e de pós-graduação, em momentos da idade sua adulta.
A categoria “rotinas escolares” agrupa cinco episódios que assinalam norma e
atividades escolares rotineiras, de cunho cívico e religioso, circunscritas a uma escola
que a entrevistada freqüentou, em momentos da sua infância.
A categoria “atividade predileta” inclui um episódio referente ao gosto da
entrevistada por uma disciplina, durante a sua adolescência e juventude.
A categoria “contribuições escolares” abrange cinco episódios: um concernente
a um ganho cognitivo da participante/informante, decorrente da natureza de uma escola
primária que freqüentou durante um momento de sua infância; um que faz menção à
contribuição de uma disciplina do curso secundário no exame vestibular, realizado pela
entrevistada em um momento da sua adolescência, e três outros relativos à importância
Evenice Santos Chaves O racismo na Trajetória Escolar e Profissional... 118

de uma das graduações para a sua vida prática, na idade adulta.


A categoria “incentivos na trajetória escolar” é formada por cinco episódios:
quatro aludem à atividade de monitora que a entrevistada exerceu em uma escola
primária, em um momento de sua infância, e um, situado na sua juventude, acerca do
respeito que angariou em sala de aula, devido às notas que obtinha nas avaliações.

Figura 6. O tema escola, categorias, subcategorias e marcadores temporais.


ESCOLA

Percurso escolar

Transcurso no ensino primário

Momentos da infância

Transcurso no ensino secundário

Adolescência

Transcurso no ensino superior

Juventude
Idade adulta

Transcurso no ensino de pós-graduação

Momentos da idade adulta

Rotinas escolares

Momentos da infância

Atividade predileta

Adolescência/juventude

Contribuições escolares

Momento da infância
Momento da adolescência
Idade adulta

Incentivos na trajetória escolar

Momento da infância
Juventude

Desempenho acadêmico

Momentos da infância
Juventude
Adolescência/juventude
Momento da idade adulta

Escolhas

Momento da adolescência LEGENDA:


Momento da juventude

Interesses
Tema

Momento da adolescência Categoria


Momento da adolescência/idade adulta
Subcategoria
Conflitos

Momento da adolescência Marcador temporal

Fonte: Entrevista narrativa realizada com a participante/informante preta.


A categoria “desempenho acadêmico” engloba oito episódios: dois sobre o
rendimento escolar da participante/informante em uma disciplina, durante momentos da
sua infância; três, situados na sua juventude, a respeito do seu grau de dificuldade
Evenice Santos Chaves O racismo na Trajetória Escolar e Profissional... 119

acadêmica, no primeiro curso de graduação; um, localizado nesse mesmo estágio de


desenvolvimento, concernente ao seu reconhecimento social como boa aluna, durante a
graduação; um alusivo às médias que obteve nos cursos realizados na adolescência e na
juventude, respectivamente, e um, situado em um momento de sua idade adulta, atinente
ao seu grau de dificuldade acadêmica, durante o curso de mestrado.
A categoria “escolhas” congrega quatro episódios, situados em um momento da
adolescência da entrevistada: dois incluem o motivo que a levou a optar por um dado
curso de nível médio e dois, sobre o motivo que a levou a optar por uma licenciatura, e
sub área da mesma para licenciar-se na sua primeira graduação, em um momento da sua
juventude.
A categoria “interesses” compõe-se por dois episódios: um relativo a uma
disciplina foco de atenção da entrevistada durante a sua adolescência, e um referente ao
gostar de outra disciplina, e área científica, desde aquele período de desenvolvimento.
A categoria “conflitos” inclui doze episódios atinentes às suas indecisões sobre
o que fazer após a conclusão do segundo grau, em um momento da sua adolescência.

5.4.3. O tema trabalho


O tema trabalho abrange as categorias “informal”, “formal” e “outros
trabalhos desenvolvidos”, conforme pode ser visto na Figura 7.
A categoria “informal” engloba dois episódios que dizem respeito à realização
de atividades remuneradas, pela entrevistada, sem vínculo empregatício, em momentos
da sua adolescência.
A categoria “formal” comporta oito subcategorias, somando quarenta e sete
episódios, como descrito a seguir:
‘Docência no ensino fundamental’ inclui cinco sobre o exercício da docência,
desempenhado pela entrevistada, de um momento da sua adolescência à juventude.
‘Docência no ensino superior’ agrega onze, relativos ao exercício profissional
de professora do terceiro grau, pela entrevistada, na sua idade adulta.
‘Subsídios’ abrange um concernente à contribuição que recebeu da atividade de
ministrar aulas para alunos de determinados cursos, em um momento da sua idade
adulta.
‘Histórico do Departamento T’ agrega oito acerca das transformações ocorridas
Evenice Santos Chaves O racismo na Trajetória Escolar e Profissional... 120

no referido setor, ao longo de sua idade adulta.

Figura 7. O tema trabalho, as categorias formal e informal, subcategorias e marcadores


temporais.
TRABALHO

Informal

Momentos da adolescência

Formal

Docência no ensino fundamental

Momento da adolescência/juventude

Docência no ensino superior

Idade adulta

Subsídios

Momento da idade adulta

Histórico do Departamento T

Idade adulta

Ocupação de cargos na universidade

Momentos da idade adulta

Satisfações na docência universitária

Momento da idade adulta LEGENDA:


Insatisfações na docência universitária
Tema
Momentos da idade adulta
Categoria
Realizações
Subcategoria
Momento da adolescência
Momento da idade adulta
Marcador temporal
Fonte: Entrevista narrativa realizada com a participante/informante preta.

‘Ocupação de cargos na universidade’ contém nove atinentes às funções


administrativas que desempenhou em diversos setores, em momentos de sua idade
adulta.
‘Satisfação na docência universitária’ inclui um episódio relativo a um
sentimento da entrevistada frente à instituição, em um momento da sua idade adulta.
‘Insatisfações na docência universitária’ engloba três concernentes ao
descontentamento da entrevistada frente à não realização de uma dada qualificação, em
momentos da sua idade adulta; um acerca da impossibilidade de fazê-lo, também
localizado no mesmo período; um que assinala a sua mudança de opção, a qual eliminou
a insatisfação anteriormente citada, em outro momento da sua idade adulta e,
finalmente, um a respeito da ausência de insatisfação, no momento atual.
Evenice Santos Chaves O racismo na Trajetória Escolar e Profissional... 121

‘Realizações’ é composta por dois episódios relativos a um privilégio decorrente


da sua aprovação , com boa classificação, em um concurso público, em um momento da
sua adolescência, e por quatro atinentes a um trabalho realizado pela entrevistada,
quando ocupou um cargo administrativo na universidade, em um momento da sua idade
adulta.
A categoria “outros trabalhos desenvolvidos” inclui dez subcategorias, com
sessenta e quatro episódios, cuja configuração é apresentada na Figura 8.
‘Afazeres’ engloba quatorze relativos a diferentes atividades realizadas pela
participante/informante, em outros locais que não a universidade, em momentos de sua
idade adulta.
‘Formação do GTI1’ envolve dois referentes à criação, pelo Estado Brasileiro,
de um grupo de trabalho centrado em políticas de ações afirmativas, em um momento
da idade adulta da participante/informante.
‘Vínculo institucional do GTI’ inclui um, atinente a espaços institucionais
federais, aos quais o referido grupo de trabalho esteve subordinado, em um momento da
idade adulta da entrevistada.
‘Expectativas frente ao desenvolvimento de atividades no GTI’ aglutina dois,
concernentes às conjeturas da participante/informante diante de possíveis realizações
vinculadas à política de ação afirmativa engendrada pelo Governo brasileiro, em um
momento de sua idade adulta.
‘Participação em ações de cunho interministerial’ abrange dezesseis, atinentes
aos trabalhos realizados pelo GTI, do qual a entrevistada fazia parte, em um momento
da sua idade adulta, efetuados em diferentes espaços institucionais nacionais.
‘Empecilhos para o desenvolvimento de tarefas no GTI’ agrega dezenove,
relativos a eventos que dificultaram a implementação e/ou a ampliação das ações do
GTI, em um momento da idade adulta da participante/informante.
‘Situação atual do GTI’ contém um, que diz respeito à inoperância desse grupo
de trabalho, a partir de um determinado período, em um momento da idade adulta da
entrevistada.
‘Desistências’ abarca seis, cujos conteúdos expressam suas abdicações ao
desenvolvimento de trabalhos fora do contexto da universidade, em momentos da sua

1
GTI é uma sigla empregada na referência ao Grupo de Trabalho Interministerial.
Evenice Santos Chaves O racismo na Trajetória Escolar e Profissional... 122

idade adulta.
‘Jornada de trabalho’ constitui-se de um, concernente à etapa relativa às
atividades diárias de labor da participante/informante, desde o período da juventude até
a sua idade adulta.
‘Atividades atuais’ é constituída por um que faz menção aos trabalhos
desenvolvidos pela entrevistada, durante a coleta de informações, por conseguinte, em
um momento da sua idade adulta, e por um pertinente ao seu engajamento no trabalho,
nesse mesmo momento.

Figura 8. O tema trabalho, a categoria outros trabalhos desenvolvidos, subcategorias e


marcadores temporais.
TRABALHO

Outros trabalhos desenvolvidos

Afazeres

Momentos da idade adulta

Formação do GTI

Momento da idade adulta

Vínculo institucional do GTI

Momento da idade adulta

Expectativas frente ao desenvolvimento de atividades no GTI

Momento da idade adulta

Participação em ações de cunho interministerial

Momento da idade adulta

Empecilhos para o desenvolvimento de tarefas no GTI

Momento da idade adulta

Situação atual do GTI

Momento da idade adulta

Desistências

Momentos da idade adulta LEGENDA:


Jornada de trabalho
Tema
Juventude/idade adulta
Categoria
Atividades atuais
Subcategoria
Momento da idade adulta
Marcador temporal
Fonte: Entrevista narrativa realizada com a participante/informante preta.

5.4.4. O tema militância


O tema militância é ponto de confluência de cinco categorias: “participação em
movimento estudantil”; “participação em movimentos políticos”; “participação em
movimentos culturais”; “participação em movimento docente” e “participação no
Evenice Santos Chaves O racismo na Trajetória Escolar e Profissional... 123

movimento negro”, conforme exposto na Figura 9.


A categoria “participação em movimento estudantil” engloba dois episódios
centrados em um momento da adolescência da participante/informante, alusivos à sua
atuação em uma entidade estudantil reivindicatória de mudanças.
A categoria “participação em movimentos políticos” encerra doze episódios:
onze referentes ao engajamento da entrevistada em grupos que reivindicavam mudanças
estruturais na sociedade brasileira, durante momentos da sua adolescência, e um, situado
em um momento da sua juventude, concernente ao encerramento da sua participação em
partidos políticos clandestinos.
A categoria “participação em movimentos culturais” aglutina onze episódios:
três, temporalmente situados em momentos da adolescência da participante/informante,
sendo dois concernentes às atividades, de natureza reivindicatória, que desenvolvia em
um grupo de jovens e um abordando a sua convivência em um grupo artístico, de caréter
contestatório; oito, cujos conteúdos são atinentes à participação da entrevistada em
atividades artístico-culturais desenvolvidas no referido grupo, em momentos da sua
idade adulta.
A categoria “participação em movimento docente” é composta por um
episódio que versa sobre a atuação da participante/informante em uma associação de
classe, em momentos da sua idade adulta.
A categoria “participação no movimento negro” abrange oito subcategorias
alusivas ao engajamento da entrevistada no movimento, a partir de um momento da sua
idade adulta, período em que se situam todos os quarenta e seis episódios, descritos a
seguir.
‘Engajamento’ contém cinco episódios vinculados à inserção da entrevistada no
movimento negro.
‘Emergência do movimento negro unificado’ congrega um, referente à
emergência de movimentos sociais, incluindo-se o negro, no período da abertura
política e três, com conteúdos que explanam a revitalização do movimento negro, nos
anos de 1970 e 1980, através da sua unificação em nível nacional, com pautas
reivindicatórias comuns.
‘Construção de entidade regional’ inclui oito sobre a criação de uma entidade
do movimento negro, na Cidade E, da qual a entrevistada participou.
Evenice Santos Chaves O racismo na Trajetória Escolar e Profissional... 124

‘Atuações em entidades regionais’ se constitui de treze acerca de atividades


desenvolvidas pela entidade regional, na qual a entrevistada atua.

Figura 9. O tema militância, categorias, subcategorias e marcadores temporais.


MILITÂNCIA

Participação em movimento estudantil

Momento da adolescência

Participação em movimentos políticos

Momentos da adolescência
Juventude

Participação em movimento cultural

Momentos da adolescência
Momentos da idade adulta

Participação em movimento docente

Momentos da idade adulta

Participação em movimento negro

Engajamento

Idade adulta

Emergência do movimento negro unificado

Momento da idade adulta

Construção de entidade regional

Momento da idade adulta

Atuações em entidade regional

Momentos da idade adulta

Carência em entidade regional

Momentos da idade adulta

Integração entre entidades LEGENDA:

Momentos da idade adulta Tema

Atuações a nível nacional Categoria

Momento da idade adulta Subcategoria

Trajetória como militante Marcador temporal

Momento da adolescência/idade adulta

Fonte: Entrevista narrativa realizada com a participante/informante preta.

‘Carência em entidade regional’ engloba um, que diz respeito à ausência de um


dado profissional no quadro da entidade regional, para prestar serviços às vítimas do
racismo contra o negro.
Evenice Santos Chaves O racismo na Trajetória Escolar e Profissional... 125

‘Integração entre entidades’ encerra oito, alusivos à articulação entre diversas


entidades regionais brasileiras do movimento negro.
‘Atuações a nível nacional’ é formada por dois que fazem menção à atuação da
participante/informante em atividades engendradas nacionalmente pelo movimento
negro, e, também, por um, indicativo de maior apoio governamental às discussões sobre
a ação afirmativa.
‘Trajetória como militante’ abrange cinco, referentes à síntese que a
entrevistada elaborou sobre sua participação em movimentos sociais, a partir de um
momento da sua adolescência.

5.4.5 O tema relações interpessoais


Esse tema concentra oito categorias: “convívio familiar”; “convívio com
vizinhos”; “convívio com colegas”; “convívio com professores”; “convívio com
companheiro”; “convívio com as pessoas em geral”; “amizades” e “apoio social”. O
modelo representativo é visualizado na Figura 10.
A categoria “convívio familiar” constitui-se de sete episódios, atinentes ao
relacionamento entre a entrevistada e a sua mãe biológica, de um momento da infância
até outro sem especificação temporal, em seu ciclo de vida já vivido.
A categoria “convívio com vizinhos” envolve nove episódios, referentes às
atividades coletivas, desenvolvidas pela entrevistada com membros da sua comunidade,
de momentos da sua infância à adolescência.
A categoria “convívio com colegas” inclui catorze episódios: dois explicitam a
qualidade do seu relacionamento com colegas de primeiro e de segundo graus, de um
momento da sua infância à adolescência, e doze fazem referência aos relacionamentos
da entrevistada com as colegas do mestrado, em um momento da sua idade adulta.
A categoria “convívio com professores” abrange dois episódios que versam
sobre relações interpessoais entre a participante/informante e seus professores, quando
cursou o mestrado, em um momento de sua idade adulta.
A categoria “convívio com companheiro” engloba dois episódios que dizem
respeito a interações entre a entrevistada e o seu companheiro, cujos conteúdos giram
em torno do comportamento das pessoas diante do casal, em momentos da sua idade
adulta.
Evenice Santos Chaves O racismo na Trajetória Escolar e Profissional... 126

A categoria “convívio com as pessoas em geral” contém um episódio


concernente à qualidade das relações interpessoais entre a entrevistada e as pessoas em
geral, no seu ciclo de vida já vivido.

Figura 10. O tema relações interpessoais, categorias, subcategorias e marcadores


temporais.
RELAÇÕES INTERPESSOAIS

Convívio familiar

Momento da infância/sem especificação temporal

Convívio com vizinhos

Momentos da infância
Adolescência

Convívio com colegas

Momento da infância/adolescência
Momento da idade adulta

Convívio com professores

Momento da idade adulta

Convívio com companheiro

Momentos da idade adulta

Convívio com pessoas em geral

Ciclo de vida já vivido

Amizades

Idade adulta

Apoio Social

Membros da família de origem

Infância
Infância/adolescência

Vizinhos

Momento da infância/momentos da adolescência


Momento da adolescência
LEGENDA:
Colegas
Tema
Momento da adolescência

Família construída Categoria

Idade adulta Subcategoria


Movimento social
Marcador temporal
Idade adulta

Fonte: Entrevista narrativa realizada com a participante/informante preta.

A categoria “amizades” engloba sete episódios que dizem respeito aos amigos
da participante/informante, na sua idade adulta.
A categoria “apoio social” agrupa cinco subcategorias, incluindo vinte
episódios, abaixo apresentados:
‘Membros da família de origem’ agrupa um sobre o apoio fornecido à
Evenice Santos Chaves O racismo na Trajetória Escolar e Profissional... 127

entrevistada pelo avô materno, durante a sua infância, e quatro, explicitando os cuidados
dispensados pela avó materna à sua saúde, durante sua infância e adolescência.
‘Vizinhos’ abrange sete, relacionados ao suporte social fornecido por uma
vizinha, em situações nas quais a participante/informante realizava a sua matrícula
escolar, de um momento da infância a momentos da adolescência, e um, que inclui o
convite para trabalhar, feito por outra vizinha, em um momento da sua adolescência.
‘Colegas’, constituída por três, que dizem respeito a tipos de suporte social
dispensados por colegas à entrevistada, em um momento da sua adolescência.
‘Família construída’ engloba três, cujos conteúdos enfatizam a família atual da
participante/informante como um ponto de apoio, na sua idade adulta.
‘Movimento social’ congrega um, referente ao movimento negro enquanto
suporte social para a entrevistada, em sua idade adulta.

5.4.6. O tema obstáculos


A configuração desse tema é apresentada na Figura 11.

Figura 11. O tema obstáculos, categoria e marcadores temporais.


OBSTÁCULOS

Dificuldades sociais

Infância/juventude
Momentos juventude

Fonte: Entrevista narrativa realizada com a participante/informante preta.

LEGENDA: Tema Categoria Marcador temporal

Como se verifica, o tema obstáculos é constituído pela categoria “dificuldades


sociais”, compreendendo três episódios: um alude à escassez de recursos financeiros
pela qual passou a entrevistada, da sua infância à juventude, e dois assinalam a
interferência da dificuldade financeira em seu trajeto escolar, durante momentos da
juventude.

5.4.7. O tema facilidades


O referido tema contém a categoria “habilidades pessoais”, a qual inclui nove
episódios: um referente à destreza da participante/informante no aprendizado de
conteúdos acadêmicos, durante momentos da sua infância; cinco relativos ao emprego
Evenice Santos Chaves O racismo na Trajetória Escolar e Profissional... 128

de sua competência acadêmica na realização de atividades extra-escolares, durante a


adolescência; um concernente ao seu hábito de ler, desde um momento da sua infância
até a adolescência; um sobre a sua capacidade de tirar boas notas sem necessitar realizar
muitas leituras, durante a sua juventude, e um, cujo conteúdo indica o quão era e é
habilidosa na manipulação dos números, porém retraída, desde um momento da infância
até a idade adulta. O diagrama expresso na Figura 12 mostra a configuração desse tema.

Figura 12. O tema facilidades, categoria e marcadores temporais.


FACILIDADES

Habilidades pessoais

Momentos da infância
Adolescência
Infância/adolescência
Juventude
Momento da infância/idade adulta

Fonte: Entrevista narrativa realizada com a participante/informante preta.


LEGENDA: Tema Categoria Marcador temporal

5.4.8. O tema lazer


A representação desse tema é exposta na Figura 13.

Figura 13. O tema lazer, categoria e marcador temporal.


LAZER

Divertimento

Idade adulta

Fonte: Entrevista narrativa realizada com a participante/informante preta.

LEGENDA: Tema Categoria Marcador temporal

Fonte: Percentuais obtidos a partir de dados censitários relativos


a Observa-se
1950, produzidos pelotema
que esse IBGEinclui
e apresentados
a categoriapor“divertimento”, com um episódio
sobre a seleção que a entrevistada faz, quando convidada para participar de festas.

5.4.9. O tema racismo


O referido tema agrupa as categorias: “invisibilidade”; “mascaramento”;
“ambivalência”; “perplexidade”; “conscientização”; “visibilidade”; “explicitação
do racismo na universidade”; “discriminação racial”; “experiências pessoais em
relações racializadas”; “reatividade à discriminação racial”; “aparência”;
“embranquecimento”; “negritude”; “aprendizagens”; “significado do racismo” e
Evenice Santos Chaves O racismo na Trajetória Escolar e Profissional... 129

“ações de combate ao racismo”, como exposto na Figura 14.


“Invisibilidade” é constituída por onze episódios, temporalmente situados em
um momento da idade adulta da entrevistada, referentes à ausência de percepção do
racismo contra o negro, no mundo social brasileiro, devido à naturalização do mesmo.
“Mascaramento” abarca duas subcategorias, abrangendo seis episódios.
‘Ocultação’ inclui um alusivo à proibição do enfoque ao racismo durante a
ditadura militar, fato ocorrido entre a sua juventude e um momento da idade adulta.
‘Dissimulação’ se constitui de cinco, concernentes ao subterfúgio frente ao
racismo contra a participante/informante, em momentos da sua idade adulta.
“Ambivalência” inclui dois episódios sobre o comportamento vacilante de uma
professora, impregnado de racismo, o qual permeou uma situação interativa entre a
ela e a entrevistada, em um momento de sua infância.
“Perplexidade” envolve cinco episódios relativos a um confronto pessoal,
estabelecido a partir da imagem corporal que construiu sobre si mesma e uma outra,
expressa de forma indireta por uma professora, em um momento da sua infância.
“Conscientização” inclui quatro episódios sobre a sua consciência acerca do
racismo que lhe foi dirigido, em um momento da infância.
“Visibilidade” é composta por dois episódios que explicitam a presença do
racismo contra o negro na vida cotidiana e por quatro, relativos às desigualdades sociais
e raciais presentes na sociedade brasileira, vislumbrados pela entrevistada, em um
momento de sua idade adulta.
“Explicitação do racismo na universidade” abrange sete episódios que dizem
respeito à presença do racismo no contexto acadêmico, inclusive dirigido à
participante/informante, em momentos da sua idade adulta.
“Discriminação racial” contém duas subcategorias, agregando doze episódios.
‘Indiferença’ envolve três, alusivos à desconsideração da entrevistada como
aluna apta a participar de atividades recreativas na escola, em um momento da sua
infância, e um vinculado à desconsideração à sua pessoa como ser humano de direitos,
em uma situação do cotidiano, na sua idade adulta.
‘Inferiorização’ agrupa sete, referentes à atribuição de posição social inferior à
participante/informante, devido ao seu fenótipo, de momentos da sua juventude a um
momento sem especificação temporal no seu ciclo de vida, e um, cujo conteúdo
Evenice Santos Chaves O racismo na Trajetória Escolar e Profissional... 130

explicita o lugar de inferioridade social que lhe é atribuído em situações do dia-a-dia, ao


longo do seu ciclo de vida já vivido.

Figura 14. O tema racismo, categorias, subcategorias e marcadores temporais.


RACISMO

Invisibilidade

Momento da idade adulta

Mascaramento

Ocultação

Juventude/momento da idade adulta

Dissimulação

Momento idade adulta

Ambivalência

Momento da infância

Perplexidade

Momento da infância

Conscientização

Momento da infância

Visibilidade

Momento da idade adulta

Explicitação do racismo na universidade

Momentos da idade adulta

Discriminação racial

Indiferença

Momentos da infância
Idade adulta

Inferiorização

Momentos da juventude/sem especificação temporal


Ciclo de vida já vivido

Experiências pessoais em relações racializadas

Momento da infância
Momentos da idade adulta

Reatividade à discriminação racial

Idade adulta

Aparência

Momentos da juventude
Momento da idade adulta

Embranquecimento

Momentos da juventude
LEGENDA:
Negritude
Tema
Momento da infância/idade adulta

Aprendizagens
Categoria

Ciclo de vida já vivido Subcategoria

Significado do racismo Marcador temporal


Ciclo de vida já vivido

Ações de combate ao racismo

Momentos da idade adulta


Fonte: Entrevista narrativa realizada com a participante/informante preta.
Evenice Santos Chaves O racismo na Trajetória Escolar e Profissional... 131

“Experiências pessoais em relações racializadas” engloba seis episódios:


cinco versam sobre acontecimentos nos quais a participante/informante foi vítima de
racismo explícito, sendo que um ocorreu em um momento da sua infância e quatro em
diferentes momentos da idade adulta, e um, que demarca temporalmente quando os
acontecimentos racistas vivenciados aconteceram.
“Reatividade à discriminação racial” inclui um episódio sobre o modo através
do qual a entrevistada reage à usurpação do seu direito ao lugar que ocupa em uma fila,
na sua idade adulta.
“Aparência” engloba dois episódios: um é referente ao tratamento que lhe era
dispensado por outros em função da sua indumentária, em momentos da sua juventude,
e um, relativo ao modo como pessoas postavam-se diante do visual da entrevistada, em
um momento da sua idade adulta.
“Embranquecimento” agrega um episódio sobre recomendações de pessoas à
participante/informante, para disfarçar o seu cabelo, em momentos da sua juventude.
“Negritude” conecta dois episódios: um alusivo à descoberta da sua identidade
étnica, em um momento da sua infância, e um diz respeito à manutenção da identidade
nera, pela entrevistada, na sua idade adulta.
“Aprendizagens” congrega quatro episódios: três se referem ao aprendizado de
como lidar com o racismo dirigido à sua pessoa, ao longo do seu ciclo de vida já vivido,
e um, também situado nesse período, alude à acuidade que desenvolveu para identificar
a presença do racismo contra o negro nas situações sociais.
“Significado do racismo” agrupa dois episódios relativos ao modo através do
qual o fenômeno do racismo contra o negro influenciou diversos aspectos da vida da
participante/informante, ao longo do seu ciclo de vida já vivido.
“Ações de combate ao racismo” é composta por cinco episódios que explicitam
modos de enfrentamento ao racismo, realizados por diferentes instituições em várias
ocasiões da nossa história social contemporânea, que se concretizaram em momentos da
idade adulta da entrevistada.

5.4.10. O tema estratégias de enfrentamento


O tema abrange duas categorias: “luta” e “fuga”, conforme se observa na
Figura 15.
Evenice Santos Chaves O racismo na Trajetória Escolar e Profissional... 132

Figura 15. O tema estratégias de enfrentamento, categorias e marcadores temporais.


ESTRATÉGIAS DE ENFRENTAMENTO

Luta

Momento da infância/ momento da adolescência


Momentos da adolescência
Momento da idade adulta

Fuga

Momento da idade adulta

Fonte: Entrevista narrativa realizada com a participante/informante preta.


LEGENDA: Tema Categorias Marcador temporal

“Luta” é composta por nove episódios: um sobre o empenho da entrevistada


para matricular-se na escola, de um momento da infância a um momento da sua
adolescência; um, atinente ao comportamento emitido pela mesma para suprir a carência
de livros, em momentos da sua adolescência; quatro, mencionando comportamentos
emitidos pela participante/informante nesse mesmo período de desenvolvimento, para
angariar dinheiro visando à sua freqüência à escola, e três acerca de comportamentos
que emite diante de manifestações do racismo contra o negro, em um momento de sua
idade adulta.
“Fuga” abrange dois episódios sobre a insignificância que a entrevistada atribui
a eventos racistas constitutivos do seu cotidiano, em um momento da idade adulta.

5.4.11. O tema pessoalidade


Esse tema abrange quatro categorias: “auto-atribuição de características”;
“enfermidade”; “preferências” e “avaliações”.
A configuração do tema, envolvendo as duas primeiras categorias mencionadas,
é apresentada na Figura 16.
A categoria “auto-atribuição de características” agrupa três subcategorias e
treze episódios.
‘Valorizadora’ inclui um relativo à qualificação realizada pela entrevistada
sobre seu desenvolvimento cognitivo, em um momento de sua adolescência.
‘Facilitadora’ envolve seis que vinculam conteúdos referentes a particularidades
comportamentais da participante/informante na sua idade adulta; um, referente ao fator
sorte como algo que a contemplou, em seu ciclo de vida já vivido, e um, que assinala a
influência do fator sorte em sua trajetória escolar, de um momento da sua infância à
Evenice Santos Chaves O racismo na Trajetória Escolar e Profissional... 133

idade adulta.
Figura 16. O tema pessoalidade, as categorias auto-atribuição de características,
enfermidade, subcategorias e marcadores temporais.
PESSOALIDADE

Auto-atribuição de características

Valorizadora LEGENDA:
Momento da adolescência
Tema
Facilitadora
Categoria
Idade adulta
Subcategoria
Limitadora

Idade adulta Marcador temporal

Enfermidade

Infância/adolescência

Fonte: Entrevista narrativa realizada com a participante/informante preta.

‘Limitadora’ é composta por quatro, cujos conteúdos dizem respeito a medos da


participante/informante, ao longo do seu ciclo de vida já vivido.
A categoria “enfermidade” abrange dois episódios alusivos a distúrbio na saúde
da entrevistada, de sua infância à adolescência.
A categoria “preferências” congrega oito episódios: três, que fazem referência a
comportamentos de natureza acadêmica, elencados pela entrevistada como gratificantes,
que ocorreram na sua adolescência; dois, atinentes às suas escolhas para ir a um festejo,
a partir de um momento da idade adulta; um, que sublinha o seu comportamento de
escolher pessoas para relacionar-se, com mais intimidade, na idade adulta, e dois,
situados na idade adulta, alusivos às escolhas de situações para expressar a sua
impaciência. A Figura 17 expõe a configuração dessa categoria.

Figura 17. O tema pessoalidade, a categoria preferências e marcadores temporais.


PESSOALIDADE

Preferências

Adolescência
Idade adulta

Fonte: Entrevista narrativa realizada com a participante/informante preta.

LEGENDA: Tema Categoria Marcador temporal

“Avaliações”, outra categoria que compõe o tema “pessoalidade”, contém vinte


e uma subcategorias, abaixo especificadas, que aglutinam setenta e oito episódios sobre
Evenice Santos Chaves O racismo na Trajetória Escolar e Profissional... 134

julgamentos realizados pela participante/informante, em um momento da sua idade


adulta. O modelo representativo dessa categoria é exposto na Figura 18.
‘Sociedade brasileira’ inclui três, que expõem a reflexão da entrevistada sobre o
peso do racismo contra o negro, em nossa sociedade.
‘Ascensão social’ é composta por um, relativo ao que a participante/informante
julga como fator responsável pela sua mobilidade social vertical.
‘Posição social’ abarca dois sobre a interpretação da entrevistada acerca de
determinados convites que lhe eram dirigidos, quando ocupou um cargo administrativo
na universidade.
‘Atividade docente’, constituída por um, o qual assinala o valor gratificante que
a participante/informante atribui a um período do exercício da atividade docente; por
um, atinente à influência da atividade docente em uma de suas características pessoais e
por um, alusivo à apreciação que faz do Departamento T, quando do seu ingresso no
mesmo.
‘Desempenho profissional’ agrupa dois, nos quais a entrevistada valora
trabalhos que realizou, quando ocupou dois cargos de natureza administrativa, na
Universidade X.
‘Espaço para docente negro’ aglutina seis, todos focalizando a apreciação da
participante/informante sobre a quantidade de professores negros na universidade e seus
isolamentos.
‘Curso de graduação’ agrega seis, cujos conteúdos explicitam o julgamento da
participante/informante sobre a relevância de um curso de graduação, para a sua vida
prática.
‘Racismo’ abrange um, alusivo ao seu juízo de que a exposição ao racismo
alarga a visibilidade do fenômeno, em algumas pessoas, e dois expressam a ponderação
de que, atualmente, determinadas pessoas são cautelosas frente a expressão do racismo.
‘Preconceito racial’ envolve seis, referentes à sua apreciação sobre situações
nas quais foi vítima do racismo e um relativo à estimativa da participante/informante de
que cada negro brasileiro já foi vítima de discriminação racial.
‘Superação da invisibilidade do racismo’, que é constituída por um episódio, o
qual expressa a ponderação, realizada pela entrevistada, sobre formas através das quais
o racismo contra o negro poderá ganhar visibilidade no Brasil.
Evenice Santos Chaves O racismo na Trajetória Escolar e Profissional... 135

Figura 18. Pessoalidade, a categoria avaliações, subcategorias e marcadores


temporais.
PESSOALIDADE

Avaliações

Sociedade brasileira

Momento da idade adulta

Ascensão social

Momento da idade adulta

Posição Social

Momento da idade adulta

Atividade docente

Momento da idade adulta

Desempenho profissional

Momento da idade adulta

Espaço para docente negro

Momento da idade adulta

Curso de graduação

Momento da idade adulta

Racismo

Momento da idade adulta

Preconceito racial

Momento da idade adulta

Superação da invisibilidade do racismo

Momento da idade adulta

Condição de ser negra

Momento da idade adulta

Movimento negro

Momento da idade adulta

Militância no movimento negro

Momento da idade adulta

Grupo de trabalho interministerial

Momento da idade adulta

Relações interpessoais

Momento da idade adulta

Membros da família de origem

Momento da idade adulta

Membros da família construída

Momento da idade adulta


LEGENDA:
Professores
Tema
Momento da idade adulta
Categoria
União com companheiro

Momento da idade adulta Subcategoria

Características pessoais Marcador temporal


Momento da idade adulta
Fonte: Entrevista narrativa realizada com a participante/informante preta.
Evenice Santos Chaves O racismo na Trajetória Escolar e Profissional... 136

‘Condição de ser negra’ abrange dois, relacionados à apreciação da entrevistada


sobre sua pertença à etnia negra.
‘Necessidade do negro’ é composta por dois episódios referentes ao que a
participante/informante arbitra como básico para o negro, no nosso país.
‘Movimento negro’ inclui cinco juízos da participante/informante, atinentes às
contribuições do movimento negro na nossa sociedade; dois aludindo às interpretações
avaliativas, elaboradas pela mesma, sobre limites relativos à influência da atuação de
militantes desse movimento na sociedade brasileira; dois concernentes às ações que
julga como necessárias de serem engendradas pelo movimento negro; um que explicita
a apreciação da entrevistada sobre o peso do mito da democracia racial na crença de
brasileiros; um relacionado às suas reflexões sobre a necessidade de recursos humanos
em uma entidade regional do movimento negro, localizada na Cidade E; um, cujos
conteúdos refletem o seu juízo sobre a relevância da integração do movimento negro no
nosso país e, finalmente, um que enuncia a sua reflexão sobre o modo como as relações
sociais racializadas são enfocadas no Brasil.
‘Militância no movimento negro’ agrupa dois, referentes ao modo como a
entrevistada ajuíza a sua participação militante no movimento negro.
‘Grupo de trabalho interministerial’ comporta quatro sobre apreciações da
participante/informante acerca do alcance do GTI e um, relativo à conjectura, realizada
pela mesma, sobre uma dada situação.
‘Relações interpessoais’ inclui um que menciona a apreciação da entrevistada
sobre seus relacionamentos com as pessoas.
‘Membros da família de origem’ engloba seis, que reportam a juízos da
participante/informante sobre seus avós maternos.
‘Membros da família constituída’ contém um, explicitando a ponderação da
entrevistada sobre o que a sua família atual lhe concede.
‘Professores’ se compõe de dois, concernentes à sua apreciação sobre os seus
professores do mestrado.
‘União com o companheiro’ é constituída por dois, os quais expressam a
elocubração realizada pela participante/informante sobre o que as pessoas pensam do
seu parceiro.
Evenice Santos Chaves O racismo na Trajetória Escolar e Profissional... 137

‘Características pessoais’ agrega oito, referentes ao seu ajuizamento sobre


aspectos de sua singularidade.

5.4.12. O tema perspectivas


O tema perspectivas é constituído das categorias “momento atual” e
“projetos”, configurados na Figura 19.
“Momento atual” agrupa cinco episódios, temporalmente situados em um
momento da sua idade adulta, que explicitam como a entrevistada coloca-se diante da
possibilidade de aposentar-se.
“Projetos” abrange três episódios referentes aos seus planos profissionais para o
futuro e nove outros, relativos aos seus passos iniciais nessa direção, em um momento
de sua idade adulta.

Figura 19. O tema perspectivas, categorias e marcadores temporais.


PERSPECTIVAS

Momento atual

Momento da idade adulta

Projetos

Momento da idade adulta

Fonte: Entrevista narrativa realizada com a participante/informante preta.


LEGENDA: Tema Categorias Marcador temporal

5.5. O sistema classificatório decorrente dos dados produzidos pela


entrevista narrativa realizada com a participante/informante parda

5.5.1. O tema família


Oito categorias compõem este tema: “inserção social da família de origem”;
“composição familiar da família de origem”; “características de membros da
família de origem”; “atividades de membros da família de origem”; “estilo de vida
na família de origem”; “realização de tarefas”; “perdas” e “reconstruções
familiares”. A Figura 20 apresenta um modelo representativo do tema, englobando as
quatro primeiras categorias citadas.
“Inserção social da família de origem” agrupa três subcategorias, ‘moradias’,
Evenice Santos Chaves O racismo na Trajetória Escolar e Profissional... 138

‘meio social’ e ‘situação social’, agregando vinte e cinco episódios.


‘Moradias’ engloba dezessete, que se estendem, temporalmente, da infância a
momentos da adolescência da entrevistada e agrupam-se do seguinte modo: oito
ressaltam características de residências onde ela morou; quatro explicitam a localização
dessas residências; dois versam sobre mudanças de locais de residência; dois são
alusivos ao tempo de moradia em uma casa e um é referente à construção da casa
própria, realizada pelo pai. Um outro, situado na sua juventude, diz respeito a um dado
local de residência onde a participante/informante viveu.
‘Meio social’ reúne oito, situados da infância a um momento da adolescência,
com dois atinentes ao ambiente físico da residência; dois, que mencionam o ambiente
social de pobreza; um, concernente à ausência de escolaridade de vizinhos e três
relativos à etnia de pessoas da vizinhança. Um último, refere-se à cor das pessoas com
as quais a participante/informante manteve contato, ao longo do seu ciclo de vida já
vivido.
‘Situação social’ agrega oito: dois enfocam o poder aquisitivo da família da
participante/informante; um aborda a posse de um bem de consumo e um faz alusão ao
compartilhamento desse bem com crianças da vizinhança, observando-se que todos se
situam entre a infância e um momento da adolescência da entrevistada. Os quatro
restantes, também localizados no período acima especificado, expressam restrições no
seu estilo de vida, decorrentes da pobreza.
“Composição familiar na família de origem” elenca um episódio sobre o lugar
por ela ocupado na escala descendente dos filhos, sem especificação temporal.
“Características de membros da família de origem” inclui três subcategorias,
com doze episódios, sem que haja especificação temporal em nenhum deles.
‘Avó paterna’ aglutina um referente à origem social dessa parenta da
participante/informante e um concernente à etnia e aparência da mãe de seu pai.
‘Pai’ agrega um que enfatiza o nível de escolaridade do mesmo, um, que é
pertinente à sua descendência, um, que é relativo à sua aparência, e outro sobre uma
qualificação afetiva atribuída pela entrevistada ao seu genitor.
‘Irmãos’ compõe-se de um, centrado na aparência dos irmãos, de três, que
dizem respeito a características do primogênito e de dois sobre especificidades da irmã.
“Atividades de membros da família de origem” contém quatro episódios,
Evenice Santos Chaves O racismo na Trajetória Escolar e Profissional... 139

situados entre a infância e um momento da adolescência da entrevistada, distribuídos


nas subcategorias ‘mãe’ e ‘pai’.

Figura 20. O tema família, quatro categorias constitutivas, subcategorias e marcadores


temporais.
FAMÍLIA

Inserção social da família de origem

Moradias

Infância/momentos da adolescência
Juventude

Meio social

Infância/momento da adolescência
Ciclo de vida á vivido

Situação social

Infância/momento da adolescência

Composição familiar na família de origem

Ciclo de vida já vivido

Características de membros da família de origem

Avó paterna
LEGENDA:
Sem especificação temporal
Tema
Pai
Categoria
Sem especificação temporal

Irmãos Subcategoria

Sem especificação temporal Marcador temporal


Atividades de membros da família de origem

Mãe

Infância/momento da adolescência

Pai

Infância/momento da adolescência
Fonte: Entrevista narrativa realizada com a participante/informante parda.

‘Mãe’ é formada por dois, que especificam atividades da sua genitora.


‘Pai’ agrega um, enfocando a profissão do seu genitor, e outro, concentrando-se
no tempo gasto pelo mesmo, em sua atividade de trabalho.
O tema família, como já anteriormente exposto, também abrange as categorias
“estilo de vida na família de origem”, “perdas” e “reconstruções familiares”. O
modelo representativo das mesmas é apresentado na Figura 21.
“Estilo de vida na família de origem” envolve três subcategorias, abrangendo
trinta e nove episódios.
‘Maneira de viver’ aglomera três, situados na infância, apontando a quantidade
de lembranças desse período de sua vida; um, focalizando locais em que transitava e
Evenice Santos Chaves O racismo na Trajetória Escolar e Profissional... 140

outro, aludindo ao sexo das crianças com quem conviveu. Um, entre a infância e um
momento da adolescência, especifica tarefas não delegadas à participante/informante.
Oito, localizáveis em momentos da sua adolescência, focalizam alterações na vida dos
membros da família, após o falecimento da mãe. Por fim, dez, situados em sua
juventude, são relacionados às mudanças no seu convívio com membros da família.

Figura 21. O tema família, as categorias estilo de vida na família de origem, realização
de tarefas, perdas, reconstruções familiares, subcategorias e marcadores temporais.
FAMÍLIA

Estilo de vida da família de origem

Maneira de viver

Infância
Infância/momento da adolescência
Momentos da adolescência
Juventude

Práticas educativas

Infância/adolescência
Momento da adolescência/juventude
Juventude

Realização de tarefas

Momentos da adolescência

Perdas

Momento da adolescência
Momento da idade adulta

Reconstruções familiares

Recomposições na família de origem

Adolescência

Constituição de família

Momento da idade adulta

Retorno à casa paterna

Momento da idade adulta


LEGENDA:
Constituição da própria casa
Tema
Momento da idade adulta
Categoria
Partilha de residência

Momentos da idade adulta Subcategoria

Desconstrução da partilha de residência Marcador temporal

Momento da idade adulta

Fonte: Entrevista narrativa realizada com a participante/informante parda.

‘Práticas educativas’ contém quatro, situados entre a infância e a adolescência,


com um versando sobre o rigor com o qual o pai educava os filhos; dois aludindo seus
medos com relação a caminhos possíveis de serem trilhados pelos filhos e um referindo-
se ao controle que o irmão mais velho exercia sobre a entrevistada. Dois abordam
normas domésticas, estipuladas pelo pai, durante a sua adolescência. Outro episódio
Evenice Santos Chaves O racismo na Trajetória Escolar e Profissional... 141

ressalta a solidão do genitor, na prática de criação dos filhos, de um momento da


adolescência à juventude da participante/informante. Finalmente, um episódio, situado
na sua juventude, explicita o afrouxamento do controle sobre a mesma, por parte do seu
pai e irmãos.
‘Realização de tarefas’ inclui sete sobre a divisão e execução de tarefas do lar,
entre os irmãos, e dois acerca de um aprendizado da entrevistada, em momentos da sua
adolescência.
“Perdas” congrega quatro episódios, assim distribuídos: um, referente à morte
da sua mãe, perpassa um momento da adolescência da panticipante/informante; três,
situados em momentos da sua idade adulta, com dois atinentes ao seu afastamento dos
membros da sua família de origem e um relativo à morte do seu pai.
“Reconstruções familiares” contempla seis subcategorias, envolvendo vinte e
dois episódios.
‘Recomposições na família de origem’ abrange seis, situados na adolescência,
os quais mencionam pessoas que, depois do falecimento da mãe da entrevistada,
passaram a residir com a sua família, em diferentes ocasiões.
‘Constituição de família’ concentra dois, concernentes à mudança de sua cidade
natal, devido ao seu casamento, em um momento da sua idade adulta.
‘Retorno à casa paterna’ abarca dois, explicitando o seu retorno à casa do pai e
dois a nova configuração daquele lar. Todos situam-se em um momento da idade adulta.
‘Constituição da própria casa’ congrega três, localizados em um momento da
idade adulta da participante/informante, com dois assinalando a aquisição da casa
própria, pelo seu pai, e um abordando a mudança da família para a mesma.
‘Partilha de residência’ vincula dois sobre o compartilhar de moradia com a
irmã, em momentos da sua idade adulta.
‘Desconstrução da partilha de residência’ coliga cinco, situados em um
momento da idade adulta da entrevistada: quatro reportam à sua decisão de residir
sozinha e um alude ao período em que passou a morar só.

5.5.2. O tema escola


Os conteúdos classificados neste tema abrangem sete categorias: “tipo de
escola”; “percurso escolar”; “desempenho acadêmico”; “inserção em órgão
Evenice Santos Chaves O racismo na Trajetória Escolar e Profissional... 142

colegiado”; “questionamentos à competência pessoal”; “incentivos na trajetória


escolar” e “escolha”. A configuração do modelo que une o tema, às categorias, às
subcategorias e aos marcadores temporais é apresentada na Figura 22.

Figura 22. O tema escola, categorias, subcategorias e marcadores temporais.


ESCOLA

Tipo de escola

Momento da infância
Adolescência
Ciclo de vida já vivido

Percurso escolar

Transcurso no ensino primário

Infância

Transcurso no ensino secundário

Adolescência

Transcurso no ensino superior

Juventude
Momentos da idade adulta

Transcurso no ensino de pós-graduação

Momentos da idade adulta

Desempenho acadêmico

Momentos da idade adulta

Inserção em órgão colegiado

Indicação
LEGENDA:
Momento da idade adulta

Disputa em eleição para representante discente Tema

Momento da idade adulta Categoria


Atuação como representante discente
Subcategoria
Momento da idade adulta
Marcador temporal
Desistência do papel de representante discente

Momento da idade adulta

Questionamento à competência pessoal

Momento da idade adulta

Incentivos na trajetória escolar

Infância
Momento da juventude
Sem especificação temporal

Escolha

Momento da adolescência

Fonte:Entrevista narrativa realizada com a participante/informante parda.’’

“Tipo de escola” comporta um episódio, situado em um momento da sua


infância, que reporta à natureza da escola onde a entrevistada iniciou os estudos; dois,
localizados entre a infância e a sua adolescência, que expressam o prestígio social
conferido pela participante/informante a duas escolas que freqüentou, e dois, que
Evenice Santos Chaves O racismo na Trajetória Escolar e Profissional... 143

abrangem o seu ciclo de vida já vivido, são concernentes à natureza das escolas onde ela
e os seus irmãos estudaram.
“Percurso escolar” agrupa quatro subcategorias e engloba vinte e quatro
episódios.
‘Transcurso no ensino primário’ encerra três, referentes às escolas onde ela
estudou e dois à tarefa de alfabetizadora, exercida por sua mãe, todos situados na
infância da participante/informante.
‘Transcurso no ensino secundário’ conecta cinco, relativos às escolas que
freqüentou, durante a sua adolescência.
‘Transcurso no ensino superior’ é composta por um que aponta o ingresso da
entrevistada na universidade, em sobre a minimização de um sentimento e um, que
aborda sua justificativa para tal. Todos se situam na juventude.
‘Transcurso no ensino de pós-graduação inclui três, que explicitam seus
movimentos para realizar o mestrado e seis, as suas ações para inserir-se no doutorado.
Todos se localizam em momentos da sua idade adulta.
“Desempenho acadêmico” reúne episódios situados em momentos da idade
adulta da entrevistada: quatro centram-se no período em que cursou o mestrado, com
três especificando suas atuações como estudante, um focaliza seus sentimentos em sala
de aula; treze concentram-se no doutorado, com um expressando seu sentimento frente à
aprovação e doze relacionando-se a atuações da mesma como discente.
“Inserção em órgão colegiado” é constituída por quatro subcategorias,
contendo onze episódios, todos localizados em um momento da idade adulta da
participante/informante.
‘Indicação’ aglutina dois, atinentes à sua designação para candidatar-se a
representante discente, por parte de alguns colegas.
‘Disputa em eleição para representante discente’ agrupa um sobre a eleição;
um sobre a competição entre candidatas; um sobre o pensamento de uma docente acerca
da sua candidatura e um se refere à eleição da entrevistada.
‘Atuação como representante discente’ conecta dois, que ressaltam suas ações
no exercício do cargo.
‘Desistência do papel de representante discente’ inclui três, que explicitam a
recusa da participante/informante em candidatar-se ao mesmo cargo, para concorrer a
Evenice Santos Chaves O racismo na Trajetória Escolar e Profissional... 144

um segundo mandato.
“Questionamentos à competência pessoal” compõe-se de nove episódios,
alusivos a desqualificações dirigidas a uma realização acadêmica da entrevistada e por
dois que fazem menção a ações do seu professor orientador, frente às mesmas. Todos
ocorreram em um momento da sua idade adulta.
“Incentivos na trajetória escolar” inclui nove episódios situados na infância da
entrevistada: três dizem respeito a condições construídas por seu pai, objetivando o
engajamento dos filhos nos estudos; seis são atinentes a atuações da mãe, tendo em vista
incitar o envolvimento dos filhos nos estudos. Dois, localizados em um momento da sua
juventude, são relativos ao seu envolvimento nos estudos, devido à condição de
monitora e de bolsista, e três, sem especificação temporal, mencionam comportamentos
do pai que fortaleciam o interesse da participante/informante pelos estudos.
“Escolha” atrela episódios, situados em um momento da sua adolescência: um
assinala a indecisão da entrevistada frente à escolha do curso de graduação e seis
abordam os motivos que a influenciou.

5.5.3. O tema trabalho


O referido tema abrange seis categorias: “atividade informal”; “atividade
formal”; “opção pela docência em universidade pública”; “caminhos para o
ingresso na universidade pública”; “satisfações na atividade docente” e
“insatisfações na atividade docente”, visualizadas na Figura 23.
“Atividade informal” contém três episódios, todos sem especificação temporal,
alusivos ao desempenho de um afazer, no próprio lar, o qual gerava uma pequena renda
para a entrevistada.
“Atividade formal” aglomera três subcategorias, envolvendo vinte episódios.
‘Exercício profissional como técnica’ contempla três, que dizem respeito às
atividades de trabalho realizadas pela participante/informante, em momentos da sua
idade adulta.
‘Exercício profissional como docente’ congrega sete, localizados em momentos
da idade adulta da entrevistada: três fazem referência aos locais onde trabalhou; um diz
respeito à sua primeira experiência docente; um enfatiza a desistência de um trabalho;
um é concernente à sua alocação em outra categoria funcional e o último alude a um
Evenice Santos Chaves O racismo na Trajetória Escolar e Profissional... 145

afastamento do exercício docente, para aprimorar-se profissionalmente.

Figura 23. O tema trabalho, as categorias formal e informal, subcategorias e marcadores


temporais.
TRABALHO

Atividade informal

Sem especificação temporal

Atividade formal

Exercício profissional como técnica

Momentos da idade adulta

Exercício profissional como docente

Momentos da idade adulta

Atuações no ensino superior

Momentos da idade adulta

Opção pela docência em universidade pública

Caminhos para o ingresso na universidade pública


LEGENDA:
Momentos da idade adulta
Tema
Satisfações na atividade docente

Momentos da idade adulta Categoria

Insatisfações na atividade docente Subcategoria


Momentos da idade adulta
Marcador temporal
Fonte: Entrevista narrativa realizada com a participante/informante parda.

‘Atuações no ensino superior’ concentra dez, situados em momentos da sua


idade adulta: oito são concernentes às atividades docentes desenvolvidas pela
participante/informante e dois especificam o quão foi difícil o seu desempenho docente
na atividade de ensino, ao longo do primeiro ano de trabalho como professora, na
Universidade X.
“Opção pela docência em universidade pública” incorpora cinco episódios
relacionados às razões que a conduziram a ingressar como professora universitária em
uma instituição pública de ensino, em um momento da sua idade adulta.
“Caminhos para o ingresso na universidade pública” coliga episódios
situados em momentos da idade adulta da entrevistada: dois são relativos aos concursos
a que se submeteu, em universidades públicas, e um focaliza o bloqueio pessoal pelo
qual passou, durante uma prova de seleção.
“Satisfações na atividade docente” abrange cinco episódios versando sobre o
que a agrada no desenvolvimento do trabalho na universidade, em momentos da sua
idade adulta.
Evenice Santos Chaves O racismo na Trajetória Escolar e Profissional... 146

“Insatisfações na atividade docente” aglutina três episódios que focalizam as


precárias condições para a realização das suas atividades docentes, em momentos da
idade adulta da participante/informante.

5.5.4. O tema militância


O referido tema vincula duas categorias: “participação em órgãos de classe” e
“participação no movimento negro”, cuja configuração é vista na Figura 24.
“Participação em órgãos de classe” comporta três episódios, situados em
momentos da idade adulta da entrevistada, e se referem a uma entidade onde militou e
onde milita.
“Participação no movimento negro” abrange dois episódios que aludem ao seu
engajamento no movimento negro, um, à sua dificuldade em se relacionar com um
membro daquela organização e um ao seu desligamento. Todos estão localizados em um
momento da sua idade adulta

Figura 24. O tema militância, categorias e marcadores temporais.


MILITÂNCIA

Participação em órgãos de classe

Momentos da idade adulta

Participação em movimento negro

Momento da idade adulta

Fonte: Entrevista narrativa realizada com a participante/informante parda.


LEGENDA: Tema Categorias Marcador temporal

5.5.5. O tema relações interpessoais


Aqui, agrupam-se oito categorias: “convívio com familiares”; “convívio com
parentes”; “convívio com vizinhos”; “convívio com colegas”; “convívio com
professores”; “convívio com companheiros”; “amizades” e “apoio social”.
A Figura 25, apresentada a seguir, expõe as seis primeiras categorias citadas,
observando-se que todas são referentes à convivência da participante/informante com
diversos grupos de pessoas.
“Convívio com familiares” é composta por vinte episódios, assim articulados:
três estão situados da infância a um momento da adolescência da entrevistada, com um
abordando a união entre os irmãos, um, a presença de tias no lar e um, o fato dessas
Evenice Santos Chaves O racismo na Trajetória Escolar e Profissional... 147

terem participado do processo de criação das crianças; sete estão localizados em


momentos da adolescência da participante/informante, tendo-se que dois explicitam
afazeres realizados conjuntamente pelos irmãos, um, a união entre membros da família,
um, a promessa de continuarem unidos e três, a manutenção do convívio e da realização
de atividades coletivas entre eles; sete estão temporalmente situados na sua juventude,
com três aludindo ao distanciamento entre os irmãos, um enfatizando a permanência dos
filhos na residência do pai, um se referindo à manutenção do almoço coletivo na família
e dois salientando a ocorrência de brigas entre membros da família; três estão situados
em momentos da sua idade adulta, verificando-se que dois são atinentes ao controle
exercido pelo pai da entrevistada sobre a mesma e um é alusivo à manutenção de
relacionamentos interpessoais próximos entre a participante/informante e os seus
irmãos.

Figura 25. O tema relações interpessoais, as categorias relativas ao convívio da


entrevistada com grupos de pessoas, subcategorias e marcadores temporais.
RELAÇÕES INTERPESSOAIS

Convívio com familiares

Infância/momento da adolescência
Momentos da adolescência
Juventude
Momentos da idade adulta

Convívio com parentes

Infância/sem especificação temporal


Momento da adolescência

Convívio com vizinhos

Momento da adolescência/juventude

Convívio com colegas

Momento da adolescência
Juventude
Momentos da idade adulta

Convívio com professores

Momentos da idade adulta

Convívio com companheiros

Conduta sedutora
LEGENDA:
Momento da adolescência
Tema
Namorados
Categoria
Momento da adolescência
Juventude
Momentos da idade adulta Subcategoria

Marido Marcador temporal


Momentos da idade adulta
Fonte: Entrevista narrativa realizada com a participante/informante parda.

“Convívio com parentes” engloba quatro episódios: dois, localizados entre a


Evenice Santos Chaves O racismo na Trajetória Escolar e Profissional... 148

sua infância e um período sem especificação temporal, concernem ao relacionamento de


uma tia e do seu marido com a família da entrevistada, enquanto dois outros, situados
em um momento da sua adolescência, mencionam desavenças e rompimento de relações
entre membros da sua família de origem e parentes maternos.
“Convívio com vizinhos” reúne dois episódios, situados de um momento da
adolescência à juventude da participante/informante: um assinala o distanciamento entre
a família da entrevistada e uma amiga, enquanto o outro aborda um contato anual que
essa amiga estabelecia com os membros da referida família.
“Convívio com colegas” agrega vinte e nove episódios. Um diz respeito à etnia
de uma estudante com quem a participante/informante se relacionava no ginásio, em um
momento da sua adolescência; seis, temporalmente localizados na sua juventude, sendo
que dois fazem referência à única colega com quem a entrevistada se relacionou em
parte da sua graduação, um assinala a ampliação do seu círculo de colegas e três
enfatizam a formação de um grupo de estudos, nos anos finais da graduação; vinte e
dois estão situados em momentos da sua idade adulta, verificando-se que um é relativo
aos mestrandos com os quais fez amizade, três são atinentes ao grupo de mestrandos do
qual fez parte, cinco centram-se nas atividades que os membros desse grupo realizavam
conjuntamente, um faz menção à participação de apenas uma colega da Cidade A no
grupo, um aponta a presença dessa na casa da entrevistada, dois focalizam a
discriminação direcionada a tal colega por outros mestrandos, um justifica o apelido
dirigido por outros mestrandos à colega já citada, um versa sobre uma animosidade
entre a entrevistada e uma colega, dois focalizam as diferenças com as quais passou a
conviver, em uma situação de trabalho, um alude à dificuldade nessa convivência, um
aborda problemas no seu relacionamento com funcionários, na Universidade X, dois
estão centrados em uma briga com uma colega e, finalmente, um diz respeito ao seu
posterior arrependimento.
“Convívio com professores” é constituída por dezesseis episódios, localizados
em momentos da sua idade adulta: dois ressaltam comentários de um professor que
desagradou muitos mestrandos; um explicita a ausência de um vínculo de amizade entre
a participante/informante e uma docente, no mestrado; um versa sobre a negativa dessa
professora em prestar-lhe um favor; um é alusivo ao seu desagrado, decorrente dessa
negativa; dois são referentes a comentários dessa professora sobre o seu desempenho
Evenice Santos Chaves O racismo na Trajetória Escolar e Profissional... 149

nas aulas; um é alusivo ao questionamento realizado pelo professor orientador sobre o


seu mutismo nas aulas; um ressalta uma característica do seu professor orientador, no
mestrado; três mencionam o desempenho desse como orientador da sua dissertação;
dois abordam o modo como foi ignorada nas reuniões do colegiado pelos professores
daquela pós-graduação e dois fazem alusão ao diálogo iniciado por um professor sobre
o seu silêncio nas aulas de uma disciplina do doutorado.
O tema relações interpessoais ainda engloba duas categorias, que podem ser
visualizadas na Figura 26.
“Convívio com companheiros” abrange três subcategorias, aglutinando vinte e
nove episódios.
‘Conduta sedutora’ inclui um, referente à sua ação que objetivava despertar o
interesse de um rapaz por ela; um, focalizando o interesse do moço; um, alusivo ao
pedido de namoro e um à aceitação do mesmo, em um momento da sua adolescência.

Figura 26. O tema relações interpessoais, as categorias amizades e apoio social,


subcategorias e marcadores temporais
RELAÇÕES INTERPESSOAIS

Amizades

Adolescência
Juventude
Infância/juventude
Momentos da idade adulta
Adolescência/momento da idade adulta
Juventude/idade adulta

Apoio social
0
Membros da família de origem

Momento da adolescência
Juventude
Momentos da idade adulta

Parentes

Infância
Adolescência

Vizinhos

Infância

Amigas

Momento da idade adulta

Colegas
LEGENDA:
Momento da juventude
Juventude Tema
Momentos da idade adulta

Namorados Categoria

Momentos da idade adulta Subcategoria

Entidades profissionais Marcador temporal


Momentos da idade adulta

Fonte: Entrevista narrativa realizada com a participante/informante parda.


Evenice Santos Chaves O racismo na Trajetória Escolar e Profissional... 150

‘Namorados’ contém quatro, localizados em um momento da sua adolescência,


versando sobre o primeiro namorado da entrevistada; dois localizam-se na juventude e
aludem ao seu segundo namorado; cinco estão situados em momentos da sua idade
adulta, observando-se que um se relaciona ao sentimento emergente em um
relacionamento amoroso, três focalizam mudanças em seu comportamento nessa mesma
relação e um ressalta o estabelecimento de outro vínculo de namoro.
‘Marido’ é formada por episódios, circunscritos a um momento da idade adulta
da participante/informante: dois explicitam sentimentos do cônjuge frente à tristeza da
entrevistada e dois são alusivos ao comportamento do esposo, no início do casamento.
“Amizades” elenca vinte e quatro episódios: oito, situados na sua adolescência,
com quatro versando sobre a escassez de amizades, um referindo-se ao comportamento
protetor de uma colega e amiga para consigo, um reportando à condição econômica
dessa amiga, um concernindo às conversas entre ambas e um às amizades duradouras
que construiu durante o curso pré-vestibular; três, situados na juventude da entrevistada,
observando-se que um enfatiza o único vínculo de amizade que ela construiu no início
da graduação e dois especificam os fazeres de ambas; dois, localizados da infância à
juventude da participante/informante, abordam a cor de suas amigas; oito situados em
momentos da sua idade adulta, na Cidade B, verificando-se que cinco centram-se em
amizades construídas naquele local e quatro enfocam a expansão do seu grupo de
amigos, após ingressar como docente na Universidade X; dois transcorrem da
adolescência a um momento da sua idade adulta, com um versando sobre a sua condição
de mais pobre dentre as amigas das escolas que freqüentou, segundo as mesmas, e o
outro sobre a sua ressalva de que, ainda assim, tinha muitos amigos; por fim, há um
episódio situado da juventude à idade adulta da entrevistada, atinente a amizades que
construiu na graduação e ainda perduram.
“Apoio social” compõe-se de sete subcategorias, abrangendo quarenta e oito
episódios.
‘Membros da família de origem’ atrela um referente à busca de suporte
financeiro, pelo pai da entrevistada, para que ela freqüentasse o cursinho, em um
momento da sua adolescência; um sobre a ajuda provida pelo pai na compra de livros,
na sua juventude, e um, que aborda a solidariedade no relacionamento entre a
participante/informante e seus irmãos, em momentos da sua idade adulta.
Evenice Santos Chaves O racismo na Trajetória Escolar e Profissional... 151

‘Parentes’ contém nove, que dizem respeito à colaboração de parentes, maternos


e paternos, tendo em vista a superação de dificuldades que a família atravessava,
durante a infância da entrevistada; oito estão situados em sua adolescência, com um
atinente às pessoas que forneceram suporte a membros da sua família, cinco enfocando
o suporte oferecido por uma tia materna, um relativo ao suporte fornecido por uma tia
paterna e por primas e o outro focalizando a retribuição, em forma de auxílio, oferecida
a essas primas pelo pai da entrevistada.
‘Vizinhos’ agrupa um, o qual nomeia uma vizinha que ajudava a sua mãe nas
lidas do lar, e um, especificando a atividade doméstica que essa pessoa realizava, na sua
casa. Ambos estão temporalmente situados na infância da participante/informante.
‘Amigas’ contempla dois, cujos conteúdos enfocam as amigas da entrevistada
que atuaram como sustentáculo, quando da sua separação, e dois, que reafirmam o
suporte fornecido pelas mesmas. Todos os episódios concentram-se em um momento da
idade adulta da participante/informante.
‘Colegas’ envolve um, mencionando o auxílio que colegas forneceram à
entrevistada nos estudos, em um momento da sua juventude; um, situado no período da
juventude, relativo às caronas que muitos colegas ofereciam, do percurso de sua casa à
universidade; seis, concentrados em momentos da idade adulta, com três nomeando dois
colegas que atuaram como suporte e referência para a participante/informante, quando
do seu ingresso como docente na Universidade X, dois abordando a disponibilidade de
pessoas no fornecimento de ajuda à entrevistada e um assinalando os docentes como
solidários para com ela, quando iniciou sua carreira como professora universitária
naquela instituição de ensino.
‘Namorados’ concentra treze, localizados em momentos da sua idade adulta: um
enfatiza a ajuda fornecida por um namorado; oito reportam a suportes providos por dois
namorados, via encorajamentos verbais à entrevistada, quando a mesma se encontrava
diante de situações que deveria enfrentar; dois relativos ao suporte oferecido por um
namorado, através do compartilhamento de atividades preparatórias para um concurso
público que a participante/informante iria se submeter; um focaliza o limite no suporte
que um namorado forneceu, quando ela preparava-se para o doutorado, e um, relativo ao
suporte oferecido por um namorado, expresso em sua crença sobre a capacidade da
entrevistada.
Evenice Santos Chaves O racismo na Trajetória Escolar e Profissional... 152

‘Entidades profissionais’ incorpora um sobre a contribuição de duas entidades


na superação do medo da entrevistada, em momentos da sua idade adulta.

5.5.6. O tema obstáculos


Esse, reúne duas categorias: “dificuldades sociais” e “dificuldades pessoais”,
cujo modelo configuracional é apresentado na Figura 27.
“Dificuldades sociais” engloba quatorze episódios, assim distribuídos: dois
localizados na infância da entrevistada, com um enfocando a existência de muitas
dificuldades na família e um, a principal dificuldade enfrentada; cinco situados em
momentos da sua adolescência, um aludindo à realização de uma tarefa doméstica, pela
entrevistada, e conseqüentes brigas no seio da família, dois se referindo às longas
caminhadas que ela e os irmãos faziam diariamente, para irem e voltarem da escola, e
dois versando sobre a ausência de um carro na família, para a locomoção dos seus
membros; um, ocorrido na juventude da participante/informante, a respeito da existência
de poucas dificuldades durante a sua graduação e seis, localizados em um momento da
sua idade adulta, abordando o desvanecimento do que havia construído na Cidade A, em
terrmos de amizades, grupo de estudo e trabalho.

Figura 27. O tema obstáculos, categorias e marcadores temporais.


OBSTÁCULOS

Dificuldades sociais

Infância
Momentos da adolescência
Juventude

Dificuldades pessoais

Adolescência
Momentos da idade adulta

Fonte: Entrevista narrativa realizada com a participante/informante parda.


LEGENDA: Tema Categorias Marcador temporal

“Dificuldades pessoais” incorpora onze episódios: seis situados na adolescência da


entrevistada, observando-se que um ressalta a sua dificuldade em construir amizades,
dois assinalam a sua incapacidade de fazer amizades, em um dado bairro, dois são
concernentes ao restritivo espaço social que ocupava, devido à ausência de amizades, e
um explicita a escassez de amizades e inexistência de um grupo de amigos do qual
participasse; cinco localizam-se em momentos da sua idade adulta, constatando-se que
Evenice Santos Chaves O racismo na Trajetória Escolar e Profissional... 153

dois abordam um conflito de papéis frente a grupos com os quais poderia estabelecer
vínculos de amizades, durante a realização do mestrado, um alude ao quão foi difícil
demonstrar que tinha capacidade, durante o curso de mestrado; um é concernente à sua
insegurança como docente, quando começou a ministrar aulas na Universidade X, e um
faz referência ao seu comportamento de estudar com os alunos.

5.5.7. O tema facilidades


O citado tema é formado pelas categorias “subsídios sociais” e “habilidades
pessoais”, conforme exposto na Figura 28.

Figura 28. O tema facilidades, categorias e marcadores temporais.


FACILIDADES

Subsídios sociais

Infância
Juventude Fonte: Percentuais
Momento da idade adulta
obtidos a partir de
Habilidades pessoais
dados censitários
Momentos da idade adulta produzidos pelo
Fonte: Entrevista narrativa realizada com a participante/informante parda.
LEGENDA: Tema Categorias Marcador temporal

“Subsídios sociais” inclui cinco episódios: dois mencionam a disponibilidade de


livros e de material escolar no lar da entrevistada, durante a infância; dois estão situados
na sua juventude, com um concernindo a recursos oferecidos pela universidade e um à
sua possibilidade em comprar livros para estudar, durante o curso de graduação; um
localiza-se em momentos da sua idade adulta e assinala a oportunidade que a instituição
universitária lhe ofereceu para conhecer pessoas de vários setores.
“Habilidades pessoais” aglutina três episódios, temporalmente fincados em
momentos da idade adulta da participante/informante: um aborda a sua competência no
inglês, durante o curso de mestrado, e dois aludem à sua organização, no desempenho
da atividade docente.

5.5.8. O tema lazer


Esse, inclui a categoria “divertimentos”, cujo modelo configuracional está na
Figura 29. A mesma agrupa vinte e oito episódios: quinze, localizados da infância a um
Evenice Santos Chaves O racismo na Trajetória Escolar e Profissional... 154

momento da sua adolescência, com nove assinalando brincadeiras das quais participou,
dois abordando passeios que realizava, um expondo que poucas meninas residiam em
sua rua, um ressaltando que raramente brincava com elas, um especificando o espaço
para o lazer na sua casa e um expondo o partilhar desse com os meninos; três, situados
em momentos da sua adolescência, tendo-se que dois aludem aos entretenimentos
compartilhados no lar com os irmãos e um assinala a diversão partilhada com colegas
do cursinho; três, situados na sua juventude, abordam as atividades sociais que realizava
com o namorado; sete, ocorridos em momentos da sua idade adulta, com dois enfocando
passeios efetuados na Cidade B, três enfatizando a presença de uma colega da Cidade A
no seu grupo de diversão, um aludindo a um dado passeio propiciado por essa colega e
um abordando um tipo de diversão partilhado com o grupo de colegas, também amigos.

Figura 29. O tema lazer, categoria e marcador temporal.


LAZER

Divertimentos

Infância/momento da adolescência
Momentos da adolescência
Momentos da juventude
Momentos da idade adulta

Fonte: Entrevista narrativa realizada com a participante/informante parda.

LEGENDA: Tema Categoria Marcador temporal

5.5.9. O tema racismo


O mesmo compõe-se de quatro categorias: “invisibilidade”, “mascaramento”,
“rejeição à característica fenotípica” e “discriminação étnica”, cuja conformação é
visualizada na Figura 30.
“Invisibilidade” agrupa nove episódios, situados ao longo do ciclo de vida já
vivido pela participante/informante: um enfoca a ausência de lembranças sobre sentir-se
racialmente discriminada, um, a ausência de lembranças sobre a observação do racismo
dirigido a outros, dois, a probabilidade de ter presenciado cenas de racismo e esquecido
delas, quatro, a inexistência de um sentimento de discriminação, devido à sua cor, e um,
a possibilidade de ter sido objeto do racismo, mas isso lhe foi imperceptível.
“Mascaramento” reúne sete episódios: seis situam-se na sua juventude e um em
um momento da idade adulta, no entanto, todos são referentes ao modo dissimulado
através do qual o racismo era dirigido à participante/informante.
Evenice Santos Chaves O racismo na Trajetória Escolar e Profissional... 155

“Rejeição à característica fenotípica” agrega seis episódios, temporalmente


situados da infância a um momento da sua idade adulta, verificando-se que dois fazem
alusão à natureza do seu cabelo, um concerne ao artifício empregado pela entrevistada
para modificar a aparência do mesmo, um especifica que há pouco tempo deixou de
empregá-lo e dois explicitam que desde criança não gosta do próprio cabelo.

