Processo Criativo No Ensino de Piano PDF
Processo Criativo No Ensino de Piano PDF
Processo Criativo No Ensino de Piano PDF
Aprovada em:
BANCA EXAMINADORA
Ao Prof. Dr. Rogério Luiz Moraes Costa, por me mostrar os encantos da livre improvisação.
À Profa Dra Susana Cecília Igayara, pelo exemplo de competência na pesquisa acadêmica.
Ao Prof. Dr. Paulo Castagna, por me despertar para as ideias de grandes pensadores e cientistas.
À diretora da EMIA, Andrea Fraga, e sua equipe – assistente pedagógico, assistente artístico e
coordenadoras –, Cristina Rogatko, Evandro Brito da Silveira, Giselle Ramos, Liseti
Bonamin, Milene Perez, Priscilla Vilas Boas e Sandra Cunha. [em ordem alfabética]
À ex-diretora da EMIA, Márcia Andrade, pelo apoio no início desta dissertação.
A Claudio, Laura e Arthur, pela compreensão de minha ausência familiar, consequência de
tantas horas de estudo.
A Alzira, pela compreensão da ausência nos almoços de domingo.
A minha mãe, a tia Aninha e a meus irmãos, cunhadas e cunhados, pelo apoio familiar
incondicional.
À querida Mércia, por seu carinho e dedicação ao cuidar do cotidiano de minha família e de
minha casa.
A Magda Pucci, pela amizade, pelo apoio e pela observações, tão pertinentes, na leitura desta
dissertação.
Às companheiras de encantamentos e questionamentos acadêmicos: Ana Cristina Rossetto
Rocha, Claudia Freixedas, Giselle Ramos, Laura Longo, Márcia Lágua, Maristela
Loureiro, Liliana Bertolini e Sandra Cunha.
À EMIA, povoada por tantos amigos e profissionais maravilhosos, que vêm me inspirando ao
longo de 24 anos.
Oh tristeza, me desculpe
Estou de malas prontas
Hoje a poesia veio ao meu encontro
Já raiou o dia, vamos viajar
Vamos indo de carona
Na garupa leve do vento macio
Que vem caminhando
Desde muito longe, lá do fim do mar
Vamos visitar a estrela da manhã raiada
Que pensei perdida pela madrugada
Mas que vai escondida
Querendo brincar
Senta nesta nuvem clara
Minha poesia, anda, se prepara
Traz uma cantiga
Vamos espalhando música no ar...
Da longa experiência em sala de aula fazendo música com crianças, surgiu a questão: por que
o espaço para a criação não faz parte da maioria dos métodos e das práticas dos professores de
piano? Esse questionamento levou a outros sobre como ensinar piano criativamente e como
guiar a construção do pensamento musical das crianças. Sem rejeitar os aspectos técnicos, a
notação tradicional e a prática de música erudita na formação pianística, a busca por novas
possibilidades de ensino vinha da consideração de que não se deveria restringi-lo a um
repertório limitado, a um só tipo de notação e à interpretação como única forma de expressão
musical. O constante desafio oferecido por alunos curiosos, indagadores, vibrantes e musicais
também me impulsionou a olhar mais atentamente para suas produções musicais e a ouvir
suas ideias sobre seu fazer musical. A partir dessas considerações, esta dissertação propõe
uma reflexão pedagógico-musical disparada por relatos de experiência com meus alunos de
piano da Escola Municipal de Iniciação Artística (EMIA). Apresento quatro composições,
uma livre improvisação e duas entrevistas livres. Uma breve história do ensino de piano no
Brasil e uma revisão concisa de métodos adotados na pedagogia pianística brasileira
fundamentam historicamente esta pesquisa. Também analiso alguns que apresentam propostas
de criação. Como referencial teórico, exponho as ideias de Hans-Joachim Koellreutter (1915-
2005) e de Violeta Hemsy de Gainza (1930-) sobre um fazer musical criativo e a necessária
transformação da relação professor-aluno para que se desenvolva uma educação musical mais
aberta. Discorro também sobre as ideias da pianista Moema Craveiro Campos e das
educadoras musicais Maria Teresa Alencar de Brito e Viviane Beineke, profundamente
ligadas ao pensamento de Koellreutter e Gainza. Contribuem, ainda, com esse corpus,
conceitos sobre criatividade defendidos por pesquisadores ingleses das últimas décadas –
Pamela Burnard, Anna Craft, Teresa Cremin e Bob Jeffrey –, como aprendizagem criativa,
possibility thinking e voz do aluno. As reflexões aqui apresentadas visam contribuir com a
educação musical através do piano, para que seja agenciadora de encontros criativos entre
crianças e músicas.
After many years teaching music to children a concern appeared: why is there no room for
creativity in the majority of the methods and practices of piano teachers? This question
brought up others such as how to teach piano in a creative matter and how to guide children
towards thinking in a musical mind set. Without ignoring the technical aspects, traditional
notation and classical music training, the search for new possible teaching methods must not
restrict the ability to establish full repertoire, the capacity to utilize multiple notation methods
and the understanding that interpretation is not the only form of musical expression. The
constant challenge offered by students who were curious, musical and vibrant spurred me to
look more closely at their musical production and to listen to their ideas about making music.
With these considerations in mind, this dissertation offers a reflection that is both musical and
pedagogical based on my experiences with piano students from Escola Municipal de Iniciação
Artística (EMIA). This research is supported by a concise review of methods used historically
in the piano pedagogy of Brazil. I present four compositions, a free improvisation and two
free interviews. My sciencitific resources are based on Hans-Joachim Koellreutter (1915-
2005) and Violeta Hemsy de Gainza’s (1930-) ideas about making creative music and the
necessity of a bond between teacher and student in order to develop a more open musical
education. Moreover, I discuss the ideas of pianist Moema Craveiro Campos and the musical
educators Maria Teresa Alencar de Brito and Viviane Beineke, while also showing interest in
Koellereutter and Gainza’s concepts. Contributing further to this corpus are the concepts of
creativity (creative learning, possibility thinking and student voice) presented by English
researchers of the last decades such as Pamela Burnard, Anna Craft, Teresa Cremin and Bob
Jeffrey. The ideas presented here are intended to contribute to musical education through the
use of the piano. In turn, this education will facilitate creative encounters between music and
children.
Introdução 10
CAPÍTULO 1
O ensino de piano ......................................................................................... 17
CAPÍTULO 2
Criatividade ................................................................................................... 75
CAPÍTULO 3
Reflexões pedagógico-musicais sobre as composições e depoimentos das
crianças ......................................................................................................... 107
3.1 O contexto: a EMIA ................................................................................ 109
3.2 “Música sem título” ................................................................................ 112
3.3 “Mistério” ............................................................................................... 135
3.4 “O gigante” e “Ideia musical” ................................................................ 147
Considerações finais ..................................................................................... 172
Referências .................................................................................................... 177
Anexo A – Carta à direção da EMIA ............................................................ 187
Anexo B – Comunicado e pedido de autorização aos pais ........................... 188
Anexo C – Autorização ................................................................................. 189
10
INTRODUÇÃO
Logo nos primeiros anos de minha atuação profissional, comecei a questionar a forma
tradicional de ensinar música, na qual eu mesma tinha sido iniciada, e me vi desafiada frente
aos meus alunos – crianças curiosas, vibrantes, questionadoras e musicais. Quando, além de
professora de piano em aulas individuais, me tornei professora de música em escolas de
educação infantil e do ensino fundamental, as dúvidas foram aumentando e tomando
contornos cada vez mais definidos.
prática de música erudita na formação pianística, mas da consideração de que não se deveria
restringir a abordagem de educação pianística a um tipo de repertório, um tipo de notação e à
interpretação como única forma de expressão musical.
A partir de erros e acertos das novas propostas que
experimentava nas aulas de piano,
surgiram novas perguntas que me levaram à pesquisa e à reflexão. Quais princípios devem
orientar a prática pedagógico-musical do professor para favorecer os processos criativos? Que
materiais podem fundamentar teórica e metodologicamente essa prática? O protagonismo do
aluno é condição fundamental para um aprendizado criativo e significativo? É possível
identificar caminhos de construção de um pensamento musical por meio das composições das
crianças? Que pistas as composições das crianças nos fornecem sobre seu aprendizado dos
conceitos musicais?
2
Teca-Oficina de Música é uma escola de música privada de São Paulo, que, há mais de 30 anos, atende
crianças a partir dos 3 anos, assim como jovens e adultos.
3
A EMIA (Escola Municipal de Iniciação Artística) foi fundada em 1980 e pertence ao Departamento de
Expansão Cultural da Secretaria Municipal de Cultura da cidade de São Paulo.
4
Pianolatria é o termo usado por Mário de Andrade para criticar fato de que toda moça da elite estudava piano
por questão de status. Foi também o título de um artigo que o autor publicou na revista Klaxon: mensário de
Arte Moderna (ANDRADE, 1922, p. 8).
12
Para a última parte do capítulo 1, selecionei 11 livros para piano que tinham aspectos
criativos em suas propostas. A partir de um verbete biográfico do autor e uma síntese dos
eixos pedagógicos norteadores do método, aponto materiais que, ao longo dos séculos XX e
XXI, confirmam a possibilidade de se inserir o espaço da criação no ensino de piano. Os
autores selecionados são: Robert Pace, Ernest Widmer, György Kurtág, Violeta Hemsy de
Gainza, Marisa Fonterrada e Maria Lúcia Pascoal, Harald Bojé, Maria de Lourdes Junqueira
Gonçalves e Cacilda Borges Barbosa, Fernanda Fontoura, Ana Consuelo Ramos e Gislene
Marino, Laura Longo, María José Zabala e Mirian Tuñez.
O cerne do capítulo 3 é a própria razão deste trabalho, pois foram as músicas das
crianças que me levaram a refletir sobre o que elas poderiam revelar e de que forma o espaço
da criação poderia ser cada vez mais estimulado no ensino pianístico. Assim, nesse capítulo,
descrevo e examino musical e pedagogicamente quatro composições, uma improvisação e
duas entrevistas livres nas quais os alunos discorrem sobre seu processo criativo. Em cada um
13
Começo com “Música sem título”, composta por Beatriz.5 Descrevo algumas
atividades de pesquisa das possibilidades sonoras do piano feitas com a aluna e dou
referências teóricas que fundamentam essa prática. Em seguida, contextualizo uma
improvisação livre a quatro mãos e analiso sua construção musical para entender como se
operou o pensamento musical de Beatriz. Por último, a própria música dispara reflexões
pedagógico-musicais sobre a composição, apoiadas em falas de Beatriz gravadas em vídeo
durante o processo criativo.
5
Os nomes das crianças aqui apresentados são fictícios. No Anexo A, está a carta Carta à direção da EMIA; no
Anexo B, o Comunicado e pedido de autorização aos pais; no Anexo C, a Autorização dos pais.
14
Considerações metodológicas
Considero que ouvir ou assistir a própria performance permite ao aluno ter maior
consciência sobre aspectos musicais e extramusicais, por isso, há alguns anos, mantenho o
hábito de gravar em vídeo e áudio alguns momentos da aula, usando-os como recurso de
reflexão com as crianças. Gainza (2002, p. 52-53) enfatiza a importância da participação do
aluno, estimulando-o a verbalizar o surgimento das ideias, o que sentiu, o que ainda precisa
entender etc. Ela também indica ao professor duas tarefas que considera essenciais e
complementares: “de um lado, proporcionar experiência por meio da apresentação de novos
materiais sonoros, e, do outro, propiciar a consciência de materiais, estruturas e processos
musicais internalizados de maneira empírica ou espontânea”6 ( GAINZA, 2002, p. 52 e 53,
tradução nossa, grifos do original). Pode-se encontrar em Burnard (2000, p. 21, tradução
nossa) uma ênfase na reflexão participativa do aluno sobre seu próprio processo: “precisamos
encorajar e ajudar as crianças a pensar crítica e criativamente [...]. As crianças devem ser
encorajadas a discutir o que é intrínseco a sua própria experiência musical”.7
6
“[...] por una parte, dar experiencia mediante la presentación de nuevos materiales sonoros, y por otra, dar
conciencia de los materiales, estructuras y processos musicales internalizados de manera empírica o espontánea”
(GAINZA, 2002, p. 52 e 53).
7
“[…] we must encourage and assist the children to think critically and creatively [...]. Children should be
encouraged to: (i) discuss what it is that is intrinsic to their own musical experience” (BURNARD, 2000, p. 21).
15
A escolha metodológica
CAPÍTULO 1
Ao longo dos 30 anos de minha prática em aulas de piano, sempre fiz pesquisa
informal de métodos, livros didáticos, estudos e peças musicais, mesmo que com uma
sistematização não acadêmica. Apesar de a extensa revisão bibliográfica dos métodos
adotados no decorrer da história do ensino de piano no Brasil não ser o objeto de pesquisa
desta dissertação, considero relevante dar uma visão geral, para contextualizar o maior ou
menor espaço da criação no ensino do piano – esta, sim, o foco da pesquisa. Assim, apresento
um breve painel da história do ensino de piano no Brasil a partir do século XIX, discorro
sobre o pensamento musical que orientou a maioria dos métodos de iniciação e destaco alguns
livros e métodos diferenciados por uma abordagem mais criativa, apontando seus princípios
básicos e a forma de sua organização.
Com a vinda da Família Real, houve uma significativa mudança na vida musical e
artística brasileira. Amante da música, D. João VI reorganizou a Capela Real trazendo muitos
artistas e músicos e fomentando atividades musicais tanto religiosas como profanas (MARIZ,
2000, p. 51), e teve início um período de uma vida musical agitada: efervescente durante a
estada de D. João VI, um certo declínio no Primeiro Império – em consequência de grandes
18
[...] Dizer musica, em Sâo Paulo, quási significa dizer piano. Qualquer
audição de alunos de piano enche salões.. Qualquer pianista estrangeiro tem
aqui acolhida incondicional... [...] Mas qual! ha uma fada perniciosa na
cidade que a cada infante dá como primeiro presente um piano e como único
destino tocar valsas de Chopín!... (ANDRADE, 1922, p. 8).
