O Poder Do Ritual (Livreto)
O Poder Do Ritual (Livreto)
O Poder Do Ritual (Livreto)
Escrito por Brett & Kate McKay e Traduzido por Filipe Brito
A vida moderna costuma parecer extremamente monótona para você? Como se fosse uma
paisagem desolada, sem camadas, ritmo, interesse ou texturas?
Você já foi assombrado pela pergunta "Isso é mesmo tudo o que existe?"
Você já olhou uma foto antiga e sentiu que aquela cena continha uma riqueza tão inexplicável
que parecia que você podia praticamente entrar nela?
O vazio estéril da vida moderna está enraizado em muitas coisas, incluindo o consumismo
irracional, a ausência de desafios significativos e a falta de valores e normas compartilhados entre os
homens, ou mesmo tabus compartilhados para se rebelar. Mas qual é a solução?
Muitos seriam rápidos em dizer fé, filosofia ou relacionamentos. Todas essas são boas
respostas.
Mas o que é que fortifica as suas crenças até que elas possam transformar sua perspectiva, não
apenas por uma hora no domingo, mas também nos momentos mais frívolos da sua semana? O que
pode levar o entendimento das verdades abstratas da sua mente à ponta de seus dedos? O que pode
transformar laços superficiais com os outros, em laços profundos e significativos?
Nosso mundo é quase desprovido de rituais - pelo menos da maneira que tradicionalmente
pensamos neles. Aqueles rituais que permanecem – geralmente relacionados aos feriados - perderam
em grande parte seu poder transformador, e muitas vezes causam mais sofrimento do que prazer, onde
as pessoas participam como certa obrigatoriedade. Hoje, o ritual tornou-se associado àquilo que é
mecânico, vazio e sem sentido.
Os rituais são, há séculos, as ferramentas que os humanos têm usado para liberar e expressar
emoções, construir sua identidade pessoal e a identidade de sua tribo, trazer ordem ao caos, orientar-
se no tempo e no espaço, realizar transformações reais e trazer camadas de significado e textura para
suas vidas. Quando os rituais são despojados de nossa existência, e esse anseio humano fundamental
fica insatisfeito, isso resulta em inquietação, apatia, alienação, tédio, falta de raízes e perda de
identidade.
Durante este ano, planejamos publicar, de forma aprofundada, sobre alguns dos rituais mais
importantes para o significado e a forma da masculinidade, como ritos de passagem, iniciações e
juramentos. Nesta semana, lançaremos as bases para esses posts em dois artigos; o primeiro
estabelecerá uma definição de ritual e o segundo explorará as muitas maneiras pelas quais os rituais
são tão vitais para uma vida plena e significativa.
Hoje, forneceremos um pouco de contexto sobre a natureza do ritual e porque ele desapareceu
amplamente das sociedades modernas.
Segundo Catherine Bell, professora de estudos rituais e autora do preeminente livro sobre o
tema, o ritual tem sido tradicionalmente definido como uma ação que carece de uma "relação prática
entre os meios que se escolhe para alcançar determinados fins". Por exemplo, apertar as mãos quando
você conhece alguém pode ser considerado um ritual, afinal de contas não há motivo real para agarrar
a mão de outra pessoa e apertá-la por um segundo ou dois, de modo que isso leve vocês dois a se
conhecerem. É um gesto culturalmente relativo, podemos muito bem nos cumprimentar com um
tapinha no ombro ou mesmo sem contato físico.
Como outro exemplo, lavar as mãos para limpá-las não é um ritual, pois existe uma clara
relação prática entre sua ação e o resultado desejado. Mas se um padre espirra água nas mãos para
"purificá-las", isso é um ritual, já que a água é amplamente simbólica e quando ele diz “purificar” não
está falando sobre se livrar das bactérias.
• Tradicionalismo: os rituais geralmente são estruturados como atividades que carregam valores
e comportamentos que existem desde a criação de uma instituição. Esse vínculo com o passado
fornece poder e autoridade aos rituais e possibilita ao participante um senso de continuidade.
O ritual pode simplesmente remeter àqueles que vieram antes, como quando os graduados da
universidade vestem suas becas que costumavam ser usados em sala de aula todos os dias pelos
alunos do passado, ou pode realmente tentar recriar um evento de fundação - como na
celebração americana do Dia de Ação de Graças.
• Invariância Disciplinada: frequentemente visto como uma das características mais explícitas
do ritual, esse atributo envolve "um conjunto disciplinado de ações marcadas por repetições
precisas e controle físico". Pense nos soldados marchando ou no padrão de sentar, levantar e
ajoelhar seguido pelos católicos durante o curso de uma missa. A invariância disciplinada
suprime “o significado do momento pessoal e particular em favor da autoridade atemporal do
grupo, suas doutrinas, ou suas práticas" e "subordina o indivíduo e o contingente a um
sentimento de abrangência e permanência".
• Governança de regras: os rituais são geralmente governados por um conjunto de regras. Tanto
a guerra quanto os esportes são exemplos de atividades que podem ser bastante rituais, uma
vez que suas regras definem o que é e o que não é aceitável. As regras podem tanto atestar
quanto canalizar certas tensões. Por exemplo, um jogo de futebol americano canaliza a agressão
em uma forma de violência ritualizada e controlada. Ocasionalmente, as regras não conseguem
controlar suficientemente a tensão que sempre borbulha na superfície, como quando ocorre
6
uma briga caótica entre os jogadores. O fato de o jogo refletir uma tensão submersa, semelhante
na sociedade em geral, é parte do motivo pelo qual o público considera o ritual tão atraente.
• Simbolismo Sacro: o ritual é capaz de pegar objetos, lugares, partes do corpo ou imagens
comuns e transformá-los em algo especial ou sagrado. "Sua sacralidade", escreve Bell, "é a
maneira pela qual o objeto é mais do que a mera soma de suas partes e aponta para algo além
de si mesmo, evocando e expressando valores e atitudes associados a ideias maiores, mais
abstratas e relativamente transcendentes”. Assim, algo como incenso pode ser uma mera
mistura de plantas e óleos projetados para perfumar uma sala ou, quando saído de um
incensário, pode representar a oração dos fiéis que ascendem ao céu.
• Atuação: A atuação é um tipo específico de ação - aquela que é feita para uma audiência. Um
ritual sempre tem um público-alvo, mesmo que seja Deus ou a si mesmo. Tom Driver, professor
de teologia, argumenta que "Atuação ... significa duplamente fazer e mostrar". Não se trata de
"mostrar-e-contar, mas sim fazer-e-mostrar". Humanos são inerentemente atores, que desejam
se ver como personagens de uma narrativa mais ampla e desejam o tipo de drama inerente a
todo conto atemporal. Os rituais funcionam como dramas narrativos e podem satisfazer e
liberar essa necessidade. Na ausência de ritual, as pessoas recorrem às suas “exibições” nas
mídias sociais e criam seu próprio drama - geralmente através de relacionamentos ou
substâncias tóxicas.
Quanto mais desses atributos um comportamento / evento / situação invocar, mais diferente da
vida cotidiana e, mais parecido com um ritual, ele se parecerá. Quanto menos desses atributos
estiverem presentes, mais casual e comum será.
Para uma definição mais simples de ritual, aqui está uma que funciona: pensamento + ação.
Um ritual consiste em fazer algo em sua mente (e muitas vezes sentir algo em seu coração), enquanto
simultaneamente o conecta a fazer algo com seu corpo.
Os rituais se enquadram em uma ampla variedade de categorias. O teórico Ronald Grimes lista
16 deles:
O importante a entender sobre os rituais é que eles não se limitam a eventos muito grandes e
muito formais. De fato, os rituais podem ser grandes ou pequenos, particulares ou públicos, pessoais
ou sociais, religiosos ou seculares, unindo ou dividindo, conformistas ou rebeldes. Funerais,
casamentos, inaugurações presidenciais, cultos religiosos, batismos, iniciações fraternas e ritos tribais
de passagem são todos rituais. Apertos de mão, datas, cumprimentos e despedidas, tatuagens, boas
maneiras à mesa, sua rotina matinal e até cantar a canção de feliz aniversário também podem ser rituais.