Figura 30. O tema racismo, categorias, subcategorias e marcadores temporais.


RACISMO

Invisibilidade

Ciclo de vida já vivido

Mascaramento

Juventude
Momento da idade adulta

Rejeição à característica fenotípica

Infância/momento da idade adulta

Discriminação étnica

Inferiorização
LEGENDA:
Infância/adolescência
Adolescência
Tema
Segregação
Categoria
Adolescência
Momento da idade adulta
Ciclo de vida já vivido
Subcategoria

Significado do racismo Marcador temporal

Ciclo de vida já vivido

Fonte: Entrevista narrativa realizada com a participante/informante parda.

“Discriminação étnica” é constituída por duas subcategorias e dez episódios:


‘Inferiorização’ elenca dois, localizados da infância à adolescência, referentes
ao modo como desmerecia uma amiga, através da denominação racial dirigida à mesma,
enquanto um outro, situado na juventude da entrevistada, enfatiza a sua condição de
bonitinha, porém inferior em termos sócio-econômico.
‘Segregação’ aglutina três, ocorridos na sua adolescência, com dois atinentes à
inexistência de amigos brancos, no ginásio e no científico, e um à cor de suas amigas;
três, localizados em um momento da idade adulta, com um centrado no sentimento de
discriminação que experienciou na Universidade Y e dois na distância imposta por
colegas, naquela instituição; um é alusivo ao sentir-se discriminada devido à sua
condição econômica, durante o ciclo de vida já vivido pela participante/informante.
“Significado do racismo” conecta três episódios que percorreram o seu ciclo de
Evenice Santos Chaves O racismo na Trajetória Escolar e Profissional... 156

vida já vivido: dois versam sobre o seu sentimento de inferioridade e um sobre o


comportamento reivindicatório dos negros, para superarem o mesmo.

5.5.10. O tema estratégias de enfrentamento


Duas categorias formam este tema: “luta” e “fuga”, cujo modelo que relaciona
o tema, as categorias e os marcadores temporais estão na Figura 31.
“Luta” inclui sete episódios: dois, temporalmente situados em um momento da
adolescência, ressaltam o engajamento da entrevistada nos estudos, visando a enfrentar
o vestibular, porque desejava ser aprovada; cinco estão localizados em momentos da sua
idade adulta, sendo que um explicita a decisão de separar-se do marido, comunicando-a
ao mesmo, um é referente à sua saída da residência, um menciona o seu engajamento
nos estudos para submeter-se a um concurso público, um é atinente à realização do
mestrado sem a devida orientação docente e o outro diz respeito à sua iniciativa em
romper com um relacionamento amoroso.

Figura 31. O tema estratégias de enfrentamento, categorias e marcadores temporais.


ESTRATÉGIAS DE ENFRENTAMENTO

Luta

Momento da adolescência
Momentos da idade adulta

Fuga

Momento da adolescência
Momentos da idade adulta

Fonte: Entrevista narrativa realizada com a participante/informante parda.


LEGENDA: Tema Categorias Marcador temporal

“Fuga” compõe-se de cinco episódios: um, localizado em um momento da sua


adolescência, assinala o modo com o qual a participante/informante escondia dos seus
familiares que ia ao cinema; quatro estão situados em momentos da sua idade adulta,
com um expressando a desistência de prestar um concurso por achar-se incapaz, um, o
seu afastamento de uma entidade, devido à sua dificuldade de se relacionar com uma
pessoa e dois, a tática que empregava para esquivar-se do controle paterno.

5.5.11. O tema pessoalidade


Esse tema contempla três categorias: “auto-atribuição de características”,
Evenice Santos Chaves O racismo na Trajetória Escolar e Profissional... 157

“aspirações” e “avaliações”. Uma configuração que engloba as duas primeiramente


citadas é apresentada na Figura 32.

Figura 32. O tema pessoalidade, as categorias auto-atribuição de características e


aspirações, subcategorias e marcadores temporais.
PESSOALIDADE

Auto-atribuição de características

Valorizadora

Momento da idade adulta LEGENDA:


Facilitadora
Tema
Momento da idade adulta
Categoria
Desvalorizadora
Subcategoria
Momentos do ciclo de vida já vivido

Limitadora Marcador temporal

Momentos do ciclo de vida já vivido

Aspirações

Mudança na situação social

Adolescência/momento da idade adulta


Momento da idade adulta

Construção de relacionamento interpessoal

Momento da idade adulta

Fonte: Entrevista narrativa realizada com a participante/informante parda.

“Auto-atribuição de características” atrela quatro subcategorias e trinta e


cinco episódios.
‘Valorizadora’ incorpora oito sobre peculiaridades da entrevistada, nas quais a
mesma se autovaloriza, em um momento da sua idade adulta.
‘Facilitadora’ inclui oito, atinentes às suas novas características pessoais que
facilitam a convivência com as pessoas, em um momento da idade adulta.
‘Desvalorizadora’ concentra seis, referentes ao seu sentimento de inferioridade e
submissão, ao longo do ciclo de vida já vivido.
‘Limitadora’ abarca episódios focalizados no modo de ser da entrevistada, ao
longo do seu ciclo de vida já vivido: onze enfatizam sentimentos, um assinala seu
isolamento social e um a sua constante necessidade de apoio social.
“Aspirações” abrange duas subcategorias, englobando cinco episódios.
‘Mudança na situação social’ inclui um sobre pretender a ascenção econômica;
dois, o almejar a casa própria, para residir sozinha, desde a adolescência a um momento
da idade adulta, e um, o realizar essas pretensões, em um momento da sua idade adulta.
Evenice Santos Chaves O racismo na Trajetória Escolar e Profissional... 158

‘Construção de relacionamento interpessoal’ abrange um episódio acerca da


sua vontade de estabelecer amizade com determinada professora, durante o mestrado,
tal qual um colega, em um momento da idade adulta da entrevistada.
“Avaliações” conecta dezessete subcategorias, incluindo setenta e três episódios
situados em um momento da idade adulta da participante/informante. Os referidos
episódios enfatizam julgamentos elaborados pela mesma, quando, neste estudo,
reconstruiu uma narrativa de vida. O modelo representativo dessa categoria, que faz
parte do tema pessoalidade está na Figura 33.
‘Condição econômica’ comporta um, concernente à interpretação de que a sua
condição econômica era um entrave para locomover-se até a escola e outro, relativo à
interpretação da própria situação social como produtora do sentimento de inferioridade
frente a outras pessoas.
‘Meio social’ inclui um, relativo a apreciação da entrevistada sobre o meio
social onde viveu e o sentimento emergente, durante a infância e a adolescência.
‘Universidade’ contém um que assinala a sua interpretação sobre as principais
dificuldades enfrentadas no seu espaço de trabalho.
‘Trajetória escolar’ congrega dois, centrados no julgamento de uma implicação
da morte de sua mãe em seu rendimento escolar e no de seus irmãos; três, enfocando a
valoração positiva do período em que freqüentou o cursinho; um, expressando a sua
interpretação positiva da universidade como um espaço propiciador da construção de
amizades e dois se referindo ao ajuizamento sobre a sua participação como estudante do
curso de mestrado, na Universidade Y.
‘Trabalho’ engloba oito, relativos à ponderação da participante/informante sobre
a sua experiência como docente, em três instituições de ensino.
‘Desempenho profissional’ envolve dois alusivos à apreciação que faz sobre a
mudança qualitativa em sua atuação como docente e o reconhecimento de outros frente
ao seu trabalho, respectivamente.
‘Racismo’ elenca três que expressam a sua interpretação sobre implicações do
racismo na sua vida e três sobre tais implicações na vida dos negros em geral.
‘Origem étnica’ agrupa dois, evidenciando a apreciação da entrevistada sobre a
relevância que atribui ao fortalecimento da sua afrodescendência; um, aludindo à
ponderação de que, recentemente, passou a experienciar o sentimento de orgulho pela
Evenice Santos Chaves O racismo na Trajetória Escolar e Profissional... 159

sua descendência e um concernente ao ajuizamento de que, nos últimos tempos, vem


assumindo uma característica fenotípica negra.

Figura 33. O tema pessoalidade, a categoria avaliações, subcategorias e marcadores


temporais.
PESSOALIDADE

Avaliações

Condição econômica

Momento da idade adulta

Meio social

Momento da idade adulta

Meio universitário

Momento da idade adulta

Universidade

Momento da idade adulta

Trajetória escolar

Momento da idade adulta

Trabalho

Momento da idade adulta

Desempenho profissional

Momento da idade adulta

Racismo

Momento da idade adulta

Origem étnica

Momento da idade adulta

Vizinhos

Momento da idade adulta

Professores

Momento da idade adulta

Companheiros

Momento da idade adulta

Pessoas LEGENDA:
Momento da idade adulta
Tema
Características pessoais
Categoria
Momento da idade adulta
Subcategoria
Estilo de vida na trajetória profissional

Momento da idade adulta Marcador temporal

Fonte: Entrevista narrativa realizada com a participante/informante parda.

‘Vizinhos’ inclui um, o qual assinala o julgamento da participante/informante


sobre características de uma vizinha, com a qual conviveu durante a infância.
‘Parentes’ comporta um, atinente ao seu ajuizamento sobre suas relações com a
tia-madrinha e o cônjuge.
Evenice Santos Chaves O racismo na Trajetória Escolar e Profissional... 160

‘Professores’ incorpora dois sobre a apreciação que faz de professores do curso


de graduação e um sobre aqueles do mestrado.
‘Companheiros’ atrela três, incluindo juízos da entrevistada sobre contribuições
de namorados ao seu crescimento e dois sobre a importância que dois lhe conferiam.
‘Pessoas’, formada por quatro referentes a julgamentos da entrevistada sobre as
pessoas residentes na Cidade E.
‘Características pessoais’ vincula doze, englobando suas apreciações sobre
aspectos da própria singularidade.
‘Estilo de vida na trajetória pessoal’ agrega onze, relativos à valoração que a
participante/informante atribui a momentos existenciais do seu ciclo de vida já vivido.
‘Apoio social’ abrange um, alusivo à interpretação realizada pela entrevistada de
que um grupo estável ajuda os seus membros e três, referentes ao ajuizamento de que
estava sem suporte no doutorado.

5.6. O sistema classificatório decorrente dos dados produzidos pela


entrevista narrativa realizada com a participante/informante branca

5.6.1. O tema família


O referido tema abarca seis categorias: “inserção social da família de origem”;
“composição familiar na família de origem”; “características de membros da
família de origem”; “atividades de membros da família de origem”; “estilo de vida
na família de origem” e “reconstruções familiares”. O modelo representativo desse
sistema categorial está na Figura 34.
A categoria “inserção social da família de origem” articula duas subcategorias
com três episódios.
‘Moradia’ elenca um, que salienta uma característica da casa onde a entrevistada
residiu e o outro, que aborda a existência de outras residências, próximas à sua casa. Os
episódios situam-se, temporalmente, na sua infância.
‘Situação social’ compõe-se de um que explicita o rendimento financeiro do seu
pai, da infância à juventude da entrevistada.
A categoria “composição familiar na família de origem” agrega dois
episódios, situados em sua infância: um menciona a quantidade e o gênero dos filhos e o
Evenice Santos Chaves O racismo na Trajetória Escolar e Profissional... 161

outro localiza a posição da participante/informante em relação aos irmãos.


Figura 34. O tema família, as categorias e subcategorias constitutivas e marcadores
temporais.
FAMÍLIA

Inserção social da família de origem

Moradia

Infância

Situação social

Infância/juventude

Composição familiar na família de origem

Infância

Características de membros da família de origem

Infância/adolescência
Infância/momento da idade adulta

Atividades de membros da família de origem

Infância
Momento da adolescência

Estilo de vida na família de origem

Maneira de viver

Infância
Adolescência
Infãncia/juventude
Ciclo de vida já vivido

Práticas educativas

Momento da infância
Infância/juventude

Realizaçãs de tarefas

Infância/adolescência

Reconstruções familiares

Constituição da casa própria

Momento da idade adulta

Partilha de residência com companheiro

Momento da idade adulta


LEGENDA:
Desconstrução da partilha de residência
Tema
Momento da idade adulta
Categoria
Reconstrução da partilha de residência

Momento da idade adulta


Subcategoria

Término da partilha de residência Marcador temporal

Momento da idade adulta

Fonte: Entrevista narrativa realizada com a participante/informante branca.

A categoria “características de membros da família de origem” reúne um


episódio sobre um comportamento emitido pelo pai da entrevistada, da sua infância à
adolescência, e um, que ocorreu da sua infância a um momento da idade adulta,
especifica a avareza do seu genitor.
A categoria “atividades de membros da família de origem” inclui um episódio
Evenice Santos Chaves O racismo na Trajetória Escolar e Profissional... 162

referente ao fato da sua mãe confeccionar as roupas dos filhos, durante a infância da
participante/informante, e dois, situados em um momento da sua adolescência, relativos
à atividade de costureira que sua genitora desempenhou.
A categoria “estilo de vida na família de origem” abrange três subcategorias
que abrangem vinte e cinco episódios.
‘Maneira de viver’ engloba três, situados na infância da participante/informante,
alusivos a um cuidado dispensado pela mãe à saúde dos filhos; sete concentrados na sua
adolescência, sendo um atinente à ausência de participação da entrevistada em festas,
um, à permanência de sua progenitora no lar, um, ao comportamento do seu pai de não
prestar informações, um, à ausência do seu genitor no ambiente doméstico e três à
intermediação da mãe da participante/informante entre a mesma e o seu progenitor; um,
que se estende da sua infãncia à juventude, o qual assinala brigas entre o pai e a mãe;
oito, situados na idade adulta da entrevistada, com um aludindo à intermediação de uma
cunhada nas suas negociações com um irmão, dois abarcando o lugar da sua mãe como
ponto de aglutinação dos membros da família, um mencionando a figura materna
enquanto pólo de segurança para os filhos, um referente à figura do pai como uma
pessoa ausente, um relativo à inexistência do sentimento de união entre os irmãos e dois
concernentes à qualidade de cumprimentos entre os membros da família, em duas festas
eminentemente familiares, e um último, que ressalta a ausência de manifestação de atos
carinhosos do seu genitor para com os filhos, em todo o ciclo de vida já vivido pela
participante/informante.
‘Práticas educativas’ engloba um, versando sobre a insistência da mãe para que
os filhos fizessem a primeira comunhão, em um momento da infância da entrevistada,
dois, localizados entre a sua infância e a juventude, sendo um referente à valorização do
estudo, por parte de sua mãe, e outro que ressalta a não priorização dos estudos, pelo
seu pai.
‘Realização de tarefas’ abrange três, atinentes a atividades realizadas no lar
pelas pearticipante/informante, da infância à adolescência.
“Reconstruções familiares” conecta cinco subcategorias, com nove episódios,
situados em momentos da idade adulta da entrevistada.
‘Constituição da casa própria’ aglutina dois alusivos ao passar a residir sozinha
e um à comunicação dirigida à sua mãe sobre a decisão de mudar-se da casa dos pais.
Evenice Santos Chaves O racismo na Trajetória Escolar e Profissional... 163

‘Partilha de residência com companheiro’ constitui-se de um, no qual a


entrevistada sinaliza o momento em que passou a dividir um lar com um consorte.
‘Desconstrução da partilha de residência’ agrega dois, referentes à sua decisão
de se separar e um episódio que especifica onde cada um passou a residir, após a
separação.
‘Reconstrução da partilha de residência’ elenca um, relativo à reconciliação do
casal.
‘Término da partilha de residência’ enfoca um sobre a sepação em definitivo da
participante/informante e outro, concernente à sua condição atual de estar sem um
companheiro.

5.6.2. O tema escola


Esse tema coliga as categorias “tipos de escola”; “percurso escolar”; “rotinas
escolares”; “participação de familiares em atividades da escola”; “incentivos na
trajetória escolar”; “desempenho acadêmico” e “escolhas”. A Figura 35 mostra a
sua configuração.
“Tipos de escola” envolve dois episódios referentes à modalidade da escola em
que a participante/informante estudou durante a infância; dois episódios, situados em
sua adolescência, sendo um relativo à natureza de um colégio que freqüentou e um
atinente à denominação de outro que posteriormente freqüentou. Por fim, um episódio
enfoca o tipo de escola que a entrevistada e seus irmãos freqüentaram, ao longo do seu
ciclo de vida já vivido.
“Percurso escolar” é formada por quatro subcategorias, envolvendo sessenta
episódios.
‘Transcurso no ensino fundamental’ contém um, concernente à obtenção de
uma bolsa de estudos para a participante/informante freqüentar um dado colégio; sete,
atinentes a características dessa escola; um, mencionando até quando ela estudou na
instituição; um, salientando o motivo de sua saída do estabelecimento e dois ressaltando
os motivos responsáveis pela sua transferência para outra escola. Todos esses episódios
situam-se na infância da entrevistada. Essa subcategoria ainda inclui um episódio,
situado em um momento da sua adolescência, o qual especifica o colégio onde ela
estudou nesse espaço de tempo.
Evenice Santos Chaves O racismo na Trajetória Escolar e Profissional... 164

Figura 35. O tema escola, categorias, subcategorias e marcadores temporais.


ESCOLA

Tipos de escola

Infância
Adolescência
Ciclo de vida já vivido

Percurso escolar

Transcurso no ensino fundamental

Infância
Momento da adolescência
LEGENDA:
Transcurso no ensino médio
Tema
Momentos da adolescência
Categoria
Transcurso no ensino superior
Subcategoria
Juventude

Transcurso no ensino de pós-graduação Marcador temporal

Momentos da idade adulta

Desempenho acadêmico

Infância
Adolescência
Infância/idade adulta

Participação de familiares em atividades na escola

Infância

Rotinas escolares

Momentos da infância
Momentos da adolescência

Incentivos na trajetória escolar

Infância

Escolha

Momento da adolescência

Fonte: Entrevista narrativa realizada com a participante/informante branca.

‘Transcurso no ensino médio’ agrega doze, localizados em momentos da


adolescência da participante/informante: um assinala o seu contato com outros grupos,
em um colégio; dois sublinham brigas entre colegas da sua sala; três dizem repeito ao
uniforme de educação física do referido colégio; um contém o seu desagrado com o
short desse uniforme; um aborda a sua necessidade de usar um short diferente; um
ressalta a confecção desse short; um faz alusão à mudança de escola; um focaliza a
instituição escolar onde a entrevistada concluiu o ensino médio e um faz referência à
oferta de bolsas de estudo em um cursinho.
‘Transcurso no ensino superior’ contempla doze, temporalmente situados na
sua juventude: um indica o nível sócio-econômico de colegas da sua turma de
graduação; três aglutinam conteúdos sobre a sua condição de bolsista de iniciação
Evenice Santos Chaves O racismo na Trajetória Escolar e Profissional... 165

científica; um é alusivo aos ganhos propiciados pela condição de bolsista; um salienta o


ganho financeiro que a sua participação em um projeto da universidade proporcionou;
um é relativo à interrupção dos estudos; dois fazem referência ao seu atraso curricular;
dois dizem respeito à modalidade da graduação que concluiu e um especifica o tempo
que foi necessário para a conclusão do curso superior.
‘Transcurso no ensino de pós-graduação’ agrega vinte e três: dois assinalam a
realização de uma especialização; cinco relatam o quão foi difícil esse período; quatro
abordam mudanças na sua rotina escolar; um enfoca o seu ingresso no mestrado; um
centra-se no contato com o professor orientador; dois abordam o tema da sua
dissertação; um assinala a conclusão desse curso; um, a sua decisão de transferir-se de
cidade; quatro vinculam-se à tristeza de sua mãe; um explicita a sua viagem e outro, a
data do término do doutorado. Todos ocorreram em momentos da idade adulta da
entrevistada.
“Rotinas escolares” agrega dois episódios situados em momentos da sua
infância, com um referente a aprendizagens que ocorreram em uma escola e outro à sua
exclusão de uma atividade recreativa, no mesmo estabelecimento. Relativamente a
episódios ocorridos em momentos da adolescência da entrevistada, verifica-se que dois
ressaltam diferenças entre dois colégios e um faz menção a uma atividade que a
participante/informante desenvolveu em outra escola que freqüentou.
“Participação de familiares em atividades na escola” reúne cinco episódios,
localizados na sua infância, com um contemplando a ausência de convites para o seu pai
comparecer às festas escolares, três especificando a presença da sua genitora nesses
eventos e um versando sobre o orgulho da participante/informante em levá-la às festas
escolares.
“Incentivos na trajetória escolar” congrega oito episódios, com ocorrência em
sua infância: sete retratam a distinção conferida por professoras ao seu desempenho
escolar e um enfatiza sentimentos de valorização experienciados pela entrevistada. Essa
categoria ainda inclui três episódios, localizados em um momento da sua adolescência,
sendo um relativo ao seu primeiro salário, como estagiária, um referente ao que esse
salário lhe propiciou e um atinente à observação de eventos no ambiente de trabalho do
estágio.
“Desempenho acadêmico” incorpora um episódio, situado na sua infância, que
Evenice Santos Chaves O racismo na Trajetória Escolar e Profissional... 166

diz respeito à sua condição de melhor aluna na classe; dois, localizados na sua
adolescência, com um relativo ao destaque que lhe era conferido, nas escolas, pelo fato
de ser estudiosa e dois relativos ao seu comportamento de estudar; um, temporalmente
situado da infância à idade adulta, alusivo às ressalvas dos professores sobre suas boas
notas, durante o seu percurso escolar.
“Escolhas” agrega seis episódios, localizados em um momento da adolescência
da entrevistada, sobre os fatores que influenciaram na escolha de um determinado curso
de graduação.

5.6.3. O tema trabalho


Trabalho, enquanto tema, comporta duas categorias: “atividade informal” e
“atividade formal”.
“Atividade informal” é formada por nove episódios, situados em um momento
da adolescência da participante/informante: cinco relacionam-se com o seu processo de
inserção em um estágio, um alude à atividade que desenvolveu, dois às justificativas
que conferiam relevância ao estágio e um às incongruências entre as justificativas e o
que o estágio ofereceu. Três outros episódios localizam-se na juventude da entrevistada,
com um referente à sua atividade de fazer doces e vendê-los e dois centrados em um
trabalho temporário que realizou.
A categoria “atividade formal” incorpora três subcategorias, envolvendo
quarenta episódios.
‘Oferta de emprego em empresa’ elenca dois, referentes a convite para trabalhar
em uma empresa, em um momento da sua juventude da entrevistada.
‘Exercício profissional como técnica’ agrupa cinco: três sobre as às funções que
desempenhou em uma empresa, um que demarca o período em que lá trabalhou e outro
que assinala a sua demissão. Todos localizam-se em um momento da sua juventude.
‘Atuações no ensino superior’ é formada por trinta e três, localizados em
momentos da idade adulta da entrevistada: dois são referentes à sua desenvoltura,
quando começou a ministrar aulas; um alude à participação de alunos, que orientou, em
congressos científicos; um é atinente à sua instalação, como professora, em uma
universidade pública; dois são relativos ao seu envolvimento com a realização da tarefa
para a qual foi contratada; um diz respeito ao fracasso de tal empreendimento; três são
Evenice Santos Chaves O racismo na Trajetória Escolar e Profissional... 167

referentes à atribuição de muitas tarefas, que implicavam em sobrecarga de trabalho; um


aborda o seu pedido de desligamento da instituição; um enfatiza que os primeiros
bolsistas de iniciação científica foram um marco na sua carreira docente; sete abordam
orientações de alunos que realizou, em outra instituição pública de ensino superior;
quatro enfatizam o seu trabalho de pesquisa; um versa sobre uma disciplina que
ministrou na pós-graduação; dois são concernentes a alunos que procuram-na para
serem seus orientandos; um diz respeito à sua estréia na orientação de uma dissertação
de mestrado; um alude ao seu credenciamento como orientadora do curso de doutorado;
um é indicativo do número de doutorandos sob sua responsabilidade e quatro fazem
menção à sua inserção em postos de administração universitária.

Figura 36. O tema trabalho, as categorias formal e informal, subcategorias e marcadores


temporais.
TRABALHO

Atividade informal

Momento da adolescência
Juventude

Atividade formal

Oferta de emprego em empresa

Momento da juventude LEGENDA:

Exercício profissional como técnica Tema

Momento da juventude Categoria


Exercício profissional como docente
Subcategoria
Momentos da idade adulta
Marcador temporal
Atuações no ensino superior

Momentos da idade adulta

Opção pela docência no terceiro grau

Momentos da idade adulta

Satisfações na atividade docente

Momentos da idade adulta

Insatisfações na atividade docente

Momento da idade adulta

Fonte: Entrevista narrativa realizada com a participante/informante branca.

“Opção pela docência no terceiro grau” agrupa cinco episódios localizados


em momentos da sua juventude, que sublinham a escolha da participante/informante
para trabalhar em pesquisas, na universidade, desde o período em que foi bolsista de
iniciação científica.
“Ingresso na docência em escolas de terceiro grau” concentra vinte e dois
Evenice Santos Chaves O racismo na Trajetória Escolar e Profissional... 168

episódios, ocorridos em momentos da sua idade adulta, vinculados ao seu ingresso em


diferentes instituições do ensino superior: três enfatizam o primeiro emprego, em uma
faculdade particular; cinco são relativos ao segundo trabalho, em outra instituição
particular de ensino superior; cinco são atinentes ao seu primeiro emprego em uma
universidade pública; dois abrangem a sua contratação como professora visitante, em
outra universidade pública; um refere-se ao período em que ficou contratada como
professora visitante; dois são relacionados à abertura de concurso público na referida
instituição; um diz respeito à realização do concurso, pela entrevistada; dois englobam
conteúdos sobre o período de validade do concurso e um aponta o ano em que começou
a fazer parte do quadro efetivo de uma universidade.
“Satisfações na atividade docente” é constituída por sete episódios, situados
em momentos da idade adulta da participante/informante, acerca de eventos que lhe são
prazerosos, no exercício da docência.
“Insatisfações na atividade docente” reúne cinco episódios: um aborda o seu
descontentamento com a remuneração; um, a ausência de reconhecimento oficial pelo
trabalho excedente que desenvolve e três são alusivos ao seu desagrado com a falta de
solidariedade de alguns colegas, ao desempenharem funções em comissões designadas
por portarias. Todos localizam-se em momentos da idade adulta da entrevistada.

5.6.4. O tema militância


Esse tema é composto pela categoria “participação em órgão de classe” e
agrega duas subcategorias. O modelo dessa organização categorial pode ser obsevado na
Figura 37.

Figura 37. O tema militância, categoria, subcategorias e marcadores temporais.


MILITÂNCIA

Participação em órgão de classe LEGENDA:

Movimento estudantil Tema


Momento da juventude
Categoria
Movimento docente
Subcategoria
Momentos da idade adulta
Marcador temporal
Fonte: Entrevista narrativa realizada com a participante/informante branca.

‘Movimento estudantil’ comporta quinze episódios sobre a sua participação em


Evenice Santos Chaves O racismo na Trajetória Escolar e Profissional... 169

ações reivindicatórias, articuladas pelo movimento estudantil, situado em um momento


da sua juventude.
‘Movimento docente’ engloba quatro episódios, localizados em momentos da
idade adulta da entrevistada, observando-se que dois contemplam a sua militância no
movimento reivindicatório de professores e dois ressaltam aquisições decorrentes do
seu engajamento.

5.6.5. O tema relações interpessoais


Esse tema agrupa as categorias: “convívio familiar”; “convívio com vizinhos”;
“convívio com colegas”; “convívio com professor” e “convívio com companheiros”.
“Convívio familiar” contém quatro episódios, com dois, situados na infância da
participante/informante, atinentes ao relacionamento que a sua mãe mantinha com os
filhos e dois, temporalmente localizados na sua idade adulta, com um referente ao
aglutinamento dos filhos em torno da mãe, uma vez por semana, e o outro é relativo à
pouca intimidade que permeia a sua relação com um irmão.
“Convívio com vizinhos” inclui um episódio, sobre um evento que ocorreu na
infância da entrevistada, vinculado à maior quantidade de interações entre os seus
irmãos do sexo masculino e vizinhos.
“Convívio com colegas” conecta cinqüenta episódios. Oito são referentes a
acontecimentos que tomaram lugar na sua adolescência, juventude e momentos da idade
adulta. Com relação à adolescência, um focaliza o motivo pelo qual seus colegas a
procuravam; um, o seu sentimento de exclusão; três, os acontecimentos do qual era
excluída; um, o seu questionamento sobre quem a excluía e dois, a sua convivência com
um colega negro, em uma situação de trabalho. Vinte e um episódios atrelam-se à sua
juventude, observando-se que três abordam a constituição do seu primeiro grupo; seis, a
coesão do grupo; um, o preconceito do grupo com relação às colegas financeiramente
abastadas; dois, as justificativas para tal preconceito; três, as situações interativas
iniciadas pelas colegas ricas; três, a responsividade a convites realizados por aquelas
colegas e três, a credibilidade do seu grupo, em sala de aula. Vinte e um episódios estão
localizados em momentos da sua idade adulta e agrupam-se do seguinte modo: um
inclui conteúdos referentes à lembrança de um colega do doutorado, de cor negra;
quatro sobre o movimento de aproximação desse colega ao seu grupo de estudos; três
Evenice Santos Chaves O racismo na Trajetória Escolar e Profissional... 170

acerca de comportamentos do mesmo colega no referido grupo; cinco atinentes às


discriminações dirigidas a esse colega; um relativo a um comportamento habitual do
grupo; um centrado na responsividade do colega negro a esse comportamento; três
assinalam relacionamentos profissionais da entrevistada com colegas, ex-professores;
três abordam a ausência de colaboração entre colegas docentes e um focaliza a
ampliação da sua rede de relações com colegas professores.

Figura 38. O tema relações interpessoais, as categorias relativas ao convívio da


entrevistada com grupos de pessoas, subcategorias e marcadores temporais.
RELAÇÕES INTERPESSOAIS

Convívio familiar

Infância
Idade adulta

Convívio com vizinhos

Infância

Convívio com colegas

Adolescência
Juventude
Momentos da idade adulta

Convívio com professor

Momentos da juventude

Convívio com companheiros

Namorados

Juventude
Momento da idade adulta

Marido

Momento da idade adulta

Experiência pessoal com desigualdade social

Momento da adolescência

Amizades

Infância
Adolescência
Juventude
Idade adulta

Apoio social

Membros da família de origem

Infância
Momentos da adolescência
Infância/adolescência

Protetora LEGENDA:

Momento da idade adulta Tema

Amigos Categoria
Juventude
Momentos da idade adulta Subcategoria

Professor Marcador temporal


Momento da juventude

Fonte: Entrevista narrativa realizada com a participante/informante branca.


Evenice Santos Chaves O racismo na Trajetória Escolar e Profissional... 171

“Convívio com professor” é formada por três episódios, situados em um


momento da juventude da entrevistada, que aludem a sua maneira de dirigir-se a um
professor, e por três outros, localizados em um momento da idade adulta da
entrevistada, sobre o seu posicionamento frente a figuras de autoridade, na universidade.
“Convívio com companheiros” abrange duas subcategorias, com trinta e cinco
episódios.
‘Namorados’ agrupa quatorze, situados na sua juventude: seis abordam um
processo de namoro da entrevistada, iniciado na universidade; um enfoca o término
desse relacionamento; seis abragem um processo de namoro com outro rapaz e um
sublinha o rompimento de relações amistosas com esse ex-namorado, na atualidade. A
mesma subcategoria ainda agrega doze, localizados em momentos da sua idade adulta:
nove são referentes a outro processo de namoro; um, ao término do relacionamento; um,
ao seu interesse por outro pessoa e um, ao seu moviemento ao encontro dessa pessoa.
‘Marido’ abarca nove episódios, situados em momentos da sua idade adulta:
quatro descrevem um padrão de relacionamento do casal; um, o rompimento da relação;
um, reconstituição da vida em comum; dois, as mudanças no comportamento do
parceiro e um, a necessidade de um novo rompimento.
“Experiência pessoal com desigualdade social” articula seis episódios, todos
vinculados a um acontecimento que ocorreu em um momento da adolescência da
participante/informante: um é relativo à descrição de uma situação de estudo, na qual as
colegas não lhe convidaram para um evento; um, ao sentimento de rejeição que nela
eclodiu; um, ao seu sentimento de tristeza, ao constatar que apenas era utilizada em
situações de estudo e três, à negação de oportunidade para escolher se iria ou não ao
evento.
“Amizade” incorpora dezoito episódios, assim agrupados: seis, situados em sua
infância, versam sobre a dificuldade de lembrar-se dos amigos da vizinhança; um, sobre
a escassez de amigos durante a sua adolescência; dois, sobre a construção de um grupo
de amigos durante a sua juventude; dois, sobre a natureza desse grupo e um, sobre o elo
que os aproximava e os distanciava de outros colegas; quatro relativos às suas relações
de amizade na idade adulta; um diz respeito à conservação das amizades que cosntruiu
na graduação e um explicita o único local onde teve amigos negros.
A categoria “apoio social” incorpora quatro subcategorias e treze episódios.
Evenice Santos Chaves O racismo na Trajetória Escolar e Profissional... 172

‘Membros da família de origem’ inclui um, concernente à iniciativa de sua mãe


em negociar uma bolsa de estudos, para que a entrevistada freqüentasse um colégio, na
infância; quatro localizados em momentos da adolescência da participante/informante,
com dois abordando a confecção de uma peça do seu uniforme escolar, realizada por
sua genitora, e dois enfocando ações de sua mãe, com o objetivo de pagar a inscrição do
vestibular para duas filhas; um, cujo conteúdo abrange a infância e a adolescência da
entrevistada, o qual menciona o empenho da sua genitora para que os seus filhos
estudassem.
‘Protetora’ aglomera dois, temporalmente localizados em um momento da sua
idade adulta, que ressaltam o suporte fornecido por sua madrinha, quando a entrevistada
mudou-se para outra cidade.
‘Amigos’ compatibiliza três, com um referente ao suporte fornecido por
membros do grupo do qual fazia parte, durante a sua juventude, e dois relativos ao
suporte fornecido por colegas do seu local de trabalho, em momentos da idade adulta.
‘Professor’ reúne dois sobre o suporte disponibilizado por um professor, em
forma de bolsa de iniciação científica, para a participante/informante.

5.6.6. O tema obstáculos


Esse, inclui duas categorias: “dificuldades sociais” e “dificuldades pessoais”.
O modelo representativo do sistema categorial referente a esse tema está na Figura 39.
“Dificuldades sociais” é constituída por dezenove episódios: dois situam-se na
infância da entrevistada, com um mencionando a necessidade de utensílios escolares e
outro, o problema financeiro que isso acarretava; seis localizam-se em momentos da sua
adolescência, com três se referindo às caminhadas que ela fazia para freqüentar um
colégio, um vinculado à parcialidade da bolsa que obteve no cursinho, e a conseqüente
implicação, e dois sobre a ausência de recursos para comprar as apostilas do cursinho;
dez, localizados na sua juventude, acerca das barreiras impostas por sua condição
financeira, quando cursava a graduação; um, situado entre a juventude e um momento
da idade adulta, que especifica a escassez de dinheiro como a principal limitação desse
período.
“Dificuldades pessoais” congrega cinco episódios: um sobre o quão foi difícil
localizar um cursinho, em um momento da sua adolescência, e quatro sobre a
Evenice Santos Chaves O racismo na Trajetória Escolar e Profissional... 173

dificuldade de orientar-se espacialmente na universidade, após a realização da primeira


matrícula, em um momento da sua juventude.

Figura 39. O tema obstáculos, categorias e marcadores temporais.


OBSTÁCULOS

Dificuldades sociais

Infância
Momentos da adolescência
Juventude
Juventude/momento da idade adulta

Dificuldades pessoais

Momento da adolescência
Momento da juventude

Fonte: Entrevista narrativa realizada com a participante/informante branca.


LEGENDA: Tema Categorias Marcador temporal

5.6.7. O tema facilidades


As categorias pertinentes a esse tema são “facilitação social” e “habilidades
pessoais”, conforme exposto na Figura 40.

Figura 40. O tema facilidades, categorias e marcadores temporais.


FACILIDADES

Facilitação social

Momento da infância

Habilidades pessoais

Momento da juventude
Momentos da idade adulta

Fonte: Entrevista narrativa realizada com a participante/informante branca.

LEGENDA: Tema Categorias Marcador temporal

“Facilitação social” elenca dois episódios, mencionando a proximidade entre a


escola que a participante/informante freqüentou e a sua residência, em um momento da
infância.
“Habilidades pessoais” agrupa cinco episódios: dois situam-se temporalmente
em um momento da sua juventude, sendo que um diz respeito à aquisição de
conhecimentos decorrente da condição de bolsista de iniciação científica e o outro, à
aplicação dos conhecimentos adquiridos em outras disciplinas; três são atinentes ao
modo como contactou o representante de uma faculdade para solicitar emprego, em um
momento da sua idade adulta.
Evenice Santos Chaves O racismo na Trajetória Escolar e Profissional... 174

5.6.8. O tema lazer


O referido tema é composto pela categoria “divertimentos”, que incorpora
quatorze episódios: três localizam-se em sua infância, com um explicitando a sua
presença em uma festa popular e dois, o lugar periférico que assumia nas brincadeiras;
um sobre a sua diversão na adolescência; cinco sobre as suas diversões em um momento
da sua juventude; cinco, situados em momentos da sua idade adulta, com um referente a
viagens que realizava, dois sobre o gostar de uma diversão e dois acerca da atividade
solitária de divertir-se. A configuração do tema no sistema categorial está na Figura 41.

Figura 41. O tema lazer, categoria e marcador temporal.


LAZER

Divertimentos

Infância
Momento da juventude
Momentos da idade adulta

Fonte: Entrevista narrativa realizada com a participante/informante branca.


LEGENDA: Tema Categoria Marcador
temporal

5.6.9. O tema racismo


Esse, é formado pelas categorias “obscurecimento”; “discriminação étnica”;
“presença do negro na universidade”; “responsividade a tratamento racista” e
“significado do racismo”, cuja representação é explicitada na Figura 42.
“Obscurecimento” conecta dois episódios: um sobre a ausência de lembranças
de relacionamentos racistas, que viveu ou presenciou, da sua infância à adolescência, e
outro, cujo conteúdo é relativo a uma dúvida sobre não perceber discriminação dirigida
a um colega de trabalho, negro, em um momento da sua adolescência.
“Discriminação étnica” atrela dezessete episódios. Sete localizam-se em um
momento da sua adolescência, com um enfatizando a presença de colegas negros em sua
classe, cinco salientando o racismo dirigido aos mesmos e um sublinhando que meninas
participavam pouco de um ato racista. Dez situam-se em um momento da sua idade
adulta, tendo-se que um assinala o convívio de um casal multirracial com o racismo e
nove referem-se ao racismo dirigido ao namorado de uma colega da pós-graduação.
“Presença do negro na universidade” contempla quatro episódios, situados em
um momento da idade adulta da entrevistada, com três indicando a presença de negros,
estrangeiros, nos cursos de pós-graduação de uma universidade e um expondo que ela
Evenice Santos Chaves O racismo na Trajetória Escolar e Profissional... 175

conheceu negros por intermédio de um amigo dessa etnia.

Figura 42. O tema racismo, categorias e marcadores temporais.


RACISMO

Obscurecimento

Infância/adolescência
Momento da adolescência

Discriminação étnica

Momento da adolescência
Momento da idade adulta

Presença do negro na universidade

Momento da idade adulta

Responsividade do negro a tratamento racista

Momento da adolescência
Momento da idade adulta

Significado do racismo

Momento da idade adulta

Fonte: Entrevista narrativa realizada com a participante/informante branca.


LEGENDA: Tema Categorias Marcador temporal

“Responsividade a tratamento racista” agrupa oito episódios, todos com


conteúdos referentes às formas de reatividade de negros ao racismo dirigido às suas
pessoas, observando-se que dois localizam-se em um momento da adolescência da
participante/informante e seis, em um momento da sua idade adulta.
“Significado do racismo” agrega três episódios, com dois reafirmando que
presenciou relações racializadas e um sobre a ausência de influências desses eventos em
sua vida. Todos estão situados em um momento da sua idade adulta.

5.6.10. O tema estratégias de enfrentamento


Esse tema, conforme pode ser obervado na Figura 43, inclui a categoria “luta” e
duas subcategorias, abrangendo trinte e quatro episódios.
‘Individual’ contém vinte e oito: nove fazem menção a ações da entrevistada,
em um momento da sua adolescência, com o intuito de superar obstáculos, obsevando-
se que sete são atinentes àquelas dirigidas à obtenção de uma bolsa e duas às ações que
visavam a superar a falta de apostilas para estudar; dezenove aludem às suas ações para
superar obstáculos, situadas na juventude, com três referentes àquelas que objetivavam
localizar-se na universidade, quatro, àquelas que objetivavam suprir a falta de um livro,
três referentes às ações empreedidas pela participante/informante para obter dinheiro e
Evenice Santos Chaves O racismo na Trajetória Escolar e Profissional... 176

nove sublinham as suas ações visando à obtenção de uma bolsa de iniciação científica.
‘Coletiva’ envolve seis episódios, verificando-se que três são referentes à
realização de um teste, à aprovação e à admissão em um emprego, por oito pessoas,
incluindo-se, aí, a participante/informante, em um momento da sua juventude, e três
são relativos a ações conjuntas, nas quais a entrevistada participou com colegas, para
permanecerem em vigília.

Figura 43. O tema estratégias de enfrentamento, categoria, subcategorias e marcadores


temporais.
ESTRATÉGIAS DE ENFRENTAMENTO

Luta

Individual LEGENDA:
Momento da adolescência
Juventude Tema

Coletiva Categoria
Momento da juventude
Subcategoria
Momentos da idade adulta

Marcador temporal
Fonte: Entrevista narrativa realizada com a participante/informante branca.

5.6.11. O tema pessoalidade


Esse tema integra duas categotias, “auto-atribuição de características” e
“avaliações”, representadas na Figura 44.

Figura 44. O tema pessoalidade, a categoria auto-atribuição de características,


subcategorias e marcadores temporais.
PESSOALIDADE

Auto-atribuição de características

Valorizadora

Momentos da idade adulta LEGENDA:


Facilitadora
Tema
Momentos da idade adulta
Categoria
Limitadora
Subcategoria
Infância
Momento da adolescência
Momentos da idade adulta Marcador temporal

Fonte: Entrevista narrativa realizada com a participante/informante branca.

“Auto-atribuição de características” contém três subcategorias e agrega


quatorze episódios.
Evenice Santos Chaves O racismo na Trajetória Escolar e Profissional... 177

‘Valorizadora’ inclui um sobre a sua autodeterminação, a despeito da timidez,


em momentos da idade adulta.
‘Facilitadora’ concentra três, referentes ao ser simpática, em momentos da sua
idade adulta.
‘Limitadora’ envolve dez episódios: dois, situados na infãncia, com um alusivo
ao seu sentimento de exclusão nos grupos de brincadeiras e um à constatação de que
assumia uma posição periférica nas mesmas; um, atinente à forma lacônica como se
comunicava em um trabalho, durante um momento da adolescência; sete, localizados
em momentos da sua idade adulta, com um explicitando o seu comportamento diante de
relações de hierarquia sedimentada em cargos, um expondo a sua inconstância frente a
companhias, três enfocando seu retraimento quando sai só para divertir-se, um sobre o
seu espanto com tal retraimento e um sobre ser diferente quando busca emprego.
“Avaliações”, conforme pode ser observado na Figura 45, aglutina dezenove
subcategorias, cujos quarenta e quatro episódios concentram-se em um momento da
idade adulta da participante/informante.
‘Condição econômica’ inclui um, relativo à ponderação da entrevistada sobre o
fato de ter realizado a especialização com uma bolsa.
‘Ocupação de espaço’ é constiuída por um, referente ao seu ajuízamento sobre a
importância da especialização.
‘Aprendizagem escolar’ comporta quatro: três enfocam a valoração atribuída ao
que aprendeu na escola de freiras e um sobre o valor da experiência em prática de
ensino, no curso de graduação e no de mestrado.
‘Desempenho escolar’ agrega um, relativo à interpretação do motivo pelo qual
foi convidada para participar de grupos.
‘Trabalho propiciado por escolas’ reúne cinco: um concernente à ponderação
acerca do motivo de uma empresa para oferecer estágio; um, à reflexão contingente ao
que o estágio acrescentou; um, à apreciação positiva do ambiente do estágio; um, à
relevância da remuneração que o estágio ofereceu e um, à apreciação do papel de uma
atividade acadêmica como ponte para o credenciamento no mestrado.
‘Preconceito racial’ é constituída por um sobre a interpretação que faz acerca do
que levava pessoas a discriminarem um colega.
‘Membros da família de origem’ envolve um relativo à reflexão da entrevistada
Evenice Santos Chaves O racismo na Trajetória Escolar e Profissional... 178

sobre uma prática de criação engendrada por seu pai.


Figura 45. O tema pessoalidade, a categoria avaliações, subcategorias e marcadores
temporais.
PESSOALIDADE

Avaliações

Condição econômica

Momento da idade adulta

Ocupação de espaço

Momento da idade adulta

Aprendizagem escolar

Momento da idade adulta

Desempenho escolar

Momento da idade adulta

Trabalho propiciado por escolas

Momentos da idade adulta

Preconceito racial

Momento da idade adulta

Membro da família de origem

Momento da idade adulta

Colegas

Momento da idade adulta

Convívio com colegas

Momento da idade adulta

Amizades

Momento da idade adulta

Namoro

Momento da idade adulta

Vida conjugal

Momento da idade adulta

Características pessoais

Momento da idade adulta

Estratégia de enfrentamento

Momento da idade adulta

Tomada de decisão

Momento da idade adulta

Apoio social

Momento da idade adulta LEGENDA:


Escolha de área de estudos Tema
Momento da idade adulta
Categoria
Titulação
Subcategoria
Momento da idade adulta

Desempenho docente Marcador temporal

Momento da idade adulta

Estilo de vida na trajetória pessoal

Momento da idade adulta

Fonte: Entrevista narrativa realizada com a participante/informante branca.


Evenice Santos Chaves O racismo na Trajetória Escolar e Profissional... 179

‘Colegas’ contempla cinco qaue sublinham julgamentos da entrevistada sobre


posições assumidas por colegas.
‘Convívio com colegas’ abrange dois: um referente ao juízo que elabora sobre o
rotulo conferido a colegas e um à apreciação da qualidade do seu relacionamento com
um colega de trabalho.
‘Amizades’ inclui quatro: um sobre a sua interpretação de que, no segundo grau,
só tinha colegas de estudo; dois sobre a reflexão concernente ao motivo que aproximou
colegas em um grupo e um sobre o seu julgamento acerca da restrição do espaço no qual
tem amigos.
‘Namoro’ elenca dois relacionados à ponderação que faz de possíveis perdas
profissionais decorrentes de um suposto casamento.
‘Vida conjugal’ envolve um, o qual valora o período que esteve casada.
‘Características pessoais’ conecta cinco: um menciona o juízo da entrevistada
sobre a sua incapacidade de estruturar brincadeiras, na infância e em parte da sua
adolescência; um focaliza o ajuizamento sobre a conduta que marca seu cotidiano na
adolescência; um, a interpretação sobre a influêcia de uma característica pessoal na
construção de amigos, da infância a um momento da idade adulta; um, a interpretação
de que houve mudança em uma característica pessoal e um, a apreciação de uma
habilidade pessoal.
‘Estratégia de enfrentamento’ comporta um, que assinala o julgamento sobre a
ação que a entrevistada empreendeu, em um momento da sua juventude.
‘Tomada de decisão’ contém um sobre o que a participante/informante julga
como o grande marco de sua vida.
‘Apoio social’ reúne dois, alusivos à reflexão que faz sobre o suporte fornecido
por duas pessoas, em diferentes momentos do seu ciclo de vida.
‘Escolha de área de estudos’ inclui um, no qual a entrevistada pondera sobre o
motivo que a levou a pesquisar um determinado tema, na atividade docente.
‘Titulação’ é formada por um, onde ela valora a relevância de um título
acadêmico.
‘Desempenho docente’ agrega dois episódios, concernentes à interpretação dos
seus ganhos pessoais decorrentes de uma atividade de trabalho realizada.
Evenice Santos Chaves O racismo na Trajetória Escolar e Profissional... 180

‘Estilo de vida na trajetória pessoal’ aglutina três: um sobre o valor atribuído ao


passar a residir sozinha; um atinente à reflexão sobre o motivo pelo qual ela sai sozinha
para divertir-se e um outro, no qual a participante/informante ajuíza a conseqüência do
sair sozinha para a diversão.

5.6.12. O tema perspectivas


Esse tema, de acordo com o que é apresentado na Figura 46, é composto pela
categoria “projetos”. A mesma reúne sete episódios, temporalmente situados em um
momento da idade adulta da entrevistada, os quais aludem ao seu projeto profissional
para o futuro.

Figura 46. O tema perspectivas, categoria e marcador temporal.


PERSPECTIVAS

Projetos

Momento da idade adulta

Fonte: Entrevista narrativa realizada com a participante/informante branca.

LEGENDA: Tema Categoria Marcador temporal

5.7. Sobre a elaboração do sistema de categorias


Gomes (1996) afirma que o ato de elaborar categorias significa reunir elementos,
tomando-se como referencial um conceito que os relaciona. Adverte, no entanto, que a
construção de categorias nem sempre é uma atividade realizada com facilidade,
podendo implicar em um trabalho complexo, porém superável através do emprego de
fundamentos teóricos como subsídios, bem como da experiência do estudioso.
A organização de dados de uma entrevista narrativa requer a elaboração de um
sistema classificatório, considerado por Ristum (2001) como o primeiro resultado de
pesquisas. Patton (2002) menciona que categorizar é um processo de construção lógica,
o qual resulta na formulação de um sistema de categorias, ao passo que Alvesson e
Sköldberg (2003) enfatizam a natureza interpretativa do processo de construção de
categorias, salientando que a interpretação exige considerações teóricas.
Portanto, categorizar conteúdos não conforma um trabalho mecânico. Longe
disso, é o desenvolvimento de algo novo, emergente de reflexões, fundamentos teóricos
e interpretações realizados por qualquer pesquisador, tendo em vista a elaboração de um
Evenice Santos Chaves O racismo na Trajetória Escolar e Profissional... 181

sistema ordenado de dados qualitativos. A matriz categorial elaborada, então, constitui


um sistema classificatório representativo de uma nova construção teórico-conceitual.
T
CAPÍTULO 6

PAULA, A PARTICIPANTE/INFORMANTE PRETA

6.1. Descrição da participante/informante


Paula, sexo e gênero femininos, cinqüenta e quatro anos na época da coleta de
informações, declarou-se de cor preta1. É filha de um casal de cor preta. Seu pai era
trabalhador braçal e sua mãe lavadeira. Ambos eram analfabetos e já faleceram. É
professora universitária, lotada em uma universidade pública e a sua renda mensal,
quando do levantamento de informações, era de dois mil e trezentos reais. Atualmente
mora em uma casa alugada, juntamente com o cônjuge.

6.2. Análise da entrevista narrativa: uma descrição explanatória


6.2.1. Início do ciclo de vida de Paula
Paula nasceu em Garças, uma cidadezinha do interior de um Estado brasileiro,
onde viveu até um ano e meio de idade, juntamente com seus avós maternos e sua
genitora, mãe solteira. Os avós eram negros e trabalhavam em uma fazenda. O avô era
vaqueiro, analfabeto, “... mas ele conseguia ler... alguma coisa...”, enquanto a avó
realizava trabalhos domésticos, na casa grande. A mesma não recebia salário, tampouco
era alfabetizada: “... minha avó morreu sem conhecer ou saber lidar com o dinheiro,
pois, em Garças, onde viveu e trabalhou nas fazendas, não recebia dinheiro” ...
“Minha avó era inteiramente analfabeta”...
A mãe de Paula também o era, o que pode ser inferido a partir da seguinte
afirmação: “...Olha, no contexto da minha casa, durante a minha adolescência, eu era a
única letrada da família”.
O estilo de vida dessa família, na fazenda e na casa grande, é um indicador da
1
De fato, tem como características fenotípicas a cor preta, o nariz achatado, os lábios grossos, os cabelos
pretos e encarapinhados e essas foram empregadas como critério, nesta pesquisa, para selecioná-la como
a participante/informante preta.
Evenice Santos Chaves O racismo na Trajetória Escolar e Profissional... 183

perpetuação da condição de desigualdade social do negro. Tanto é que, o trabalho


doméstico realizado por sua avó, na casa grande, não era remunerado, o que remete à
estrutura social escravagista.
Com base em pesquisas brasileiras, fundamentadas nos dados censitários de
1950, Fernandes (1972) interpretou que as formas de relacionamento entre branco e
negro, vigentes na primeira metade do século XX, decorriam daquelas inerentes ao
período da escravidão, quando o senhor considerava o negro como subalterno.
Para esse autor, o preconceito racial, elaborado no bojo da organização social
brasileira escravagista, articulou, dentre outras coisas, tipos específicos de ocupações
para os negros. Concluiu, então, que as desigualdades entre brancos e negros, no que
concernia ao trabalho, eram de origem estrutural e denotavam, na primeira metade do
século XX, a influência do período escravocrata nas relações sociais entre brancos e
negros.
No presente estudo, os dados relativos às relações de trabalho entre o branco e o
negro, na casa grande, bem como aqueles referentes à ausência de escolaridade dos avós
maternos e da mãe de Paula, corroboram as interpretações de Fernandes (1972).
Indicam, desse modo, uma situação concreta de assimetria nas relações sociais e no
acesso à escolarização, quando se considera a cor da pele de diferentes grupos étnicos.
Conclusivamente, o dado sobre o trabalho não assalariado do negro, bem como o
seu analfabetismo no início da década de 1950, pode ser tomado como indício de que,
apesar da libertação dos escravos ter ocorrido em 1888, naquele momento ainda
existiam resquícios do sistema escravocrata, perpetrado por donos de terra.
Retomando o analfabetismo, a proibição ao negro de freqüentar a escola
(Menezes, 1997), inerente ao final do século XIX, parece que ainda exercia influência
no início dos anos 1950. A ausência de escolarização na vida dos avós e da mãe de
Paula reflete a provável presença de empecilhos para freqüentarem a escola, os quais
inviabilizaram modificações nas suas condições de existência, pela via do processo de
escolarização, o qual favoreceria outras inserções no mercado de trabalho.
Vale destacar que na primeira metade do século XX os negros estavam quase
que totalmente excluídos da escola. Isso é evidenciado em indicadores sociais
produzidos pelo Censo de 1950, e apresentados por Fernandes (1972), já descritos em
um capítulo anterior deste estudo. Considerando-se as duas gerações de negros que
Evenice Santos Chaves O racismo na Trajetória Escolar e Profissional... 184

antecederam a participante/informante, observa-se que os seus avós maternos e a sua


mãe se situavam entre os excluídos da escola.
É importante frisar que a família multigeracional da entrevistada não se
configurou como foco principal deste estudo, todavia ela exerceu o lugar de contexto de
desenvolvimento para Paula. Por isso, a pobreza e a estratificação étnica formaram a
base sobre a qual transcorreu grande parte do seu ciclo de vida já vivido.

6.2.2. Um novo evento na vida da família de origem de Paula


A sua mãe engravidou aos dezesseis anos: “...Era filha única, tornando-se mãe
solteira ainda adolescente...”. Esse evento resultou no início do ciclo de vida de Paula,
que residiu um ano e meio naquele ambiente da fazenda, porém a contragosto de sua
avó, a qual “... não quis mais ficar em Garças...”.
A condição de mãe solteira da genitora de Paula, em Garças, produziu uma
modificação radical no estilo de vida de sua família de origem: “Por causa disso, a
minha avó ficou muito desgostosa e... mudaram-se para a Cidade E” ... “Toda a
família foi residir na Cidade E: minha avó, meu avô, minha mãe e eu, que estava com
um ano e meio...”.
Isso abriu novas possibilidades de reorganização da família. Ainda que vindo a
fixar residência na periferia de uma capital brasileira, expressão das desigualdades
sociais e raciais, a mudança teve repercussões nos modos de vida daquelas pessoas:
modificou o meio social de convivência da família, pois passou a residir em um novo
local; proporcionou um novo tipo de moradia; possibilitou outras atividades de trabalho
a membros da família de origem; consolidou outra composição familiar e propiciou
novos relacionamentos sociais. Esses eventos demarcaram uma transição que, para
Paula, significou um recomeço, o rompimento com a vida passada e, também, com o
analfabetismo intergeracional.
Bastos, Alcântara e Santos (2002) apontam que, nas sociedades, a família talvez
seja uma das estruturas caracterizadas por um grande potencial para a mudança. Como
os dados indicam, a gravidez construiu a possibilidade de nova forma de existência para
aquele grupo social. Engendrar um novo modo de viver, em outro mundo social,
marcou a transição do estilo de vida no campo para um outro, na capital, preservando-
se, contudo, a unidade familiar.
Evenice Santos Chaves O racismo na Trajetória Escolar e Profissional... 185

6.2.3. A fixação da família na Cidade E


Construíram um lar, em outro local de moradia, o que, provavelmente, favoreceu
a manutenção da unidade familiar. A nova residência era compatível com o lugar social
estruturalmente demarcado para o negro, na sociedade brasileira: “... Morava no Bairro
da Goiabeira, que naquele tempo era o fim da Cidade E”. Nesse bairro, Paula residiu
“... Durante muito tempo, acho que uns vinte anos da minha vida...”, significando-o
como o seu macrocosmo: “... O meu universo de infância era o Bairro da
Goiabeira...”.
A sua própria condição social, denunciadora de desigualdades sociais e raciais,
definiu as pessoas com quem ela conviveu naquele espaço social: “... Para lá iam todas
as pessoas vindas do êxodo rural e, por isso, havia uma grande quantidade de negros”
... “As pessoas que me rodeavam não eram brancos, aquelas com quem convivi na
infância não eram brancas”. Também eram analfabetas, pois a entrevistada enfatizou
que, além dos membros da sua família o serem, também o era “... a vizinhança ao
redor...”.
Os dados anteriormente mencionados são indicativos de dimensões do novo
contexto de residência de Paula, a saber: local de moradia e características da população
que residia ao seu redor. Esse panorama circunscreve um ambiente de pobreza,
sintetizador do racismo do meio ambiente. Ratcliffe (2000) afirma que essa modalidade
de racismo materializa-se em bairros que congregam ‘minorias’ caracterizadas pela
pobreza, onde se observa a segregação étnica e casas pobres situadas em locais com
infra-estrutura deficitária.
O dado de que o bairro da Goiabeira localizava-se no fim da Cidade E e abrigava
negros, representativos do êxodo rural, compatibiliza-se com as especificações já
citadas, conforme Ratcliffe (2000). Tais indicadores sugerem que a inserção social de
Paula e de sua família, na Cidade E, foi atravessada pela desigualdade social. Esse
aspecto remonta a Silvério (2002), ao afirmar que a condição de pobreza, de
desvantagem social, não atinge apenas o negro, mas ao mesmo se adiciona a
desigualdade racial.

6.2.4. O estilo de vida da família na Cidade E


No novo espaço social, a sobrevivência da família requereu que os seus avós
Evenice Santos Chaves O racismo na Trajetória Escolar e Profissional... 186

maternos e a sua mãe buscassem atividades de trabalho. Há indicativos referentes à


inserção da genitora de Paula no campo de trabalho, na Cidade E, de um momento da
sua infância até um período não-especificado em seu ciclo de vida já vivido: “...
trabalhava como doméstica...” e, aos domingos, “... também trabalhou lá na fábrica de
sapatos, durante muito tempo...”. Por outro lado, o seu avô engajou-se no trabalho
braçal: “... Na Cidade E, meu avô conseguiu emprego em uma empresa do Estado
Dourado, que prestava serviço na infraestrutura básica da Cidade E” ... “Na Empresa
Silvestre, a atividade do meu avô consistia em cavar buracos que serviam de base para
um trabalho posterior” ... “Ele exerceu durante muito tempo essa atividade...”.
O fato do avô de Paula conseguir deslocar-se naquela cidade pode ser tomado
como um facilitador da sua inserção no mercado de trabalho formal, evidentemente que
desempenhando uma função não qualificada: “... conseguia ler... alguma coisa” ...
“conseguia ler o nome das linhas de ônibus, juntando as letras e, por isso, podia andar
de ônibus na Cidade E, onde estávamos residindo...”.
Para garantir a reposição da força de trabalho do avô e a criação da neta, a avó
de Paula dedicou-se à atividade doméstica: cuidar dos afazeres do lar e da criança.
Contudo, apesar de continuar executando a mesma atividade que realizava em Garças,
há uma mudança significativa, pois passou a trabalhar nas tarefas da sua casa, apenas
para a própria família.
A necessidade de trabalho e remuneração, visando a garantir sobrevivência
física, social e a manutenção da família, provavelmente produziu alterações no convívio
entre os seus membros, o que remete à convivência familiar. Paula passou a ser educada
por seus avós: “... fui criada pelos meus avós maternos” ... “chamava a minha avó de
mãe e sempre foi assim” ... “como mamãe era doméstica, eu só a via no final de
semana...”.
Conseqüentemente, uma modalidade alternativa de família, a multigeracional, e
um tipo de relacionamento com sua mãe emergiram em função de necessidades sociais:
“... na verdade, a minha mãe de fato foi a minha avó e o meu pai sempre foi o meu avô,
que, para mim, foi uma referência...”.
Além de citá-los como aqueles que assumiram a sua criação, Paula deu relevo a
aspectos da singularidade do avô e da avó, respectivamente:
“... Meu avô era uma figura muito bem humorada” ... “Meu avô tirava tudo na graça,
Evenice Santos Chaves O racismo na Trajetória Escolar e Profissional... 187

tinha uma espirituosidade muito grande e se divertia com tudo” ... “Meu avô era muito
engraçado, ria de tudo, era muito debochado, fazia graça com tudo” ... “O meu avô
tinha aquele humor do qual já lhe falei, brincalhão, pegava a vida bem leve, tinha uma
forma bem divertida de ver a vida.”... “Minha avó era tão braba, muito brava,
bravíssima e perdia a paciência com tudo”... “A minha avó sempre foi uma pessoa
muito, muito braba”.
Há dados indicativos de que a entrevistada atribuiu aos seus avós o lugar de
pessoas significativas:
“Meu avô foi o meu grande referencial.” ... “O meu avô foi a grande figura
para mim” ... “A minha avó também foi uma grande figura para mim, só que ela
era muito braba” ... “Por causa da brabeza da minha avó, a minha
identificação sempre foi maior com o meu avô”.
Paula não conviveu diuturnamente com sua mãe, haja vista que a mesma era
empregada doméstica e residia no local de trabalho: “Só via a minha mãe nos fins de
semana” ... “Não a chamava de mãe” ... “Eu a chamava de Marcela, embora seu nome
fosse Marcelina”. Ao discorrer sobre o seu relacionamento com ela, relatou: “... A
minha relação com ela foi mais de irmã” ... “Depois que comecei a crescer, todos
achavam que éramos irmãs e foi uma relação mais ou menos assim, de irmãs” ...
“Nossa relação era de irmã” ... “Tivemos um bom convívio”.
Os dados obtidos não fazem referências a rotinas, obrigações e deveres de Paula
no cotidiano familiar, quer durante o período em que residiu com os avós, quer após se
mudar. Todavia, há evidências indiretas dos cuidados e da proteção que os seus avós lhe
ofereceram, discerníveis nos dados ausentes, pois não há relatos sobre privações, no que
concerne à alimentação, ao abrigo, ao vestuário, nem, tampouco, referentes à realização
de trabalhos no lar que pudessem interferir na sua vida escolar, durante a infância, a
adolescência e parte da sua juventude.
Existem indícios dos cuidados dispensados pela avó à saúde de Paula, durante a
infância e a adolescência:
“Minha avó forneceu-me apoio e eu coloco ênfase no seu cuidado para com a
minha questão de saúde” ... “Tinha alergia nas vias aéreas e minha avó andava
comigo para todos os lugares, tentando conseguir um tratamento” ... “Tive toda
essa infraestrutura da minha avó, se não fosse ela, eu nem sei, ela cuidava de
Evenice Santos Chaves O racismo na Trajetória Escolar e Profissional... 188

mim, eu fui cuidada por ela o tempo todo”.


Tudo isso sugere que a família de Paula cumpriu a função de lhe dispensar
cuidados e proteção.
Outra mudança significativa na vida dessa família está em dados ausentes.
Inexistem relatos sobre a manutenção de contatos com pessoas que residiam em Garças
e sobre vínculos de parentesco, considerando-se o convívio com consangüíneos.
Bastos, Alcântara e Santos (2002) estudaram o cotidiano de famílias em dois
diferentes bairros de periferia, localizados em Salvador. Um de seus achados apontou
que, na capital baiana, as famílias distanciaram-se das suas raízes no interior, romperam
muitos vínculos de parentesco e, ao se postarem diante da realidade urbana, reiniciaram
outro modo de viver, enfrentando novas situações, as quais não faziam parte de suas
experiências anteriores, concretizadas em localidades do interior, onde residiram.
Há consonâncias entre os resultados obtidos por Bastos, Alcântara e Santos
(2002) e os dados desta pesquisa: dissolução de vínculos afetivos. No caso do estudo
citado, os de parentesco, e, no caso de Paula, há uma total ausência de referências a
parentes ou amigos, residentes na cidade de Garças, onde ela nasceu e viveu um ano e
meio; nos dois casos, conquanto as famílias morassem em diferentes capitais brasileiras,
fixaram residências em bairros de periferia e mantiveram a unidade familiar, ainda que
estruturada de diferentes modos.
Como acentuam os pesquisadores anteriormente referidos, “... em certo sentido,
há sempre novidade na característica auto-organizadora, própria do sistema familiar e
que lhe permite re-adaptar-se às novas circunstâncias relacionais, sociais e históricas”
(Bastos, Alcântara e Santos, 2002, p.131).
Os dados do presente estudo, descritos até agora, denotam o potencial auto-
organizador da família negra: mudar-se, construir um lar, trabalhar, cuidar da criança e
conviver com os iguais, aqueles egressos do interior, negros e analfabetos.
Focalizando essa família como organizadora do dia-a-dia dos seus membros e
considerando, conjuntamente, a mudança do interior para a capital e a adoção de um
novo estilo de vida, pode-se afirmar que, para Paula, uma das conseqüências de tal
reorganização familiar e da sua inserção em um outro mundo social, foi a abertura de
uma nova oportunidade no seu percurso de vida, a saber, o seu ingresso na escola. Esse
evento circunscreveu um momento de transição na vida da entrevistada.
Evenice Santos Chaves O racismo na Trajetória Escolar e Profissional... 189

Os movimentos de mudança nessa família, gerados por acontecimentos, eventos


e situações, provavelmente colaboraram na visualização da relevância da escola para a
sobrevivência social de Paula, na Cidade E. Assim, apesar de viver na pobreza, ter como
cuidadores pessoas analfabetas, morar na periferia, viver cercada por uma vizinhança
socialmente excluída, sem ao menos saber ler, a participante/informante passou a
freqüentar a escola desde a infância. Todavia, não há dados que permitam especificar
qual ou quais pesssoas, dentre os seus familiares, foi o responsável por esse ato.