Pierre Guigon (1803-1862) e Antonio Tornaghi (século XIX) (SCHLOCHAUER, 1992, p.74-
75). Amato (2008, p. 169) também destaca a importância da chegada, na segunda metade do
século, de dois músicos estrangeiros: Arthur Napoleão (1843-1925), pianista português que,
com Leopoldo Miguez (1850-1902), fundou no Rio de Janeiro a conhecida editora e casa de
pianos e partituras Casa Artur Napoleão, e Luigi Chiafarelli (1856-1923), considerado o
primeiro a estruturar uma educação pianística em São Paulo, contribuindo para o
reconhecimento da cidade como destacado centro musical do país.
Exceto por poucas adaptações, a referência direta do Plano Padrão era o programa do
Instituto Nacional de Música do Rio de Janeiro (de 1890), que, por sua vez, pouco diferia do
currículo adotado na sua inauguração (de 1848), como Conservatório Imperial, com
orientação pedagógica pautada no Conservatório de Paris. Assim, pedagogicamente, pouca
coisa havia mudado desde 1795, data da criação do então Conservatoire National de Musique
(AMATO, 2006).
Sobre o ensino de piano no Brasil, Ana Lúcia Gaborim Moreira, pianista e educadora
musical, afirma que, pelo menos até a década de 1930, os métodos adotados eram os
europeus, que tinham como principal conteúdo peças organizadas em certa graduação de
dificuldade, leitura musical em duas claves de sol em oitavas, melodias majoritariamente na
tonalidade de Dó Maior e, por consequência, o uso apenas das teclas brancas em quase todo o
livro (MOREIRA, 2005, p. 68). Com pequenas diferenças, os principais métodos aplicados
eram os dos seguintes autores: A. Schmoll, Francisco Russo e Margareth Steward, cujo
método apresentou algumas inovações, mas era ainda pautado totalmente na leitura e na
progressão técnica. Essa orientação pedagógica permaneceu basicamente a mesma durante
todo o século XX, apresentando pequenas mudanças, porém não estruturais, na maioria dos
contextos de ensino de piano.
Apesar de essas abordagens não terem alcançado uma dimensão mais ampla, como
esclarece Fonterrada (2005), é possível verificar algumas influências desse novo olhar para a
educação musical no cenário brasileiro. No que tange à pedagogia pianística, é importante
mencionar a atuação do pianista e professor Antônio de Sá Pereira (1888-1966). Influenciado
pelas ideias do psicólogo suíço Édouard Claparède e do filósofo e pedagogo estadunidense
John Dewey, assim como pelos educadores musicais dos métodos ativos, Sá Pereira deixou
inúmeras contribuições, a começar pela criação do “Curso de Pedagogia Musical,
especialmente de Piano” no Instituto Nacional de Música, no Rio de Janeiro. Ele também foi
o primeiro a difundir as ideias da escola moderna de piano – cujos principais representantes
eram Cortot (1877-1962), Marmontel (1816-1898) e Leimer (1858-1944) –, publicando O
ensino moderno de piano: aprendizagem racionalizada, em 1933. É interessante notar que as
ideias de Sá Pereira já eram diferenciadas do ensino tradicional, apontando uma nova
abordagem para o ensino de piano.
Ainda nos anos 1960, chegavam ao Brasil métodos estadunidenses para piano, muitos
deles bastante utilizados até hoje. Os autores eram: John Thompson, Michael Aaron e Leila
Fletcher. É importante citar que esses livros foram importados cerca de 30 anos depois de sua
publicação original, no final da década de 1930, nos Estados Unidos, o que explica a distância
entre seus princípios metodológicos e a nova concepção pedagógica que vinha movimentando
a educação musical da época. Apesar disso, a abordagem desses autores era bastante distinta
da dos primeiros métodos adotados no Brasil, apresentando como principais diferenças a
leitura nas duas claves desde o início, o movimento contrário a partir do dó central e um
repertório composto por diversas canções folclóricas. Apesar de ser inovador introduzir o
folclore na iniciação ao piano, as melodias, por serem estadunidenses, não eram conhecidas
pelas crianças brasileiras e não alcançavam o impacto pretendido pelos autores.
próxima da música popular. Dessas publicações, destaco: Time to Begin (1955), da coletânea
Music Tree de Frances Clark, Louise Goss e Sam Holland, e a série Music for Piano (1960),
de Robert Pace. Alguns dos livros do método Pace foram traduzidos para o português e
publicados pela primeira vez no Brasil em 1973.
Entre os anos 1960 e 1990, podem-se destacar algumas publicações brasileiras com
abordagens mais alinhadas às mudanças do cenário pedagógico-musical da época, incluindo:
propostas de improvisações, melodias atonais e modais, notação contemporânea, mudanças de
compasso, transposição e outras possibilidades de musicalização no piano. Cada uma delas
enfatizou um ou mais desses aspectos. Algumas delas são: Ludus Brasiliensis (1966), do
compositor Ernst Widmer, Sons da infância (1979), de Marisa Fonterrada e Maria Lúcia
Pascoal, Iniciação ao piano (1985), de Carmem Maria Mettig Rocha, e Nossos dez dedinhos
(1994), de Elvira Drummond (MOREIRA, 2005, p. 72-78). Infelizmente, esses livros não
foram difundidos como os estadunidenses, até hoje muito utilizados apesar de não garantirem
espaço para a criação.
Nas décadas citadas, os métodos mais adotados no país não se aproximavam de livros
didáticos, pesquisas e propostas – já bem estruturadas – de outros países da América Latina.
Podem-se citar alguns materiais para piano com essa nova abordagem, publicados
entre a década de 1990 e os dias atuais: Educação musical através do teclado (1989), de
Maria de Lourdes Junqueira Gonçalves e Cacilda Borges Barbosa, Atenção! Crianças
compondo (1993), de Fernanda Fontoura, Piano 1 (2001) e Piano 2 – Arranjos e atividades
(2009), de Ana Consuelo Ramos e Gislene Marino, Divertimentos (2003), de Laura Longo.
Verbete biográfico: Robert Pace foi pianista concertista, educador e autor de livros
para piano traduzidos para várias línguas e, ainda hoje, distribuídos em muitos países. Criou o
método Pace de ensino de piano, que conta com um centro de formação de professores.
Robert Pace teve uma atuação ativa na educação musical estadunidense, estando à
frente de diversos projetos e ocupando cargos importantes como a cadeira de piano na Music
Educators National Conference, de 1953 a 1956. Em 1963, criou e dirigiu a National Piano
Foundation até 1977, quando se tornou diretor-executivo da International Piano Teaching
Foundation. Desde então até seu falecimento, participou de consultorias, seminários e
congressos em vários países.
Pace começou a desenvolver as ideias que fundamentaram seu método logo que se
formou na Julliard e começou a lecionar, e “embora cada professor imprima sua interpretação
pessoal ao método, os principais pontos do Método Pace devem estar representados”
(LOVINSON, 2014, tradução nossa), são eles:
1. Ensinar conceitos musicais. O autor define que conceitos são ideias amplas
que podem ser aplicadas a cada nova situação, expandindo-se e aprofundando-
-se de acordo com o desenvolvimento do aluno. Um dos exemplos citados é o
conceito de melodia, apresentado da seguinte forma: “a música pode ‘subir’ ou
‘descer’, ou ficar no mesmo lugar” (LOVINSON, 2014).
A partir dos princípios citados anteriormente, Pace criou uma série de 5 livros para
piano, com progressão de dificuldade. Cada um dos livros tem 4 volumes; Music for Piano –
Building 1. A série foi publicada em 1960, nos Estados Unidos, porém sua primeira
apresentadas em notação não convencional. Pace desenha um teclado e indica o número dos
dedos sobre as teclas desenhadas. Ao lado do teclado, ele também escreve o número dos
9
Nesta dissertação, usamos o livro traduzido: Pace, R. Música para piano. Livro 1. São Paulo: Ricordi, 1973.
29
No livro Creative Music, Pace propõe que o aluno crie variações sobre um tema, uma
frase como “resposta” a uma “pergunta” e improvisações sobre cadências harmônicas básicas.
tinha uma conexão com música”10 (WIDMER [...], tradução nossa). Começou a estudar piano,
teoria e harmonia com Otto Kuhn e, já nessa época, ensaiou suas primeiras composições.
Mais tarde, na graduação, estudou com importantes músicos suíços da época como Paul
Müller (regência), Ernst Hörler (canto) e Rudolf Wittelsbach (análise). Foi fortemente
influenciado pela pedagogia de Willy Burkhard, com quem estudou contraponto e
composição, e por Walter Frey, professor de piano que lhe apresentou a música moderna do
século XX. Diplomou-se em 1950 e, por seis anos, foi regente de coro da igreja de Aarau,
professor e regente coral na faculdade e professor particular de piano (WIDMER [...]).
Apesar de compor desde adolescente, Fünf Lieder im alten Stil, composta em 1949, é
considerada Opus 1. Desde então, compôs obras para coro, conjuntos instrumentais e
instrumentos solo, lied e música para a rádio DRS. Leonardo Loureiro Winter, músico e
pesquisador, divide a carreira composicional de Widmer em duas fases: “[...] um período
suíço, correspondendo aos anos de formação musical e primeiras composições (de 1927 a
1955), e um período brasileiro, correspondendo à maturidade composicional e maior número
de obras compostas (de 1956 a 1989)” (WINTER, 2005, p. 136, nota 1).
Ernest Widmer se casou com a cantora brasileira Sonja Born. Após férias no Brasil,
em 1956, foi convidado por Hans-Joachim Koellreutter (1915-2005) – reconhecido
compositor, ensaísta, educador alemão naturalizado brasileiro e criador do movimento Música
Viva – para participar dos Seminários Livres de Música da Universidade Federal da Bahia.
Desde então, estabeleceu-se em Salvador, onde passou grande parte de sua vida profissional.
Como compositor, produziu mais de 170 obras entre óperas, balés, oratórios, música para
orquestra, concertos, música para peças teatrais, trilhas para filmes e outros gêneros.
10
“At the age of fourteen I realised that I belonged to music” (WIDMER).
32
Ludus Brasiliensis
Ludus Brasiliensis – 5 cadernos de peças progressivas para piano solo foi publicado
em 1966. Nas primeiras páginas de cada caderno, Widmer (1966, p. 3) afirma que os cinco
livros pretendem contribuir para uma iniciação ao piano, com os objetivos de:
• 13 peças para leitura à primeira vista, distribuídas pelos cinco livros. O autor
recomenda a leitura na presença do professor e propõe algumas etapas a serem
seguidas: observar a peça antes de tocar e identificar problemas de dedilhado, ritmo
e outros aspectos; ler as frases sempre adiante; tocar devagar etc.
34
• Peças de outros gêneros como scherzo, rondó, cânone, variações, noturno e gigue.
Algumas têm numeração e estão distribuídas entre os livros; por exemplo: scherzo
(I, II e III), noturno (I e II), dança (I e II). Há outras que não constituem gêneros,
como contraponto (I e II) e mão única (I, II e III).
• Peças para tocar em conjunto. Há peças com 3 pautas e a 4 mãos. O autor indica
que o objetivo dessas peças é “acostumar o estudante a ler partituras e tocar em
conjunto” (WIDMER, 1966, p.3).
Após a análise dos cinco livros de Ernest Widmer, é notável a importância que o autor
deu ao espaço da criação e à familiarização com a linguagem da música contemporânea.
Diante disso, surge uma pergunta que, para ser respondida, exigiria uma pesquisa mais
aprofundada que não é foco dessa dissertação: por que um método brasileiro inovador e de
boa qualidade é tão pouco conhecido e adotado pelos professores de piano?
35
Kurtág se graduou na Academia Liszt, em Budapeste, onde, mais tarde, lecionou piano
e música de câmara, de 1967 a 1993. Os húngaros Béla Bartók e Kodály foram suas primeiras
influências, embora mais tarde tenha sido reconhecido como herdeiro do expressionismo de
Webern, por empregar em suas composições uma técnica serial e ter preferência por
miniaturas (CUMMINGS, 1995, p. 349).
11
“[...] parce que c’était três ennuyeux de devoir penser aux doigtés, aux rythmes et de resteur toujours dans le
même registre” (KURTÁG apud ALBÈRA et al., 1995).
12
ALBÈRA, Philippe et al. György Kurtág: entretiens, textes, écrits sur son oeuvre. Genève: Éditions
Contrechamps, 1995, p. 22.
13
KURTÁG apud ALBÈRA, Philippe et al. Op. cit., p. 21: “[...] voyage autobiographique ou le voyage
biographique de chacun de nous” [nota do original].
14
KURTÁG apud VARGA, Bálint András (ed.). Gyorgy Kurtág: Three interviews and Ligeti homeages.
Rochester: University of Rochester Press, 2009, p. 91: “[...] his son Lukas spent years writing encyclopedia of
his invented planet, with examples of scientific history, literature, fine arts and music” [nota do original].
36
Outra importante influência sobre sua carreira composicional foi seu contato com a
música eletrônica alemã do Estúdio WDR, em Colônia.
Játékok
Játékok é uma coleção de 8 livros para piano, pouco conhecida no Brasil. Sua
abordagem é bastante diferenciada, apresentando peças que vão desde um nível elementar até
um muito avançado em termos de interpretação pianística.
37
Nesse mesmo prefácio, Kurtág expõe os princípios norteadores de toda a série (“O
piano como brinquedo”, “A alegria do movimento” e a “Possibilidade de experimentar”),
reveladores de seu diferencial: essa concepção, em que experimentação, ludicidade, relação
corporal com o fazer musical e aproximação da música contemporânea compõem a
fundamentação dos livros.
pelas dimensões sensorial e afetiva, sendo essa conexão entre aprendizagem e ludicidade o
que “rompe com o sistema de ensino tradicional que parte da leitura da partitura e da técnica
digital como únicos desencadeantes do universo pianístico e musical” (CABEZAS, 2012, p.