Em muitas sociedades tradicionais, quase todos os aspectos da vida eram ritualizados. Então,
por que há tanta escassez de rituais na cultura moderna?
A presença do ritual no mundo ocidental foi inicialmente enfraquecida por duas coisas: o
movimento da Reforma Protestante contra ícones e cerimonialismo e a ênfase do Iluminismo no
racionalismo.
O historiador Peter Burke, argumenta que "a Reforma foi, entre outras coisas, um grande
debate, sem paralelo em escala e intensidade, sobre o significado do ritual, suas funções e suas formas
apropriadas". Muitos protestantes concluíram que os tipos de rituais praticados pela Igreja Católica
davam muita ênfase às formas vazias e externas, em vez do estado de graça interno de alguém. Eles
rejeitaram a “eficácia mágica” dos ritos para poder fazer coisas como transformar pão e vinho no corpo
e sangue literal de Cristo.
A eficácia mágica do ritual foi atacada do outro lado pelos pensadores do Iluminismo. Como
discutido acima, o ritual é inerentemente não-racional, pois não há relação prática entre a ação e o
resultado. Não é racional pensar que pintar o corpo antes da batalha oferecerá proteção, que um rito de
passagem pode transformar um garoto em homem, ou que fumar um cachimbo da paz possa selar um
tratado. Assim, o ritual começou a ser associado às superstições dos povos primitivos.
A desconfiança a respeito dos rituais voltou a crescer após a Segunda Guerra Mundial, após a
maneira como as cerimônias rituais foram usadas para solidificar a lealdade à causa nazista.
Por esses motivos, o uso e a participação em rituais foram bastante limitados. Ou talvez, como
argumenta o historiador Peter Burke, acabamos de substituir rituais antigos por novos: “Se a maioria
das pessoas nas sociedades industriais não frequenta mais a igreja regularmente ou prática rituais
elaborados de iniciação, isso não significa que o ritual tenha declinado. Tudo o que aconteceu é que
os novos tipos de rituais - políticos, esportivos, musicais, médicos, acadêmicos e assim por diante -
substituíram os tradicionais”. Mas os novos rituais - assistir esportes, assistir a festivais de música,
checar o Facebook, fazer compras, visitar um clube de strip-tease no seu aniversário de 18 anos - são
pouco nutritivos e não satisfazem. Os rituais tradicionais forneciam um mecanismo pelo qual os
humanos podiam canalizar e processar o que era difícil de lidar - morte, maturidade, agressão -
permitindo ao participante descobrir novas verdades sobre si e o mundo. Novos rituais, se é que
realmente podem ser chamados assim, tentam negar qualquer coisa feia na vida (para não levar você a
“fechar a carteira”) e apresentar uma fachada brilhante e lustrosa - “cultura de confetes” - que facilita
o consumo passivo e evita examinar determinadas suposições.
Em nosso próximo artigo, argumentaremos que, apesar do desdém cultural pelo ritual, é uma
forma e prática de arte humana que deve ser revivida. É verdade que o ritual pode ser usado para o
bem ou para o mal, mas seu benefício é tão grande que o medo do mal não deve nos privar dos
benefícios de suas práticas. Mesmo se um homem não vê lugar para ritual em sua fé, ele pode ter
grande utilidade em outras áreas de sua vida (de fato, se sua fé é completamente não ritualizada, ele
tem ainda mais necessidade de outros tipos de rituais). Argumentaremos que mesmo o homem mais
racional pode dar espaço em sua vida a alguma "mágica" e que, embora o ritual possa parecer
constrangedor, paradoxalmente pode ser incrivelmente fortalecedor e até libertador.
Escrito por Brett & Kate McKay e Traduzido por Marcel Mark Passos
No último texto, exploramos a natureza do ritual e postulamos que sua escassez atual pode
estar na raiz da inquietação, apatia, alienação e tédio geral que muitos homens modernos
experimentam. É nossa determinação que, sem ritual, a vida muitas vezes parece plana e desprovida
de ritmo e textura.
Agora, não estamos sugerindo que os rituais sejam restabelecidos em toda a sociedade; somos
bastante pessimistas em colocar um gato de volta na bolsa depois que ele sai. Em vez disso, o que
esperamos e recomendamos é que homens individuais encontrem um lugar para ritual em suas vidas
através de suas próprias comunidades e grupos sociais escolhidos. Isso pode ser feito procurando
instituições - sejam lojas, clubes, equipes esportivas, igrejas ou fraternidades - que proporcionam uma
experiência ritual rica e satisfatória. Você também pode conseguir isso tornando algumas de suas
pequenas rotinas diárias mais parecidas com rituais. Tudo, desde tradições familiares até sua xícara
matinal de café, pode tornar-se um pequeno ritual, se intencionalmente cultivar essa personagem.
Como fazer isso é algo que nós falaremos nas linhas abaixo.
Você pode até considerar a possibilidade de criar seus próprios rituais que envolvam outras
pessoas - uma iniciação ao seu clube, um ritual de passagem para o seu filho, um juramento de
lealdade entre os amigos. Ainda estou discutindo a viabilidade dessa ideia, mas não vejo nenhuma
razão para que você não tenha conseguido. Como nossa cultura atual premia a “autenticidade”, nós,
modernos, somos muito duvidosos em montar ou programar uma coisa dessas, acreditando que rituais
“reais” são extraídos do éter e evoluem natural e organicamente. Mas se alguém examinar a maioria
dos rituais, mesmo aqueles que parecem bastante misteriosos e antigos, você descobrirá que eles
foram de fato criados por alguém ou por um grupo de pessoas, de maneira muito intencional,
deliberada e autoconsciente.
Hoje iniciaremos uma discussão sobre porque você pode considerar participar de mais rituais.
Que poder possui o ritual? Como o ritual pode transformar e enriquecer a vida de um homem? Eu
pretendia que essa discussão fosse encapsulada em um único post, mas como sempre, subestimei a
quantidade de material a ser coberto. Além disso, como esse é um tópico tão profundo e delicado,
achei melhor fazer três parcelas “mais curtas”, mais fáceis de digerir, em vez de um mega post.
Nesta edição, discutiremos duas maneiras diferentes de olhar o mundo: o sagrado e o profano.
Este post será muito mais esotérico e especificamente orientado para a religião do que o próximo,
mas é impossível discutir o ritual sem entender seus fundamentos mais básicos. Enquanto o sagrado
e o profano estão enraizados na religião (e na falta dela), como Mircea Eliade, o professor que tornou
famosas essas categorias, escreveu: “eles preocupam tanto o filósofo quanto qualquer um que procure
descobrir as possíveis dimensões da existência do ser humano." Tão praticamente todo mundo.
Argumentaríamos que o mundo de hoje muitas vezes parece plano e unidimensional porque a
existência moderna carece de uma camada do sagrado e existe apenas no plano do profano, isto é,
secular, em um termo mais religioso. Para Eliade, o sagrado e o profano constituem os "dois modos
de ser no mundo". O sagrado representa um mistério fascinante e inspirador - uma "manifestação de
uma ordem totalmente diferente" de nossa vida cotidiana natural (ou profana). Tradicionalmente, o
homem religioso (e aqui estamos realmente falando sobre aqueles que vivem em sociedades pré-
modernas) procura experimentar o sagrado o máximo possível, pois ele o vê como o reino da
realidade, a fonte de poder e isso. Que é "saturado de ser". Para o homem religioso, o profano parece
irreal e leva a um estado de "não- ser". Em contraste, o homem não religioso recusa qualquer apelo
ao mistério ou ao sobrenatural. Como humanista, ele acredita que "o homem se faz, e ele só se faz
completamente na proporção em que se dessacraliza a si mesmo e ao mundo".