6.2.5. Inserindo-se na escola e completando o ciclo formal de estudos


De acordo com a nomenclatura vigente em sua época de estudos, Paula cursou o
primário, o ginasial, o secundário, o terceiro grau e realizou cursos de pós-graduação.
Considerando-se o curso primário, os dados referentes à sua trajetória indicam
que, para completá-lo, freqüentou duas escolas: o Externato Maria Catarina e a Escola
Antônia Sales.
Na primeira, estudou os anos iniciais do curso primário, os quais foram assim
descritos:
“... Comecei a estudar em uma escola particular perto da minha casa” ...
“estudei dois anos naquela escola pequenina, o Externato Maria Catarina, que
era aquela escola multisseriada, com uma só professora atendendo a todo o
curso primário” ... “Era só uma professora para dar conta... de alfabetizar a
molecada, ministrar aulas para a primeira, segunda, terceira e quarta séries,
tudo isso na mesma sala”... “Era particular, uma escolinha pequena, montada
por essa professora” ... “Bem pertinho de onde eu morava, quase defronte, era
só atravessar a rua” ... “Nela, estudava toda molecada da redondeza...”.
Esses dados indicam a natureza da escola, a sua localização e a clientela, e isso
permite afirmar que a condição de pobreza da entrevistada relacionava-se com o tipo de
escola onde iniciou os seus estudos. Ratcliffe (2000) menciona que a ausência de
investimentos em bairros pobres de ‘minorias’ é uma outra característica do racismo do
meio ambiente. Pode-se atrelar tal especificidade ao tipo de escola onde Paula iniciou a
sua vida acadêmica, a qual, devido às condições precárias descritas, provavelmente
funcionava e tinha clientela porque não havia escolas públicas naquele bairro, nas quais
as crianças ali residentes pudessem iniciar o seu ciclo formal de estudos.
Evenice Santos Chaves O racismo na Trajetória Escolar e Profissional... 190

Essa suposição pode ser tomada como um indício do histórico descaso das
políticas públicas para com a educação das pessoas pertencentes aos segmentos
desprivilegiados da sociedade. Contudo, ao mesmo tempo, explicita a resistência das
denominadas ‘minorias’ à situação de desvantagem social, através da busca e do
emprego de recursos alternativos, com o objetivo de suprir a omissão do Estado, no que
diz respeito ao acesso à escola.
Sem especificar os motivos, Paula mudou de escola: ...“Na terceira série
primária, eu fui para a Escola Antônia Sales” ... “Cursei a terceira, a quarta e a quinta
séries”. Não há dados sobre a natureza dessa instituição, porém de práticas educativas
professadas nesse colégio, as quais revelam uma educação de cunho cívico e religioso:
“Cantávamos o Hino Nacional, o Hino do Estado Azul e o Hino do Colégio, que
já não me lembro mais, depois é que entrávamos na sala de aula” ... “Pela
manhã, estudavam as meninas e, pela tarde, estudavam os meninos” ... “Lá no
colégio de freiras, antes de entrarmos para a sala de aula, tínhamos que fazer
uma fila, ouvir as orações, rezar e cantar” ... “Durante o mês de maio,
tínhamos que fazer a coroação da Nossa Senhora” ... “No dia 31, e durante
todo o mês de maio, cantávamos um hino, havia uma encenação com crianças
vestidas de anjo, que jogavam pétalas de flores na imagem de Nossa Senhora”.
Na Escola Antônia Sales destacou-se em matemática e é interessante apontar a
significação atribuída pela participante/informante à instituição escolar multisseriada,
que freqüentou anteriormente:
“Como eu tinha facilidade de gravar as coisas, tinha uma memória muito boa,
acabei me beneficiando, porque... no terceiro ano mudei de colégio e, ao
ingressar em outro, já sabia a matéria do pessoal da quarta série” ... “Então, de
certa forma, fui beneficiada por estudar em uma escola multisseriada”.
Destacou-se em matemática e, por isso, ocupou o lugar de monitora, conforme
indicam os seguintes dados:
“Comecei a dar aulas na terceira série primária, ajudando a freira na sala de
aula” ... “Uma freira, que era a Irmã Teresa, me pedia ajuda e eu ficava
sentada junto as coleguinhas para ajudar na Matemática” ... “Voltando àquela
escola primária, na ajuda às colegas que tinham dificuldade com matemática,
eu ficava circulando pela sala de aula, cada dia sentava ao lado de alguém que
Evenice Santos Chaves O racismo na Trajetória Escolar e Profissional... 191

tinha dúvidas”.
Pode-se dizer que a ação da professora de delegar-lhe o papel de auxiliar no
ensino da matemática, funcionou como um incentivo para que continuasse tendo bom
desempenho na disciplina. De fato, os resultados que Paula obteve nas avaliações em
matemática situavam-se no patamar da excelência: “... Tinha facilidade, nunca tirei
nota menor que 10 em Matemática”. Além disso, a monitoria repercutiu na valorização
social dessa entrevistada, pois o dado de que “tinha uma moral na sala de aula, não
é?”, é um indício dessa valorização.
A Escola Antônia Sales também foi palco para o seu primeiro contato com o
racismo contra o negro: ... “Talvez o meu primeiro contato com a questão racial tenha
sido em um colégio” ... “Tinha nove anos, cursava a terceira série primária e estudava
em um colégio lá no Bairro da Goiabeira, mantido por religiosas, que ainda hoje
existe”. Em outro momento, afirmou categoricamente: “como já lhe disse, o meu
primeiro contato com o racismo foi na escola”, descrevendo o acontecimento:
“Voltando àquele dia em que chegou alguém na sala da Irmã Teresa, época em
que a música La Bamba estava fazendo o maior sucesso, tocava no rádio para
lá lá lá lá bamba, alguém entrou na sala de aula e perguntou: ‘quem quer
participar de uma dança, dançar La Bamba? Levante a mão para ensaiar’.
Levantei a mão, eu queria, imagina, La Bamba, achava lindo, queria dançar La
Bamba, então levantei e fiquei esperando. Várias crianças também levantaram.
Olhei para a irmã, minha professora, que estava falando: ‘vai você, vai você,
vai você’, foi chamando... e não me chamou. Como ela não me chamou, eu
sentei”.
Os dados acima fornecem pistas referentes ao mascaramento do racismo contra o
negro, naquele espaço escolar, pois o evento descrito sugere a sua presença no cotidiano
daquela instituição. Ademais, Paula procurou saber a causa da sua exclusão:
“Depois, ao final da aula, fui perguntar para ela o porquê dela não ter me
chamado se eu estava em pé, eu queria ir. Ela ficou muito agoniada para me
explicar... não sabia como fazê-lo e eu insistindo, querendo uma resposta, até
que ela me disse assim: ‘sabe, na escola tem umas crianças mais bonitinhas e
para esses negócios temos que escolher as crianças mais bonitinhas’”.
A explicação fornecida pela freira vincula-se diretamente à categorização social.
Evenice Santos Chaves O racismo na Trajetória Escolar e Profissional... 192

Amsterdam e Bruner (2002) afirmam que o ato de categorizar faz parte do cotidiano das
pessoas, que empregam a classificação categorial como um instrumento para orientar os
seus relacionamentos com outros seres humanos. Isso, explicam os autores, decorre da
inserção dos sujeitos numa dada cultura, onde, através de ações de seus membros, idéias
socialmente construídas oferecem explicações naturalistas para vários fenômenos
sociais.
Os conteúdos descritos, referentes à explicação fornecida pela religiosa, são
indicativos do emprego da categoria branco/negro como critério para a seleção das
crianças que deveriam participar da dança. Aquela professora, ao explicitar que apenas
as crianças ‘mais bonitinhas’ deveriam ser escolhidas para participarem de
determinados eventos, expressou a valorização do fenótipo branco como critério para a
inclusão de alguns escolares naquela atividade. O significado social e ideológico da
preferência traz, de forma implícita, a noção de inferioridade do negro, em termos da
estética corporal.
Essa forma de inferiorizá-lo, compatibiliza-se com a noção de naturalização da
categorização social. Para Amsterdam e Bruner (2002), a mesma gera nas pessoas o
entendimento de que é natural, inato, o ato de categorizar as pessoas e as suas ações,
apenas no âmbito da intencionalidade, o que dificulta enxergar a existência de outros
determinantes das ações humanas, como os estruturais e os circunstanciais.
De acordo com a perspectiva teórica de Amsterdam e Bruner (2002), é possível
inferir que a freira categorizou as crianças brancas como as mais bonitas e realizou as
escolhas para a dança de forma intencional, referenciando-se na concepção naturalizada
da supremacia estética do branco sobre o negro.
Essa suposta superioridade da categoria branca sobre a negra tem raízes
estruturais. Com relação à valorização social da estética branca, Bernardino (2002)
expõe que a mesma decorre da incorporação do ideal de branqueamento, por membros
da sociedade brasileira, e uma de suas características é a valorização da estética branca e
desvalorização da negra. Assinala-se que esse processo social, construído a partir da
segunda metade do século XIX, foi legitimado por intelectuais que se orientavam pelo
racismo científico. O mesmo é difundido e popularizado até hoje, constituindo-se em
uma especificidade da dimensão estrutural do racismo contra o negro no Brasil.
Amsterdam e Bruner (2002) assinalam que nem todas as pessoas e grupos
Evenice Santos Chaves O racismo na Trajetória Escolar e Profissional... 193

sociais aderem às mesmas categorias numa dada cultura, porém advertem que sempre
existe a proeminência do uso hegemônico de um sistema categorial sobre outro.
Segundo esses pesquisadores, a referida hegemonia desvela a função das categorias
como instrumentos de poder que promovem a coesão social de grupos que classificam
eventos, pessoas e situações, a partir das mesmas referências.
O referido aporte teórico sustenta o entendimento de que a categoria branco é
hegemonicamente difundida como constituída por atributos estéticos superiores. Supõe-
se que esse referencial foi empregado pela freira na seleção de crianças para
participarem da atividade recreativa, em um contexto de sala de aula onde havia as
brancas e uma negra.
Outra forma de inclusão social excludente a que a participante/informante foi
submetida, e que traz implícita a desvalorização estética do negro, é sugerida pelo
seguinte dado:
“As freiras gostavam de fazer teatrinhos, tinha uma Pastorinha famosa. Pô, eu
nunca fui escolhida para participar da Pastorinha. Nesse teatrinho, havia um
quadro chamado ‘Os Negrinhos’, mas sempre escolhiam uma criança mais
clara para participar dele e pintavam-na com um pó preto, feito a partir da
rolha de cortiça queimada. Nunca fui escolhida para representar, tinha uma
vontade, mas nunca fui escolhida”.
A ocorrência de situações sociais perpassadas pelo racismo contra o negro na
escola, nas quais Paula foi objeto de discriminação racial, indica que essa instituição é
mantenedora de relações sociais racializadas. A presente pesquisa apresenta dados que
revelam o lugar da escola de primeiro grau como reprodutora de crenças sobre a
inferioridade do negro em termos de estética, tal como ocorre na nossa sociedade, e,
desse modo, a escola atuou como colaboradora na manutenção do racismo contra o
negro em nossa sociedade. Destarte, não se pode atribuir a responsabilidade por tal
racismo ao processo de escravização do negro, à medida que mantenedores atuam nos
relacionamentos humanos que ocorrem em instituições sociais, todavia, de forma
atualizada e mascarada.
No contexto da sociedade, a escola desempenha funções sociais e, aqui, destaca-
se o seu papel na manutenção do reprodutivismo social. Chaves (1986) afirma que a
partir de um ponto de vista reprodutivista, a escola, como meio de socialização, visa ao
Evenice Santos Chaves O racismo na Trajetória Escolar e Profissional... 194

equilíbrio de uma dada sociedade, e, para cumprir tal função, precisa manter as relações
sociais tal como se apresentam nessa mesma sociedade.
Como instituição, portanto, a escola cumpre o papel social de mantenedora da
hegemonia do branco nas relações sociais e Bruner (1998) coloca que as instituições são
socialmente construídas com o objetivo de impor uma matriz acerca do que faz parte da
realidade. Os dados anteriormente expostos indicam que a Escola Antônia Sales,
enquanto instituição, reproduzia e mantinha a inclusão social excludente de uma criança
negra, como ocorre em outras esferas da vida social, nas quais o negro é desvalorizado e
desqualificado pelo seu fenótipo.
A despeito do indicativo de relações socias racializadas entre a entrevistada e a
sua professora, Irmã Tereza, nenhum evento sugere a existência de problemas nas
relações interpessoais entre as duas, após o acontecimento racista naquela escola.
Retomando ao acontecimento vivenciado por Paula na escola, um dado fornece
indícios sobre a interpretação que fez acerca da dificuldade da professora, ao justificar a
sua exclusão da dança: ...“Senti que ela me disse aquilo com muita dó, porque sabia
que ela gostava de mim, pois eu a ajudava na Matemática, entende?” ... “Ela me disse
mortificada, não queria dizer, só falou porque insisti para ter uma resposta”.
Esses episódios demonstram que a reflexão realizada por Paula sobre a ação de
sua professora em excluí-la da dança, envolveu a dimensão da afetividade. Assim, a
partir de tal indicativo, é possível explanar que a participante/informante, qualificando
aspectos envolvidos naquela situação interativa, realizou a seguinte interpretação: o fato
de ser preterida não eliminava os afetos positivos da sua professora em relação à sua
pessoa. Tal explanação também é corroborada pela ausência de dados relativos a
mudanças na qualidade das interações sociais entre a entrevistada e sua professora, que
a situação escolar demandava.
Outro ponto a ser enfatizado é o de que as próprias colegas da entrevistada não
atuaram de forma passiva frente ao racismo dirigido à mesma, pela professora, copiando
o modelo fornecido e reproduzindo-o. Focalizando as relações interpessoais entre a
participante/informante e seus colegas, na infância e durante a adolescência, há dados
indicativos de que, inclusive as da Escola Antônia Sales, não reproduziram o racismo
contra o negro, a partir do modelo fornecido pela professora ou por qualquer outro
agente: "... Nunca tive dificuldades referentes ao racismo com os colegas na escola
Evenice Santos Chaves O racismo na Trajetória Escolar e Profissional... 195

primária e secundária” ... “Nunca... tive dificuldades em me relacionar, sempre me


relacionei com facilidade”.
Ao abordar a função reprodutivista da escola, Chaves (1986) salienta que a
reprodução social não acontece de modo simplificado, cuja resultante seria apenas a
manutenção das condições estruturadas pela sociedade. O pesquisador defende que a
mesma ocorre, porém de forma qualitativamente diversa, porquanto a instituição escolar
é um espaço social onde ocorrem contradições e, como decorrência, circulam, naquele
espaço, as contraditórias relações sociais presentes na sociedade. Por isso mesmo,
acrescenta que sempre é possível se explorar contradições, o que permite a ocorrência
de transformações.
É pertinente supor que ao explorarem as contradições frente à valorização de
alguns atributos de Paula e a desvalorização de outros, suas colegas não atribuíram um
valor positivo ao racismo e, então, não o empregaram como referencial norteador dos
relacionamentos interpessoais que estabeleciam com a participante/informante.
Voltando ao acontecimento em que a entrevistada foi objeto do racismo contra o
negro, na Escola Antônia Sales, uma das conseqüências foi a comparação social que ela
realizou:
“Quando ela disse isso levei um choque. Fiquei muito grilada porque ela tinha
chamado a Corina, uma colega minha, que era branca. Porém eu a achava tão
feia, achava que a Corina tinha uma cara de cavalo. Contudo ela a chamou.
Fiquei muito grilada. Fiquei mais grilada porque ela disse que tinha que
escolher as mais bonitinhas”.
Amsterdam e Bruner (2002) enfatizam que nem todos os seres humanos são
submissos no acolhimento a uma forma de pensamento hegemônico e, por isso mesmo,
organizam as suas experiências de diferentes formas.
Esses conteúdos vinculam-se à noção de si mesma que a entrevistada tinha até
então. Afirmando que tal noção é influenciada pelas diferentes situações nas quais a
pessoa está imersa, McMartin (1995) refere-se ao si mesmo como a conscientização de
quem se é, incluindo-se, nesse processo, os sentimentos acerca de si.
Camerini e Souza (2002) expõem que, nos contextos sócio-culturais, uma pessoa
visualiza o lugar que ocupa em um espaço social e desenvolve a consciência de si a
partir da linguagem e do olhar do outro e, nesse movimento, os parceiros revelam os
Evenice Santos Chaves O racismo na Trajetória Escolar e Profissional... 196

aspectos de um sujeito que ele mesmo desconhece.


Considerando-se os relacionamentos interpessoais entre Paula e as pessoas
negras que compunham a sua família e vizinhança, as quais constituíam o grupo
daqueles com quem se relacionava até ingressar na Escola Antônia Sales, como também
as colocações de McMartin (1995) e de Camerini e Souza (2002), é pertinente sublinhar
que até aquele momento o si mesmo da entrevistada incluía uma imagem corporal
positiva, isenta de diferenciação racial.
Porém, ao defrontar-se com um outro padrão de primazia estética, com o qual foi
comparada e preterida, desnudou-se na participante/informante a consciência de si como
uma negra, socialmente considerada por algumas pessoas como esteticamente inferior,
e, devido a tal especificidade, socialmente construída, conscientizou-se de um dos
lugares que ocupava naquele espaço escolar. Nele, a imagem corporal que havia
construído era passível de desqualificação.
Essa descoberta produziu um confronto, estabelecido a partir da noção de beleza
implícita no discurso da freira e a imagem corporal que construiu sobre si mesma até
então, o que, do ponto de vista psicológico, remete a uma provável situação de crise,
compreendida como a significação da experiência pessoal decorrente de uma situação
interativa.
Simão (2002) focaliza a interação verbal enquanto processo simbólico que
transcende as pessoas envolvidas em uma situação, porque nas situações interativas
produz-se cultura, a qual fornece e delineia oportunidades para que o sujeito selecione
conteúdos partícipes das verbalizações do outro, construa sentidos, porém, ao mesmo
tempo, os conteúdos de tais sentidos assemelham-se àqueles pertinentes a outras
pessoas que participam da mesma cultura. Desse modo, salienta a autora, o sujeito e o
outro partilham um processo de interação verbal culturalmente situado, à medida que o
outro atua como alguém que é singular, mas, também, representa possibilidades e
limites que uma dada configuração sociocultural oferece.
Paula, ao vivenciar a exclusão, elaborou, a partir da interação verbal com sua
professora, um sentido acerca da mesma, o qual estabeleceu uma ruptura na sua auto-
imagem e, possivelmente, gerou uma crise.
“Eu não me achava feia e achava a Corina muito feia, tinha uma cara de
cavalo! Fiquei grilada demais e então comecei a entender: a Corina, que eu
Evenice Santos Chaves O racismo na Trajetória Escolar e Profissional... 197

achava feia, com cara de cavalo, era branca”... “Levei um susto, porque eu, em
absoluto, não me achava feia... me achava até jeitosinha, digamos assim, nunca
me achei feia”.
McNamee (1998) situa uma crise como um processo psicológico engendrado por
elementos constitutivos de uma dada cultura, a qual explicita a existência de fronteiras
em comunidades interativas, a partir da identificação das diferenças que separam as
pessoas. Conforme a referida estudiosa, o sujeito, ao identificar a distinção entre o
centro e a margem, elabora a idéia de estar sendo identificado com algo diferente do que
ele é e, dessa forma, emerge a consciência do não fazer parte do centro, contudo das
margens, o que interfere na sua identidade pessoal. No entanto, o ser social pode
deslocar-se para além da crise, se coordenar práticas discursivas, vislumbrar a
possibilidade de atuar de outras maneiras, tendo-se, como conseqüência, a reconstrução
da sua identidade.
É importante assinalar que, de forma compatível com as formulações de
McNamee (1998), a diferenciação social despertou a consciência de Paula para a
discriminação racial e marcou uma transição, pois, a partir do ‘susto’ decorrente da
discriminação e da constatação da ineficácia de seu padrão de beleza no espaço escolar,
emergiu um processo de aprendizagem sobre a categorização social das etnias.
Nesse sentido, a escola, através da ação de uma professora, contribuiu para a sua
conscientização sobre o racismo contra o negro: “ ...comecei a perceber que as crianças
que ela tinha escolhido eram as mais claras e, na verdade, a única negra na sala era
eu, que não tinha sido escolhida”. Esse aspecto remete à afirmação de Simão (2002) de
que a interação social participa do processo pessoal de construção de conhecimento.
Dados fornecem indícios para a interpretação de que Paula, naquele momento da
sua vida escolar, explorou a contradição inerente às relações sociais entre o negro e o
branco, transformando-a em uma estratégia sobre como se comportar no cotidiano de
uma sociedade racista:
“Fui crescendo, sacando e ficando cada vez mais sacadora, percebendo a
escola da vida” ... “Aí você já sabe como se virar, vai aprendendo como tem
que jogar também, porque é um jogo” ... “Tem que aprender como jogar para
poder vingar, se não for assim não vinga”.
Mishler (2002) intitula de pontos de virada os incidentes que modificam o modo
Evenice Santos Chaves O racismo na Trajetória Escolar e Profissional... 198

como as pessoas entendem as suas experiências passadas. Nessas ocorrências, outras


compreensões transformam o significado das vivências anteriores, o senso de si mesmo
e, desse modo, produzem transformações na própria identidade.
É pertinente enfatizar que a identidade acima referida coaduna com o conceito
de identidade cultural, caracterizado por Gone, Miller e Rappaport (1999) como um
construto, normativamente orientado, que se refere ao si mesmo conceitual. Esses
pesquisadores discorrem que a identidade cultural é uma forma de autocompreensão
reflexiva e avaliativa, portanto consciente, relevante para que alguém se comprometa
com práticas sociais compartilhadas e com valores culturais.
Em síntese, as contradições fornecem indícios para a compreensão de que os
acontecimentos racistas tiveram repercussões na vida da participante/informante,
porque produziram uma ruptura, quando se consideram modos de inserção social e
formas de participação, característicos das suas vivências anteriores. Antes transitava
apenas em um meio social constituído por negros, o que implicava na valorização da
estética negra e o seu conceito pessoal de beleza referenciava-se no que lhe era
fornecido pelos seus pares. Também desconhecia o racismo contra o negro. Contudo, o
seu ingresso na Escola Antônia Sales demarcou uma transição, caracterizada pela sua
imersão e participação no mundo dos etnicamente brancos, no qual foi o objeto do
racismo contra o negro, fato gerador de contradições. Iniciou-se, assim, um processo de
conscientização e de novas aprendizagens, concernentes à assimetria nas relações
sociais calcada em diferenças fenotípicas.
Ademais, como já salientado, a situação de crise, que a experiência com relações
sociais racializadas instalou, provocou um ponto de virada, o qual modificou a sua
forma de lidar com as pessoas, com o racismo e gerou o desenvolvimento de um
processo de conscientização sobre a condição de ser negra. O cotidiano da entrevistada,
concomitantemente na comunidade negra e na comunidade branca, torna evidente que a
identidade cultural e pessoal não é algo uno e fixo, porém dependente de contextos e
dos espaços sociais nos quais a pessoa atua e se relaciona com outros.
Como a vida de Paula não se restringia à escola, seu convívio com a família e
com os negros de sua comunidade a fez permanecer próxima dos etnicamente iguais. As
suas aquisições escolares, inclusive, foram úteis para membros da comunidade, pois,
ainda na infância, prestou serviços a vizinhos, evidenciados nos dados de que lia e
Evenice Santos Chaves O racismo na Trajetória Escolar e Profissional... 199

escrevia para pessoas que não sabiam fazê-lo, “sempre estava lendo ou escrevendo
cartas para pessoas da vizinhança” ... “Estava no curso primário quando fazia as
cartas de amor”, compartilhava informações, “as leituras coletivas para a vizinhança,
como ler notícias de jornal, enfim, tudo eu lia para os vizinhos” ... “Eu lia jornais e
histórias de cordel para a vizinhança” e os entretinha, “fazendo as minhas
montagenzinhas de dramatizações... com a molecada, logicamente com a vizinhança”.
Enfim, sintetizou: “sempre fazia um monte de coisa..., tudo”.
É preciso assinalar que tais atividades continuaram a ser realizadas durante a
adolescência da participante/informante: “naquela época, ninguém tinha televisão
ainda, comprávamos histórias de cordel lá no ‘O Popular’ e, à noite, me reunia com a
vizinhança e lia as histórias para todos”.
Os dados relativos às atividades que Paula desenvolvia com e para membros da
sua comunidade remete aos valores. Prilleltennsky e Austin (2001) fazem referência aos
valores pessoais, aos relacionais e aos coletivos. Aditam que os primeiros citados são
constituídos pela determinação, pela autonomia, pelo crescimento pessoal e pela saúde;
os relacionais são formados pela diversidade humana, pela participação democrática e
pela colaboração, enquanto os coletivos é composto pela justiça social e pelo suporte às
estruturas comunitárias.
Conjetura-se que as atividades realizadas por Paula são compatíveis com esse
quadro referencial de valores coletivos e relacionais, posto que as suas ações dirigidas a
vizinhos expressam o seu respeito às diferenças, pois realizava tarefas que exigiam
habilidades das quais só ela era portadora, sem, entretanto, oprimir os companheiros que
não as possuíam. Ainda colaborava com os mesmos na direção da satisfação de suas
necessidades sociais e, também, participava, por escolha, das situações coletivas de
lazer.
Prilleltennsky e Austin (2001) aditam que os valores pessoais e coletivos são
dialéticos, interdependentes, porquanto os pessoais promovem, na pessoa, a habilidade
de escolher objetivos, porém considerando a necessidade de outros e o crescimento
pessoal de membros de uma comunidade. O comportamento da participante/informante
de escolher atividades de lazer, conduzí-las e elaborar textos para dramatizar com seus
vizinhos pode ser entendido como orientado pela autonomia e pela autodeterminação,
contudo esses valores integravam a sua necessidade àquelas de seus vizinhos.
Evenice Santos Chaves O racismo na Trajetória Escolar e Profissional... 200

Todavia, deve-se salientar que a solidariedade e o respeito às necessidades de


outros não são valores naturais do ser humano, porém decorrem do aprendizado na vida
em comunidade. No presente caso, carências e determinadas necessidades sociais de
alguns vizinhos, devido às suas condições de incluídos na sociedade de forma
excludente, criaram oportunidades para que Paula desenvolvesse valores coletivos,
relacionais e, também, individuais. Esses, expressos em suas realizações, coletivas e
pessoal, sempre fundamentadas nas interações sociais, no analfabetismo de outros e na
necessidade de se comunicarem, bem como na necessidade de suprirem a ausência de
lazer no bairro. Em suma, a condição social da entrevistada e de seus parceiros criou
situações que oportunizaram o desenvolvimento de valores, no repertório de Paula.
Enfim, a vida coletiva foi importante para o seu crescimento pessoal, pois além
de funcionar como um espaço social que forneceu elementos para que visualizasse a
importância da escola na vida prática, possibilitou que aprendesse a realizar trocas
sociais calcadas em relações de complementaridade.
Observa-se, como dado ausente, que a entrevistada não fez menção ao papel da
leitura e da escrita no contexto de sua casa. Contudo, como já citado, ressaltou que já na
sua adolescência era a única, dentre os familiares, que havia superado o analfabetismo.
Isso pode ser tomado como fundamento para a hipótese de que as aquisições escolares
da participante/informante auxiliaram no cotidiano da vida familiar, pois, como já
referido, a sua avó materna era analfabeta, enquanto o seu avô, analfabeto funcional.
Ponderando-se que atividades da vida diária necessitam da leitura e da escrita, re-
ordenamentos no modo de vida daquela família devem ter ocorrido, à medida que a
entrevistada adquiria mais conhecimentos através da escola.
Retomando o seu percurso escolar, após concluir a quinta série, a entrevistada
ingressou no ginásio, submetendo-se ao processo de seleção, requisito na época: “fiz o
exame de admissão, para ingressar no Centro Educacional do Estado Azul”. Lá,
completou o ginásio e o curso normal, de natureza profissionalizante, “fiz o ginásio e o
curso pedagógico no Centro Educacional do Estado Azul”.
Um dado evidencia que a escolha do curso normal foi orientada por razões
pragmáticas e financeiras:
“Na verdade, acabei escolhendo o pedagógico por ter que fazer um curso que
me permitisse trabalhar o mais rápido possível” ... “O meu caminho direto foi
Evenice Santos Chaves O racismo na Trajetória Escolar e Profissional... 201

fazer o curso pedagógico, porque era profissionalizante... e rapidamente me


ofereceria a possibilidade de conseguir emprego e trabalhar, porque, de outra
forma, não teria como viver”.
Paralelamente ao trabalho escolar, a participante/informante continuou a realizar
aquelas atividades que desenvolvia com seus vizinhos. Ainda na adolescência, também
começou a atuar politicamente: “Quando fui crescendo tive uma militância política e
logo comecei a me engajar em um grupo da Paróquia, localizada no bairro onde
morava”.
As referidas experiências coletivas, conjuntamente com a sua permanência na
escola, propiciaram-lhe uma oportunidade para filiar-se ao movimento estudantil, de
acordo com os seguintes dados:
“Acabei fazendo uma trajetória política e incorporei esse tipo de participação
na minha vida escolar” ... “Iniciei no movimento secundarista muito cedo,
durante o período da ditadura militar” ...“Criamos uma entidade clandestina...
para organizarmos esse grupo de secundaristas: a Ação Estudantil do Estado
Azul, a AEEA, que atuou clandestinamente durante um período” ... “Com
quinze, dezesseis anos, eu já estava nessa militância, no movimento
secundarista, organizando as reuniões da AEEA”.
Tal participação revela que ocupou outra posição social, a de militante,
indicativa da sua disposição para o enfrentamento coletivo às situações que julgava
merecedoras de mudanças. As suas ações desenvolvidas na militância política, bem
como os novos relacionamentos sociais que ela propiciou, provavelmente ampliaram a
compreensão da participante/informante sobre aspectos do mundo, do seu país, da
cidade onde residia e das desigualdades sociais. Tanto é que seu círculo de convivência
e as suas atuações expandiram-se, pois também passou a transitar no meio teatral:
“comecei a conviver com o pessoal de teatro, que, queiramos ou não, tem a cabeça
mais aberta”.
A sua experiência anterior de escrever peças para dramatizações em sua
comunidade não foi interrompida: “tinha uma vida, digamos assim..., talvez cultural,
pois no grupo de jovens sempre escrevi peças” ... “Escrevia peças para o grupo de
jovens montar” ... “Escrevia e fazia questão da montagem dos, digamos assim,
presépios reivindicativos”.
Evenice Santos Chaves O racismo na Trajetória Escolar e Profissional... 202

Das atuações políticas já referidas, decorreu o seu ingresso em partidos


clandestinos:
“Naqueles anos da ditadura, comecei a participar de um partido político
clandestino, o Partido da Resistência” ... era clandestino, tinha que ser
realizado com todo o cuidado e, por isso, acabavam exigindo muito... dos
militantes” ... “Fiquei na militância partidária até... o momento em que todo o
pessoal do Partido da Resistência migrou para o Partido da Resistência 1”...
“Desse modo, o Partido da Resistência acabou e eu não quis mais continuar
sendo militante no Partido da Resistência 1” ... “Pelo meio do caminho, eu saí
do Partido de Resistência e fui, digamos assim, recrutada por uma outra...
organização” ... “...Essa, teve muito mais a ver com o que eu queria, porque
achava que o caminho deveria ser o armado e o nome da organização se
compatibilizava com o que eu pensava: Organização da Luta Armada Zumbi”.
A participação política traçava caminhos para os militantes, como demonstra o
seguinte dado: “o Partido da Resistência estava naquele negócio de proletarização,
todo mundo tinha que se deslocar para o campo ou transformar-se em operário”.
Todavia, Paula enfatizou: “eu não me via engajada nem no campo, nem no trabalho
operário” ... “No campo, eu não teria vida, não saberia o que fazer e também não me
via como operária”.
Em meio a essas questões, concluiu o curso pedagógico, o que lhe possibilitou o
ingresso no mercado de trabalho formal. Ainda adolescente, tornou-se professora:
“Quando terminei o curso pedagógico surgiu um concurso público estadual
para professor... primário, fiz e passei” ... “Passei e fui ensinar” ... “Passei no
concurso para professor primário até relativamente bem, o que facultava aos
primeiros colocados a escolha das escolas em que iriam trabalhar” ... “Como
conseqüência, escolhi o Colégio dos Trabalhadores, porque morava perto, no
Bairro da Goiabeira”.
O seu primeiro trabalho formal, com salário mensal, contribuiu para o seu
próprio sustento e para colaborar financeiramente com a família: “o dinheiro que
ganhava dando aulas como professora primária não era gasto só comigo, também era
compartilhado com a minha família”.
Logo após a conclusão do curso pedagógico e a realização do concurso público
Evenice Santos Chaves O racismo na Trajetória Escolar e Profissional... 203

para docência no ensino primário, Paula almejou ingressar na universidade, ainda que o
seu primeiro trabalho formal proporcionasse melhorias financeiras. Porém, antes de se
submeter ao exame vestibular, passou por dois grupos de conflitos: um de aproximação-
esquiva, decorrente da sua aspiração à universidade e do caminho traçado pelo partido
político, e outro, de aproximação-aproximação, referente à atração por dois cursos de
graduação.
Como via de expressão do primeiro conflito, expõe-se o seguinte dado:
“Ficava pensando: ‘pô, de lá eu já vim e agora eu vou voltar? Eu fiz todo um
percurso e vou voltar?’”... “Não poderia voltar ou ser operária porque não
estaria dando um retorno para uma família que esperava de mim” ... “Queria
cursar a universidade, mas o conflito era grande” ... “Os conflitos,
proletarização ou não, universidade ou não, permaneciam”.
O outro conflito centrava-se na escolha do curso universitário e assim foi
expresso: “ainda tenho essa facilidade com matemática, por isso também fiquei confusa
quando da escolha do curso que deveria fazer na universidade” ... “Vinha sempre a
questão do Curso S, do Curso E” ... “Enfim, um ano de conflito..., talvez um pouco
menos”.
O conflito, enquanto processo psicológico, é vivenciado por uma pessoa, porém
estrutura-se a partir de determinadas circunstâncias sociais, nas quais estão envolvidos
relacionamentos interpessoais.
Nas situações vivenciadas por Paula, são patentes as circunstâncias sociais
desencadeadoras dos conflitos. No primeiro, anteriormente relatado, observa-se a
incompatibilidade entre as pressões exercidas por aqueles que delineavam os rumos dos
militantes do partido político – irem para o campo – e a necessidade de melhorias na
condição de vida de seus familiares, cuja possibilidade atrelava-se à sua escolarização.
Assim, circunstâncias sociais de natureza política e de natureza econômica, aliada ao
seu desejo de realizar um curso universitário, foram fontes produtoras do conflito
aproximação-esquiva.
O segundo, aparentemente decorrente apenas das preferências da entrevistada, é
produto do seu processo de escolarização até então, onde diferentes circunstâncias
acadêmicas e contato com conteúdos escolares, através de livros e de professores,
possibilitou que gostasse de diferentes disciplinas. Todavia, o fato de ter que escolher
Evenice Santos Chaves O racismo na Trajetória Escolar e Profissional... 204

apenas uma área para graduar-se produziu um conflito aproximação-aproximação,


evidenciado na dificuldade de realizar uma escolha dentre as duas disciplinas. Também
há que se considerar a sua condição de ser uma pessoa pobre, o que pesava no momento
dessa escolha.
Conflito, então, pode ser concebido como delineado pela presença de interesses
e opiniões divergentes (Ventorini & Garcia, 2004), as quais, por serem incompatíveis,
interferem na escolha que uma pessoa necessita fazer, em um dado momento de sua
vida. Nessas situações, pode ocorrer o adiamento da decisão ou uma fuga.
Ventorini e Garcia (2004) mencionam que características pessoais relacionam-se
com a resolução de um conflito. Acrescenta-se que situações e oportunidades presentes
no meio social onde a pessoa em conflito está imersa podem favorecer a sua superação.
É oportuno, pois, assinalar que durante o período de conflitos, houve um investimento
de Paula em direção ao exame vestibular:
“Até prestei uma prova de seleção para obter bolsa no Cursinho Amílcar
Rodrigues” ... “Ganhei a bolsa, freqüentei as duas aulas iniciais, mas achei
que... não precisava ir mais, porque as aulas me encheram o saco” ... Resolvi
que iria estudar só, larguei o cursinho e estudei para fazer o vestibular no...
final do ano”.
Por fim, a resolução dos conflitos resultou na opção pela universidade. O seu
senso de responsabilidade social, decorrente da interpretação de que a sua família
esperava um retorno, graças ao investimento que havia feito para a sua manutenção na
escola, pode ser considerado como um dos condicionantes responsáveis por sua
continuidade nos estudos: “com toda uma família precisando de mim, precisando e, de
uma forma ou de outra, tinha investido para eu estudar e eu não ia dar um?”.
Salienta-se que a noção de responsabilidade social é construída ao longo da vida
de relação e não é algo natural, inerente ao ser humano. Casas (1998) afirma que
experiências sociais de solidariedade, de empatia, de ajuda e de colaboração entre as
pessoas são pilares para a internalização de formas de responsabilidade. Assegura que
desde a infância, a vida social de uma pessoa pode criar condições para o aprendizado e
a expressão da responsabilidade social.
A vida comunitária que Paula teve no Bairro da Goiabeira, aliada à solidariedade
dos avós maternos e de vizinhos, propiciou condições para que elaborasse um senso de
Evenice Santos Chaves O racismo na Trajetória Escolar e Profissional... 205

responsabilidade social. O mesmo, dirigido a membros de sua família, poderia


materializar-se através da ajuda financeira, compatível com o salário que um diploma
do ensino de terceiro grau proporcionaria.
Paula elegeu um terceiro curso, o Curso A, “porque também gostava das
atividades a ele relacionadas”. Prestou vestibular e foi aprovada.
O estudo realizado por Queiroz (2000) com estudantes que, através do
vestibular, haviam ingressado na Universidade Federal da Bahia, demonstrou que os
negros estavam inseridos em cursos de mais baixo prestígio social. Vale ressaltar que
esses cursos disponibilizam mais tempo para que o universitário trabalhe.
A opção de Paula compatibiliza-se com o achado de Queiroz, posto que a sua
condição de pobre e trabalhadora influenciou na escolha do primeiro curso de graduação
que freqüentou: de menor dificuldade e valorização social.
A área em que deveria licenciar-se também foi determinada pela sua condição de
pobreza:
“Com relação ao campo que deveria escolher para licenciar-me, o mesmo tinha
que propiciar a conclusão do curso de forma mais rápida, porque não poderia
passar muito tempo na universidade” ... “Deveria fazer algo mais rápido, então
optei pela Disciplina A2, pela licenciatura em tal disciplina, que funcionava à
tarde”.
Concluiu aquela graduação: “iniciei o Curso A em 1971 e o concluí em 1974”. A
participante/informante fez referência ao seu desempenho acadêmico nesse curso, o
qual pode ser interpretado como bom: “no Curso A me dei bem, não tive muitas
dificuldades, mesmo trabalhando e fazendo outro curso universitário” ... “Foi um curso
que pude fazer sem... dificuldades” ... “Durante o Curso A, não tive muita dificuldade”.
Salienta-se que ao longo dos anos iniciais do Curso A, e, provavelmente,
influenciada pela sua participação em movimentos culturais, outra aspiração relativa à
formação oferecida pelo ensino de terceiro grau emergiu: “esse segundo curso
relacionava-se com as atividades culturais que desenvolvia no bairro onde morava”.
A graduação almejada era o Curso N, para o qual prestou vestibular e foi
aprovada. “Cursei, conjuntamente, o Curso A e o Curso N”. Concluiu-o em 1976.
Há dados indicativos de que o Curso A, o primeiro a lhe oferecer um diploma de
ensino superior, não foi relevante como fornecedor de subsídios que contribuíram na
Evenice Santos Chaves O racismo na Trajetória Escolar e Profissional... 206

modificação de algumas de suas características pessoais e no aprendizado para a vida


cotidiana:
“Acho que o Curso N me ajudou muito... a perder a timidez, pois era muito
tímida e não falava em público, porque tinha vergonha de fazê-lo” ... “O Curso
N ajudou a enfrentar um público desconhecido sem tremer” ... “O Curso N foi
para mim uma grande diversão” ... “Acho que foi também uma grande escola
de vida, a minha grande escola, pois uma das suas atividades ensinou-me a ser
tolerante e a acatar a idéia do outro” ... “Acho que ele foi a grande coisa que
fiz na vida: fazer o Curso N foi a minha grande terapia na vida” ... “Acho
que..., mais uma vez, minha formação no Curso N ajudou-me na administração
de conflitos, pois aprendi a administrar conflitos”.
Durante a realização do Curso A, o olhar atento da participante/informante ao
que a universidade poderia lhe proporcionar, redundou na construção de outro interesse
acadêmico: “cursei uma disciplina, História O e gostei muito” ... “então em 1975,
resolvi prestar vestibular para o Curso O...”.
Foi aprovada no exame seletivo, porém ressaltou que “queria cursar apenas
algumas disciplinas e foi o que fiz: cursei a Disciplina I, a Disciplina G, a Disciplina
História O e depois abandonei aquela graduação”.
Os dados já explicitados demonstram que, em 1974, com a conclusão do Curso
A, Paula completou o terceiro grau, com uma história de engajamento nos estudos e
sucesso em seu empreendimento escolar.
O ciclo de estudos formal, no entanto, não findou com os cursos de graduação.
Realizou um curso de pós-graduação lato sensu, “no ano de 1978, voltei novamente,
como estudante, à Universidade X, para fazer uma especialização em Teoria X”. Sem
indicar o período, também concluiu um curso de pós-graduação stricto sensu: “fiz o
mestrado interinstitucional, na Universidade Z, por isso passei dois semestres na
Cidade do Planalto, onde cursei algumas disciplinas”.
Sobre as relações sociais estabelecidas naquela universidade, com os colegas do
mestrado, dados enfatizam que não fez novas amizades:
“Fui fazer parte do mestrado na Universidade Z, com um grupo de mestrandos
da minha universidade de origem, e quase não me relacionei com as pessoas de
lá” ... “Fui para Universidade Z com um grupo, só andava com ele e acabei não
Evenice Santos Chaves O racismo na Trajetória Escolar e Profissional... 207

fazendo outro tipo de amizade” ... “Então..., fora do meu grupo, só interagia
com pouquíssimas pessoas”.
Embora tenha sublinhado que, “sentávamos juntos de alguns colegas, batíamos
papo, lanchávamos juntos”, justificou seu distanciamento de muitos dos companheiros
que compunham a turma do mestrado.
“Como eu fui com um grupo, não tive a oportunidade de perceber se os colegas
da Universidade Z não abriam espaços para nos relacionarmos com eles” ...
“Por isso, não sei nem lhe dizer se os colegas de lá não abriram espaço ou se
nós é que não procuramos abri-lo, porque já tínhamos um grupo pronto”.
Afora as justificativas acima descritas, há dados que revelam uma autocrítica:
“Será, talvez, que eu é quem não tentei abri-lo, porque não sentia necessidade,
já estava com um grupo formado, composto por oito pessoas?” ... “Não sei lhe
dizer o que rolou, porque também não tentei abrir espaços com as outras
pessoas” ... “Não dá para avaliar se aqueles colegas não abriam espaços para
relacionamentos comigo e com as pessoas do meu grupo” ... “Todos do meu
grupo eram da Cidade E... e penso que, às vezes, nem temos tempo para
fazermos outras amizades”.
A despeito disso, ressalvou outro tipo de relacionamento com os docentes: “Na
Universidade Z, mantive mais relações com os professores, com os quais não tive
problemas, muito pelo contrário” ... “Alguns professores faziam... reuniões com toda a
turma”. Ainda deu destaque à gentileza e à receptividade dos mestres:
“Achei que os professores da Universidade Z foram muito amáveis com o nosso
grupo: preocupados, querendo saber como estávamos vivendo, muito amáveis
mesmo, querendo cuidar, oferecendo almoços, jantares, todas essas coisas” ...
“Nesse sentido, eles foram muito amáveis”.
Por fim, no ano de 2004, ingressou no doutorado: “estou cursando o doutorado
na Área Alfa-alfa...”.
Sintetizando a sua atuação como estudante, a partir do curso secundário, Paula
verbalizou: “Na universidade e no secundário, tive uma boa atuação, sempre tirei boas
médias” ... “Não tive grandes dificuldades durante o mestrado”.
Em suma, ao se considerar o percurso escolar descrito, conclui-se que, em todos
os anos escolares, essa participante/informante teve um bom desempenho acadêmico e,
Evenice Santos Chaves O racismo na Trajetória Escolar e Profissional... 208

desse modo, foi vitoriosa no processo de escolarização formal.


Aparentemente, de modo superficial e descontextualizado, pode-se atribuir o seu
sucesso escolar apenas à sua competência pessoal, ou, como Paula enfatizou, à sorte:
“Acho que sempre fui uma pessoa de muita sorte” ... “Eu digo que tive muita
sorte” ... “Acho que vinguei por causa da minha sorte e se não a tivesse não
teria vingado” ... “Eu sempre acho que o fator sorte me acompanhou... e o
tempo todo ele está presente” ... “Uma das sortes foi ter facilidade dentro do
esquema escolar” ... “O negro no Brasil, além de tudo, precisa de sorte” ...
“Caso não a tenha, a situação fica mais difícil”.
Porém, um olhar contextualizado e processual contribui na explicitação de que,
no caso dessa entrevistada, sorte ou competência pessoal, independentemente do seu
lugar social e origem étnica da pessoa, determinou o seu sucesso escolar.
Diversos condicionantes, no entanto, interviram na sua trajetória escolar,
facilitando a sua permanência na escola e a conclusão de cursos relativos a diferentes
graus acadêmicos. Nesse persurso surgiram adversidades, requerendo enfrentamentos e
apoios sociais, os quais criaram condições necessárias à sua continuidade na escola, até
o término do ciclo formal de estudo. Isso não significa dizer que o seu mérito pessoal é
inexistente, porém que não há triunfo apenas pela força de vontade.

6.2.6. Superando adversidades, tendo em vista concluir o ciclo de estudos


A condição de pobreza e de diferenciação étnica, na qual a entrevistada e a sua
família de origem estiveram imersas, gerou um conjunto de adversidades, o qual
dificultava a sua permanência na escola. Paula empregou modos de enfrentamento e,
também, recebeu apoios sociais de outras pessoas. Esses fatores promoveram a
emergência de algumas condições, necessárias e suficientes, para que não interrompesse
o seu engajamento no ciclo formal de estudos.
Apesar da condição de pobreza, a família da entrevistada garantiu a sua
sobrevivência física e social. Contudo, a sua situação de saúde, durante a infância e a
adolescência, ameaçou a sua freqüência à escola. Nesse aspecto, requereu cuidados
específicos e dados são indicativos do apoio social que recebeu da avó materna, a qual
desempenhou o papel de sua mãe:
“Sempre tive muita alergia, desde criança eu tinha um tipo de alergia que
Evenice Santos Chaves O racismo na Trajetória Escolar e Profissional... 209

estourava minha pele” ... “Hoje em dia eu fico pensando! era um tipo de
equizema que, na adolescência, transformou-se nessa alergia das vias aéreas”
... “Minha avó forneceu-me apoio e eu coloco ênfase no seu cuidado para com a
minha questão de saúde”... Tinha alergia nas vias aéreas e minha avó andava
comigo para todos os lugares, tentando conseguir um tratamento”.
A participante/informante dá a conhecer que, durante a infância e a adolescência,
o apoio social fornecido pela avó, visando minimizar os danos causados em sua saúde
pela alergia, foi relevante: “Tive toda essa infra-estrutura da minha avó, se não fosse
ela eu nem sei, ela cuidava de mim, eu fui cuidada por ela o tempo todo” ... “Eu fico
pensando: era difícil, mas minha avó ia para tudo quanto é lugar, enfrentava filas,
tratamento público”.
A precariedade da infra-estrutura característica dos bairros pobres, cujos
residentes constituem ‘minorias’, pode favorecer o aparecimento de reações alérgicas, e,
por conseguinte, é oportuno hipotetizar que essa especificidade do racismo do meio
ambiente possivelmente relacionava-se com o adoecimento de Paula. De fato, Ratcliffe
(2000) salienta que particularidades do racismo do meio ambiente interferem na saúde
das pessoas, produzindo morbidez e até mortalidade, em muitos dos residentes de locais
socialmente desprivilegiados.
Outro infortúnio citado pela entrevistada foi a ausência de recursos financeiros
durante grande parte do seu ciclo de vida já vivido: “logicamente que as minhas
dificuldades financeiras foram muitas”. A escassez de dinheiro ameaçou a sua
continuidade na escola e, por isso, engajou-se precocemente no trabalho informal: “na
adolescência... eu... dava aulas em casa”. Durante parte da adolescência ainda realizou
outra atividade, com a finalidade de obter recursos financeiros que contribuíssem com a
sua manutenção na instituição escolar.
Como bem salientou:
“Até parte da minha adolescência, conseguia dinheiro de transporte para ir à
escola dando aula particular” ... “Quando estava no ginásio, em determinados
períodos, trabalhava aos domingos em uma fábrica de sapatos e ganhava algum
dinheiro, pois precisava dele... para freqüentar as aulas” ... “Quando fui para a
escola normal, pagava, muitas vezes, minha passagem de ônibus com o dinheiro
que ganhava ministrando as aulas particulares de Matemática, para os meus
Evenice Santos Chaves O racismo na Trajetória Escolar e Profissional... 210

colegas e pessoas próximas” ... “Esse dinheiro eu tinha que ter”.


O trabalho realizado por Paula na fábrica de sapatos, nos dias de domingo, foi
possibilitado por uma vizinha, que trabalhava naquele local: essa, a informava sobre as
“viradas” aos domingos, em determinados períodos do ano, e a chamava para realizar o
trabalho informal de costurar sapatos: “aquela vizinha me convidava para ir com ela
trabalhar na fábrica de sapatos”.
Martínez (2001) enfatiza que o trabalho efetuado por crianças e por adolescentes
é constitutivo de mais um contexto em suas vidas, o qual, conjuntamente com os demais
que perpassam o cotidiano, participa do processo de desenvolvimento e de construção
da subjetividade humana. Complementa que para cada sujeito social o impacto de um
determinado contexto, no caso, o do trabalho, depende, dentre outras coisas, de
características da pessoa, do seu modo de funcionamento, de necessidades que podem
ser satisfeitas através do labor e do sentido que essa pessoa confere ao fato de ter que
trabalhar.
De acordo com o ponto de vista teórico da autora supracitada, compreender o
comportamento de Paula de enfrentar a adversidade inserindo-se no mundo do trabalho
informal, vincula-se ao seu objetivo de continuar freqüentando a escola. Dessa forma, o
impacto do trabalho informal na vida dessa participante/informante parece ter sido o de
uma atividade que propiciava a manutenção de seu desenvolvimento acadêmico.
A inferência sobre essa suposta significação pessoal atrela-se à sua característica
de dispor-se a suprir a ausência de dinheiro para deslocar-se até a escola e dela retornar
à sua residência, empregando, assim, uma estratégia de enfrentamento de luta: ministrar
aulas de matemática e executar, em certas ocasiões, atividades remuneradas em uma
fábrica de sapatos.
Os fatores anteriormente focalizados configuram o inter-relacionamento entre
várias situações, contextos e experiências sociais, cujo resultado foi a realização do
trabalho precoce, porém desenvolvido como uma atividade significativa. Possivelmente,
um sentido pessoal atribuído pela entrevistada a essa atividade foi o do trabalho como
uma via que possibilitava a sua permanência na escola.
Enfim, no contexto financeiro da vida de Paula, não se pode considerar que o
trabalho realizado durante a sua adolescência ocupou o lugar e o tempo que deveriam
ser dispensados ao estudo. Ao contrário, ele propiciou a sua continuidade na escola.
Evenice Santos Chaves O racismo na Trajetória Escolar e Profissional... 211

Outra situação de desvantagem, presente na vida da entrevistada, foi a ausência


do acompanhamento de familiares em situações pertinentes à sua vida escolar, pois
afirmou que durante a infância e a adolescência responsabilizava-se por sua matrícula:
“era eu quem dava conta disso, não tinha ninguém para ir comigo, minha mãe era
empregada doméstica, minha avó analfabeta... e desde cedo eu mesmo fazia a minha
matrícula”.
Nessa tarefa, apenas o seu comportamento não satisfazia as condições para a
efetivação daquela exigência legal. Porém, em tais situações, Paula teve o apoio social
de uma vizinha, cujos filhos estudavam no mesmo colégio que ela freqüentava.
“Por exemplo, quando chegava ao colégio para me matricular, minha vizinha
entrava em cena.” ... “No colégio, durante a matrícula, a freira dizia ‘tem que
ter um responsável’. Eu olhava, inteiramente desamparada, e, nesse momento, a
vizinha chegava e dizia: ‘eu sou a responsável’” ... “ela talvez nem percebesse
esse tipo de apoio que me fornecia, mas que foi fundamental”.
O referido apoio social foi indispensável e a própria entrevistada reconhece o
valor da atitude da vizinha, tanto para a superação do que, momentaneamente, se
configurava como problema, como para a sua própria existência: “ela foi fundamental...
na minha vida”. O reconhecimento e a amizade ainda materializam-se, através da
manutenção do vínculo entre ambas: “até hoje a vizinha que me deu apoio na infância,
e parte da adolescência, está lá naquele bairro” ... “De vez em quando a visito, é
interessante!”.
Em sua adolescência, apesar de trabalhar para suprir necessidades financeiras, os
colegas de partido político, que se transformaram em amigos, também lhe forneceram
apoio social: “ajudavam na hora em que eu estava precisando de apoio financeiro, de
empréstimo.” ... “Esse tipo de coisa... também segura as pontas das pessoas”. Além
disso, a entrevistada destacou outro tipo de apoio social oferecido por tais colegas:
“esses colegas de partido, que são amigos, me apoiaram como, no mínimo,
interlocutores”. Complementando, aditou: “acho que... meus outros apoios, outras
referências, foram os meus colegas de partido político”.
Casas (1998) ressalta que o apoio social concretiza-se em comportamentos de
ajuda dispensados a uma pessoa, por outros que podem ser vizinhos ou amigos, em
momentos de necessidade. Dados até aqui apresentados evidenciam que a entrevistada,
Evenice Santos Chaves O racismo na Trajetória Escolar e Profissional... 212

em diferentes momentos de sua trajetória escolar, contou com a ajuda de várias pessoas
para que pudesse suprir necessidades, visando à continuidade do seu percurso escolar.
Dificuldades financeiras que competiram com a sua permanência na instituição
escolar não anularam algumas de suas características pessoais, as quais contribuíram
para a sua continuidade na escola. Ela mesma destacou a atenção que dispensava às
aulas, já nos anos iniciais do curso primário, que tinha memória privilegiada e facilidade
para aprender: “... via, ouvia e aprendia”.
Expôs que desde a terceira série primária “lia muito” e, durante a adolescência,
“... escrevia com facilidade” ... “Gostava de fazer dramatizações, até escrevia e
montava os textos” ... “Lembro-me que desde cedo escrevia dramatizações para o
pessoal ... montar”. Ainda discorreu que redigiu uma peça aos doze ou treze anos:
“nunca me esqueço, outro dia estava atrás de uma peça que talvez tenha sido a
primeira que escrevi e é muito engraçado você rever”.
Outro aspecto a ser focalizado é a sua iniciativa de ir à busca de livros, durante a
adolescência, para satisfazer a sua necessidade de ler: “como não tinha muitas obras
para ler, ia à Biblioteca da Universidade X, na Rua das Flores, e lá permanecia lendo:
lia tudo que me passava pela frente, tudo o que me interessava”.
Mais uma vez, observa-se que uma estratégia de enfrentamento de luta foi
empregada pela entrevistada, visando ultrapassar limites decorrentes da sua condição de
pobreza. Desse modo, o seu comportamento de dirigir-se a uma biblioteca para ler é
indicativo de um movimento pessoal na direção de novos caminhos, objetivando
superar um obstáculo e ampliar os seus conhecimentos.
Após a conclusão do segundo grau, profissionalizante, e da inserção no primeiro
emprego formal, Paula decidiu residir com amigos. Isso sugere que, ao dispor de
condições mínimas para caminhar longe do cotidiano da sua família de origem, realizou
a primeira reconstrução familiar, significativa de mudança no seu estilo de vida:
“depois fui morar com algumas pessoas daquele meu grupo político, penso que no
Bairro do Cajueiro”. Enfatizou que “aquele era o período da vida em comunidade,
morava no bairro do Cajueiro com os meus amigos e todos nós tínhamos uma atuação
política”. Também enfocou o fenótipo das pessoas com quem passou a residir: "eles
eram brancos e eu a única negra".
Sem especificar o motivo de outras mudanças de local de residência, nem indicar
Evenice Santos Chaves O racismo na Trajetória Escolar e Profissional... 213

com quem partilhou duas moradias, enfatizou: “depois, morei na Rua dos Jasmins”...
“Posteriormente, na Rua das Flores, no Bairro do Abacateiro”.
Nos referidos locais, cujas populações até hoje são constituídas por pessoas
socialmente privilegiadas, ocorreram acontecimentos racistas envolvendo Paula:
“Na rua das Flores, as vizinhas sempre vinham me oferecer emprego, embora
eu fosse moradora”... “No bairro do Abacateiro foi barra, foi barra pelo
seguinte: durante muito tempo, com raríssimas exceções, as pessoas não
falavam comigo quando estava próxima a elas no elevador, mas, de vez em
quando, perguntavam se estava procurando emprego”.
Outros dados indicam que o racismo contra a entrevistada transcendeu o edifício
em que residia, estendendo-se à rua: “naquele prédio, até as pessoas se acostumarem
comigo, como vinham me oferecer um emprego!”... “No elevador, na porta do prédio,
na rua, sempre vinham me oferecer emprego de doméstica: ‘estou precisando de
empregada, você não quer?’”.
Os episódios racistas marcam uma nova mudança no seu cotidiano, pois, como
ressaltou,“nos outros lugares onde morei, nunca tinha arranjado emprego assim, com
tanta facilidade”.
Esse é um indicador de que o racismo contra o negro, dirigido à sua pessoa,
apresentava-se independentemente da sua posição social. Ocupar uma nova, a qual
propiciava o seu reconhecimento social como uma pessoa pertencente à classe média e
exercer uma atividade que exigia um determinado nível de escolaridade, não a livrou de
tornar-se objeto do racismo, ao adentrar em um espaço social maciçamente branco:
“apesar de ser uma pessoa conhecida, ainda assim me ofereciam empregos a toda
hora”.
Em suma, há indicativos de que está ideologicamente estabelecida na nossa
sociedade uma relação entre ser negra e empregada doméstica. Tal relação, explicitada
em dados desta pesquisa, demonstra que a ascensão social do negro não elimina o
racismo contra o mesmo, conforme teorizado em estudos financiados pela Unesco, nas
décadas de 1930 e 1940 (Castro, 1998).
Outro dado especifica aspectos de sua aparência que produziam reatividade
negativa nas pessoas, o que, mais uma vez, reflete a desvalorização e a desqualificação
social da estética negra:
Evenice Santos Chaves O racismo na Trajetória Escolar e Profissional... 214

“No final dos anos setenta, em 1978, 1979, andava com um black-power desse
tamanho e era um choque para a vizinhança, que ficava um pouco assustada”...
“Vez por outra, vinha alguém me dar um conselho: ‘porque tu não cortas?’,
‘porque tu não passas uma pasta?’” ... “Uns conselhos assim, meio que
indiretos”.
É interessante frisar que, apesar do fenótipo negro, quando usava adereços
mascaradores da intensidade da textura crespa dos seus cabelos, o comportamento que
pessoas dirigiam a Paula era diferente:
“Quando eu estava de trancinha, é interessante isso, nunca achava ninguém,
nenhuma senhora para me oferecer emprego, mas era só tirar as trancinhas, e
pentear o cabelo de forma convencional, que sempre achava uma senhora para
me oferecer emprego de doméstica”.
Esse dado indica que, em algumas situações, a indumentária usada pelo negro,
que reflete maior poder aquisitivo, evita os constrangimentos ao mesmo, expressos em
relações sociais racializadas. Mas isso não significa dizer que se apresentar socialmente
com adereços que poderiam indicar maior poder aquisitivo elimina o racismo dirigido à
pessoa negra, em certas situações.
Voltando às reconstruções familiares da partticipante/informante, ela casou-se e
construiu o seu próprio lar: “eu vivo com o Francelino, que tem filhos brancos, porque
os filhos dele não são meus filhos, porém filhos que eu criei” ... “É, tenho uma família
que acabei construindo... com marido e filhos”.
Paula abordou a diferença de cor entre ela e o seu companheiro, expressando o
seu ponto de vista sobre o que as pessoas pensam da sua união multirracial:
“Meu companheiro é branco, brinco com ele e digo, ‘com certeza as pessoas
devem pensar: esse cara deve ter alguma coisa de anormal, porque não é
possível’” ... “As pessoas olham demais quando estou com o meu companheiro
e realmente deve estar passando mil coisas pelas suas cabeças, como, por
exemplo: ‘deve ter alguma coisa de inferior nesse homem, para ter escolhido...
viver com uma negra, não é normal e deve ter alguma coisa de errado’”.
Essa união é duradoura e constitui, na atualidade, o seu único vínculo familiar:
“as pessoas da minha família original foram morrendo, perdi todo mundo” ...
“Bom, a minha família atual é o que me resta hoje”.
Evenice Santos Chaves O racismo na Trajetória Escolar e Profissional... 215

No que diz respeito à perda de familiares, a participante/informante salientou


que o avô morreu durante a sua adolescência, porém no momento em que já tinha maior
autonomia: “meu avô morreu relativamente cedo, em 1970, em decorrência de diabetes
e pressão alta, mas na época eu já estava crescida”. Aditou que a avó faleceu já no seu
ciclo de vida adulta: “minha avó morreu com noventa e quatro anos, no ano de 2000”.
Por outro lado, a sua mãe faleceu precocemente: “minha mãe morreu muito cedo, tinha
diabetes” ... “Minha mãe morreu com cinqüenta e nove anos”.
Do exposto até aqui, constata-se que na trajetória escolar de Paula transições e
pontos de virada se fizeram presentes, delineando novos rumos, alguns dos quais
vinculados ao processo de escolarização formal, cuja conseqüência prática foi a
profissionalização e o trabalho qualificado como via de mobilidade social vertical.

6.2.7. A trajetória profissional


Em um momento anterior, apontou-se que Paula iniciou a sua vida profissional
como professora primária, logo após concluir o curso pedagógico. Sobre essa atividade,
apenas mencionou: “no ensino fundamental, dei aulas para a primeira série, depois
para a segunda, depois para a quinta, com a qual fiquei trabalhando um tempão” ...
“Trabalhei mais com a quarta e quinta séries...”. Um outro dado é o de que continuou
dando aulas no Ensino Fundamental, durante a realização do primeiro curso de
graduação, o Curso A: “fiquei dando aulas no Colégio dos Trabalhadores até 1974,
quando solicitei demissão do cargo de professora do Estado”.
Após se desligar da função de professora primária iniciou a sua atuação no
ensino superior, na Universidade X. Atribuiu tal fato ao seu desempenho acadêmico
como graduanda, na referida universidade, e à falta de professor para ministrar uma
disciplina: “era reconhecida como ‘a’ estudante, o que favoreceu o meu ingresso como
docente no ensino superior” ... “Em um determinado momento faltou professor para
ministrar a Disciplina R, do currículo do referido curso”.
Convidada, iniciou a docência como professora colaboradora no Departamento
T, com a tarefa de ministrar a disciplina acima referida: “entrei na Universidade X por
essa via e lá permaneço até hoje”. Há um dado alusivo à sua continuidade como
docente no Departamento T, o mesmo onde ingressou, que diz respeito à habilitação da
entrevistada para trabalhar com grupos, decorrente do seu aprendizado no Curso N:
Evenice Santos Chaves O racismo na Trajetória Escolar e Profissional... 216

“Eu acabei vingando naquele departamento porque também trabalhava com a


minha outra formação acadêmica” ... “Ela proporcionava uma atuação com
grupos, o que contrastava com a maioria dos professores do Departamento T,
que atuavam de forma individualizada”.
Ao abordar o trabalho docente, a participante/informante deu destaque à atuação
em sala de aula ministrando disciplinas eletivas, ao enfatizar que o contato com alunos
de diversos cursos propiciou a apreensão de várias perspectivas sobre a universidade:
“ministrando as disciplinas eletivas, tive uma visão mais geral da Universidade X, a
partir do ponto de vista dos alunos, e foi uma experiência muito grande”.
Em seu percurso docente naquela instituição, exerceu cargos administrativos:
chefiou o Departamento T, “cheguei a ser chefe daquele departamento complicado” ...
“Fiquei na chefia e me dei bem como chefe, porque sabia como administrar os conflitos
em um departamento complicadézimo e brigão”; coordenou um, na administração
superior, “em 1985, fui convidada para ocupar um cargo na Administração Superior da
Universidade X, o de coordenar um Departamento”; foi diretora de uma faculdade,
“após a minha gestão na Administração Superior, acabei participando de um processo
eleitoral para dirigir a Faculdade A” ... “Como diretora da Faculdade A, acho que fui
uma boa administradora e fiz um bom trabalho naquele cargo”. Finalmente, ocupou
mais um cargo na administração superior, explicitando que “isso aconteceu nos anos 80
do século XX” ... “Fui eleita e acabei ficando... no cargo por quatro anos... já faz
tempo”.
Há indícios de que, em 1985, além de exercer um cargo na Administração
Superior da Universidade X, como coordenadora de um departamento, a jornada de
trabalho da participante/informante englobava os três turnos, envolvendo diferentes
atividades, realizadas em locais diversos: “ocupei aquela posição, porém continuei
dando aulas, continuei na Organização Estadual 1 de Luta Contra a Discriminação
Racial e desenvolvendo a minha outra atividade profissional”. Essa intensa jornada de
trabalho, no entanto, foi interrompida:
“Mesmo não tendo mais tempo de dedicar-me àquela outra profissão, continuei
nela, desenvolvendo atividades” ... “Porém não tinha mais tempo de dedicar-me
a ela, porque a Organização Estadual 1 de Luta Contra a Discriminação Racial
tomava muito do meu tempo” ... “Com relação à minha segunda profissão, acho
Evenice Santos Chaves O racismo na Trajetória Escolar e Profissional... 217

que o último trabalho que realizei foi em 1986 e depois disso fiquei só
apoiando” ... "De certa forma, acabei abandonando a minha segunda profissão,
coisa que gostava de fazer, por falta de tempo”.
Desse modo, há evidências de que abdicou de realizar as atividades profissionais
proporcionadas pelo Curso N, ainda que gostasse, devido à sobrecarga de trabalho.
O espaço da universidade contribuiu para a criação da Organização Estadual 1
de Luta contra a Discriminação Racial, na Cidade E. Embora participasse do movimento
negro, foi na Universidade X, no ano de 1978, que as articulações para criar uma
instituição local, representativa desse movimento, ocorreram:
“Eu e alguns negros começamos a nos reunir, dentro da própria Universidade
X, dentre eles a Eliana e o Frederico” ... “Comecei a me reunir com um grupo
para criar a Organização Estadual 1 de Luta Contra a Discriminação Racial”
... “Naquele período, criamos a Organização Estadual 1 de Luta Contra a
Discriminação Racial” ... “O momento de criação dessa entidade, como já lhe
disse, é o mesmo da criação de outras no Brasil, todas buscando denunciar o
racismo e o mito da democracia racial” ... “Criamos a Organização Estadual 1
de Luta Contra a Discriminação Racial, que só começou a ter vida jurídica a
partir de 1980, porém as discussões e o seu processo de construção iniciaram-se
bem antes, retomando, inclusive, a figura do Zumbi como um dos símbolos
negros”.
A Universidade X ainda proporcionou à participante/informante a oportunidade
de militar no movimento docente. Não há dados que especifiquem mais detalhadamente
a sua atuação, porém, um realça a participação: “na Universidade X, sempre me engajei
no processo político, é nesse sentido que sou uma das fundadoras da Associação de
Professores”.
Outro ponto revelado pelos dados foi o fato de ter sido objeto do racismo contra
o negro, quando concorreu a um cargo na administração superior, naquela instituição de
ensino. Durante a campanha sofreu discriminação racial: “só me senti vítima do racismo
uma vez, quando, em uma peça de teatro, fui representada como macaca”.
Ao fazer refrência a esse episódio, a participante/informante também focalizou a
questão do racismo contra o negro no cotidiano da Universidade X: “o racismo existe
na Universidade X, mas naquele espaço... as pessoas têm um cuidado maior”. Ao
Evenice Santos Chaves O racismo na Trajetória Escolar e Profissional... 218

mencionar esse cuidado, sublinhou que, na instituição, há momentos propícios para


manifestações de cunho racista: “nem sabemos direito onde as pessoas guardam, mas o
racismo surge nas horas de disputa e de competição” ... “Só nessas horas ele aparece...
com intensidade, porque as pessoas guardam seus preconceitos, o seu racismo”.
Essa discriminação racial pela qual a entrevistada passou, em um momento da
sua trajetória profissional, constitui-se como um exemplo de preconceito contra uma
professora de etnia negra, representada em uma peça como ser inferior. Possivelmente,
naquele momento de disputa por um cargo, buscou-se alertar a comunidade universitária
sobre a condição de inferioridade do negro e o conseqüente perigo em elegê-la para
assumir funções na administração superior.
Carvalho (2002) salienta que, no plano histórico, a imagem social do acadêmico,
construída e difundida, é racista, pois, até a geração passada, essa era representada por
um adulto branco e, hoje, se inclui apenas a mulher branca. Comparando-se essa
imagem com o caso de Paula, constata-se uma vigilância para que o negro não venha a
ocupar cargos administrativos de relevância, no contexto universitário. Dessa forma, o
episódio racista pareceu trazer a mensagem de que uma negra não poderia macular a
imagem social do acadêmico brasileiro.
Distanciando-se da situação em que foi objeto do racismo contra o negro, a
participante/informante enfocou a presença desse fenômeno social nas universidades,
em termos mais amplos:
“Por isso, quando falamos em cotas para negros nas universidades, os racistas
começam a sair do armário, a se colocarem, a fazerem seus discursos que
estavam muito bem guardados e que eles não tinham coragem de emitir” ... “Os
discursos surgem numa hora dessa, pois, se no espaço da universidade não
cabem todos os brancos, porque essa instituição vai ter que inserir o negro?” ...
“Discute-se relações raciais sem se confrontar as desvantagens com os
privilégios, aceita-se as desvantagens, porém ainda não se consegue enxergar
os privilégios”.
Tais conteúdos indicam que há conflitos de interesses, no contexto universitário.
De acordo com Ventorini e Garcia (2004), os conflitos nos relacionamentos entre as
pessoas podem ser instaurados pelo embate entre perspectivas divergentes. Os dados
anteriormente destacados, aliados àqueles referentes à situação de disputa por um cargo
Evenice Santos Chaves O racismo na Trajetória Escolar e Profissional... 219

administrativo, e conseqüente explicitação do racismo dirigido à entrevistada, no espaço


da Universidade X, fornecem indicativos de que, na configuração de alguns conflitos de
interesses, está em jogo: a tomada de decisão, por parte da comunidade docente, frente à
possibilidade de implantação de uma política de ação afirmativa, tendo-se o negro como
ator social a ser contemplado, bem como a luta pelo poder.
Ventorini e Garcia (2004) expõem que conflitos de interesses podem acarretar
mudanças negativas na qualidade de relacionamentos interpessoais ou, de outra forma,
fortalecer vínculos entre as pessoas envolvidas. Na presente pesquisa, há ausência de
dados a serem empregados para descrever como o conflito de interesse que envolveu a
entrevistada afetou relacionamentos interpessoais entre alguns docentes da Universidade
X, à época em que Paula candidatou-se a um cargo na administração superior.
Com relação ao negro que exerce a docência na universidade, os conteúdos
expostos a seguir refletem o seu ponto de vista sobre o isolamento do professor negro,
na referida instituição:
“Na universidade, a ausência de negros é tão grande que você não tem muitos
interlocutores, eles são poucos e o espaço de reivindicação para o racismo não
está na universidade, esse movimento é fora dela” ... “Acho que é a maior
dificuldade, porque, como são muito poucos que trabalham na universidade,
acabam ficando isolados, muitas vezes falando sozinhos, porque estão
inteiramente isolados, não têm com quem dialogar, não têm um interlocutor”...
“Enfrentando uma briga naquele lugar e, muitas vezes, talvez nem enfrentando
briga, se aquietando, se fingindo de morto, porque está isolado naquele meio".
Esse isolamento, decorrente da presença de uma ínfima proporção de professores
negros nos quadros das universidades brasileiras, quando comparados ao número de
docentes brancos, é escassamente abordado na literatura consultada sobre o tema do
negro na universidade. De um modo geral, estima-se que entre 1,8% a 2% de negros
constituem o contingente docente das universidades públicas brasileiras.
Carvalho (2002), ressalvando que o seu intuito é o de “trazer à consciência a
condição histórica da universidade brasileira de servir de escola e de abrigo apenas para
a elite branca que a criou” (p. 83), descreve que, por exemplo, na conceituada Faculdade
de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo, onde muitos
docentes são bem conceituados nacionalmente, dos 540 professores no exercício da
Evenice Santos Chaves O racismo na Trajetória Escolar e Profissional... 220

função, apenas 1 é negro, ainda assim estrangeiro, e não fez o curso superior no Brasil.
O autor também expõe que na Universidade de Brasília há apenas 14 docentes negros,
de um total de 1.400. Para Carvalho (2002), isso reflete o panorama da segregação
racial na academia brasileira.
Coligado a esse fato, tem-se a invisibilidade do racismo contra o negro no Brasil
e, por conseguinte, nas universidades públicas. A difusão do mito da democracia racial,
a ausência de circulação de dados sobre os percentuais de docentes negros nessa
instituição, visando à conscientização de todos os seus membros sobre o fenômeno,
como também a naturalização da inclusão social excludente do negro na academia,
possivelmente relacionam-se com a invisibilidade do racismo contra os pertencentes a
essa etnia, nos espaços universitários.
Outra faceta abordada pela entrevistada se refere à manutenção da negritude, por
parte de professores universitários negros, o que está refletido nos seguintes dados:
“Para os poucos negros que conseguem chegar à universidade e serem bem
sucedidos na profissão, a maior dificuldade é continuar sendo negro” ... “Eu
até reconheço a dificuldade dentro da universidade, porque para muitas pessoas
negras que conseguiram ascender, é difícil continuarem sendo negras,
continuarem lutando, porque ficam isoladas em um determinado lugar que, em
princípio, não é para elas” ... “A maior dificuldade é continuar brigando para
que outros negros cheguem lá, ocupem também esse espaço e você não fique
como uma exceção que justifica a regra”.
Os dados citados remetem a um produto do embranquecimento: a incorporação
de valores e de modos de condutas, cujas referências são os padrões brancos, europeus e
americanos, hegemônicos, valorizados e impostos pelo processo de socialização. Por
isso, a pessoa negra, para ser socialmente aceita, tem que se branquear.
Além de enfatizar a presença do racismo contra o negro na nossa universidade,
Paula apontou razões históricas para a manutenção desse fenômeno em nosso país: “é
uma questão difícil, até porque a escravidão foi um processo muito longo no país,
foram 374 anos que a população negra foi destituída, inclusive, da sua humanidade”.
Em seguida, abordou uma conseqüência do regime escravocrata em nossa
cultura contemporânea:
“Então, a sociedade brasileira se acostumou e naturalizou a situação da
Evenice Santos Chaves O racismo na Trajetória Escolar e Profissional... 221