2).
A mesma pianista aprofunda as possibilidades de exploração propostas no Játékok:
As peças do Játékok são projetadas com o intuito de ser a base para uma
experimentação em diversas vertentes: a exploração gestual do corpo, a
exploração topográfica do teclado, a exploração musical de sonoridades
distintas (clusters, glissandos...) e a exploração de novas formas de notação
musical são alguns dos exemplos. Esta diversidade de “possibilidades de
experimentação” deriva principalmente da notação não determinada criada
por Kurtág especificamente para o Játékok. Justamente essa indeterminação
oferece ao aluno a oportunidade de “completar” a peça, isto é, de determinar
ele mesmo alturas e durações de notas e pausas. Portanto, os parâmetros não
detalhados conformam um estímulo para a cocriação junto com o aluno, ou
seja, um impulso para sua criatividade musical (CABEZAS, 2012, p. 5).
É importante ressaltar alguns dos conteúdos musicais e técnicos que apontam essa
concepção diferenciada das peças de Kurtág: linguagem pianística contemporânea; notação
musical não tradicional; imprecisão métrica, valorização do gesto como movimento produtor
expressivo de sonoridades; material musical reduzido com potencialidade expressiva; uso de
registros sonoros mais do que contornos melódicos; exploração de timbres diversos, assim
como aumento da gama de intensidade e de articulações, entre outros. Cabezas ([s.d.], p. 6)
cita ainda o caráter performático, presente em “algumas peças que propõem exercícios de
encenação”, procurando “capturar a expressividade da própria teatralização de determinados
estados anímicos ou ações [...] para depois conferi-los na execução musical”.
39
Gainza nasceu em Tucumán, na Argentina, em 1930, e, por volta dos treze anos,
começou a dar aulas de música para crianças (GAINZA, 2007, p. 117). Concluiu três cursos
universitários de diferentes áreas: Música e Química, na Universidad Nacional de Tucumán, e
Psicologia Social, na Primeira Escuela Privada de Psicología Social Enrique Pichon Rivière.
Especializou-se em pedagogia musical na Teachers College Columbia University, nos
Estados Unidos (BIOGRAFÍA [...], 2008). Ao se descrever como uma jovem tímida, com
dificuldades de comunicação e expressão, afirma que foi superando as limitações e
aprendendo a se expressar por meio do ensino e com as próprias crianças (GAINZA, 2007, p.
117). Seu marido Enrique Gainza influenciou muito sua ideia de responsabilidade social, e
seus sobrinhos, também seus alunos, foram o estímulo inicial para sua conscientização da
importância da criação no ensino musical.
40
O corpo de suas ideias é bastante amplo, mas alguns conceitos fundamentais de seu
pensamento pedagógico-musical têm especial interesse para essa pesquisa: o modelo artístico
de educação musical, a prática reflexiva e a pedagogia aberta. O desenvolvimento da
criatividade pela participação ativa do aluno é a ênfase do modelo artístico de educação
musical, sendo a improvisação o principal recurso pedagógico. A prática reflexiva consiste
em “[...] ‘fazer’ de maneira consciente. O que se procura integrar na nova práxis é recuperar
os distintos tipos de consciência de que falava Edgar Willems. A nova práxis integra todos os
aspectos do fazer musical”15 (GAINZA, 2013, p. 212, tradução nossa). Em uma publicação do
FLADEM, Alejandro Simonovich, músico e educador musical argentino, apresenta o conceito
de pedagogia aberta:
Violeta de Gainza não criou um método para o ensino de música, mas sempre
acompanhou novas tendências, advogando por uma educação musical criativa e reflexiva, que
busque a identidade cultural e musical dos países latino-americanos. Publicou vários livros
voltados ao ensino de piano, entre eles os três volumes de Método para piano, dos quais
descrevo o primeiro.
15
“[...] ‘hacer’ de una manera conciente. Lo que se procura integrar en la nueva praxis es recuperar los distintos
tipos de conciencia de los que hablaba Edgar Willems. La nueva praxis integra todos los aspectos del hacer
musical” (GAINZA, 2013, p. 212).
16
“Apertura es no atarse a modelos, pero sin desdeñar modelos [...] es aceptar otros modos de organizar la
enseñanza. Pero no sólo no pedagógico. La real apertura es mental, es la aceptación, comprensión y
aprovechamiento de la diversidad estética, filosófica, pedagógica, ideológica y musical. Es también buena
predisposición, tomar y utilizar experiencias y atender a los emergentes. [...] En definitiva, apertura pedagógica
es una posición humanista en educación” (SIMONOVICH, 2009, p.19).
41
Método para piano foi publicado em Buenos Aires pela editora Barry. É composto de
No prefácio do livro I, Gainza ([s.d.], p. III) diz que o método é resultado de sua
prática como professora de piano para crianças a partir dos 7 anos e como formadora de
professores de piano por mais de vinte anos, e apresenta sua forma de trabalho:
criança para, a partir disso, introduzi-la às obras que compõem o repertório tradicional de
escrita com gráfico no perfil melódico, com indicação dos números dos dedos. As propostas
cada peça, que, segundo Gainza ([s.d], p. V, tradução nossa), “[...] constitui-se uma unidade
No Guia Didático apresentado nas primeiras páginas do livro, Gainza sugere formas
de trabalhar cada peça a partir da partitura, observando título, autor, aspecto melódico,
18
“Cada trozo o canción constituye una unidad significativa en la que se encuentran naturalmente fundidos los
distintos aspectos de la música (ritmo, melodía, armonía, forma) y de la ejecución instrumental” (GAINZA, s/d,
p. V).
43
19
“Cada nuevo tema presentado al alumno puede convertirseautomáticamente en un tema de improvisación o
exploración personal, actividad capaz de conducir a la creación de una breve composición musical” (GAINZA,
s/d, p. VII).
44
Paulo, e teve como professores Roberto Schnorrenberg, Osvaldo Lacerda, Cyro Brisolla,
Damiano Cozzella e Diogo Pacheco (informação pessoal).20
[...] mudou muito a minha maneira de trabalhar, porque [...] embora seja um
músico contemporâneo e trabalhe com todas as técnicas de música
contemporânea, Murray Schafer tem um lado a mais, que é a posição de
educador. Tem um outro lado ainda que é compreender a música como uma
faceta do desenvolvimento humano (FONTERRADA, 2014a).
Responsável pela tradução dos livros de Schafer para o português e por introduzi-lo na
educação musical brasileira, entre 1990 e 2011, trouxe diversas vezes o compositor para o
Brasil para ministrar workshops e conferências. Atualmente, Marisa Fonterrada reside em
Carapicuíba (SP) e atua ativamente nas áreas de educação musical, música, canto coral,
ecologia acústica e na área de artes no ensino fundamental, médio e superior
(FONTERRADA, 2014b). Ainda no final da década de 1970, escreveu com Maria Lúcia
Pascoal Sons da infância, um método para piano analisado nesta pesquisa.
20
FONTERRADA, M. T. O. Informações biográficas e Sons da Infância. Mensagem recebida por
[email protected] em 3 fev. 2014.
46
Maria Lúcia Pascoal nasceu em São Paulo e começou a estudar piano com Dinorá de
Carvalho. Realizou concertos, recitais e completou os estudos no Curso Superior de Piano na
Faculdade Paulista de Arte, na classe de Nair Medeiros, onde graduou-se em Piano, em 1958.
Na década de 1960, foi aprovada para o Curso de Formação de Professores de Música, da
Secretaria de Estado da Cultura de São Paulo, e foi aluna de importantes nomes do cenário
musical da época como Cyro Brisolla, Damiano Cozzella, Diogo Pacheco, Osvaldo Lacerda e
Roberto Schnorrenberg.
Ao lado das diversas atividades acadêmicas, Maria Lúcia Pascoal também foi
tecladista da Orquestra Municipal de Campinas e criou o curso de Teoria Musical da Escola
Magda Tagliaferro, onde foi professora por dez anos. Segundo a própria biografada, “tem
experiência na área de Música com ênfase em Análise Musical, principalmente nos seguintes
temas: análise musical, música brasileira, técnicas de composição na música do século XX e
música brasileira no século XX” (PASCOAL, 2014).
Além de Sons da Infância, publicou Estrutura tonal: harmonia (livro eletrônico, Cia.
Editora Paulista), artigos nas principais revistas brasileiras e nas coletâneas Teoria, Crítica e
Música na Atualidade (2012, org. M. Alice Volpe) e Mémoires...Miroirs - Conferências do
Simpósio Internacional Jorge Peixinho (Lisboa, 2012, org. Paulo de Assis), e, com Marisa
21
PASCOAL, M. L. Informações biográficas e Sons da Infância. Mensagem recebida por
[email protected] em 10 fev. 2014.
47
Sons da infância
Sons da infância foi publicado em 1979, numa época em que os métodos tradicionais
de ensino de piano ainda dominavam a educação musical no Brasil. Desde o começo, as
autoras revelam a intenção de trabalhar a música mais amplamente, indo além da técnica, da
aquisição de repertório e do aprendizado da escrita tradicional, os três conteúdos centrais no
ensino do instrumento na época. Apesar de modesto, há um incentivo à criação, o que
demonstra ligação com as tendências da educação musical da década de 1960. Fonterrada e
Pascoal (1979, p. 0) fazem algumas recomendações:
22
PASCOAL, M. L. Informações biográficas e Sons da Infância. Mensagem recebida por
[email protected] em 10 fev. 2014.
48
• melodias para treinar a leitura.
50
Sons da infância trouxe inovações para o ensino de piano da época, mesmo que
pareçam tímidas ao olhar atual. Havia ainda grande preocupação com a escrita tradicional,
sem muita aproximação de uma linguagem mais contemporânea. No entanto, o uso de mãos e
pés e da madeira do piano, as melodias nas teclas pretas, as improvisações e mesmo a relação
que se faz dos parâmetros sonoros com o entorno revelam uma concepção diferenciada do
ensino de piano nas décadas de 1970 e 1980 no Brasil, evidenciando uma abordagem mais
criativa.
Verbete biográfico: Harald Bojé foi um pianista alemão, muito conhecido como
improvisador e performer de Neue Musik, tocando Electronium Pi23 e sintetizadores, além do
piano. Bojé nasceu em 1934, na cidade de Göttingen, e morreu em 1999, em Wuppertal, na
Alemanha. Iniciou seus estudos musicais e pianísticos na Academia de Música de Stuttgart e,
a partir de 1971, prosseguiu os estudos na Academia de Música de Wuppertal – cidade
independente da região da Renânia (Rheinland), na Alemanha – onde, mais tarde, tornou-se
professor de piano. Também lecionou no Departamento de Música da Universidade de
Colônia, a Hochschule für Musik Köln.
23
O Electronium Pi era um teclado eletrônico com controles muito usado por compositores alemães na década
de 1950.
51
Harald Bojé publicou um livro de piano para iniciantes, Klavierschule für Anfänger,
objeto deste estudo, e um para estudantes mais avançados, Klavierliteratur für
Fortgeschrittene, em que reuniu obras da música clássica do século XX e do jazz.
Klavierschule für Anfänger foi publicado pela Universal Edition, em 1982, em Viena, na
Áustria. É um livro de iniciação ao piano, indicado para aulas individuais e em grupo, contendo
também algumas peças que podem ser executadas por pequenos conjuntos instrumentais.
Bojé introduz a leitura desde o começo, não com a escrita tradicional, mas com a
notação gráfica. Ele complementa as partituras com o foco de cada música: densidade,
volume, localização no teclado (regiões grave, média e aguda), pulso, andamento etc. O
objetivo dessa escrita mais aberta é estimular a imaginação e a criatividade dos alunos,
possibilitando-lhes tocar não apenas o que está escrito na partitura (BOJÉ, 1982, p. 3). Logo
após a exploração sonora, Bojé apresenta partituras que indicam as regiões aguda, média e
grave e a densidade a partir de símbolos que apontam: um tom, um silêncio ou um cluster, e
mesmo outros para que a música seja tocada nas cordas, com objetos como escovas, baquetas,
pedaços de plástico etc. Em duas das partituras, há a interessante indicação para se tocar por
mais de uma pessoa, mas uma delas deve virar o livro e tocar a partitura invertida. Outras
sugerem o caráter da peça: “suas mãos se movem nas teclas como um gato, como um elefante,
como uma pulga etc.” 25 (BOJÉ, 1982, p. 10, tradução nossa).
24
“Spiele mit dem Instrument auf den Tassen: finger, handfläche, handkante, ellbogen, unterarm, vier Hände
[...]. Im Innern: zupfen, klopfen, reiben, hineinsingen, Trompete hinein-spielen [...]” (BOJÉ, 1982, p. 8).
25
“Deine Hände bewegen sich auf den Tasten: wie eine Katzen, wie ein Elefant, Wie ein Floh [...]” (BOJÉ,
1982, p. 10).
53
Klavierschule für Anfänger tem uma proposta de iniciação ao piano bastante ampla,
com a integração de várias possibilidades de repertório e a valorização das diversas formas de
notação musical. A exploração das inúmeras possibilidades timbrísticas do instrumento e a
criação são estimuladas desde o começo. Com abordagem bem diferente da dos métodos
adotados na década de 1980, e mesmo atualmente, em Klavierschule für Anfänger, Harald
Bojé propõe um caminho mais aberto para a iniciação ao piano.