Se você já sentiu uma sensação de "não ser", pode ser porque o mundo moderno se tornou
dessacralizado, ou, como Max Weber colocou, "desencantado". Numa sociedade tradicional, todas as
funções vitais do homem não só tinham um propósito prático, mas também podiam ser
potencialmente transfiguradas em algo carregado de sacralidade. Tudo, desde comer até sexo e
trabalhar, podem "tornar-se um sacramento, isto é, uma comunhão com o sagrado". No mundo
moderno, essas atividades foram dessacralizadas; vivemos em um mundo completamente profano.
Enquanto Eliade associava o homem religioso ao sagrado e o não religioso ao profano, ele
argumentava que mesmo "o homem mais declaradamente não religioso, ainda, em seu ser profundo,
compartilha de um comportamento orientado pela religião". O que ele quis dizer foi que mesmo um
11
homem que não acredita nas sobrenaturais experiências, coisas reais como um casamento, topo de
uma montanha, ou o nascimento de um bebê como adicional - ordinário. Ele ainda enche filmes e
livros com os "motivos míticos - a luta entre herói e monstro, combates e provações iniciáticos,
figuras e imagens paradigmáticas (a donzela, o herói, a paisagem paradisíaca, o inferno e assim por
diante)". O homem não religioso ainda procura renovação e renascimento de diferentes formas. Em
vez de sagrado, no entanto, ele chamaria essas coisas significativo ou especial. Se ele procura uma
vida de maior textura, ele tem tanta necessidade quanto o homem religioso de interpor essas
experiências significativas com a vida cotidiana e de procurar tornar esses eventos extraordinários o
mais distintos possível de seu mundo cotidiano.
"Todo mundo precisa de beleza, além de pão, lugares para brincar e orar, onde a natureza pode
curar e dar força ao corpo e à alma." - John Muir.
Como exemplo, o famoso naturalista John Muir acreditava na beleza religiosa sagrada da
natureza. De fato, alguns especialistas teorizaram que ele abandonou completamente suas raízes
cristãs e se tornou apenas um congregante da igreja da natureza. Ele se afastou dos tradicionalmente
religiosos e injetou o espiritual, ou sagrado, em sua própria vida, à sua maneira. Ele criou o ritual para
si mesmo escalando árvores no meio de tempestades e explorando os mundos em constante mudança
das geleiras. Só porque você não é religioso no sentido tradicional não significa que você não pode
injetar sacralidade em sua vida.
Um dos potentes poderes do ritual é sua capacidade de definir certos tempos e espaços como
sagrados, como "algo basicamente e totalmente diferente" do que o profano. Vamos falar primeiro
sobre a ideia do tempo sagrado.
Eliade argumentou que todos os rituais em sua essência são encenações de atos primordiais
realizados por Deus, deuses ou ancestrais míticos durante o período da criação. Ao imitar os deuses,
é como se os eventos originais estivessem acontecendo mais uma vez, e o ritual libera parte do poder
potente e transformador que estava presente no começo do mundo. Os rituais são recomeçando-o,
para que cada ritual restaure a frescura e a força de um mundo desgastado.
As religiões abraâmicas têm uma visão linear do tempo menos cíclica e mais histórica do que
algumas religiões, mas seus rituais também permitem que o participante “periodicamente se torne
12
contemporâneo dos deuses” e dos heróis da fé. Quando um cristão participa da Eucaristia ou um judeu
no Seder, eles estão revivendo a Última Ceia e o Êxodo originais. O poder sagrado que estava presente
durante o evento original é recriado. É uma experiência de lembrança do ritual que conecta o
participante não apenas aos atores originais, mas a todos aqueles que realizaram o mesmo ritual ao
longo dos tempos. Desta forma, passado e presente são integrados, proporcionando ao participante
um senso de continuidade; o tempo profano é subordinado e sagrado, o tempo eterno emerge.
O poder do tempo sagrado criado ritualmente (ou pelo menos significativo) também se aplica
fora do domínio da religião. Pense em uma instituição que se apoia em tradições passadas para
informar sua identidade e código de comportamento atuais. Nesse caso, o ritual pode não liberar poder
sagrado quando reencenado, mas simplesmente serve para refrescar a mente dos membros sobre os
eventos fundadores e os valores básicos dos grupos, inspirando os herdeiros do legado a continuar
com eles. Por exemplo, o quarto de julho, se ritualizado intencionalmente, pode servir como um
momento para refletir sobre os valores fundamentais dos, bem, dos Fundadores.
Os rituais não podem apenas separar tempos particulares como sagrados, mas também certos
espaços. Nas tradições religiosas, esses espaços sagrados são lugares onde o véu entre humanos e
transcendente é escasso, facilitando a comunicação entre o céu e a terra. Quando você entra em um
espaço sagrado, pode deixar o mundo profano para trás. O tempo também é transcendido (como
acabamos de discutir) e você pode voltar ao passado para participar dos eventos fundadores de sua
fé.
Os rituais não podem apenas sacralizar um ambiente geral, mas os objetos físicos dentro desse
espaço (as pessoas também, mas falaremos sobre isso na próxima vez). Elementos que em sua vida
13
profana seriam meramente comuns, adquirem um novo significado e podem se tornar uma cifra pela
qual o sagrado é revelado a você. Jonathan Z. Smith descreve este processo:
“Quando alguém entra em um templo, entra em um espaço marcado no qual, pelo menos em
princípio, nada é acidental; tudo, pelo menos potencialmente, é importante. O templo é uma lente de
foco, marcando e revelando significado... O comum (que permanece, aos olhos do observador,
totalmente comum) se torna significativo, se torna sagrado, simplesmente por estar lá. Torna-se
sagrado ao ter nossa atenção direcionada a ele de uma maneira especial...
Os sacra são sagrados apenas porque são usados em um local sagrado; não há diferença entre
um vaso sagrado e um vaso comum. Por serem usados em um lugar sagrado, eles são considerados
abertos à possibilidade de significado, para serem vistos como agentes de significado e de utilidade.”
Os rituais podem nos levar a ver as coisas cotidianas de uma maneira nova. Vinho é apenas
vinho, até que seja o Sangue de Cristo. Um aperto de mão é apenas um aperto de mão, até que seja
usado para revelar verdades secretas. Sapatos são apenas sapatos antes de removê-los para pisar em
solo sagrado. Ao refletir sobre o significado desses símbolos, eles podem como Eliade diz, "levar o
passado ao particular, ao universal" e conceder novas ideias sobre a verdade.
Quando você pensa no espaço sagrado, é provável que as casas de culto primeiro sejam
lembradas. Ao atravessar os limiares físicos, que muitas vezes são acentuados por arcos altos ou
portas gigantes, você se move não apenas entre a rua e o santuário, mas entre dois modos de ser - o
sagrado e o profano. Tirar os sapatos como antes de entrar na mesquita ou fazer o sinal da cruz com
água benta ao entrar na catedral ajuda a marcar essa passagem de maneira tangível.
Hoje, muitas igrejas, em um esforço para não incomodar os membros em potencial com uma
estrutura física e rituais com os quais não estão familiarizados, modelaram seus edifícios e serviços
nos edifícios e entretenimentos da cultura popular, fazendo a transição do mundo exterior para o
santuário como sem costura possível. Em teoria, isso limita o potencial de os adoradores
experimentarem as manifestações do sagrado como "algo basicamente e totalmente diferente... como
nada humano ou cósmico". Já foi dito que o ritual sagrado desorienta a reorientar, e o culto moderno
frequentemente pula a primeira fase.
14
Ao mesmo tempo, no entanto, os edifícios não são, na verdade, o elemento central que
possibilita "irrupções do sagrado" (maravilhosa frase de Eliade). O ritual, e não a estrutura física real
é o que cria um espaço sagrado, para que possa ser encontrado em qualquer lugar onde se encontre
adoradores ritualmente tocando o divino, de uma igreja a um parque de trailers e a um bosque de
sequoias.