população negra, ela acha normal, acha que é isso mesmo” ... “Um percentual
muito grande da população brasileira acha normalíssima a discrepância na
escolaridade entre negros e brancos, nem percebe.” ... “É como se fosse uma
abstração, mas os excluídos são pessoas com cor, com cara e com sexo”.
Dessa forma, ao se naturalizar a situação de inclusão social excludente do negro,
engloba-se a noção colonialista da sua inferioridade, por essência, e incorpora-se, como
normal, que ele ocupe posições sociais abaixo daquelas preenchidas pelo branco, em
diferentes temporalidades.
Finalmente, há um dado refletindo a avaliação realizada pela entrevistada sobre
o racismo contra o negro como uma problemática nacional a ser resolvida:
“Se pretos e pardos representassem só 5% da sociedade, a situação era uma,
mas 47% é um percentual muito grande para que a população não se preocupe,
porque diz respeito ao desenvolvimento do país” ... “Dessa forma, toda a
sociedade brasileira deveria estar voltada para a busca de solução, todavia não
é o que acontece e mesmo a esquerda brasileira, que trata da questão da classe
social e dos excluídos, atua como se esses não tivessem cor, sexo ou cara”.
Conforme Bento (2002a), o branco, no nosso país, omite-se frente ao racismo
contra o negro. Assim, pode-se afirmar que o negro torna-se irrelevante, principalmente
para as elites políticas, enquanto um contingente de brasileiros que poderá contribuir
para o desenvolvimento econômico e social do país, caso tenha acesso à moradia digna,
à escola, ao emprego e a salários que permitam o acesso a bens e serviços. A inclusão
social excludente, então, conforma um problema da nação brasileira, como expressaram
os dados acima mencionados.
Levando em conta a vida social de Paula, alguns conteúdos por ela relatados são
indicativos de que, mesmo como docente do ensino superior, continuou a ser objeto do
racismo contra o negro, em diversas situações e espaços sociais. Ressaltou, entretanto,
que os acontecimentos perpassados por relações racializadas aconteceram antes da nova
Constituição, “as cenas de racismo, dirigidos contra mim ... foram antes da legislação
de 1988”. A entrevistada descreveu episódios nos quais estão explícitas ocorrências de
racismo direcionadas à sua pessoa em um edifício, em uma loja e na via pública. Assim
os explicitou:
“Certa vez, tive uma experiência muita engraçada com um... servente, pessoa
Evenice Santos Chaves O racismo na Trajetória Escolar e Profissional... 222

que fazia a limpeza de um edifício. Estava fazendo um trabalho... no Grupo A1 e


o Cristóvão Fonseca participava. Ele morava no Edifício Marquesa e fui à sua
casa para tratar de questões referentes a esse trabalho. O apartamento do meu
colega ficava próximo ao elevador de serviço e normalmente o usava, porque
era mais rápido para mim. Retomando especificamente aquele dia em que fui à
sua casa, subi pelo elevador de serviço e, quando saí do seu apartamento,
dirigi-me ao mesmo, mas ele demorou a chegar, então me desloquei para o
elevador... social. Um senhor que estava passando pano no chão virou para
mim e disse assim: ‘a senhora não pode descer por esse’, ao que falei: ‘mas
porque que eu não posso descer por esse?’, ‘não, não pode porque esse aqui é
só para..., é para quem mora no prédio, empregada tem que descer por
aquele’. Começamos uma discussão, discute para cá, discute para lá, falamos
alto, e, em seguida, surgiu o meu amigo. Naquele ponto, já havia uma grande
confusão, porque eu teria que descer... pelo elevador de serviço. Falei: ‘mas
agora que eu não vou mesmo descer pelo de serviço’”.
“Teve uma outra situação, numa loja, que foi muito engraçada, muito
engraçada, porém terrível, foi trágica. O salário da Universidade X havia saído,
recebia pelo Banco dos Andrade, situado na Rua Miosótis. Entrei naquela
agência, retirei dinheiro, saí e dirigi-me ao ponto de ônibus, com o intuito de ir
para casa, mas, no caminho, parei na ‘A Barateira’ para comprar borracha,
lápis e caneta. Quando procurava esses materiais na seção, de repente...
apareceu um segurança e falou alguma coisa para mim: ‘não sei o que, não sei
o que, bolsa’. Eu só entendi bolsa e achei que ele estava dizendo para eu ter
cuidado com a minha bolsa... Busquei cuidar da bolsa e achei legal ele ter me
avisando. Segurei a bolsa, ainda mais que tinha saído do banco, e continuei
olhando os objetos. Ele novamente falou comigo, já irritado, ‘não sei o que, não
sei o que’. Eu só entendia bolsa e cuidava de segurar a bolsa, até que na
terceira vez ele, muito brabo, disse-me: ‘eu quero revistar a sua bolsa’.
Respondi: ‘mas por que o senhor quer revistar a minha bolsa?’ Ele falou:
‘porque tem uma... eu fui avisado de que tem um problema de roubo aqui
nessa seção, então eu quero revistar a sua bolsa’. Verbalizei para ele: ‘tá, sim,
então vai ter que revistar a de todo mundo, não estou só na seção, porque o
Evenice Santos Chaves O racismo na Trajetória Escolar e Profissional... 223

senhor quer revistar justo a minha?’ No discute para cá, discute para lá,
discute para cá, discute para lá, acabei parando na gerência e já estava
estressada. Fui jogando tudo em cima do gerente, abri a bolsa e joguei tudo em
cima dele”.
“Retornando da Universidade X, fui pegar o Raimundo, meu filho adotivo, que
era pequeno e estava na casa do Luis..., o Luis Washington. Já na rua com ele,
buscava pegar um táxi, para nos dirigirmos à nossa casa. Como não passava
táxi, comecei a andar com o garoto, que estava calçado, mas... nu: era
pequeno... tinha sujado a roupa, enfim, estava nu. Andava na direção da Rua
das Tulipas, quando passou um senhor em um carro... preto, não sei que tipo de
carro era, buzinou, eu olhei e ele perguntou: ‘é seu filho?’ Olhei para ele e
resolvi não responder, não tinha porque dar conta da minha vida, continuei
andando. Andava devagar para acompanhar o passo do pequeno... mas...
quando cheguei na esquina já havia um aparato policial, pois o senhor tinha
chamado a polícia, porque decerto eu estava roubando o moleque. Armou-se
toda uma confusão, até aceitarem a explicação de que eu não estava roubando a
criança”.
“Há uma outra situação... que foi muito engraçada. Estava andando no
comércio, não me lembro para onde ia, e em frente à ‘Grande Loja’ fui
abordada por um investigador, que falou para mim: ‘senhora, tem que ir
comigo até a delegacia’. Tomei um susto, olhei para ele e disse: ‘eu, por que?’,
ao que o investigador respondeu: ‘porque hoje..., é, tem uma queixa na
delegacia, duma senhora que foi roubada pela empregada doméstica e a
inscrição...’. Depois de um tempo percebi que a palavra inscrição estava no
lugar de descrição: ‘e a inscrição da empregada doméstica é a senhora,
inclusive a roupa’. Ela está com calça jeans, blusa não sei o que e sapato não
sei o que. Parecia mesmo com a roupa que eu vestia. Ele continuou, ‘então a
senhora tem que ir comigo lá’, ao que respondi: ‘ah, mas não vou mesmo meu
filho, não vou. Se quiser me levar vai ser a força, porque de livre e espontânea
vontade eu não vou..., não vou’. Começamos uma discussão no meio da rua,
que chamou a atenção do pessoal da loja, cujo gerente me conhecia. Ele
aproximou-se e explicou para o investigador quem eu era. O investigador ficou
Evenice Santos Chaves O racismo na Trajetória Escolar e Profissional... 224

desesperado e, naquele momento, falei para ele: ‘não, mas agora eu quero ir
na delegacia com o senhor’. Ele retrucou: ‘agora eu não quero lhe levar’. Eu
coloquei: ‘agora eu quero ir’”.
As situações racistas, parte das experiências sociais da participante/informante,
não constituem novidade, mesmo porque alguns eventos semelhantes, aqui e ali, são
noticiados pela imprensa. Contudo, a descrição das mesmas, como objeto de estudo
científico, tem o mérito de gerar dados, os quais colocam em xeque a ideologia
circulante da democracia racial brasileira, indicando-a como mascaradora do racismo
contra o negro, no cotidiano brasileiro.
Dessa ideologia decorre uma falsa problemática que, inclusive, está presente em
parte da literatura científica: é difícil, se não impossível, delimitar quem é negro no
Brasil. Todavia, Bernardino (2002) acentua que, no plano social, o negro brasileiro é
identificável pela diferença fenotípica, reconhecível quando do emprego da punição e
irreconhecível quando da participação em benefícios sociais.
Certamente que o racismo brasileiro contra o negro é de marca, não de origem,
portanto, social e não biológico. Isso é evidenciado nas relações sociais racializadas e
nos indicadores sociais produzidos pelo próprio Governo.
Voltando à posição social da entrevistada como docente do ensino superior, há
indicativos de que, na Universidade X, estabeleceu outras modalidades de relações
interpessoais:
“Meu departamento é meio... isolado, no que diz respeito a trocas com os
outros, porém eu me relaciono com diferentes departamentos e com outros
setores da Universidade X” ... “Meus amigos, na Universidade X, não estão,
necessariamente, em meu setor de trabalho”.
Transitando em diferentes momentos nos diversos espaços de trabalho, a
participante/informante consolidou amizades para além do departamento onde é lotada:
“tenho pessoas muito amigas mesmo... em outros setores, pessoas com quem, inclusive,
mantenho amizade fora do espaço da Universidade X”. Há um dado, entretanto, que
focaliza uma situação peculiar, decorrente da posição social que lhe foi delegada, ao
exercer um cargo na administração superior da Universidade X:
“Por exemplo, quando estava ocupando um cargo na administração superior da
Universidade X, comecei a receber muitos convites e ficava avaliando que essas
Evenice Santos Chaves O racismo na Trajetória Escolar e Profissional... 225

pessoas jamais iriam me convidar em outras circunstâncias” ... “Então, eu não


ia, porque julgava que não estavam me convidando, estavam convidando o
cargo e como o cargo não poderia ir sem mim, então não ia nem eu, nem o
cargo” ... “Assim, quando ocupei um cargo na administração superior na
Universidade X, não ia para as festas que me convidavam e realmente... sempre
escolhia para onde deveria ir, não freqüentava todos os lugares”.
Essa situação colaborou na definição de seu critério para participar de reuniões
sociais: “com relação à participação em festas, tenho um lema: só vou a algumas
festas” ... “Faço as minhas escolhas: se for para me desgastar às vezes escolho não ir,
para não perder meu tempo, nem gastar minha energia com esse tipo de coisa”.
Supõe-se que um aprendizado advindo do exercício em cargos administrativos,
foi o de fornecer indícios, a partir dos quais a entrevistada escolhe participar ou não de
determinadas festividades. Contudo, é importante lembrar que tais indícios não estão
expressos nos dados.
A atuação profissional de Paula como docente na Universidade X, além de
possibilitar que criasse, juntamente com alguns professores da sua etnia, um órgão
representativo do movimento negro na Cidade E, abriu caminhos para o desempenho de
outra tarefa profissional: fazer parte do Grupo de Trabalho Interinstitucional, criado
pelo Presidente Fernando Henrique Cardoso, no ano de 1995.
“Esse grupo de trabalho foi criado em resposta às reivindicações do movimento
negro, nas comemorações que realizou pelos trezentos anos de Zumbi” ...
“Quem trouxe para a cena a discussão sobre a ação afirmativa no Brasil foi o
movimento negro, mas o GTI a institucionalizou no espaço do Estado” ... “Fiz
parte daquele GTI como representante da sociedade civil” ... “Fui trabalhar em
um órgão do governo federal, convidada pelo seu dirigente, para poder
participar do Grupo de Trabalho Interinstitucional, criado pelo Presidente da
República, em 1995”.
A participante/informante enfatiza a sua experiência em trabalhos anteriores,
assentados em políticas de ação afirmativa, como o fator responsável pela sua inclusão
no Grupo de Trabalho Interinstitucional:
“Já tinha desenvolvido um conjunto de atividades voltadas para a questão das
políticas de ação afirmativa e, acho que por conta disso, fui convidada para
Evenice Santos Chaves O racismo na Trajetória Escolar e Profissional... 226

trabalhar em um ministério, coordenando um projeto que denominávamos de


Coordenação de Ação Afirmativa”.
Dados especificam o objetivo, uma função do GTI, bem como a função que a
entrevistada desenvolvia:
“O trabalho desenvolvido pelo GTI foi..., basicamente, propor políticas públicas
para a valorização da população negra” ... “Porém, no GTI, só tínhamos a
função de propor e não de executar” ... “Naquele GTI, desde 1996,
transitávamos em diferentes Ministérios, essa era uma das nossas funções:
tentar que os ministérios desenvolvessem políticas públicas voltadas... para a
questão... racial” ... “A nossa prioridade era educação, saúde, trabalho e
renda” ... “A minha função era a de trabalhar com a questão racial”.
Ao ingressar no GTI, suas expectativas frente ao labor eram positivas:
“Quando iniciei aquela coordenação, cheguei a ficar fascinada e dizia para
mim mesma: ‘não, agora é a possibilidade que eu vou ter de realizar algumas
coisas que a gente pensou’” ... “Achava que havia uma possibilidade, quando
fui trabalhar com aquele Ministro”.
Ao se referir às atividades de caráter interministerial desenvolvidas pelo grupo
de pessoas que compunham o GTI, Paula ressaltou dificuldades e realizações.
O Ministério da Educação foi considerado pela mesma como um dos mais
árduos:
“Um dos ministérios mais difíceis foi o da Educação” ... “No Ministério da
Educação, não colocavam claramente impedimentos” ... “Simplesmente não
recebiam as pessoas que compunham o GTI” ... “Agendavam encontros
conosco, mas eles não deslanchavam” ... “Um Assessor do Ministro da
Educação o representava” ... “Ele mesmo se incumbia de fazer com que as
coisas não caminhassem, ficassem no papel, só para inglês ver”.
Relativamente às dificuldades e às realizações vinculadas àquele ministério,
Paula assim as expôs:
“No Ministério da Educação, só conseguimos fazer uma discussão relativa à
questão dos parâmetros curriculares” ... “Promovemos um encontro com
educadores negros para discutirmos esse tema, do qual decorreu uma
publicação intitulada ‘Superando o Racismo na Escola’” ... “Sempre foi muito
Evenice Santos Chaves O racismo na Trajetória Escolar e Profissional... 227

difícil e só conseguimos um intercâmbio com a Secretaria de Ensino


Fundamental, constituída por um grupo pequeno, esmirrado, que trabalhava
com a educação em quilombo” ... “Naquele tempo... tinha uma verba muito
minguada e eles só puderam trabalhar com a Comunidade Colorida..., lá no
Estado Gelo” ... “Construíram um livro muito interessante sobre tal
comunidade, mas também só ficou nisso”.
Sumarizando, a participante/informante afirmou: “foi muito difícil com o
Ministro Pedro Rogério”.
Na área da saúde, a atuação do GTI e, conseqüentemente, da entrevistada, dados
expõem uma obstrução, concernente à implantação das proposições recomendadas pelo
referido grupo de trabalho:
“No Ministério da Saúde foi difícil, mas tivemos um certo trânsito, pois
conseguimos incluir a questão racial na Conferência Nacional de Saúde” ...
“Na Conferência Nacional de Saúde, fizemos uma mesa redonda sobre a saúde
da população negra e conseguimos encetar uma discussão nacional sobre a
anemia falciforme” ... “Dela decorreu uma portaria ministerial, que também
nunca saiu... do papel” ... “Nunca saiu do papel e nunca teve uma repercussão
nacional” ... “Aqui ou ali, por pressão do movimento negro, um estado ou um
município implantou o programa” ... “O problema da anemia falciforme não
teve um impacto nacional como gostaríamos”.
Sobre a atuação do GTI na área do trabalho, Paula forneceu os seguintes dados:
“Tínhamos um certo trânsito no Ministério do Trabalho, que criou um grupo de
trabalho para desenvolver atividades relativas à questão... racial” ... “Fizemos
coisas interessantes..., firmamos um compromisso de responsabilidade com os
empresários..., que, a partir dele, formularam uma carta compromisso, visando
à implementação de trabalhos de ação afirmativa nas suas empresas”.
Com relação à interface entre o GTI e o Ministério do Planejamento, um entrave
e a sua superação foram ressaltados pela entrevistada:
“O GTI gostaria que através do IPEA, órgão daquele Ministério..., fosse
elaborado um conjunto de dados centrado no recorte racial, mas não
conseguimos” ... “Em outro momento, em uma nova gestão, quando o Custódio
Pinto, que fazia parte da comissão de estudos preparatórios para a Conferência
Evenice Santos Chaves O racismo na Trajetória Escolar e Profissional... 228

de Durban, foi trabalhar no IPEA, conseguimos o recorte racial dos dados”.


O Ministério das Relações Exteriores foi mencionado como um significativo
colaborador: “tivemos aliados importantíssimos no Itamarati, o qual possuía
representantes no GTI” ... “Eles foram relevantes no processo preparatório para a
Conferência de Durban, deram muita força, participaram... conosco”.
Por fim, a participante/informante verbalizou que “em 1998, o GTI entregou um
relatório para o Presidente da República” ... “Foi na época em que o Ministro da
Justiça saiu e todo esse trabalho foi por água abaixo”. Complementou, afirmando que
“o seu substituto não deu tanta importância... para o GTI” ... “Embora esse grupo, o
GTI, não tenha sido desfeito, ele não funcionou mais”.
A partir desse evento, a entrevistada avaliou a sua atuação naquele GTI:
“Estava desgastante ficar fora da minha cidade, longe da minha família, sem
estar produzindo” ... “Achei melhor voltar, solicitei o meu desligamento, porque
não dava mais... para produzir nada naquele espaço” ... “Pedi para sair,
porque não dava mais”.
Após “um ano e dois ou três meses”, retornou à Cidade E, retomou as atividades
docentes na Universidade X, a atuação na Organização Estadual 1 de Luta contra a
Discriminação Racial e o trabalho profissional proporcionado pelo Curso N, do qual
estava afastada, desde 1986: “eu continuo na universidade dando aula, realizando a
minha outra atividade profissional e participando do movimento negro”.
Quando da realização da entrevista narrativa, Paula relatou que desenvolvia
trabalhos na Universidade X, articulados de forma interdisciplinar, os quais agregavam
docentes de diferentes unidades. O objetivo dessa tarefa era a construção de atividades
que pudessem vir a colaborar com a inserção de um maior contingente de negros como
discentes, naquela universidade pública:
“Na Faculdade B, eu e o Professor Carlito fizemos um projeto relativo à
preparação do estudante negro para o seu ingresso na universidade” ... “Estou
inserida na discussão acerca da construção da proposta de criação de cotas
para negros na universidade onde trabalho” ... “Nessa tarefa, juntei-me a um
grupo que foi instituído na Faculdade C, o qual está promovendo fóruns” ... “Já
trouxeram como palestrantes o Professor Carlos Marinho, da Universidade K, e
o Professor Osmundo Freire, da Universidade U” ... “Quer dizer, estou aí,
Evenice Santos Chaves O racismo na Trajetória Escolar e Profissional... 229

tentando abrir esses espaços”.


Os dados relativos à trajetória profissional dessa entrevistada demonstraram um
maior conjunto de conteúdos sobre suas atuações profissionais que envolviam a questão
da inclusão social excludente do negro, em diferentes setores da sociedade brasileira.
Verifica-se que ao se reportar a trabalhos realizados, ou em andamento, no contexto da
Universidade X, relatou mais detalhadamente as atividades concentradas na construção
de políticas de ação afirmativa para o negro.
Considerando-se a opção da participante/informante em integrar-se ao Grupo de
Trabalho Interinstitucional e ao Grupo de Trabalho Interdisciplinar da Universidade X,
duas suposições podem ser formuladas: uma, decorrente das suas experiências pessoais
como objeto do racismo e outra, derivada da sua atuação como militante do movimento
negro.
A primeira assenta-se na sua condição de negra, objeto do racismo, tanto
estrutural quanto relacional. Dessa, decorreram vivências perpassadas por privações
sociais, discriminação racial e humilhações, em diferentes momentos do seu ciclo de
vida já vivido. Tais vivências, configuradas nas experiências sociais, possivelmente
viabilizaram que a mesma construísse uma compreensão sobre o papel da desigualdade
social e racial na trajetória do negro, enquanto grupo social, no que diz respeito ao
acesso a bens, a serviços, enfim, à considerada vida boa.
A segunda suposição diz respeito a sua condição de militante do movimento
negro e, como tal, compromete-se e compartilha com o objetivo mais amplo desse
movimento social: eliminar ou, pelo menos, minimizar desigualdades sociais e raciais.
É oportuno frisar que a sua militância no movimento negro também implica em
ganhos pessoais, porquanto propicia o seu fortalecimento como pessoa que faz parte de
um grupo étnico, socialmente organizado não apenas para reivindicar, mas, também,
para fornecer suporte social: “outro apoio é o movimento negro”. Apesar de não
especificar que tipo de apoio recebe, pode-se inferir que, no mínimo, consolida um
espaço de convivência onde os seus membros são considerados como pessoas iguais e
sujeitos sociais de direitos.
Retomando a posição de Paula como professora universitária, ao ponderar suas
satisfações e insatisfações na atividade docente, exprimiu um sentimento, “eu gosto da
universidade” e, com relação às insatisfações, relatou que “uma delas é que talvez eu
Evenice Santos Chaves O racismo na Trajetória Escolar e Profissional... 230

quisesse... no passado, hoje não mais, hoje eu acho que não faria mais essa opção”...
“Mas no passado, se tivesse tido condição, teria me qualificado na Área T”.
Observa-se que a participante/informante selecionou o que verbalizou sobre suas
insatisfações, expondo apenas uma, vinculada à sua formação profissional. Com isso, se
obtêm o indício de que evitou falar sobre outras, as quais, provavelmente, poderiam
envolver relacionamentos interpessoais entre ela e profissionais e/ou estudantes.
Declarou que “hoje eu não tenho nenhuma insatisfação na Universidade X...,
não, hoje não”. Porém, reportando-se ao passado, reafirmou que esteve insatisfeita,
devido a impossibilidade de uma realização:
“Mas no passado, se tivesse tido condição, teria me qualificado na Área T” ...
“Anteriormente eu não tinha condições de sair da Cidade E, exatamente por
causa da minha família, e fui adiando” ... “Porém, no passado, realmente teria
feito doutorado nessa área”.
Com o passar dos anos, entretanto, parece ter superado tal insatisfação, porque
seu interesse relativo à área de estudos para realizar o doutorado modificou-se: “depois
mudei de idéia, não quero mais e já estou procurando a Área Alfa-alfa”.

6.2.8. Qual o olhar de Paula sobre si mesma?


A participante/informante se autocaracteriza positivamente em termos de humor,
atribuindo-o à influência de seu avô:
“Acho que herdei esse bom humor do meu avô, o que considero ótimo” ...
“Acho que herdei o humor do meu avô, que é uma boa parte, e também uma
forma de pegar a vida mais leve, de não dramatizar tanto as dificuldades, de
sempre ver a vida pelo lado mais leve”.
Também apontou ganhos decorrentes desse tipo de humor: “eu acho que o bom
humor facilita viver, pois para não dar um tom trágico às coisas, muitas vezes você
acaba se divertindo com a própria desgraça, até com as dificuldades”.
Ainda expôs outras singularidades, como o descrito a seguir:
“Normalmente, sou calma, tranqüila” ... “Não tenho problemas de
relacionamento com as pessoas, eu não sei, eu... nunca tive” ... “Acho que
consegui angariar mais amigos do que inimigos” ... “Hoje já não brigo por
tanta coisa, não perco a minha paciência com pequenas coisas, só a perco com
Evenice Santos Chaves O racismo na Trajetória Escolar e Profissional... 231

as grandes” ... “Acabei elegendo algumas coisas pelas quais eu brigo” ...
“Hoje, por exemplo, eu acho que só brigo por causas bem graves, já não brigo
por qualquer coisa, porque é muito desgastante ficar brigando por pequenas
coisas” ... “Acho que o fato de não brigar muito com as pessoas também
facilita” ... “Por isso, às vezes, eu consigo me segurar diante do racismo” ...
“Tenho toda a calma, mas, de vez em quando, se alguém pisa no meu calo eu...”
... “Isso demora, tenho o pavio muito longo, não sou uma pessoa de pavio
curto” ... “É, já escolho com o que perder a paciência e normalmente consigo
tirar de letra, porém, um dia desse a perdi com uma delegada”.
Esse dados remetem à noção de si mesma, monstrando que ela é processual e se
reconstrói a partir de re-significações oriundas de novas experiências de vida.
Outra característica auto-atribuída refere-se a um sentimento de medo, pois
relatou que “em função da morte de minha genitora, fiquei com medo de também ter
diabetes” ... “Esse é um dos medos que tenho”. O receio de vir a ser portadora dessa
enfermidade, devido à herança genética, define seus hábitos alimentares, “sempre comi
pouquíssimo doce, com medo de engordar, ter pressão alta e diabetes”. Isso sugere
uma estratégia preventiva.
Ao se autocaracterizar intelectualmente, a entrevistada ressaltou seu crescimento
cognitivo durante a adolescência, atribuindo-o à sua militância política: “fiquei muito
mais cabeça na parte política, porque a participação partidária exigia muito de mim”.
Há outros conteúdos que enfatizam o auto-reconhecimento das próprias habilidades
intelectuais, nesse mesmo período de vida, expressos nos relatos de que “gostava de
escrever” ... “eu gostava de ler” ... “lia e gostava de escrever”.
Esses dados, calcados em vivências da entrevistada, demonstram que a pessoa
humaniza-se, constrói e reconstrói a sua pessoalidade a partir de suas inserções sociais,
participações em processos coletivos, posições sociais que ocupa e relacionamentos
interpessoais que estabelece ao longo do ciclo de vida. Assim, o social e o psicológico
integram-se como faces da mesma moeda.

6.2.9. Qual o olhar de Paula sobre o papel do racismo contra o negro em sua
vida?
A condição de ser uma pessoa preta, objeto do racismo em diferentes situações,
Evenice Santos Chaves O racismo na Trajetória Escolar e Profissional... 232

adquiriu uma significação pessoal para Paula e balizou diversos aspectos de sua vida.
Um ponto a ressaltar é a consciência de que é negra e de como esse fenótipo está
presente, como marca, na sua existência:
“Descobrir-se como negro torna-se uma coisa fundamental na vida” ... “Eu
acho básico e você não consegue mais se desligar disso, porque, enfim, está no
seu cotidiano, está na sua vida, está nas suas relações cotidianas e então você
não consegue se desligar”.
Essa marca cromática, ponto de partida para a desigualdade racial, refletiu nos
caminhos pelos quais enveredou, em diferentes momentos do seu ciclo de vida já
vivido: “então..., para mim, acabou marcando escolhas de vida, o que faço e a
militância”... “O racismo é um negócio que... marca toda a vida, acaba marcando
todas as ações”. Paula também estruturou, em seu repertório, um comportamento de
alerta, decorrente da sua inserção na categoria daqueles socialmente discriminados, o
que é explicitado no seguinte episódio: “acho que o racismo acaba fazendo com que
você... fique mais perspicaz para enxergar determinadas coisas, cuja maioria das
pessoas não está preocupada em enxergar”.
Apesar de movimentar-se reafirmando a sua negritude em uma diversidade de
posições e espaços sociais, ao longo do seu percurso de vida, a entrevistada ressaltou
que “é difícil não abrir mão de ser negra em todos os espaços de inserção social”. No
entanto, há ausência de dados que forneçam evidências elucidativas das dificuldades
enfrentadas, ao não descartar sua pertença ao grupo étnico negro.
Viver sob a égide da violência estrutural do racismo, durante parte do seu ciclo
de vida já vivido, e ser objeto do racismo em muitas situações sociais, engendraram
modos de enfrentamento que, na sua idade adulta, culminaram com o desenvolvimento
da tolerância: “uma estratégia que também uso para enfrentar o racismo na minha vida
é a de minimizar determinadas coisas..., para sobreviver” ... “Acabo passando por
cima de algumas coisas”.
Observa-se, através de dados, que também passou a comportar-se de modo
educativo frente às pessoas racistas: “nunca perco a oportunidade de mostrar para as
pessoas porque estão sendo racistas” ... “Se ficar com raiva, não conseguirei mostrar,
por isso eu consigo me segurar, ser bem didática, bem pedagógica, para que elas
aprendam que estão sendo racistas”.
Evenice Santos Chaves O racismo na Trajetória Escolar e Profissional... 233

Depreende-se, pois, que tendo superado a pobreza, através da mobilidade social


vertical proporcionada pela escolaridade, não se constituindo como objeto do racismo
explícito dirigido ao negro após a Constituição de 1988, fortaleceu-se como negra, ao
participar ativamente do movimento negro. Porém, conseqüências indeléveis marcaram
o seu itinerário, em todo o ciclo de vida já vivido, bem como as suas perspectivas
profissinais para o futuro, conforme se verificará a seguir.

6.2.10. O projeto profissional de Paula


Tendo completado o período de trabalho requerido para aposentar-se, não
tenciona fazê-lo:
“Todos me perguntam porque não estou aposentada, já poderia estar, mas não
quero, não consigo ter cabeça para me pensar aposentada” ... “Ainda não
quero me aposentar, acho que só vou sair com a ‘expulsória’, a compulsória” ...
“Nunca consegui me pensar aposentada, não consigo imaginar-me
aposentada”... “Fico pensando: ‘ixi, se eu não gostasse do que eu faço, talvez
eu quisesse me aposentar, mas como eu gosto, ainda não pensei nisso’”.
No cotidiano de seu trabalho docente, está envolvida em duas atividades, cujas
complementações ocorrerão a médio e longo prazo, respectivamente:
“Como projeto profissional para o futuro, estou cursando o doutorado na Área
Alfa-alfa” ... “Estou tentando abrir espaço na Faculdade B, porque acho que
também devo ter essa função” ... “Tentando abrir um espaço na Faculdade B
para trabalhar com... a questão racial” ... “Temos uma proposta para a criação
de um pré-vestibular para negros, dentro de um programa do Ministério da
Educação, cujo nome é ‘Diversidade na Universidade’” ... “Eu e o Professor
Carlito fizemos um projeto relativo à preparação do estudante negro para o seu
ingresso na universidade” ... “Nosso projeto deve ter início no próximo ano”...
“Estou tentando... um Núcleo de Educação para a Igualdade Racial” ...
“Também estamos criando um núcleo naquele espaço para oferecermos
algumas disciplinas” ... “Estou tentando me inserir na discussão acerca da
construção da proposta de criação de cotas para negros na universidade onde
trabalho”.
Observa-se que os dados sobre os planos da entrevistada não revelam suas
Evenice Santos Chaves O racismo na Trajetória Escolar e Profissional... 234

aspirações futuras frente à vida pessoal. Porém, dada a sua militância do movimento
negro e o seu gosto pelo trabalho que desenvolve na Universidade X, é pertinente
levantar as seguintes questões: a possibilidade de unificar o trabalho docente com a
militância social tornou a atividade acadêmica mais relevante naquele momento em que
poderia se aposentar? Essa confluência é o incidente crítico a direcionar seus projetos
para o futuro?

6.3. A análise da lista de complementação de frases


A categoria “o racismo em diferentes localidades”, seus itens constitutivos e a
complementação dos mesmos é vista na Tabela 5.
Na referida tabela, verifica-se que a dimensão estrutural do racismo contra o negro
no Brasil é apontada pela participante/informante. Assim, os dados sugerem que o
racismo contra o negro instalado em nosso país, através da ocupação das terras
brasileiras pelos portugueses, ainda opera. Contudo, no movimento da temporalidade, as
manifestações racistas contra o negro tornaram-se, progressivamente, menos explícitas.

Tabela 5. O racismo em diferentes localidades

Itens Conteúdos acrescentados

O racismo no Brasil... Considero o racismo brasileiro muito forte.


O racismo brasileiro é tão forte que foi capaz de estruturar a
sociedade.
É bastante entranhado na cultura brasileira.
No entanto, é um racismo disfarçado, dissimulado.

O racismo na cidade onde Não difere do resto do país.


resido...

O racismo no bairro onde Resido em um bairro no centro da cidade, circulo por diversos
resido... lugares e atitudes 'abertas' de racismo não se costuma presenciar.
Essa é uma característica do racismo brasileiro: 'cordial no trato',
mas contundente na discriminação.
Fonte: Lista de complementação de frases preenchida pela participante/informante preta.

Isso significa dizer que tal fenômeno sócio-psicológico tem uma temporalidade de
longa duração. A noção estrutural do tempo de longa duração, caracterizada por
Volvelle (1995) como a idéia da continuidade de um acontecimento social no tempo e
no espaço, não implica na idéia de que o racismo contra o negro se expressa do mesmo
Evenice Santos Chaves O racismo na Trajetória Escolar e Profissional... 235

modo ao longo da história social, mas circunscreve a sua permanência, graças a novos
mantenedores que ocorrem em diversos momentos dessa história.
Outrossim, apesar de se observar melhorias em indicadores sociais relativos aos
negros, os dados censitários continuam a apontar que, ao longo do tempo, diferenças
percentuais nos mesmos indicadores sociais permanecem, quando se comparam negros
e brancos. Nota-se que resultados de pesquisas realizadas por órgãos governamentais,
como aqueles já apresentados em outro ponto deste trabalho, indicam uma histórica
discriminação social e racial às quais os negros, enquanto grupo étnico, estão
submetidos nos quesitos educação, trabalho e ocupação, quando comparados ao grupo
étnico branco.
Esse aspecto clarifica a noção do tempo de longa duração, assim como a condição
estrutural do racismo brasileiro contra o negro. No dizer da participante/informante,
esse racismo “é bastante entranhado na cultura brasileira”.
Em síntese, os dados fornecidos pela mesma, embora advenham das suas
experiências sociais e dos sentidos que conferiu às mesmas, são compatíveis com
resultados de estudos, já enfatizados em outros capítulos desta pesquisa, que desnudam
o caráter estrutural do racismo contra o negro no Brasil.
Observa-se que os dados relativos à complementação das frases apresentam
diferentes especificidades, quando se focaliza separadamente as instituições sociais: no
item família, os conteúdos aditados são indicativos de advertência, enquanto que no
item escola, os conteúdos acrescentados indicam conflitos entre pessoas, mascaramento
e inibição do racismo.
Com relação à segunda categoria, seus itens e a complementação das frases, pela
participante/informante, estão na Tabela 6.
Tomando-se o que redigiu no item família, constata-se que a primeira frase é
sugere que a sua avó a educava sinalizando a submissão do negro ao branco, em nossa
sociedade. Por isso mesmo, infere-se que o ‘conselho’ fornecido pela avó, para que não
se postasse como subalterna ao se relacionar com pessoas brancas, pode ser significado
como uma forma de resistência que o negro deveria assumir, para colocar-se em um
patamar de igualdade, nas relações sociais com os brancos.
A segunda frase também constitui uma prática educativa e explicita um possível
significado social da escolarização: via de mobilidade social ascendente, a qual
Evenice Santos Chaves O racismo na Trajetória Escolar e Profissional... 236

possibilitaria tanto mudança na condição de vida do negro, quanto a eliminação de


relações sociais racializadas entre a pessoa negra e a branca. No discurso educativo,
materializado em interações verbais entre a avó e a participante/informante, isso seria,
como o dado sugere, verdadeiro na vida da sua neta.

Tabela 6. O racismo em instituições sociais

Itens Conteúdos acrescentados


O racismo na minha família de Minha avó sempre me alertou e desde cedo dizia que eu não me
origem... rebaixasse para os brancos.
Dizia que eu deveria estudar para ser alguém na vida.

O racismo na família que Meus filhos, não são meus filhos de sangue, são filhos do meu
constituí... marido, eu os criei, são pessoas sensíveis à questão racial.

O racismo nas escolas que Tive alguns entreveros com colegas e professores.
freqüentei... Havia uma professora de geografia que insistia em dizer que eu não
era negra, pois não havia negros no Brasil, havia sim, dizia ela,
'mulatos'.

O racismo na universidade... A universidade é um espaço que se pauta pelo politicamente


correto, portanto as pessoas têm muito cuidado, a fim de não serem
flagradas em atitudes racistas.

O racismo no local onde Trabalho na universidade e percebo o cuidado que as pessoas tem
trabalho... para não serem tachadas de racistas.
Fonte: Lista de complementação de frases preenchida pela participante/informante preta.

Ainda na categoria família, o item referente ao racismo na família que construiu


foi por ela completado com foco em seus filhos, enteados, os quais foram caracterizados
como pessoas sensibilizadas, ou seja, humanizadas, frente ao racismo contra o negro.
Aqui, a participante/informante sinaliza que no mundo concreto não existe uma relação
linear entre ser branco e racista. Dito de outro modo, o dado sugere sua perspectiva
pessoal de que nem todas as pessoas brancas incorporam o racismo contra o negro.
Essa compreensão é fundamental aos estudiosos do racismo contra o negro,
porquanto contribui para a eliminação do viés de que todas as situações sociais de
discordâncias e conflitos entre pessoas brancas e negras, perpassadas pelo poder e pela
opressão, são, necessariamente, racistas.
Levando em conta o item concernente ao racismo nas escolas de primeiro e de
segundo graus, os conteúdos acrescentados pela participante/informante aos itens da
Evenice Santos Chaves O racismo na Trajetória Escolar e Profissional... 237

lista de complementação de frases indicam situações de brigas e/ou discussões, travadas


pela mesma com alguns de seus colegas e professores, motivadas pelo racismo. Esse
dado é um indício de que os conflitos, decorrentes de relações sociais racializadas e do
mascaramento do racismo contra o negro, ocorreram na sua trajetória escolar, embora a
participante/informante não tenha especificado os graus de ensino em que os incidentes
relatados aconteceram.
O mascaramento e a inibição de comportamentos racistas também é exposto nos
conteúdos acoplados a itens sobre o racismo na universidade. Esse dado compatibiliza-
se com resultados encontrados por Rodrigues (1995), de que o racismo contra o negro
está presente no Brasil, mas nega-se ou mascara-se a sua existência.
A última categoria, os itens e conteúdos aditados pela participante/informante,
estão apresentados na Tabela 7.

Tabela 7. O racismo como fenômeno social segregador

Itens Conteúdos acrescentados

O racismo é... Uma doutrina que tem por base a supremacia de uma raça em
relação a outras.

O racismo nas relações sociais Nas relações socias, o racismo se concretiza pela discriminação
em geral... racial, há uma superposição da população negra nos estamentos
mais pobres da sociedade.
A população negra apresenta desvantagens, em relação à população
não negra, em todos os indicadores sociais.

O racismo na minha vida... Desde muito cedo entendi que a extrema pobreza em que vivia com
a minha família era porque éramos pretos.
Fui criada por meus avós, minha mãe trabalhava em casa de
família, meus avós eram de Garças e lá os donos são brancos e os
empregados são os pretos.
Fonte: lista de complementação de frases preenchida pela participante/informante preta.

Conforme pode ser visualizado, a assimetria entre o branco e o negro é


abordada, pela participante/informante, a partir do princípio essencialista de que há uma
‘raça’ superior às demais, noção pertinente ao racismo científico do século XIX. Esse,
continua operando nas relações sociais racializadas contemporâneas, conforme
constatado no estudo realizado por Guimarães (2000a).
Evenice Santos Chaves O racismo na Trajetória Escolar e Profissional... 238

Os demais conteúdos adicionados aos itens enfocam formas de expressão do


racismo que transpassam, estruturalmente, a sociedade brasileira. Algumas também
perpassaram a vida de membros da sua família de origem e, conseqüentemente, a sua.
Em suma, a respeito do caráter estrutural do racismo brasileiro contra o negro, os
conteúdos conectados aos itens propostos salientam desigualdades sociais, contudo
recheadas das raciais, o que acrescenta mais uma situação de desvantagem para o negro.
Compete assinalar a relevância dos dados sobre o caráter estrutural do racismo
contra o negro, oriundos da experiência pessoal da participante/informante, porque, no
cotidiano, divulga-se e compartilha-se maciçamente apenas a expressão da dimensão
relacional desse racismo. Esses dados, entretanto, mostram que a dimensão estrutural do
racismo, apesar de pouco difundida e imperceptível para muitos brasileiros, é conhecida
pela participante/informante.

6.4. A triangulação
A análise comparativa dos dados decorrentes do emprego da entrevista narrativa,
do questionário sócio-demográfico e da lista de complementação de frases apontou
inconsistências.
Ao se considerar os dados provenientes do questionário sócio-demográfico e da
entrevista narrativa, constata-se que: 1) na entrevista narrativa, a participante/informante
discorreu que até os vinte anos de idade residiu em uma casa com seus avós maternos e
com a sua mãe, a qual convivia no lar apenas nos finais de semana, porque era
empregada doméstica e dormia no local de trabalho, todavia, no questionário sócio-
demográfico, pontuou que residia naquela casa com seus avós maternos e com um
irmão; 2) na entrevista narrativa, a mesma não verbalizou nenhum conteúdo referente ao
seu pai, mas no instrumento mencionado escreveu que ele era trabalhador braçal,
analfabeto e que faleceu durante a sua juventude; 3) na entrevista narrativa, há ausência
de alusão a qualquer evento que relacione o pai à sua mãe, contudo, no questionário
sócio-demográfico afirmou que a sua genitora era pensionista.
Destarte, no questionário sócio-demográfico introduziu um irmão na constelação
de sua família de origem e excluiu a sua mãe biológica da composição familiar, ao
passo que na entrevista narrativa não fez referências ao mano, fazendo supor que era
filha única. Na entrevista narrativa, não forneceu informações sobre o pai, passando a
Evenice Santos Chaves O racismo na Trajetória Escolar e Profissional... 239

idéia de que era desconhecido ou de que houve um rompimento no relacionamento com


o mesmo, por parte dos membros da sua família.
Para Gaskell e Bauer (2003), as contradições e as inconsistências exigem do(a)
pesquisador(a) uma avaliação sobre a origem das diferenças. Sem pretender identificá-
las, até porque são vários os determinantes das ações humanas, porém com o intuito de
compreender as discrepâncias, formularam-se duas suposições.
A primeira é a de que o pai e o irmão não foram personagens relevantes na vida
da participante/informante, a ponto de serem incluídos no discurso que construiu sobre a
sua trajetória existencial. Relativamente a sua mãe, apesar de incluí-la em suas falas, na
entrevista narrativa, é plausível supor que ela não ocupou o lugar de pessoa significativa
e, por isso mesmo, no questionário sócio-demográfico, foi excluída da configuração das
pessoas que faziam parte do lar, até os seus vinte anos de idade.
Contudo, conjetura-se que a não constiutição dos pais e do irmão como pessoas
significativas, ao longo do percurso escolar e profissional da participante/informante,
não justifica as suas exclusões dos seus relatos, verbais ou escritos.
A segunda suposição advoga a omissão deliberada de referências ao pai e ao
irmão, durante a sua participação na entrevista narrativa, assim como aquela relativa a
sua mãe, no preenchimento do questionário sócio-demográfico.
A partir das suposições, levanta-se a hipótese de que, devido a razões pessoais,
as quais não são passíveis de identificação através dos dados disponíveis,
inconsistências identificadas até aqui indicam a provável existência de um processo
pessoal de negação frente a alguns parentes mais próximos.
Por outro lado, observa-se que, na entrevista narrativa, a participante/informante
negou a mãe como tal, apresentando-a como irmã e delegando a maternidade à sua avó.
Isso não é explicável apenas pelo fato da genitora só estar presente no lar durante os fins
de semana, pois essa situação não elimina a sua condição de mãe biológica, mas a de
cuidadora e educadora.
Na entrevista narrativa, negou a existência de um irmão, com o qual morou
namesma casa durante parte do seu ciclo de vida já vivido, conforme declarou no
questionário sócio-demográfico. Tal negação, possivelmente, tem uma uma significação
pessoal que não foi captada nesta pesquisa.
Ainda excluiu o progenitor, quando do fornecimento de informações durante a
Evenice Santos Chaves O racismo na Trajetória Escolar e Profissional... 240

entrevista narrativa, o que também deve ter uma significação pessoal, a qual não foi
desvelada neste estudo. Não obstante, ao escrever, no questionário sócio-demográfico,
que o progenitor faleceu durante a sua juventude e que a mãe era pensionista, forneceu
indicativos de que o seu pai não era um desconhecido, porém uma pessoa de quem tinha
notícias.
Gaskell e Bauer (2003) ainda mencionam que as inconsistências entre dados
podem decorrer de limitações metodológicas. De acordo com essa afirmativa, as
discrepâncias anteriormente citadas poderiam ser atribuídas à técnica utilizada no estudo
e, então, cabe a seguinte questão: será que a entrevista narrativa e os temas empregados
na sua condução não proporcionaram à entrevistada um espaço para que falasse algo
sobre o seu pai e o seu irmão, conforme o fez no questionário sócio-demográfico?
O número de informações fornecidas pela participante/informante na entrevista
narrativa é um indício de que os temas condutores foram abrangentes e, por isso
mesmo, abriam espaços para que ela se reportasse ao seu genitor e ao seu mano. Mas, a
despeito disso, não fez menção aos mesmos.
Relativamente aos instrumentos, após a realização da entrevista narrativa, eles
foram entregues para serem preenchidos. Os mesmos foram preenchidos em outro local,
sem a presença da pesquisadora, sem limite de tempo para a devolução. É preciso
acrescentar que a participante/informante demorou aproximadamente três meses para
devolvê-los à pesquisadora. Supõe-se que o período de tempo decorrido entre o
fornecimento de informações na entrevista narrativa e o preenchimento do questionário
sócio-demográfico obscureceu, na sua memória, alguns conteúdos que havia
verbalizado durante a entrevista narrativa, o que favoreceu a obtenção de outras
informações.
A comparação entre dados da entrevista narrativa e da lista de complementação
de frases ainda apontou outra contradição: conteúdos da entrevista narrativa indicaram a
ocorrência de apenas um incidente racista na vida escolar da participante/informante.
Porém, no instrumento já citado, conteúdos sublinham que desavenças incidiram em
relacionamentos entre ela, professores e colegas, por conta do racismo contra o negro.
Ainda sobre o racismo, nos dados decorrentes da entrevista narrativa, não há
referência a conversas sobre esse tema entre a participante/informante e qualquer de
seus parentes, na sua família de origem. Porém, ao completar uma frase, no segundo
Evenice Santos Chaves O racismo na Trajetória Escolar e Profissional... 241

instrumento utilizado nesta pesquisa, aludiu a verbalizações de sua avó, dirigidas a sua
pessoa, no sentido de que não deveria ser submissa ao branco e que deveria estudar para
ser alguém na vida.
Outro aspecto a ressaltar é a caracterização que a participante/informante fez dos
seus enteados, como pessoas sensíveis ao racismo, na lista de complementação de
frases, sobre o que não discorreu na entrevista narrativa.
As discrepâncias identificadas, anteriormente expostas, conduzem às seguintes
afirmações: que outros acontecimentos perpassados pelo racismo contra o negro, além
dos descritos na entrevista narrativa, fizeram parte do seu percurso escolar; que, no
contexto da sua família de origem, práticas educativas foram empregadas por sua avó,
para que se fortalecesse e pudesse vir a se relacionar com pessoas brancas em condição
de igualdade; que a recomendação de sua cuidadora para que continuasse os estudos é
indicativa da sua confiança no processo de escolarização, como via de superação do
lugar social ocupado por uma pessoa negra e pobre, no contexto das desigualdades
sociais e raciais presentes na cultura brasileira e que os enteados expressavam, para a
participante/informante, um ponto de vista, ou outros comportamentos, indicativos das
suas rejeições ao racismo contra o negro.
Verifica-se que frases adicionadas à lista de complementação trazem novos
dados, quando comparados àqueles conteúdos verbais obtidos através da entrevista
narrativa. Isso demonstra que, ao se empregar diversas fontes na coleta de informações,
é possível realizar a integração de diferentes dados, identificarem-se inconsistências ou
complementaridades.
Focalizando a lista de complementação de frases, Rey (1999) defende que esse
instrumento possibilita ao participante/informante de uma pesquisa a elaboração de
conteúdos mais reflexiva e menos imediata, os quais são redigidos para completar as
frases propostas pelo(a) pesquisador(a). Esse aporte é aqui tomado como fundamento à
interpretação de que os conteúdos acrescentados aos itens propostos, particularmente
àqueles referentes ao racismo na escola de primeiro e de segundo graus e ao racismo em
sua família de origem, suscitaram, na participante/informante, novas reflexões,
emergindo outras informações. Todavia, as mesmas não invalidaram as anteriores, mas
as complementaram.
Em síntese, o processo de triangulação ressaltou que o emprego de múltiplas
Evenice Santos Chaves O racismo na Trajetória Escolar e Profissional... 242

fontes na geração de dados é importante, pois proporcionou à pesquisadora atentar, com


acuidade, para os dados discrepantes, gerou reflexões sobre as inconsistências,
oportunizou a avaliação sobre a possibilidade das discrepâncias invalidarem as análises
e as interpretações realizadas e permitiu visualizar relações de complementaridade entre
os dados produzidos pelas diferentes formas de coleta.
CAPÍTULO 7

ILMA, A PARTICIPANTE/INFORMANTE PARDA

7.1. Descrição da participante/informante


Ilma, sexo e gênero femininos, quarenta e quatro anos de idade na época da
coleta de informações, autoclassificou-se como de cor parda1. É filha de pai de cor
parda e de mãe de cor ‘morena clara’. Seu genitor era taxista e sua genitora realizava as
atividades do lar. Suas escolaridades eram de primeiro grau incompleto. É professora
universitária, lotada em uma universidade pública, com renda mensal de dois mil e
trezentos reais, quando do levantamento de informações. Atualmente, mora só, em casa
própria.

7.2. Análise da entrevista narrativa: uma descrição explanatória


7.2.1. Os anos iniciais do ciclo de vida de Ilma
Ilma residiu, durante os doze anos iniciais do seu ciclo de vida, com seu pai, sua
mãe, uma irmã e três irmãos, em um bairro de periferia da Cidade E, o Bairro 10. A rua
onde se localizava a sua casa “... era toda cheia de lama...”. Além disso, três
especificidades caracterizavam a população que vivia ao redor de sua residência: “meus
vizinhos eram todos negros e pobres...” ... “Inclusive uma grande amiga da minha mãe,
que era negra, bem negra mesmo” ... “... Os vizinhos, quase todos, não... eram
escolarizados”.
Parda e, conseqüentemente, descendente de negros, Ilma também era pobre:
“No Bairro 10, nós morávamos numa casa... a frente era de enchimento, o resto
de madeira e embaixo era só água” ... “Quando chovia ficávamos vendo os
bichos pelas frestas... das tábuas...: muçuns, ratos, todos debaixo d’água” ...
“O nosso quintal alagava, quando chovia alagava” ... “Nossa casa era de

1
Ilma tem como características fenotípicas a cor parda, os lábios grossos e os cabelos pretos e crespos,
critérios empregados nesta pesquisa para selecioná-la como participante/informante parda.
Evenice Santos Chaves O racismo na Trajetória Escolar e Profissional... 244

madeira, em cima de um alagado”.


De acordo com Torres (2001), nas sociedades compostas por diferentes etnias, a
dimensão classe social corresponde, em muitas situações, à característica étnica dos
diversos grupos que a constitui. Os dados anteriormente descritos compatibilizam-se
com essa afirmação, pois desnudam o entrelaçamento entre a condição sócio-econômica
e a racial da participante/informante, de sua família de origem e da sua vizinhança.
Assim, a pobreza e a marca negra caracterizaram o contexto onde Ilma viveu até
os doze anos, porém, adverte-se que essa superposição entre a desigualdade social e a
estratificação racial não é generalizável, pois pobres podem pertencer a diferentes
etnias. Convém ressaltar, no entanto, que, tratando-se de brancos, o privilégio simbólico
conferido pela cor os exime de serem objetos da desigualdade racial.
Outros episódios indicam a condição de pobreza dessa participante/informante,
durante a sua infância e parte da adolescência, tais como: a profissão do pai, que era
taxista; os afazeres de sua mãe, que cuidava do lar, mas, também, “... pregava botão,
encapava cinto, pregava ilhós” e a condição sócio-econômica da família, discernível a
partir de indicadores como, por exemplo:
“Dificuldades sociais..., deixe eu pensar: ... muita dificuldade na infância,
porque era de uma família com cinco filhos” ... “As nossas dificuldades eram,
principalmente, financeiras...” ... “Minha madrinha e o seu marido, um
profissional da Área E, foram pessoas que sempre ajudaram a minha família” ...
“Tinham um bom nível de vida, então, em todas as nossas dificuldades
recorríamos a eles, que eram ótimos”... “Quando alguém da minha casa
precisava de atendimento médico... a minha madrinha e o meu tio iam até a
minha residência buscar a pessoa que necessitava de ajuda...”.
Vê-se, pois, que a escassez de recursos financeiros proporcionou a busca de
auxílio e a obtenção do apoio social de uma tia, de quem era afilhada, e do seu marido,
nas situações cotidianas em que obstáculos deveriam ser superados.
Apesar da pobreza, a família de Ilma possuía melhor condição econômica que os
vizinhos: “no meio onde vivia, lá no Bairro 10, éramos a família que tinha melhor
condição de vida” ... “... a nossa casa era a única que possuía televisão” ... “Então,
toda a molecada da vizinhança ia assistir lá em casa”.
Prilleltensky e Austin (2001) afirmam que a colaboração é um valor relacional e,
Evenice Santos Chaves O racismo na Trajetória Escolar e Profissional... 245

como tal, envolve a solidariedade. Os dados descritos indicam que, naquela comunidade
pobre, a amizade e a solidariedade ocorriam, notadamente diante das carências que
poderiam ser superadas através do compartilhamento de objetos. Dessa forma, os pais
de Ilma estenderam o entretenimento a outras crianças da vizinhança, cujos patamares
financeiros não permitiam a propriedade daquele instrumental. O partilhar a televisão
sugere um modo de vida mais coletivo, solidário e menos individualista, no seio da
comunidade onde a entrevistada e seus familiares residiam.
Além do lazer propiciado pela televisão, Ilma brincou muito:
“Durante a minha infância no Bairro 10, a molecada ia toda para o nosso
quintal, que era enorme, daqueles assim, sabe?” ... “... Brinquei mais de
carrinho, de empinar papagaio..., jogar peteca com os meninos, porque tinha
muito menino na rua” ... “Pulei corda” ... “Cresci brincando com meninos,
junto com meninos!” ... “Nas tardes de chuva, sentávamos na sala para
assistirmos televisão”... “Quando o quintal estava seco, brincávamos de bola”.
A entrevistada justificou porque as brincadeiras, das quais participava, eram
compartilhadas com meninos: “de menina, éramos eu, a minha irmã e mais umas
duas... que moravam mais adiante” ... “Contudo, nós brincávamos pouco” ... “Brinquei
muito pouco de boneca”.
Alguns parentes também contribuíram para o lazer de Ilma: “minha madrinha e
meu tio também nos levavam para passear, pois tinham carro” .... “Nós íamos passar
as férias na casa de tia Tatiana, que sempre foi uma tiazona para todos”.
Referindo-se àquela etapa da sua vida, a participante/informante discorreu que
“quando eu não estava na escola, estava no quintal...” ... “Brincávamos muito no
quintal, porque o papai não deixava nós irmos para a rua”. Embora não tenha
mencionado a ocorrência de atos violentos no Bairro 10, supõe-se que os mesmos
ocorriam naquele local, porque, ainda hoje, esse bairro, majoritariamente constituído
por negros e pobres, tem, dentre os seus moradores, alguns envolvidos em noticiários
policiais, por participação em brigas, em assassinatos, em depredações, em estupros, em
roubo, em furto e, ainda, por envolvimento no tráfico e uso de drogas.
Tal especificidade remete à situação dos negros após a abolição da escravatura,
quando foram jogados na rua, sem emprego, sem escolaridade e sem perspectiva de
escolarização. A situação marginal desembocou na miséria social, que atravessou o
Evenice Santos Chaves O racismo na Trajetória Escolar e Profissional... 246

século XX e proporcionou o envolvimento de um razoável contingente de negros em


ações denominadas de anti-sociais, as quais adentraram o século XXI.
Destarte, a admissível presença dos intitulados de marginais ou desordeiros, no
Bairro 10, pode ser um dos fatores responsáveis pela conduta proibitiva do genitor de
Ilma, a qual impedia que as suas crianças transitassem pela rua onde moravam.
Provavelmente, tal restrição decorria do seu intuito de protegê-las de um possível
envolvimento com pessoas de má reputação e do aprendizado de condutas social e
eticamente reprováveis. Enfim, pode-se supor que a violência, presente naquele bairro,
era um dos pontos de referência a partir do qual o pai de Ilma estabelecia um critério
para orientar a prática de criação de filhos, relacionado ao controle do comportamento
de ir e vir das crianças, no referido bairro. O dado de que “... meu pai tinha muito medo
que nos perdêssemos”, dá suporte à interpretação acima realizada.
Apesar dessa restrição, Ilma conviveu e brincou com crianças, o que colaborou
para que significasse a sua meninice de forma positiva: “é..., não..., não foi uma coisa
ruim, minha infância não foi ruim” ... “Tive uma vida saudável”.
A entrevistada abordou a sua origem étnica: “a minha avó paterna era uma
escrava liberta, filha de escravos” ... “Não sei bem, sei que meu pai dizia que ela era
uma negra muito bonita” ... “Meu pai era filho de escravos, de... escravo liberto”.
Também descreveu características fenotípicas de membros da sua família de origem,
“meu pai era bem moreninho mesmo, cabelo bem pinchai” ... “Meus irmãos são todos
morenos de cabelo pinchai...”, especificando, ainda, a textura dos próprios cabelos:
“ele sempre foi muito cheio, muito armado” ... “Era o maior trabalho, mamãe fazia
touca para ele ficar mais assentadinho”.
Esses dados apontam a presença negra e escravizada na Região Amazônica,
denunciando a falsidade da afirmação, presente na imaginação de muitos brasileiros, de
que, naquela localidade, a colonização portuguesa foi empreendida apenas com a mão-
de-obra escrava dos povos indígenas. Sobre o assunto, Bezerra Neto (2001) expõe:
“Todavia, restringir nossa compreensão do processo de ocupação portuguesa da dita região
unicamente em função de uma economia extrativista baseada na exploração do trabalho dos
índios parece ser uma leitura empobrecida desta mesma realidade, uma vez que não dá conta de
que o processo de colonização lusa na Amazônia implicou igualmente no estabelecimento de
uma economia e sociedade lastreadas em atividades agrícolas e criatórias voltadas para o
mercado, explorando igualmente o trabalho cativo dos índios e, sobretudo, o trabalho escravo de
Evenice Santos Chaves O racismo na Trajetória Escolar e Profissional... 247

origem africana” (p. 17).


No Brasil, ser descendente de escravos não constitui novidade, porém, o dado
produzido nesta pesquisa decorre da vida concreta de pessoas. A descendência negra de
Ilma, bem como os aspectos do seu estilo de vida já abordados, clarificam a condição
estrutural do racismo contra o negro no Brasil, ou seja, as implicações da escravização
de africanos na vida de seus descendentes, nos séculos XX e XXI. Como se verifica,
dados já expostos revelam desigualdades sociais e raciais que perpassam a vida de
negros, as quais são inerentes à formação econômico-social do nosso país. Essas
desigualdades conformaram os contextos social e familiar da participante/informante,
durante os anos iniciais do ciclo de vida já vivido pela.
Tanto assim que o seu cotidiano estruturou-se em um ambiente de pobreza,
também identificável na escolarização do seu genitor, “papai... só era alfabetizado, mas
gostava muito de leitura”, e na sua ocupação, “meu pai passava muito tempo viajando,
porque ele era pracista”. Essa profissão definia o seu contato com a companheira e
com os filhos: “às vezes, só retornava para casa no final de semana”. Contudo, a
entrevistada enfatizou que “...ele sempre foi uma pessoa muito afetiva”.
A atividade de trabalho do genitor da entrevistada propiciava o suprimento
financeiro da família: garantia de residência fixa, de alimentação e da presença da mãe,
diuturnamente, criando as crianças e as educando. Mas há indicativos da restritiva
condição social e econômica na qual Ilma viveu, durante a infância e parte da sua
adolescência:
“Não me vestia bem..., não tinha acesso ao..., a..., não ia muito ao cinema, não
tinha um lazer, porque a nossa família era muito pobre” ... “A minha mãe tinha
muitas irmãs e geralmente alguma delas ajudava a tomar conta de nós” ... “Em
minha casa, mamãe nunca estava sozinha”.
Os episódios relatados indicam que se houvesse maior circulação de dinheiro no
lar, haveria mais oportunidades para o lazer e melhores indumentárias. A presença de
tias no dia-a-dia daquele lar, colaborando na tarefa de cuidar das crianças, sugere a
ausência de recursos financeiros para a contratação de uma pessoa, com a finalidade de
auxiliar a mãe da entrevistada na execução das tarefas domésticas.
Não há dados que indiquem a presença de brigas e conflitos no mundo familiar
da participante/informante, durante o período em que o lar contou com a presença da
Evenice Santos Chaves O racismo na Trajetória Escolar e Profissional... 248

sua progenitora. Ilma, inclusive, expôs a qualidade do relacionamento entre os irmãos:


“éramos cinco filhos muito unidos” ... “Os cinco brincavam juntos”.
O contexto de pobreza e de estratificação étnica não impediu que os seus pais
dessem relevância à escolarização dos filhos: “no Bairro 10, fomos a única família na
qual..., fora umas outras para lá..., todos os filhos estudaram e conseguiram concluir a
faculdade...”.

7.2.2. Um novo evento na vida da família de origem de Ilma


No início da sua adolescência, aconteceu uma modificação na composição
familiar: “...a minha mãe... morreu quando eu tinha doze anos...”. Do ponto de vista
teórico, esse evento significou o que Mishler (2002) intitulou de ponto de virada, ou
seja, um acontecimento produtor de mudanças, tanto nas ações quanto nos sentimentos
da pessoa. De fato, o falecimento da sua genitora transformou o estilo de vida de Ilma.
Os dados de que “minha mãe sempre esteve muito próxima de nós enquanto
estava viva” e de que “antes da minha mãe morrer, não fazia nada dentro de casa”,
podem ser significados como um ‘divisor de águas’, indicativo de mudanças no seu
curso de desenvolvimento.
Em primeiro lugar, destaca-se que uma brusca ruptura incidiu sobre o processo
interativo entre a entrevistada e a sua mãe. A impossibilidade de restabelecimento desse
vínculo pode ter gerado, no repertório da participante/informante, um sentimento de
abandono e de tristeza. Embora essa suposição se configure a partir de dados ausentes, é
importante destacar que durante o momento da entrevista, no qual ela abordou a morte
de sua mãe, também verbalizou: “olha, eu vou chorar...”. Assim o fez e, após alguns
minutos de silêncio, exclamou que “foi uma época muito difícil, muito difícil mesmo”.
Esses conteúdos sugerem que hoje, ao situar-se em um evento passado, especificamente
no falecimento de sua mãe, o sentimento de tristeza ainda emerge.

7.2.3. O novo estilo de vida da família


A morte da genitora, no início da adolescência da entrevistada, modificou a
composição da família de origem, que se manteve como unidade nuclear, porém passou
a ser composta pelo pai e pelos filhos. Ainda produziu mudanças nas suas atividades de
vida diária, nas de seus irmãos e o adoecimento do seu pai. Tais ocorrências implicaram
Evenice Santos Chaves O racismo na Trajetória Escolar e Profissional... 249

em outras modificações na composição familiar, por mais de uma vez, e, ainda, em


mudanças de locais de residência, conseqüentemente, de casas.
A despeito disso, não houve alteração no modo de convivência entre os irmãos:
“... eu e meus irmãos continuamos a fazer tudo juntos...” ... “Dentro de casa,
continuamos muito unidos” ... “Éramos uma família muito unida..., um pelo outro” ...
“Prometemos que não íamos...”. Aliás, a unidade familiar, o vínculo de proximidade e
a cooperação entre os membros da família configuraram uma relevante permanência, a
qual se postergou por toda a adolescência da entrevistada.
Abordando-se as novas atividades constitutivas da vida diária de Ilma, e de seus
irmãos, salientam-se, agora, algumas referentes a afazeres domésticos, garantidoras da
sobrevivência física e psicológica dos membros da família. Concernente à sobrevivência
física, dados fornecem indícios de reestruturações no contexto familiar:
“Aí é que está, depois que nós ficamos sozinhos o papai colocou mais regras” ...
“Todo mundo tinha que fazer alguma coisa...” ... “E..., eu fiquei responsável
pela casa, porque era a mulher mais velha dos irmãos...” ... “Dividia com a
Ilze, minha irmã, a parte da cozinha, pois estudávamos em turnos diferentes: eu
à tarde e ela pela manhã.” ... “Cozinhava e quando a Ilze chegava da escola
lavava a louça”.
Cozinhar para todos foi um empreendimento bastante difícil para Ilma, porque
jamais o havia realizado: “Não sabia nada, aprendi a fazer comida naquela época” ...
“Tive que aprender na marra” ... “...A comida queimava, todo mundo brigava comigo:
‘você não sabe cozinhar, não sei o quê, vá aprender’”.
Bastos (2001) salienta que as atividades domésticas, relacionadas às tarefas de
limpeza dos instrumentos concernentes à alimentação e à de elaboração da comida a ser
consumida, inscrevem um modo de partilhar, configurador de práticas sociais, no seio
da família. Conforme a pesquisadora, essas práticas transformam-se no tempo, alterando
o padrão de interações entre os membros da referida instituição social, notadamente nas
atividades de trabalho.
Dados sobre modificações nas práticas sociais e educativas na sua família, já
citados, coadunam com Bastos (2001), pois se observa que, após o falecimento da mãe,
houve uma reorganização das atividades familiares cotidianas. Essa, envolveu Ilma e
sua irmã em trabalhos domésticos, implicando em mudança na qualidade das interações
Evenice Santos Chaves O racismo na Trajetória Escolar e Profissional... 250

entre a participante/informante e seus familiares, expressa nas suas insatisfações frente à


comida elaborada por Ilma. Mas, naquele período, sua madrinha lhe forneceu apoio
social: “depois que a minha mãe morreu, a tia Tereza, minha madrinha, praticamente
nos assumiu” ... “Teve época em que ela fazia comida para nós” ... “Tia Tereza
ensinou-me a cozinhar algumas coisas” ... “Tia Tereza sempre ficou muito perto de
nós”.
Em uma etapa posterior, foi necessário reordenar os afazeres de Ilma:
“Houve uma época em que eu e a minha irmã estudávamos pela manhã..., então
passamos a comprar comida em um restaurante..., no Bairro 10” ... “Todos os
dias íamos comprar a marmita e levá-la para casa” ... “Porém isso foi mais
tarde, quando já tínhamos carro” ... “O Igor, meu irmão mais velho, ia
dirigindo”.
É relevante acrescentar que o carro era apenas um instrumento de trabalho do
seu pai: “nunca... tivemos carro” ... “Só muito posteriormente o papai comprou um,
mas era para usar como táxi, não era ...”. Isso equivale dizer que, da infância à
adolescência, não houve disponibilidade desse meio de transporte para Ilma e seus
irmãos deslocarem-se aos diferentes pontos da cidade, quer visando ao cumprimento de
atividades cotidianas, quer para o lazer.
Retornando às modificações decorrentes do falecimento da mãe da entrevistada,
o adoecimento de seu pai foi outro incidente crítico que provocou alterações no meio
familiar: “a adolescência é que foi difícil, porque não tinha a minha mãe... e... o meu
pai ficou muito... nervoso...” ... “Lembro-me..., o meu pai, uma vez, teve uma crise de
ansiedade, precisou ir ao médico e tomar remédios...”.
Merece enfatizar que, a despeito da sua condição de saúde, o progenitor de Ilma
continuou a realizar sua atividade profissional e, em decorrência, ausentava-se do lar:
“após a morte da minha mãe, meu pai viajava muito”. Os filhos, então, ficavam
sozinhos a maior parte da semana: “... nós ficamos assim: meio soltos, os filhos meio
abandonados, meio largados mesmo”. Para cuidar da participante/informante e dos seus
irmãos, uma parenta veio morar com a família, a qual, temporariamente, se transformou
de família nuclear em família ampliada: “após a morte da minha mãe e o adoecimento
do meu pai, a minha avó materna foi lá para casa”. Essa nova presença, naquele lar, foi
transitória: “mas ela não era muito afetiva” ... “... Então nós falamos para o papai que
Evenice Santos Chaves O racismo na Trajetória Escolar e Profissional... 251

preferíamos ficar sozinhos, juntos”.