Nasceu em Ponte Nova, no estado de Minas Gerais, em 1924. Descreve o início de seu
aprendizado pianístico: “Embora seja mineira, comecei a estudar ‘com professora’ em
Manaus, AM. Antes, houve um período em que aprendi ‘por imitação’ com minha irmã mais
velha, que, lastimavelmente, faleceu ainda criança. Então, perdi meu ‘modelo’ e passei a
apelar para o ouvido [...]” (GONÇALVES; BARBOSA, [s.d.d]). Sua reeducação pianística
iniciou-se em 1938, já no Rio de Janeiro, com a professora Maria Theresa Nunes. Mais tarde,
ingressou na Escola Nacional de Música da Universidade do Brasil, onde estudou harmonia
com José Siqueira, pedagogia com Sá Pereira e piano com Dulce Saules, todos renomados
professores da época. Magdalena Tagliaferro, Lúcia Branco e Ilara Gomes Grosso também
fizeram parte de sua formação (GONÇALVES; BARBOSA, [s.d.c]; [s.d.d]).
Iniciou sua carreira artística como pianista popular, tocando valsas e chorinhos em
bailes da noite carioca. Nos anos 1950, foi maestrina da orquestra da rádio Mayrink Veiga.
Como compositora, Barbosa teve sua primeira peça publicada em 1928, a valsa Cruzada azul.
Entre suas principais obras estão Chibraseando, Cota zero, Lamentações onomatopaicas,
Missa em fugas, Segunda missa brasileira, Uirapiranga (DICIONÁRIO [...], [s.d.]).
56
A série tem 4 volumes: Musicalização, Leitura nas teclas brancas, Leitura nas teclas
brancas e pretas e Habilidades funcionais, e cada um conta com o livro do aluno e o manual
do professor.
A autora parte do pressuposto de que a educação musical deve ser oferecida a todos,
sem foco na profissionalização, e que o piano deve ser reconduzido “a sua condição de
instrumento a serviço da Música e não apenas a serviço do virtuose” (GONÇALVES, 1989, p.
v, grifos do original), criticando o ensino tradicional de piano daquela década, voltado à
formação de virtuoses, e que ainda hoje é bastante frequente.
57
O quarto volume desenvolve habilidades funcionais no teclado: tocar por imitação, ler
partituras e cifras, transpor e criar. Conceitos como modo maior e menor, escalas diatônicas
etc. são apresentados ou revisados (GONÇALVES; BARBOSA, [s.d.b]).
Fontoura nasceu em 1955, em São Leopoldo, no Rio Grande do Sul. Estudou com
Arnaldo Estrella e Radamés Gnattali, no Rio de Janeiro, e com a pedagoga argentina Violeta
de Gainza, participando de cursos, seminários, congressos no Brasil e Argentina. Em 1986,
fundou a Oficina de Música, em Porto Alegre (RS), onde lecionou até 1996 (informação
pessoal).
26
Fontoura, F.T. Dados biográficos. Mensagem recebida por [email protected] em 27 mai. 2014.
60
Fontoura (1993, p. 7) resume sua motivação para publicar o livro em uma “urgência
de mudança”, que teria se manifestado na busca por “um caminho diferente para a iniciação
musical através do piano. Um caminho no qual seja fundamental criar. Onde tudo o que se
aprende seja motivo de criação”.
Segundo a autora, quando o aluno cria sobre o que estudou,
o conhecimento é sedimentado, e há unidade entre seu mundo sonoro interno e externo, que
precisam estar equilibrados.
Palitos chineses, de Violeta de Gainza, foi disparador do trabalho com seus alunos,
que, ao estudar músicas criadas por crianças, se sentiram incitados a criar suas próprias
composições. “Os pequenos alunos de Violeta de Gainza tocaram os mistérios, as emoções e
as fantasias das crianças” (FONTOURA, 1993, p. 8).
O livro adota a escrita tradicional, mas as peças até a número 8 têm o desenho do
teclado e um código inventado pelos próprios alunos, facilitando o aprendizado da música por
aqueles que ainda não se apropriaram da escrita musical tradicional. Em algumas peças, há
indicação da escala usada, de um intervalo predominante na maior parte da peça ou mesmo
um baixo ostinato para acompanhamento.
61
Ana Consuelo Ramos nasceu em Manhuaçu, em Minas Gerais. Aos 7 anos de idade,
iniciou seus estudos de música em aulas particulares, em Peruíbe (SP). Estudou piano com
Regina Amaral, Maria Lúcia Coutinho Collen e Maria Lígia Becker, e didática do piano com
Tânia Cançado e Berenice Menegale. Em paralelo, fez cursos com nomes importantes do
cenário da educação musical como Hans-Joachim Koellreutter, Violeta de Gainza e Keith
Swanwick (informação pessoal). Em 1994, graduou-se bacharel em Música na Escola de
Música da Universidade Federal de Minas Gerais (EMUFMG) e, em 2001, especializou-se
em Música Brasileira – Práticas Interpretativas, na Escola de Música da Universidade do
Estado de Minas Gerais (ESMU-UEMG). É mestre em Música pela Escola de Música da
Universidade Federal de Minas Gerais (EMUFMG) e, atualmente, é doutoranda em Educação
pela Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais.
Como professora de piano, interessa-se especialmente por temas como ensino de piano
em grupo, ensino do piano como instrumento complementar e introdução à leitura musical ao
piano (informação pessoal).27
Gislene Marino nasceu em Belo Horizonte (MG). Iniciou seus estudos de piano aos
cinco anos de idade e, mais tarde, estudou com Tânia Cançado, Magdala Costa e Eduardo
Hazan. Fez cursos com nomes importantes do cenário musical como Keith Swanwick, em
educação musical, e Cláudio Dauelsberg, em improvisação na música popular
27
Ramos, A.C. Texto. Mensagem recebida por [email protected] em 6 fev. 2014.
63
contemporânea. Ao lado de seus estudos na área musical, fez cursos de gerência e gestão
pública para apoiar sua atuação em funções administrativas na ESMU-UEMG.
28
Marino, G. Texto. Mensagem recebida por [email protected] em 6 fev. 2014.
64
entre 7 e 10 anos, em aulas particulares ou em grupo. Marino e Ramos (2001, p. xiii) explicam
sua estrutura básica:
Os dois volumes seguem a mesma linha didática, mas têm focos diferentes. O primeiro
concentra-se no contato com o instrumento, deixando de “limitar-se à técnica e repertório,
abrindo espaço para vivências musicais através da exploração do teclado, de improvisações e
canções tocadas por imitação e por audição” (MARINO; RAMOS, 2001, p. xiii). Piano 2 foi
pensado para alunos que já têm algum conhecimento musical e procura “ampliar o material
musical para o ensino de piano em grupo – três alunos no mesmo instrumento –, focalizando a
linguagem tonal, com ênfase nos pentacordes maiores e menores e nas escalas maiores”
(MARINO; RAMOS, 2009, p. xvii).
65
Após a análise dos livros para piano de Ana Consuelo Ramos e Gislene Marino,
identificamos sua preocupação em desenvolver um ensino de piano mais contemporâneo, que
não se limite a peças musicais em dificuldade progressiva e exercícios de técnica, mas que
abra espaço para a criatividade, deixando o aluno explorar sonoramente e se musicalizar
através do piano e que ensine conceitos musicais com a prática de composição, improvisação,
apreciação e execução por leitura, audição e imitação. Faço minhas as palavras do
pesquisador Marcelo Almeida Sampaio (2001, p. 97), que, ao analisar Piano 1 em sua
dissertação de mestrado, considera que o material valoriza o fazer musical e coloca o aluno
como “participante ativo da prática musical e da construção da aula [...] tornando as
experiências musicais interessantes e diversificadas e o ensino-aprendizagem criativo e
prazeroso”, afirmação que pode ser estendida ao segundo volume.
29
O modelo C(L)A(S)P foi proposto pelo compositor e educador musical Keith Swanwick, em seu livro A basis
for music education, publicado em 1979 por NFER-NELSON Publishing Company Limited, em Oxford (Reino
Unido). Trata-se de uma proposta de desenvolvimento musical a partir de atividades inter-relacionadas de
composição, apreciação, performance, literatura musical e habilidades técnicas. A sigla em inglês significa
Composition, Literature Studies, Apreciation, Skill acquisition, Performance.
67
Longo nasceu em 1969, na cidade de Martinópolis, em São Paulo, mas morou grande
parte de sua vida em Presidente Prudente, onde iniciou seus estudos de piano no conservatório
local. Teve seu primeiro contato com o piano observando suas irmãs que estudavam o
instrumento; curiosa, intuitivamente e com alguma ajuda das irmãs, começou a experimentar
no teclado e a ler partituras. Desde então, o piano passou a ocupar um lugar maior em sua
vida (informação verbal).
Em São Paulo, estudou com o pianista Alfredo Cerquinho de 1986 a 1992. Graduou-se
bacharel em piano pela Universidade de São Paulo (USP) sob orientação de Gilberto Tinetti,
de 1988 a 1991. Em 1993, fez aperfeiçoamento pianístico com Carlo Bruno na Scuola Di
Musica T Ludovico da Victoria, na Itália (LONGO, 2013). Ao retornar ao Brasil, foi aluna da
pianista Maria José Carrasqueira, durante dois anos (informação verbal).
30
Informações fornecidas por Longo em São Paulo, em 2014.
68
Divertimentos
Divertimentos é um livro de peças para piano publicado por Laura Longo, em 2003.
Segundo a autora, a motivação primeira para a composição das peças foi sua observação dos
métodos tradicionais de iniciação ao piano, nos quais pôde constatar que, em sua grande
maioria, faltava ludicidade e criatividade, prevalecendo um direcionamento à leitura de notas
desde o princípio. Diante disso, sua proposta foi criar peças tecnicamente fáceis, que
iniciantes poderiam aprender mesmo que ainda não tivessem se apropriado da leitura
tradicional (LONGO, 2003, p. 11). Apesar de reconhecer a importância da leitura e do
desenvolvimento técnico desde o início do aprendizado, Longo aponta a relevância de outros
aspectos musicais como sensibilidade, percepção, memória, conhecimento do teclado como
um todo e interpretação.
Longo parte do princípio de que o aluno iniciante consegue decifrar vários aspectos
musicais na partitura e deveria ser estimulado a isso; os trechos que ele não tem condições de
decodificar podem ser aprendidos por imitação. Outro processo que se incentiva é aprender
uma música por imitação e, depois, observar e analisar a partitura, identificando o que tocou.
Dessa forma, o aluno vai se familiarizando com o código de forma lúdica, tendo uma ideia
global da partitura, e, aos poucos, associando intelectualmente som e escrita. Por fim, Longo
ressalta que a proposta de imitação não deve ser encarada como simples repetição, mas como
um trabalho de percepção das frases e partes da música por meio da imitação auditiva e visual
(informação verbal).31
A cada peça, sugere-se que o aluno improvise determinados compassos, crie uma
melodia para o acompanhamento dado, transponha começando a música em outras teclas, crie
variações, mude as articulações, entre outras propostas criativas.
31
Informação fornecida por Longo em São Paulo, em 2014.
70
32
Devo todas as informações a Tuñez, M. Información. Mensagem recebida por [email protected] em 20
mai. 2014.
71
De tecla en tecla foi publicado em Buenos Aires por El Farol Cooperativa de Trabajo
Cultural, em 2007. Na introdução, as autoras explicam detalhadamente o conceito pedagógico
das propostas, assim como o plano metodológico e a organização das atividades.
33
Devo todas as informações a Zabala, M. J. Información. Mensagem recebida por [email protected] em
20 mai. 2014.
72
De acordo com Zabala e Tuñez (2007, p. 5), o livro foi idealizado para a iniciação ao
piano de crianças a partir de 6 anos, estimulando a exploração, a experimentação e a
percepção musical, iniciando-as na improvisação e na composição, consideradas pelas autoras
imprescindíveis na formação do músico contemporâneo. A intenção primeira é que se
conheça progressivamente o teclado, desenvolvendo a coordenação motora por meio de
pequenas peças musicais e respectiva análise (informação pessoal).34
34
Zabala, M.J.; Tuñez, M. Información. Mensagem recebida por [email protected] em 20 mai. 2014.
35
“Actividades de exploración libre: proponen un elemento disparador plástico, musical o motriz, a partir del
cual se desarrolla la acción.”
36
“Actividades de exploración pautada: proponen esquemas unificadores células,motivos, frases o temas para
armar, ampliar y reelaborar, según critério estético del alumno, los que adquieren sentido con la manipulación y
transformación [...].”
73
• Atividades de exploração combinada: apresentam-se textos de maior
extensão, que unem leitura e improvisação, exercícios que dependem da
prática, do reconhecimento de padrões e de ações dos procedimentos, da
transferência e da retroalimentação dos conhecimentos adquiridos para o
domínio instrumental.37
As autoras pretendem que o aluno vivencie essas atividades como uma experiência
para apropriar-se dos recursos mais significativos e influenciar sua própria produção
(ZABALA; TUÑEZ, 2007, p. 7).
37
“Actividades de exploración combinada: proponen textos de mayor extensión donde se conjugan instancias de
lectura e improvisación que dependen más de la práctica, el reconocimiento de patrones, secuencias de acción de
los procedimentos, la transferencia y la reetroalimentación de los conocimientos adquiridos en pos del dominio
instrumental.”
74
38
“La exploración y manipulación del sonido y los elementos del lenguaje musical en el piano. El
descubrimiento de las propiedades y de las acciones de transformación de los materiales. El enriquecimiento de
las posibilidades expressivas. La diferenciación y la sincrocización motriz. El reposicionamiento del intérprete
como autor. La valorización de las decisiones estéticas individuales. La priorización de una escucha abierta. La
capitalización de aportes tanto grupales como individuales. La aceptación de diferentes niveles de compreensión
y maduración” (ZABALA; TUÑEZ, 2007, p. 8).
39
“Recurre al juego como actividad de intercambio, integración y síntesis de experiencias significativas,
otorgando un papel central a las lógicas constructivas propias de cada alumno.”
40
Zabala, M.J.; Tuñez, M. Información. Mensagem recebida por [email protected] em 20 mai. 2014.