Se você costuma se perguntar: " Isso é tudo o que existe?" você pode estar imerso no sagrado.
Pode ser necessário encontrar um lugar para o ritual em sua vida, mesmo que seja tão simples quanto
declarar parte da manhã como tempo sagrado ou um quarto em sua casa como espaço sagrado. Se
você esperar que a vida lhe entregue textura e significado, você se sentirá plano para sempre. O mundo
moderno existe apenas na dimensão profana; para acessar o sagrado, o caminho é ritual. E além de
apenas dar ao indivíduo um senso de significado e conexão, o ritual também medeia e constrói os
laços de comunidade e fraternidade. É sobre esse assunto que retornaremos em nosso próximo post.
Antes de uma série de artigos que vamos fazer este ano sobre alguns dos ritos que têm sido
centrais para a masculinidade, temos discutido recentemente a natureza do ritual e seus vários
benefícios.
No último post, exploramos o poder do ritual para esculpir o sagrado em um mundo que de
outra forma seria profano. O ritual tem a capacidade de sacralizar não só o tempo e o espaço, mas
também os laços entre as pessoas. Na verdade, o ritual é principalmente de natureza de grupos (os
rituais privados geralmente derivam de variedades outrora públicas) e tem sido chamado "o ato
social". Como os autores de Ritual e Suas Consequências, Adam B. Seligman, Robert P. Weller, e
Michael J. Puett (a quem simplesmente me referirei daqui em diante como SWP), argumentam, o
ritual "envolve o trabalho interminável de construir, refinar e reconstruir teias de relacionamentos em
um mundo de outra forma fragmentado". É excepcionalmente eficaz na meditação das interações
sociais e na construção da comunidade, e realiza este trabalho de várias maneiras:
Os rituais são uma das características que definem os grupos "fechados", pois não só separam
uma tribo de outra, mas também criam limites, que definem quem está dentro e quem está fora. Não
tão bom para quem não faz parte, mas permite que o iniciado bem-sucedido se integre totalmente no
grupo, em vez de se sentir como um estranho pendurado. A integração total dá ao iniciado segurança
em sua identidade, um conjunto claro de expectativas de como agir se ele deseja manter sua afiliação,
e a motivação para lutar que vem do conhecimento do propósito de cada um.
Os rituais criam uma atmosfera de confiança. Os rituais constroem laços de confiança entre
os membros do grupo, uma vez que frequentemente requerem uma declaração pública de
compromisso interno. Os membros do grupo sabem que estão todos na mesma situação e não
precisam começar do zero a verificar os valores e mentalidade uns dos outros - mesmo que se
encontrem como estranhos.
Esta função foi especialmente importante nas culturas de honra tradicionais, onde uma leve
percepção poderia levar a desafios e derramamento de sangue. Os rituais mantinham um
comportamento que podia ofender ou insultar, e se ainda ocorresse uma confusão, eles mediavam
uma solução que satisfizesse ambas as partes, muitas vezes sem recorrer à violência. Os duelos do
século XIX, por exemplo, não eram assuntos espontâneos em que um insulto era dado e as partes
marchavam imediatamente para o combate (de fato, atacar outro cavalheiro fez de você um pária
social). Em vez disso, um duelo tinha que ser conduzido com calma e frieza para ser digno, e as
preliminares podiam levar semanas ou meses; uma carta pedindo desculpas seria enviada, mais cartas
seriam trocadas, e só se não fosse possível chegar a uma resolução pacífica é que os planos para o
duelo começariam de fato. Mesmo assim, apenas 20% desses "assuntos de honra" terminavam em
uma fatalidade; cada lado erraria deliberadamente ou visaria intencionalmente uma ferida não crítica.
O combate ritualístico para resolver problemas pode parecer bárbaro para nós hoje, mas seus
defensores na época acreditavam que realmente reduziam a violência. Em vez de um conflito atrair
os associados de cada parte e transformar uma questão que era originalmente entre apenas dois
homens em uma briga interminável e sangrenta entre grupos e famílias (como os Hatfields e McCoys),
um confronto mano-a-mano diminuiu o problema pela raiz e forneceu uma resolução clara a todas as
partes.
Embora o ritual de duelo tenha morrido, nenhum ritual alternativo fora do sistema legal
emergiu para substituí-lo. E isto trouxe o seu próprio conjunto de problemas. Como Carlin Barton,
autora de Roman Honor, argumenta:
"A ausência de rituais suficientes e poderosos ‘dados’ torna difícil, na cultura americana
contemporânea, não ser sobrecarregado pela intensidade das emoções de uma pessoa ou responder a
até pequenos desafios com nada além de palavrões. Os comportamentos formalizados que mediariam
17
entre violência e passividade estão ausentes em nossa cultura. Nós respondemos à humilhação
atirando um no outro ou assistindo televisão.”
Hoje, embora se livrar de algumas das regras de etiqueta “abafadas” fosse libertadora, as
interações costumam ser desastradas e sem arte, pois ninguém sabe ao certo o que deve fazer. "Quem
recebe o cheque... parece que estamos tentando alcançá-lo." “Alguém vai me apresentar... acho que
não. Eu só vou ficar aqui sem jeito. ". "Oh, acho que esse não é um assunto que eu deveria ter
abordado."
Se você pensa em qualquer esporte, suas regras servem para facilitar a ação. Sem eles, ou se
todos os jogadores seguissem suas próprias regras, o jogo se transformaria em caos, sem ritmo e fluxo
estéticos e perdendo todo o sentido. Uma vez que os atletas conhecem os parâmetros com os quais
estão trabalhando, eles podem se concentrar em executar os comportamentos permitidos da melhor
forma possível. Da mesma forma, embora os rituais sociais possam parecer restritivos, eles podem
criar caminhos ou canais através dos quais o comportamento pode fluir mais livremente.
"Dentro de uma multidão movida por uma paixão comum, tornamo-nos susceptíveis a
sentimentos e ações das quais somos incapazes por nós mesmos. E quando a multidão é dissolvida,
quando nos encontramos novamente sozinhos e voltamos ao nosso nível habitual, podemos medir até
que ponto fomos elevados acima de nós mesmos".
Durkheim chamou essa paixão comum de "efervescência coletiva" - uma energia especial que
pode transfigurar um evento em algo elétrico, transcendente, até mesmo sagrado. A efervescência
coletiva pode ocorrer em eventos esportivos, serviços religiosos, comícios políticos, festivais de
música - em qualquer lugar onde um grupo de pessoas esteja engajado em um ritual. Durkheim
18
descreveu a experiência da efervescência coletiva como sendo "transportada para um mundo especial
inteiramente diferente do comum, um cenário povoado por forças especialmente intensas que
invadem e transformam". Estas forças geram sentimentos de invencibilidade e a sensação de que tudo
é possível.
Pense em estar em um espetáculo onde houve um momento que pareceu ter sido atravessado
por uma energia elétrica especial - o ar estava carregado e seu coração parecia inchar. O momento foi
trazido à existência pelo público e pelos artistas como um todo - cada indivíduo contribuiu para
intensificar o humor compartilhado - e assim você sentiu um sentimento de unidade e conexão
calorosa com todos os presentes - uma identidade coletiva. Juntos vocês criaram um momento que
foi capaz de transcender o cotidiano.
Pode-se argumentar que a capacidade de criar é o nosso atributo mais divino, e por esta razão
o ritual tem o potencial não só de solidificar laços, mas também de sacralizá-los. Poderoso é o vínculo
entre aqueles que permanecem juntos como cocriadores. A sacralização dos relacionamentos é,
portanto, mais provável que ocorra em encontros menos consumistas e com um propósito maior -
moral, religioso, cívico, revolucionário ou heroico.
Obviamente, a efervescência coletiva tem um lado obscuro - as pessoas podem perder suas
inibições, tornar-se excessivamente emocionais e abandonar seu pensamento crítico, criando uma
mentalidade mafiosa que pode transbordar em violência e caos sem objetivo. Pense nos protestos no
Egito nos últimos anos - eles podem ser fortes e eficazes, mas também frequentemente destrutivos.