Além de recusarem a presença da avó materna no lar, a entrevistada, seus irmãos
e seu pai abdicaram do relacionamento com as tias maternas: “nos afastamos da família
da minha mãe, porque quando ela faleceu as minhas tias levaram um bocado das suas
roupas e jóias” ... “Ficamos muito magoados e resolvemos cortar relações”.
Todavia, os vínculos afetivos com as parentas paternas permaneceram. Uma tia e
primas contribuíram para a manutenção da unidade familiar da participante/informante,
auxiliando o seu pai a cuidar dos filhos:
“Depois da morte da minha mãe, tia Tatiana também vinha de vez em quando
ficar conosco..., assim como minhas primas por parte... de pai” ... “As minhas
primas paternas chegaram a morar conosco... por mais de cinco anos... e nos
ajudaram”.
As primas realizavam as tarefas do lar que lhes eram delegadas, porém, em
contrapartida, o genitor de Ilma responsabilizou-se pela escolarização das mesmas: “em
retribuição, o papai as auxiliava, colocando-as para estudar, ao tempo em que elas
tomavam conta de nós”. Note-se que a inserção dessas parentas naquela família
motivou-se na necessidade de um apoio social que contribuísse nas lidas domésticas.
Por outro lado, o suporte fornecido pelas primas fundamentou-se em uma relação de
troca, em um princípio de reciprocidade e não em uma relação de exploração.
A mudança de locais de residência foi uma outra modificação no estilo de vida
de Ilma:
“Um ano depois que a minha mãe morreu mudamos lá para... o Bairro 12” ...
“Não, primeiro fomos lá para o Bairro 13” ... “...Também era uma taberna e a
casa era bem..., bem pobre” ... “... Ela ficava ao lado da taberna que o papai
arrendou” ... “Morávamos na casa, mas ela era... muito ruim” ... “Só passamos
seis meses, porque ninguém agüentou” ... “Os meninos diziam até que a casa
era mal-assombrada” ... “Todo mundo via coisas, mas eu nunca vi” ...“Era uma
casa de esquina...” ... “A taberna era de esquina e de um lado não tinha
vizinhos, só havia no outro lado”... “Depois... passamos um ano no Bairro 12”
... “Era uma taberna que o papai arrendou e a casa... ficava ao lado do
estabelecimento comercial”.
Embutida nessas mudanças de locais de residência e, conseqüentemente, de
Evenice Santos Chaves O racismo na Trajetória Escolar e Profissional... 252

casas, está a mudança de profissão do seu pai. Com o aluguel de tabernas, passou a ser
um pequeno comerciante, realizando um trabalho que o fixava próximo da casa em que
residiam. Isso, provavelmente, relacionava-se a duas questões: 1) a sua condição de
saúde, abalada por um distúrbio psicológico, possivelmente o impediu de continuar a
exercer a profissão de taxista e de ausentar-se do lar, por um período relativamente
longo; 2) a atividade de comerciante desempenhada em uma baiúca, colada à sua
residência, permitia que estivesse próximo aos filhos, pudesse educá-los e controlá-los
cotidianamente.
Em resumo, o conjunto de dados sobre os acontecimentos que sucederam o
falecimento da mãe da entrevistada indica transformações na vida dos integrantes
daquela família; rompimentos com parentas maternas; afastamento do convívio com a
vizinhança do Bairro 10, como, por exemplo, com as crianças com as quais Ilma
brincava, e o distanciamento de Acácia, vizinha e amiga, que auxiliava a sua genitora,
“depois que mudamos do Bairro 10, afastamo-nos um pouco da Acácia”, pessoa
positivamente avaliada por Ilma, “Acácia era uma pessoa super agradável, não era
brigona e brincava conosco”. Enfim, uma ruptura com o modo de morar e estilo de
vida anteriores.
Dessas alterações, derivou outro jeito de viver, caracterizado pelo isolamento
social da participante/informante, como sugerem os seguintes dados:
“No Bairro 13, não consegui fazer amizade com ninguém” ... “Não me dava
com ninguém” ... “Sempre tinha muita dificuldade em fazer amizades” ... “Era
só do estudo para casa, do estudo para casa” ... “Ficava dentro de casa” ...
“Não tinha muitas amizades..., eu não tinha grupo de amigos”.
Ao passar a residir no Bairro 12, o seu isolamento social foi atenuado, pois,
conforme declarou: “no Bairro 12, eu consegui fazer amizade com umas... pessoas que
moravam em frente e que, também, não tinham mãe”. Dessa amizade, surgiu o primeiro
namorado, aos 17 anos. O interesse de Ilma pelo rapaz a fez tornar-se ativa, chegando
mesmo a empregar uma estratégia de enfrentamento de luta, com o objetivo de ser
notada: “eu ajeitava a porta da casa para as suas irmãs verem que eu a arrumava” ...
“Ele começou a se interessar” ... “Pediu para namorar” ... “Aceitei”. Esse dado indica
que a sua dificuldade em se relacionar com as pessoas passava por um processo de
transformação, gerado pelo seu interesse em construir relações amorosas.
Evenice Santos Chaves O racismo na Trajetória Escolar e Profissional... 253

Todavia, naquele momento da sua adolescência, a permissão para um namoro


deveria ser dada por seu pai, “só que... ele tinha que falar com o papai: foi lá e...
falou”. Inicialmente, o namoro não foi bem aceito pelos seus manos e também durou
pouco: “no período do vestibular..., acabei terminando o namoro, porque... ele era
muito mais velho do que eu, dez anos mais velho que eu...”.
O interesse por relações amorosas expõe três importantes aspectos: a construção
de amizades, a ocorrência do primeiro namoro e a obediência a normas familiares. O
acatamento a uma delas, consentimento do pai para o namoro, clarifica que a autoridade
paterna impunha padrões de comportamento e de seguimento de instruções, os quais
deveriam ser incorporados e respeitados pelos filhos.
Esse controle parece, também, se relacionar com o fato do genitor colocar-se
como o único responsável pela criação dos filhos e de suas respectivas trajetórias,
enquanto estivessem sob a sua guarda. Há dados que subsidiam essa interpretação:
“durante a minha infância e a minha adolescência, meu pai nos educava de um modo
muito rigoroso e nos controlava muito” ... “Até então, meu pai tinha muito medo, por
ser a mais velha das meninas”.
Quando residiam no Bairro 12, o pai da entrevistada adquiriu um lote e, então,
concretizou-se a possibilidade de possuírem a casa própria: “no final do científico, o
papai comprou um terreno, no Bairro 14, e construiu a casa”.
A referida aquisição é indicativa de que o empreendimento comercial do genitor
da participante/informante o fez prosperar, no plano financeiro, pois, como um pequeno
comerciante, angariou recursos, comprou um terreno, construiu uma casa e continuou a
manter todos os filhos na escola.
Durante a construção, os membros da família negociavam e planejavam como
deveriam ser os cômodos da casa e, conjuntamente, supervisionavam a edificação da
futura residência:
“... Íamos para lá juntos, dávamos palpites na casa, falávamos como queríamos
os cômodos, tarará, tarará” ... “Na casa que construiu, o papai mandou fazer
uma cozinha enorme, porque era... no horário das refeições que nos reuníamos”
... “Almoçávamos juntos, era uma coisa que o papai fazia questão...”.
A juventude da entrevistada transcorreu na nova casa. Nesse período, ela já era
universitária e a composição familiar havia se ampliado, porque seu irmão mais velho
Evenice Santos Chaves O racismo na Trajetória Escolar e Profissional... 254

casou-se e, com a sua companheira, continuou a residir na casa do seu pai.


Também ocorreram mudanças na convivência e nas interações entre os membros
da família, porque houve um distanciamento entre os irmãos, “quando entrei na
faculdade, meus irmãos já estavam na universidade” ... “Era... cada um por si...” ...
“Realmente tínhamos pouco contato...”. Ademais, a presença da cunhada no dia-a-dia
da família ocasionou desavenças, “quando ela foi morar conosco, brigávamos porque
sentíamos ciúmes dela com meu irmão...”, e, também, a relação entre Ilma e sua irmã
tornou-se belicosa: “eu brigava muito com a Ilze”.
Em que pesem as desavenças, a entrevistada permaneceu residindo na casa do
seu pai até casar-se, o que aconteceu dois anos após ter concluído o curso de graduação.

7.2.4. Inserindo-se na escola e completando o ciclo formal de estudos


Ilma ressaltou que a sua mãe alfabetizou todos os filhos: “foi ela quem nos
alfabetizou, ensinou aquele bê-á-bá”. Mas não há dados que esclareçam se isso ocorreu
antes da participante/informante freqüentar uma instituição de ensino.
A sua trajetória escolar começou “...em uma escolinha particular, com turmas
de alfabetização, jardim, essas coisas”. Apesar de relatar que “a minha primeira escola
foi um externato, uma escolinha pequena, de bairro, a Escola 2, localizada no Bairro
10, onde também morávamos...”, ela freqüentou duas escolas, ao mesmo tempo: “fiz o
jardim e a alfabetização na Escola 1... e, conjuntamente, a primeira série na Escola
2...”. É razoável conjeturar que essa situação perdurou apenas durante o seu primeiro
ano escolar, pois a entrevistada não mais se referiu à Escola 2 e, ainda, acentuou:
“continuei na Escola 1 durante todo o curso primário”.
O contexto familiar, enquanto pano de fundo sobre o qual o seu percurso no
ensino primário transcorreu, favoreceu o engajamento da entrevistada nos estudos: “...
Enquanto a minha mãe era viva ela acompanhava-me nos estudos” ... “Dava aulas
para todos os filhos” ... “Fazia o dever de casa conosco” .... “Então, era uma coisa
que... contribuía para que nós nos saíssemos bem, sempre bem”. Além dessa tarefa
educativa, a mesma acompanhava os filhos no trajeto da casa para a escola e vice-versa:
“ela ia nos buscar e nos deixar na escola...”.
Desse modo, a genitora da participante/informante dedicava especial atenção à
vida acadêmica dos filhos, embora portasse um problema de saúde. Isso requeria a
Evenice Santos Chaves O racismo na Trajetória Escolar e Profissional... 255

presença de outros em sua casa, para ajudá-la a cuidar das crianças:


“Em minha casa, mamãe nunca estava sozinha, por isso eu tive muito contato
com as minhas tias...” ... “Praticamente fomos criados por elas, porque minha
mãe também era... doente” ... “De vez em quando ela adoecia e sempre tinha
que ter alguém para ajudá-la” ... “A Acácia, que era nossa vizinha e muito
amiga dos meus pais, tomava conta de nós, quando a mamãe precisava”.
O dia-a-dia da mãe de Ilma, portanto, era transpassado pela circunstância da
enfermidade, configuradora de um obstáculo para que cumprisse as diferentes tarefas do
lar. Todavia, contando com o apoio social de parentes e vizinha, priorizou, como
cuidado a dispensar aos seus filhos, os afazeres ligados ao processo de escolarização dos
mesmos, em detrimento de outros trabalhos domésticos, os quais eram realizados pelas
pessoas que a auxiliava nas lidas cotidianas.
Essa escolha está imbricada na noção cultural e contemporânea de infância, que,
de acordo com Bastos (2001), elege a atividade escolar como o centro da vida da
criança. A citada autora ressalta que essa noção de infância, ancorada no trabalho
escolar, o concebe como elaborador da aquisição de conhecimentos, propiciador de
treinamento e instigador do desenvolvimento de uma rotina de trabalho. Também
acrescenta que, de acordo com a referida noção, o alcance das contribuições da vida
escolar efetivar-se-á em um futuro repertório, capaz de gerar maior produtividade do ex-
escolar na esfera ocupacional, em um momento posterior do seu ciclo de vida: a idade
adulta.
Essa noção de infância consolida uma visão pragmática e comprometida com a
idéia do ser humano como força produtiva. Se assim o é, à instituição escolar compete
apenas a formação do ser humano para o trabalho, o que a caracteriza como um espaço
para treinamento de conteúdos acadêmicos e a infância como um período de
domesticação das crianças para o labor. Esse deve ser compatível com necessidades
sociais geradas pelo capitalismo, característico do mundo neoliberal globalizado. Será
que apenas essa demanda justifica a existência da escola como agente de socialização?
Além do objetivo de formar profissionais de acordo com a formação econômico-
social capitalista, ainda é preciso que a escola funcione como um espaço propiciador de
formação da cidadania e do compromisso ético necessário, por exemplo, ao respeito, à
consideração e à expressão das diferentes peculiaridades étnicas.
Evenice Santos Chaves O racismo na Trajetória Escolar e Profissional... 256

Retomando a prática familiar de cuidar dos filhos, supõe-se que a progenitora da


entrevistada, de sua infância até um momento da adolescência, selecionou, como tarefa
prioritária de criação dos filhos, as práticas ligadas à vida escolar dos mesmos, talvez
porque visualizasse o processo de escolarização formal como um modo de acesso à
mobilidade social vertical.
Outro conjunto de dados possibilita afirmar que a freqüência e a continuidade da
participante/informante, e dos seus irmãos, na escola, era incentivada não apenas pela
mãe, enquanto viveu, mas, também, pelo seu pai. Tanto é que, ao se referir ao seu
desempenho nos estudos durante a infância, a entrevistada relatou:
“Algo que contribuía muito para com o meu interesse pelo estudo é que o meu
pai gostava muito de livro” ... “Líamos muito, todo o tipo de livro, jornal,
revista, livro de história, livro” ... “Meu pai sempre se esforçou com o intuito de
dar tudo, de não faltar nada para a escola”.
Esses indícios do envolvimento paterno na escolarização dos filhos revelam a
complementaridade de papéis, quando se consideram os pais de Ilma como as pessoas
responsáveis pela criação dos seus filhos. Inclui-se, nessa prática, o suporte necessário à
aquisição de conhecimentos e ao desempenho acadêmico.
Provavelmente, os genitores da entrevistada divisavam um futuro para seus
descendentes, permeado pela competência adquirida durante os anos escolares. Não é
irreal presumir-se que, para aqueles pais, a capacitação que a escola poderia fornecer
aos seus filhos os habilitaria a superarem adversidades decorrentes da pobreza e da
diferenciação étnica, através das suas inserções em trabalhos qualificados. Os mesmos,
geradores de melhores salários, propiciariam os seus acessos a bens e recursos, e, desse
modo, na idade adulta, os tornaria aptos a modificarem o modo de vida característico da
condição de pobreza e da estratificação étnica a que estiveram expostos, em momentos
anteriores dos seus ciclos de vida já vividos.
Destaca-se que ao se referir à disponibilidade de materiais para leitura em casa,
Ilma pontuou: “na infância, ter livros em casa ajudava muito a nos empenharmos nos
estudos, porque o ensino em si não era lá essas coisas”.
Resultados de uma pesquisa realizada por Chaves (1986), na cidade de Belém
(PA), indicaram que as escolas públicas de primeiro grau, estaduais e municipais, eram
freqüentadas por crianças pertencentes a uma população pobre. Além disso, essas
Evenice Santos Chaves O racismo na Trajetória Escolar e Profissional... 257

escolas também eram pobres, em termos da estrutura física, dos recursos materiais para
a prática pedagógica, da precária formação dos professores e dos seus baixos salários.
Tais achados compatibilizam-se com os dados anteriormente citados, os quais
trazem, de forma implícita, a informação de que a escola pública que Ilma freqüentou na
infância, localizada em um bairro de periferia da Cidade E, era pobre e caracterizava-se
pela baixa qualidade do ensino. É oportuno salientar que Ratcliffe (2000) menciona
como uma das características do racismo do meio ambiente a qualidade dos serviços
disponíveis nos bairros habitados pelas ‘minorias’.
Assim, competia aos pais da participante/informante suprir algumas deficiências
da instituição escolar. Para tanto, disponibilizavam, no próprio lar, o acesso dos filhos
aos livros. Ademais, o pai comprava o material escolar necessário e a mãe materializava
a sua ajuda através do acompanhamento doméstico nas tarefas escolares. O progenitor
também ressaltava a relevância da escolarização; “papai dizia que era uma coisa muito
importante, que o estudo era mais importante que qualquer outra coisa” ... “Ele
sempre disse isso”.
Dividindo tarefas e responsabilidades, os seus genitores criaram condições para
que os seus filhos, crianças pobres que freqüentavam uma escola com insuficiência de
recursos, se interessassem pelos estudos e alcançassem um desempenho acadêmico que
os permitissem avançar, através da aquisição de conhecimentos e das conseqüentes
promoções para séries mais avançadas.
Resumindo, completar os anos escolares relativos ao ensino primário foi uma
realização da entrevistada, porém o seu desempenho acadêmico contou com uma infra-
estrutura familiar. A mesma estendeu-se do apoio social fornecido por suas tias e uma
vizinha à mãe de Ilma, para que a mesma pudesse dispensar atenção à escolarização dos
seus filhos; aos discursos do pai sobre a importância do estudo para a vida prática, até a
disponibilidade, no lar, de um conjunto de instrumentos para a leitura, objetivando-se
criar situações que oportunizassem o contato das crianças com vários conteúdos
educativos.
O mérito da participante/informante em concluir o curso primário implicou em
seu ingresso no curso secundário, que, àquela época, só se realizava através de uma
seleção, aqui entendida como um primeiro exame vestibular. Ilma se submeteu a essa
avaliação e foi aprovada: “fiz admissão e o ginásio na Escola 3...”.
Evenice Santos Chaves O racismo na Trajetória Escolar e Profissional... 258

Foi durante o ginásio que o racismo dirigido à entrevistada ocorreu. Dados sobre
a segregação entre os estudantes fundamentam tal afirmação:
“No ginásio, realmente eu não tinha amigos brancos” ... “No ginásio e no
científico eu tinha poucos amigos, tinha pouquíssimas pessoas...” ... “Parando
para pensar..., as minhas duas amigas, a do ginásio, que me acompanhou
durante quase todo o ginásio, e a do científico, também eram negras” ...
“Morenas..., mais morenas do que... mais para o negro do que para o
branco...”.
Esses conteúdos são indicadores da presença de discriminação racial entre as
estudantes na escola, pois, no plano da convivência social, quando freqüentou o curso
secundário e o colegial, a entrevistada permaneceu apartada das colegas, exceto de duas
negras. Através da discriminação indireta, que dissimula o racismo e o torna invisível,
instaurou-se uma barreira que separava as negras das demais colegas.
Segundo Oliveira (2004), o preconceito racial é revelado, mesmo naquelas
situações em que uma pessoa quer escondê-lo. Logo, de forma compatível com essa
afirmação, a segregação entre colegas, que ocorreu na escola onde Ilma estudou, é um
exemplo de discriminação indireta e, conseqüentemente, do racismo sutil, expresso no
bloqueio aos relacionamentos interpessoais entre todas as estudantes. Dessa forma, o
preconceito se manifestou de modo não aparente, ou até imperceptível, conferindo um
caráter seletivo à expressão do racismo no espaço escolar.
A discriminação indireta, conceituada por Oliveira (2004) como uma prática
social empregada por pessoas para ocultar o preconceito racial, envolve, dentre outras
coisas, o reconhecimento do outro. A inexistência de relacionamentos interpessoais com
a quase totalidade dos colegas, que abrangeu a trajetória da participante/informante
durante o período em que cursou o ginásio e o científico, é indicativa da indiferença das
mesmas para com a entrevistada e, por conseguinte, da ausência do seu reconhecimento
como uma pessoa portadora do direito à interação com todos os companheiros na
escola. Usurpar do negro um direito é característica básica do racismo.
Embora objeto do racismo contra o negro na escola, esse fenômeno foi invisível
para Ilma: “talvez até tivesse sofrido, mas nunca, nunca percebi, porque eu cresci no
meio de gente que era da mesma cor ou até mais negra que eu”.
Torres (2001) assinala que nos países da América Latina, nos quais há muita
Evenice Santos Chaves O racismo na Trajetória Escolar e Profissional... 259

mestiçagem na composição étnica da população, e, também, nas cidades onde os negros


não estão reunidos em um mesmo bairro, destinado apenas a pessoas dessa etnia, há
menos oportunidade de conscientizarem-se da sua pertença a um grupo socialmente
diferenciado. Considerando-se que no Brasil e, especificamente, na Cidade E, há um
grande espectro de mestiçagem, com vários tipos humanos residindo e/ou transitando
em espaços públicos comuns, é pertinente concordar com as afirmações da pesquisadora
acima referida.
Os fatores apontados por Torres (2001) parecem ter contribuído para que Ilma
não desenvolvesse uma consciência sobre o seu pertencimento a um grupo discriminado
no plano racial, o que, possivelmente, refletiu-se na invisibilidade do racismo dirigido à
sua pessoa. Porém, é valioso ressalvar que a entrevistada não negou essa possibilidade,
apenas afiançou que nunca percebeu.
A invisibilidade do racismo a ela dirigido, bem como o fato de conviver
maciçamente com pessoas negras, ao longo da sua infância e adolescência, não a eximiu
de ser racista, nesses momentos do seu ciclo de vida já vivido:
“Acho que eu era racista durante a minha infância e adolescência” ... “Durante
a minha infância e a minha adolescência, minha irmã tinha uma amiga que
era... bem, bem, bem, bem pretinha... e dizíamos assim: ‘ah, ela é preta,
pretinha’” ... “Mas até consegui me relacionar com ela, só que ela era a
pretinha, ela era a pretinha”.
O racismo entre adolescentes negros não é um tema constitutivo das agendas de
pesquisas, embora os dados supracitados indiquem a presença do fenômeno no cenário
brasileiro. Na literatura consultada, encontrou-se apenas um trabalho realizado com um
grupo de adolescentes, em uma instituição de ensino, o qual revelou a presença do
racismo entre aqueles estudantes negros (Chaves, 2003a). A discriminação racial
manifestou-se no grupo, através de ações racistas, verbais e não-verbais, dirigidas ao
adolescente mais preto. A ocorrência dessa subjugação, em outros espaços da escola,
também foi relatada pelos adolescentes.
Retomando os dados deste estudo, anteriormente descritos, supõe-se que ao
rotular a amiga de ‘preta’, a participante/informante estava empregando uma estratégia
para diferenciar-se da mesma, embora pertencesse ao mesmo grupo étnico. Distinguir-se
do preto, então, tal como salientado por Chaves (2001), é indicativo de um processo de
Evenice Santos Chaves O racismo na Trajetória Escolar e Profissional... 260

subjetivação que redunda na negação da própria etnia, na busca de inclusão no mundo


da branquitude e na autoclassificação cromática em uma suposta categoria, não negro,
tendo em vista a aceitação social. A articulação dessa estratégia, por parte de Ilma,
certamente decorreu de experiências sócio-culturais racistas e do emergente sentido de
inferiorização. Assim, assumir-se como negra implicava em incluir-se na sociedade
como uma pessoa inferior e, para afastar-se disso, era necessário diferenciar-se da
‘pretinha’. Essa busca de negação da identidade étnica é uma nefasta decorrência do
racismo contra o negro, que lhe atribui inferioridade cultural, intelectual e emocional.
Após concluir o curso ginasial na Escola 3, a participante/informante ingressou
na Escola 4, onde permaneceu até o final do científico. Embora os dois colégios fossem
públicos, a entrevistada frisou que neles estudava uma seleta clientela, porém adentrou
nos mesmos: “eu consegui estudar nas escolas de elite”. Isso, no entanto, não a colocou
próxima daqueles que faziam parte da ‘nata’. Sua única amiga no curso científico,
embora financeiramente abastada, era negra. Ao se referir à mesma, concentrou-se na
atenção que ela lhe dispensava e em seu poder aquisitivo:
“A negra do científico, já falei que era muito minha amiga, sempre se
aproximou de mim...” ... “Tratava-me como uma irmã mais nova e me
protegia...” ... “Ela tinha condições de vida..., a sua família era bem...
abastada...” ... “Ela sempre... contava as coisas que fazia”.
Um subsídio desse convívio amistoso foi o referencial para que efetuasse uma
comparação social entre o seu patamar sócio-econômico e o de sua amiga, a qual, apesar
de negra, era portadora de mais recursos financeiros e, em decorrência, de maior acesso
aos objetos de consumo. Defrontar-se com relatos de acesso a determinados bens, que o
dinheiro propiciava, gerou uma aspiração no repertório da entrevistada: “eu... tinha
vontade de ter a condição de vida da minha amiga do científico”.
Merece acentuar que, para a participante/informante, ser pobre significava a
menos valia: “acho que durante a minha infância e adolescência eu... tinha vergonha
de..., do meu meio..., eu tinha vergonha”. Esse conteúdo fornece indícios de que ela se
sentia socialmente inferiorizada e disso, possivelmente, emergia o sentimento de
vergonha diante da pobreza e do seu estilo de vida. Curiosamente, ao invés de visualizar
o lugar social que ocupava como promovido pela desigualdade social, Ilma desenvolveu
um sentimento de vergonha, que mascarava a sua capacidade de apreender as diferenças
Evenice Santos Chaves O racismo na Trajetória Escolar e Profissional... 261

sociais como algo promovido por uma sociedade que hierarquiza os grupos sociais, pelo
critério econômico. Desse modo, acanhava-se diante da sua própria condição de vida,
sem enxergar que a mesma era histórica e culturalmente construída.
Presume-se que a preponderância do seu olhar sobre a circunstância da pobreza
que a acompanhou, pelo menos durante a infância e a adolescência, também contribuiu
para que não percebesse a discriminação racial da qual foi objeto:
“Como já disse, não me lembro de ter sofrido discriminação pelo fato de ser
negra, filha de negros” ... “Pessoalmente, nunca me senti segregada pela minha
cor” ... “No colégio, eu nunca senti isso..., nunca senti na pele que eu era
discriminada pela minha cor, mas sim pela minha condição social”.
Contraditoriamente, também relatou: “mas, pensando bem, acho que eu mesmo
me discriminava: sempre me achei menos bonita que as minhas colegas, menos
inteligente” ... “Achava que todos eram superiores a mim...”. Tais conteúdos remetem
ao racismo contra o negro, pois esse fenômeno social articula-se, dentre outras coisas,
na idéia da superioridade estética e intelectual do grupo étnico branco, concepção
difundida, de há muito, na sociedade brasileira.
Retomando a trajetória escolar da participante/informante, ao cursar o terceiro
ano científico, também se preparou para o vestibular: “fiz o 3º ano conjuntamente com o
cursinho: o 3º ano na Escola 4 e o pré-vestibular no Cursinho 5”. Contudo, a
incompatibilidade entre pobreza e freqüência a um cursinho levou o seu pai a empregar
uma estratégia de enfrentamento, da qual resultou a obtenção de uma bolsa de estudos
para que Ilma pudesse freqüentar o pré-vestibular: “no período do cursinho, o papai
pleiteou uma bolsa, porque meus dois irmãos já haviam estudado lá e tinham sido
aprovados no vestibular” ... “Estudei no Cursinho 5, durante todo o tempo, com a
bolsa..., não paguei”.
No ano que precedeu o exame vestibular, a entrevistada dedicou-se aos estudos,
com afinco: “estudei bastante, estudava todo final de semana, não parava” ... “Eu
realmente estudei, porque queria mesmo passar no vestibular”.
É admissível que, naquele momento, Ilma atentasse para a possibilidade de
mudança na sua condição econômica, através da escolarização formal. Por isso, aspirava
à aprovação no vestibular, ao ingresso na universidade e ao diploma do curso superior,
o que, futuramente, permitiria o seu engajamento em uma atividade de trabalho, cujo
Evenice Santos Chaves O racismo na Trajetória Escolar e Profissional... 262

salário se compatibilizaria com sua formação acadêmica. Isso possibilitaria mudança no


seu patamar sócio-econômico e novas aquisições que viriam eliminar o seu sentimento
de vergonha, gerado pela pobreza.
A participante/informante avaliou positivamente o ano que antecedeu o seu
ingresso na universidade: “a melhor época foi a do vestibular, pois conheci muita
gente” ... “Foi uma época muito boa, porque no cursinho existiam pessoas... de muitos
colégios” ... “Vestibular, cursinho, foi uma época... de atividades muito intensas”.
Naquele período, teve acesso ao lazer, porém, necessitou burlar o controle familiar: “ia
ao cinema após o cursinho e falava em casa que estava estudando: sempre com uma
desculpa”.
O recurso da mentira, para poder divertir-se, é um indicativo da sua dificuldade
pessoal para enfrentar qualquer situação que causasse conflitos familiares. Destarte,
mentir sinaliza a utilização de uma estratégia de enfrentamento de fuga, com a qual
atingia o seu objetivo e também evitava a ocorrência de conflitos com membros da sua
família. Nessa medida, divertir-se e esconder tal fato de seus familiares, circunscreveu
uma transição entre um estilo de vida restrito ao convívio com o seu pai e irmãos e a
ampliação do seu modo de viver, o qual passou a incluir a convivência com colegas fora
do espaço escolar e sua incursão em uma atividade de lazer.
Enquanto preparava-se para o vestibular, Ilma também enfrentou a tarefa de
escolher o curso superior: “na verdade, fiquei meio sem saber o que fazer”. No
processo de escolha, orientou-se por critérios que não focalizavam especificidades da
profissão, seus limites, suas possibilidades, enfim, o cotidiano experienciado pelos
profissionais em suas situações de trabalho: “optei pelo Curso C, porque era um curso
novo” ... “Estava tendo uma boa demanda”... “Já tinha ouvido bons comentários sobre
ele”. Ademais, ressaltou que “também o escolhi porque achava que era uma forma de
ajudar as pessoas...”.
O último dado apresentado sugere que algum aspecto da sua história pessoal
também influenciou na escolha. Presume-se que as dificuldades que vivenciou, na sua
vida familiar e pessoal, bem como os apoios sociais, fornecidos por uma amiga da sua
mãe e por parentes, configuraram experiências propiciadoras da elaboração de uma
significação para o apoio social: um relevante comportamento de ajuda a outros, que
pode ser fornecido em diferentes momentos e circunstâncias de vida, o qual os auxilia a
Evenice Santos Chaves O racismo na Trajetória Escolar e Profissional... 263

enfrentarem adversidades, minimizá-las ou superá-las. Ainda é oportuno ressalvar que a


cooperação de outras pessoas, ao longo do seu curso de vida, auxiliando-a a superar as
vicissitudes que emergiram na sua trajetória, permitiu-lhe incorporar a solidariedade
como um valor.
A entrevistada foi aprovada no vestibular e freqüentou o Curso C, durante a sua
juventude. Nessa etapa do seu percurso escolar, ocorreram mudanças e pontua-se o
abrandamento do sentimento de vergonha, dada a sua situação sócio-econômica, “na
Universidade X melhorou bastante, diminuiu mais... essa vergonha que tinha da minha
condição”, e a justificativa para essa modificação pessoal: “é..., devido à
heterogeneidade naquela instituição...”.
Paradoxalmente, a diversidade não ampliou, até próximo do final da graduação,
o seu círculo de amizades. Embora reafirmasse que na universidade “... não sentia
discriminação pela... cor...”, alguns episódios apontam a presença da discriminação
racial naquela instituição: “realmente, no início, não tinha um grupo de estudo, era eu e
a Alessandra”. Essa colega, negra, tornou-se amiga de Ilma: “no início da faculdade eu
consegui fazer amizade com a Alessandra” ... “Eu e a Alessandra estudávamos e
andávamos juntas” ... “A Alessandra freqüentava minha casa e eu a dela”.
Nos três anos iniciais da sua graduação, conviveu apenas com essa colega. A
experiência de quem faz parte do cotidiano universitário mostra que, nessa instituição
de ensino, tanto os docentes quanto os discentes são predominantemente brancos. À
medida que eles formam a maioria, espera-se que os poucos negros mantenham muitas
relações interpessoais com as pessoas brancas. Contraditoriamente, o único vínculo de
amizade que a entrevistada estabeleceu, durante parte do tempo em que freqüentou a
graduação, denota a presença do racismo contra o negro naquela instituição.
Esse fenômeno social pode ser tomado como um fator que lhe negou o direito de
se relacionar em um patamar de eqüidade racial na escola de terceiro grau. Além disso,
apontou a seletividade realizada pelos colegas brancos para escolherem um outro como
digno de consideração, como um interlocutor, como um companheiro em jornadas de
estudos ou como um amigo.
Apesar da escassez de pesquisas sobre o racismo entre universitários, o dado de
Massart (2002) de que uma aluna cabo-verdiana foi objeto do racismo por parte de
colegas na instituição universitária, corrobora aquele encontrado neste estudo. Portanto,
Evenice Santos Chaves O racismo na Trajetória Escolar e Profissional... 264

as relações racializadas que perpassaram a trajetória escolar de Ilma, em momentos da


sua graduação, não constituem uma exceção.
Outro indício da presença do racismo contra estudantes negras, na Universidade
X, é discernível nos seguintes episódios:
“A Alessandra era bem morena, alta, as pessoas diziam que éramos irmãs,
porque éramos muito parecidas” ... “Olhando assim não tem nada a ver” ...
“Mas, naquela época, todo mundo falava que éramos parecidas, porque
tínhamos a mesma cor” ... “Diziam que todas que eram da mesma cor eram
irmãs”... “Tinha a Aline também” ... “Achavam que eu era irmã da Aline, e
também da Anete, porque nós éramos negras”.
Ilma também forneceu outro conteúdo indicativo de que, durante a realização do
mestrado, em outra universidade, o mesmo sistema classificatório foi empregado para
diferenciar as estudantes negras das não negras: “já com relação a Ágata, lá na Cidade
A, achavam que era minha irmã, eu me lembro, porque todas que são morenas
tomavam como irmãs”.
Mais uma vez o racismo contra o negro manifestou-se através da discriminação
indireta e os indícios destacados permitem denominar de racista o agrupamento das
estudantes ‘de cor’. Ademais, a ausência de conteúdos indicativos do emprego de
sistemas classificatórios para agrupar os estudantes brancos em um rótulo, corroboram a
afirmação precedente. Conclusivamente, em duas universidades freqüentadas pela
entrevistada, durante os cursos de graduação e de mestrado, localizadas em diferentes
Estados do Brasil, as negras foram diferenciadas, agrupadas em uma classe arbitrária,
formada por pessoas supostamente pertencentes à mesma família, ou seja, unidas pelo
laço do parentesco, com base no critério de cor.
Outro aspecto decorrente dos dados, que faz jus a uma focalização, diz respeito
às diferentes classificações e autoclassificações cromáticas realizadas por Ilma, que ora
nomeou a si própria e a outras pessoas de negras, ora de morenas, ou de moreninha.
Silva (2005) afirma que, em dados censitários, muitos pardos autodenominam-se de
‘morenos’ e pode-se supor o emprego desse rótulo como uma das vias através da qual
escondem a condição de serem negros. Não é desastroso sublinhar que as ações políticas
vinculadas ao embranquecimento, e conseqüente elogio da mestiçagem, através do mito
da democracia racial, fundamentam a construção de uma amplitude cromática no Brasil,
Evenice Santos Chaves O racismo na Trajetória Escolar e Profissional... 265

visando a camuflar a condição de pertença de alguns mestiços ao grupo social negro.


Desse modo, o preconceito racial e a hierarquização das pessoas, com base na
cor, conduzem o negro a empregar o termo ‘moreno’ para designar a cor do preto e do
pardo. Quando a cor da pele gradualmente distancia-se da preta, a denominação social
de ‘moreno’ é empregada para um amplo gradiente de cores, diferenciando os pardos
dos pretos e forjando a maior aproximação daqueles à categoria branco.
O certo é que, como mostram dados deste trabalho, mesmo situando-se como
‘moreno’, o mestiço pardo é objeto do racismo, expresso no estigma de aparência física,
contudo, de forma disfarçada. Paiva (2001b) menciona que no Brasil as concepções e os
discursos sobre o mestiço são elaborados de modo velado. Essa, pois, é uma razão,
culturalmente construída, que justifica o modo escamoteado através do qual o racismo é
dirigido ao mestiço pardo, como no caso de Ilma.
Voltando ao percurso escolar da participante/informante, nos anos finais do seu
curso de graduação, a mesma passou a conviver com colegas de cor branca:
“Comecei a estudar com elas, até o final do curso, penso que foi... nos dois
últimos anos” ... “Nós estudávamos e conseguíamos estar sempre estudando
juntas” ... “... Só na faculdade é que houve uma mistura maior, pois a Antônia é
branquinha, a Ana é bem branquinha e a Amélia é loira”.
A participação em um grupo demarca uma mudança em seus relacionamentos
interpessoais, expressa no convívio com pessoas brancas, o qual avançou da situação de
estudo para uma amizade de longa duração: “na graduação consegui fazer mais
amizades, consegui formar um grupo que perdura até hoje”.
Durante o curso de terceiro grau, as interações sociais entre Ilma e seus irmãos
escassearam: “quando entrei na faculdade, meus irmãos já estavam na universidade” ...
“Era... cada um por si...” ... “Realmente tínhamos pouco contato...”. Mas, “no último
ano da faculdade, ainda estávamos nessa..., com essa coisa da família almoçar junto”.
Um namoro, iniciado na universidade, que permaneceu durante quatro anos da
graduação de Ilma, alterou significativamente o seu relacionamento com os familiares:
“... houve um afastamento mesmo...” ... “Eu fiquei mais com a família dele do que com
a minha família” ... “Saíamos da faculdade, íamos almoçar em sua casa e voltávamos à
tarde” ... “Passava mais tempo com a família do Nando que com a minha”. A nova
situação produziu desavenças entre a participante/informante e os seus irmãos: “foi
Evenice Santos Chaves O racismo na Trajetória Escolar e Profissional... 266

muito difícil para mim, porque meus irmãos tinham muito ciúme dessa minha relação
com a família dele”.
O relacionamento amoroso também foi foco de outra modificação no seu dia-a-
dia, porquanto lhe proporcionou uma vida social mais ativa: “depois que eu comecei a
namorar o Nando, a coisa ficou mais..., eu fazia muitos programas com ele” ... “Foi
uma época de atividade social muito intensa: íamos ao clube, ao cinema, ao
barzinho...”.
Conforme constatam os dados, a universidade instituiu-se na vida de Ilma como
um espaço propiciador de novas oportunidades e experiências sociais, que repercutiram
como pontos de virada, modificadores do seu curso de desenvolvimento: contribuiu na
sua formação acadêmica e desempenhou uma função socializadora, ao se constituir
enquanto contexto que favoreceu o estabelecimento de amizades e a articulação de um
namoro. Esse, desdobrou-se no convívio da participante/informante com membros da
família de seu namorado e com a sua participação em atividades de lazer.
Durante os anos em que cursou a graduação, a entrevistada residiu com os
membros da sua família de origem, usufruindo o provimento financeiro que lhe era
oferecido pelo pai, o qual lhe permitiu freqüentar um curso universitário sem necessitar
engajar-se em qualquer atividade de trabalho formal, para se auto-sustentar.
Dados referentes à sua situação financeira, durante essa travessia, elucidam a
inexistência de dificuldades econômicas que interferissem na continuidade dos estudos.
Longe disso, ocorreram facilidades:
“Morava perto da Universidade X, ficava na esquina de casa e a maioria das
pessoas que por lá passavam de carro, e iam para aquele local, ofereciam
carona” ... “... Tinha o crédito educativo e a bolsa, de monitoria ou de pesquisa,
então não havia dificuldade financeira” ... “Consegui comprar meus livros,
conseguia comprar parcelado” ... “Papai sempre me ajudou, nunca deixou de
fazê-lo, quando eu precisava de livros...”.
Embora Ilma não tenha se referido ao seu desempenho acadêmico durante o
curso universitário, um dado anteriormente descrito suscita a afirmação de que o mesmo
foi bom, a ponto de proporcionar o exercício da função de monitora e de bolsista de
iniciação científica. Com esse mérito pessoal e o apoio social fornecido pelo seu pai, ela
concluiu a graduação, habilitando-se a exercer uma profissão que o grau obtido lhe
Evenice Santos Chaves O racismo na Trajetória Escolar e Profissional... 267

proporcionou.
Alguns anos depois tentou retornar à Universidade X, como estudante, para
realizar o mestrado: submeteu-se à seleção, foi aprovada, “... mas não tinha orientador
disponível”. Deslocou-se, então, para outra universidade, localizada na Cidade A,
submeteu-se ao processo seletivo, foi aprovada e cursou esse nível de pós-graduação.
O racismo fez parte desse percurso escolar e a entrevistada atribuiu as situações
de discriminação pelas quais passou à sua procedência: “na Universidade Y, eu me senti
discriminada porque era da Região Tropical 1...”.
A partir dessa justificativa, é possível afirmar que a discriminação dirigida à
participante/informante, no espaço universitário, expressa, de acordo com Guimarães
(1999), um mecanismo de subordinação racial, fundamentado na identidade regional
dos grupos humanos, intitulado pelo autor de estigma de etnia. Nesse processo,
categorizam-se as pessoas e os grupos humanos, a partir dos seus locais de origem, em
superiores e inferiores, e tais valorações produzem relações sociais assimétricas.
Dados sugerem que, durante o mestrado, um colega de Ilma, de cor branca,
também proveniente da sua cidade de origem, recebeu um tratamento diferente daquele
que lhe foi dispensado por uma professora:
“... Não consegui fazer amizade com a Professora Pâmela, como o Alberto fez”
... “Ela não quis ser fiadora do apartamento que aluguei com a Amanda” ...
“Aquilo me chateou muito...” ... “Queria ter o mesmo nível de amizade que o
Alberto tinha com aquela professora e não consegui”.
Essa diferenciação de tratamento pode ser compreendida como decorrente de
uma sintonia entre a Professora Pâmela e o Alberto e da ausência dessa entre a docente
e Ilma, o que é plenamente aceitável e justifica, por si só, a amizade da mestra com o
estudante. Mas outros episódios fornecem pistas para a compreensão de que a referida
professora dirigia uma certa hostilidade para a participante/informante:
“Houve a eleição para a escolha de um representante discente junto ao
Colegiado” ... “Competi com uma colega que diziam ser a menina dos olhos da
Professora Pâmela...” ... “A Professora Pâmela, que era a sua orientadora,
achou que eu tinha imposto o meu nome”.
Também há conteúdos relativos à sutileza com que tentou impugnar o trabalho
de dissertação de mestrado de Ilma: “a Professora Pâmela quis até questionar os meus
Evenice Santos Chaves O racismo na Trajetória Escolar e Profissional... 268

dados, quis questionar os gráficos” ... “Porém meu orientador disse-lhe que não, que
era aquilo mesmo...”.
Não há dados referentes à ocorrência de desavenças entre a entrevistada e a
professora Pâmela, que possam estar na raiz das hostilidades. Também não há dados
que desabonem as ações da entrevistada, em relações sociais travadas no contexto da
pós-graduação. Que razões, além do racismo, podem justificar o comportamento da
docente frente a Ilma? Há indícios de que outro mecanismo social de subordinação
também operou: o racial. Para Guimarães (1999), ele fundamenta-se na noção de raça
como um elemento que diferencia os grupos humanos, a partir do estigma da aparência
física. Os conteúdos até aqui elencados, referentes ao processo relacional entre a mestra
e a estudante, assinalam a provável presença do racismo na relação professora-aluno, no
ensino de pós-graduação.
Relativamente aos professores do mestrado, é pertinente citar a indiferença dos
mesmos às intervenções realizadas por Ilma nas reuniões do Colegiado, quando exerceu
o papel de representante discente: “contudo era assim: durante as reuniões, os
professores não..., ignoravam-me como a representante discente” ... “Eu me sentia
muito desrespeitada”.
A hostilidade de Pâmela para com a entrevistada, quando eleita representante
discente, e a indiferença dos docentes às suas colocações nas reuniões do Colegiado,
remetem à afirmação de Fernandes (1972) de que o branco só percebe o negro no
enfrentamento de uma situação concreta onde esse também é protagonista.
Os episódios já descritos substanciam a interpretação de que uma posição
escolar assumida pela negra, embora democraticamente eleita para ocupá-la, distinguiu-
a como alguém possivelmente não capacitado para fazê-lo. Isso delimita, na nossa
cultura, as diferenças raciais como demarcadoras de privilégios para alguns e de
subjugação para outros: as regalias são destinadas àqueles denominados de brancos, que
se consideram como superiores, no plano cultural e/ou étnico. Por outro lado, o
destinatário da subjugação é o negro, alcunhado de cultural e etnicamente inferior.
Em suma, portadora da ‘marca’ negra, a participante/informante foi excluída do
círculo de relacionamentos interpessoais da docente, foi objeto da indiferença de
professores nas reuniões do Colegiado, verificando-se que naquela instituição de ensino
superior não havia lugar para a negra, oriunda de uma região rotulada como ‘atrasada’,
Evenice Santos Chaves O racismo na Trajetória Escolar e Profissional... 269

assumir o papel de coordenadora da categoria estudantil. No exercício de representante


discente junto ao Colegiado do Programa de Pós-Graduação da Universidade Y, Ilma
permaneceu, de fato, sem voz e sem que prestassem atenção aos pleitos, nas reuniões.
Há outro indicador do racismo dirigido à participante/informante, explicitado no
tratamento diferencial dispensado à mesma pelas suas colegas do curso de mestrado:
“Lá, os colegas também não se aproximavam de mim” ... “Lá, todos ficam na
sua...” ... “As pessoas lá da Cidade A são muito difíceis” ... “Elas são muito...,
muito individualistas” ... “Não são de fazer muita amizade, não são de sair
assim em grupo, como na Cidade E...” ... “...Eles... têm uma postura, eu não
acho errado que eles se julguem melhores em muita coisa, em tudo”.
Nota-se que apesar de ser discriminada, a participante/informante não avaliou
como incorreto, racista ou injusto, o modo de ser dos colegas, que a ignoravam e
julgavam-se superiores. Isso indica que Ilma não vinculou a segregação a que foi
submetida à sua inclusão social excludente. Sem estabelecer essa relação, explicitou
outros conteúdos, os quais, novamente, são indícios da discriminação indireta a que foi
submetida:
“Só fiz amizade mesmo com um pessoal do Estado D e com um menino... do
Estado C” ... “Formamos um grupo, o grupo dos excluídos” ... “Faziam parte
do grupo dos excluídos eu e a Amanda, da Cidade E, o Armando, que era do
Estado C, mas morava na Cidade H, o Artur e a Ângela, do Estado D, e a
Angélica, que era da Cidade A, mas era diferente dos outros”.
Apartada da maioria dos colegas, a entrevistada relacionou-se com os que
constituíam o ‘grupo dos excluídos’:
“Durante o mestrado na Cidade A, convivia com o pessoal da Cidade D” ...
“Como eles moravam em outras cidades, vinham à Cidade A só para assistir as
aulas, na segunda e na terça-feira” ... “Nos encontrávamos de manhã para as
aulas” ... “Sentávamos próximos uns aos outros” ... “Almoçávamos juntos” ...
“Jantávamos juntos nas segundas-feiras” ... “Ocasionalmente, a Ângela ia lá
para casa”.
Angélica, a única mestranda da Cidade A que fazia parte do grupo, também
convivia com os ‘excluídos’ fora do espaço escolar: “... era a única pessoa da Cidade A
que saía com o nosso grupo, o dos excluídos ...”. Porém, é preciso destacar que
Evenice Santos Chaves O racismo na Trajetória Escolar e Profissional... 270

Angélica também era discriminada e rotulada pelas demais colegas da sua cidade: “todo
mundo sempre falou que ela era diferente” ... “Que ela era muito porra-louca”.
Buscando explicar a razão para tal rótulo, Ilma interpretou que “a Angélica era
chamada de porra-louca porque era extrovertida: a mais divertida, gostava muito de se
divertir”. Outra interpretação, no entanto, pode ser focalizada na questão racial, pois ao
conviver e ‘se misturar’ com aquelas pessoas, Angélica, a moça da Cidade A, recusava
a suposta superioridade da sua origem cultural e/ou racial, igualando-se àqueles
reputados como inferiores.
Angélica mantinha um intenso convívio social com as colegas que compunham
‘o grupo dos excluídos’: “ela sempre fazia programas conosco” ... “... Saíamos muito
com a Angélica” ... “Íamos ao karaokê” ... “Certa vez, fomos à sua casa na praia”.
Isso demonstra que, no âmbito da vida concreta, nem todas as pessoas da Cidade A
eram racistas, todavia, salienta-se que, dentre os colegas de Ilma na Universidade Y,
Angélica representava uma minoria.
A constituição do ‘grupo dos excluídos’ evidencia o emprego de uma estratégia
de enfrentamento, pelos mestrandos que se sentiam discriminados. Formaram uma
aliança, com o intuito de se fortalecerem, através do apoio e da solidariedade, de
resistirem às desigualdades e aos possíveis desmandos que, porventura, viessem a ser
perpetrados contra eles. Em uma ocasião, inclusive, valeram-se do enfrentamento direto
às condições adversas:
“O Antero, que fazia parte do grupo dos excluídos, falou-me: ‘Ilma, tu tens que
ser a nossa representante, porque se nós ficarmos nas mãos desses meninos da
Universidade Y estaremos perdidos, nós que somos de fora’” ... “Eu falei: ‘ta,
vocês lançam o meu nome’ e eles lançaram”.
A participante/informante concorreu ao cargo de representante discente,
disputando-o com outra mestranda. Elegeu-se, contudo isso gerou uma animosidade:
“isso criou uma inimizade entre mim e a Adriana, a colega com quem competi, pois ela
ficou chateadíssima e deixou de falar comigo”. Apesar dessa ocorrência, a entrevistada
enfrentou a situação, desempenhando o seu papel até o final do mandato: “não sei, só
sei que acabei sendo uma representante discente que comparecia a todas as reuniões”
... “Depois, realizava uma outra com os colegas, para repassar os assuntos
discutidos”.
Evenice Santos Chaves O racismo na Trajetória Escolar e Profissional... 271

Ao completar o mandato, o ‘grupo dos excluídos’ solicitou que disputasse o


cargo pela segunda vez, mas Ilma não aceitou concorrer a outro mandato: “... embora o
grupo dos excluídos reivindicasse a minha permanência” ... “Comuniquei que eu não
queria mais, preferia ficar só como aluna” ... “Queria terminar o meu curso e não mais
me envolver com aquelas...”.
Desistir de algo, aquietar-se, acomodar-se à situação de desvantagem, afinal,
comportar-se de forma submissa, é uma característica do comportamento de muitos
negros, nas situações em que é desqualificado e inferiorizado. Como dados antecedentes
demonstram, isso ocorre na universidade, porém, como acentua Carvalho (2002), tal
instituição mantém-se silenciosa diante do racismo contra o negro. Esse autor
argumenta que o silêncio é evidente na maior parte das pesquisas realizadas em nosso
país sobre a discriminação racial, posto que a maioria dos estudos não engloba a questão
do racismo dentro da instituição universitária.
Não obstante o mascaramento da discriminação racial a que foi submetida na
Universidade Y e a invisibilidade dessa, por parte de Ilma, as experiências de inclusão
social excludente pelas quais passou, durante o curso de mestrado, repercutiram no seu
desempenho acadêmico e na auto-imagem que construiu, naquele momento do seu ciclo
de vida já vivido. Dados demonstram que o seu comportamento em sala de aula era
incongruente com aquele esperado de uma mestranda: “nas aulas do mestrado, eu
ficava calada, pois... já havia estudado os conteúdos das aulas iniciais”.
Divisa-se que ao descrever o seu mutismo, ela imediatamente o justificou, de
forma racionalizada. Todavia, contraditoriamente, explicitou conteúdos indicativos de
outros motivos que a levavam a permanecer calada na sala de aula: “eu era meio
medrosa, meio insegura mesmo, pensava que se fosse falar alguma coisa iria
atrapalhar a discussão”.
Além desses indicativos de uma baixa auto-estima, existem mais dados que
corroboram o desenvolvimento de uma desqualificadora visão de si mesma:
“Pensava que os professores não se aproximavam de mim porque achavam que
eu não era tão boa quanto o Alberto” ... “Na Universidade Y, queria manter o
mesmo nível de relacionamento com o Alberto, porém me achava muito...
incompetente, com capacidade muito inferior à dele”.
O seu retraimento nas aulas teve desdobramentos, pois motivou o comentário de
Evenice Santos Chaves O racismo na Trajetória Escolar e Profissional... 272

uma docente: “a Professora Pâmela havia comentado com ele, meu orientador, que eu
ficava muito tempo calada na sala de aula” ... “Ela achava que eu tinha muito a
contribuir e não o fazia...”. O silêncio de Ilma ocorreu nas demais disciplinas que
freqüentou: “durante o mestrado, o Professor Pinheiro perguntava porque não
participava nas aulas”.
Na literatura consultada, não foram encontrados trabalhos sobre relações
racializadas entre professores e alunos negros, na universidade. Deparou-se, porém, com
relatos de Carvalho (2002), sobre a ocorrência de duas situações em que docentes
emitiram juízos racistas sobre alunos negros. Esses relatos configuram situações de
discriminação racial direta, enquanto que, nas experiências de Ilma com professores, as
manifestações do racismo ocorreram pela via da discriminação indireta.
Sem dúvida, relações entre professores e alunos, nas quais o primeiro é o
discriminador e o segundo é o discriminado, quer direta ou indiretamente, interferem no
desempenho acadêmico do estudante e na sua auto-estima, como sugerem os dados
sobre o mutismo da entrevistada em sala de aula, durante o mestrado.
Assim, diante da discriminação a que foi submetida e da sua frágil auto-estima,
Ilma enfrentou uma limitação pessoal: “... eu... tive muita dificuldade em mostrar que
também tinha capacidade” ... “Na Universidade Y só consegui mostrar que tinha
capacidade ao final do curso, quando fui a primeira a concluir a dissertação”.
Embora demonstrasse competência e esforço pessoal, evidenciados no término
da pesquisa em tempo hábil, até antes dos demais colegas, o seu próprio orientador quis
protelar a defesa da dissertação, e, desse modo, anular a realização da entrevistada como
a pioneira da turma: “quando cheguei com a dissertação pronta, o meu próprio
orientador tentou segurar” ... “Porém disse-lhe: ‘não Pinheiro, eu tenho que terminar
porque quero voltar pra a Cidade E agora em março...’”.
Adita-se que o professor orientador da participante/informante pouco contribuiu,
durante a elaboração da dissertação:
“Meu orientador era uma pessoa super legal” ... “Contudo, ele não..., ele não
lia, não me ajudou muito na dissertação” ... “A fiz praticamente sozinha” ...
“Mostrava para ele o que já havia realizado e complementava: ‘ agora eu vou
fazer assim...’”.
Esses conteúdos fornecem pistas para a interpretação de que o professor Pinheiro
Evenice Santos Chaves O racismo na Trajetória Escolar e Profissional... 273

atuou com indiferença, mas inexistem dados que permitam inferir sobre o motivo de tal
tratamento dispensado às demandas da mestranda. Afirma-se, apenas, que o docente não
cumpriu a sua atribuição acadêmica de professor orientador de uma dissertação de
mestrado.
Vale citar que a Professora Pâmela não foi a única a interrogar sobre a qualidade
e a conclusão da pesquisa de dissertação daquela mestranda: “todavia, ainda tentaram
questionar se o trabalho já estava realmente pronto, se dava mesmo para aproveitar”
... “O professor Pinheiro acabou me apoiando”. O descrédito intelectual conferido a
Ilma ainda pode ser visualizado nos seguintes dados:
“Não acreditaram que fui a primeira a defender a dissertação” ... “Não
acreditaram..., realmente não acreditaram” ... “Foi um comentário geral, todo
mundo percebeu e comentou” ... “O comentário era o de que ninguém
acreditava, todo mundo pedia para ver se estava tudo pronto” ... “Diretamente,
nunca falaram nada para mim”.
A desqualificação à realização da participante/informante nada mais era que uma
forma de expressão da discriminação indireta e materializá-la, através da desvalorização
intelectual de uma aluna negra, obscureceu, para a mesma, a possibilidade de elaborar a
suposição de que alguns professores e alunos de um curso de pós-graduação poderiam
estar atuando de forma racista. Essa interpretação, caso seja viável, é indicativa da
forma camuflada como a discriminação perpetrada resvalou-se na conveniência, pois, na
instituição universitária, a discriminação e o preconceito são expressos de modo velado,
com o intuito de não se infringir um significado da instituição universitária: a unidade
da diversidade.
Ainda pode-se conjeturar que a discriminação indireta, empregada contra a
entrevistada, era de natureza racista. Destarte, tal forma de manifestação do racismo
mascarou as relações racializadas em ‘respeito’ à legislação em vigor, que o coloca
como crime inafiançável e, também, mantém ações consideradas como ‘politicamente
corretas’, aos olhos de outros. Apesar disso, a fraude individual, que conscientemente
incompatibiliza o discurso e o comportamento expresso nas relações socias, existe.
O conjunto de dados já elencados demonstra que, mesmo na adversidade, Ilma
foi competente para enfrentar as discriminações, a sua baixa auto-estima e atingir a
meta: tornar-se mestre. Todavia, as situações de discriminação pelas quais passou,
Evenice Santos Chaves O racismo na Trajetória Escolar e Profissional... 274

durante a realização do mestrado, requereram-lhe um grande esforço pessoal, necessário


para que percorresse um caminho que a conduziu ao aprimoramento escolar e à
habilitação para a docência no ensino superior.
De modo geral, os dados apresentados sobre o racismo, o preconceito e a
discriminação mostram que o privilégio auferido a algumas pessoas, a partir do fenótipo
branco, tornam o percurso escolar da pessoa negra, preta ou parda, como no caso da
participante/informante, mais tortuoso. Como ela bem salientou, “na Universidade Y foi
muito difícil para mim e para a Amanda.” ... “Só não foi pior porque tenho um domínio
muito bom em inglês...”.
Após concluir o mestrado, ela retornou à Cidade E, reassumiu o seu trabalho
como docente na Universidade X e poucos anos depois ingressou no doutorado, como
aluna especial de uma disciplina, em um programa de pós-graduação. Nessa, a sua
atuação em sala de aula foi semelhante àquela do mestrado, “na disciplina que cursei,
como aluna especial, falava muito pouco em sala de aula”, o que, evidentemente,
motivou o professor, posteriormente seu orientador, a abordar a questão: “o Professor
Petrônio brigava comigo quando nos encontrávamos: ‘você não fala em sala de aula,
você tem que falar...’” ... “Eu dizia: ‘mas Professor, eu não sei o que eu falo, o
pessoal fala muito...’”.
É interessante que a participante/informante não pronunciou nada que denotasse
discriminação, por parte do referido professor, nem relatou sobre a ocorrência do seu
silêncio nas aulas, durante o curso primário, o secundário e a graduação. Assim,
constata-se que o mutismo, reproduzido na pós-graduação, parece ter emergido durante
o mestrado.
Também abordou seu desempenho acadêmico na disciplina que freqüentou no
doutorado, como aluna especial: “... creio que não me saí muito bem, que poderia ter
rendido mais” ... “A fiz... daquele jeito” ... “Porém estava com muitos trabalhos, não
tinha tempo para estudar, não estudava muito”. Essas justificativas são insustentáveis,
pois, mesmo não estudando o suficiente, poderia participar mais ativamente na classe.
Note-se, também, que ao responder ao Professor Petrônio quando ele abordava o seu
silêncio nas aulas, Ilma dizia não saber o que verbalizar, pois os colegas faziam muitos
pronunciamentos. Isso leva a crer que a entrevistada intimidava-se diante do professor e
dos demais colegas, devido à baixa auto-estima, tal qual ocorreu durante o mestrado.
Evenice Santos Chaves O racismo na Trajetória Escolar e Profissional... 275

Paralelamente à sua participação na disciplina, a entrevistada preparou-se para a


seleção de ingresso ao doutorado: “escrevi o projeto de pesquisa para o doutorado
quando cursava a referida disciplina” ... “Consegui terminar o projeto de pesquisa
durante a disciplina”. Submeteu-se à seleção e o seu projeto foi aprovado, embora o
encaminhasse com uma expectativa negativa: “quando foi aprovado, fiquei super feliz,
pois pensava que não iria ser aprovada, sempre achei que eu...”. Esse dado indica que
o sentimento de insegurança e a baixa auto-estima também estiveram presentes nessa
atividade preparatória, necessária para que se submetesse à seleção.
Após ingressar formalmente no doutorado, estagnou-se:
“... Fiquei um tempo sem fazer nada, até uma reunião, onde falei: ‘não estou
fazendo nada, nem lendo’” ... “Após aquela reunião, fiquei mais estimulada e
comecei a ler mais” ... “Comecei a preparar o projeto para enviar ao comitê de
ética na pesquisa”.
Embora os dados indiquem que uma reunião a mobilizou e a fez retomar os
estudos, seu ritmo de trabalho manteve-se lento: “No doutorado, estou indo muito,
muito devagar” ... “Não estou trabalhando apressadamente, nem fazendo as coisas
com constância”. Contudo, há indicativos de que, apesar da vagarosidade, retomou os
trabalhos vinculados ao doutorado: “Essa semana já comecei a coletar dados” ... “Já
sei como vou classificá-los” ... “Já estou trabalhando direitinho”.
Conclusivamente, as análises e as interpretações empreendidas indicam que o
racismo contra o negro fez parte do percurso escolar da participante/informante, ao
longo do curso secundário, do colegial, do superior e da pós-graduação. No ginásio e no
científico, o racismo dirigido à entrevistada manifestou-se de forma indireta, através da
segregação entre colegas; na graduação, esse racismo explicitou-se da mesma maneira,
nos três anos iniciais do curso que freqüentou, e no rótulo de ‘irmãs’, auferido ao
conjunto de estudantes negras, pelas não negras; na pós-graduação, durante o mestrado,
o racismo materializou-se em interações sociais, na indiferença dispensada por outros à
sua pessoa e, também, no título de ‘irmãs’, aplicado a Ilma e a Amanda, usado para
agrupá-las e diferenciá-las, devido às suas procedências: Região Tropical I, socialmente
desvalorizada na cultura brasileira.
Além da pobreza e da diferenciação étnica, que constituem a dimensão estrutural
do racismo contra o negro, ocorreu outro incidente na sua trajetória escolar, durante a
Evenice Santos Chaves O racismo na Trajetória Escolar e Profissional... 276

adolescência, mas ela permaneceu freqüentando a escola e suplantando adversidades,


como será visto a seguir.

7.2.5. Superando adversidades, tendo em vista concluir o ciclo de estudos


Os dados já expostos exibem que a violência estrutural do racismo contra o
negro expressou-se na pobreza e na diferenciação étnica, presentes na família de origem
de Ilma, durante a sua infância e adolescência. Embora pobres, a renda familiar,
proveniente do trabalho do seu pai e da atividade informal desenvolvida por sua mãe
durante alguns anos, garantiu-lhe um percurso escolar sem que fosse necessário engajar-
se em uma atividade de trabalho remunerado, enquanto cursou o ciclo primário,
secundário, colegial e o terceiro grau.
Entretanto, há duas situações adversas em sua trajetória escolar: uma referente à
distância entre colégios que freqüentou durante o ginásio e o científico e a sua casa e
outra relativa à ruptura em sua rotina cotidiana, causada pela morte da mãe.
A primeira adversidade diz respeito à ausência de recursos financeiros para
custear o transporte de casa para a escola e vice-versa. Durante o ginásio, Ilma estudou
na Escola 3, situada distante dos locais onde residiu, o que ocasionalmente exigia o seu
esforço físico para continuar freqüentando a escola: “acho que sempre foi muito difícil,
porque morávamos lá no Bairro 10, eu estudava na Escola 3... e, às vezes..., íamos de
ônibus e voltávamos a pé do... Bairro 11 para o Bairro 10”. Essa situação se repetiu no
período em que cursou o científico: “depois, quando estudei na Escola 4, íamos e
voltávamos a pé” ... “Nunca peguei ônibus, andava pra caramba”.
O falecimento precoce da sua genitora constituiu a segunda situação adversa, “...
a minha mãe morreu cedo, quando eu tinha doze anos” ... “O papai nos criou
sozinho”. Esses eventos geraram uma ruptura no estilo de vida da família e os encargos
domésticos que a entrevistada assumiu, aos doze anos de idade, certamente retiraram
horas que deveriam ser dedicadas às tarefas escolares e ao lazer.
O infortúnio da morte criou novos fatores que condicionaram a relação entre a
necessidade de estudar e o modo de fazê-lo. Ilma precisou organizar uma forma de
dividir o tempo em que estava no lar, objetivando ocupá-lo com a realização das tarefas
de casa e das escolares.
A partir desse período, outra mudança ocorreu, posto que não contava com o
Evenice Santos Chaves O racismo na Trajetória Escolar e Profissional... 277

monitoramento nos estudos, atividade anteriormente realizada pela sua mãe. Isso
requereu que aprendesse a estudar sozinha, porém o seu desempenho acadêmico foi
afetado: “após o falecimento da minha mãe, acho que caí um pouco nos estudos,
porque não tinha mais aquela pessoa que me acompanhava”.
Malgrado a nova situação, ela foi capaz de concluir o secundário e o colegial, os
quais transcorreram em um momento crítico do seu curso de vida, sem inscrever na sua
história escolar a experiência da reprovação.