75
CAPÍTULO 2
Criatividade
Para elucidar o contexto educacional em que o ensino musical está inserido, considero
relevante me deter um pouco mais, mesmo que sinteticamente, sobre uma questão que abarca
a educação num sentido mais amplo. As décadas finais do século XX foram marcadas por
transformações sociais, políticas e econômicas e descobertas significativas na ciência, na
tecnologia e, como não poderia ser diferente, também na educação. As novas tecnologias da
informação operaram e ainda operam mudanças no cotidiano, nas relações pessoais e
profissionais e na própria forma de pensar das pessoas, principalmente a das novas gerações.
Além de inovações e mudanças, o final do século XX e o início do século XXI trouxeram
também questionamentos e quebra de paradigmas.42 De acordo com Moacir Gadotti, diretor
do Instituto Paulo Freire, estamos vivendo um momento de expectativas e crise e que
precisamos nos questionar sobre o que esperamos da educação no terceiro milênio e fazer
“um balanço sobre práticas e teorias que atravessaram os tempos” (GADOTTI, 2006).
42
Segundo o filósofo Edgar Morin, paradigma pode ser definido como “um conjunto de regras, noções, padrões,
teorias, modelos, visões de mundo que nos é legado inconscientemente” (MORIN, [s.d.]).
43
Na filosofia, Gilles Deleuze e Félix Guattari propõem um novo modo de pensar, radicalmente diferente do
conceito de paradigma. Ao reconhecer que o pensamento cartesiano norteia o Ocidente há séculos, defendem
uma mudança, construindo conceitos de outra ordem, como o de rizoma. Segundo Gallo (2003, p. 93), “[...]
diferente da árvore, a imagem do rizoma não se presta nem a uma hierarquização nem a ser tomada como
paradigma, pois nunca há um rizoma, mas rizomas; na mesma medida em que o paradigma, fechado, paralisa o
pensamento, o rizoma, sempre aberto, faz proliferar pensamentos”. Cf. Deleuze e Guattari (1995).
77
O autor ressalta que a educação ainda é regida por esse pensamento dissociador e
critica a forma como o conhecimento é ensinado:
Para superar esse pensamento dissociativo, temos que reaprender a pensar, a interligar
conhecimentos. Segundo Morin (2011, p. 42), “não se trata de abandonar o conhecimento das
partes pelo conhecimento das totalidades, nem da análise pela síntese; é preciso conjugá-las”.
As ideias de Morin têm conexão com a primeira das referências teóricas deste
trabalho: o pensamento de Hans-Joachim Koellreutter. Embora eles tenham trilhado caminhos
diversos, há pontos de convergência entre suas teorias que são importantes para a reflexão
aqui proposta. Dessa forma, apresento a seguir os princípios que nortearam a atuação de
Koellreutter nos contextos cultural e educacional brasileiros.
Hans-Joachim Koellreutter
Koellreutter era um educador no sentido mais amplo do termo. Não esteve à frente de uma
sala de aula com crianças, mas atuou com músicos e professores de música buscando
desenvolver uma educação conectada com os princípios vanguardistas da época, atual até hoje
(KATER, 1997, p. 6-7).
O próprio Koellreutter dizia: “sou um homem que se interessa não só pela música mas
pela interdependência de todas as áreas” (TOURINHO, 1999, p. 221). O convívio com
Hermann Scherchen (1891-1966) – importante regente alemão, divulgador e promotor da
Neue Musik – influenciou imensamente sua formação pessoal e profissional: “[...] ele abriu
realmente tudo, ensinou a evitar preconceitos, abrir a todas tendências. Foi talvez o mais
importante que aprendi com ele. E também trato disso até hoje como princípio principal”
(KOELLREUTTER apud ADRIANO; VOROBOW, 1999). Marcado profundamente pelas
ideias de seu mestre e pelo estudo em diversas áreas do conhecimento, Koellreutter construiu
um pensamento que norteou toda sua atuação, fosse como compositor, ensaísta ou educador.
Segundo Brito, “definir consciência foi, para ele, um exercício essencial no sentido de
apreender e comunicar o paradigma do novo mundo anunciado” (2004, p. 67-68). Para
Koellreutter46 (1997h, p. 72), consciência era “a capacidade do homem de apreender os
sistemas de relações que atuam sobre ele, que o influenciam e o determinam: as relações entre
44
A palavra fenomenologia se origina de duas palavras gregas: phainesthai (fenômeno) – aquilo que se mostra,
que aparece a nós primeiramente pelos sentidos – e logos – estudo, capacidade de refletir. A fenomenologia é um
método de investigação filosófica fundado pelo filósofo e matemático Edmund Husserl (1859-1938). A partir de
procedimentos rigorosos, pretende refletir sobre o fenômeno que se mostra para nós, na relação que
estabelecemos com os outros, no mundo.
45
A palavra gestalt é de origem alemã e não tem uma tradução literal para o português: significa dar forma,
configurar. A Psicologia da Gestalt ou Psicologia da Boa Forma surgiu no final do século XIX, quando
pesquisadores alemães empreenderam diversas pesquisas sobre a percepção humana, principalmente a visão. Os
principais representantes que desenvolveram as leis da Teoria da Gestalt foram Max Werteimer (1880-1943),
Kurt Koffka (1886-1941), Kurt Lewin (1890-1947) e Wolfgang Köhler (1887-1967). A teoria ampliou-se e
transformou-se numa linha filosófica.
46
É importante frisar que Koellreutter escreveu esses artigos por volta da década de 1950.
79
Todos os esforços, no entanto, serão vãos para a real compreensão das coisas
da arte, tornando-se, na prática, mera rotina, quando não relacionarmos –
tanto os alunos, quanto os professores – os nossos conhecimentos com o
todo. Com o todo da arte, com o todo de nossa existência, com o todo do
meio ambiente e com o todo da sociedade em que atuamos. Pois é esse todo
que nos estimula, que, como germe, vive em nós desde o princípio; o todo
que é a vida espiritual, o espírito criador, propriamente dito. [...] Por isso,
alunos desta Escola, apelo a vocês: deixem-se levar pela consciência das
relações entre as coisas – é que a ciência moderna comprovou que não há
objetos ou fatos, mas sim, exclusivamente, relações –, deixem-se levar pela
consciência dessas relações, pela verdade de que nenhuma atividade
intelectual pode ser isolada (KOELLREUTTER, 1997f, p. 54).
80
[...] aprendo com o aluno o que ensinar. Há três preceitos: 1) não há valores
absolutos, só relativos; 2) não há coisa errada em arte, o importante é
inventar o novo; 3) não acredite em nada que o professor diz, em nada que
você ler e em nada que você pensar; pergunte sempre “por quê?”
(KOELLREUTTER apud ADRIANO; VOROBOW, 1999).
[...] as perguntas têm mais importância do que as respostas
(KOELLREUTTER, 1997f, p. 53).
[...] tudo o que choca, conscientiza [...] o choque é sempre um meio de
consientização e do ponto de vista pedagógico isso é muito importante
(BRITO, 2004, p. 122).
[...] o alicerce do ensino artístico é o ambiente [...] O princípio vital, a alma
desse ambiente, é o espírito criador (KOELLREUTTER, 1997f, p. 53).
É verdade que o espírito criador deve ter suas raízes na tradição, nos tempos
passados, em mundos estranhos portanto, mas jamais ele deve isolar-se e
afastar-se do presente real. Assim ele despertará forças para elucidar o
presente e para contribuir resolutamente para a construção do futuro da
humanidade (KOELLREUTTER, 1997f, p. 57).
81
Koellreutter concebeu uma proposta de ensino pré-figurativo, cuja meta principal era o
ser humano:
Koellreutter se voltou para questões do século XXI ainda no século XX. Era aberto ao
novo, ao futuro, como ele mesmo disse: “[...] O passado é um meio e um recurso, de maneira
nenhuma um dever. O futuro, porém, é” (KOELLREUTTER, 1997d, p. 42). Esse olhar para o
futuro conduziu também sua concepção como educador e, talvez por isso, é possível
identificar, em seu corpo de ideias, conexões e convergências com um pensamento
contemporâneo de educação. O ensino pré-figurativo concebido por ele fundamenta-se em
preceitos que anteviam o pensamento educacional do século XXI, como o diálogo, o
conhecimento construído coletivamente, o respeito pelo outro, a relação entre os conceitos e
as diferentes áreas do conhecimento humano e até a formação continuada de professores.
Esses mesmos princípios, defendidos por Koellreutter décadas atrás, estão nas orientações do
Relatório para a UNESCO da Comissão Internacional sobre Educação para o século XXI,
que aponta a direção educacional a ser tomada frente aos desafios do novo século, a partir de
quatro pilares fundamentais: aprender a conhecer, aprender a fazer, aprender a viver juntos e
aprender a ser, aliados ao estímulo, às descobertas e ao fortalecimento do potencial criativo
das pessoas (DELORS, 1999, p. 90).
Sua vasta experiência pedagógica começou quando ainda era adolescente, aos 13 anos,
quando começou a dar aulas de piano para crianças de sua idade ou mais novas que
precisavam se preparar para exames (GAINZA, 2007, p. 117). Anos depois, ao retornar à
Argentina depois de sua especialização em pedagogia musical pela Universidade de
Columbia, nos Estados Unidos, não parou mais de lecionar e pensar sobre educação musical,
construindo um sólido pensamento pedagógico-musical. Em seus mais de quarenta títulos
publicados, há reflexões profundas sobre inúmeros aspectos da relação da música com o
homem, na esfera individual e social, e sobre as práticas da pedagogia musical, tendo a
criação e a prática reflexiva como eixos norteadores.
47
“Durante casi toda mí vida profesional mantuve una actitud permanente de observación y cuestionamiento de
las grandes líneas, tendencias y orientacines dentro de la profesión, trabajando aquí, en mí país, desde adentro,
pero con la mirada puesta afuera, más allá” (GAINZA, 2007, p. 18).
48
“[...] lo personal y lo social, lo cotidiano y lo transcendental, lo natural y lo cósmico, la salud y la enfermedad,
lo ético y lo estético, entre otras categorías” (GAINZA, 2002, p. 140).
84
Gainza considera que a música é energia que nos perpassa e reflete em nós,
produzindo efeitos e reações diversas, deixando-nos estimulados, contidos, inflamados,
calmos, entre muitos outros estados de ânimo, mobilizando aspectos afetivos, físicos e
mentais da pessoa. Mas a música também é alimento, pois parte do que absorvermos sonora e
musicalmente se integra a nós, nos impregna, nos harmoniza. Essa instância é central no
processo de educação musical, pois a absorção da música como alimento determina a forma
como se desenvolve e estrutura o mundo sonoro de cada um. A partir dessas duas instâncias,
muitas outras foram se ampliando na relação homem-música, como música linguagem, arte e
mito. A música é linguagem quando há hierarquização entre o conteúdo e a forma, e,
dependendo da qualidade e da transcendência da linguagem, ela pode se transformar em arte
(Gainza afirma que a arte só pode surgir a partir da existência prévia da linguagem). Por
último, aponta a construção do mito da música, quando há confusão e mesmo sobreposição
entre a própria matéria e o símbolo que a representa, ou quando se confunde a realidade com a
evocação da música. É comum compositores e obras serem culturalmente divinizados,
propagando a ideia de que a música é algo inatingível. Diante disso, a autora adverte sobre a
dificuldade de muitos estudantes frente ao mito de uma música tão suprema, que eles nunca
conseguirão produzir (GAINZA, 2013, p. 64-66).
A partir dessas cinco instâncias ou funções, Gainza explica a ampla dimensão das
ações musicais na área terapêutica, social e educacional. No campo educacional,
especialmente, a autora aponta a importância da confluência de diversos processos:
49
“En una primera instancia, la música sería captada como energía [...] ou como alimento, para dimensionarse
luego como lenguaje de comunicación y como objeto cultural y artístico” (GAINZA, 2002, p. 140).
85
Faz-se evidente, nos diversos textos de Gainza, seu conhecimento sobre os métodos e
tendências pedagógico-musicais que construíram a história da educação musical ao longo do
século XX. Gainza (2002, p. 67, tradução nossa, grifos do original) divide essa história em
três grandes épocas:
• primeira metade do século XX: de “revolução e mudança”, refere-se aos métodos
ativos, que trouxeram o “movimento” para a educação musical, sendo os aspectos
50
“Un proceso educativo-musical implica, por lo tanto, una multiplicidad de procesos de apropiación, expresión
y aprendizaje, a partir de la práctica y la vivencia musical, integrando , por una parte, la absorción de nuevos
materiales y experiencias, y por otra, el desarrollo de las potencialidades musicales e integrales, innatas y
adquiridas, del educando. El educador musical, al hacerse cargo de los procesos de desarrollo musical, calibrará
la intensidad, la profundidad y la direccionalidad de estos mismos, según lo requieran los diferentes níveles de la
enseñanza” (GAINZA, 2002, p. 141).
51
“La apertura en lo pedagógico remite a los aspectos filosóficos de la educación pero también a las técnicas
educativas. Implica la evaluación y el análises de la situación actual para, desde allí, programar intervenciones
orientadas a promover procesos de desarrollo a lo largo de los diferentes ciclos de la educación formal. A partir
de una acción de caráter global y abierto sobre la realidad, en cualquier momento será posible acotar el objetivo,
“cerrarlo” funcionalmente, para el logro de un objetivo concreto. [...] Así como los modelos conductistas
apuntan a la producción en serie, las pedagogías abiertas tienden a liberar el pensamiento y la expresión [...]”
(GAINZA, 2002, p. 29).
86
vitais e ativos do educando seu eixo principal, e têm como principais representantes
Émile Jacques-Dalcroze (1869-1950), Edgar Willems (1890-1978), James Mursell
(1893-1963), Maurice Martenot (1898-1980), Carl Orff (1895-1982), Zoltán
Kodály (1882-1967), entre outros;
• 1960-1970: de “revisão e atualização”, com foco nos processos de criatividade,
tendo como representantes George Self (1921), Murray Schafer (1933-), Folke
Rabe (1935-), Brian Dennis (1941-1998), entre outros;
• por volta da década de 1980: a da consciência, “tende a reforçar a integração e
autonomia dos processos criativos e conscientes da aprendizagem”.