No entanto, seria uma pena jogar fora o bebê com a água do banho quando se trata de reuniões
comunitárias significativas. Como argumenta o sociólogo Alex Law, a efervescência coletiva
"permite à sociedade recarregar suas baterias" e "reafirmar sua unidade moral".
As reuniões periódicas são até mesmo um canal através do qual podemos gerar soluções para
problemas da sociedade que não teriam surgido de outra forma. O próprio Durkheim previu isso:
Como assim? Uma cultura não ritualizada preza sobretudo a "autenticidade", e insiste em lidar
com a realidade tal como ela "realmente é" (embora na prática isso signifique geralmente descartar
sem críticas as ambiguidades da vida e concentrar-se cinicamente nos seus aspectos mais negativos).
Em contraste, o ritual tem o potencial de criar um mundo compartilhado temporariamente entre os
participantes - outro universo ou dimensão dentro da nossa realidade atual. SWP argumentam que
este mundo compartilhado constitui um terceiro espaço que nos permite imaginar e explorar outras
possibilidades para nossas vidas, papéis e cultura. Em vez de ver as coisas apenas "como são", o ritual
cria um "como se", um "poderia ser" compartilhado.
Celebrar a Eucaristia cria um mundo partilhado no qual é como se a Última Ceia estivesse de
novo acontecendo. Realizar uma dança de guerra antes da batalha cria um mundo compartilhado no
qual uma tribo poderia ser a força de luta mais feroz da terra. Bater um tambor num cadete fora do
VMI cria um mundo compartilhado no qual é como se a honra fosse a coisa mais preciosa na vida de
um soldado. Iniciar um membro da fraternidade cria um mundo compartilhado no qual a fraternidade
pode ser um laço inquebrantável. Dar o nó cria um mundo compartilhado no qual é como se o
casamento fosse garantido para sempre.
Mas, você pergunta, esses mundos compartilhados não são apenas ilusões? Não são apenas
uma realidade falsa que estamos criando para nós mesmos? Isso é verdade, mas os rituais podem
ajudar a transformar a ilusão em realidade. Ou, como disse o SWP, "o quadro realmente nos atrai
depois dele". O ritual não apenas aponta para o ideal, mas serve como um exemplo real e vivido dele,
e, ao fazê-lo, ajuda a realizá-lo. Se você agir como se a irmandade fosse um vínculo inquebrável, sua
amizade se tornaria mais forte. Se você agir como se sua tribo fosse praticamente invencível, você
lutaria mais ferozmente. Este é o princípio do ato de tornar-se sobre o qual falamos antes, tanto em
relação à masculinidade quanto ao carisma, e abordaremos também no próximo post.
É importante lembrar que um dos elementos chave do ritual é a repetição. Obviamente, uma
cerimônia de casamento não garante realmente uma vida inteira de felicidade, mas o envolvimento
regular em rituais de afeto a partir desse dia pode continuamente devolver ao casal aquele mundo
compartilhado de forte amor romântico, muito depois do período de lua-de-mel ter acabado. Como
escreve a SWP:
"Após três décadas de casamento, filhos, lavanderia, hipotecas, funerais, brigas e parentes, a
relação tende a ser sustentada por um "como se" compartilhado, em vez de um "como é" contínuo.
Os relacionamentos que não conseguem construir um subjuntivo compartilhado a longo prazo tendem
a desmoronar-se. Não basta amarmo-nos sinceramente se as pessoas falham em agir como se
20
amassem umas às outras; e agir como se amassem umas às outras inclui formas ritualizadas de
expressão de preocupação, verbalmente e em atos concretos de ajuda".
O mundo partilhado - a realidade partilhada que o ritual cria - o SWP argumenta, em última
análise encontra o seu poder em permitir "a projeção de um futuro compartilhado através de histórias
de um passado comum".
No início desta série, sugerimos que o ritual pode agir como um antídoto para um mundo
moderno que muitas vezes se parece plano, sem textura, unidimensional. Uma forma de fazer isso é
criando camadas do sagrado em um mundo que de outra forma seria totalmente profano. Hoje
exploramos uma segunda maneira: os participantes do ritual podem criar juntos um mundo
compartilhado - uma dimensão diferente que transcende o cotidiano. Como diz o SWP, o ritual
"constrói um mundo que, por breves momentos, cria bolsas de ordem, bolsas de alegria, bolsas de
inspiração". Dentro dessas bolsas, podemos brincar com ideias do que poderia ser, formar o tipo de
vínculo aberto apenas aos cocriadores, e explorar verdades e formas de ser que repudiam as opções
mesquinhas, pessimistas, de menor denominador comum que constituem o estado atual. Quando nos
perguntamos: " Isto é tudo o que existe?" o ritual puxa a cortina para outro mundo de possibilidades
e, ao mesmo tempo, ajuda a transformar essas possibilidades em realidade.
Os rituais não podem apenas transformar os mundos que compartilhamos com os outros, mas
também o nosso próprio mundo pessoal - ajudando-nos na transição e no progresso através da vida.
Sobre esse poder final do ritual, na próxima publicação.
Escrito por Brett & Kate McKay e Traduzido por Filipe Brito
Até agora, falamos sobre a capacidade do ritual de escavar bolsões do sagrado em um mundo
profano , bem como a maneira como ele pode criar identidade de grupo e solidificar laços entre as
pessoas , construindo mundos compartilhados de possibilidades entre eles.
Uma das principais funções do ritual é redefinir a identidade pessoal e social e mover
indivíduos de um status para outro: menino para homem, solteiro para casado, sem filhos para pais,
vida para a morte e assim por diante.
Deixadas a seguir seu curso natural, as transições geralmente se tornam turvas, desajeitadas e
prolongadas. Muitas transições de vida vêm com certos privilégios e responsabilidades, mas sem um
ritual que claramente concede um novo status, você não tem certeza de quando assumir o novo
papel. Quando você simplesmente desliza de um estágio de sua vida para outro, pode acabar se
sentindo entre mundos - não exatamente uma coisa, mas outra. Esse estado confuso cria um tipo de
limbo frequentemente marcado por falta de motivação e direção; como você não sabe onde está no
mapa, não sabe para onde começar.
Por exemplo, jovens que não passam por um ritual de passagem para a idade adulta muitas
vezes lutam para se sentir como um garoto preso no corpo de um homem. Eles querem se sentir como
um homem, mas não o fazem, e imaginam que começarão a agir como um quando começarem a se
sentir como um. Mas esse sentimento nunca chega, e a sensação de estar no limbo continua.
Só de pensar em seu caminho para um novo status não é muito eficaz: "Ok, agora sou
homem". O pensamento apenas circula dentro de sua cabeça e parece inerentemente irreal. Os rituais
fornecem uma manifestação externa de uma mudança interior e, ao fazê-lo, ajudam a tornar as
transições e transformações da vida mais tangíveis e psicologicamente ressonantes. Eles fazem isso de
várias maneiras:
22
O ritual oferece inúmeras chances de satisfazer essa profunda necessidade de novos começos e
de sentir como se alguém estivesse avançando e progredindo por diferentes estágios da vida. Isso se
aplica a eventos como as celebrações do Ano Novo e o batismo e confissão cristã, a várias posições e
méritos, como os escoteiros e os diferentes graus da Maçonaria.
Os rituais tornam as transições de status mais claras e mais poderosas. Os rituais ajudam a
mover você de um status para outro, criando um processo multifásico que aumenta e intensifica a
transição. Os ritos de passagem (e muitos outros tipos de rituais também) geralmente seguem a
sequência de três estágios apresentada por Gennep: separação, transição e incorporação.