7.2.6. A trajetória profissional


Ao terminar o curso de terceiro grau, profissionalizante, a entrevistada começou
a trabalhar em uma entidade privada. Porém a abandonou, porque ocorreram mudanças
em sua vida, identificáveis no seguinte dado: “dois anos depois de... formada, casei e
fui morar na Cidade B”.
A troca de cidade redundou no desemprego, “quando casei não tinha nada,
também perdi meus rendimentos” ... “Também não consegui logo um emprego na
Cidade B...”, e, ainda, outras perdas profissionais: “... lá eu não tinha os amigos da
profissão” ... “Perdi aquele contato com a profissão e com minha área de estudo”.
Na Cidade B, depois de um período sem trabalho, Ilma atuou em uma instituição
escolar: “... arranjei um emprego numa escolinha de educação especial...”. Também
investiu em concursos públicos, objetivando exercer a função de docente. Na primeira
tentativa, não galgou aprovação: “na Cidade B, fiz um concurso na Universidade XY e
não passei” ... “Tive uma crise de ansiedade, deu-me um branco e não consegui fazer a
prova...”. Após algum tempo, submeteu-se a outro, para a docência do segundo grau, e
obteve resultado compensador: “como docente, comecei dando aulas na... Cidade B,
onde prestei um concurso para ser professora de nível médio do Estado” ... “Foi a
minha primeira experiência com docência, ministrando duas disciplinas, em um curso
de nível médio...”.
A participante/informante avaliou o desempenho dessa função como gratificante,
“gostei de fazê-lo, apesar de tê-lo feito por pouco tempo, durante seis meses, porque
retornei à Cidade E”, e como relevante, do ponto de vista experiencial: “considero
como uma boa experiência ter sido docente em uma escola estadual muito grande,
referência na Cidade B”.
Evenice Santos Chaves O racismo na Trajetória Escolar e Profissional... 278

Embora aprovada em concurso público, trabalhando em uma escola, permaneceu


um sentimento de isolamento profissional, o qual contribuiu para o término do seu
casamento: “não havia profissionais da minha área na Cidade B” ... “Quando casei,
achei que havia perdido muita coisa” ... “Por isso, acho que meu casamento não
durou” ... “Passei três anos casada”.
Ilma voltou à Cidade E após a separação, retomando o contato com profissionais
da sua área. Também reiniciou a atividade de trabalho, na entidade privada onde
anteriormente havia atuado e no exercício docente, porém no ensino de terceiro grau:
“... após o meu retorno para a Cidade E, dei aulas na Instituição T, de Ensino
Superior, se não me engano por seis meses” ... “... Auxiliava uma professora em duas
disciplinas”. Desligou-se da docência e da instituição onde ensinava, por causa do
acolhimento que a mesma dispensava às reclamações dos estudantes: “dar aulas na
Instituição T não foi uma boa experiência, não gostei” ... “Não gostei muito de dar
aulas na Instituição T, porque... o aluno... mandava muito..., tinha muito poder naquela
instituição” ... “O aluno mandar me incomodou, eu saí...”.
Esses dados sugerem o quanto a sua experiência escolar, como aluna de
graduação em uma instituição pública, influenciou na construção pessoal de um quadro
de referência calcado na concepção da maior simetria de poder entre a administração, os
docentes e os estudantes, no contexto universitário. Nesse, há maior eqüidade, no que
diz respeito à voz e ao voto dos professores e dos alunos, há relações sociais mais
respeitosas e menos conflitos entre docentes e discentes, quando se trata de discussões e
de tomada de decisões sobre processos reguladores da vida acadêmica.
Ao retornar à Cidade E, a participante/informante desenvolveu outra atividade,
não remunerada, realizando ações vinculadas à militância profissional, em uma entidade
de classe:
“Entrei na Agência I porque me convidaram para fazer parte dela” ... “Fui
para a Agência I, mas achava que não entendia nada” ... “Achava-me uma
burra, uma completa incompetente para tudo” ... “Sempre com o apoio de
Nilson, dizendo: ‘tu podes, tu vai conseguir’” ... “Fiquei muito tempo naquela
Agência, militando profissionalmente, onde desempenhei várias funções”.
Como expõe o primeiro dado descrito, a sua militância foi induzida por outros.
Além disso, dois dos episódios citados também vislumbram que a entrevistada construiu
Evenice Santos Chaves O racismo na Trajetória Escolar e Profissional... 279

e incorporou uma negativa imagem de si mesma, expressa na auto-atribuição de uma


incapacidade intelectual.
A noção de si mesmo é um processo permanente de construção de significados
pessoais, de auto-atribuição de características e de visão de mundo, a partir dos quais a
pessoa define quem ela é, em diferentes momentos do seu ciclo de vida já vivido. Tal
noção organiza-se e se reordena no mundo cultural, perpassado pelas histórias social e
individual, sendo também delimitada pelas situações configuradoras das vivências
pessoais.
Então, a noção de si mesmo envolve, de forma inter-relacionada e simultânea, a
inserção do ser humano no mundo sócio-cultural; as relações que alguém estabelece
com outros e com eventos que ocorrem no mundo; as interações, barreiras e fronteiras
sociais, as quais perpassam os modos do sujeito atuar no mundo social e relacional; a
dimensão da afetividade, à medida que o sentimento de si mesmo estrutura-se no âmbito
da qualificação das experiências e a dimensão cognitiva, na qual estão envolvidos os
processos reflexivos, produtores de significados sociais e de sentidos.
Para DeGrandpre (2000), uma das funções do significado é a de produzir outros
significados. O autor enfatiza que diferentes situações e vivências pessoais alteram as
formas da pessoa entender e significar as suas experiências, o que permite a aquisição
de novos significados. Esse processo, continua o estudioso, abrange atividades e
experiências que se prolongaram em um curso de vida, promoveram outras vivências,
outras capacidades comportamentais e novas compreensões.
Salienta-se que no momento da sua militância profissional, a vergonha que Ilma
nutria, devido à sua posição social, não mais se retro-alimentava, pois, com a conclusão
do ciclo formal de estudos e ocupações decorrentes, já estava em curso um processo de
mobilidade social vertical. A sua condição cultural de negra, entretanto, permanecia,
bem como as simbolizações de situações de inclusão social excludente, já vivenciadas.
Essas, dinamicamente, transformaram-se a partir de novas interações sociais das quais
fez parte, resultando na elaboração de uma desqualificadora visão de si mesma.
Em outras palavras, os elementos constitutivos do processo de (re)construção do
si mesmo balizaram movimentos de mudança, decorrentes de inserções e de posições
sociais anteriormente ocupadas pela participante/informante. Conjetura-se que, com a
modificação do seu patamar sócio-econômico e ocupação de novos espaços sociais, o
Evenice Santos Chaves O racismo na Trajetória Escolar e Profissional... 280

seu anterior sentimento de vergonha, gerado pela sua condição social, deu lugar ao
sentimento de incapacidade intelectual, portanto, de inferioridade.
Cinco anos depois de afastar-se da Instituição T, uma universidade pública abriu
concurso, todavia, devido à baixa auto-estima, a entrevistada não se submeteu a essa
seleção: “em um dado momento, houve um concurso para a Disciplina Beta, na
Universidade X, e eu não fiz porque achava que não era capaz” ... “Imagina: ser
professora da Universidade X, eu não tinha essa capacidade!”.
Novamente, uma depreciativa concepção de si mesma foi o impedimento para
que enfrentasse o concurso e a conseqüente situação de disputa, na qual competiria com
outras pessoas. Posteriormente, ao ler a publicação do resultado desse concurso, ou seja,
a divulgação do nome dos aprovados, arrependeu-se de não ter participado: “eu pensei:
‘poxa, mas a Adenir nem era da área, ela estudou só para o concurso e passou. Eu
deveria ter feito’” ... “Também eu achava que era inferior!”.
A elaboração do seu sentimento de inferioridade não ocorreu no vazio, mas,
como afirma Silva (2003), o outro é peça capital no processo de constituição do si
mesmo. Para a citada autora, o si mesmo, constitutivo da subjetividade, conserva
diferentes vozes, de diversas pessoas, bem como os lugares interditados ou possíveis de
serem ocupados por alguém. Com relação à entrevistada, parda, os discursos e as
práticas sociais, próprios da cultura brasileira racista, que maculam a imagem social do
grupo étnico negro, juntamente com a sua condição de vítima da violência estrutural do
racismo e de discriminações raciais, confiscaram a possibilidade de ver-se como apta a
ocupar um lugar e posição social destinados, hegemonicamente, aos brancos.
Ilma, ao defrontar-se com a desqualificação do negro, presente na nossa cultura
e nas relações sociais discriminadoras, as quais participaram do seu percurso de vida,
elaborou uma significação de si mesma como pessoa intelectualmente inferior, o que
conduz à afirmação de que era portadora de uma baixa auto-estima. Para Rey (2005), a
auto-estima é uma configuração de sentidos que o sujeito produz em relação a si
mesmo, no âmbito das suas experiências concretas. Assegura que nelas cada sujeito é
um participante ativo e sente algo em cada uma das suas vivências, que acontecem em
diferentes espaços sociais.
Retomando o concurso que Ilma se negou a prestar, salienta-se que a aprovação
da Adenir, sem formação compatível com a área para a qual foi aprovada, assim como a
Evenice Santos Chaves O racismo na Trajetória Escolar e Profissional... 281

formação da entrevistada, consoante com tal área, foram dois condicionantes que a
mobilizaram a ingressar como professora substituta, na Universidade X. Um ano depois
prestou concurso, foi aprovada e, desde então faz parte do quadro efetivo de docentes da
citada universidade. Desse modo, retornou à docência no ensino superior, oito anos após
a breve experiência como professora de terceiro grau, na Instituição T.
É certo que a participante/informante enfrentou o concurso, “investi, estudando
muito... para submeter-me ao concurso na Universidade X”, contudo necessitou de
muito apoio do namorado: “o Nilson me incentivou para fazer o concurso na
Universidade X, me incentivou muito...” ... “Estudou comigo e...” ... “A aula prática,
eu dei para ele..., treinei com ele” ... “Nilson sempre me fez crescer muito, tanto
profissional quanto pessoalmente” ... “Nilson me deu essa levantada”.
Verifica-se que o apoio social não se restringiu à instigação verbal realizada por
Nilson, com o intuito de fortalecê-la para enfrentar a situação de concurso. Tanto é que
estudou com a entrevistada como se fosse submeter-se à seleção. Esse evento é
indicativo da insegurança da mesma, interpretação corroborada pelo seguinte dado:
“parece que eu estou sempre precisando de alguém que me incentive e me impulsione”.
O seu namorado, ao concretizar um apoio social, suplementou a sua insegurança,
forjando uma participação como estudante dos conteúdos do concurso, o que não
respondia às suas necessidades, mas às dela. Já na década de 1990, Beck e Freeman
(1993) constataram, no exercício da atividade clínica, que há pessoas cujas estratégias
empregadas em relacionamentos interpessoais direcionam-se a outras que respondem de
modo protetor às suas necessidades de afeição e de apoio social.
Esses autores também concluíram que sujeitos fragilizados fogem de situações
que possam implicar em sofrimento, desenvolvem temores e crenças, os quais podem
gerar uma auto-imagem negativa. Neste caso em estudo, aspectos dessa modalidade de
auto-imagem aparecem, por exemplo: em conteúdos enunciadores do fracasso da
entrevistada quando se submeteu a um concurso público para docente, em uma
universidade pública na Cidade B, e não conseguiu fazer a prova; na fuga de um outro,
na Cidade E, por achar-se incompetente; na visão de si mesma como uma pessoa
inferior e nas crenças negativas sobre a própria capacidade de enfrentar situações para
as quais se julgava incompetente.
Em suma, muitas experiências sociais de Ilma, os significados sociais e os
Evenice Santos Chaves O racismo na Trajetória Escolar e Profissional... 282

sentidos que conferiu às mesmas, resultaram na elaboração de uma desqualificadora


concepção de si mesma, produtora de insegurança e da necessidade de amparar-se
naqueles que atuavam provendo proteção e suplementação às suas necessidades sociais
e psicológicas.
O padrão de insegurança também se fez presente no início do seu exercício
profissional docente, na Universidade X:
“Ao ingressar na Universidade X, tive o apoio de pessoas da área, com as quais
procurei me atualizar, tirar as dúvidas, discutir os conteúdos que elas
ministravam nas aulas...” ... “Os próprios professores foram muito solidários,
são muito solidários” ... “Ninguém nunca se negou a ajudar-me na
Universidade X, em nenhum de seus setores”.
Os apoios sociais, entretanto, não evitaram que Ilma enfrentasse obstáculos:
“Quando assumi a docência, na Universidade X, fui responsável por uma
disciplina prática” ... “Foi muito pesado..., dada a minha inexperiência como
professora” ... “Tive que estudar muito, conjuntamente com os alunos.”...
“Eram dez estudantes, com trabalhos diferentes e assuntos diversos, que deveria
analisar”.
É importante lembrar que, inicialmente, a participante/informante foi contratada
como professora substituta. Nessa condição, foi-lhe atribuída a responsabilidade de
ministrar aulas em uma disciplina prática, com dez estudantes desenvolvendo atividades
diversas. A nova situação, a sua insegurança, a reduzida experiência profissional e
docente concorreram para as suas dificuldades.
A dificuldade inicial da entrevistada também remete a um problema enfrentado
pelos cursos de graduação: tendo que oferecer todas as disciplinas semestrais, com a
finalidade de possibilitar a integralização curricular dos alunos, notadamente dos
concluintes, porém sem dispor de quadro docente para tal, sem autorização para realizar
concurso público com a finalidade de preencher vagas e dispondo apenas de uma
alternativa de natureza emergencial, contratam-se professores substitutos.
Os novos docentes, como em uma operação ‘tapa-buracos’, ministram aulas nas
disciplinas para as quais faltam professores do quadro. Muitos deles, como foi o caso de
Ilma, enfrentam situações embaraçosas, deflagradas pela reduzida ou inexistente prática
na atividade docente e por uma qualificação profissional conferida apenas pela
Evenice Santos Chaves O racismo na Trajetória Escolar e Profissional... 283

formação na graduação. Os repertórios de entrada, então, convertem-se em um quesito


desfavorável à segurança necessária para o desempenho da tarefa. Em conseqüência,
surgem dificuldades ao longo da atuação profissional, principalmente quando ministram
disciplinas que exigem do professor um nível de competência mais ampliado, em
termos teórico-prático e, também, maior experiência com o cotidiano da profissão, em
diferentes ambientes e instituições sociais.
Durante o primeiro ano de exercício docente, a disposição da entrevistada para
superar limites pessoais contribuiu no desenvolvimento de maior domínio teórico-
prático, para se firmar como docente na Universidade X e sentir-se profissionalmente
respeitada. Tanto que, após o ano inicial de trabalho, seu desempenho foi contemplado,
através de distinção aferida por uma turma de graduandos: “já fui homenageada por
uma turma de formandos, em 1996 ou 1997, o que me fez muito bem”.
O aludido acontecimento é mais um argumento compatível com a visão, já
explicitada, de que as dificuldades iniciais enfrentadas pela participante/informante, na
Universidade X, assentaram-se, em muito, na relação entre a sua formação para a
docência e a posição de ‘professora temporária’ que lhe foi delegada. Mas, novas
aprendizagens, ocorridas ao longo do tempo, implicaram na maior confiança em si
mesma e na ampliação do seu universo de trabalho, que passou a englobar o ensino, a
extensão universitária e a atividade administrativa.
Com relação à atividade de ensino, Ilma descreveu o início do seu percurso de
forma processual: “durante o primeiro ano foi bastante difícil” ... “No segundo, já
estava mais tranqüila e ministrei outras disciplinas, além da inicial” ... “Depois...,
fiquei só com a disciplina prática...”. Referindo-se à mesma, coincidentemente a
primeira que atuou como regente em uma turma, a participante/informante a qualificou
como propiciadora de uma agradável tarefa: “foi uma experiência muito boa, pois, ao
mesmo tempo, atuava e ajudava na formação dos alunos”.
Expandindo a sua atuação, inseriu-se em um programa de extensão universitária:
“participei de um projeto de extensão no Setor Ponto Um ...” ... “Desenvolvia a minha
atividade prática e também orientava os meus alunos em suas atividades...”. Em que
pese apenas a presença de tais dados sobre a sua participação no programa, ressalva-se
que a entrevistada não citou a ocorrência de dificuldades pessoais no desempenho das
funções docentes exigidas pela atividade.
Evenice Santos Chaves O racismo na Trajetória Escolar e Profissional... 284

A ampliação dos seus afazeres acadêmicos também incluiu a participação no


âmbito administrativo. Sem especificar cargo ou função, destacou: “...atuei na esfera
administrativa ...”, permanecendo nesse setor de atividades: “até hoje sou enfronhada
nessas coisas...”. Contudo, não explicitou que tipo de trabalho desenvolvia.
Sumarizando o seu percurso como professora em uma instituição pública de
ensino superior, Ilma focalizou o seu desenvolvimento na profissão e o avaliou:
“Entrei na docência, na Universidade X, como sempre, com uma certa
insegurança...” ... “Aos poucos, enquanto docente, fui obtendo maior confiança
no meu trabalho” ... “De lá para cá as coisas só foram melhorando, fui me
sentindo mais segura”.
Relações interpessoais e interações sociais são configuradoras de contextos, nos
quais se articulam as atividades de trabalho realizadas por qualquer docente. Assim, no
convívio cotidiano, grupos de professores e de alunos valoram a qualidade das tarefas
realizadas por membros das diferentes categorias ou por um representante de cada uma
delas. Considerando este caso em estudo, não há dados sobre a avaliação atribuída por
docentes e discentes aos afazeres profissionais efetivados por Ilma. Porém, um conteúdo
é indicativo de como a mesma articulou um sentimento sobre o grau de respeitabilidade
profissional, dispensado à sua pessoa por aqueles com quem constrói o labor diário:
“sinto-me mais reconhecida... pelos colegas e pelos alunos”.
Além de imiscuir-se no ensino, na extensão e na administração universitária, a
entrevistada relatou que militava na Associação de Professores da Universidade X:
“estou sempre envolvida com o movimento docente, acompanhando de perto e
participando dos eventos e de comissões”.
Retomando o seu ano inicial de trabalho na instituição universitária pública, o
convívio com colegas foi outro ponto de dificuldade:
“Na Universidade X, após ser contratada, foi bastante difícil conviver com as
diferenças, na situação de trabalho” ... “Iniciei um convívio com muitas
diferenças, muitas pessoas diferentes” ... “Até então, eu só convivia com o
pessoal de uma área”.
Essa questão é histórica, no contexto científico. Ao reproduzir, em muitos
momentos, a mesma intolerância observada em outras esferas da sociedade, a academia
mantém, em muitos recintos, a segregação entre pessoas que defendem diferentes
Evenice Santos Chaves O racismo na Trajetória Escolar e Profissional... 285

pontos de vista teórico e/ou metodológico, cuja implicação é, em várias ocasiões, o


desrespeito à expressão das diferenças, a consolidação e a defesa de hegemonias. Logo,
grupos diversos defendem várias perspectivas, trabalham para construir e manter a
preponderância de um enfoque sobre os demais, ocasionando a emergência de conflitos
de interesses e distanciamentos entre pessoas e grupos.
A dificuldade apontada por Ilma, nos dados antecedentemente mencionados,
insere-se nessa questão acadêmica, pois foi constituída no seio de grupos de professores
com interesses antagônicos e ecoou na sua forma de enfrentar as diferenças. Essa
interpretação ancora-se no dado indicativo do quão foi difícil para a mesma conviver
com pessoas que faziam parte de grupos com identidade teórica e metodológica
diferente da sua, na nova situação de trabalho. Ressalva-se que seu relacionamento
anterior, na Universidade X e no outro espaço de trabalho na Cidade E, incluía apenas
professores e profissionais com os quais compartilhava a mesma perspectiva teórico-
metodológica. Tal restrição, portanto, não a proveu de flexibilidade para defrontar-se,
no dia-a-dia, com formas de pensar divergentes daquela que fazia parte da sua história
acadêmica e profissional.
Não obstante os dados precedentes, outros demonstram que ao ingressar na nova
situação de trabalho, ela manteve um bom relacionamento com uma colega, o qual se
desdobrou em duradoura amizade: “desde o início nos afinamos, desde o início... e hoje
eu e a Aila somos super amigas”. Além disso, essa colega a auxiliou, de forma indireta
e direta: “a Aila também... serviu-me de modelo para algumas coisas e ajudou-me
bastante”. Outro dado interessante, diz respeito a um colega reputado pela entrevistada
como uma pessoa que a ajudou a firmar-se no novo local de trabalho: “o Adalberto foi
outro ponto de referência, pois era uma pessoa muito forte, muito determinada”.
A participante/informante descreveu como uma de suas características pessoais a
necessidade de estar perto de alguém que a incentivasse e impulsionasse, conforme já
destacado em outro ponto desta análise. Aila e Adalberto são mencionados como fontes
estimuladoras, embora os dados referentes à colega não especifiquem os aspectos da sua
conduta tomados como referência por Ilma. Com relação ao Adalberto, ela salientou sua
autodeterminação e vigor, provavelmente expressos através de seus posicionamentos e
participação ativa nos processos de tomada de decisão, requeridos pelas situações de
trabalho.
Evenice Santos Chaves O racismo na Trajetória Escolar e Profissional... 286

Simão (2004) afirma que o processo de construção do conhecimento toma lugar


no entrecruzamento entre o tema sobre o qual uma interação social ocorre, os próprios
interlocutores, que podem ser reais e presentes ou imaginários, e as ações de natureza
simbólica dos sujeitos envolvidos.
Considerando que a entrevistada participava de situações, no ambiente de
trabalho, que envolviam temas comuns aos docentes, interlocuções entre os mesmos,
bem como a expressão de diferentes ações, é pertinente afirmar que Ilma construiu um
conhecimento sobre habilidades e características pessoais relevantes para o convívio
social, apropriando-se, inclusive, de algumas que contribuíram para promover uma
modificação do seu jeito de ser: antes se subordinava nas relações interpessoais,
“sempre fui muito submissa e muito pacata, muito passiva”, depois se tornou
reivindicadora “... acho que comecei a mudar depois que entrei como docente na
Universidade X, pois comecei a ficar muito, muito prepotente”. O que denominou de
prepotência, no entanto, significava apenas tornar-se questionadora e reagir de forma
afirmativa em interações sociais, como indicam dados relativos ao seu relacionamento
com o namorado:
“Comecei a cobrar para ele melhorar: sair daquela vidinha que tinha e daquele
trabalho, onde está até hoje” ... “... Eu dizia que ele era capacho de todo
mundo” ... “Comecei a me impor, porque até então era muito submissa” ...
“Depois que estava na Universidade X, como docente, achei que tinha
condições de encontrar outras pessoas, tinha muita gente interessante por aí”.
Outro episódio indica que ela também desenvolveu a capacidade de opor-se e
confrontar-se com outra pessoa, na situação de trabalho: “outro dia, na Universidade X,
em uma reunião, briguei com uma colega” ... “Gritamos uma com a outra” ... “Depois
me arrependi: ‘ai meu Deus!, agora não dá mais para voltar atrás...’”.
Simão (2004) expõe que, no processo de construção do conhecimento advindo
das interações sociais, participam os conteúdos expressos na situação dialógica e o
significado afetivo/cognitivo que cada um dos envolvidos constrói acerca daquela
realidade. A estudiosa entende a realidade como uma versão pessoal, contextualizada na
cultura e na temporalidade, cujos constituintes são os outros, o si mesmo, a relação eu-
outro e os objetos que são significativos para cada sujeito em particular.
Os últimos dados descritos evidenciam um processo inerente à construção de um
Evenice Santos Chaves O racismo na Trajetória Escolar e Profissional... 287

conhecimento, pela entrevistada, sobre os episódios referentes à briga. Esses contêm


especificidades relativas à construção do conhecimento nas interações sociais, conforme
apontados por Simão (2004): o contexto de trabalho que, na situação específica, foi uma
reunião; a relação eu-outro que, na situação dialógica, não foi amistosa; o significado
afetivo/cognitivo da interação, construído pela entrevistada e expresso em seu
arrependimento. Esse, emergiu da auto-reflexão sobre a sua ação pessoal na situação
interativa e, concomitantemente, no sentimento de pesar por ter brigado. Então, no
processo de construção do conhecimento, a participante/informante estabeleceu um
novo significado pessoal para a briga, mas é interessante destacar que também
incorporou ao seu repertório o comportamento combativo, a defesa de suas idéias e
vivenciou emoções.
Além das oportunidades já citadas que a Universidade X lhe ofereceu, outro
ponto de virada foi o desenvolvimento de novas amizades: “na Universidade X, as
minhas relações de amizade cresceram bastante” ... “Conheci bastantes pessoas”.
Destarte, a ampliação do círculo de relacionamentos interpessoais, oportunizado
pela instituição escolar de ensino superior que a participante/informante passou a
freqüentar, como funcionária pública, é mais um ganho pessoal. A posição de docente a
colocou em contato com muitas pessoas daquela comunidade escolar e, com algumas
delas, desenvolveu vínculos de amizade, diferentemente do que ocorreu quando era
estudante de graduação. Lembra-se que, nessa condição, estabeleceu uma forte amizade
com uma colega negra durante os anos iniciais da sua graduação e com quatro outras,
brancas, apenas nos momentos finais dessa etapa escolar.
Afora os ganhos já aludidos, Ilma reputa o seu trabalho como jubiloso, no que
tange ao ambiente social e à atividade de ensino:
“Eu gosto, eu gosto do meio universitário” ... “A minha maior satisfação na
profissão é o contato com os alunos” ... “Gosto de dar aulas, gosto de estar em
sala de aula...” ... “Gosto de orientar trabalho de discentes, acho muito legal
fazer isso, vê-los crescendo”.
Apesar disso, fez referência às insuficiências institucionais enquanto fontes de
desprazer. Nota-se que aquelas focalizadas não diferem das elencadas por docentes da
universidade pública brasileira e resultam da péssima política de investimentos públicos
na área da educação:
Evenice Santos Chaves O racismo na Trajetória Escolar e Profissional... 288

“As insatisfações com a profissão são as condições materiais” ... “Temos pouco
espaço para trabalharmos, poucos equipamentos, não temos sala para os
professores” ... “Faltam salas para a orientação de alunos”.
Agora, cita-se o motivo principal que levou a entrevistada a optar pela docência,
na Universidade X: “foi a questão financeira que me chamou, apesar do salário não ser
lá essas coisas” ... “O que me incentivou foi o salário, primeiro o salário, depois a
oportunidade de voltar a estudar conteúdos teóricos de uma dada área”.
Uma decisão individual é construída em processos existenciais e, ao mesmo
tempo, cada pessoa em particular é representativa de uma coletividade. Destacando-se
aquela formada pelo grupo étnico negro, histórica e socialmente discriminada no Brasil,
é imperativo destacar que a educação pode ser entendida por membros desse grupo
como um caminho para a superação das desigualdades sociais e raciais, ou seja, como
uma porta de acesso à mobilidade social ascendente, processo que aconteceu na
trajetória de vida da participante/informante.
Munanga (2004) aborda que proposições para a superação das desigualdades
entre o branco e o negro, no Brasil, foram difundidas por movimentos negros, entre as
décadas de 1930 e de 1970, da seguinte forma: a Frente Negra, criada em 1931, e outros
desses movimentos que emergiram e submergiram entre os anos de 1945 e 1970,
buscaram construir uma outra imagem para o negro, sedimentada naquela difundida
pela ideologia da democracia racial. Conforme o pesquisador, o discurso ideológico
desse enfoque propunha que, para ser aceito pelo branco, o negro deveria modificar-se,
deixar de ser ‘promíscuo’, ‘autodestrutivo’, ‘preguiçoso’, engajar-se na educação formal
e absorver o modelo da branquitude.
Com essa perspectiva, continua Munanga (2004), parte dos movimentos negros
desenvolveu ações, englobando o incentivo à educação, a incorporação de um ‘bom
comportamento’, a propaganda de produtos para alisar os cabelos crespos e a rejeição a
qualquer manifestação cultural dos áfricos, considerados como culturalmente inferiores.
A noção da educação como via de superação da rejeição ao negro parece ter sido
internalizada pelos pais da participante/informante, os quais não hesitaram em valorizá-
la e em investirem na escolaridade dos filhos. Supõe-se que a entrevistada apropriou-se
dessa perspectiva, o que é sugerido, até aqui, pela sua continuidade nos estudos e
ausência de qualquer relato sobre a influência da cultura africana em seu estilo de vida.
Evenice Santos Chaves O racismo na Trajetória Escolar e Profissional... 289

Em síntese, constata-se que a Universidade X, como local de trabalho de Ilma,


configura-se enquanto um contexto de desenvolvimento, ao criar situações que atuaram
como condicionantes para mudanças verificadas em vários aspectos do seu cotidiano, do
seu comportamento e da sua auto-imagem. A ruptura com o anterior modo de vida ainda
proporcionou a realização de um desejo, que surgiu após a sua separação: “queria ter a
minha casa, cuidar da minha própria casa, ter meu emprego, estar como estou hoje...”.

7.2.7. Qual o olhar de Ilma sobre si mesma?


Ilma autocaracterizou-se positivamente, em termos de ordenação das atividades
que estão sobre a sua responsabilidade, inclusive no trabalho: “quando tenho algo a
fazer, me organizo, faço por partes, planejo, antecipo.” ... “Sou sistemática.” ... “Por
outro lado, quando não dá certo o que organizo e planejo, fico... muito irritada,
aborrecida..., meio obsessiva”, ressaltando que essa característica pessoal lhe concede
ganhos, “ser organizada traz-me certas vantagens”, porém não as especificou.
De outra forma, conteúdos sobre a auto-imagem que elaborou são indicativos de
uma referência pessoal sedimentada na menos valia:
“Na infância, na adolescência, em boa parte da minha fase adulta, quando eu
estava casada, sempre... me senti inferior.” ... “Achava que todos eram
superiores a mim...” ... “Na Cidade A, me senti intelectualmente inferior,
porque eles se julgam melhores em muitas coisas, em tudo”.
No tocante às relações interpessoais, sua subordinação às pessoas é identificável
nos seguintes dados: “sempre fui muito medrosa..., muito medrosa mesmo, tinha medo
de todo mundo” ... “Antigamente, eu tinha muito medo das pessoas...” ... “Também
sempre tive essa história de andar atrás de namorado”.
Como a visão de si mesmo é sempre um processo em construção, a inserção da
entrevistada em outros espaços sócio-institucionais ampliou os seus relacionamentos
sociais e novas vivências provocaram mudanças no modo de postar-se diante das
pessoas, conforme indicam os seguintes dados: “comecei... a ficar mais agressiva e
irritada quando estava na Agência I” ... “Durante algum tempo, na Universidade X...,
de vez em quando ainda era muito explosiva”. A participante/informante, entretanto,
ressaltou: “não fui irritada e agressiva durante toda a minha vida...”. Também
justificou que o seu novo modo aguerrido de relacionar-se decorria de um limite
Evenice Santos Chaves O racismo na Trajetória Escolar e Profissional... 290

pessoal, pois “às vezes, a minha inabilidade para lidar com as pessoas me fazia ser
agressiva”.
Quanto ao trabalho na universidade, nota-se que o exercício docente implicou
em muitas convivências: “como docente na Universidade X comecei a conviver com a
diversidade”. Isso contribuiu para que superasse a incompetência em relacionar-se com
outros, cujas ações e pontos de vista divergiam do seu.
“Iniciei um convívio com as diferenças profissionais e fui aprendendo...,
adquirindo outras habilidades” ... “Enquanto professora, na Universidade X,
comecei a entender mais as pessoas” ... “Adquiri mais capacidade para lidar
com as pessoas, tornei-me mais tolerante...” ... “Estou bem melhor, muito
mais... tranqüila... no meu relacionamento com as pessoas, no meu local de
trabalho”.
Observa-se que a reconstrução de aspectos da visão de si mesma incorporou a
tolerância, a habilidade para compreender a perspectiva de outros e a maior serenidade
nas relações interpessoais. Outras aquisições pessoais tomaram lugar, todas endereçadas
à superação do sentimento de inferioridade que a acompanhou, em muitos momentos e
situações:
“Como docente na Universidade X comecei a me valorizar como pessoa...” ...
“Aos poucos, enquanto docente, fui obtendo maior confiança no meu trabalho”
... “Fui crescendo aos poucos... amadurecendo, sentindo-me mais segura com
relação a tudo...”.
Verifica-se que a presença do outro na (re)construção do si mesmo foi constante,
embora, em diferentes situações, esse outro a acolhesse, ou a rejeitasse, ou estabelecesse
barreiras e fronteiras nas interações sociais. Tudo isso promoveu atualizações na visão
da entrevistada sobre a sua pessoa, ampliando o foco do conhecimento sobre a sua
singularidade e, em decorrência, alterando o seu processo de desenvolvimento. Esse,
como os dados demonstram, é dinâmico, graças às relações eu-outro, concretizadas nos
acontecimentos situados em diferentes tempos, espaços e situações sociais.

7.2.8. Qual o olhar de Ilma sobre o papel do racismo contra o negro em sua
vida?
Como algumas análises anteriores salientaram, o racismo contra o negro, do qual
Evenice Santos Chaves O racismo na Trajetória Escolar e Profissional... 291

a entrevistada foi objeto em diferentes momentos do seu curso de vida, permaneceu


invisível para a mesma. Por essa razão, jamais se percebeu como foco de discriminação
racial, atribuindo à desigualdade social aquelas situações de segregação pelas quais
passou: “eu era sempre aquela moreninha bonitinha, mas era pobre...”.
Desse modo, significou a discriminação racial como discriminação social, porém
a invisibilidade do racismo não impediu que o mesmo adquirisse para Ilma um sentido,
pois assim demarcou a sua significação: “ajudou-me a criar um sentimento de
inferioridade” ... “Uma impressão de que todo mundo é melhor do que a gente”.
Outro aspecto a ser focalizado se refere às autodefinições cromáticas realizadas
pela participante/informante, ao longo da narrativa de vida que construiu neste estudo.
Em diferentes momentos, identificou-se ou como ‘morena’, ou como ‘moreninha’, ou
como ‘negra’ e essas denominações são indicativas da sua dificuldade em elaborar uma
identidade étnica como pertencente ao grupo social negro.
Munanga (2004) assinala que uma das conseqüências da mestiçagem brasileira,
biológica e cultural, foi o aniquilamento da identidade étnica dos grupos subjugados,
porque o ideal de embranquecimento bloqueou, em miscigenados com ascendência
negra, a construção da identidade como mestiço e como negro. O pesquisador, então,
afirma que ser mestiço coloca as pessoas enquadradas nessa categoria em uma situação
de pertencer/não pertencer à etnia negra, ser igual/diferente daqueles que a compõe.
Do ponto de vista da mestiçagem biológica, a aparência de Ilma a enquadra no
fenótipo pardo. Acrescenta-se que, do ponto de vista da mestiçagem cultural, ela é
produto do processo de embranquecimento, conforme evidenciado nos dados obtidos,
os quais não fazem referência a nenhum vestígio da influência da cultura negra em seu
processo de desenvolvimento. Não se pode esquecer da afirmação de Figueiredo (2002)
de que o embranquecimento desloca a pessoa da sua posição social e facilita o seu
reconhecimento social, ou seja, o legitima, porém a legitimidade adquirida decorre da
manipulação do outro, tendo em vista ofuscar a condição de se ser negro. Em outras
palavras, transforma-o no ‘negro de alma branca’, ‘no negro que é branco por dentro’.
Considerando as colocações de Munanga (2004), e aplicando-as à condição de
mestiça da entrevistada, vê-se que a sua dificuldade em identificar-se como membro de
um grupo étnico é interposta pelo pertencer/não pertencer ao mundo dos negros; ser
igual/diferente do preto; pertencer/não pertencer ao universo branco.
Evenice Santos Chaves O racismo na Trajetória Escolar e Profissional... 292

Essas contradições estão refletidas em falas da participante/informante, como,


por exemplo, não se sentir discriminada pela cor, mas, ao mesmo tempo, sentir-se
inferior e isso está relacionado com a sua cor. Ademais, a aspiração de ascender
socialmente é compatível com a necessidade de superar o racismo, expresso na pobreza
e na discriminação, e construir uma vida digna, o que, sem dúvida, empurra o negro ao
embranquecimento.
O certo é que, para superar a desigualdade social e a racial, distanciou-se do
convívio com negros; realizou a façanha de completar o ciclo formal de estudos,
predominantemente cumprido pelos fenotipicamente brancos; engajou-se em uma
ocupação maciçamente destinada àqueles socialmente denominados de brancos; durante
muitos anos, travou uma luta para mascarar a textura dos cabelos e adotou um estilo de
vida calcado nos padrões da branquitude, sem qualquer resquício de aspectos da cultura
negra. Suas estratégias, no entanto, não impediram que o racismo contra o negro, do
qual foi vítima sem ‘enxergar’, fizesse parte do seu cotidiano, contribuísse para que
desenvolvesse um sentimento de inferioridade e demarcasse uma luta pessoal para
superar a crise de identidade étnica: “desde criança, nunca gostei do meu cabelo” ...
“Até hoje eu não gosto, mas tudo bem” ... “Antes eu o alisava”... “Faz pouco tempo
que deixei de fazê-lo e o deixei ficar encaracolado mesmo”.
Os conteúdos anteriores refletem que a entrevistada orientava-se esteticamente
pelo padrão da branquitude, porém iniciou um processo de enfrentamento à apropriação
dessa perversa estética. Note-se que o mascaramento de características fenotípicas é
socialmente engendrado, porém o sujeito, enquanto ator social e autor de si mesmo,
opera transformações nos sentidos subjetivos. Essa capacidade humana tem permitido a
Ilma re-elaborar o significado pessoal da sua identidade étnica, visível na decisão de
abrir mão de submeter o seu cabelo ao alisamento. Desse modo, um processo de re-
significação manifesta-se em um momento contraditório: não gostar do cabelo, contudo
preservar sua integridade e aparência, tal como é.

7.2.9. O projeto profissional de Ilma


Ao invés de abordar o projeto profissional, concentrou-se apenas no desejo de
construir uma identidade étnica como negra. Aliás, a necessidade de fazê-lo surgiu logo
após a sua separação: “acho que depois da separação comecei a... achar importante
Evenice Santos Chaves O racismo na Trajetória Escolar e Profissional... 293

assumir minha parte negra”. Os dados ausentes não permitem entender porque o
rompimento do vínculo matrimonial gerou essa necessidade de resolver o provável
conflito de identidade étnica. Nessa direção, buscou se fortalecer para solucionar o
conflito, mas esse movimento pessoal foi efêmero:
“Após a separação, quando retornei à Cidade E, fiz parte, por um tempo, da
Organização Estadual I de Luta Contra a Discriminação Racial, para assumir a
minha condição de afrodescendente” ... “Freqüentei durante um tempo” ...
“Contudo, tive muita dificuldade com uma pessoa daquela organização, porque
ela é uma pessoa muito difícil”... “Então me afastei”.
Embora justifique sua saída daquela organização, seu desligamento parece
refletir outra questão, qual seja: o quão embaraçoso era admitir-se como negra. Afora os
dados já focalizados em outros pontos deste trabalho, que indicam a sua dificuldade em
enxergar o racismo dirigido à sua pessoa, é plausível lançar mão de outros argumentos,
expostos em seguida, que debilitam a justificativa apresentada como motivo para o seu
abandono da militância em um movimento negro.
Em primeiro lugar, aquela organização era constituída por um conjunto de
pessoas, não só por aquela com a qual a participante/informante não conseguia manter
um razoável relacionamento. Assim, essa dificuldade, por si só, não explica a sua
desistência, pois o objetivo de fortalecer-se para incorporar a identidade negra, através
do seu engajamento na militância, poderia ser alcançado em outro movimento negro
instituído, que existia na Cidade E.
Se tais argumentações são admissíveis, então é pertinente interpretar que a sua
decisão em desligar-se da organização enraizava-se em um conflito socialmente
instigado: branquear-se para ser aceita no mundo dos brancos, mantendo uma distância
racial do grupo étnico negro, ou assumir-se como negra, enfrentando os conseqüentes
desafios, provenientes da assunção dessa condição étnica.
Para pesquisadores como Figueiredo (2002) e Munanga (2004), a coação é uma
das prescrições ideológicas da democracia racial para que os negros incorporem o
modelo da branquitude, quer no plano estético, quer no comportamental, quer no
intelectual, quer no quadro referencial de valores, todos intrincados. Por isso mesmo,
embora o conflito de Ilma frente à sua identidade étnica seja individual, produto dos
sentidos que elaborou em suas vivências, os seus conteúdos e significações são sociais,
Evenice Santos Chaves O racismo na Trajetória Escolar e Profissional... 294

histórica e culturalmente elaborados e incrustados na nossa sociedade. Essa afirmação é


compatível com a noção de conflito enquanto situação na qual pessoas em particular, ou
grupos sociais, defrontam-se com valores opostos ou diferentes interesses (Corrêa,
2003).
Sem realmente definir o seu pertencimento a um grupo étnico, provavelmente
com receio de ser estigmatizada, a singularidade de Ilma, no entanto, inundou-se de um
sentimento de inferioridade, justificado por ela, em muitos momentos, como decorrente
da sua condição social:
“Essa segregação, eu acho que... o meu sentimento de inferioridade perpassava
pela cor, mesmo que eu não me sentisse discriminada” ... “Eu acho que o
racismo incute essas coisas nas pessoas” ... “Acho que me ajudou a criar um
sentimento de inferioridade, uma auto-estima baixa...” ... “Eu acho que uma das
conseqüências do racismo é este sentimento de inferioridade que as pessoas, no
seu interior, acabam desenvolvendo” ... “Por isso que os negros brigam tanto
para não se sentirem inferiores”.
Portanto, não surpreende que o projeto de vida da entrevistada, naquele
momento, concentrava-se apenas na resolução do conflito de identidade étnica, de há
muito instalado e ainda não resolvido, “sempre achei que era importante fortalecer a
minha afrodescendência”, porém em vias de transformação: “acho que comecei a me
orgulhar de ser neta de negros, descendentes de escravos” ... “De um tempo para cá,
acho que comecei a assumir o encaracolado do meu cabelo”.
Tais conteúdos clarificam a elaboração teórica formulada por Rey (2005), de que
o passado e o presente estão entrelaçados na produção de sentidos subjetivos, ou seja,
na construção de significações pessoais, e comprometem-se com as ações de cada
sujeito, as quais tomam lugar em suas atividades cotidianas. Assim, as subjetividades,
social e individual, como também a elaboração de sentidos subjetivos, conformam o
ponto de confluência entre o social e o singular (Rey, 2004).
Nota-se, pois, que a sua inserção social como parda, em uma cultura racista, a
qual hierarquiza pessoas e grupos sociais a partir da cor, gerou a produção de
configurações de sentidos subjetivos fundamentados na inferioridade do negro. Mas,
como acentua Rey (2005), toda re-configuração procede da tensão entre os sentidos
anteriormente elaborados e aqueles que surgem em cada momento do presente.
Evenice Santos Chaves O racismo na Trajetória Escolar e Profissional... 295

A partir dessa elaboração teórica, supõe-se que a posição social ocupada pela
participante/informante no presente, seus relacionamentos interpessoais e os contextos
nos quais têm atuado mudaram a qualidade de suas interações sociais e, ao mesmo
tempo, o conhecimento que vem produzindo sobre si mesma, suas ações e sentimentos.
Tal re-articulação, social e psicológica, transforma, concomitante e qualitativamente, o
processo de produção de sentidos subjetivos, o qual ocorre no eixo da contradição entre
o antigo e o novo, ou, como colocou Rey (2005), na tensão gerada pelo rompimento e
pela criação, produtora de novos sentidos.
Então, sentidos anteriores reconstroem-se no presente, permitindo ao sujeito
também se projetar no futuro, pela via da imaginação e da criatividade. Planejar um
momento vindouro, divisando outro modo de posicionar-se etnicamente no mundo
social, é uma forma de Ilma buscar romper com um passado sem identidade étnica
definida ou significada, por ela mesma, como pessoa inferior. Ao arquitetar a assunção
da negritude, a participante/informante busca ultrapassar a tensão gerada por uma
configuração anterior de sentido, calcada naquilo que Munanga (2004) delimitou como
a situação de pertencer/não pertencer à etnia negra, porque se é mestiço. Nessa dinâmica
existencial, a entrevistada articula um novo sentido, ou seja, outra significação pessoal
para a sua condição de ser negra, começando a assumir-se como tal e a orgulhar-se da
origem africana.

7.3. A análise da lista de complementação de frases


A Tabela 8 apresenta a primeira categoria, intitulada “o racismo em diferentes
localidades”, seus itens e a complementação dos mesmos, pela participante/informante.
Os conteúdos adicionados ao primeiro item da categoria são indicativos de que a
participante/informante se colocou de forma impessoal frente ao fenômeno do racismo
no Brasil, como se esse fosse algo distante de si mesma e fizesse parte da vida daqueles
que, naturalmente, sofrem, o que sugere um modo de afastar-se da temática, através do
toque da impessoalidade. Esse dado é compatível com aquele mencionado por Bento
(2002b). Essa autora, ao trabalhar com mulheres sindicalizadas em um grupo de
discussão, observou que várias delas, ao abordarem o racismo, comportaram-se como se
o mesmo configurasse uma opressão que está na sociedade, contudo distante delas,
portanto sem abrangê-las.
Evenice Santos Chaves O racismo na Trajetória Escolar e Profissional... 296

Tabela 8. O racismo em diferentes localidades

Itens Conteúdos acrescentados

O racismo no Brasil... Causa muitos males a quem sofre.

O racismo na cidade onde É pouco.


resido...

O racismo no bairro onde Não observo.


resido...
Fonte: Lista de complementação de frases, preenchida pela participante/informante parda.

Os conteúdos agregados aos itens referentes ao racismo na cidade e no bairro


onde reside sugerem que o fenômeno é invisível para a participante/informante.
Considerando que o racismo contra o negro manifesta-se, pelo menos, em indicadores
que conformam a sua dimensão estrutural, parece inverossímil a afirmativa de que o
fenômeno é escasso na Cidade E e não observável em um dos seus bairros, localizado
na periferia. Nessa, constata-se a maior densidade da população negra, pobre, analfabeta
ou com baixa escolaridade, desempregada ou com ocupações manuais, baixa renda e
conseqüente restrição ao acesso a bens e serviços, inclusive aos públicos e de qualidade,
o que dá visibilidade ao fenômeno, pelo menos na sua dimensão estrutural.
A participante/informante sempre residiu na periferia, próxima daqueles que são
objeto do racismo e, possivelmente, ainda se defronta com a segregação do grupo étnico
negro. Isso cria condições para a visualização do fenômeno na Cidade E e no bairro
onde vive.
Além disso, o fato de ser socialmente categorizada como parda a coloca dentre
aquelas pessoas que são objeto do racismo, portanto, susceptíveis de identificá-lo.
Porém, é preciso lembrar que a ideologia da democracia racial penetra o nosso mundo
social e a noção de que os brasileiros são mestiços, e iguais, escamoteia a tomada de
consciência de grande parte dos mesmos sobre a presença da discriminação racial no
Brasil. Tanto que o torna invisível, inclusive para a participante/informante.
Outro aspecto que pode relacionar-se com a minimização da existência do
racismo na Cidade E, e no bairro, onde a participante/informante reside é a dificuldade
das pessoas em falar sobre o assunto. Bento (2002b) menciona que embora o peso do
Evenice Santos Chaves O racismo na Trajetória Escolar e Profissional... 297

racismo se manifeste, de diferentes formas, na existência de pessoas negras e brancas, é


corriqueiro que muitas delas se esquivem ou se esqueçam que são discriminadas ou
discriminadoras. Por isso, ressalta que, muitas vezes, é difícil para o negro assumir a
posição de discriminado.
Essa perspectiva teórica permite compreender como a participante/informante
reportou-se à presença do racismo na cidade e no bairro onde mora, minimizando a
ocorrência de um fenômeno social concreto. Possivelmente esquivando-se de enfrentar
a questão da presença do racismo, ela enveredou pela dimensão da incidência do mesmo
na Cidade E, sugerindo que, devido à escassez, não observa acontecimentos racistas nas
cercanias da sua casa.
A segunda categoria, denominada “o racismo em instituições sociais”, os itens
constitutivos e a complementação dos mesmos, pela participante/informante, são
apresentados na Tabela 9.

Tabela 9. O racismo em instituições sociais

Itens Conteúdos acrescentados

O racismo na minha família de Não era percebido.


origem...

O racismo na família que Não era percebido.


constituí...

O racismo nas escolas que Não percebi.


freqüentei...

O racismo na universidade... É sutil.

O racismo no local onde Também é sutil.


trabalho...

Fonte: Lista de complementação de frases, preenchida pela participante/informante parda.

Complementos adicionados aos itens relativos à família, de origem e constituída,


especificam que o racismo ‘não era percebido’ pelos membros que compunham os dois
contextos familiares. Isso é indicativo de que a participante/informante, descendente de
Evenice Santos Chaves O racismo na Trajetória Escolar e Profissional... 298

negros, foi criada em um ambiente familiar onde todos silenciavam sobre o racismo.
Provavelmente, esse silêncio colaborou para que o fenômeno se tornasse invisível para a
mesma, dificultando-lhe a sua identificação. A manutenção da ‘cegueira’ continuou
enquanto esteve casada, através do silêncio em torno do racismo imperou, e, como bem
salientou a participante/informante, ele ‘não era percebido’.
Conteúdos apostos aos itens sobre as instituições escolares que freqüentou e ao
seu local de trabalho são contraditórios. Referindo-se às escolas nas quais estudou,
aditou que não percebeu a presença do racismo, mas, de forma ambivalente, registrou
que o racismo ‘é sutil’ na universidade. Ora, ela freqüentou como aluna e ainda a
freqüenta, enquanto estudante de doutorado e docente. Como não perceber o racismo
nas escolas onde estudou e afirmar que ele manifesta-se com sutileza na universidade?
Tal contradição induz à interpretação de que a sutileza através da qual o racismo
permeia as relações sociais na escola não impediu que a participante/informante
captasse a ocorrência do fenômeno, pelo menos no ensino de terceiro grau, e isso
desbanca a sua afirmação de que não detectou a presença do racismo nas instituições
escolares onde transitou e transita. A partir dos dados e do paradoxo, entretanto, não é
possível afirmar se a sutileza do racismo foi captada pela mesma em comportamentos
discriminatórios dirigidos à sua pessoa ou a outros, e ela as observou.
O conteúdo acrescentado ao item sobre o racismo no seu local de trabalho, a
universidade, também corrobora a afirmativa de que apesar da sutileza do racismo que
perpassa as relações sociais, a participante/informante o identifica, com perspicácia.
A terceira categoria, os itens constitutivos e a complementação dos mesmos,
pela participante/informante, são descritos na Tabela 10.

Tabela 10. O racismo como fenômeno social segregador

Itens Conteúdos acrescentados

O racismo é... Muito ruim, pois leva à baixa auto-estima.

O racismo nas relações sociais Não é sentido.


em geral...

O racismo na minha vida... Não interferiu no meu crescimento profissional.


Fonte: Lista de complementação de frases, preenchida pela participante/informante parda.
Evenice Santos Chaves O racismo na Trajetória Escolar e Profissional... 299

Vê-se que ela também se colocou de forma impessoal ao qualificar, de modo


negativo, o racismo como algo ‘muito ruim’, dada a sua conseqüência no repertório da
pessoa que é objeto do fenômeno. Mais uma vez, como negra e, possivelmente, vítima
do racismo em algum momento da sua vida, distanciou-se daqueles que assim o foram
ou o são: postou-se como alguém à margem, livre de ser atingida pelo racismo e dos
seus efeitos sobre a auto-estima. De outro modo, deu um toque de pessoalidade ao
completar os itens sobre o racismo nas relações sociais, de um modo geral, e sobre o
racismo em sua existência. Mas é interessante ressalvar que os conteúdos acrescentados
indicam o nunca ter se sentido vítima do racismo nas relações sociais e que, em seu
percurso de vida, esse não interferiu no seu desenvolvimento profissional.
Verifica-se que a participante/informante recortou, com habilidade, apenas o seu
crescimento profissional para avaliar a influência do racismo em sua vida. Embora
assinalasse que não foi objeto de relações sociais racializadas, a ponto de interferirem
em seu desenvolvimento ocupacional, não se pode afirmar que em outras esferas da sua
vida ficou isenta de ser objeto do racismo. Adverte-se, contudo, que a sua seletividade
não implicou em afirmar ou denegar que, ao longo do seu ciclo de vida já vivido, foi
vítima da discriminação, da opressão e da humilhação, constitutivas do racismo contra o
negro.

7.4. A triangulação
Considerando-se as diferentes composições familiares da família de origem da
participante/informante, a comparação dos dados, oriundos da entrevista narrativa e do
questionário sócio-demográfico, indicou discrepâncias: 1) na entrevista narrativa,
relatou que durante a sua infância viveu no seio de uma família nuclear, porém sempre
havia a presença de tias em sua residência, para auxiliar a mãe nas tarefas domésticas.
No questionário sócio-demográfico, entretanto, registrou que, nesse mesmo período do
seu desenvolvimento, residia com os pais, irmãos e uma tia; 2) na entrevista narrativa,
ressaltou que uma cunhada residia na mesma casa em que morava, juntamente com o
pai e os irmãos, durante a sua juventude. Todavia, no questionário sócio-demográfico
omitiu a companheira de seu irmão da composição familiar; 3) na entrevista narrativa,
assinalou que em um momento da sua idade adulta retornou à casa paterna, contudo
excluiu essa informação, no questionário sócio-demográfico.
Evenice Santos Chaves O racismo na Trajetória Escolar e Profissional... 300

A incongruência, resultante da supressão de uma tia da composição da família de


origem, na entrevista narrativa, e a sua inclusão no questionário sócio-demográfico,
pode ter decorrido de um lapso de memória, e não de uma deliberada intenção,
porquanto alguns conteúdos da entrevista narrativa explicitaram a consideração e o
apreço da participante/informante pelas suas tias, no período em que essas ajudaram a
sua mãe nas lidas domésticas. Também é possível que, ao descrever a composição de
sua família, tenha se referenciado no modelo de família nuclear, hegemonicamente
difundido na nossa sociedade como aquele representativo da família brasileira e, por
isso, omitiu a sua parenta como membro constitutivo da sua família, naquele período.
A dissonância relativa à composição familiar da participante/informante durante
a sua juventude é expressa na inclusão de uma cunhada na entrevista narrativa e
exclusão da mesma no questionário sócio-demográfico. No entanto, ao discorrer sobre a
cunhada na entrevista narrativa, apenas sublinhou que a sua presença no lar ocasionou
brigas, devido ao ciúme que ela e outros irmãos sentiam do mano, já casado naquele
momento. Esse dado leva à suposição de que a participante/informante não assimilou a
cunhada como membro da sua família e, por isso, a eliminou da composição familiar
registrada no questionário sócio-demográfico. Ainda é provável que a inconsistência se
assente no conceito de família nuclear, empregado pela participante/informante para
orientar as descrições que realizou acerca das pessoas que compunham o contexto
familiar, em sua juventude.
Quando da entrevista narrativa, ela discorreu que, após a sua separação, voltou a
morar na casa do seu pai, mas não forneceu essa informação no questionário sócio-
demográfico. Esse paradoxo pode ser atribuído a um esquecimento involuntário, pois,
ao longo da entrevista narrativa, a participante/informante expôs, sem constrangimento,
acontecimentos centrados em relacionamentos interpessoais entre ela e o seu genitor,
que ocorreram após voltar a residir com membros de sua família de origem.
Outro ponto a destacar diz respeito à inclusão da madrasta como membro da sua
família de origem, em sua juventude, no questionário sócio-demográfico. Acrescenta-se
que na entrevista narrativa citou a presença dessa pessoa na casa apenas ao abordar a
morte do pai, quando mencionou que sentiu mágoa da madrasta, por achar que ela não
dispensou os cuidados necessários ao marido.
Dados ausentes na entrevista narrativa evidenciam lacunas, no que tange à
Evenice Santos Chaves O racismo na Trajetória Escolar e Profissional... 301

presença e/ou participação da madrasta em eventos que abrangeram os demais membros


da família. As reflexões decorrentes da triangulação, do exame e da exploração dos
dados da entrevista narrativa, geraram o entendimento sobre o quão a segunda esposa do
seu pai esteve à margem dos acontecimentos que envolveram os consangüíneos. Por
outro lado, também gerou a compreensão de que a inclusão da madrasta como membro
da família, no questionário sócio-demográfico, não significa que ela foi aceita pela
participante/informante e por seus irmãos, nem que houve a sua integração nas situações
constitutivas do cotidiano familiar.
Considerando-se a questão da classificação cromática, a nomenclatura de cor,
empregada pela participante/informante para explicitar o tom da pele do seu pai e da sua
mãe, indicou incoerências: no questionário sócio-demográfico, redigiu que seu genitor
era negro e na entrevista narrativa mencionou que era “... bem moreninho mesmo,
cabelo bem pinchai”; relativo à sua genitora, registrou, no questionário sócio-
demográfico, que a mesma era morena clara, porém na entrevista narrativa situou-se
como “... filha de negros”.
Essa variabilidade denota o quão a participante/informante tem dificuldade em
assumir a sua identidade étnica negra, bem como a dos membros de sua família de
origem. Assim é que, a comparação de dados do questionário sócio-demográfico e da
entrevista narrativa revelou mais uma função da triangulação: corroborar interpretações
realizadas pela pesquisadora na entrevista narrativa.
Com relação ao racismo, a triangulação de dados da lista de complementação de
frases e da entrevista narrativa desnudou contradições:
A) A participante/informante registrou, no instrumento, que não percebeu o
racismo em sua família de origem e constituída, mas declarou, na entrevista narrativa,
que durante a infância e a adolescência era racista.
B) Redigiu, na lista de complementação de frases, que não percebeu o racismo
nas escolas onde estudou, porém, na entrevista narrativa, relatou um conjunto de
conteúdos que contraditam o que escreveu no instrumento: durante o secundário, o
científico e parte da graduação, teve poucas amigas, uma em cada um dos graus, e elas
eram negras; que, juntamente com as suas colegas negras, eram categorizadas pelas
demais como irmãs, na graduação e no mestrado; que, na condição de mestranda, foi
ignorada por professores e por colegas; que fez parte do ‘grupo dos excluídos’, quando
Evenice Santos Chaves O racismo na Trajetória Escolar e Profissional... 302

cursou o mestrado.
C) Escreveu, no instrumento, que não sente a existência do racismo nas relações
sociais em geral e no bairro onde mora, mencionando, também, na entrevista narrativa,
que nunca se sentiu segregada devido à sua cor, contudo, afirmou, na mesma entrevista,
que o seu sentimento de inferioridade relacionava-se à sua cor.
As contradições listadas adquirem significação nas próprias incongruências,
identificadas através da triangulação. O contraditório, então, fornece indícios para a
interpretação de que se admitir como um objeto do racismo contra o negro é árduo para
a participante/informante. Por isso, suas negações sobre a presença desse fenômeno, em
diferentes espaços e relações sociais, podem ser vistas como subterfúgios empregados
enquanto estratégia de enfrentamento para fazer face à sua condição de negra, portanto
vulnerável a investidas racistas, no bojo das relações sociais.
Do exposto até então, as inconsistências apontadas não comprometem resultados
obtidos nesta pesquisa, mesmo porque os seus objetivos não estão centrados na vida
familiar da participante/informante. Alguns aspectos foram incluídos por conformarem
um contexto de desenvolvimento que contribuiu para que a participante/informante
concluísse o ciclo formal de estudos.
Dessa forma, a triangulação não invalidou dados, mas, ao contrário, permitiu
identificar relações de complementaridade entre alguns gerados por diferentes fontes.
Dito de outro modo, esclareceu, com mais acuidade, as distintas composições da família
de origem da participante/informante, nos períodos em que residiu naquele lar.
Ao selecionar-se o racismo como tema central, em torno do qual também se
empreendeu a triangulação, a análise das contradições entre dados suscitou reflexões
sobre o contraditório, daí resultando um entendimento de que o paradoxo advindo dos
dados coletados com a participante/informante parda reflete seu modo particular de
enfrentar o racismo.
CAPÍTULO 8

MARISE, A PARTICIPANTE/INFORMANTE BRANCA

8.1. Descrição da participante/informante


Marise, sexo e gênero femininos, quarenta e dois anos de idade na época da
coleta de informações, autoclassificou-se como de cor parda1. É filha de pai de cor
parda e de mãe de cor branca. Seu genitor era portuário e, atualmente, é aposentado,
enquanto a sua genitora sempre realizou atividades do lar. A escolaridade de seu pai é
de primeiro grau incompleto e sua mãe tem o segundo grau completo. É professora
universitária, lotada em uma universidade pública, e a sua renda mensal, quando do
levantamento de informações, era de três mil e quatrocentos reais. Atualmente mora em
casa própria, residindo com um amigo.

8.2. Análise da entrevista narrativa: uma descrição explanatória


8.2.1. Os anos iniciais do ciclo de vida de Marise
Marise iniciou o seu ciclo de vida na Cidade E, onde permaneceu residindo a
maior parte do tempo. Ao se referir à sua residência durante a infância, apenas citou que
“morávamos em uma casa com um grande quintal...” e que “havia outras casas
próximas”. Os escassos dados sobre a inserção social da sua família de origem apenas
permitem afirmar que, ao longo do tempo em que morou com seus pais e irmãos, a sua
família era pobre, “o salário do papai sempre foi pequeno”.

8.2.2. O estilo de vida na família de origem


Abordar o estilo de vida da participante/informante, durante o período em que
residiu na casa dos pais, remete à composição familiar, às características de membros da
família, às interações sociais e às rotinas. Sua família de origem era constituída pelo pai,

1
Apesar de se autoclassificar como parda, essa participante/informante tem o fenótipo branco, conforme
os critérios empregados para defini-lo nesta pesquisa.
Evenice Santos Chaves O racismo na Trajetória Escolar e Profissional... 304

pela mãe e pelos cinco filhos, “...três mulheres e dois homens”, e Marise ocupava uma
posição intermediária nessa ordem: “eu sou a filha do meio”.
As interações sociais, como também as atividades desenvolvidas no lar, foram
marcadas por características de seu pai. Marise citou que durante a sua infância e
adolescência, ele “...era ríspido” e, durante o período em que dependeu
economicamente do mesmo, ele “...foi muito..., não é nem austero, as coisas dele ele
tinha, era conosco que ele era muito... sovina”. Em sua adolescência, esse
comportamento do genitor levou sua mãe a desenvolver uma atividade remunerada:
“quando estava com... doze anos, a minha mãe começou a costurar para fora,
buscando conseguir um dinheiro para ajudar”... “...Visando a garantir um
dinheirozinho para ver se diminuíam as brigas em casa”. É importante assinalar que, da
infância à juventude da participante/informante, interações belicosas entre os seus
progenitores eram uma constante: “a minha vida familiar sempre foi muito permeada
por brigas entre o papai e a mamãe: nós como motivo”.
Foi a mãe de Marise quem buscou realizar uma atividade de trabalho, com o
intuito de obter uma renda para o suprimento, ainda que parcial, das necessidades
sociais emergentes. Desse modo, buscou, pelo menos, abrandar conflitos de interesses,
derivados da escassez de recursos financeiros do genitor e/ou da sua indisponibilidade
para colaborar no atendimento às necesidades sociais impostas pela adolescência de
seus filhos. Por outro lado, costurar para angariar dinheiro remete àquilo que Bastos,
Alcântara e Santos (2002) apontam como uma especificidade da instituição familiar: a
possibilidade de se auto-organizar, lançando mão da inovação e, conseqüentemente,
adequar-se a novas circunstâncias sociais e relacionais.
Assim, dados referentes à vida concreta de Marise mostram que apesar da
instituição familiar preservar, em muitos casos, a unidade, também se mantém pela via
do conflito e pelo emprego de estratégias que objetivam eliminar ou minimizar algum
de seus determinantes.
Marise conviveu mais com a mãe e irmãos e, ao se referir ao pai, afirmou que
durante a sua adolescência, “ele saía pela manhã para o trabalho e voltava à noite”,
mas sua mãe intermediava o contato dessa filha com o mesmo, “...ela sempre fazia o
intercâmbio entre nós e o papai”. A entrevistada também relatou que, ao longo do seu
ciclo de vida já vivido, “o papai nunca nos deu um abraço” ... “O papai não..., porque
Evenice Santos Chaves O racismo na Trajetória Escolar e Profissional... 305

sempre foi uma pessoa meio ausente”. Sua progenitora, no entanto, foi enfatizada como
“...uma figura muito presente, como uma base de segurança para nós”.
A presença materna como a cuidadora dos filhos é evidenciada em dados sobre
acontecimentos que tomaram lugar na vida da entrevistada, durante a sua infância:
“quem mais mantinha relação conosco era a minha mãe”. Foi ela quem providenciou
escola e atentou para a prevenção da saúde dos filhos, “o marco das nossas saídas era
ir ao posto de saúde tomar vacina” ... “A mamãe era quem levava os cinco filhos” ...
“Um sempre no braço e os outros quatro caminhando”. Também os incentivou a
assumirem uma religião, “foi a minha mãe quem insistiu para fazermos a primeira
comunhão”, propiciou lazer, “a mamãe nos levava para assistir a queima de fogos em
uma festa popular”, e garantiu, através do seu trabalho, o vestuário das crianças, “a
mamãe costurava para todos nós”. Sintetizando, Ilma asseverou: “sempre, sempre que
me lembro, era ela para tudo: para o colégio, para... as saídas na infância”.
Com relação à escolarização dos filhos, nas suas infâncias e adolescências, foi
fundamental a participação da sua genitora: “só conseguimos estudar porque a mamãe
ia atrás de colégio e de colégio público para nós”. Adiciona-se que “no primeiro
vestibular que uma das minhas irmãs prestou, a mamãe penhorou a sua aliança na
Caixa Econômica” ... “No período da minha outra irmã, a caçula, ela vendeu a sua
aliança, porque o meu pai disse que não pagaria a inscrição, nem o penhor”.
No presente caso, as brigas do casal provavelmente se agravaram a partir da
adolescência da participante/informante e de seus irmãos, devido às novas demandas
sociais que esse momento do processo de desenvolvimento dos filhos requeria. A mãe
da entrevistada, então, buscou angariar recursos para a manutenção de duas filhas na
escola e, possivelmente, eliminar um conflito de interesses.
Os conteúdos já focalizados demostram que apesar da família de Marise incluir-
se na categoria nuclear tradicional, a divisão de papéis entre o seu pai e a sua mãe foge
desse tipo de ordenamento familiar, onde o pai desempenha a função de provedor de
recursos financeiros, para a sobrevivência dos seus membros e educação dos filhos. É
certo que essa função relaciona-se ao seu poder aquisitivo e, em muitas famílias pobres,
as mães, e até as crianças, executam trabalhos, com o objetivo de contribuir na renda
famíliar e garantir a sobrevivência do grupo.
Os dados até aqui descritos sugerem que, na família da participante/informante,
Evenice Santos Chaves O racismo na Trajetória Escolar e Profissional... 306

durante a sua infância e adolescência, a contribuição financeira do seu pai era escassa.
Embora o seu trabalho rendesse um baixo salário, como a própria entrevistada colocou,
ele investia em objetos para si mesmo e era sovina, no que tange à disponibilização de
dinheiro para o atendimento de algumas necessidades dos filhos.
Tal especificidade levou a sua mãe a assumir o papel de provedora de recursos,
como, por exemplo, para o vestuário dos filhos e para suas inserções e permanências na
escola. Essa configuração indica que na nossa cultura, e em alguns lares pobres, como o
da entrevistada, embora haja a presença do pai e a continuidade da unidade familiar, o
trabalho da mulher e o seu envolvimento na criação da prole garantem o suprimento de
necessidades. Porém, o papel de provedora financeira não decorre da condição de
colaboradora, a partir da negociação com o seu marido sobre o partilhar de despesas.
A precária paticipação do genitor de Marise no aprovisionamento de recursos
financeiros e na prática de criação de filhos, funções socialmente construídas, coaduna
com a interpretação realizada por Bastos (2001) de que, ao se considerar práticas
culturais e idéias sobre a criação de filhos, é necessário transpor o destaque auferido aos
agentes socializadores e enfocar sujeitos sociais que se influenciam de modo recíproco.
Esses, conforme a autora, são ativos, construtivos, resistentes ou transformadores.
Verifica-se que o pai da entrevistada, por razões não explicitadas nos dados,
atuou como genitor, porém resistindo à idéia cultural do pai como provedor financeiro e
participante nas práticas de criação dos filhos. Isso equivale dizer que abdicou de
desempenhar papéis e responsabilidades culturalmente prescritos, ligados à paternidade.
A afirmação antecedente demonstra que, na família, nem todos os cônjuges incorporam
papéis sociais que lhes são atribuídos e, por isso, se negam a desempenhá-los na vida
prática. Todavia, deve-se considerar que na família de Marise, a abdicação do seu pai
implicou em sobrecarga de tarefas para a mãe, em conflitos familiares e em um padrão
de relacionamento interpessoal que repercutiu no convívio atual da entrevistada com os
seus irmãos.
Assim é que, referindo-se às brigas entre os seus pais, durante a sua infância e
adolescência, a participante/informante enfatizou:
“Essas coisas contribuíram para que não nos tornássemos irmãos muito
afetuosos” ... “Enquanto irmãos, não nos sentimos muito unidos” ...
“Atualmente, depois de crescidos, é que nos cumprimentamos na época de duas
Evenice Santos Chaves O racismo na Trajetória Escolar e Profissional... 307

grandes festas com conotação familiar” ... “Porém, é um cumprimento sem


muito... calor: coisa mais formal, como as pessoas fazem, também fazemos” ...
“Tenho mais intimidade com a minha cunhada que com o meu irmão” ... “A
minha cunhada é quem intermedia as minhas negociações com o mano”.
Apesar do desenvolvimento humano caracterizar-se por descontinuidades, sua
processualidade não anula as permanências, ou seja, as continuidades, como evidenciam
os dados anteriormente descritos: a participante/informante e seus irmãos reproduzem,
entre si, o relacionamento não caloroso que tiveram com o seu pai e, atualmente, ela se
comunica com um irmão através de um intermediária, como o fazia com o seu pai,
durante a adolescência. Nas situações de negociação com o irmão, sua cunhada é a
mediadora.
Nesse contexto de distanciamento, a mãe da entrevistada continua a garantir um
encontro entre ela, o pai e os filhos: “o colo que nos une é a nossa mãe” ... “Ela é o
nosso pólo de aglutinação” ... “Todos os irmãos que estão na Cidade E sempre vão
almoçar com mamãe aos domingos...”.
Retomando o seu estilo de vida, dados ausentes indicam que ela, na infância,
mantinha pouco contato com os vizinhos. Além desses, há um conteúdo que enfatiza o
afastamento de Marise das pessoas de sua circunvizinhaça: “os meus dois irmãos
interagiam mais com os vizinhos do que nós, as mulheres”. Contudo, há um dado
indicativo de que brincava de pular corda com outras crianças: “poucas vezes eu pulava,
era uma das crianças escolhidas para ficar rodando”.
A posição preponderante que assumia nessa brincadeira era, pois, secundária,
“acho que, durante toda essa etapa e parte da adolescência, nunca consegui dar
direção para as brincadeiras: eu ficava na periferia”. Em algumas ocasiões, sequer
participava: “eu ficava por perto”. Isso também repercutiu na sua idade adulta,
particularmente na escolha da área de estudos: “acho que não fazer amigos na infância
me levou a pesquisar a questão das relações, das interações entre crianças”.
Na atualidade, a sua dificuldade em construir amizades na infância é um tema
das suas conversas com os manos:
“Quando eu e meus irmãos estamos recapitulando a infância, sempre
lembramos de alguns amiguinhos que tínhamos perto da nossa casa” ... “Eu
não consigo me lembrar...” ... “Ainda hoje não consigo partilhar idéias com
Evenice Santos Chaves O racismo na Trajetória Escolar e Profissional... 308

eles sobre amigos...” ... “Eles lembram muito mais do que eu que faziam
amigos: tinham amigos” ... “Juntavam-se em grupos com os outros, com os
vizinhos” ... “Mas eu não conseguia”.
A escassez de amizades perpassou a adolescência da entrevistada, “eu tinha
poucos amigos”, e, talvez por isso, o seu cotidiano ficou circunscrito à realização de
tarefas solitárias: “durante toda a minha vida de primeiro e de segundo graus me
restringia a estudar e realizar atividades dentro da minha casa”. Marise também
discorreu que na adolescência “não ia a festas”.
Dados ausentes sugerem que ela não colaborava na realização de trabalhos
domésticos, mas desenvolvia alguns afazeres: “para ocupar o meu tempo, em casa,
fazia algumas coisas que aprendi no colégio de freira, como colchas de retalho
lindíssimas, de vários formatos: triângulo, quadrado” ... “Daquelas... rodinhas que
hoje estão muito na moda, para fazer bolsas e blusas” ... “Como não saía, assistia a
muitos filmes pela televisão”.
Isentar-se da realização de trabalhos domésticos, mas preencher o tempo livre
com atividades derivadas da aprendizagem escolar, compatibiliza-se com a afirmação
de Bastos (2001) de que a perspectiva cultural e hodierna de infância consagra a
atividade escolar como o ponto fundamental da vida da criança. Na vida de Marise, um
elemento constitutivo do currículo escolar da escola de primeiro grau que freqüentou,
até a quarta série, produziu aquisições, que generalizou e empregou para preencher o
seu tempo vago no lar e, ainda, as avaliou como relevantes para sua vida prática:
“confesso que foram boas para a minha vida, depois de ter chegado à adolescência,
porque meu pai não gostava muito que nós saíssemos” ... “A costura também foi útil
para mim, na época em que éramos muito carentes”.
A participante/informante residiu com seus pais até o início da idade adulta, mas
dados sobre eventos da sua vida em família assentam-se apenas nas dificuldades
financeiras que transpassaram a sua vida escolar na adolescência e na juventude, as
quais serão abordadas na descrição do seu percusso escolar, realizada a seguir.

8.2.3. Inserindo-se na escola e completando o ciclo formal de estudos


A participante/informante iniciou o seu ciclo de estudos em uma escola situada
perto da sua residência, porém ressalta-se que a freqüentou devido a uma especificidade
Evenice Santos Chaves O racismo na Trajetória Escolar e Profissional... 309

dessa instituição escolar: “... pela parte da manhã era aberta para as pessoas que
podiam pagar uma mensalidade e à tarde forneciam um tipo de bolsa para as crianças
da redondeza”.
Como a sua família era pobre, e não podia pagar mensalidades escolares, sua
genitora tomou a iniciativa de pleitear uma bolsa para a filha: “minha mãe foi lá,
conversou e obteve uma bolsa para mim”. Isenta da mensalidade, a entrevistada
estudou durante alguns anos no Colégio M: “essas séries bem iniciais, fiz em um
colégio de freira..., defronte da minha casa” ... “Um colégio religioso, onde permaneci
até a quarta série... do primeiro grau”.
A natureza dessa instituição impunha uma educação cristã: “como esse colégio...
era de freira, existiam... alguns quesitos a serem seguidos” ... “Dentre eles, não lembro
muito bem se vigoravam da alfabetização à quarta série, a aula de religião”. Outra
característica era a disciplina Educação Artística, “não era culinária, era artes: artes,
educação artística, onde se trabalhava culinária, bordado e costura”. Além disso, a
roupa de educação física conformava-se às restrições religiosas frente à exposição do
corpo: “...tinha um elástico nas pernas, ficava como um babadinho e ainda tinha a saia
por cima”.
Relativamente às suas experiências no Colégio M, a participante/informante não
aludiu à convivência com colegas. Referiu-se, no entanto, à comemoração de festas na
escola, ressaltando um acontecimento que sinaliza sua inclusão social excludente:
“nunca fui convidada para dançar nenhuma quadrilha...”. Apesar disso, comparecia às
festividades, sempre acompanhada de sua genitora:
“Não fazíamos convites para festas escolares ao papai, mas a nossa mãe tinha
que ir” ... “Ela estava nestes momentos: festa de São João, mesmo eu não
dançando a quadrilha” ... “Mamãe freqüentava conosco as festas escolares” ...
“Era o maior orgulho levá-la”.
Sobre as professoras, mencionou o quão era destacada pelas mesmas, dado o seu
desempenho escolar: “eu era enfatizada como modelo” ... “Todas as minhas provas
tinham um O grandão” ... “Elas liam as minhas questões” ... “Mostravam as minhas
provas” ... “Essas passavam entre os colegas da turma”. Marise aditou que as docentes
não abriam mão de colocar a letra ‘O’, de ótimo, nas suas avaliações, “as professoras
faziam questão disso”, e justificou: “funcionava como reforço para quem tirou a nota...
Evenice Santos Chaves O racismo na Trajetória Escolar e Profissional... 310

e como espelho para quem não conseguiu tanto”.