Mais tarde, Gainza (2013) subdivide essas três grandes épocas em seis períodos,
detalhando seus enfoques, representantes e contribuições. No sexto período, que ela denomina
“novos paradigmas”, aponta a existência de muitos modelos pedagógicos52 e uma
potencialidade criativa muito grande, mas adverte que se faz necessário que “os professores
de música e arte se reúnam para se conhecer melhor, intercambiar inquietações e refletir sobre
seus princípios comuns que os guiam e aprendam a discernir o supérfluo do profundo, o falso
do verdadeiro, o urgente do fugaz e desnecessário”53 (GAINZA, 2013, p. 60, tradução nossa).
Tanto em suas publicações como em palestras e cursos, Gainza destaca dois temas
como fundamentais para a educação musical da atualidade: a reflexão sobre os processos de
ensino e aprendizagem que levam à conscientização do vivido e a integração dos três
principais enfoques das três grandes épocas: movimento, criatividade e consciência. Segundo
suas ideias, vivemos um momento na educação musical que deve primar pela integração entre
o fazer e o pensar: “a teoria sucede a prática, partindo da ação ao conceito e ao símbolo”54
(GAINZA, 2002, p. 25, tradução nossa). Mais uma vez, observamos uma sintonia entre
Gainza e as ideias koellreutterianas, nas quais tanto o espírito criador como a ideia de
consciência são elementos fundamentais.
52
Gainza distingue método de modelo, definindo método como uma criação individual, em geral, em que
materiais e atividades são apresentados de forma sequenciada e com ênfase de determinado aspecto musical; já
modelo seria uma produção mais coletiva, com nomes que se destacam, mas não tomam para si a autoria,
constituindo-se como um conjunto de materiais, atividades e condutas sem uma sequência exata e que podem se
combinar com outros (GAINZA, 2013, p. 59-60).
53
“[...] los docentes de música y de arte se acerquen entre sí, para conocerse mejor, intercambiar inquietudes y
reflexionar acerca de los móviles comunes que los guían, y para aprender a discernir lo superfluo de lo profundo,
lo falso de lo verdadero, lo urgente de lo fugaz e innecesario” (GAINZA, 2013, p. 60).
54
“[...] la teoría sucede a la prática y se procede desde la acción hacia el concepto y el símbolo” (GAINZA,
2002, p. 25).
87
Analisando Método para piano, Palitos chineses e Nuestro amigo el piano (outra
coletânea de composições de seus alunos), percebemos a importância que a educadora confere
ao espaço da criação, seja em propostas de improvisação ou mesmo de composição de
melodias, e sua ideia de que propostas criativas devem estar entre os aspectos desenvolvidos
em uma aula de instrumento:
55
“A la pedagogía contemporánea le interesan tanto los procesos como las metas; la música, además de arte e
ciencia, es un lenguaje cuyo dominio se adquiere, paulatinamente, a través de un desarrollo cialéctico en que la
improvisación constituye un recurso de gran transcendencia y eficacia” (GAINZA, 2002, p. 68).
56
“Improvisar en música es lo más proximo al hablar en lenguaje común. Un estudiante adelantado que pasa
varias horas al día practicando piezas y ejercicios en su instrumento debería también, por lo menos, ser capaz de
expresar ideas musicales de un nivel de dificultad equivalente a las conversaciones simples que improvisa
cotidianamente cuando se encuentra de pronto con un amigo” (GAINZA, 2014a, s/p).
88
57
“Ya que es en el nivel inicial donde se gesta la futura sensibilidad del niño, es fundamental que los maestros
comprendan que el placer de la música implica y exige el juego libre con la voz y con los intrumentos, más allá
de la reproducción exacta de modelos preestablecidos, punto de partida y a la vez objetivo implícito de la
enseñanza tradicional” (GAINZA, 2014b, s/p).
58
“Ante la necesidad permanente de interpretar el dogma pedagógico, se requieren maestros sólidamente
formados/informados, con capacidad para elegir y decidir (igual que el médico frente al enfermo, igual que el
creyente frente al dogma religioso). Al mismo tiempo, para asegurar la personalización y humanización de la
pedagogía musical, hacen falta maestros flexibles y cretivos (sensibles/inteligentes), formados en la libertad, y no
un ejército de clones adiestrados para aplicar de ‘cierta’ manera el dogma pedagógico” (GAINZA, 2013, p. 147).
89
que estão permeadas pela interação com os mais diversos sons do ambiente e pelo meio
cultural em que estão imersas. Assim, cada criança se relaciona com o sonoro e com o
musical de forma singular, mesmo que inseridas no “‘caldeirão’ dos universais” (BRITO,
2007, p. 68-69).
Segundo a educadora, a relação com a música é uma das muitas formas do brincar
infantil, criando canções, imitando os gestos de tocar um instrumento tendo ou não o objeto
na mão. Embora o brincar musical da criança seja natural, a autora adverte que a sociedade e
os próprios sistemas educacionais não o valorizam como se deveria (BRITO, 2007, p. 69).
Essas reflexões sobre o fazer musical das crianças e a postura pertinente do educador
constituem o corpo do que Brito denomina Educação Musical do Pensamento. A partir da
experiência com as crianças, do contato com as ideias de Koellreutter, com conceitos da
filosofia de Gilles Deleuze (1925-1995) e Félix Guattari (1930-1992), com a teoria
dinamicista da psicóloga e cientista cognitivista Esther Thelen (1941–2004) e com o diálogo
com “Maturana e Varela, Merleau-Ponty, Delalande, Piaget, Paulo Freire, Muniz Sodré,
Fonterrada… para lembrar alguns” (BRITO, 2009, p. 26), a educadora discorre amplamente
91
sobre essa educação musical em modo menor em sua tese de doutorado (BRITO, 2007) e,
mais resumidamente, em seu artigo “Por uma educação musical do pensamento: educação
musical menor” (BRITO, 2009).
[...] por um lado, como resistência, atuando com outro modo de estabelecer
relações e fazer música nos territórios da educação musical, resistindo aos
padrões preestabelecidos que enfatizam o produto, ao invés do processo; por
outro lado, apontando a singularidade das ideias de música das crianças, que
são “modos menores” frente aos modelos tradicionais (BRITO, 2014,
informação verbal).59
59
Informação fornecida por Brito em São Paulo, em 2014.
92
Dessa forma, para educar em modo menor, musicalmente ou não, faz-se necessário
mudar a postura do educador, para que se propiciem ambientes que abarquem essa outra
maneira de se relacionar com as crianças e com o próprio conhecimento. O modo menor
“implica resgatar valores, modos de ser e de conviver, de ensinar e de aprender, de
transformar, de criar..., resistindo ao controle, à padronização e ao consequente
empobrecimento que, infelizmente, atestamos quase que cotidianamente nos planos maiores
do educar” (BRITO, 2007, p. 258).
A ideia de uma educação em modo menor encontra inúmeros pontos de conexão com
o pensamento koellreutteriano. Na dissertação de mestrado da própria autora, encontram-se
várias delas, como a seguinte:
Brito (2007) também propõe uma educação musical que propicie experiências em que
o “escutar/fazer/pensar/significar música” esteja presente de forma integradora, da mesma
forma que Koellreutter (2007) e Gainza (2002; 2013) incitam a busca de um ensino e uma
aprendizagem musical integradores das múltiplas dimensões da música e das outras artes.
Muito enfatizada nos textos de Brito (2004; 2007; 2009), a ideia da singularidade de
cada criança e de cada situação educacional, que transcendem o próprio ensinar música,
também dialoga com os princípios de pedagogia aberta defendido por Gainza (2002; 2013) e
com uma das máximas de Koellreutter – “apreender do aluno o que ensinar” – explicitada em
diversos textos da autora: “[...] mais do que meramente pretender ensinar música, nosso
propósito é escutar e respeitar o processo de reinvenção de cada criança, caminhando juntos
com ela” (BRITO, 2007, p. 70).
O pensamento de Brito sobre as invenções das crianças, sobre o qual ela discorre
amplamente em sua tese de doutorado, tem grande relevância para a reflexão sobre o espaço
da criação nas aulas de piano, objetivo primeiro desta dissertação.
Brito (2007, p. 184) considera que é possível “ler”, nas criações instrumentais das
crianças, aspectos musicais e extramusicais, como a maneira com que a criança estruturou seu
pensamento, suas relações com o ambiente, maior ou menor consciência em relação ao
espaço-tempo, se predomina o conhecimento intuitivo ou intelectual, como se relaciona com a
técnica dos instrumentos e com os códigos de registro, entre muitos outros aspectos. Dessa
forma, a criança vai construindo e transformando seu conhecimento musical, como ela
explicita a seguir:
Sua proposta educacional para o ensino do piano parte do princípio de que esse deve
ser compreendido como um instrumento, um meio para a expressão musical, daí a
95
Ideal seria que em cada aula sempre houvesse relação entre história da
música, teoria, solfejo, percepção, criação, interpretação, escrita e leitura,
dando, com isso, oportunidade ao estudante de vivenciar a música de
maneira integrada, sem a inadequada compartimentalização tão comum na
educação musical tradicional (característica do antigo paradigma)
(CAMPOS, 2000, p. 51).
Por fim, Campos também apoia a ideia da apropriação da linguagem musical a partir
de processos criativos, sem prescindir dos aspectos valorizados no ensino tradicional – leitura,
técnica e repertório –, buscando uma integração, como observa-se na proposição a seguir:
Aprendizagem criativa
Segundo as autoras, na década de 1950, começou a surgir um grande interesse por esse
tema, e pesquisadores como Barron (1955),60 Guilford (1967),61 MacKinnon (1962)62
desenvolveram estudos que pretendiam determinar as características do pensamento criativo e
formas de identificá-lo. Na década seguinte, o foco das pesquisas era investigar possíveis
estratégias para desenvolver o potencial criativo das pessoas, baseando-se na concepção do
movimento humanista, do qual Maslow (1968)63 e Rogers (1959)64 eram referência, de que a
criatividade é um potencial inerente a todos os indivíduos.
A partir dos anos 1970, por influência da psicologia cognitiva, o interesse das
pesquisas convergiu para o estudo do ato criativo em suas diversas manifestações e para as
60
BARRON, P. The disposition toward originality. Journal of Personality and Social Psychology, n. 51, p. 478-
485, 1955.
61
GUILFORD, J. P. The nature of human intelligence. Nova York: Mc-Graw-Hill, 1967.
62
MACKINNON, D. W. The nature and nurture of creative talent. American Psychologist, n. 17, p. 484-495,
1962.
63
MASLOW, A. H. Toward a psychology of being. 2. ed. Princeton, NJ: Van Nostrand, 1968.
64
ROGERS, C. R. Toward a theory of creativity. In: ANDERSON, H. H. (Org.). Creativity and its cultivation.
Nova York: Harper & Row, p. 69-82, 1959.
98
Em seu livro Creativity and education futures: learnig in a digital age, Craft discorre
sobre o que provocou a crescente valorização da criatividade no mundo Ocidental em vários
contextos e áreas do conhecimento, como na ciência, na tecnologia, nas artes, na educação e
mesmo na vida cotidiana, desde o final do século XX. Com enfoque especial na educação, ela
relaciona esse despertar para a criatividade aos aspectos econômico, social, tecnológico e até
ecológico e espiritual. Detendo-se nos três primeiros, aponta a interdependência da economia
mundial a partir da globalização e a relação complexa entre Estado e iniciativa privada, que
causa grandes mudanças nas necessidades de consumo, como disparadores da procura por
profissionais mais criativos, que inovem o mercado e sejam flexíveis para trabalhar frente às
incertezas. Em relação ao aspecto social, a autora destaca as grandes mudanças na sociedade
ocidental, em que padrões sociais de comportamento estão cada vez mais ligados a
preferências individuais do que à tradição, consequência do aumento da complexidade do dia
a dia dos indivíduos por conta de estruturas familiares diversas e do complexo engajamento
social, que demanda e oferece cada vez mais oportunidades, valorizando as escolhas pessoais
para condução da própria vida. Esses fatores econômicos e sociais provocaram mudanças na
educação, que, agora, deveria auxiliar crianças e jovens a exercitarem sua imaginação e
potencial criativo para lidar com o grande número de escolhas. Por fim, Craft (2011, p. 19-24)
aponta as mudanças tecnológicas das últimas décadas e a total integração das tecnologias
digitais à vida do homem ocidental, afirmando que a criatividade que exigem e oferecem é
indiscutível.
99
Em artigo de 2004, “Teaching creatively and teaching for creativity: distinctions and
relationships”, Anna Craft e Bob Jeffrey, também pesquisador do tema, apontam que as
pesquisas sobre ensino criativo foram relevantes nas décadas de 1990 e 2000 a ponto de
mudar o currículo oficial da Inglaterra, que, desde então, orienta a incorporação da
criatividade em todas as disciplinas. Ao mesmo tempo, os autores discorrem sobre a relação
entre ensinar criativamente e ensinar para a criatividade, indicando aos pesquisadores que, ao
distingui-los, é importante definir claramente as circunstâncias a serem estudadas, pois as
duas formas estão intrinsicamente inter-relacionados. Sugerem, então, que “a constituição de
práticas pedagógicas criativas podem ser mais transparentes se o foco se encontrar tanto no
professor como no aluno”66 (JEFFREY; CRAFT, 2004, p. 14-15, tradução nossa), apontando
uma nova perspectiva dos estudos sobre criatividade: a aprendizagem criativa.
65
CRAFT, A. Creativity in Schools: tensions and dilemmas. London: Routledge, 2005.