Primeiro, você abandona sua antiga identidade; então você existe por um tempo em um estágio
intermediário; e, finalmente, você está integrado ao seu novo status. Juntar-se às forças armadas é um
exemplo perfeito desse processo. Ao entrar no campo de treinamento, você se despe de suas roupas
velhas, sua cabeça está raspada e aprende um novo conjunto de comportamentos; por várias semanas
você existe em um estado intermediário, onde você não é mais um civil, mas ainda não é um soldado
de pleno direito; finalmente, você se forma como um membro do ranking das tropas.
Ao delinear claramente a transição de um status para outro, essa sequência de três estágios é altamente
eficaz para moldar sua mentalidade e fazer com que você abandone sua antiga identidade, abraça e se
sente confiante em sua nova.
Os psicólogos descobriram que, assim como todas as boas histórias, a coerência de nossas
narrativas pessoais é importante e quanto mais coerência nossa história de vida tem, maior nossa
sensação de bem-estar. Mas, infelizmente, a vida real tende a acontecer lentamente, movendo-se em
ataques e partidas não dramáticas que não se encaixam bem nem têm o tipo de causa e efeito claros
que contribuem para um bom conto. Os pontos de inflexão geralmente são reconhecidos como tal em
retrospecto. Quando coisas maiores acontecem em nossas vidas, elas não se sentem tão significativas
quanto pensávamos; ironicamente, a vida real geralmente parece menos real do que está em nossos
livros e imaginações.
Os rituais ajudam a fazer com que as transições da vida sejam tão substanciais e interessantes
quanto você acha que deveriam. Eles podem sofrer uma mudança psicológica, biológica ou espiritual
que acontece de maneira muito gradual e não dramática - e, portanto, não seria uma ótima cena de
filme ou livro - e transformá-la em um evento marcante e tangível. Por exemplo, enquanto a conversão
espiritual costuma ser um processo gradual e prolongado, o dia do batismo empresta à história de sua
fé um ponto de virada claro e inesquecível, adicionando páginas vívidas e um capítulo claro ao livro
de sua vida.
Os rituais criam marcos em nossas histórias pessoais. A criação desses pontos de viragem
salientes e indeléveis não apenas empresta uma estrutura narrativa às suas experiências, mas também
cria marcos permanentes em sua memória - sinais para os quais você pode se orientar ao longo de sua
vida.
Algo em que tocamos repetidamente nesta série é a maneira pela qual o ritual pode servir como
um antídoto para a planicidade do nosso mundo e cultura modernos. O ritual não apenas adiciona
textura à nossa cultura como um todo, mas também às paisagens de nosso passado individual. Quando
nos sentimos perdidos na vida e olhamos através das brumas do tempo, procurando pistas sobre como
proceder, os rituais são como picos de montanhas proeminentes que sempre podemos ver, e que nos
ajudam a lembrar onde estamos e para onde precisamos ir.
24
Se nossas vidas são como livros de histórias, os rituais são como relevos em braile; em vez de
nossos dedos roçarem cegamente as páginas lisas quando procuramos a direção, esses pedaços de
textura nos ajudam a “ler” e lembrar.
Por exemplo, se o seu casamento estiver trêmulo, você pode relembrar o namoro ao pensar no
que fazer, mas seu amor e compromisso cresceram gradualmente e as memórias são um pouco confusas
e correm juntas. Por outro lado, o dia do seu casamento se destacará e você poderá olhar para aquele
pico, lembrar como se sentiu em pé no altar e nos votos que fez e se reorientar em sua jornada.
Os rituais nos impedem de nos desviarmos demais de nossos objetivos e propósitos. Muitos
rituais são projetados para se envolver regularmente e agir como lembretes das próprias experiências
"marcantes". Tais rituais de eco podem impedir-nos de nos perdermos no nevoeiro da vida em primeiro
lugar.
Como já falamos antes , embora muitas vezes saibamos quem somos e queremos ser, é fácil
esquecer e perder essa visão enquanto passamos por nossas vidas ocupadas. Nosso propósito e valores
são como uma corda que percorre nossa vida e que devemos manter o controle dia após dia. Rituais de
lembrança nos ajudam a manter o controle sobre essa corda através dos túneis escuros da vida.
Por exemplo, quando os membros da Igreja de Jesus Cristo dos Santos dos Últimos Dias levam
o sacramento (semelhante à Eucaristia Cristã) todos os domingos, eles refletem no dia do batismo e
renovam espiritualmente os convênios que fizeram com Deus durante aquele ritual de compromisso.
As tatuagens são um exemplo ainda mais literal de um ritual que cria um marco com um eco
muito tangível; o ato de fazer a tatuagem em si estabelece o ponto de referência, enquanto dedica um
tempo para examiná-la todas as manhãs lembra continuamente seu significado.
Em nosso primeiro texto, discutimos o fato de que todos os rituais são encenações - ações nas
quais há um público-alvo, mesmo que esse público seja apenas você. Quando você se vê fazendo
alguma coisa, mesmo que não se sinta o tipo de cara que faria uma coisa dessas, você pensa: "Olhe
para mim fazendo X. Eu devo ser o tipo de cara que faz X." Sua mente fecha a lacuna entre seus
sentimentos e suas ações; agindo, você se torna. Driver coloca desta maneira: “Há um certo sentido,
imensamente importante, no qual quem somos espera em quem dizemos que somos. Quando nos
apresentamos, simplesmente não expressamos o que já somos. Realizamos nosso devir e nos tornamos
nossa encenação”.
O ritual fornece um amplo antídoto para essa doença, pois, como observa Driver, “nenhum
ritual bom é desencarnado. De fato, a fisicalidade é uma das bases da eficácia do ritual no avanço de
nosso progresso e transformações pessoais. Este poder de realização fornece o impulso em várias
frentes diferentes.
Primeiro, o ritual oferece a chance de entrar em contato com nosso corpo físico e o mundo
tangível. Por exemplo, as pessoas primitivas tinham muitos rituais relacionados à caça - rituais pré-
caça para aumentar as chances de sucesso, rituais de como matar os animais, rituais de como cortá-los
e manusear o cadáver e rituais de como comer a sua carne. Tais rituais os ligavam aos ritmos da vida
e da morte. Hoje, devoramos nossa comida sem sequer prová-la. Estamos desconectados do processo
de como obtemos e consumimos nosso sustento, e isso pode ter efeitos prejudiciais à nossa
saúde. Rituais - como dizer graça antes de uma refeição ou fazer café manualmente com uma cafeteira
francesa - podem nos ajudar a desacelerar e nos conectar com o que estamos fazendo no momento -
acalmar nossas mentes e reorientar nossos corpos no tempo e no espaço.
A fisicalidade do ritual também pode funcionar para nos levar a um estado de "fluxo". Depois
de dominar os movimentos repetitivos de um ritual, seu corpo pode executá-los sem pensar e você
perde um certo grau de autoconsciência, abrindo sua mente para ideias de outro nível de
existência. Não é por acaso que muitos monges e ascetas ritualizam quase todos os aspectos de suas
vidas; ao colocar funções básicas no piloto automático, suas mentes estão livres para ascender a um
plano espiritual.
26
Terceiro, colocar seu corpo em uma determinada posição física pode mudar a maneira como
você se sente e alterar sua mentalidade, aumentando a eficácia do ato pretendido. Por exemplo, se você
deseja se perder em fervorosas orações, ajoelhar-se ou prostrar-se imediatamente fará com que você
se sinta mais reverente e humilde do que se inclinar em uma cadeira.
Quando você aprende a usar uma ferramenta (como um machado), traz seu próprio
conhecimento da técnica para a ferramenta, mas ela também o ensina enquanto você prática - dando
feedback às mãos, braços e mente sobre como é para ser usado corretamente. A obtenção de
conhecimento ritual, argumenta Jennings, funciona da mesma maneira - quando você lida com objetos
físicos simbólicos durante um ritual, eles enviam mensagens de volta a você sobre seu significado mais
profundo. É por isso que, argumenta Jennings, "o ritual pode servir como um modo de investigação e
descoberta ".