O comportamento das mestras frente ao rendimento escolar da entrevistada foi
um incentivo ao seu envolvimento nos estudos, ecoando nos sentimentos de Marise: “eu
me sentia muito valorizada...”. É pertinente assinalar que o se sentir valorizada remete
ao reconhecimento de outros sobre a realização de uma pessoa.
Após concluir a primeira etapa do ensino fundamental, Marise mudou de escola,
devido à decisão de sua mãe: “mamãe achou melhor não nos transferir após a quinta”
... “Transferir logo após a quarta para um colégio do governo, com o intuito de já
irmos nos adaptando”. Assim, completou a segunda etapa do ensino fundamental em
uma escola pública: “da quinta à oitava série estudei no Colégio N”.
O ingresso na escola pública propiciou outras experiências sociais à entrevistada,
que ressaltou a idumentária de educação física e as brigas entre colegas como novidades
em seu percurso escolar.
Sobre a roupa de educação física, relatou: “fiquei meio chocada, porque comecei
a ver que se podia usar um short sem uma saia por cima” ... “Shorts bastante colados
no corpo, bem curtinhos”. O novo uniforme de educação física não era compatível com
sua anterior educação religiosa anterior: “vinha de um colégio de freira, onde meninas
só faziam ginástica com as meninas” ... “A nossa roupa, comparativamente à do
Colégio N, era mais recatada”.
A indumentária para ginástica a desagradou, “isso não era... o que eu queria”, e
Marise buscou minimizar o seu descontentamento. Para tal, solicitou que sua genitora
confeccionasse um short, com um modelo intermediário entre aqueles estabelecidos
pelos dois colégios:
“Foi a maior dificuldade explicar para a mamãe, que costurava, como eu
queria um short: que não fosse servir de... galhofa para o resto da turma,
porém, ao mesmo tempo, me satisfizesse, no sentido de manter um certo pudor”
... “A mamãe fez um shortinho”.
Acerca da animosidade entre alguns colegas, a participante/informante destacou
que “...na Escola N, os meninos da minha sala fugiam da aula e ficavam ao redor do
colégio para brigar” ... “Foram os meus primeiros contatos com coisas assim: brigas
de meninos da minha sala, de pessoas que eu conhecia”. Complementou, afirmando
que “no Colégio N, comecei a ter um contato maior com outros grupos”.
Evenice Santos Chaves O racismo na Trajetória Escolar e Profissional... 311

Ao se referir à sua passagem pelo Colégio N, a entrevistada apenas aludiu aos


acontecimentos anteriormente citados e, embora tenha ressaltado que contactou, pela
primeira vez, com outros grupos, nada acrescentou sobre a sua convivência com os
colegas que deles faziam parte.
Ao concluir a oitava série, transferiu-se para o Colégio O, onde cursou o
segundo grau: “terminei ... a terceira série do segundo grau, no Colégio O”. Marise
enfatizou o seu desempenho escolar, “da adolescência ao vestibular me destacava por
estudar...” ... “As ressalvas dos professores sobre as minhas boas notas perduraram na
adolescência...”, e há conteúdos que explicitam o seu empenho nos estudos: “eu
chegava em casa e repassava toda a matéria” ... “Não a deixava acumular durante
todo o ano”.
Ao ingressar no terceiro ano do ensino médio, a participante/informante aspirou
a feqüentar um curso pré-vestibular e uma via de acesso descortinou-se: “no último ano
que estudava no Colégio O fiquei sabendo que o Cursinho Q estava oferecendo bolsas
integrais e parciais para o cursinho”. O tipo de bolsa que lhe foi destinada implicava,
no entanto, no pagamento de uma parcela mensal e isso requeria a colaboração
financeira de seu pai. Marise compartilhou essa situação com a sua genitora, “falei com
a minha mãe, pois ela sempre fazia o intercâmbio entre nós e o papai”, que sondou a
possibilidade do seu marido contribuir financeiramente, “ela consultou se ele poderia
financiar o restante da bolsa” e o mesmo concordou em colaborar: “o papai aceitou”.
Durante o segundo grau de ensino, a entrevistada passou a conviver mais com as
colegas, porém, nas situações de estudo:
“No segundo grau eu era sempre muito procurada para estudar” ... “Mas ainda
me sentia muito na periferia” ... “Era convidada para o estudo, porém para
outras atividades sociais...” ... “Porém para as festas e outras coisas, conversas
mais íntimas...” ... “Não me lembro de ser chamada para uma conversinha de
amigas, onde as meninas fossem se expor, expor o sentimento por alguém da
sala” ... “Agora, não sei se me excluía ou se era excluída”.
Marise, inclusive, relatou um acontecimento que evidencia a sua inclusão social
excludente:
“Agora, falando sobre essa questão, lembro-me de um fato bem marcante...:
durante o cursinho, tinha uns dezenove anos, uma colega da sala convidou-me
Evenice Santos Chaves O racismo na Trajetória Escolar e Profissional... 312

para ir à sua casa estudar e eu fui. Outras colegas também participaram e, no


final da tarde, chegou uma prima da dona da casa. Elas começaram a comentar
que iriam a uma festa e não me convidaram...”.
A situação de hierarquia social experienciada pela entrevistada fez emergir um
sentimento: “naquele momento me senti muito, muito rejeitada”. Ela também enfatizou
que se sentiu “triste mesmo, ao ver que só servia para estudar”. Além disso, assegurou
que, se fosse convidada, “...poderia recusar o convite”, acrescentando: “teria a opção
de recusar” ... “nem isto me foi dado: o direito de recusar”.
Sumarizando o seu convívio com as colegas, Marise ressaltou que “não tinha
amigos no segundo grau, acho que tinha, olhando agora, colegas de estudo”. Ademais,
ao avaliar suas vivências, aditou: “acho que o que marca essa minha vida... acadêmica
de segundo grau e de adolescente... é que eu era muito solitária”.
Segundo esses dados, apesar de ser portadora de um fenótipo branco, ela foi
objeto de discriminação, possivelmente por conta da sua condição econômica.
No curso colegial, outra novidade na vida escolar da participante/informante foi
o seu contato com o racismo contra o negro, na instituição escolar. Pela primeira vez,
ela mencionou a existência de estudantes negros, em sua sala de aula, “no colegial tive
dois colegas de turma que eram negros”, diferenciados pelos demais colegas: “o
pessoal os apelidava, disso eu me lembro” ... “Principalmente na hora de fazer a fila
que a professora organizava”. Ainda há conteúdos referentes ao tratamento diferencial
dispensado aos estudantes negros: “os dois negros eram empurrados... para o final da
fila, pelos meninos” ... “Eram apelidados de macaco, ‘macaco no final da fila..’, tinha
um outro...: ‘tiçãozinho’...”. Os comportamentos racistas, prioritariamente emitidos por
garotos, também contava com a participação de estudantes do sexo feminino: “as
meninas não se metiam muito no empurrão”. Observa-se que a participante/informante
relatou tais acontecimentos, na posição de observadora passiva das relações sociais
racializadas.
No final do segundo grau, o Colégio O ofereceu aos seus alunos a possibilidade
de realizarem um estágio remunerado, “lembro-me que no último ano do colegial eles
abriram um... estágio na Empresa 1”, contudo, havia critérios a serem preenchidos:
“queriam um estagiário da Área Beta e eu estudava nesta área” ... “Estavam aptos a
concorrer os alunos que tivessem as melhores notas...”. O desempenho escolar da
Evenice Santos Chaves O racismo na Trajetória Escolar e Profissional... 313

entrevistada, “eu tinha as melhores notas...”, garantiu-lhe um lugar, “fui selecionada


para trabalhar naquela empresa”, e esse estágio possibilitou a primeira renda: “era
remunerado, foi uma coisa muito importante, porque a minha família nunca teve muitas
posses”.
Conteúdos de relatos evidenciam que, no plano da aquisição de conhecimentos
vinculados à formação profissional, esse estágio nada acrescentou:
“Eles venderam uma coisa, que o estágio era para aprendermos...” ... “Para
vermos na prática o que estávamos estudando na escola” ... “Todavia não foi
isso que aconteceu” ... “Hoje, recapitulando, o estágio propiciado pelo colégio
N, eram uns formulários contínuos gigantescos e eu tinha que conferir aqueles
números com os de outras planilhas” ... “Hoje avalio que eles queriam colocar
o serviço em dia: então abriram essa oportunidade para o estágio” ...
“Retomando a Empresa 1, reflito que ela não me abriu muitos horizontes de
atividades, porque realizava um trabalho mecânico, de conferir papéis”.
A despeito de avaliar negativamente o estágio, Marise ressaltou algo positivo,
“gostei do ambiente do estágio”. Também é relevante enfatizar que, naquele local,
conviveu com um negro: “quando estagiei... na Empresa 1, trabalhei com o Coriolano,
que era negro e universitário” ... “Foi a primeira vez que tive oportunidade de
trabalhar próximo a uma pessoa negra, extremamente competente”.
O último dado descrito indica que o estágio oportunizou a convivência da
entrevistada com um negro, na sua adolescência. É importante destacar que Marise,
apesar de ser pobre e, por isso mesmo, objeto de desigualdade social, não havia, até
então, se relacionado com pessoas negras, pois as suas escassas convivências com
outros foram perpassadas pelo apartamento étnico. Tal afirmação sustenta-se no dado de
que, pelo menos ao longo do terceiro ano científico, tinha colegas negros, com os quais
não convivia.
Como, historicamente, a maior parte da população negra brasileira é pobre, e
como a entrevistada era pobre, supõe-se que ela residia em um bairro compatível com a
condição econômica da sua família e de descendentes de povos áfricos, o que,
possivelmente, criava condições para o estabelecimento de relações interpessoais com
pessoas negras, da sua vizinhança. Outrossim, conforme enfatizado em outro ponto
deste trabalho, ela expôs que, durante a infância, conviveu com crianças da redondeza,
Evenice Santos Chaves O racismo na Trajetória Escolar e Profissional... 314

brincando de pular corda e essas, provavelmente, não eram negras, porquanto ela
mesma declarou que o seu primeiro convívio com um negro foi no estágio oferecido
pela Empresa 1.
A condição de pobreza da participante/informante e a relevância que atribuiu ao
estágio, dada a remuneração que possivelmente supriu algumas de suas necessidades
sociais, sugerem que o branco também é vítima das desigualdades sociais, porém, ao se
considerar o negro, a essa se adita a desigualdade racial. Desse modo, o conjunto de
dados sobre a condição econômica de Marise e sobre os seus relacionamentos
interpessoais, explicitados até então, demonstram que pessoas fenotipicamente brancas
compartilham com os negros um lugar social caracterizado pela pobreza, ou seja, a
desigualdade social. Todavia, alguns brancos, embora pobres, se distanciam daqueles
pertencentes ao grupo étnico negro, ou seja, os que trazem a marca da origem africana
em seus fenótipos.
Conforme já enfatizado, Marise ressaltou que, no estágio, se relacionou
cotidianamente com uma pessoa negra, “extremamente competente”. Verifica-se que a
entrevistada salientou a capacidade do colega negro e é plausível supor tal destaque a
duas razões: como ênfase ao mérito de Coriolano como excelente trabalhador, ou como
alusão ao fato de que, apesar dele ser negro, portanto oriundo de uma etnia socialmente
considerada como inferior, também no plano intelectual, constituía uma exceção. Mas,
não há dados disponíveis que possam dar sustentação a nenhuma das suposições acima
formuladas.
Retornando à vida escolar da participante/informante, ressalva-se que a mesma
concluiu o terceiro ano colegial, todavia, nessa etapa, precisou realizar uma escolha
sobre o curso que deveria freqüentar na universidade. Ela ficou dividida entre o Curso C
e o Curso H, devido à influência de personagens de dois filmes:
“Assisti a um filme na televisão onde uma profissional da Área H se destacava”
... “Outro, onde uma profissional da área C atuava conjuntamente com a polícia
e conseguiam resolver um caso, não lembro como” ... “Isso foi decisivo para
ficar entre essas duas profissões”.
Ainda relatou um outro elemento que influenciou na sua escolha: “não escolhi o
Curso H porque julgava não ter uma boa redação” ... “Optei pelo Curso C” ... “Essa
foi a origem da minha escolha”. Assim, prestou vestibular na Universidade X, foi
Evenice Santos Chaves O racismo na Trajetória Escolar e Profissional... 315

aprovada e ingressou no ensino de terceiro grau.


Namorou, pela primeira vez, logo no início da graduação: “só fui ter o meu
primeiro namorado, o Frederico, na Universidade X...” ... “Ele começou a freqüentar a
minha casa...”. Esse relacionamento foi perpassado pelo companheirismo, “ele era uma
pessoa com quem compartilhava algumas coisas”, e proporcionou-lhe uma vida social
mais ativa: “Frederico levou-me ao primeiro show” ... “Com ele fui ao estádio pela
primeira vez” ... “Além de sairmos com o pessoal do partido político, saíamos a sós,
com os seus amigos de trabalho”.
Posteriormente namorou outra pessoa, “após esse relacionamento namorei outro
rapaz, o Francisco”, porém não há dados indicativos da relevância desse namoro no
mundo social da participante/informante.
A vida acadêmica de graduação também oportunizou que construisse o primeiro
grupo de amigos: “caracterizo-o mesmo como meu primeiro grupo de amigos” ...
“Formamos um grupo fechado, no qual compartilhei coisas íntimas...” ... “Nos
fechamos entre nós”. Marise conviveu intensamente com os membros desse grupo,
tanto para estudar, “montamos uma equipe”, quanto para trocar idéias:
“Utilizávamos muito aquela área defronte do Espaço de Estudos Amarelo” ...
“Tinha bancos e um deles era o nosso” ... “Sentávamos e ainda espalhávamos
os nossos materiais para marcarmos o território” ... “Quando os outros
componentes do nosso grupo chegavam, ficávamos lá conversando” ... “Nós
cinco nos bastávamos”.
Essa união assentava-se na origem financeira de todos: “o que nos uniu logo de
início, no primeiro ano, acho que foram algumas identificações... de estrutura familiar,
de... similaridade da condição de vida”. Essa afinidade, no entanto, os distanciou de
muitos colegas da turma, “tínhamos muitas coisas em comum, o que nos unia mais e,
ao mesmo tempo, nos afastava dos outros colegas de turma”. Ademais, a diversidade
financeira entre os estudantes que compunham a sua turma, proporcionou-lhe realizar
comparações sociais: “nós cinco ficávamos meio... aborrecidos ao vermos aquelas
pessoas que chegavam de carro com ar condicionado, com motorista indo levar e
buscar”.
Por outro lado, as dificuldades sociais de Marise, e de seus colegas/amigos, para
continuarem freqüentando a universidade, contrastavam com as facilidades dos colegas
Evenice Santos Chaves O racismo na Trajetória Escolar e Profissional... 316

socialmente privilegiados:
“Vivíamos correndo à biblioteca, fazendo empréstimo de livros, tentando suprir
a nossa desvantagem” ... “Nós, que emprestávamos da biblioteca, tínhamos
apenas três dias de disponibilidade” ... “Além do mais, existiam poucos
exemplares na biblioteca” ... “Às vezes, enfrentávamos o problema de só haver
um livro de determinado conteúdo” ... “Além disso, qualquer livro que um
professor indicasse, essas pessoas traziam na aula seguinte”.
Outro aspecto que diferenciava a entrevistada, e os membros do seu grupo, das
colegas com maior poder aquisitivo era a participação em atividades de lazer:
“Às vezes queríamos sair, sentar em um local para tomar alguma coisa e eu não
tinha dinheiro” ... “As colegas ricas comentavam sobre algumas festas que
iriam e perguntavam se nós não iríamos” ... “Na verdade, não falávamos para
elas que não iríamos porque não podíamos comprar o ingresso”.
A participante/informante sublinhou que “a nossa relação com a turma era de
preconceito nosso com relação a eles”, e há dados que corroboram essa afirmativa:
“Quando eu ou a Clotilde estávamos sozinhas, as colegas ricas, depois de uma aula, às
vezes convidavam para irmos à cantina: ‘vamos para a cantina, vocês não querem
ir?’” ... “Automaticamente respondíamos que não”. Além da recusa, há o relato de que
“nem cogitávamos a hipótese de acompanhá-las”.
Os conteúdos indicativos do preconceito sugerem a discriminação entre pessoas
brancas, gerada pela diversidade de nível sócio-econômico. Está implícita nessa
discriminação a noção de inferioridade financeira e é interessante destacar que, neste
estudo, a hostilidade frente aos economicamente privilegiados evidenciou-se entre
brancos. Assim, estudantes pobres e brancos excluíam aqueles ricos e brancos, das suas
convivências no espaço universitário.
Bento (2002a) afirma que uma dimensão do processo psicossocial de exclusão é
a exclusão moral, cuja característica primordial é a desvalorização de uns seres
humanos por outros. Segundo a autora, os excluídos são considerados como pessoas
desprovidas de valor e desprezíveis e, por isso mesmo, aqueles que não fazem parte de
um mesmo quadro de referência moral são objeto de descaso e avaliados com maior
severidade. A referida pesquisadora também assinala que “em certa medida, qualquer
um de nós tem limites morais, podendo excluir moralmente os demais em alguma esfera
Evenice Santos Chaves O racismo na Trajetória Escolar e Profissional... 317

de nossas vidas” (Bento, 2002a, p. 30). Em certo sentido, nota-se que Marise
reconheceu o processo de exclusão moral ao qual submeteu alguns colegas, ao afirmar a
natureza preconceituosa das suas relações com os mais abastados, durante a graduação:
“acho que é preconceito mesmo, nós rotulávamos muito...”.
Enquanto cursava as disciplinas da graduação, a entrevistada e os membros do
seu grupo militaram no movimento estudantil: “concorremos a uma chapa para a
Unidade C”, foram eleitos e atuaram “...como representantes de setor e participantes
de reuniões em outra Unidade, a D”. Em tais atuações, os movimentos de Marise, na
universidade, se ampliaram, observando-se que a meta principal dos estudantes, naquele
período, era a luta pela meia passagem, “nos engajamos e uma das nossas bandeiras
era a de conseguir a meia passagem, sem burocracia”, operacionalizada em
manifestações coletivas:
“Nas passeatas, saíamos caminhando da Universidade X até a casa do
Governador” ... “Fazíamos grupos organizados para pularmos a roleta” ...
“Ninguém pulava sozinho, pois a instrução era fazê-lo conjuntamente com
outras pessoas, para não sermos levados à garagem” ... “Se fôssemos, seria de
forma coletiva, o que daria mais força ao movimento”.
Essas ações implicaram em confinamentos: “durante a luta pela meia passagem,
em algumas ocasiões, nós, os estudantes, ficamos presos dentro de ônibus” ... “Certa
vez permanecemos por uma hora retidos na delegacia”.
Outro tipo de ação inerente à militâcia estudantil foi a sua atuação em sala de
aula e nas assembléias. Na classe, as tarefa eram a de promover uma discussão sobre o
tema condutor da próxima assembléia, a solicitação, a(o) professor(a), da liberação dos
alunos para participarem da mesma e, caso não houvesse a liberação, solicitar aos
colegas que “...não comparecessem para que ninguém levasse falta e a matéria não
fosse ministrada”.
Essa militância, pois, impulsionou Marise a participar, pela primeira vez, de
movimentos coletivos que visavam à transformação social. Isso, possivelmente,
ampliou o seu entendimento acerca da noção de direitos e contribuiu para redirecionar
as suas ações frente à desigualdade social. Se antes a sua indignação era dirigida a
colegas com maior poder aquisitivo, a participação no movimento estudantil a deslocou
para a estrutura social brasileira, a qual, ao categorizar grupos sociais pelo critério
Evenice Santos Chaves O racismo na Trajetória Escolar e Profissional... 318

econômico, dificulta o acesso do pobre à escola, desde a escassez de dinheiro para pagar
a passagem de ônibus à compra de material escolar.
Outro aspecto que merece ênfase é o desenvolvimento do espírito coletivo, a
partir da sua atuação em ações reivindicatórias estudantis, o que reverberou na sala de
aula: se antes a participante/informante afastava-se das colegas ricas e as rejeitava,
enquanto representante no movimento estudantil assumiu outro comportamento, pois
passou a requerer a solidariedade daquelas a quem, veladamente, hostilizava.
Desse modo, a universidade proporcionou à entrevistada, ao longo dos anos de
graduação, não apenas a aquisição de conhecimentos acadêmicos, o namoro e a
construção de um círculo de amizades. Também contribuiu, pela via da militância
estudantil, no desenvolvimento da reflexão e da crítica social frente às desigualdades
sociais, indispensáveis à compreensão de como a nossa formação econômico-social
privilegia alguns grupos em detrimento de outros. Ademais, a visão crítica da sociedade
engendrou-lhe o entendimento, transpassado pela ação, de que mudanças no contexto da
sociedade necessitam da participação de todos, inclusive das colegas ‘ricas’, ainda que
os papéis a serem desempenhados pelos atores sociais sejam diversificados.
Ao cursar as disciplinas da graduação, Marise enfrentou restrições financeiras e
buscou minimizá-las:
“Comecei a pensar em formas de ganhar uma importância a mais, para
conseguir comprar os livros e as minhas roupas” ... “Juntava um dinheirinho,
vendendo doces na universidade” ... “Não era muito, contudo era de onde
conseguia tirar alguma coisa... para comprar um metro de pano e fazer uma
saia, umas coisinhas assim”.
Paralelamente, procurou inserir-se em um projeto de pesquisa, como bolsista:
“Hoje, pensando, eu... lembro direitinho como abordei o Rodrigo” ... “Como
cheguei até ele, no Espaço de Estudos Verde” ... “Perguntei: ‘o professor
Rodrigo está?’” ... “‘Rodrigo, boa tarde, eu quero saber se estás aceitando
bolsista’” ... “‘Eu estou disposta a trabalhar aqui e quero saber como é que é
a questão da bolsa’” ... “‘Qual é o horário que queres?’” ... “Falei para ele
que estava muito disposta a trabalhar por duas razões” ... “Primeiro, porque
queria aprender e achava que ali iria aprender muito” ... “Em segundo lugar,
precisava, de alguma forma, pagar, no mínimo, a minha passagem de ônibus
Evenice Santos Chaves O racismo na Trajetória Escolar e Profissional... 319

para a Universidade X”.


O professor a acolheu: “entrei como bolsista do Rodrigo” ... “No segundo ou no
terceiro ano, na Universidade X, fui para o Espaço de Estudos Verde, onde Rodrigo era
o coordenador”.
Inicialmente, esse período foi difícil, pois as leituras prescritas pelo professor
Rodrigo eram em um idioma que ela não dominava: “o professor Rodrigo nos obrigou
a ler em inglês”. Porém, ela contou com a solidariedade de uma colega, “a Conceição
ficava lendo conosco”, e essa ajuda, juntamente com a instrumentalização do
dicionário, “pegando o dicionário”, proporcionou-lhe o aprendizado: “eu fui
aprendendo inglês”. Outro fator ao qual se pode atribuir o sucesso em ler textos na
língua inglesa foi a tomada de consciência sobre a relevância desse idioma: “no Espaço
de Estudos Verde vi que era necessário”.
Outra aquisição escolar, salientada pela participante/informante, decorrente das
atividades que desenvolveu como bolsista, vincula-se à análise de textos: “essa forma
metodológica de lidar com o texto me proporcionou a generalização para as outras
disciplinas”. Como evidência desse processo, a entrevistada adicionou que “...quando
um professor dizia ‘tem o capítulo tal para...’, eu tentava olhar aquilo pelo mesmo
prisma” ... “Isso facilitou bastante a minha vida em outras disciplinas”.
Marise, como estudante universitária, ainda participou de outro projeto da
Universidade X, executado em uma cidade do interior: “o levantamento de um mês, que
fiz quando estava na graduação, no Projeto N, ofereceu-me um dinheiro muito bom”.
Assim, como estudante de graduação, além de freqüentar as aulas regulares, participou
de um programa de pesquisa e de um programa de extensão universitária.
Durante os anos acadêmicos de graduação, suspendeu, temporariamente, as
atividades escolares, “levei cinco anos para terminar”. Essa interrupção foi motivada
pelo surgimento de uma proposta de emprego e, em função da sua condição econômica,
a entrevistada começou a trabalhar e, em um dado momento, trancou dois semestres
letivos. Relatou que “ao ser demitida da Empresa 5, ainda faltavam disciplinas para
concluir a graduação”, cursou-as, “concluí as disciplinas que estavam faltando...” e,
apesar de prolongar os anos de graduação, concluiu-a sem história de reprovação, porém
em uma modalidade do Curso C: “só fiz o bacharelado”.
Apesar de interromper os estudos para trabalhar e, assim, melhorar seu poder
Evenice Santos Chaves O racismo na Trajetória Escolar e Profissional... 320

aquisitivo, a partipante/informante não precisava angariar dinheiro para a sua total


manutenção, pois casa e comida foram disponíveis em todo o seu percurso escolar. A
partir de dados sobre as suas necessidades financeiras, já citados, observa-se que
almejava o numerário para financiar despesas pessoais, como roupa, lazer, e, em se
tratando de demandas escolares, para a compra de livros.
Finda a etapa do ciclo formal de estudos, Marise ingressou na pós-graduação, na
Universidade X, “submeti-me à prova para a especialização”, ponderando que isso foi
financeiramente possível porque o programa oferecia bolsas: “acho que naquela época
tinha bolsa para a especialização, porque não poderia ficar sem a mesma: não poderia
sobreviver”.
Acrescentou que esse curso requereu muitos estudos: “essa época de estudos foi
puxada” ... “A disciplina do Ricardo puxava muito” ... “Tínhamos muita leitura de um
dia para o outro” ... “Não dominava muito bem a leitura” ... “Tive que correr atrás do
prejuízo”. Também aditou que ela e os colegas de turma se entocavam para estudar,
“ficávamos enfurnados”, usando estratagemas para permanecerem em atividade:
“tomávamos guaraná com café” ... “Fazíamos algumas combinações bombásticas para
ficarmos acordadas”.
Ela fez menção à nova ocupação de espaços proporcionada pela condição de
aluna de um curso de especialização:
“A turma da especialização era pequena e começamos uma outra vida: a de
termos o nosso lugar no Espaço de Estudos Verde” ... “A especialização foi
muito importante para mim, porque, mesmo sendo uma sala compartilhada por
vários alunos, foi a primeira vez que tive uma mesa dentro de uma
universidade”.
Os dados acima mostram, indiretamente, o início de um processo de mobilidade
social ascendente, através da ocupação de um local específico para a realização de
tarefas acadêmicas, na universidade, fato novo na vida da entrevistada. Considera-se tal
acontecimento como indicador de um degrau de diferenciação entre os alunos do curso
de graduação e os de pós-graduação e, por conseguinte, da delegação de outra posição
social aos pós-graduandos, na instituição universitária. Os dados também revelam que o
alcance de um patamar diferente daquele ocupado na graduação, foi avaliado por Marise
como relevante em termos pessoais, sugerindo uma aspiração de ascender socialmente,
Evenice Santos Chaves O racismo na Trajetória Escolar e Profissional... 321

bem como a sua satisfação pelo início da escalada.


Concluiu, com sucesso, o referido curso, “fiz a especialização: eu tenho o título
de especialista”´, e imediatamente ingressou no mestrado, também na Universidade X.
Com relação ao seu percurso, referiu-se apenas ao objeto de estudo da sua dissertação
de mestrado, “comecei a estudar a questão dos conceitos...” ... “Trabalhei com isso na
minha dissertação de mestrado, orientada pelo Raul...”.
Com o dinheiro da bolsa de mestrado, passou a morar sozinha: “saí da casa do
meu pai quando cursava o mestrado” ... “Falei para a mamãe que iria me mudar,
porque já queria ter o meu espaço” ... “Aluguei a casa”. Cursar o mestrado, então,
possibilitou, à participante/informante, dentre outras coisas, constituir a própria casa e,
desligar-se financeiramente da sua família de origem. Responsabilizou-se integralmente
pelo seu cotidiano, assim permanecendo até finalizar esse curso, “concluí o mestrado
em três anos”.
Durante os anos do mestrado, a entrevistada namorava com um rapaz, “namorei
com o Franklin praticamente durante todo o meu mestrado”, porém rompeu o
relacionamento após terminar o curso: “ao concluir o mestrado, terminei o meu namoro
com o Franklin”. Ao avaluar os motivos que contribuíram para o rompimento, ressaltou
a carreira acadêmica:
“Analisando agora, acho que pesei outra coisa: se casasse com o Franklin, se
nos juntássemos..., não daria continuidade aos meus estudos” ... “Acho que isso
também pesou para eu começar a pensar na minha vida: se queria ficar na
mesma cidade, só terminar a graduação, ser dona de casa ou professora só com
uma graduação e um mestrado”.
A participante/informante, então, escolheu a formação acadêmica, dando passos
iniciais na direção do doutorado. Primeiro, definiu para onde iria, “decidi que iria para
a Cidade Amarela”, e, em seguida, comunicou a decisão à sua genitora: “quando lhe
falei que iria para a Cidade Amarela notei que ficou... muito triste...”. Há dados sobre a
apreensão de sua mãe, devido à distância entre as duas cidades: “principalmente
porque... achava longe” ... “Pensava que se acontecesse algo comigo, morando na
mesma cidade que ela, poderia voltar para a sua casa” ... “Mas na Cidade Amarela!”.
Contou com a proteção e com a solidariedade de uma pessoa: “a minha
madrinha foi um grande apoio para eu sair da Cidade E...” ... “Quando fui me despedir
Evenice Santos Chaves O racismo na Trajetória Escolar e Profissional... 322

dela..., comunicando que iria para a Cidade Amarela, ela me deu as passagens de
ônibus: uma de ida e uma de volta...”. O dinheiro para o bilhete de retorno funcionou
como uma base de segurança para Marise: “na Cidade Amarela guardei o da minha
passagem de volta durante... uns dois anos, porque diante de qualquer adversidade
poderia retornar à Cidade E”.
A entrevistada ingressou no doutorado, na Universidade Z, e os seus relatos
sobre acontecimentos, no mundo da pós-graduação, focalizam relações interpessoais
envolvendo um colega e um amigo, negros. Ao se referir àqueles com quem freqüentava
a mesma turma, destacou: “na minha turma de pós-graduação, lembrei agora, acho
que apaguei o Caio da minha... lembrança”.
Piza (2002), ao estudar a branquitude, através de entrevistas realizadas com vinte
mulheres brancas, menciona que muitas delas se esqueciam das pessoas negras, com
quem se relacionaram em momentos anteriores de sua vida, durante a relação dialógica
com a referida pesquisadora. Também complementa que muitas se empenhavam para
lembrarem de pessoas negras. Como exemplo, a pesquisadora cita um dado expresso
por uma das entrevistadas: “nossa! A minha memória se apagou para isso!” (Piza,
2002, p. 86).
Esse dado de Piza, apesar de ser o único disponível na literatura consultada, e o
desta pesquisa, sobre o entorpecimento na memória da participante/informante branca
relativamente a uma pessoa negra, sugerem a pouca significação atribuída, por algumas
pessoas brancas, às experiências sociais compartilhadas com aquelas negras.
Marise também expôs uma situação envolvendo colegas brancos e negros, que
ocorreu mais de uma vez, em uma situação de lazer:
“Caio saía conosco e na hora de escolher uma pizza o fazíamos em conjunto:
‘qual é o teu voto, num sei o que?’” ... “O Caio levava muito tempo para
responder” ... “Logo as pessoas diziam...: ‘não, então passa, o Caio aceita
qualquer coisa’”.
Tacca (2004) menciona que cada ser se constitui, e se reconhece, como pessoa,
nas relações com o outro. Os dados acima mostram que, nas situações interativas, havia
o reconhecimento de diferenças e vigorava um processo de escolha democrática, mas
para os colegas brancos. Dessa forma, a assimetria nas interações sociais concretizava-
se na vantagem dos ‘mais iguais’, expressa no direito de votarem e elegerem o que a
Evenice Santos Chaves O racismo na Trajetória Escolar e Profissional... 323

maioria gostaria de comer.


Interessante é que os iguais, ou seja, os que efetuavam escolhas, eram brancos,
enquanto o diferente, ignorado como portador do mesmo direito, era o único negro no
grupo. Nos diálogos, aparentemente democráticos, cassavam-lhe a voz. Oliveira (2004)
chama atenção para a ocorrência de situações nas quais a aceitação do negro é apenas
aparente e, nessas, o disfarce do preconceito implica na negação de direitos ao mesmo.
O autor acrescenta que a negação do direito ao outro é acompanhada por um claro
desdém dos seus interlocutores.
Retomando o grupo de colegas que saíam para comer pizza, depreende-se que a
aceitação de Caio possivelmente era falsa, porquanto o preconceito manifestava-se na
discriminação indireta a que era submetido, na desconsideração do mesmo como sujeito
de direitos e no modo jocoso através do qual lhe era negada a participação: justificava-
se a negação pela suposta benevolência do colega, “‘não, então passa, o Caio aceita
qualquer coisa’”. Isso o fazia compactuar com a pizza eleita pelo voto dos demais e
aceitar, de bom grado, a selecionada por outros para degustar. Enfim, o mascaramento
do racismo, que estava embutido na negação de um direito ao negro, demonstra como a
discriminação indireta opera nas relações racializadas.
Há outros episódios evidenciando o escamoteamento do racismo ou, quiçá, a sua
invisibilidade para a entrevistada: “inicialmente, foram feitas algumas tentativas para
que ele participasse” ... “Posteriormente, comecei a notar que as pessoas já não...
perguntavam para ele..., que a sua resposta era....”. A propósito, ressalta-se o modo
através do qual ela se exclui das situações em que a discriminação indireta era dirigida
ao pós-graduando negro, descrevendo-as como protagonizadas pelos demais colegas e
postando-se apenas como uma silenciosa observadora das interações discriminatórias.
Bento (2002a) expõe que os brancos silenciam diante do racismo, ou distorcem-no,
contudo, adita (Bento, 2002b) que não se pode atribuir responsabilidade a pessoas dessa
etnia pelo silêncio, pela distorção e pela assunção da branquitude e seus privilégios,
porque, no decorrer de suas vidas, aprendem sobre o racismo de forma enviesada, no
ambiente familiar, no escolar e através dos meios de comunicação. Todavia, para a
estudiosa, qualquer pessoa branca que desenvolva um conhecimento sobre o racismo,
torna-se responsável pela sua identificação, pela colaboração em processo que visem a
interromper o ciclo de opressão sobre os negros e pela modificação nos seus próprios
Evenice Santos Chaves O racismo na Trajetória Escolar e Profissional... 324

comportamentos.
Considerando a auto-isenção da entrevistada, nota-se que além de eximir-se de
responsabilidade, permanecia indiferente e neutra diante das interações que incluíam o
negro no grupo de colegas, de forma excludente. Será que Marise sempre esteve
submetida a aprendizagens que camuflavam ou dissimulavam a presença do racismo
contra o negro na nossa sociedade? Será que não se confrontou com cenas explícitas de
racismo que a alertasse sobre a ocorrência desse fenômeno no cotidiano brasileiro?
Dados mostram que foi expectadora de outras ocorrências racistas, durante o
período em que residiu na Cidade Amarela e freqüentou o curso de doutoramento.
Marise construiu uma amizade com Cristina, namorada de um pós-graduando negro,
assinalando que “a Cristina e o Cardoso, colegas da pós-graduação, conviviam com o
racismo”. Para demonstrá-lo, descreveu alguns eventos:
“Toda vez que perguntavam ‘quem é Cristina?’, respondiam: ‘ah, Cristina é
aquela que, que, que namora um negão’” ... “O porteiro do edifício onde
morávamos chamava o Cardoso de negão” ... “Quando alguém chegava e
perguntava para o porteiro ‘qual é o apartamento da Cristina?’, ele
respondia...: ‘Cristina, aquela que namora com o negão?’ ... “Era a referência
empregada para descrevê-la” ... “‘É a menina lá do Cajueiro que namora
aquele negão’” ... “Então todo mundo já sabia quem era a Cristina”.
Argumenta-se que a participante/informante cometeu um equívoco ao situar o
tratamento de ‘negão’, dispensado ao namorado da sua colega, como manifestação de
racismo. Evidentemente, ao se avaliar o emprego do termo ‘negão’ em referência a um
negro, enquanto uma discriminação racial explícita, demanda a consideração do
contexto. Considerando-se o texto produzido pela narrativa de Marise, observa-se que:
1) não há qualquer episódio demonstrando o emprego de um tratamento fundamentado
na cor da pele para identificar uma pessoa branca, com termos como, por exemplo,
‘brancão’, ‘aquele branco’, ‘aquele bem, bem, bem branquinho’; 2) durante a entrevista
narrativa, Marise não se apresentou como alguém sensível ao racismo; 3) ela não
dissimulou o seu distanciamento pessoal dos negros; 4) a entrevistada não camuflou que
o racismo contra o negro carece de significado em sua vida.
Relativo à sua distância social dos negros, a participante/informante afirmou:
“não tive amigos... negros, só mesmo na Universidade Z”. É relevante apontar que os
Evenice Santos Chaves O racismo na Trajetória Escolar e Profissional... 325

dois negros, com os quais conviveu no ambiente universitário, não se configuraram


como amigos que escolheu, nem há dados indicativos de que compartilhavam aspetos
da sua intimidade. Apenas partilharam de momentos do cotidiano da entrevistada, dada
a circunstâcia de ser colega e namorado de uma amiga, respectivamente. Adiciona-se
que há ausência de dados sobre algum contato entre ela e os dois negros, posteriormente
ao período do doutoramento.
Concernente ao significado do racismo em sua vida, mencionou: “Os, os...
incidentes, não é?...” ... “Eles aconteceram, eu presenciei, não é?” ... “Mas... não
avalio que me influenciaram”.
Marise ainda relatou que presenciou uma cena explícita de racismo, dirigida ao
namorado da sua amiga Cristina: “certa vez, saímos para comer uma pizza, eu, o
Castilho e eles dois” ... “Passou um carro na Avenida Rosa e alguém falou para nós:
‘que é quê esse tição faz com essa branca?’”.
Chaves (2003a), em pesquisa-ação realizada com adolescentes, em Salvador,
identificou que um deles era objeto do racismo, muitas vezes expresso no apelido de
‘tição’. O emprego desse codinome, em duas cidades, localizadas em diferentes regiões
do Brasil, mostra que a coisificação do negro, instaurada na escravidão, ainda faz parte
da estrutura da nossa sociedade.
A participante/informante ponderou que o casal não se sentiu incomodado com o
evento racista: “no meio daquele logradouro, os dois morreram de rir” ... “Também
não se importavam”. Remetendo-se às situações em que os dois estudantes negros eram
chamados de ‘negão’, Marise interpretou que eles não se incomodavam: “o Cardoso só
ria” ... “Nunca o vi aborrecido com certas coisas” ... “O Caio também: ele ria” ...
“Esboçava um sorriso... quando o chamavam de negão”.
O citado modo de enfrentamento ao racismo, calar-se diante das discriminações
e até emitir o riso, empregado pelos dois estudantes negros, significa o comportar-se de
modo submisso, visando a evitar conflitos com o branco e garantir a sua aceitação pelo
mesmo, ainda que como alguém inferiorizado e estigmatizado. O branco, por sua vez,
significa o riso do negro como indicador de que ele não se importa com a discriminação
racial.
A participante/informante e outros colegas da pós-graduação estudavam em
grupo. Não há dados indicativos de que Caio foi convidado para participar do mesmo,
Evenice Santos Chaves O racismo na Trajetória Escolar e Profissional... 326

porém juntou-se ao grupo: “as reuniões aconteciam no edifício onde morávamos” ...
“Disseram isso para ele, que residia em um outro” ... “O Caio, que era negro e
orientando do Professor Raimundo, começou a freqüentar o nosso grupo de estudos”.
No episódio antecedente, ela explicita, com clareza, a cor da pele de Caio, mas,
por exemplo, não especifica abertamente a cor dos outros colegas com quem ía a
restaurantes ou que compunham o grupo de estudos. Isso sugere o emprego de uma
categorização social, calcada no pólo branco/negro, para diferenciar as pessoas, a partir
do critério de cor.
Outra questão relevante, diz respeito ao comportamento de Caio de procurar
integrar-se no grupo dos colegas brancos, possivelmente buscando a aceitação social.
Todavia, apesar de passar a fazer parte do círculo de estudos, o seu comportamento foi,
mais uma vez, posto em relevo: “no grupo de estudos, ele não falava” ... “Falava
pouquíssimas coisas, era mais de observar...”, assim como o atributo que lhe foi
designado pelos colegas de estudo: “dizíamos que era meio lacônico”.
Há outra diferenciação traçada entre Caio e os demais estudantes, no contexto da
pós-graduação: “com relação ao Caio perguntavam... ‘quem é Caio?’” ... ‘É aquele
que não fala, aquele que vive dormindo’”. Esses conteúdos são indicativos de
estereótipos construídos para valorar negativamente o negro que conquistou um lugar
em um curso de pós-graduação.
Conclusivamente, na Cidade Amarela, a participante/informante experienciou a
presença do racismo contra o negro nas relações sociais, porém os seus relatos mostram
que os percebeu somente quando os atos racistas eram claramente manifestados.
Participou, inclusive, de situações atravessadas por relações racializadas, nas quais,
provavelmente, colaborou com a discriminação indireta dirigida a um colega negro,
sem, contudo, considerá-las como constitutivas do racismo.
Essa é uma nefasta implicação do mito da democracia racial e da consideração
do racismo contra o negro como algo que envolve apenas os representantes desse grupo
étnico e não como um processo relacional, o qual abarca pessoas com diferentes
fenótipos. O mascaramento, conferidor de invisibilidade a atos racistas, retira do branco
a sua responsabilidade e obscurece a sua participação nas relações sociais racializadas.
Por outro lado, o privilégio da cor exime aqueles que tem o fenótipo branco de serem
objeto do racismo e, talvez, essa isenção contribua para que muitos integrantes desse
Evenice Santos Chaves O racismo na Trajetória Escolar e Profissional... 327

grupo étnico sejam indiferentes à prática social do racismo.


O empreendimento escolar de Marise, na Cidade Amarela, foi bem sucedido:
“terminei o doutorado em noventa e cinco”.

8.2.4. Superando adversidades, tendo em vista concluir o ciclo de estudos


A primeira dificuldade que surgiu na trajetória escolar da entrevistada decorreu
da mudança de escola, no momento da sua adolescência em que passou a cursar o
científico. A instituição escolar que passou a freqüentar era distante da sua casa,
“relativo ao Colégio O, ele era mais distante da minha casa, pois morava na Rua I”,
mas não havia disponibilidade de dinheiro para custear o transporte de ida e de volta:
“apesar disso, não pegávamos ônibus: íamos e voltávamos andando” ... “...Para
chegar ao Colégio O tinha que caminhar: passava pela feira..., andava até a Rua II e
continuava até o colégio”.
Outro obstáculo no seu percurso escolar emergiu, no momento da adolescência
em que cursava o último ano do segundo grau, e tal empecilho vincula-se à escassez de
recursos familiares para financiar a freqüência de Marise a um cursinho. Todavia, a
mesma empreedeu esfoços para concorrer a uma bolsa de estudos: “sei que fiz a prova”
... “Fui selecionada para obter uma bolsa parcial”.
Ao iniciar as aulas, constatou que o cursinho requeria dispêndio com material
escolar: “comecei a freqüentar o cursinho, porém uma das dificuldades que enfrentei é
que lá tinha um esquema de apostilas, pelo menos umas três por semana” ... “Eu não
tinha como dispor do dinheiro para a compra”. A participante/informante lançou mão
de duas estratégias, para ter acesso aos conteúdos das apostilas:
“No cursinho, anotava no meu caderno algumas coisas das apostilas que
considerava importantes, para reler em casa” ... “Comecei a sair mais de casa
para estudar na residência de outros colegas de turma, com o intuito de ler as
apostilas deles”.
Ao iniciar a graduação, enfrentou a carência de dinheiro para adquirir obras
científicas e vestir-se. Por isso, lançou mão de uma alternativa para superar, ou mesmo
minimizar, a dificuldade:
“Comecei a pensar em formas de ganhar uma importância a mais, para
conseguir comprar os livros e as minhas roupas” ... “Juntava um dinheirinho,
Evenice Santos Chaves O racismo na Trajetória Escolar e Profissional... 328

vendendo doces na universidade” ... “Não era muito, contudo era de onde
conseguia tirar alguma coisa... para comprar um metro de pano e fazer uma
saia, umas coisinhas assim”.
Em um momento posterior, concorreu a uma bolsa de iniciação científica, outra
forma de angariar recurso para ajudar a suprir a sua falta de dinheiro: “Assim, ao tempo
em que aprenderia mais, também teria dinheiro para investir em livros, roupas e...
transporte”.
Posteriormente, embora portasse uma bolsa de iniciação científica, envolveu-se
em uma atividade formal de trabalho, que a levou a trancar dois semestres e a atrasar a
conclusão do curso por dois períodos letivos: “interrompi os estudos durante dois
semestres”.
As adversidades, que atravessaram o percurso escolar da entrevistada, podem ser
consideradas como barreiras, concorrentes com a sua continuidade nos estudos, ou com
o seu desempenho escolar, durante a adolescência e a juventude. Contudo, os obstáculos
foram superados, verificando-se que não envolviam a necessidade de trabalhar, com a
finalidade de angariar recursos para contribuir nas despesas gerais da casa dos pais,
onde residia. Ao contrário, teve moradia e alimentação garantidas pelos genitores, até o
momento em que resolveu morar sozinha.

8.2.5. A trajetória profissional


O percurso profissional de Marise começou quando ela cursava a graduação. Ao
atuar em um projeto de extensão, conheceu uma colega de universidade, já empregada
em uma organização, “conheci uma moça, a Cláudia, que trabalhava na Empresa
Cinco, na parte de seleção de pessoal”. Finda a atividade de extensão, essa moça
indagou à entrevistada e aos demais estudantes que atuaram no Projeto N se tinham
interesse em um trabalho: “quando voltamos, Cláudia chamou a todos que
participaram no Projeto N e perguntou se queríamos trabalhar como funcionários da
Empresa Cinco”. Todos tomaram a indagação como um convite e habilitaram-se aos
postos de trabalho, “fizemos um teste, eu e mais umas oito pessoas” ... “Passamos”, e
foram contratados: “fomos admitidos”.
A participante/informante trabalhou 18 meses no referido local, “trabalhei um
ano e meio na Empresa Cinco, no período da manhã”, e, durante esse período, ocupou
Evenice Santos Chaves O racismo na Trajetória Escolar e Profissional... 329

três postos de trabalho, “minha primeira função na Empresa Cinco foi a CCP” ...
“Depois passei para... a DTA” ... “Finalmente, para a função JTU”, o que é indicativo
do seu bom desempenho como funcionária. Apesar disso, aquela organização a
dispensou: “Fui demitida da Empresa Cinco”.
O primeiro trabalho formal não condizia com as suas aspirações profissionais:
“No Espaço de Estudos Verde, ao começar a coletar dados, a entendê-los e a
escrever relatórios, não conseguia me ver atuando em outros espaços, apenas
na universidade” ... “Naquela época, como bolsista, não conseguia visualizar
outra coisa que não fosse ensinar” ... “Desde a graduação fiz a opção para
trabalhar com pesquisa, no Espaço de Estudos Verde” ... “No Espaço de
Estudos Verde, com o Professor Rodrigo, defini que era isso o que eu queria” ...
“É por aí que eu não me imaginava em outro local de trabalho”.
A entrevistada transformou essa aspiração em realidade quando cursava o
mestrado, na Cidade Amarela: “meu ingresso no mercado de trabalho docente foi... na
Cidade Amarela... durante o doutorado”. Nessa época, estava casada com o Castilho,
colega de profissão, que era docente em uma instituição de ensino particular e “por
intermédio dele, fui convidada a fazê-lo no mesmo local”.
A entrevistada assegurou que sentiu-se segura ao ministrar aulas, “não fiquei, de
forma alguma, intimidada ao assumir uma turma, pela primeira vez, na faculdade” ...
“Sentia-me com bastante intimidade no gerenciamento das turmas”, atribuindo essa
segurança ao aprendizado anterior: “a experiência que tive na graduação e no mestrado
me ajudou muito, principalmente a de prática de ensino”.
Discorreu como realização profissional, nessa jornada, a orientação de alunos da
graduação em trabalhos práticos, alguns dos quais foram posteriormente apresentados
em reunião científica: “...alguns dos alunos que cursavam as disciplinas administradas
por mim e pelo Castilho apresentaram trabalhos no citado congresso...”, explicitando
satisfação: “foi bom, me senti muito... recompensada pelos alunos terem nos procurado
e expressarem que queriam tentar arrumar os trabalhos para apresentarem” ... “Foi
muito bom, gostei de ter feito isso, definiu a minha atuação na docência”.
Posteriormente, por conta própria, procurou outra faculdade para lecionar,
“depois busquei outra instituição de ensino”, sendo admitida: “o meu currículo foi...
bem aceito” ... “No outro dia fizeram contato comigo” ... “Compareci e fui
Evenice Santos Chaves O racismo na Trajetória Escolar e Profissional... 330

contratada”. Entretanto, não há dados sobre o seu percurso profissional nessa


instituição.
Após a conclusão dos créditos do doutorado, a participante/informante e o seu
marido foram convidados a ingressar em uma universidade púiblica, localizada em
outro Estado brasileiro, como professores visitantes, com o objetivo de instalarem um
curso de graduação. Aceitaram o referido convite, deslocaram-se para o Estado Róseo e
começaram a trabalhar na Universidade Y: “começamos a investigar quais seriam as
nossas tarefas referentes à criação do Curso C” ... “Fomos tentando articular quais
seriam os primeiros passos para começarmos a pensar na criação do curso...”. Porém
essa atividade não deslanchava, “na realidade, notamos que eles queriam professores
para administrarem disciplinas” ... “Começaram a nos dar muitas disciplinas para
ministrarmos”. Como os trabalhos para a criação do curso não caminhavam, “não
conseguimos levar a idéia da criação do Curso C... para a frente”, o casal demitiu-se:
“após nove meses, falamos que não queríamos continuar”.
Retornaram para a Cidade E, onde Marise ingressou como professora visitante
em um departamento da Universidade X: “fomos contratados como visitantes”. Nesse
período, aquele departamento abriu um concurso público e a participante/informante
sumeteu-se ao processo de seleção. Foi aprovada e contratada: “...entramos no quadro
efetivo...”.
Como docente, na Universidade X, desenvolve atividades de ensino, pesquisa,
orientação de alunos e na administração universitária. Reportando-se ao início do seu
trabalho na citada universidade, assinalou: “ainda como professora visitante, orientei
pela primeira vez um estudante, em seu Trabalho de Conclusão de Curso” ... “...quem
assinou, porque um professor... visitante não poderia ser orientador, foi o Roberto”.
Também mencionou o início da sua atuação como professora orientedora de
bolsistas de iniciação científica: “depois desse trabalho, quando já estava na condição
de professora efetiva, outro marco na docência foi ter conseguido dois bolsistas de
iniciação científica”.
Discorrendo sobre a carreira, relatou que após a sua efetivação no quadro de
professores da Universidade X, através de concurso público, passou a fazer parte do
corpo de docentes do mestrado: “ministrei uma disciplina” ... “Logo ofereci duas vagas
para orientação...” ... “Isso aconteceu uns seis meses depois que me tornei professora
Evenice Santos Chaves O racismo na Trajetória Escolar e Profissional... 331

efetiva” ... “Até agora já orientei seis mestrandos, que concluíram o curso”.
A sua experiência em pesquisas e orientação de alunos do mestrado, habilitou
Marise para orientar estudantes do doutorado, “credenciei-me, há uns quatro meses
atrás, como orientadora de... doutorado” ... “Tenho uma aluna de doutorado”.
Sobre as suas atividades adiministrativas, destacou: “também consegui inserção
em outras instâncias” ... “Para mim... estava muito... longe, como um posto de
coordenação que assumi... recentemente” ... “Atualmente, faço parte de um Conselho
ligado à administração central da Universidade X”. A esse respeito, Marise avalia que
“chegar a assumir um cargo de coordenação reflete um certo reconhecimento, por
parte das outras pessoas, de que eu tenho capacidade para administrar...”.
Embora sinta-se reconhecida pelos pares, a participante/informante declarou-se
insatisfeita com alguns comportamentos de colegas:
“Também há uma insatisfação com relação à solidariedade de alguns docentes
que compõem algumas comissões” ... “Eles absorvem as regras do cargo, as
quais só penalizam o parceiro” ... “Quando estão desempenhando função em
uma comissão, designada através de portaria, esquecem que são professores”.
O salário e a ausência de reconhecimento pelo excesso de trabalho que realiza
também são fontes de insatisfações no labor universitário:
“Basicamente fico muito insatisfeita em não ser remunerada condignamente por
tudo o que faço” ... “Acrescentamos malditos relatórios, mostramos que
trabalhamos três vezes mais que a pontuação oficial máxima, porém não
ganhamos pontos pelo que realizamos a mais”.
Contudo, a entrevistada sente-se satisfeita em ser reconhecida, com a atividade
de pesquisa e com o que vem acumulando:
“Prezo ser reconhecida como a professora” ... “Gosto de ser referência para os
alunos” ... “Se eles querem discutir assuntos da minha área estou como
referência” ... “Isso é uma satisfação para mim” ... “além disso, tocar as
minhas pesquisas” ... “Adoro trabalhos de avaliação de qualidade de
Instituições” ... “outro ponto é o meu acervo de materiais e publicações
decorrentes”.
O trabalho como professora universitária também propiciou o seu engajamento
no movimento docente: “desde que comecei a dar aulas, na Universidade X, tenho me
Evenice Santos Chaves O racismo na Trajetória Escolar e Profissional... 332

engajado em todos os movimentos”. A respeito dessa atuação, mencionou que participa


das ações do movimento, “em comando ou como responsável por algum tipo de
atividade”, e os ganhos pessoais decorrentes das interações sociais que constituem-se
na militância: “isso também possibilita um maior leque de contatos com outros
docentes” ... “Pude refinar algumas posições”.
Relativo ao racismo, os dados referentes ao percurso da participante/informante
no mundo do trabalho, são indicativos de que, ao longo dos seus anos de vida como
profissional, não observou situações perpassadas por relações racializadas. Todavia, ao
se considerar a circunstância de que o racismo contra o negro ocorre nos espaços
instituicionais e em outras esferas do cotidiano, de forma aberta ou encoberta, e que a
aparência de Marise a coloca como partícipe do grupo étnico branco, esteticamente
hegemônico, é pertinente concluir que esse fenômeno social permaneceu invisível para
a mesma.
O seu trajeto profissional mostra que, em sua vida, a escolarização foi via de
mobilidade social ascendente. Salienta-se que, embora fizesse parte do contigente das
vítimas das desigualdades sociais, o grau de pobreza que a atingiu desde a infância até a
juventude não impediu o término do ciclo de escolarização. Indo adiante, ainda
completou três níveis de pós-graduação, de forma continuada, não obstante atrasasse,
em um ano, a conclusão do terceiro grau.
No contexto da sua trajetória de vida, ingressar como docente do ensino superior
redundou em melhor remuneração e acesso a bens e serviços que dantes não desfrutara.
Ainda oportunizou novos relacionamentos sociais, com pessoas situadas em um patamar
sócio-econômico diferente daquele dos seus pais e amigos da juventude, os quais
construiu nos anos de graduação. Porém, ressalta-se que a mobilidade social ascendente
de uma pessoa de etnia branca não significa que os pobres, com fenótipo branco,
ascendem socialmente em grupo, devido ao privilégio da cor.
É interessante ressaltar que, reportando-se ao seu comportamento dirigido às
colegas da graduação, economicamente abastadas, verbalizou: “insanidade! Às vezes eu
avalio: pura insanidade”. Essa avaliação pode decorrer da compreensão mais acurada
sobre a natureza estrutural das desigualdades sociais ou da própria mudança em seu
nível sócio-econômico. Tal modificação deslocou aquele aborrecimento e hostilidade
dirigidos a alguns colegas na graduação, para a aceitação das diferenças sociais.
Evenice Santos Chaves O racismo na Trajetória Escolar e Profissional... 333

8.2.6. Qual o olhar de Marise sobre si mesma?


Sobre suas características pessoais, Marise destacou a posição que ocupava nas
brincadeiras de infância: “hoje, quando observo crianças brincando, percebo que tinha
o comportamento de localizar-me na periferia”. Esse, sugere timidez, também
observada na descrição que fez sobre o modo de se relacionar com colegas, quando
realizou um estágio na adolescência: “na Empresa 1 eu não era muito extrovertida, mas
conseguia falar as coisas que queria, embora de forma... bastante lacônica”.
Ao realizar descrições das suas características no momento atual do seu curso de
vida, salientou a autodeterminação, porém, enfatizando a timidez: “sei o que quero, vou
atrás, embora seja muito retraída, no sentido de criar espaços de interação” ... “Não
consigo fazer pares constantes para saírem comigo”. Entretanto, enfrenta a timidez
para divertir-se, “vou aos locais, mas ao chegar fico... mais introvertida” ... “Na
situação noturna de sair, de ir a um bar e ouvir alguma música, quando estou só fico
mais retraída, mais defensiva”, embora afirme que em outras situações não se porta de
forma retraída: “até me espanto comigo mesmo, porque não sou assim no meu
cotidiano” ... “Para arrumar um emprego é diferente”.
Observa-se, na processualidade do desenvolvimento da entrevistada, a dialética
entre a permanência e a mudança de uma singularidade, o seu retraimento, expressa na
contradição entre ser tímida em determinada situação e não ser em outra. Para Bock e
Gonçalves (2005), o conteúdo subjetivo das experiências humanas são expressões dos
lugares e das posições contraditórias nos quais a pessoa experiencia a realidade e usa as
suas capacidades. Em relação à participante/informante, conjetura-se que a contradição
entre ser tímida em uma situação e não sê-lo em outra deriva das diferentes condições
constitutivas das duas situações, estar em bares e em locais em busca de emprego, as
quais fazem emergir diferentes significados e sentidos. Como afirma Rey (2005), os
significados e sentidos sempre estão atrelados a significações elaboradas em anteriores
experiências sociais, porém atualizadas e transformadas a cada novo momento, devido
às novas circunstâncias e experiências.
Marise asseverou que outros a consideram agradável, “as pessoas dizem que
eu... sou simpática” ... “Não antipatizam de cara comigo”. Essa característica, atribuída
por outros e explicitada no convívio social através de palavras, foi apropriada pela
entrevistada: “como professora, eu sou bastante simpática... com a turma, porém sem
Evenice Santos Chaves O racismo na Trajetória Escolar e Profissional... 334

prejudicar o conteúdo...”. Para Martínez (2004), a relação com outros é fundamental na


constituição da subjetividade e, como observado nos conteúdos acima especificados, é a
partir da interação com outros que Marise constitui-se como elaboradora de um sentido
sobre si mesma, expresso como uma caraterística pessoal: ser simpática.

8.2.7. Qual o olhar de Marise sobre o papel do racismo contra o negro em


sua vida?
Ser portadora do privilégio da cor, viver distanciada dos negros e ser indiferente
às relações sociais racistas, contribuiu para que o racismo contra o negro não adquirisse
um significado pessoal na vida já vivida pela participante/informante: “os, os...
incidentes, não é?...” ... “Eles aconteceram, eu presenciei, não é?” ... “Mas... não me
influenciaram”.

8.2.8. O projeto profissional de Marise


Marise expôs seu plano para um tempo vindouro, “como projeto profissional
para o futuro, o meu sonho de consumo é conseguir montar uma instituição de
atendimento infantil” ... “Aquela dos meus sonhos”. Na mesma, toda criança deverá ter
autonomia, o corpo técnico deverá atuar como um parceiro e orientar-se por tal
autonomia:
“Quero um local tão grande onde a criança decreta” ... “Onde exista em cada
espaço dois ou três profissionais disponíveis para serem os seus parceiros” ...
“Coloca-se como o parceiro, que pode ser aceito ou recusado pelo pequeno”...
“Um profissional que mostra a disponibilidade dos objetos naquele espaço”.
Dessa forma, o seu projeto profissional para o futuro desloca-se da docência no
ensino de terceiro grau para a organização e o gerenciamento de uma instituição que
preste serviços a crianças. Compatibiliza-se, no entanto, com a sua atividade acadêmica
de realizar pesquisas, notadamente aquelas focalizadas em avaliação de instiuições.

8.3. A análise da lista de complementação de frases


A primeira categoria, denominada “o racismo em diferentes localidade”, é
composta por três itens. A participante/informante os complementou, conforme exposto
na Tabela 11.
Evenice Santos Chaves O racismo na Trajetória Escolar e Profissional... 335

Tabela 11. O racismo em diferentes localidades

Itens Conteúdos acrescentados

O racismo no Brasil... Infelizmente continua velado.

O racismo na cidade onde Considero ameno, comparativamente a outras cidades que tive
resido... oportunidade de residir.

O racismo no bairro onde Manifesta-se através dos comentários depreciativos e


resido... comportamentos de desconfiança no lidar com negros.
Fonte: Lista de complementação de frases preenchida pela participante/informante branca.

Os conteúdos aditados sugerem que essa participante/informante é consciente da


presença do racismo no dia a dia dos brasileiros e a das suas formas de manifestação,
encoberta ou explícita. Esses são os modos de manifestação do racismo já identificados
pela literatura, mas, Guimarães (2004) afirma que a explicitação do mesmo, no Brasil, é
cada vez mais sutil nas atitudes e nos comportamentos daqueles que o praticam. Ainda
nessa categoria, outro dado interessante é a avaliação comparativa que ela realiza entre a
expressão do racismo na cidade onde mora e em outras onde já residiu. Isso aponta para
a possibilidade de uma relação entre cidades de diferentes regiões brasileiras e a
incidência do racismo.
Na segunda categoria, intitulada “o racismo em instituições sociais”, os itens e a
complementação dos mesmos, pela participante/informante, são apresentados na Tabela
12.
Considerando-se a instiuição familiar, verifica-se que, na sua família de origem,
o racismo contra o negro perpassa o cotidiano das interações sociais. Assim, supõe-se
que a participante/informante, ao longo do seu processo de desenvolvimento, esteve
exposta a práticas sociais racistas, porém os dados não permitem assegurar se foi ou é
autora de piadas depreciativas ou de comentários que maculam a imagem do negro, ou
ela apenas observou e observa, passivamente, as interações sociais em seu contexto
familiar, mediadas por falas racistas. Por outro lado, enquanto esteve casada, não
ocorreram manifestações racistas e isso é um indício de que a participante/informante
não as praticou ou pratica.
Sobre a presença do racismo contra o negro na escola, verifica-se que esse
Evenice Santos Chaves O racismo na Trajetória Escolar e Profissional... 336

fenômeno social fez parte da vida escolar da participante/informante: no primeiro grau,


era dirigido às crianças negras, notadamente nas situações recreativas, enquanto na
universidade expressava-se em falas, cujos conteúdos racistas apresentavam-se sob a
forma de gracejos, ou seja, através da discriminação indireta. Contudo, tomando a
universidade como local de trabalho e, especificamente, o espaço onde atua como
docente, a participante/informante mencionou que não observa indícios de atos racistas.

Tabela 12. O racismo em instituições sociais

Itens Conteúdos acrescentados

O racismo na minha família de Manifesta-se através de piadas pejorativas, comentário acerca da


origem... aparência física, ressaltando falta de limpeza e associações das
atividades realizadas pelos negros como mal feitas.

O racismo na família que Não está presente.


constituí...

O racismo nas escolas que Estava presente nas formas de referências às crianças negras que as
freqüentei... freqüentavam, principalmente em contextos de brincadeiras.

O racismo na universidade... Expressa-se através de comentários jocosos.

O racismo no local onde Não vejo indícios.


trabalho...
Fonte: Lista de complementação de frases preenchida pela participante/informante branca.

A partir dos dados anteriormente descritos, conclui-se que a escola é uma


instituição social reprodutora do racismo contra o negro, embora não se verifique a
presença desse fenômeno social em todos os espaços institucionalizados de trabalho, na
Universidade X.
Na terceira categoria, nomeada “o racismo como fenômeno social segregador”,
os itens e a redação que os complementa, realizada pela participante/informante, são
visualizados na Tabela 13.
Os conteúdos acrescidos ao primeiro item denotam que a participante/informante
compreende o racismo como um preconceito de cor, o que dá invisibilidade à dimensão
estrutural desse fenômeno. Os conteúdos acrescentados ao segundo item indicam que as
discriminações raciais são discernidas por ela. Finalmente, aqueles aditados ao terceiro
item expõem, claramente, que não é objeto do racismo.
Evenice Santos Chaves O racismo na Trajetória Escolar e Profissional... 337

Portanto, na sociedade brasileira, a pessoa de fenótipo branco é portadora do


privilégio simbólico da cor, o qual delega, aos membros desse grupo étnico, o suposto
estatuto da superioridade estética, intelectual e emocional. Alguns revertem essa
hipotética supremacia em um poder, empregando-o para discriminar e desqualificar o
negro.

Tabela 13. O racismo como fenômeno social segregador

Itens Conteúdos acrescentados

O racismo é... Um preconceito com relação à cor das pessoas.

O racismo nas relações sociais Nota-se através de piadas e comentários depreciativos.


em geral...

O racismo na minha vida... Não está presente.


Fonte: lista de complementação de frases preenchida pela participante/informante branca.

8.4. A triangulação
Concernente ao racismo contra o negro, o primeiro aspecto a destacar é que, no
questionário sócio-econômico, a participante/informante especificou que o pai é pardo
e, na lista de complementação de frases, há um dado sobre manifestações do racismo
contra o negro, em sua família de origem. Vale salientar que, na entrevista narrativa, ela
caracteriza o seu genitor como a pessoa que tensiona os relacionamentos interpessoais,
no contexto familiar.
A triangulação desses dados permite articular uma complementaridade entre os
mesmos e identificar uma contradição: uma pessoa do grupo étnico negro é membro de
uma família multirracial, mas, em seu ambiente familiar, ocorrem práticas sociais de
desqualificação do negro. Será que o pai da participante/informante era e/ou é objeto de
desvalorizações geradas pela cor da sua pele em casa? Não há dados que permitam
confirmar ou rejeitar esse questionamento, contudo, chama atenção o fato dele ser o
elemento tensionador das interações sociais entre os membros da família, a ponto de
provocar brigas, relacionar-se com a participante/informante através da mediação de sua
mãe e jamais ter dirigido um comportamento carinhoso a essa filha, como apontam
dados da entrevista narrativa. Isso significa dizer que, por coincidência ou não, o
Evenice Santos Chaves O racismo na Trajetória Escolar e Profissional... 338

membro da família de cor parda era o produtor de conflitos e aquele que se relacionava
com os filhos de modo distante, em muitos momentos do ciclo de vida já vivido pela
participante/informante.
Outro ponto complementar entre dados, proveniente da entrevista narrativa e da
lista de complementação de frases, diz respeito à descrição de situações atravessadas
por relações sociais racializadas: se, na entrevista, a participante/informante expôs
acontecimentos que incluíam o racismo contra o negro e que os observou em um
momento da sua idade adulta, na lista de complementação de frases, além de ressaltar a
presença do racismo na sua família de origem, apontou a ocorrência da discriminação
racial na instituição escolar, em três níveis de ensino, e no bairro onde reside. Ademais,
no instrumento em foco, reconheceu a presença desse fenômeno social no nosso país,
atravessando as relações sociais de forma dissimulada ou direta.
Ainda cabe destacar que a participante/informante não verbalizou, na entrevista
narrativa, se não é objeto da discriminação racial, contudo, na lista de complementação
de frases, adicionou ao item “o racismo na minha vida”, o registro de que ‘não está
presente’. Além disso, não ser objeto do racismo, e ser de cor branca, dá sustentação à
colocação de Bento (2002b) de que a branquitude confere privilégios. Dentre eles, tem-
se o privilégio da cor, noção empregada em interpretações realizadas nesta pesquisa.
Finalizando, conclui-se, mais uma vez, que o emprego da triangulação dos dados
permite identificar relações de complementaridade entre aqueles advindos de diferentes
fontes. Aqui, a configuração geral da análise comparativa realizada fundamentou-se em
dados gerados pela entrevista narrativa, pelo questionário sócio-demográfico e pela lista
de complementação de frases.
CAPÍTULO 9

CONSIDERAÇÕES FINAIS

A partir de 1930, estudiosos de diferentes áreas têm apresentado propostas para a


mudança no significado do termo raça, ou para a sua substituição. Tudo isso para prover
subsídios ao processo de transformação social, que é cultural, através da recusa ao
significado biológico desse termo. Essa é uma contribuição da ciência ao processo de
banimento do racismo contra o negro, na sociedade ocidental.
Tentativas para a substituição da palavra raça do cenário científico vão desde a
comprovação, proveniente da pesquisa genética, de que não existem raças humanas, à
distinção na grafia da palavra: de raça para ‘raça’, como um divisor de águas entre o
significado biológico do vocábulo e a sua significação enquanto construção social.
Apesar disso, a concepção de raça elaborada pelo racismo científico do século
XIX, continua operando em algumas relações sociais racializadas que trazem, implícita
ou explicitamente, as noções de diferentes espécies entre os seres humanos, ou de
superioridade cultural, estética e intelectual do grupo étnico branco. Tais noções se
manifestam em falas racistas, difundidas por diferentes meios ou são expressas em
diálogos entre interlocutores, que desqualificam o negro.
Desse modo, a operatividade do significado biológico de raça materializa-se de
diversas formas, tanto explícitas como tácitas. Os processos psicossociais formulados
por Bento (2002a) evidenciam como a idéia de superioridade do grupo étnico branco
está estruturalmente arraigada na sociedade brasileira e confere vantagens a membros
desse grupo, dentre elas a de favorecer a construção de uma identidade étnica positiva,
grupal e individual, enquanto a desqualificação dos membros do grupo negro dificulta,
para muitos, a elaboração de uma identidade étnica positiva, tanto social quanto pessoal.
Nesta pesquisa, identificou-se a operatividade da noção de raça em dados da
participante/informante de cor preta, referentes a situações nas quais foi objeto do
racismo, em diversos espaços sociais, durante a sua trajetória escolar, profissional e
Evenice Santos Chaves O racismo na Trajetória Escolar e Profissional... 340

como docente do ensino de terceiro grau.


No curso de seu processo de desenvolvimento, já na infância foi excluída de
uma dança, pela sua professora, porque essa a significou como aquela que fazia parte do
grupo de alunos feios. Esse acontecimento teve repercussões psicológicas na sua noção
de si mesma como pessoa ‘bonitinha’, que havia construído até então. Ademais, esse
evento implicou em uma crise e em re-significações, produtoras da emergência de um
processo de aprendizagem sobre a categorização social, a qual hierarquiza negros e
brancos na cultura brasileira, e, também, de um modo de lidar com o racismo contra o
negro na vida cotidiana.
O confronto da participante/informante preta com a prática social discriminadora
acima descrita revela a primazia da estética branca, como um referencial orientador para
os relacionamentos interpessoais, e as suas implicações na subjetividade de pessoas de
cor negra e de cor branca. Desse modo, dados deste trabalho apontam para a relevância
de estudos interdisciplinares realizados na área da Psicologia, com a finalidade de se
abranger, nos mesmos, a dimensão estrutural, relacional e psicológica do racismo contra
o negro.
Como os dados também mostraram, na posição de professora do ensino superior,
a participante/informante preta foi objeto do racismo explícito em outras situações do
dia-a-dia: no bairro em que morou, foi confundida com uma empregada doméstica; foi
assediada para modificar a textura do seu cabelo; na universidade, seu local de trabalho,
foi representada como um animal em uma peça; foi tomada como ladra, na via pública e
em uma loja; foi impedida de descer pelo elevador social em um prédio; foi considerada
como seqüestradora de uma criança branca, sua enteada, e, em diversos espaços sociais,
é ponto de confluência de olhares, quando está com o seu companheiro, de cor branca.
A noção do negro como ser vadio e perigoso, estruturalmente sedimentada na
cultura brasileira desde o pré-abolicionismo, esteve implícita em dois dos atos racistas
acima mencionados. Esse dado da realidade social mostra a importância do conceito de
tempo de longa duração no estudo do racismo contra o negro, o qual requer um aporte
teórico, histórico e contextualizado. A presente pesquisa seguiu essa trilha, empregando
o enfoque interdisciplinar, e contribui na compreensão de como discriminações raciais
dirigidas ao negro se enraízam em momentos anteriores da nossa história social, que,
apesar de se modificar, mantém elementos estruturais, para ser possível a continuidade
Evenice Santos Chaves O racismo na Trajetória Escolar e Profissional... 341

da subjugação do grupo étnico negro.