66
“[...] the constitution of creative pedagogic practices may be more transparent if the focus is on the teacher and
on the learner” (JEFFREY; CRAFT, 2004, p. 14-15).
100
Por fim, diante dos aspectos tratados sobre criatividade na educação, Beineke
corrobora com a opção pela aprendizagem criativa nas pesquisas sobre criatividade e sobre
composição musical no ensino de música, optando por:
Possibility thinking69
Mesmo sem a exata definição de possibility thinking, diversas pesquisas vêm sendo
realizadas no sentido de indicar uma prática pedagógica que promova diversas possibilidades
do pensar, o que caracteriza o pensamento criativo. Cremin, Burnard e Craft (2006, p. 108-
109) mencionam um projeto empreendido pelo Qualifications and Curriculum Authority
(QCA),72 aplicado em dez países da Europa no período de dois anos, para estudar a
criatividade, ajudar os professores a descobri-la em si mesmos e promovê-la em sala de aula.
Em outro estudo, Jeffrey e Craft (2004, p. 8-9) sugerem uma abordagem pedagógica
em que ensino e aprendizagem aconteçam a partir da coparticipação de professores e alunos,
num ambiente que se estimulem perguntas, identificação de problemas e questões em
conjunto e o debate, inclusive deixando os alunos controlarem situações; o incentivo dessa
prática também faz parte das indicações pedagógicas de Cremin, Burnard e Craft.
73
“[...] risk taking, independent judgement, commitment, resilience, intrinsic motivation and curiosity, noting
that in order to teach for creativity, teachers must identify children’s creative strengths and foster their creative
potential” (CREMIN; BURNARD; CRAFT, 2006, p. 111).
74
“Time to think, imagine, ask questions, experiment and reflect upon work in progress was seen as central to
enabling the young learners to possibility think their way forwards” (CREMIN; BURNARD; CRAFT, 2006, p.
113-117).
103
É importante destacar que, ao abrir espaço para que as crianças sejam agentes do seu
aprendizado, como defendem as pesquisadoras inglesas, um outro aspecto vira foco dos
estudos de educação musical: a escuta das voz das crianças.75 Segundo Beineke, “o conceito de
voz do aluno vem se tornando corrente nas pesquisas com crianças e está-se descobrindo que
elas têm muito a dizer sobre o que e como pensam” (BURNARD, 200676 apud BEINEKE,
2011, p. 93, grifos do original). No Brasil, esse novo olhar para a criança, implícito no conceito
de voz do aluno, aparece em trabalhos que ressaltam a importância de se ouvirem a música e as
ideias de música77 das crianças, como Beineke (2009; 2011), Brito (2007) e Santos (2006). Em
seu artigo “Aprendizagem criativa na escola: um olhar para a perspectiva das crianças sobre
suas práticas musicais”, Beineke discorre sobre esse novo foco de pesquisa:
75
Há algumas décadas, surgiu na sociologia uma subárea voltada para o estudo da infância como fenômeno
social, apontando a invisibilidade das crianças e, portanto, o fato de não se lhes dar voz na sociedade ocidental.
Essa visão da infância não será abordada aqui, porque, apesar de haver pontos de contato com algumas ideias
expostas neste capítulo, os referenciais teóricos desta pesquisa vêm de outras áreas do conhecimento como
educação musical e psicologia. No entanto, caso haja interesse, pode-se pesquisar a produção acadêmica dos
seguintes autores: o dinamarquês Jens Qvortrup, os ingleses Alan Prout, Allison James e Chris Jenks, o italiano
William Corsaro, as francesas Cléopâtre Montandon, Régine Sirota e Julia Delalande, o português Manuel
Jacinto Sarmento e a brasileira Jucirema Quinteiro.
76
BURNARD, P. Understanding children’s meaning-making as composers. In: DELIÈGE, I.; WIGGINS, G. A.
(Eds.). Musical creativity: multidisciplinary research in theory and practice. New York: Psychology Press, 2006.
p. 111-133.
77
Ideias de música é uma expressão de Brito (2003; 2007).
78
BARRET, M. S. Freedoms and constraints: constructing musical worlds through the dialogue of composition.
In: HICKEY, M. (Ed.). Why and how to teach music composition: a new horizon for Music Education. Reston:
MENC – The National Association for Music Education, 2003. p. 3-27.
79
BARRET, M. S. Towards a cultural psychology of music education. In: BARRET, M. S. (Ed.). A cultural
psychology of Music Education. New York: Oxford, 2011. p. 1-15.
80
BURNARD, P. Investigating children’s meaning-making and the emergence of musical interaction in group
improvisation. British Journal of Music Education, v. 19, n. 2, p. 157-172, 2002.
81
BURNARD, P. Understanding children’s meaning-making as composers. In: DELIÈGE, I.; WIGGINS, G. A.
(Eds.). Musical creativity: multidisciplinary research in theory and practice. New York: Psychology Press, 2006,
p. 111-133.
82
CAMPBELL, P. S. Global practices. In: MCPHERSON, G. (Ed.). The child as musician: a handbook of
musical development. Oxford: Oxford University Press, 2006. p. 415-437.
104
Marsh (2008;85 2011),86 Young (2008)87 e Younker (2009),88 entre outras [...]
Contrariando pesquisas centradas na visão musical e educacional dos
adultos, vêm sendo envidados esforços para compreender as perspectivas das
crianças nos processos educacionais, entendendo-as como agentes da sua
aprendizagem (BEINEKE, 2011, p. 93).
Brito (2007) chama atenção para a limitação da concepção de “uma única ideia de
música” – muito difundida e pouco questionada, mesmo nos dias atuais – diante das muitas
músicas e ideias de música que há no mundo e que se transformam com o passar do tempo,
reconhecendo também a música própria das crianças, quase nunca considerada. A
pesquisadora e educadora musical Fátima Carneiro Santos, ao refletir sobre uma proposta de
criação musical com crianças a partir de sons da rua, corrobora com a afirmação de Brito e
defende a necessidade de uma educação musical que acolha as muitas ideias de música:
83
CAMPBELL, P. S. Musical enculturation: sociocultural influences and meanings of children’s experiences in
and through music. In: BARRET, M. S. (Ed.). A cultural psychology of music education. New York: Oxford,
2011. p. 61-81.
84
CUSTODERO, L. A. Origins and expertise in the musical improvisations of adults and children: a
phenomenological study of content and process. British Journal of Music Education, n. 24, p. 77-98, 2007.
85
MARSH, K. Child. The musical playground: global tradition and change in children’s songs and games.
Oxford: Oxford University Press, 2008.
86
MARSH, K. Meaning-making through musical play: cultural psychology of the playground. In: BARRET, M.
S. (Ed.). A cultural psychology of Music Education. New York: Oxford, 2011. p. 41-60.
cultural psychology of Music Education. New York: Oxford, 2011. p. 41-60.
87
YOUNG, S. Collaboration between 3 and 4-year-olds in self-initiated play on instruments. International
Journal of Educational Research, v. 47, p. 3-10, 2008.
88
YOUNKER, B. A. Composing in the classroom: the journey of five children. In: KERCHNER, J. L.; ABRIL,
C. R. (Eds.). Musical experience in our lives: things we learn and meanings we make. Maryland: Rowman &
Littlefield Publishers, 2009. p. 145-162.
105
os sons da rua a partir de uma escuta que revela outras possibilidades sonoras que não apenas
aquelas mais habituais”, facilitando a percepção e a compreensão “de a rua conter ‘músicas’
(ou ideias de música) ou ser ouvida como música, por que não?”. E Brito complementa:
Para que se valorize as ideias de música das crianças é imprescindível que haja uma
disponibilidade anterior para ouvir as vozes das crianças. Nos dizeres de Brito, ao expor os
materiais que seriam analisados em sua tese de doutorado, tal necessidade fica evidente:
Beineke também revela essa postura ao comentar sobre as ideias das crianças que
aparecem em um dos estudos de caso de sua tese de doutorado: “Essas ideias de música são
construídas intersubjetivamente entre as crianças e a professora, contemplando a interação
entre aqueles que participam da sua construção” (BEINEKE, 2009, p. 138). Na mesma
perspectiva de outros autores, a pesquisadora amplia o papel do professor quando relaciona
sua conduta a possíveis composições das crianças; entre esses autores, cita Berkley (2001;89
2004)90 ao afirmar que:
89
BERKLEY, R. Why is teaching composing so challenging? A survey of classroom observation and teachers’
opinions. British Journal of Musical Education, v. 18, n. 2, p. 119-138, 2001.
90
BERKLEY, R. Teaching composing as creative problem solving: conceptualizing composing pedagogy.
British Journal of Musical Education, v. 21, n. 3, p. 239-263, 2004.
106
Em sintonia com essas posições, Burnard (2004) analisa um estudo de caso em que
alunos de oito anos e seu professor discutem e refletem sobre sua experiência de aprendizado
numa aula prática. Nesse estudo, Burnard aponta os diferentes pontos de vista entre as
crianças e o professor e ressalta a necessidade dos professores aprenderem essa nova forma de
coparticipação, na qual as vozes das crianças são ouvidas:
91
“The promotion and creation of opportunities for sharing ideas and discussing different ways we can consult
pupils and elicit pupils’ views on learning is an essential element in developing effective practice. The
realization that the teacher will be a powerful model for, and the facilitator of, thinking about learning is
important in enabling and supporting learning in both classroom and personal loci. Also important is the
acceptance that although the most common approach taken (as based on social constructivist theories) is one in
which the teacher teaches the learner how to learn, the reality is that classrooms will be busy with talk and with
learners learning from each other. Coming to understand pupils’ views on learning, wherever it occurs, and
allowing this to happen, may be one of the hardest lessons pre-service and practicing teachers have to learn”
(BURNARD, 2004, p. 32).
92
MATURANA, H. A ontologia da realidade. Belo Horizonte: UFMG, 1990.
107
CAPÍTULO 3
Antes de apresentar a EMIA, creio que seja necessário esclarecer o sentido da palavra
composição utilizado nesta dissertação. De acordo com o Dicionário do Aurélio Online,
composição significa “ação de compor um todo juntando as partes; natureza das partes,
maneira por que formam o todo; arranjo, disposição, associação, combinação, constituição,
organização, estrutura”. Já no Dicionário Houaiss eletrônico (2009), composição é
“constituição de um todo; modo pelo qual os elementos constituintes do todo se dispõem e
integram; organização”. Enfim, criar uma forma a partir de alguns elementos. Ao transpor
essa definição para a música, poderia-se dizer que compor música é criar formas sonoras.
93
FLETCHER, P. Education and Music. Oxford/New York: Oxford University Press, 1987.
94
ELLIOTT, D. Music Matters: a new philosophy of music education. New York/Oxford: Oxford University
Press, 1995.
108
dessa forma básica do fazer musical” (FRANÇA; SWANWICK, 2002, p. 9). Citam também a
posição contraditória de Harris e Hawkesley, que declaram que considerar como uma
composição uma peça de “algumas notas tocadas em um instrumento de percussão” seria uma
afirmação “a princípio exagerada para ser levada a sério por alguns músicos”, mas em seguida
afirmam que “quando os alunos selecionam e organizam sons em uma peça de música, por
mais simples que suas tentativas possam ser, ainda assim estão compondo” (HARRIS;
HAWKESLEY, 1989,95 p. 2-3 apud FRANÇA; SWANWICK, 2002, p. 11).
Brito (2005, 2007, 2009) foi outro referencial usado para fundamentar o uso do termo
composição para as invenções das crianças. Um dos pontos fundamentais de sua pesquisa são
as ideias de música das crianças. A educadora considera que ideias de música coexistem no
mundo, pois a música é uma atividade construída num contexto cultural e temporal, portanto
uma estruturação de sons e silêncios sempre a partir de um processo dinâmico e singular de
percepção e representação do mundo (BRITO, 2005). A partir dessa concepção de música,
Brito (2007, p. 68) afirma que “as crianças reconstroem as ideias de música em contínua e
permanente transformação”, pois são capturadas por elas.
Beineke (2003, p. 91-92) também discorre sobre essa questão, acrescentando uma
discussão sobre composição e criação musical. Segundo a pesquisadora, os dois termos são
frequentemente considerados sinônimos, mas ela concebe que não o são e que o uso de um ou
de outro pode apontar diferentes compreensões por parte dos professores e mesmo em relação
às abordagens metodológicas. Ela ainda questiona a ideia estabelecida no ensino mais
tradicional de música, que não compreende a criatividade como atributo próprio à atividade
musical como um todo, mas concentrada só na composição: nesse contexto, composição e
criação são sinônimos. No entanto, aponta para outra concepção de educação musical, na qual
95
HARRIS, R.; HAWKSLEY, E. Composing in the Classroom. Cambridge: Cambridge University Press, 1989.
96
PAYNTER, J. The Role of Creativity in the School Music Curriculum. In: BURNETT, M. (Ed.) Music
Education Review: A Handbook for Music Teachers. v. 1, London: Chappell & Co. Ltd., 1977.
109
ouvir, reger e interpretar (tocando ou cantando) podem ser ações criativas, assim como
compor. Beineke (2003, p. 95-96) usa o termo composição para atividades que possibilitem
um “espaço maior para a tomada de decisões musicais, incluindo trabalhos de arranjos e
improvisações, individuais ou em grupo, com ou sem notação musical” e adota os termos
criação e desenvolvimento criativo para se referir a “uma atitude que deve permear toda a
prática educativo-musical, não estando restrita apenas à composição”.