Os rituais invocam poderes especiais. Os rituais podem convocar e canalizar forças especiais
que intensificam e eletrificam um ato, aumentando assim o efeito pretendido. Driver explica bem esse
fenômeno: “Um ritual é um desempenho eficaz que invoca a presença e a ação de poderes que, sem o ritual,
não estariam presentes ou ativos naquele momento e local, ou seriam de uma maneira diferente. Os exemplos
mais óbvios de tais poderes, sem dúvida, são divindades, demônios, ancestrais e outros espíritos que podem ser
chamados de "sobrenaturais"; mas eles também podem ser certos poderes da natureza, da sociedade, do estado
ou da psique”.
27
Um exemplo perfeito disso são os vários rituais que muitos escritores realizam antes de
começar a trabalhar na esperança de preparar a mente para a inspiração. Alguns preparam um bule de
café forte, dão um passeio ou limpam a mesa de tudo, menos o laptop. Em The War of Art , o autor
Steven Pressfield descreve o ritual de pré-escrita que ele usa para preparar sua mente:
“Levanto, tomo banho, tomo café da manhã. Eu leio o jornal, escovo os dentes. Se eu tiver telefonemas
para fazer, eu faço. Eu tenho meu café agora. Coloquei minhas botas de trabalho da sorte e costurei os cadarços
da sorte que minha sobrinha Meredith me deu. Volto para o meu escritório, ligo o computador. Meu moletom
com capuz da sorte está pendurado sobre a cadeira, com o amuleto da sorte que recebi de um cigano em Saintes
Maries de La Mer por apenas oito dólares e meu crachá da sorte com o nome “Largo” que veio de um sonho
que já tive. Sob o meu dicionário de sinônimos está o meu canhão da sorte que meu amigo Bob Versandi me
deu do Castelo do Morro, em Cuba. Eu me inclino em minha cadeira, para que ela possa me inspirar. Recito
minha oração, que é a Invocação da Musa da Odisseia de Homero. São cerca de dez e meia agora. Sento-me e
mergulho na escrita.”
Tirar os rituais da vida deveria ser libertador, mas em um momento em que estamos inundados
de liberdade pessoal, muitas pessoas parecem terrivelmente chatas e incomuns. Desgastadas de ter que
escolher seu comportamento em todas as situações com pouca orientação, e de criar todos os aspectos
de seu próprio significado e identidade, as pessoas desistem e parecem passivas e derrotadas, satisfeitas
em deixar as correntes do consumismo carregá-las. Carlin Barton, autor de Roman Honor escreve
sobre uma fadiga psicológica semelhante que ocorreu quando o ritual desapareceu da cultura romana
antiga:
28
“Como para o cosmopolita, limites, como definições, precisavam ser escolhidos, a moralidade e a
adesão a tradições e limites particulares exigiam um prodigioso ato de vontade. Preservar um senso de ser, de
identidade, tornou-se, assim, um ataque contínuo - e finalmente exaustivo - à vontade ... Para os romanos da
República tardia e do início do Império, havia muita confiança na vontade. Como em uma peça de Sêneca, não
havia áreas suficientes da vida onde alguém pudesse se submeter; não havia descanso psíquico, nem catarse. É
muito mais fácil, como Mary Douglas aponta, manter um senso da própria existência, da expressividade de suas
palavras e ações, em um mundo com vínculos e tradições obstinados do que em um mundo sem eles, por mais
pesados que sejam esses vínculos.”
Os rituais desenvolvem nossa sabedoria prática. Uma das maneiras mais importantes pelas
quais o ritual realmente facilita e não reduz a expressão está na maneira como ajuda a desenvolver
nossa sabedoria prática - o que os gregos chamavam de phronesis. John Bradshaw, autor
de Reclaiming Virtue , define sabedoria prática como “ a capacidade de fazer a coisa certa, na hora
certa, pela razão certa ”. A sabedoria prática envolve conhecer a melhor maneira de responder em todas
as situações - reagindo nem muito nem pouco e sempre escolhendo o caminho equilibrado da
moderação virtuosa.
Como o ritual ajuda você a encontrar esse caminho adequado? Os autores de Ritual e suas
consequências dão o exemplo de ensinar uma criança a dizer "por favor" e "obrigado". Como
discutimos na última vez, os rituais criam um mundo compartilhado de possibilidades - “como se” - e
os rituais de etiqueta social criam um mundo compartilhado de polidez.
Quando você ensina uma criança a dizer por favor e obrigado pela primeira vez, você deve
lembrá-la constantemente de fazê-la, e ela acaba se arraigando simplesmente através do processo de
repetição mecânica. Se você conseguir tornar as expressões dessas brincadeiras quase automáticas para
eles, elas pelo resto da vida darão uma pequena contribuição para criar esse mundo compartilhado de
polidez sempre que interagirem com outras pessoas. Mas o efeito do ritual geralmente se estende ainda
mais - ajudando-os a ver toda a vida através de uma mentalidade graciosa e agradecida.
Por terem habitado por tanto tempo um mundo subjetivo de polidez, a estrutura do mundo serve
como um guia de como agir em situações em que uma estrutura ritual não existe ; praticar o ritual de
agradecimento desenvolve sua “capacidade de expressar gratidão de maneira eficaz quando
simplesmente dizer 'obrigado' seria inadequado ou insuficiente”.
Pode-se comparar à maneira como os juízes usam os precedentes de casos passados para
deliberar e apresentar seu próprio veredito. Também é útil refletir sobre as formas ou katas usados em
29
várias artes marciais. Esses padrões de movimentos coreografados são praticados repetidamente, até
que os chutes, socos e bloqueios estejam profundamente arraigados na memória muscular do
praticante. Não é como se o artista conjugal usasse a sequência exata do kata em uma luta no mundo
real, como a Wikipedia diz: “Ao praticar de maneira repetitiva, o aprendiz desenvolve a capacidade de
executar essas técnicas e movimentos de maneira natural e reflexa. maneira. Prática sistemática não
significa permanentemente rígida. O objetivo é internalizar os movimentos e técnicas de um kata para
que eles possam ser executados e adaptados sob diferentes circunstâncias, sem pensamento ou
hesitação.”
O cultivo da sabedoria prática está tão ligado à prática de ações rituais, que atingir o status de
sábio ou profeta em muitas culturas antigas exigia primeiro seu domínio.
O ritual expressa, libera e produz emoções. Muitas vezes sentimos a necessidade de fazer algo físico
em reação a um evento, e os rituais podem fornecer uma catarse que libera ou pelo menos alivia
ansiedade, estresse, dúvida, raiva, tristeza e medo (sem mencionar emoções positivas, como a alegria).
Nos dias modernos, rituais simples como calçar os sapatos antes de uma entrevista de emprego
podem aliviar alguns dos nervos que você está sentindo e centralizá-lo. Fazer uma corrida matinal
ou fazer a barba lentamente com uma navalha reta pode ter o mesmo efeito e pode colocar você na
mentalidade certa para enfrentar o seu dia sem estresse e ansiedade.
30
Os rituais não apenas expressam o estado mental de alguém, mas também podem ajudar a criá-
lo positivamente. Uma dança de guerra pode despertar sentimentos de agressão, coragem e confiança,
enquanto suprime o medo em preparação para encontrar o inimigo. As equipes esportivas às vezes têm
rituais pré-jogo projetados para produzir o mesmo efeito. Por exemplo, a equipe nacional de rúgbi da
Nova Zelândia executa o Haka em frente à equipe adversária antes de todas as partidas. A dança de
guerra não apenas os anima, mas também serve ao propósito de intimidar seus oponentes.
Escrito por Brett & Kate McKay e Traduzido por Filipe Brito
O ritual é uma das formas mais antigas e universais de expressão humana no mundo. Nos
últimos textos, explicamos as razões de sua persistência e onipresença detalhando seus muitos e
variados benefícios, incluindo a capacidade de escavar bolsões do sagrado em um mundo profano,
solidificar laços e impulsionar o progresso pessoal.