Conteúdos da sua narrativa, sobre as próprias experiências com o racismo contra
o negro, permitiram identificar que, em um acontecimento perpassado por relações
sociais racializadas, o comportamento de algumas pessoas orientou-se pela idéia do ser
humano negro como um animal inferior. A representação da participante/informante de
cor preta como macaca, em uma peça, nada mais significava que apresentá-la como
incapaz de assumir posições administrativas de relevância, em uma instituição de ensino
superior.
Os dados referentes às demais formas de racismo, das quais foi objeto,
reafirmam a circulação, em nossa sociedade, da imagem social do preto como ladrão,
portanto sujeito perigoso; a caricatura do preto como empregado doméstico, portanto
uma pessoa apta apenas para assumir posições ocupacionais que requerem nenhuma ou
mínima escolaridade; a ideologia do embranquecimento, que pressiona o negro para
mascarar aspectos do seu fenótipo e a reação de pessoas frente a casais multirraciais.
Clichês ideológicos fundem o antigo com o novo, expondo as vísceras da
permanência de um tempo histórico de longa duração, que lastreia o racismo contra o
negro no Brasil. Contudo, não se pode perder de vista que outros mantenedores desse
fenômeno, como a necessidade de manutenção dos privilégios, simbólico, econômico e
social, do grupo étnico branco, bem como diferentes vias de manifestação do racismo,
conformam cada tempo social. Destarte, o estudo desse tema necessita superar a sua
vinculação apenas à escravidão e, nessa, suplantar o atrelamento apenas ao processo de
coisificação do negro.
A resistência e a luta dos negros contra a opressão, no passado e no presente,
permanecem com reduzida visibilidade, contribuindo na manutenção de uma concepção
social desse grupo étnico como constituído por pessoas submissas e passivas. Dados
deste estudo desvelam que a participante/informante de cor preta empreendeu ações na
militância política e, hoje, as empreende no movimento negro, visando a se posicionar
na sociedade como sujeito de direitos e colaborar no combate às desigualdades sociais e
raciais.
Apesar da sua trajetória de vida ser perpassada pelas citadas desigualdades, seu
estilo narrativo caracteriza-se pela ênfase em suas realizações pessoais, pela omissão de
conteúdos sobre fracassos, que certamente ocorreram, enquanto os relatos sobre as
Evenice Santos Chaves O racismo na Trajetória Escolar e Profissional... 342

próprias experiências sociais em relações racializadas apresentam-se sem um tom de


vitimização e auto-indulgência. Caso as características estilísticas da narrativa elaborada
por uma pessoa, sobre o seu curso de vida, revelem algo da sua singularidade, então se
pode afirmar da existência de uma compatibilidade entre o estilo narrativo dessa
participante/informante e a visão de si mesma que elaborou: autodescreveu-se como
uma pessoa negra, portadora de características pessoais positivas, em termos de humor,
de relacionamentos interpessoais e de reivindicação de direitos. Todavia, apesar de se
autodefinir como tranqüila e calma, não mascarou que, às vezes, perde a paciência em
situações de interação social onde o racismo e a usurpação de um direito está em jogo.
Também descreveu que hoje apenas briga por grandes coisas, o que é indicativo de um
processo de mudança em uma característica pessoal.
Os dados também revelam que o racismo contra o negro balizou a construção de
sentidos sobre o lugar desse fenômeno social em sua vida: algo que define o ser negra;
algo que está presente nas relações cotidianas; algo que marca toda a sua vida; algo que
dirige todas as suas ações; algo que dirige todas as suas escolhas; algo que dirige todas
as atividades que realiza; algo que a faz minimizar determinadas coisas para sobreviver
e algo que a ensinou a ser pedagógica nas relações interpessoais com alguém que é
racista.
Rey (1997) salienta que configurações subjetivas são o nexo que integra os
significados sociais culturalmente partilhados e os sentidos pessoais. Nesses, continua o
autor, estão arraigadas a intencionalidade, as emoções e a consciência auto-reflexiva.
Constata-se que os sentidos sobre o racismo, elaborados pela participante/informante de
cor preta, trazem o sinete da sua vida social em uma sociedade racista. Nos sentidos que
organizou, sobre o papel do racismo em sua vida, são captáveis a participação da
intencionalidade e da consciência auto-reflexiva.
Levando-se em conta que não há ação ou relação interpessoal desprovidas de
emoções, esse componente também participou do processo de construção dos sentidos
sobre o fenômeno do racismo contra o negro. Mas os dados mostram que as emoções
foram pouco focalizadas na narrativa da participante/informante preta. Essa lacuna
remete às crenças circulantes na sociedade ocidental sobre a expressão das emoções.
Fischer e Jansz (1995) enfatizam que os ocidentais, referenciados em um modelo
racional de pessoa, tratam as emoções como se fossem algo primitivo, associando a sua
Evenice Santos Chaves O racismo na Trajetória Escolar e Profissional... 343

natureza à animalidade e divulgando modelos de pessoa racionais, nos quais elas são
afirmativas, seguras, responsáveis pela própria vida e pelas suas ações. Os referidos
pesquisadores aditam que o ato de manifestar emoções é socialmente interpretado como
evidência de problemas, o que implica na rejeição social e na perda de status como
pessoa respeitável.
Cavalcante (2004), ao analisar a formulação de Gordon Allport sobre um
elemento constitutivo do racismo, o preconceito, conclui que esse autor o aborda como
categoria psicológica, referenciando-se na racionalidade científica, ou seja, orientando a
sua análise pelo princípio da razão. Desse modo, assegura a estudiosa, Allport situa o
preconceito como uma questão centrada na carência de conhecimento, por parte do
preconceituoso.
Na construção de conhecimentos científicos, o emprego da racionalidade como
referencial transcende a Gordon Allport, pois a literatura consultada sobre o racismo
contra o negro o enfoca de forma racional, desconsiderando-se o papel que as emoções
e que a ética relacional desempenham nas relações sociais racializadas. Madureira e
Branco (2005) afirmam que em Psicologia do Desenvolvimento, nos diferentes pontos
de vista teóricos, relega-se um papel secundário às emoções e o estudo dessa categoria
configura-se, contemporaneamente, como um dos mais relevantes desafios.
O racionalismo científico, embutido em estudos, está incorporado no conceito
ocidental de pessoa, daí decorrendo que essa tem desqualificado as emoções, enquanto a
ciência as tem desvalorizado como objeto de estudo. Tais questões mostram que é
necessário realizar pesquisas sobre o papel das emoções e das suas formas de expressão
nas relações sociais racializadas.
Esta pesquisa, um estudo sobre trajetórias de vida, portanto abrangendo o
processo de desenvolvimento humano, sugere que é importante desvelar porque uma
pessoa negra, objeto do racismo ao longo do seu curso de vida, omite as emoções que
emergiram nas situações atravessadas pelas desigualdades raciais vivenciadas. Essa é
uma questão que precisa ser investigada.
Como sujeito da sociedade ocidental, que pressiona a todos para a racionalidade,
e, também, como membro de uma comunidade científica racionalista, esta pesquisadora
admite o seu olhar teórico mais racional, embora tenha conferido atenção aos dados
referentes aos sentimentos e se apropriado de construções teóricas que vão além da
Evenice Santos Chaves O racismo na Trajetória Escolar e Profissional... 344

racionalidade, para referenciar este estudo.


Dados evidenciam que o racismo explícito foi dirigido à participante/informante
de cor preta, mas apenas o racismo moderno, expresso de modo sutil (Lima e Vala,
2004a) foi empregado nas discriminações raciais dirigidas à participante/informante de
cor parda. As diversas situações racializadas, que experienciou, foram manifestadas
através da discriminação indireta, ou seja, de forma disfarçada. Assim, resultados desta
pesquisa revelam formas argutas de expressão do racimo dirigido à pessoa de cor parda,
as quais contribuem para manter a invisibilidade desse fenômeno. Guimarães (2004)
coloca que um desafio atual no estudo do racismo contra o negro é o de identificar a
sutileza com a qual o mesmo é engendrado. Esta pesquisa contribui na identificação do
racismo expresso de forma ardilosa.
Dados sobre o racismo expresso com sutileza, dirigido à participante/informante
de cor parda, mostram que o elogio da mestiçagem, explicitado na ideologia mítica da
democracia racial, é desbancado, ao se elegerem algumas vivências de pessoas mestiças,
descendentes de negros, para estudar o fenômeno social do racismo. Guimarães (2002)
afirma que o mito implica na aceitação do mestiço como um alicerce na formação étnica
do povo brasileiro, contudo esse grupo étnico não é referência como produtor de cultura
e, também, é preterido no processo de participação social.
A máxima de que no Brasil ninguém é branco, que todos somos mestiços, que
todos temos sangue negro, torna invisível a natureza do racismo brasileiro, ou seja, que
ele é cromático e não de origem, graças à decisão política do embranquecimento da
população, visando à eliminação do preto e ao branqueamento fenotípico do mestiço.
A presente pesquisa revelou que uma pessoa socialmente intitulada de parda, ora
se autoclassificou cromaticamente como negra, ora como morena. Isso, além de indicar
a dificuldade dessa participante/informante em assumir a identidade negra, aponta a sua
sujeição a um processo de embranquecimento cultural: foi criada em uma família do
tipo nuclear, portanto no referencial do modelo familiar eurocêntrico; teve experiências
de vida, familiar e extrafamiliar, que não incorporaram nenhum vestígio de aspectos da
cultura negra; referenciou-se no padrão estético branco, o que a fez rejeitar o cabelo;
conviveu com negros da infância à juventude, porém distanciou-se desse convívio, e,
também, elaborou um sentido para as desigualdades que nega as discriminações raciais
das quais foi objeto.
Evenice Santos Chaves O racismo na Trajetória Escolar e Profissional... 345

A justificativa dessa participante/informante, para o racismo do qual foi objeto, é


a de que a sua segregação decorria da sua condição de pobreza e habitante de uma
região brasileira, ideologicamente significada como uma das mais atrasadas, em termos
econômicos e culturais, e menos embranquecida.
Ao atribuir tal sentido às discriminações e, assim, justificar a sua inclusão social
excludente, expôs uma conflituosa relação com a sua identidade étnica e com aspectos
do seu fenótipo. Ademais, fatores que compõem a auto-imagem negativa do grupo
étnico negro estão presentes em sua forma de ser, como, por exemplo, o sentimento de
inferioridade, a insegurança, a passividade, a submissão e a fragilidade para inserir-se
no movimento negro e apoiar-se, tendo em vista o seu fortalecimento como pessoa.
É interessante atentar para o modo como re-escreveu a sua trajetória de vida, na
narrativa que elaborou. Sua característica estilística enfatizou o seu sentimento de
inferioridade, a sua insegurança, a necessidade de apoio e de proteção e as dificuldades
pelas quais passou. A análise dos dados, entretanto, indica que, a despeito disso, teve
uma trajetória de lutas e de superação de adversidades, subestimadas no modo como
organizou as suas experiências e interpretou as vivências significativas.
Retomando o seu curso de vida, constata-se que foi capaz de administrar a casa
aos doze anos de idade; que o exercício dessa tarefa não implicou em reprovações
escolares; que empregou estratégias para driblar o controle do pai e orientar a própria
vida; que tomou a decisão de separar-se do marido e construiu meios para fazê-lo, ainda
que estivesse residindo em outro estado, longe da disponibilidade do apoio diário de
membros da sua família de origem e de amigos; que foi capaz de concluir uma trajetória
escolar; que ingressou na pós-graduação e hoje é aluna do doutorado; que, com apoios,
ingressou na carreira de docente do ensino de terceiro grau com uma certa insegurança,
porém estudou e, atualmente, é reconhecida como uma boa profissional do ensino, pelos
colegas do seu departamento, e que traçou um objetivo, atingindo-o, pois desde a morte
da mãe queria ter a sua casa, ser independente e já concretizou essa meta. Além disso,
três aspectos merecem destaque, quando se consideram as suas realizações.
O primeiro é o de que prestou uma seleção para o mestrado, foi aprovada, mas
não tinha professor orientador disponível. Então, foi capaz de deslocar-se, sozinha, para
outro estado, onde se submeteu a um processo seletivo, foi aprovada e, a despeito da sua
insegurança, do medo, do mutismo nas aulas, da pouca ajuda fornecida pelo orientador e
Evenice Santos Chaves O racismo na Trajetória Escolar e Profissional... 346

da discriminação a que esteve submetida, foi a primeira aluna da sua turma a concluir a
dissertação.
O segundo ponto é o de que enfrentou tentativas de questionamento à qualidade
da sua dissertação de mestrado, os comentários jocosos sobre o fato de tê-la concluído
antes que outros colegas e a defendeu na data que estipulou.
O terceiro ponto diz respeito à sua perseverança em inserir-se na docência: foi
reprovada no primeiro concurso a que se submeteu; no segundo, teve uma crise de
ansiedade e não conseguiu fazer a prova, o que implicou em outra reprovação; recusou-
se a fazer a sua inscrição em outro exame de seleção, por considerar-se incapaz, porém
tentou, pela terceira vez, ingressar como docente efetiva do ensino de terceiro grau em
uma universidade, buscou apoio social durante a fase de preparação para as provas, e foi
aprovada.
O enfoque nas realizações da participante/informante de cor parda mostra que
por trás do mérito de uma pessoa pobre e negra, está cravado em suas conquistas um
conjunto de dificuldades sociais, partícipes da articulação dos seus limites pessoais. Os
obstáculos que surgem, ao longo do curso de vida da pessoa negra e pobre, que busca a
mobilidade social ascendente através da via da escolarização, requerem um conjunto de
esforços para a superação de adversidades. No entanto, tais esforços permanecem
invisíveis e não são considerados, quando se avalia, quantitativamente, a escolaridade, a
ocupação e a renda do grupo étnico negro.
Um estudo qualitativo, como este, que se concentra em trajetórias de vida e
focaliza o racismo, nos percursos escolares e profissionais de pessoas pobres e negras,
as humaniza e expõe o quão tortuoso foi o caminho percorrido, para modificarem os
seus estilos de vida. Essa é uma contribuição da presente pesquisa ao entendimento de
que nem só o mérito pode ser empregado como critério para a avaliação de pessoas, em
diferentes instâncias da vida pública, pois nem todos partem do mesmo ponto, ou seja,
de situações que configuram igualdade de oportunidades, nem são tratados de forma
igualitária nas relações interpessoais, consolidadas em diferentes contextos da sociedade
e, particularmente, nas instituições de ensino. Tais diferenças remetem à necessidade de
realização de pesquisas sobre a dimensão ética que perpassa o estudo do racismo na
trajetória escolar de negros e brancos e dos limites do critério do mérito na avaliação e
alocação de pessoas para ocuparem diferentes posições e cargos.
Evenice Santos Chaves O racismo na Trajetória Escolar e Profissional... 347

A esse respeito, salienta-se que o ingresso da participante/informante branca,


que era pobre, como bolsista de iniciação científica durante a graduação, ocorreu à
margem de um critério acadêmico em voga em muitas universidades: a competência em
ler inglês. Longe disso, o professor que a incluiu como bolsista, apenas considerou as
razões expostas pela estudante para pleitear a bolsa e essas informações subsidiaram a
avaliação daquele docente. Assim, necessitar de dinheiro e querer aprender foram os
critérios a partir dos quais ele tomou a decisão de acolhê-la no seu grupo de pesquisa.
Esse professor confiou na possibilidade da estudante se desenvolver, o que
ocorreu, pois, embora a mesma não soubesse ler textos em inglês, investiu nesse
aprendizado, inicialmente com o apoio social de colegas, e foi capaz de desempenhar as
funções que lhe foram atribuídas. Tal evento, mais uma vez, explicita que o mérito
como critério de avaliação, fundamentado apenas em notas e na prontidão em uma
língua estrangeira, exclui os alunos pobres, nega-lhes a oportunidade de progredirem em
seus percursos escolares e de se prepararem com mais consistência durante a graduação,
para, depois, enfrentarem o mercado de trabalho.
O acontecimento focalizado também evidencia a existência de professores que
se referenciam na ética como produtora de justiça social. Na situação acima descrita, o
fruto foi a experiência de uma aluna pobre como bolsista de iniciação científica, marco
que a conduziu à carreira docente e a tornar-se pesquisadora.
Considerando-se a participante/informante socialmente intitulada de branca, ela
foi isenta de ser objeto do racismo, ao longo do seu ciclo de vida já vivido, devido ao
que Bento (2002a) denominou de privilégio da cor. Esse dado, aliado ao de que o seu
pai é pardo, confirma o que Nogueira (1985) já constatara: o racismo brasileiro é
cromático, não de origem.
Entender esse ‘racismo à brasileira’ remete à decisão política de embranquecer a
nossa população, no século XIX, com o intuito de eliminar o negro, modificando a cor
das pessoas, sua aparência fenotípica e os vestígios da cultura negra, através da
miscigenação. A imunidade da participante/informante de cor branca frente ao lugar de
objeto do racismo revela que o processo de branqueamento, aparentemente desprezado
já em meados do século XX, ainda influencia o modo de viver dos brasileiros, pois
exclui aqueles com fenótipo branco, descendentes de pessoas pardas, da hierarquização
que transforma diferenças fenotípicas em desigualdade racial.
Evenice Santos Chaves O racismo na Trajetória Escolar e Profissional... 348

Porém, essa imunidade não a isentou de presenciar acontecimentos envolvendo o


racismo dirigido a colegas negros, na escola de primeiro grau e durante o doutorado.
Apesar de manter-se indiferente diante dessas situações e significar as cenas de racismo
que presenciou como algo que não exerceu influência no seu repertório pessoal, não é
possível afirmar que ela se postou com neutralidade, frente ao referido fenômeno social.
A omissão também significa contribuir na manutenção das relações racializadas, pois o
racismo, enquanto processo relacional, envolve negros e brancos, de diferentes modos e,
por isso, considera-se que a indiferença e o silêncio são formas de participação, as quais
contribuem na manutenção do racismo contra o negro.
Verifica-se, através de dados, que a participante/informante de cor branca, por
diferentes vias, construiu um conhecimento sobre a presença do racismo no cotidiano de
pessoas de cor, ou seja, conhece, a partir da vida diária, e reconhece, que o fenômeno se
expresso de modo concreto. Isso leva à afirmação de que a neutralidade não decorre do
desconhecimento ou da invisibilidade do racismo e, também, sugere a necessidade de
realização de pesquisas que identifiquem os fatores constitutivos do descompromisso,
social e pessoal, do branco, frente à opressão dirigida às pessoas negras, manifestada
nas relações sociais racializadas.
Embora essa participante/informante silenciasse nas situações perpassadas pelas
desigualdades raciais, o mesmo não ocorreu diante de desigualdades sociais entre ela,
seus colegas pobres e as colegas ‘ricas’, quando cursou a graduação. Ao constatar as
diferenças sócio-econômicas entre tais colegas, através da verificação de diversidade no
poder aquisitivo dos alunos pobres e dos ricos, bem como da observação dos confortos e
das facilidades que o dinheiro propiciava, desenvolveu um sentimento de hostilidade
face àquelas colegas financeiramente mais abastadas. Também emergiu um sentimento
de aborrecimento, ao vislumbrar que as diferenças econômicas entre elas proporcionava
condições ótimas para cumprirem as exigências que o curso de graduação requeria,
apenas àquelas ricas. Esses sentimentos indicam que é preciso estudar o modo como as
desigualdades sociais afetam a pessoa socialmente denominada de branca, que é pobre.
Por sua vez, dados reativos às desigualdades sociais e raciais, que fizeram parte
das experiências das participantes/informantes negras, não mostram a emergência de
sentimentos negativos frente às pessoas socialmente privilegiadas, quer pelo dinheiro,
quer pela cor branca. Todavia, verificou-se que a de cor parda, durante a sua infância e
Evenice Santos Chaves O racismo na Trajetória Escolar e Profissional... 349

adolescência, discriminava racialmente uma colega da sua irmã, com quem interagia.
Esse dado, como aquele de Chaves (2003a), mostram a necessidade de estudos sobre o
racismo entre crianças e adolescentes negros, com o intuito de se conhecer, pela via da
pesquisa, os fatores relacionados à presença do racismo entre pessoas que pertencem ao
mesmo grupo étnico.
A característica estilística de narrativa da participante/informante de cor branca
ressalta a sua autodeterminação para superar obstáculos, em diferentes momentos do seu
ciclo de vida já vivido, bem como para concretizar os seus objetivos. A sua narrativa
enfatiza a presença constante da timidez em seu repertório, expressa no retraimento que
dificulta a constituição de grupos de amigos. Porém, como ressalvou, não o é quando
buscava emprego, é considerada por todos como uma pessoa simpática, tem um dom
verbal que facilita a comunicação e se tornou mais extrovertida após seu ingresso, como
trabalhadora, em uma dada universidade.
Observa-se, ao longo do seu processo de desenvolvimento, a dialética entre a
permanência e a mudança de uma singularidade, expressa na contradição entre o ser
tímida em uma determinada situação e não sê-lo em outra. Bock e Gonçalves (2005)
afirmam que o conteúdo subjetivo das experiências humanas são expressões dos lugares
e das posições contraditórias, nos quais a pessoa experiencia a realidade e usa as suas
capacidades.
Os três casos analisados indicaram que a escola é via de expressão do racismo
contra o negro e, como tal, colaboradora na manutenção desse fenômeno social, em
todos os níveis de ensino. Este estudo explicitou a função reprodutivista da instituição
escolar e seu papel no processo de inclusão social excludente do negro e do branco.
Assim, evidenciou-se que as desigualdades sociais também atravessam a trajetória
escolar de pessoas pertencentes ao grupo étnico intitulado de branco, porém, ao negro,
aditam-se as desigualdades raciais.
Contudo, dados revelaram que, nos contextos cotidianos das escolas onde as três
participantes/informantes estudaram, as desigualdades não foram um foco de atenção de
professores. Outrossim, essas instituições de ensino isentaram-se de observar, destacar e
discutir como as desigualdades permeiam as relações sociais processadas no seu interior
e como as mesmas dificultam a trajetória escolar do aluno pobre e do aluno pobre e,
também, negro. Os dados sugerem que as ações educativas que ocorreram na escola
Evenice Santos Chaves O racismo na Trajetória Escolar e Profissional... 350

giraram em torno das competências acadêmicas, transformando essa instituiição em


implementadora de competências técnicas e em espaço reprodutor da hegemônica
ordem social vigente na nossa sociedade.
Desse modo, a instituição escolar contribui para camuflar desigualdades, confere
invisibilidade àquelas que atravessam o seu dia-a-dia, compactua com a manutenção de
tal obscurecimento e, ainda, fortalece o mascaramento das decisões políticas que as
perpetuam. Portanto, a escola fecha os olhos para as dimensões sociais e econômicas
que referenciam a vida das pessoas na sociedade e, em sendo assim, para o seu próprio
espaço. Tais dimensões hierarquizam os seres humanos, em temos de cor e de dinheiro,
criam possibilidades e limites que circunstanciam o modo de viver e de ser de negros,
de não negros e de pobres, membros de grupos socialmente estratificados.
Diante disso, destaca-se que a universidade também reproduz desigualdades,
enfatizando-se a necessidade da realização de estudos sobre esse tema na escola de
terceiro grau. Pesquisas poderão ser realizadas, com o objetivo de se identificar como as
desigualdades interferem nos relacionamentos sociais, no desenvolvimento acadêmico
dos alunos de diferentes grupos étnicos, de diversos níveis sócio-econômico, e, ainda,
no processo de construção das suas subjetividades.
A universidade é uma instituição que visa a formar cidadãos com competência
acadêmica, crítico-reflexiva e ética. Por isso mesmo, desempenha a função crítica de
refletir e posicionar-se frente aos mecanismos sociais de opressão vinculados às formas
de subjugação dos seres humanos. O presente estudo sinaliza que a referida instituição
tem falhado na identificação de processos opressivos que operam em diversos contextos
da sociedade e no combate às desigualdades raciais.
Nesta pesquisa, a descrição dos modos como as desigualdades sociais e raciais
operaram nas interações sociais ocorridas no interior da própria universidade, e em
outros espaços da vida social, pode contribuir na tomada de consciência do fenômeno,
por pessoas que compõem o ambiente de trabalho de tal instituição; no desenvolvimento
de suas acuidades para identificarem esses fenômenos; com o rompimento do silêncio
frente aos mesmos; com a emergência de reflexões éticas sobre a natureza do processo
relacional que caracteriza a convivência daqueles que a constitui; com a implementação
de programas de extensão universitária, em qualquer nível de ensino, que possam
colaborar no combate às dessemelhanças sociais e raciais, assim como incentivar a
Evenice Santos Chaves O racismo na Trajetória Escolar e Profissional... 351

realização de outras pesquisas sobre o tema do racismo na escola de terceiro grau.


Para diferentes autores, o negro desenvolve um sentimento de inferioridade, a
partir da sua exposição às desigualdades raciais. Aqui, a análise demonstrou que não é
pertinente generalizar, pois o desenvolvimento de tal sentimento foi verificado apenas
em uma negra, a participante/informante de cor parda, em função de circunstâncias de
vida, de experiências sociais racializadas e dos processos de subjetivação emergentes.
Os dados mostram, com clareza, que ela nutriu, desde a adolescência, um
sentimento de inferioridade, no plano intelectual e estético, envergonhou-se da condição
econômico-social que a acompanhou durante muitos anos e ainda rejeita o seu cabelo.
Resultados, pois, evidenciam que ao longo de seu curso de vida já vivido elaborou uma
visão de si mesma referenciada em uma auto-imagem desqualificadora, considerando-se
inferior a muitas pessoas, temendo-as, postando-se de modo submisso nas relações
interpessoais e sendo agressiva em algumas situações de interação social, devido à sua
inabilidade para relacionar-se com outros.
Entretanto, o convívio com a diversidade, no seu ambiente de trabalho, produziu
mudanças em sua concepção de si mesma, passando a qualificar-se como mais tolerante,
menos inapta para relacionar-se com os outros, menos submissa e mais confiante no
desempenho das suas atividades de labor. Todavia, não há indícios de que superou o
sentimento de inferioridade.
Relativamente à assunção da identidade étnica negra, colocou-a como seu
projeto atual. É interessante que citou esse objetivo no momento em que deveria falar
sobre a sua perspectiva profissional para o futuro. As demais participantes/informantes
assim o fizeram, mencionando os seus projetos pessoais centrados em atividades ligadas
ao trabalho. Esse contraste indica que a escolha da participante/informante parda,
expressar o seu desejo de assumir a identidade étnica negra, não decorreu de limites
metodológicos relacionados à situação de coleta de informações, durante a realização
entrevista narrativa.
Retomando à identidade étnica das participantes/informantes de cor preta e de
cor parda, observou-se que a primeira apresentou-se como negra. Presume-se que a sua
participação no movimento negro, além de contribuir para o seu fortalecimento como
sujeito de direitos sociais, como qualquer outro, independente da sua cor, e como ser
psicológico, colaborou na solidificação da sua identidade étnica e na resistência para
Evenice Santos Chaves O racismo na Trajetória Escolar e Profissional... 352

mantê-la. Note-se que residir em um bairro habitado por negros, até o início da sua
juventude, e ser valorizada pelas suas competências, foi um elemento importante para o
desenvolvimento dessa identidade étnica.
De outra forma, a participante/informante parda foi submetida a um processo de
embranquecimento, que dificultou a construção da identidade étnica negra. A sua
submissão a esse processo é evidenciada na rejeição de uma característica pessoal,
constitutiva do fenótipo negro: o seu cabelo, um dos elementos que marca o divisor
entre o ser branco e ser preto. Para disfarçar a textura do mesmo, durante a maior parte
do seu ciclo de vida já vivido, empregou artifícios, com a finalidade de modificá-la, na
direção de uma aproximação àquela inerente ao cabelo do branco.
Sua rejeição à textura do cabelo, a tentativa de branqueamento, através da busca
de modificação da sua aparência, a atribuição da cor preta à menina com quem brincava,
a ausência de incorporação de aspectos da cultura negra em sua vida, assim como a
invisibilidade ao racismo do qual foi objeto, não eliminaram outras percepções de que
era diferenciada racialmente, pois, em um ponto da entrevista narrativa, destacou que o
seu sentimento de inferioridade vinculava-se à cor, embora não se sentisse discriminada.
Ressalta-se que a nossa sociedade discrimina racialmente as pessoas, porém
mascara o racismo e empurra ao embranquecimento pessoas ‘de cor’. A pressão social
para se modificarem as afasta da sua etnia, com o intuito de que busquem se incluir em
uma sociedade referenciada por um modelo de ser humano branco e euro-americano.
Alguns dados desta pesquisa revelam que uma conseqüência nefasta dessa pressão
social sobre a participante/informante de cor parda manifesta-se na sua dificuldade de
desenvolver uma identidade étnica negra, porquanto buscou se aproximar culturalmente
do mundo dos brancos. Assim, não se define como de cor branca, contudo ainda não
assumiu a identidade étnica negra.
Do exposto até aqui, conclui-se que há diferentes modos de ser negro e a cor
parece relacionar-se com os mesmos. A pessoa preta foi exposta ao racismo explícito e,
desde cedo, teve mais oportunidade para conscientizar-se da sua condição de
etnicamente discriminada, o que refletiu em suas ações cotidianas, na sua aproximação e
convivência com outros negros, bem como na construção da identidade étnica. Por
outro lado, a exposição da pessoa de cor parda à discriminação indireta e ao proceso de
embranquecimento repercute em seu modo de vida distanciado de negros e dificulta a
Evenice Santos Chaves O racismo na Trajetória Escolar e Profissional... 353

construção de uma identidade étnica. Essa conclusão não pode ser generalizada para os
negros brasileiros e outros estudos que investiguem modos de ser negro no país são
necessários.
Outros achados desta investigação reafirmam que a pobreza, dimensão estrutural
da sociedade brasileira, herdada de um passado escravista, é um fator macro-social que
diferencia os brasileiros. Resultados obtidos mostram que a família de origem da
participante/informante branca também era pobre, porém não se pode esquecer que seu
pai é pardo, portanto um membro do grupo étnico que traz a marca das dessemelhanças
sociais e raciais cravadas em suas histórias de vida.
As três participantes/informantes iniciaram seus ciclos de vida no circuito da
pobreza, expressa nos seguintes indicadores: escolaridade dos seus pais e/ou cuidadores;
tipo de trabalho dos mesmos; os seus locais de residência; as dificuldades financeiras a
que suas famílias estiveram submetidas; o acesso a serviços necessários ao que se
denomina de ‘vida boa’ e os tipos de escola que freqüentaram, ao longo de suas
trajetórias escolares. Mas, ao se levar em conta os anos iniciais dos seus cursos de vida
e os indicadores acima mencionados observa-se uma relação entre cor e grau de
pobreza.
Os dados referentes aos indicadores de pobreza, já citados, indicam um inter-
relacionamento entre a cor dos pais ou cuidadores das participantes/informantes com os
seus níveis de escolaridade e ocupações. Assim, pais e cuidadores de cor preta eram
analfabetos, com ocupações que não requeriam nenhum tipo de escolaridade e, em
conseqüência, aqueles portadores de menor rendimento. De outra forma, os pais das
participantes/informantes parda e branca tinham algum nível de escolaridade: o primeiro
grau incompleto e, em decorrência, trabalhos que exigiam habilidades como escrever e
ler, o que lhes proporcionavam melhores salários, comparativamente ao avô materno e à
mãe da participante/informante de cor preta. Isso se reflete na dedicação das suas filhas
aos estudos, sem necessidade de trabalharem para custear o transporte para a escola, até
a conclusão da graduação. Conclui-se, pois, que, em relação às desigualdades sociais, a
família preta foi a que apresentou o maior grau de pobreza.
Elegendo-se os bairros onde as suas residências se situavam, enquanto viveram
até pelo menos o início de suas adolescências, observou-se uma relação entre a cor das
participantes/informantes e a localização dos referidos bairros. A entrevistada de cor
Evenice Santos Chaves O racismo na Trajetória Escolar e Profissional... 354

preta morou, até os 20 anos, no bairro mais distante do centro da cidade, ainda hoje
maciçamente habitado por pobres, precário em saneamento básico e com alto índice de
violência, segundo os noticiários. A participante/informante branca residiu até um
momento de sua idade adulta em um bairro mais próximo do centro da cidade,
atualmente urbanizado, com melhores condições de saneamento, grande supermercado,
lojas, serviços de saúde para a classe média disponíveis e, embora apresente índices de
violência, pode-se detectar pelos noticiários que são menores que aqueles relativos ao
bairro em que a de cor preta residiu. Comparativamente aos locais de residência das
participantes/informantes de cor preta e de cor branca, a entrevistada parda residiu, até
os 13 anos de idade, no segundo bairro mais distante do centro da cidade, onde ocorriam
alagamentos que atingiam a sua casa, constituindo-se em ameaças à integridade física
dos membros da família, dada a presença de animais nas águas que alagavam o quintal
da casa, como ratos e muçuns. Hoje, o referido bairro ainda apresenta essas mesmas
características e um elevado índice de violência.
Particularizando-se as participantes/informantes negras, resultados encontrados
apontaram que características da população dos bairros em que residiram, nos períodos
de vida já especificados, denotam um ponto de confluência entre as desigualdades
sociais e raciais. No caso daquela de cor preta, seus vizinhos eram egressos do êxodo
rural, pobres, negros e analfabetos, enquanto que em referência à de cor parda, a
vizinhança também era negra e analfabeta.
Outro indicador da relação entre a cor das participante/informante e os níveis de
pobreza, assenta-se na escolha dos cursos de segundo e de terceiro graus. A de cor preta
elegeu o curso pedagógico porque era profissionalizante e lhe permitiria trabalhar logo
após concluí-lo, como ocorreu, para auto-sustentar-se e ajudar financeiramente a sua
família de origem. A escolha de um curso de terceiro grau também se condicionou à
possibilidade de continuar ministrando aulas no ensino primário, para manter-se e
colaborar com a sua família.
Considerando-se as participantes/informantes de cor parda e de cor branca, as
escolhas dos cursos de segundo e de terceiro graus não se condicionaram à escassez de
recursos financeiros das suas famílias de origem. Isso não significa a inexistência de
dificuldades financeiras, ao longo de seus percursos escolares: a de cor branca e a de cor
parda freqüentaram o curso pré-vestibular porque obtiveram bolsas de estudos; a família
Evenice Santos Chaves O racismo na Trajetória Escolar e Profissional... 355

da participante/informante branca não dispôs de dinheiro para a compra de apostilas


utilizadas no cursinho e empregou a estratégia de copiar os conteúdos das mesmas em
sala de aula e de passar a estudar na casa de colegas para ter acesso ao material; o pai da
participante/informante de cor parda tinha recursos para custear materiais escolares e ela
nunca foi privada de acesso aos mesmos. Contudo, é preciso destacar o papel de
coordenadora das atividades do lar e de cozinheira que a participante/informante parda
assumiu na adolescência, após o falecimento de sua mãe. Esses papéis, provavelmente,
decorreram da falta de dinheiro do seu genitor para contratar uma pessoa que realizasse
essas tarefas domésticas.
Em síntese, os resultados até aqui descritos mostram que as desigualdades
sociais, expressas nos indicadores de pobreza identificados, atingiram a todas, mas o
grau de pobreza relacionou-se com a cor das participantes/informantes. Por outro lado,
no caso daquelas de cor preta e de cor parda, às desigualdades sociais somaram-se as
raciais, uma vez que essas representantes do grupo étnico negro residiam em bairros de
periferia mais afastados do centro da cidade e essa segregação é um indicador do
racismo do meio ambiente.
Tais resultados ainda sugerem, como questão relevante no estudo do racismo
focalizado em trajetórias de vida, a consideração do termo negro como uma categoria
que engloba a cor preta e a cor parda e, conseqüentemente, a investigação de pessoas
desses dois fenótipos e seus percursos de vida. Como já constatado, embora haja
similaridade entre alguns resultados obtidos a partir dos percursos de vida das três
participantes/informantes, alguns indicadores demonstraram que diferentes graus de
pobreza incidiram sobre as famílias negras, com maior vigor naquela de cor preta.
Ressalta-se que os resultados até aqui enfocados conferem relevância à pesquisa
qualitativa. Embora dados censitários produzidos pelo IBGE, desde 1950, demonstrem
quantitativamente a ocorrência de desigualdades sociais e raciais, entre o negro (preto e
pardo) e o branco, expressas nos indicadores escolaridade, ocupação e renda, eles não
põem à mostra como essas diferenças se manifestam no cotidiano das pessoas. Nesta
pesquisa, o dado de natureza qualitativa, no entanto, revela aspectos que conformam
dessemelhanças entre representantes dos dois grupos étnicos, ainda que compartilhem
da condição de pobreza e, ainda, aponta outros indicadores que distinguem como eles se
apresentam na vida concreta de famílias.
Evenice Santos Chaves O racismo na Trajetória Escolar e Profissional... 356

A estrutura da cultura brasileira é promotora de desigualdades sociais e raciais


que retiram a oportunidade de muitos membros de famílias se escolarizarem ou não
completarem sequer o primeiro grau, como resultados deste estudo apontam. A ausência
de oportunidades e de condições para que muitas pessoas freqüentem a escola, é a
contrapartida da prescrição ideológica de uma sociedade estratificada pelo critério
econômico e pelo racial. Todavia, a família é um locus passível de transformar papéis
ideológicos da cultura onde ela está imersa (Peres, 2005) e isso é evidenciado nas
famílias das participantes/informantes, ou em algum de seus membros, que criaram
condições para a superação da ausência de escolaridade ou da escolaridade incompleta
em seu seio, através da inserção dos filhos no processo de escolarização formal e do
envide de esforços para que completassem o ciclo formal de estudos.
Todas as participantes/informantes também tiveram o mérito de se engajarem
nos estudos e de empregarem recursos para enfrentarem e superarem as adversidades
que surgiram em seus percursos escolares. Tanto a de cor preta quanto a de cor parda
enfrentaram mais obstáculos, gerados por diferentes circunstâncias, mas contaram com
relevantes apoios sociais para prosseguirem na jornada escolar e concluírem o ciclo
formal de estudos. Atualmente, as três são docentes em uma universidade pública. Essa
instituição empregadora ofereceu uma gama de oportunidades a cada uma delas.
À de cor preta, propiciou a realização de um curso de especialização, de um de
mestrado e a chance de estar cursando o doutorado. Também oportunizou contatos com
outros professores da mesma condição étnica e isso proporcionou, no próprio espaço da
universidade, uma articulação que redundou na criação de uma entidade representativa
do movimento negro, na Cidade E. Assim é que, essa entidade, embora se constitua
como uma organização desvinculada da Universidade X, contou com ações de membros
do seu quadro.
No conjunto de trabalhos que desenvolveu na academia, além do ensino, atuou
na administração universitária, ocupando postos estratégicos em diversos setores. Além
disso, a sua habilitação universitária e o fato de ser integrante do quadro de funcionários
de uma universidade pública, ainda possibilitaram que, durante um período, ficasse à
disposição de um órgão público federal, prestando serviços vinculados às atividades que
desenvolvia como militante do movimento negro. Destarte, o espaço oferecido pela
Universidade X favoreceu a sua atuação profissional fora da delimitação geográfica da
Evenice Santos Chaves O racismo na Trajetória Escolar e Profissional... 357

referida instituição.
Porém, ressalva-se que as oportunidades que a universidade lhe ofereceu não
podem ser consideradas como os únicos determinantes dos espaços que ela ocupou e
ocupa, enquanto trabalhadora, naquela instituição de ensino. Devem ser levadas em
conta algumas características pessoais como seus os interesses, o repertório para
competir e a motivação para ocupar funções em setores mais próximos da esfera do
poder de decisão. Esses aspectos da singularidade da participante/informante preta
podem ser tomados como partícipes na determinação de suas escolhas ocupacionais.
Com relação à participante/informante parda, a universidade pública, como local
de trabalho, propiciou apoios sociais de colegas, quando começou a atuar como docente,
com muita insegurança; o envolvimento em um movimento reivindicatório, o docente; a
realização do mestrado; o engajamento no doutorado; o desenvolvimento de atividades
de extensão; a expansão do seu ciclo de amizades e a modificação em sua auto-estima,
propiciada pelo reconhecimento ao trabalho que desenvolve. Tudo isso iniciou um
processo pessoal de autovalorização, que, atualmente, culmina com o seu projeto de
assumir a identidade étnica negra.
A participante/informante branca ingressou como docente em uma universidade
pública com o doutorado a concluir, por isso, deteve o poder de dispensar o primeiro
emprego em uma universidade pública e deslocar-se para outra instituição de ensino
superior, onde realizou concurso e permanece trabalhando. A universidade, como local
de trabalho, expandiu as suas amizades, que se configuram apenas no departamento
onde atua. Envolve-se em atividades de ensino, de pesquisa, de orientação a alunos da
graduação e da pós-graduação, de administração universitária e na militância docente.
Talvez a maior oportunidade que a universidade lhe oferece é a de ser pesquisadora,
aspiração que acalentou desde a graduação. Envolver-se em tais atividades colaborou
para que se tornasse mais expansiva, porém, observa-se que isso é verdadeiro nas
relações interpessoais que tomam lugar em situações de trabalho, pois, no tocante às
suas amizades, as mesmas circulam em torno de alguns colegas e o seu retraimento
ainda se expressa na dificuldade de estabelecer vínculos de amizade em outros espaços
sociais.
Continuidades e descontinuidades observadas no processo de desenvolvimento
das participantes/informantes demonstram que, em vidas concretas, esse não é linear,
Evenice Santos Chaves O racismo na Trajetória Escolar e Profissional... 358

mas caracteriza-se por permanências, transições, rupturas e mudanças em seus estilos de


vida e nas suas pessoalidades. Essas são construídas e reconstruídas no bojo das
relações interpessoais, em diferentes situações da vida cotidiana e em contextos de
desenvolvimento específicos, como a família, a escola e o trabalho.
Considerando-se as três participantes/informantes, verifica-se que a escolaridade
foi via de mobilidade social ascendente para as mesmas, expressa em indicadores como
escolaridade, ocupação, renda e estilos de vida atuais, distantes daqueles da pobreza e
das carências presentes em momentos anteriores dos seus ciclos de vida já vividos.
Figueiredo (2002), ao pesquisar a pouco estudada mobilidade social ascendente
de pessoas negras, através de trajetórias profissionais, encontrou quatro pontos similares
entre os seus entrevistados, referentes à educação, à importância da família, à origem
pobre e ao emprego público. Como principais fatores relacionados ao sucesso de todos
eles, a citada investigadora identificou os esforços dos seus pais, a dedicação dos
entrevistados, os seus empenhos pessoais e o trabalho.
Dados desta pesquisa confirmam os achados da referida pesquisadora. Contudo,
há um acréscimo de novos resultados. Por exemplo, compreender a importância da
família remete ao que se considera como família pobre, a partir dos dados aqui obtidos.
Neste estudo, identificou-se que a instituição familiar significava: um sentimento de
pertença a um grupo de pessoas que compartilhavam o cotidiano e estavam ligadas pela
consangüinidade; um espaço de convivência perpassado por afetos negativos, positivos,
conflitos, intimidade, distância, indiferença e solidariedade entre membros e uma
unidade produtora de condições que possibilitaram aos seus descendentes a superação
da pobreza intergeracional. Contradições também atravessaram o dia-a-dia da vida das
três famílias em questão e as relações interpessoais entre os seus membros nem sempre
foram homogêneas, nem harmônicas, nem solidárias.
Destarte, ao se falar na importância da família no processo de escolarização dos
filhos e nas suas mobilidades sociais ascendentes, é necessário que se considere,
separadamente, os apoios fornecidos pelo pai e pela mãe, bem como a qualidade dos
relacionamentos entre filhos, que são objeto de uma pesquisa, e suas mães, e entre esses
e o pai, como também o valor atribuído à educação pelos genitores e pelas genitoras.
Dados deste trabalho mostram que nem sempre pai e mãe são os fornecedores do
apoio necessário aos filhos, durante os seus processos de escolarização, ou seja, à
Evenice Santos Chaves O racismo na Trajetória Escolar e Profissional... 359

escalada que os conduzirá ao término do ciclo escolar, ao sucesso profissional e à


mobilidade social ascendente. Verificou-se que há diferenças, quando se considera o
suporte social fornecido pelas famílias das participantes/informantes branca, preta e
parda: na primeira, o investimento foi da mãe; na segunda, dos avós maternos e de uma
vizinha; na terceira, dos pais, enquanto a mãe era viva, e, após o seu falecimento, do
genitor e dos irmãos.
Em suma, em cada uma das famílias, ainda que nucleares, observou-se uma
peculiar configuração. Na família da participante/informante preta, não foram os seus
pais biológicos aqueles que envidaram esforços para que ela prosseguisse nos estudos,
mas foram os avós maternos e uma vizinha as peças chave; na família da de cor branca,
apenas a mãe forneceu o apoio social necessário para que a participante/informante
freqüentasse a escola e o seu pai não a valorizava; na família da de cor parda, tanto o pai
quanto a mãe a aprovisionou do suporte necessário para que permanecesse na escola.
Por outro lado, levando em conta a dedicação das participantes/informantes, os
seus empenhos pessoais e as suas renúncias, durante o percurso escolar, dados desta
pesquisa apontam diferenças, quando se considera a cor das participantes/informantes.
Embora todas fossem estudantes dedicadas, apenas a de cor preta necessitou engajar-se
no trabalho precocemente, para custear o transporte de sua residência à escola e vice-
versa. Também escolheu um curso de segundo grau profissionalizante porque precisava
trabalhar para se sustentar e ajudar a sua família, o que fez logo após concluir o
pedagógico. Além disso, renunciou a dois cursos de graduação devido à sua situação
econômica, optando por um que compatibilizasse o trabalho com o estudo. Essas
situações não foram vivenciadas pelas outras participantes/informantes.
Retomando a mobilidade social ascendente, adita-se que ela não eliminou a
presença do racismo na vida da participante/informante preta. Embora não se possa
afirmar que o racismo ainda perpassa o cotidiano da participante/informante de cor
parda, a sua marca indelével manifesta-se em seu projeto pessoal de vir a assumir a
identidade étnica negra, acontecimento que ainda não se concretizou.
Em síntese, as análises até aqui realizadas permitiram identificar e interpretar o
papel de vários condicionantes contextuais, definidores de situações e temporalidades
que marcaram ocasiões para as pessoas se relacionarem, se comportarem, sentirem,
expressarem algumas de suas peculiaridades, re-orientarem o curso de suas trajetórias e
Evenice Santos Chaves O racismo na Trajetória Escolar e Profissional... 360

moverem-se socialmente, de forma ascendente. Para tal, focalizaram-se trajetórias de


vida e o papel do racismo no percurso escolar e profissional de cada uma das
participantes/informantes.
Agora, é preciso tecer considerações sobre o método empregado nesta pesquisa.
Patton (2002) afirma que a leitura de um bom estudo de caso dá a sensação de se estar
lendo uma boa história, pois há um início, um meio e uma finalização, que não é
necessariamente um fim. Caso se tome essa especificidade como um critério para a
avaliação dos três estudos de caso que compõem o presente trabalho, verifica-se que as
narrativas construídas pela pesquisadora apresentam-se como uma história da vida de
cada uma das participantes/informantes, em uma perspectiva desenvolvimentista, que
começa em momentos iniciais dos seus ciclos de vida e finaliza em um momento de
suas idades adultas, o que não implica no fim das suas trajetórias existenciais.
Embora o modo pessoal de narrá-las vincule-se a um estilo da investigadora, foi
necessário um permanente diálogo entre a mesma, a narrativa fornecida pelas
participantes/informantes e os referenciais teórico-metodológicos selecionados para dar
suporte à construção dos estudos de caso.
Isso equivale dizer que, em uma pesquisa de natureza qualitativa, não basta
apenas a habilidade do autor para reconstruir uma história, a partir de outra narrada pelo
seu protagonista. É imprescindível munir-se de referenciais teóricos que subsidiem a
coleta de informações, as suas transformações em dados, a organização dos mesmos, a
descrição, a análise e a interpretação.
Os referenciais apresentados no capítulo sobre o caminho teórico-metodológico
mostraram-se pertinentes, pois reafirmaram algumas convicções da pesquisadora sobre
o ato de investigar e forneceram bases para orientar o processo de construção deste
estudo, tais como: a compreensão mais acurada do que é uma pesquisa qualitativa; uma
concepção de metodologia que vai além da dimensão técnica; uma concepção de
paradigma que transcende a dimensão metodológica; uma idéia de pesquisador(a) como
sujeito que é produtor e produto de uma história social e pessoal e, por isso, não
isento(a) de vieses que eclodem no conhecimento que produz; uma compreensão do(a)
pesquisador(a) como sujeito que escolhe o que vai investigar a partir de condicionantes
histórico-culturais, da sua inserção na sociedade, da visão que dela tem, das suas
atividades de trabalho e da sua vida cotidiana; um entendimento do(a) pesquisador(a)
Evenice Santos Chaves O racismo na Trajetória Escolar e Profissional... 361

qualitativo(a) como sujeito que deve primar pela ética, no contexto relacional da coleta
de informações; uma noção de pesquisador(a) como o sujeito que elabora um
conhecimento comprometido com a transformação social; uma atitude de
pesquisador(a) orientada por um ponto de vista multirreferencial e a perspectiva do(a)
pesquisador(a) como um(a) estudioso(a) que toma a experiência humana, consolidada
na vida social, como eixo configurador da pesquisa.
Embora se considere que esses princípios foram imprescindíveis na elaboração
deste trabalho, ainda se ressalta a relevância de outros recursos teóricos que deram
suporte à construção dos estudos de caso, os quais objetivaram responder às questões
norteadoras da pesquisa aqui apresentada.
Nesse ponto, destaca-se a organização dos dados da entrevista narrativa. O
primeiro desafio foi tratá-los em uma perspectiva do desenvolvimento humano, posto
que um estudo de trajetórias é um estudo desenvolvimentista. A proposta de Runyan
(1984) sobre o curso de vida orientou a elaboração de uma forma de organização dos
dados que propiciou articulá-los de modo a construir um sistema de categorias com um
tom de movimento, ao se formular um modelo descritor que interligou cada tema a
categorias, subcategorias e marcadores temporais, os quais indicaram a ocorrência de
episódios, ligados a cada categoria e subcategorias, em diferentes momentos do ciclo de
vida já vivido pelas participantes/informantes. Considera-se que esse modo de organizar
os dados forneceu um caráter de dinamicidade ao sistema categorial e indicou a
natureza desenvolvimentista do estudo de narrativas de vida.
Identificar relações entre elementos que possam vir a configurar um conjunto
formado por um tema, categorias e subcategorias, implica ter em mente, no momento da
elaboração do sistema categorial, e diante de determinados dados, tipos de relações que
poderão ser o fundamento sobre o qual diferentes episódios podem ser integrados em
uma dada categoria. Mas não apenas as relações de complementaridade, de semelhança
ou de contraste orientam a integração de conteúdos em uma categoria específica.
Adicionado às mesmas, tem-se o referencial teórico do pesquisador sobre o tema que
abrange cada categoria e/ou subcategorias.
A organização dos dados referentes às entrevistas narrativas possibilitou à
pesquisadora vislumbrar, concretamente, que a elaboração de um sistema de categorias
não prescinde de análise e de interpretação. Categorizar, analisar e interpretar são partes
Evenice Santos Chaves O racismo na Trajetória Escolar e Profissional... 362

de um processo, porquanto a organização de um sistema categorial é um momento de


análise sobre o modo através do qual os agrupamentos são elaborados e os construtos
definidos. Esse é um trabalho reflexivo, caracterizado pela atribuição de um sentido
teórico aos dados, para que seja possível organizá-los e selecionar aqueles a serem
empregados na análise e na interpretação, com o intuito de responder às questões
orientadoras do estudo. Neste estudo, a categorização dos conteúdos interpenetrou o
ponto de vista teórico sobre o qual as categorias foram elaboradas, constituindo-se em
uma elaboração teórico-conceitual.
É preciso mencionar que nenhum sistema de categorias encerra uma produção
científica inquestionável e definitiva. Na verdade, denota uma construção empreendida
pelo(a) pesquisador(a), em um momento de seu fazer científico, no qual impregna-se de
determinados fundamentos teóricos, certamente que provisórios, no seu percurso como
estudioso, visando a orientar-se na consecução da tarefa de pesquisar.
Com a noção de limites e do provisório em mente, destaca-se que o sistema
classificatório produzido gerou a identificação de episódios relevantes e, também, a
apreensão de relações entre episódios constitutivos de diferentes unidades
classificatórias, com vistas à posterior análise e interpretação dos dados.
É oportuno salientar que a utilidade do sistema classificatório, como organizador
dos dados e orientador da análise e da interpretação, não esgota a sua importância.
Tanto é que as categorias elaboradas ainda garantiram a manutenção dos pontos de vista
das participantes/informantes e o da pesquisadora, permitindo-lhe que se debruçasse
sobre o sistema categorial, com a finalidade de articular uma integração dos dados
selecionados como relevantes e necessários para responder às questões norteadoras da
pesquisa.
De fato, neste estudo, a construção dos sistemas de categorias, a partir de dados
referentes a percursos de vida, exigiu, da pesquisadora, tempo, leituras e uma conduta
analítica, para que fosse possível realizar agrupamentos classificatórios. Esses, para
Gomes (1996), devem conter elementos que mantenham relações entre si, ou, ainda, que
apresentem características comuns.
Na reconstrução das narrativas das participantes/informantes, os dados foram
organizados em tópicos descritores, e, em cada um, houve uma descrição cronológica,
vertical, e uma não cronológica, horizontal, de acontecimentos, repercussões sociais e
Evenice Santos Chaves O racismo na Trajetória Escolar e Profissional... 363

psicológicas. Outrossim, ao tempo em que se contemplou a seqüencialidade inerente ao


desenvolvimento humano e à narrativa, ressaltaram-se os diferentes acontecimentos
com ocorrência em um mesmo momento existencial do ciclo de vida já vivido pelas
entrevistadas.
Dados do questionário sócio-demográfico cumpriram as funções que lhes foram
delegadas: descrever as participantes/informantes e subsidiar a triangulação dos dados.
A lista de complementação de frases gerou dados que, majoritariamente, confirmaram
aqueles da entrevista narrativa. Ademais, produziu outros, complementares, os quais
possibilitaram a realização de um tipo de triangulação, a qual, como ressalta Patton
(2002), avalia a consistência dos resultados obtidos por diferentes fontes.
Segundo Patton (2002), é uma concepção equivocada pensar que o objetivo da
triangulação é o de demonstrar que diferentes fontes de dados produzem os mesmos
resultados. De outra forma, ressalta o referido autor, o emprego de várias fontes pode
produzir resultados diversos porque diferentes técnicas e instrumentos são sensitivas a
uma diversidade de nuances do mundo real. Esse autor conclui que a compreensão das
inconsistências, em achados oriundos de diferentes tipos de dados, não significa pouca
credibilidade nos resultados. Isso porque as incongruências oferecem a oportunidade
para se aprofundar o entendimento da relação entre as fontes empregadas na coleta de
informações e o fenômeno em estudo. Assim, elas são relevantes e esclarecedoras.
Nesse aspecto, a reflexão sobre os dados obtidos por meio das diferentes fontes
mostrou que a lista de complementação de frases foi mais efetiva que a entrevista
narrativa na captação de informações sobre o racismo no contexto familiar das
participantes/informantes. Relativamente à de cor branca, produziu dados sobre o
racismo que perpassava o seu cotidiano familiar; na de cor parda, gerou dados sobre o
silêncio em torno do fenômeno, em sua família de origem e na que construiu; na de cor
preta, propiciou dados referentes a práticas educativas empregadas pela sua avó
materna, não se tornar um ser submisso nas relações interpessoais com pessoas brancas
e enfrentar a desigualdade racial pela via da escolarização. Esse instrumento também
apontou a presença da temática do racismo em relações entre a participante/informante
preta, colegas e professores.
Um dado proveniente do questionário sócio-demográfico revelou que essa
participante/informante tinha um irmão, morador da mesma casa em que ela residiu
Evenice Santos Chaves O racismo na Trajetória Escolar e Profissional... 364

durante parte de seu ciclo de vida já vivido e, ainda, desnudou que o seu pai não era
uma figura totalmente desconhecida.
Do exposto até aqui, verifica-se que as discrepâncias entre dados obtidos por três
fontes foram profícuas tanto na avaliação da consistência dos mesmos, quanto na
geração de outros, os quais contribuíram na compreensão de como o racismo se fez
presente ou ausente na vida familiar das três participantes/informantes. Também
revelaram como esse fenômeno se manifestou em outros momentos da vida escolar da
de cor preta; como era a sua composição familiar enquanto residiu com a sua família de
origem; que sabia algo sobre seu pai e que sua mãe usufruiu uma pensão, após a morte
do genitor de sua filha.
As interpretações realizadas foram subsidiadas por referenciais abordados na
parte teórica desta tese, como também por outros que se fizeram necessários para a
compreensão e explanação daquilo que foi captado durante as análises. Assim, uma
postura aberta para a incorporação de outros pontos de vista teóricos, em função do que
os dados requeriam, fundamentou as análises e as interpretações realizadas. Isso
permitiu à pesquisadora trabalhar com as dimensões estrutural, relacional e psicológica
do racismo, identificar e explanar processos e mecanismos psicológicos, como, por
exemplo, pontos de virada e modos de enfrentamento.
A interpretação dos dados compatibilizou-se com o modo como Patton (2002) a
considera: a atribuição de sentidos ao que é encontrado, através da construção de
explanações, da elaboração de conclusões, da extrapolação do que está nos livros e
realização de inferências, considerando-se os significados sociais e pessoais.
O emprego de referenciais teóricos nas interpretações coaduna com dois pontos
de vista científicos. O primeiro, formulado por Weinstein (1988), explicita que ao se
trabalhar com dados subjetivos deve-se considerar duas linguagens: a dos atores sociais
e a da teoria. O autor acrescenta que ao se eliminar uma delas ignora-se a experiência de
um dos lados envolvidos nesse processo. Como decorrência, esse estudioso menciona
que, ao se tratar com dados de natureza subjetiva, a tarefa interpretativa do pesquisador
deve incluir o ponto de vista do ator social participante de uma pesquisa, do(a)
pesquisador(a) e da teoria. O investigador é aquele que abstrai, ordena e elabora uma
versão unificada dos eventos e lhes confere um sentido, a partir do que foi explicitado
como vivências, pelos atores sociais participantes. O segundo referencial teórico,
Evenice Santos Chaves O racismo na Trajetória Escolar e Profissional... 365

elaborado por Patton (2002), denomina-se de triangulação na perspectiva teórica e diz


respeito ao emprego de múltiplos pontos de vista teóricos na interpretação dos dados.
Note-se que esse tipo de triangulação consolida a generalidade do dado qualitativo.
Outra contribuição desta pesquisa ao estudo do racismo contra o negro está nos
próprios resultados, pois é o primeiro, disponível na literatura, focalizado no racismo
contra o negro que compara trajetórias da pessoa preta, parda e branca. Desse modo, o
presente estudo oferece um conjunto de dados e indicadores que podem ser empregados
em outras investigações que focalizem as desigualdades sociais e raciais, ao mesmo
tempo.
Enquanto estudo pioneiro, ele sugere novas pesquisas, como, por exemplo,
elegerem-se como participantes/informantes pessoas do gênero masculino ou pessoas
negras que se moveram socialmente de forma ascendente, sem, contudo, terem
freqüentado a escola, ou, ainda, pessoas negras que ascenderam socialmente, porém
galgaram apenas a superação de algum grau de pobreza.
Finalmente, verificou-se que esta pesquisa alcançou os objetivos propostos. Para
atingi-los, observaram-se cânones da descrição compreensivo/explanatória, tais como
apontados por Albesson e Sköldberg (2003):
1) A descrição é a primeira etapa a ser cumprida em estudos culturalmente
situados.
2) Ao se trabalhar de forma descritiva com um texto, o que se interpreta não são
fatos, mas o próprio texto, porquanto os fatos emergem do texto, através do processo de
interpretação. Assim, os fatos emergentes são resultados, não pontos de partida.
3) O padrão de interpretação é elaborado no diálogo com o texto, que tem início
nas pré-concepções do pesquisador, as quais vão se transformando durante o processo
de interpretar.
4) O padrão de interpretação deve produzir um entendimento sobre detalhes
individuais contidos no texto e, ao mesmo tempo, ir além dos mesmos.
5) O padrão de interpretação deve gerar uma compreensão do texto que
ultrapasse aquilo imediatamente lido.
6) O texto a ser interpretado deve ser trabalhado considerando-se os contextos
sócio-históricos.
7) A interpretação deve estimular a imaginação do pesquisador.
Evenice Santos Chaves O racismo na Trajetória Escolar e Profissional... 366

Vale ressaltar que, considerando-se o ser humano como produtor e produto da


cultura e o fenômeno do racismo contra o negro como sócio-culturalmente elaborado,
mantido e atualizado, tanto os grupos sociais quanto o racismo que circula na sociedade
são partes integrantes do que se denomina cultura. Portanto, o estudo realizado é,
também, um estudo que contempla a cultura brasileira.
Além disso, o pouco que se estudou até o presente sobre o racismo contra o
negro, na Psicologia, conduz à realização de pesquisas de natureza descritiva, pois,
como afirmam Albesson e Sköldberg (2003), são elas que produzem elementos para a
construção de teorias. A nossa Psicologia ainda não dispõe de um aporte teórico sobre
tal fenômeno e este trabalho, de natureza descritiva, poderá contribuir com elementos
para a elaboração de um enfoque teórico brasileiro sobre o racismo contra o negro,
presente no nosso cotidiano.
Evenice Santos Chaves O racismo na Trajetória Escolar e Profissional... 367

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ANEXOS
QUESTIONÁRIO SÓCIO-DEMOGRÁFICO
Prezada participante/informante da pesquisa,

Em continuidade à sua participação na pesquisa, solicito a gentileza de fornecer


as informações abaixo especificadas.

O primeiro conjunto é relativo a informações sócio-demográficas. Ressalto,


enquanto orientação adicional, que se considera a juventude como o período em que
freqüentou o curso de graduação.

Adiciono aqui, mais uma vez, que os seus relatos e os conteúdos das
informações fornecidas são a razão primeira para tal pesquisa, pois, conforme já
salientado para você, a mesma fundamenta-se em aspectos da sua história de vida e,
conseqüentemente, nas suas experiências.

Como responsável pela pesquisa, desde já agradeço a sua valiosa colaboração.

Atenciosamente,

Evenice Santos Chaves


INFORMAÇÕES SÓCIO-DEMOGRÁFICAS

INFORMANTE Nº ______ (por favor, não preencha)

1. IDENTIFICAÇÃO

1.1 - Idade:______________
1.2 - Sexo: ______________
1.3 - Gênero: ___________
1.4 - Cor: ______________
1.5 - Escolaridade: ________________
1.6 - Renda: ______________________
1.7 - Atividade (s) de trabalho: _______________________________________
1.8 - Naturalidade: _____________________
1.9 - Cidade onde reside na atualidade: ________________________________
1.10 - Tipo de residência: ( ) Própria ( ) Própria financiada ( ) Aluguel
1.11 - Com quem reside: ___________________________________________
1.12 - Número de cômodos: _________________________________________
1.13 - Espaço ocupado pelos residentes nos cômodos: ___________________

2. RESIDÊNCIAS ANTERIORES
2.1 - Bairros onde residiu, considerando-se a cidade onde reside:
2.1.A - Na infância: ( ) Centro ( ) Periferia
2.1.B - Na adolescência: ( ) Centro ( ) Periferia
2.1.C - Na juventude: ( ) Centro ( ) Periferia
2.1.D - Na idade adulta: ( ) Centro ( ) Periferia

2.2 - Bairros onde residiu em outro(s) momento(s) da sua vida, excluindo a cidade
onde atualmente reside
2.2.A - Na infância: ( ) Centro ( ) Periferia
2.2.B - Na adolescência: ( ) Centro ( ) Periferia
2.2.C - Na juventude: ( ) Centro ( ) Periferia
2.2.D - Na idade adulta: ( ) Centro ( ) Periferia
3. TIPOS DE CASA ONDE RESIDIU:
3.1 - Na infância: ( ) Própria ( ) Própria financiada ( ) Aluguel
( ) Casa dos pais ( ) Casa de outros familiares
( ) Casa de amigos

4. CONFIGURAÇÃO DO LAR
4.1 - Na infância:
4.1.A - Número de residentes: _________
4.1.B - Graus de parentesco: ______________________________________
4.1.C - Número de cômodos: _________
4.1.D - Espaço ocupado pelos residentes nos cômodos: ________________

4.2 - Na adolescência:
4.2.A - Número de residentes: _________
4.2.B - Graus de parentesco: ______________________________________
4.2.C - Número de cômodos: _________
4.2.D - Espaço ocupado pelos residentes nos cômodos: ________________

4.3 - Na juventude:

4.3.A - Número de residentes: _________


4.3.B - Graus de parentesco: ______________________________________
4.3.C - Número de cômodos: _________
4.3.D - Espaço ocupado pelos residentes nos cômodos: ________________

4.4 - Na idade adulta:


4.4.A - Número de residentes: _________
4.4.B - Graus de parentesco: ______________________________________
4.4.C - Número de cômodos: _________
4.4.D - Espaço ocupado pelos residentes nos cômodos: ________________

5. TIPO(S) DE ESCOLA(S) QUE FREQÜENTOU:


5.1 - Na infância:
( ) Pública ( ) Particular ( ) Particular com bolsa de estudo
5.2 - Na adolescência:
( ) Pública ( ) Particular ( ) Particular com bolsa de estudo

5.3 - Na juventude:
( ) Pública ( ) Particular ( ) Particular com bolsa de estudo

5.4 - Na idade adulta:


( ) Pública ( ) Particular ( ) Particular com bolsa de estudo

6. PESSOAS E/OU INSTITUIÇÕES QUE FINANCIARAM SEUS ESTUDOS:


6.1 - Na infância:
6.1.A - Grau de parentesco das pessoas: ________________________________
6.1.B - Amigos: _____________________________________________________

6.2 - Na adolescência:
6.2.A - Grau de parentesco das pessoas: ________________________________
6.2.B - Amigos: _____________________________________________________

6.3 - Na juventude:
6.3.A - Grau de parentesco das pessoas: ________________________________
6.3.B - Amigos: _____________________________________________________

6.4 - Na idade adulta:


6.4.A - Grau de parentesco das pessoas: ________________________________
6.4.B - Amigos: _____________________________________________________

7. SOBRE SEUS PAIS:


7.1 - Cor:
7.1.A - Pai: __________ Mãe: _____________

7.2 - Idade do pai: ________


( ) Vivo ( ) Falecido
7.3 - Idade da mãe: _______
( ) Viva ( ) Falecida

7.4 - Estado civil dos pais:


7.4.A - Pai: _______________
7.4.B - Mãe: ______________

7.5 - Escolaridade dos pais:


7.5.A - Pai: _______________
7.5.B - Mãe: ______________

7.6 - Profissão do pai:


7.6.A - Na sua infância: ____________________________
7.6.B - Na sua adolescência: ________________________
7.6.C - Na sua juventude: __________________________
7.6.D - Na sua idade adulta: ________________________

7.7 - Profissão da mãe:


7.7.A - Na sua infância: ____________________________
7.7.B - Na sua adolescência: ________________________
7.7.C - Na sua juventude: __________________________
7.7.D - Na sua idade adulta: ________________________

7.8 - Bairro em que residem: ( ) Centro ( ) Periferia

7.9 - Tipo de residência: ( ) Própria ( ) Própria financiada ( ) Aluguel

7.10 - Com quem residem:


7.10.A - Número de residentes: _________
7.10.B - Graus de parentesco: ______________________________________
7.10.C - Número de cômodos: _________
7.10.D - Espaço ocupado pelos residentes nos cômodos: ________________
LISTA DE COMPLEMENTAÇÃO DE FRASES
Cara participante/informante,

Agora, busca-se obter informações sobre o racismo, a partir da sua experiência


pessoal e do seu ponto de vista. Abaixo, você tem dez itens e deverá completá-los.

O racismo é_______________________________________________________

O racismo na minha vida____________________________________________

O racismo na minha família de origem__________________________________

O racismo na família que constituí_____________________________________

O racismo no Brasil________________________________________________

O racismo na cidade onde resido______________________________________

O racismo no bairro onde resido_______________________________________

O racismo nas escolas que freqüentei___________________________________

O racismo na universidade ___________________________________________

O racismo no local onde trabalho______________________________________

O racismo nas relações sociais em geral_________________________________


TERMO DE CONSENTIMENTO LIVRE
UNIVERSIDADE FEDERAL DO PARÁ
CENTRO DE FILOSOFIA E CIÊNCIAS HUMANAS
DEPARTAMENTO DE PSICOLOGIA EXPERIMENTAL
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM TEORIA E PESQUISA DO COMPORTAMENTO

CONSENTIMENTO LIVRE E ESCLARECIDO

Projeto de pesquisa: O racismo na trajetória escolar e profissional de


professoras universitárias.

Prezada colega,
Venho solicitar a sua colaboração na pesquisa que estou realizando, tendo em vista a obtenção
do grau de Doutora em Psicologia.
O tema orientador do trabalho de investigação é o racismo, visando a identificar as suas
implicações na vida escolar e profissional de professoras universitárias afrodescendentes. O foco da
pesquisa centra-se no sucesso de cada participante/informante em completar o ciclo de estudos formais.
Para tal, buscar-se-á a descrição de sua trajetória escolar e profissional, o que será concretizado através
das suas verbalizações em uma entrevista e no preenchimento de dois questionários.
Por isso, você que tem uma experiência de vida única, é a pessoa mais importante para a
realização do presente trabalho, pois o conhecimento a ser produzido na pesquisa valoriza como ponto de
partida o mundo experiencial humano. A sua colaboração é fundamental.
A pesquisa visa a produzir contribuições teóricas e metodológicas, uma vez que o racismo tem
sido pouco estudado pela Psicologia, apesar de ser um fenômeno universal, reconhecido como tal pela
ciência e pela ONU; há escassez de enfoque transdisciplinar na investigação do tema; os estudos já
realizados centram-se, maciçamente, no fracasso do afro-descendente e não no seu sucesso escolar.
Acrescento que a sua participação poderá contribuir para que re-escreva a sua história pessoal e,
também, do ponto de vista científico, produzirá conhecimentos sócio-psicológicos que possam vir a ser
relevantes na compreensão do fenômeno do racismo e na articulação de estratégias educacionais que
propiciem o incremento de trajetórias escolares de outros brasileiros.
A pesquisa recolherá informações de pessoas intituladas de afro-descendente e branca, visando à
análise comparativa das trajetórias escolares e profissionais, das adversidades, dos mecanismos e
processos psicológicos emergentes, pois só através da comparação desses dois grupos poder-se-á
identificar o papel do racismo na vida escolar e profissional do preto, do pardo e do branco.
O presente trabalho não oferece riscos a você, pois relatará sobre adversidades escolares que já
superou. Caso, em algum momento do seu relato, sinta-se emocionalmente desconfortável, tenha a certeza
de que, como psicóloga, poderei fornecer apoio. As informações que vier a fornecer serão trabalhadas
para garantir o seu anonimato e impossibilidade da identificação de pessoas, locais e instituições.
Você terá a liberdade de escolher o que falar e como falar, a partir dos temas propostos pela
pesquisadora e de retirar-se da pesquisa em qualquer momento da coleta de informações, caso decida
assim proceder.
Caso concorde em participar, solicito a gentileza de explicitar a sua concordância, assinando esse
termo de consentimento livre e esclarecido.

_____________________________________________
Assinatura da Pesquisadora Responsável
Nome: Evenice Santos Chaves
End: Rua Serzedelo Corrêa, 1726 apto. 103. Batista Campos.
CEP: 66033-230
Fone: 224-4014
RG: 1459030-SSP/PA CRP: 01230-3ª região.

CONSENTIMENTO LIVRE E ESCLARECIDO


Declaro ter lido as informações sobre a pesquisa, considerando-me esclarecido sobre o objetivo
da mesma e que deverei relatar aspectos da minha história de vida, ressalvando-me o direito de fornecer
as informações que desejar e como desejar. Também declaro que de livre vontade aceito participar da
pesquisa, cooperando na coleta de informações para posterior análise.

Belém, _______/_______/_______

____________________________ R.G__________________
Participante/Informante

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