Mas se o ritual tem um poder tão transformador e enriquecedor da vida, por que as sociedades,
à medida que se modernizam, se afastam invariavelmente dele? Na introdução desta série sobre o poder
e a natureza do ritual, mencionamos brevemente duas razões para a rejeição da nossa cultura atual: o
alto valor atribuído à liberdade pessoal completamente irrestrita e a preocupação com a maneira como
o ritual poderia ser empregado para fins nefastos que cresceu após as consequências da Segunda Guerra
Mundial. Agora, ao concluirmos a série, gostaríamos de sugerir mais alguns elementos na raiz da
resistência ritual moderna:
Suspeita da ligação do ritual à magia. Um dos principais atributos do ritual é que é uma ação
que carece de uma "relação prática entre os meios que escolhemos para alcançar certos fins". Não é
racional acreditar que um rito de passagem pode transformar um garoto em homem ou que a colocação
de vários totens em seu escritório (como Steven Pressfield) ajudará você a escrever melhor. Assim,
acreditar na eficácia desses ritos é acreditar em um tipo de mágica.
As pessoas tendem a ter uma reação brusca à palavra mágica, mas eu encorajo você a defini-la
como Ronald L. Grimes: como "trabalho ritual". Grimes argumenta que um "rito não apenas tem
significado, mas funciona, é mágico". Ou, para uma cultura pop moderna, só é estranho se não
funcionar.
Talvez colocar um centavo do seu avô na sua meia antes de cada jogo de futebol o ajude a jogar
melhor porque o espírito dele realmente está ajudando, ou talvez o ritual simplesmente acalme sua
mente e lhe dê mais confiança. De qualquer maneira, o ritual funciona. Se os rituais são eficazes porque
invocam poderes sobrenaturais, ou simplesmente psicológicos, muitos realmente têm o efeito
pretendido - até estudos científicos mostraram que isso é verdade. Então, se um ritual funciona, importa
por que funciona? E se algo é comprovadamente eficaz, é realmente irracional tentar?
32
Mesmo os mais estritamente lógicos e seculares entre nós são criaturas altamente irracionais;
os psicólogos mostraram que todo ser humano está sujeito a numerosos preconceitos cognitivos, alguns
dos quais não podem ser superados, mesmo quando tentamos afastá-los. Então, na minha opinião, o
único homem verdadeiramente irracional é aquele que não pode admitir que é irracional. E o homem
mais sábio é aquele que admite que é irracional, está completamente ciente disso e decide
intencionalmente às vezes participar de comportamentos tecnicamente irracionais pelos benefícios que
sabe que eles o acumulam.
Ao ler esta série, você deve ter pensado: "Isso parece ótimo em teoria, mas eu fiz alguns dos
rituais mencionados e não experimentei nenhum desses incríveis benefícios supostos".
O Dr. Tom F. Driver chama essa experiência moderna comum de "tédio ritual". Enquanto ele
argumenta que é causado por rituais sendo mantidos com muita rigidez e não evoluindo para serem
mais relevantes para a cultura moderna, eu pessoalmente não acredito que a tradição em si seja o
problema. Dois outros fatores me parecem mais importantes:
O primeiro é um período de atenção atrofiado. O que parece tédio para alguns é experimentado
por outros como uma exploração significativa da verdade. A primeira pessoa, confrontada com a
repetição e uma corrente de estímulos muito mais lenta do que a experimentada no telefone e no
computador, não sente que haja o suficiente para prender sua atenção e sua mente se desloca para a
lista de compras daquela semana. A segunda pessoa, que tem uma curiosidade aguda e genuína, é
capaz de se concentrar no que está acontecendo e aprofundar-se nisso, fazendo perguntas como: “Por
que fazemos isso neste momento? O que significa este símbolo? Como essas coisas estão conectadas?”.
Quanto mais eles cavam, mais o ritual lhes revela, e mais significativo e interessante o ritual se torna.
O segundo fator é que o tédio ritual pode ser atribuído à lacuna pós-moderna entre o significante
e o significado. Ou seja, vemos rituais e símbolos como significando coisas diferentes para todos, ou
realmente não significando nada. Tome algo como o Natal. Originalmente um feriado cristão (e sim,
antes disso, baseado em celebrações pagãs), agora é algo celebrado até por alguns judeus e ateus. Os
símbolos do Natal foram projetados para apontar para algo, mas agora simbolizam nada além de uma
certa época do ano e "diversão" e "família". Se você não acredita que exista um significado mais
profundo para os rituais, não acredita que eles carregam forças especiais. E, na ausência desses poderes
elevadores e eletrizantes, o ritual é experimentado como apenas um processo tedioso.
Tome as celebrações do ano novo. Para tribos primitivas, eles realmente acreditavam que a
cada novo ano eles refundavam o mundo e que, ao reconstituir as ações primordiais realizadas pelos
33
deuses durante o período da criação, seus rituais liberavam parte do poder potente e transformador
presente no próprio início dos tempos. Isso é inebriante. Na véspera de Ano Novo, bebemos, assistimos
a uma queima de fogos, discutimos ironicamente as estatísticas patéticas de quantas pessoas realmente
mantêm suas resoluções e vamos para a cama com um suspiro, sentindo mais blá do que rejuvenescido.
A folia não está ligada aos deuses ou ancestrais míticos, à mitologia ou história, ou mesmo a um forte
senso de tradição. Como o ritual não recria nada, os fluidos que infundem atos criativos, que
possibilitam a mágica e a transformação, que abrem os bolsos do sagrado, estão ausentes e, em vez de
o ritual parecer extraordinário, como uma pausa no cotidiano, parece terrivelmente plano,
unidimensional - como apenas mais do mesmo.
Acho que todo jovem que já assistiu ao filme A Sociedade dos Poetas Mortos sentiu uma
pontada de anseio, desejando poder ter um clube desses com seus amigos. No entanto, nenhum rapaz
quer dizer: "Puxa, rapazes, o que vocês acham de todos nós reunidos na floresta de vez em quando e
lendo poesia um para o outro?" Esse jovem gostaria de propor sua visão de um mundo compartilhado,
onde ele e seus companheiros poderiam ser amigos íntimos, mas mantém a ideia para si próprio por
medo de que ela seja recebida com cinismo e zombaria irônicos.
Você chegou em casa depois de um evento formal, onde teve que se vestir, cuidar de suas
maneiras e observar o que disse - e afrouxou prontamente a gravata, caiu no sofá e soltou um suspiro
exausto? Você não estava fisicamente cansado, mas cansado do papel que acabara de desempenhar na
criação ritual de um mundo compartilhado com os outros. Nesse momento, você pode amaldiçoar essa
necessidade de "expor" e decidir que prefere pular essas coisas no futuro - ficar em casa de calça de
moletom apenas "sendo você mesmo". E isso parece uma boa ideia por um tempo, até que
inevitavelmente, a vida começa a parecer inexplicavelmente monótona e plana.
nosso prazer esperado será substituído por um sentimento de inquietação e tédio. Da mesma forma,
mesmo se estamos obtendo algo de nossa participação em certos rituais, periodicamente sentimos que
não queremos ser incomodados e preferimos simplesmente pular. Mas então sentimos falta de algo em
nossas vidas e nos reconectamos ao ritual. E no ciclo vai.
Muitas vezes, quando lamentamos o vazio do nosso mundo moderno, e nos perguntamos "isso
é tudo o que existe?" pensamos, conscientemente ou não, que o remédio simplesmente entrará em
nossas vidas. Ou achamos que não há nada que possamos fazer sobre essa apatia, então por que se
preocupar? Mas, como todas as coisas boas, textura e significado - uma vida rica e com várias camadas
- não acontece apenas. Criamos a textura esculpindo bolsos do sagrado no profano, criando estruturas
para estar dentro de diferentes mundos de possibilidades. O ato da criação é sempre trabalho. Nunca
vem fácil ou naturalmente. Se queremos mais da vida, devemos procurá-la em vez de esperar que ela
chegue até nós.