Fundada em 1980, a escola foi estruturada e organizada pela profª drª Marisa Trench
Fonterrada, então diretora da Escola Municipal de Música (EMM), e pela professora Maria
Eliza Figueiredo Bologna, então coordenadora das Unidades de Iniciação Artística do
Departamento de Teatros da Secretaria Municipal de Cultura. Inicialmente, a escola seria um
apêndice da Escola Municipal de Música, por isso Marisa Fonterrada foi convidada a elaborar
a proposta de uma escola de artes para crianças. Sua sede seria no Parque da Conceição (atual
Parque Lina e Paulo Raia), que era uma antiga chácara com grande área verde e três casas
recém-desapropriada pela prefeitura em consequência das obras do metrô. Em seu projeto
110
inicial, não constava exatamente a integração de linguagens, mas já existia um desejo para tal
(FONTERRADA, 2013, informação verbal).97
[...] o objetivo inicial foi oferecer uma escola para as crianças aprenderem
música de forma interativa com outras áreas artísticas [...] usar outras
linguagens artísticas como recurso para garantir o desempenho das crianças
no estudo individual de instrumento, preparando-as para ingressarem na
Escola Municipal de Música – EMM (OLIVEIRA, 2006, p. 49-50, grifo do
original).
Diante desse objetivo, a maioria dos professores contratados eram de música, mas
havia outros de teatro e artes plásticas. No início das atividades, a professora de teatro Claudia
Badra coordenou um trabalho de oficinas com os outros professores da escola, constituindo o
“primeiro passo para se delinear um trabalho que buscava integrar música, teatro, dança e
artes plásticas” (OLIVEIRA, 2006, p. 50). Ao longo do percurso da escola, essas linguagens
artísticas foram conquistando cada vez mais espaço, criando contornos definidos e se
estruturando. Assim, atualmente, a EMIA oferece um trabalho de iniciação artística com
principal enfoque na integração dessas quatro áreas: artes visuais, dança, música e teatro.
97
Informação fornecida por Fonterrada em São Paulo, em 2013.
98
Por ter um grande número de professores, a área de música tem dois coordenadores ao invés de um.
111
Ao longo de seus 34 anos, a EMIA contou com várias direções que contribuíram para
a construção de sua história, a saber: Ana Angélica Albano, Cléa Galhano, Ana Cristina
Araújo Petersen, Yara Borges Caznók, Jean Pierre Kaletrianos, Miriam de Oliveira Mazzei,
Thaia Perez e Márcia Soares Andrade.
Iniciamos o ano de 2014 com uma nova diretora, Andrea Fraga, ex-professora de
dança da escola, eleita pelos professores pela primeira vez na história da EMIA. O lema dessa
nova direção é “A EMIA somos nós”, carro-chefe de uma proposta de gestão democrática.
A partir de dados de 2014, a EMIA oferece em torno de 1.760 vagas para 972 alunos,
ex-alunos e pessoas da comunidade local, distribuídos entre o curso regular e diversos cursos
optativos e oficinas.
Os cursos regulares são oferecidos nas quatro áreas citadas, buscando sempre integrá-
-las, e se organizam de acordo com a faixa etária:
• 5 e 6 anos – duas horas de aula, uma vez por semana, com dois professores de
linguagens artísticas diferentes na sala.
• 7 e 8 anos – três horas de aula, uma vez por semana, com dois professores de
linguagens artísticas diferentes na sala.
• 9 e 10 anos – quatro horas de aula, uma vez por semana, com um professor de cada
área, concomitantemente, permitindo a integração total dessas linguagens.
• 11 e 12 anos – três horas de aula, uma vez por semana, com um ou dois professores
da linguagem artística escolhida pelo aluno.
As aulas de instrumento musical fazem parte dos cursos optativos, mas, devido ao
grande número de inscritos, há uma seleção a partir de dois critérios: tempo de EMIA e idade
mínima para cada instrumento. Os cursos oferecidos são de bateria, cavaquinho, cordas
coletivas, flauta doce, flauta transversal, guitarra, percussão, piano, violão, violino e
violoncelo.
Apresentando Beatriz
Beatriz é aluna da EMIA desde 2008, quando tinha 5 anos de idade. Até 2013,
frequentou aulas em grupo com linguagens integradas, parte do currículo obrigatório da
escola, cursos optativos de teatro e coral, e é minha aluna de piano desde 2011. Em 2014, no
113
currículo obrigatório, Beatriz optou pelo curso de teatro e continua a frequentar o coral e as
aulas de piano.
Beatriz é uma criança alegre, demonstra gostar muito de música e, em especial, das
aulas de piano. Tem uma postura bastante criativa e mostra-se muito envolvida nos momentos
de criação e de tirar melodias de ouvido. Em contrapartida, mostrou-se resistente a aprender
músicas por meio da partitura, mas essa postura foi se dissolvendo ao longo do ano. Não tem
piano em casa e estuda na escola.
Explorando o piano
Anexo a este texto, apresento um vídeo com recortes das aulas de Beatriz. No primeiro
recorte (7s – 4min48s), está registrada uma livre improvisação na parte interna do piano, mais
precisamente nas cordas, no segundo (4min49s – 8min30s), o processo de elaboração de sua
composição, a partir da experiência anterior, e, no terceiro recorte (8min31s – 9min50s), a
execução da própria composição, denominada por ela de “Música sem título”.
Após décadas lecionando piano para iniciantes, pude observar que, talvez por seu
grande porte, o piano pode tanto encantar como assustar, atrair ou intimidar as crianças. Ele
exerce um fascínio, mas também rapidamente pode frustrar, o que justifica a necessidade de
buscar diferentes formas de interagir com o instrumento, construindo uma relação de
intimidade. Essa intimidade com o instrumento é necessária para que o instrumentista faça
dele um verdadeiro meio para sua expressão musical, uma ferramenta com a qual ele possa
talhar a música. Assim, o músico não só deve conhecer o mecanismo da ferramenta, mas,
como um bom ferreiro, por meio de contato diário e íntimo, deve transformá-la na extensão
de sua mão e de seu pensamento.
99
A expressão “tirar a roupa de piano” faz parte do meu cotidiano com as crianças desde que trabalhei na Teca
Oficina de Música, onde essa era uma expressão muito usada.
100
Assim como outras citadas mais à frente, essa frase foi registrada em meus diários de aula da EMIA.
115
Gainza (2002, p. 45, tradução nossa) nos ensina que “o ouvido é a porta de entrada, o
testemunho e o controle da música que se absorve”.101 Décadas atrás, Paynter (1972, p. 11,
tradução nossa) também apontava o ouvir e a experimentação como pilares da educação
musical: “Seja qual for o programa curricular, nós podemos estimular experiências com sons.
A primeira tarefa do professor é a de abrir os ouvidos de seus alunos”.102
Paynter (1972, p. 12-13) apresenta como necessária uma educação musical que parta
da experimentação e da criação e como de fundamental importância a conexão do pensamento
pedagógico-musical com a produção artística, em especial a contemporânea (no seu caso, a do
século XX). Segundo o autor, os educadores devem conhecer e apreciar os acontecimentos e
as descobertas de seu tempo, levando-os para sala de aula, pois assim estarão capacitando os
alunos a compreender o que os artistas contemporâneos têm a dizer. “Hoje, os compositores
estão explorando novas técnicas de produção sonora, descobrindo novas gamas de
possibilidades expressivas. Nós devemos possibilitar que nossos alunos tenham os mesmos
fundamentos em suas experimentações”103 (PAYNTER, 1972, p. 12, tradução nossa).
101
“El oído es la puerta de entrada e el testigo y control de la música que se absorve. Por eso, volverlo sensible,
sutil, inteligente, creativo es la mejor garantía de una buena educación musical” (GAINZA, 2002, p. 45).
102
“Whatever the time-table situation we can begin to encourage experiment with sounds. The teacher’s first
task is to open his pupils’ears” (PAYNTER, 1972, p. 11).
103
“Composers today are exploring new sounded-making techniques, discovering new ranges of expressive
possibility. We shall find that our pupils cover some of the same ground in their experiments” (Paynter, 1972, p.
12).
104
Esse repertório se refere à música de vanguarda da segunda metade do século XX, quando emergiram
diversas tendências musicais, tendo à frente nomes como Olivier Messiaen (1908-1992), Edgar Varèse (1883-
116
Kurtág,105 passou a fazer parte das aulas de Beatriz. No entanto, como a análise dessas
atividades não faz parte do objetivo desta pesquisa, não as descreveremos, mas as citamos
apenas para salientar mais uma possibilidade de trabalho musical que pode ser disparada pelas
atividades de pesquisa sonora no instrumento.
Improvisando livremente
A seguir, faço uma reflexão sobre a livre improvisação de Beatriz, registrada no vídeo
(7s – 4min48s), anexo a este texto. Depois da experimentação das possibilidades sonoras do
piano aberto, desenvolvida em diversas aulas e já descrita anteriormente,
realizamos a quatro
mãos, aluna e professora, uma prática de improvisação diferente da que estávamos
habituadas: uma livre improvisação. Cabe, aqui, contextualizar essa proposta.
Embora esse tipo de improvisação ainda não seja habitual nas aulas de Beatriz, ela
recebeu todas as propostas sem resistência, envolvendo-se muito e várias vezes tomando a
iniciativa.
107
Tive um contato mais aprofundado com a livre improvisação no primeiro semestre de 2012, quando cursei a
disciplina Nos Territórios da Livre Improvisação”, ministrada pelo prof. dr. Rogério Luiz M. Costa, na grade
curricular do Programa de Pós-graduação em Música da Escola de Comunicação e Artes da Universidade de São
Paulo (ECA-USP).
118
começar qualquer música, pois ele prepara o som, que dele emerge: “Na música, de fato, o
que soa não é importante, quando não se levar em consideração aquilo que não soa. É o som
que revela e valoriza o silêncio, e é o silêncio que revela e valoriza o som”
(KOELLREUTTER, 1997i, p. 105, grifos do original). Ao assistir o vídeo, nota-se a
ansiedade de Beatriz para tocar e, mesmo depois da minha fala sobre o valor do silêncio, ela
me olha e indica com a mão que eu comece, mas, como tal não acontece, ela toma a iniciativa.
É difícil compreender a importância do silêncio na música, tanto na preparação como no
próprio discurso musical. Essa consciência deve ser construída aula a aula, ressaltando-se a
importância do silêncio em várias ocasiões para que a criança a perceba e compreenda, pois,
em geral, a vontade de tocar é sempre maior. No vídeo, também fica evidente que o silêncio
não foi utilizado nem no início, nem durante a música. No contexto da livre improvisação,
faz-se bastante evidente a dificuldade de buscar o silêncio, o que pude observar não só na
atuação de Beatriz mas na minha própria, como pianista e professora.
Após rever o vídeo diversas vezes, considero relevante dirigir o foco da reflexão para
minha atuação como professora. Eu poderia ter enfatizado mais a importância do silêncio para
Beatriz? Algumas possibilidades: além de chamar sua atenção para isso, como o fiz, poderia
ter ressaltado essa questão quando assistimos à gravação logo após a performance; eu poderia
ter inserido momentos de silêncio durante a improvisação, evidenciando as ideias sonoras, o
que talvez tivesse sido mais eficiente, pois ela poderia perceber o valor do silêncio a partir do
próprio discurso musical. Por outro lado, analisar o vídeo e perceber esse fato me motivou a
propor improvisações livres com o propósito específico de valorizar o silêncio.
Não é fácil para nós, educadores que vivenciamos a escola da cartilha e das respostas
decoradas, na qual o professor ensinava e o aluno aprendia, ter essa postura como professores,
mas é necessário que nos disponibilizemos a construí-la. O pensamento de Koellreutter pode
ser uma inspiração na construção desse novo modelo de professor.
Motivo rítmico:
121
Esse momento, que ocupa dois terços da música, apresenta diversas texturas108 com
densidades e articulações diferentes, passando por pequenos momentos métricos e outros não
métricos.
Começa com um tempo não métrico, em que Beatriz explora a sonoridade das cordas
rapidamente, seguida por mim, com um glissando descendente na região aguda, ainda em um
diálogo mas não mais tão apegadas à forma pergunta-resposta como no primeiro momento.
Com efeito, esse menino experimenta os seus sons uns após os outros, e o
problema que ele coloca é menos o da identificação do que o do estilo de
fabricação. Por outro lado, a sua intenção é visivelmente “música”. Se o
resultado não parecer musical aos seus ouvintes exasperados, não se poderia
negar ao autor uma intenção estética, ou pelo menos uma atividade artística
(SCHAEFFER, 1993, p. 283-284).
109
Os termos gesto e figura também foram usados segundo as definições de Costa (2003, p. 101-103): “gesto é
aquele que tem origem num sistema de referência musical utilizado (idioma) [...]. Pode ser também aquele ligado
à movimentação do corpo por analogia ou abstração [...]. A figura é um material ‘plástico’, geralmente de caráter
rítmico-melódico, conveniente, por exemplo, para o trabalho de variação e desenvolvimento temático [...]”.
123
É certo que Beatriz não partiu de uma ideia preconcebida, como acontece muitas vezes
com os compositores, mas, a partir das pesquisas sonoras das aulas anteriores e das ideias
sonoro-musicais que surgiram na improvisação livre, pode-se perceber claramente nos
registros de vídeo que ela escolhe determinados timbres e alturas, organiza-os e busca aqueles
que deseja, revelando uma intenção musical. De acordo com o que já foi argumentado sobre o
uso do termo composição para as invenções das crianças, considero que, referendando-me em
França e Swanwick (2002, p. 11), “Música sem título” é produto de um processo de “[...]
articulação e comunicação do seu pensamento em formas sonoras”. Portanto, uma
composição simples, com ideias expostas sinteticamente, porém uma composição.
De acordo com Schaeffer (1966), o processo auditivo pode ser decomposto em quatro
escutas: ouïr, écouter, entendre e comprendre. Apesar de diferentes, todas se relacionam e
somam, formando um todo. É importante destacar que Schaeffer não apresenta esses modos
de escuta como lineares e sequenciais, mas sim como num circuito que segue em vários
sentidos, e ora temos percepções mais subjetivas, ora mais objetivas, ressaltando aspectos
mais abstratos ou mais concretos.
A primeira escuta apresentada, ouïr, é uma escuta passiva, isto é, ouvimos o que
acontece sonoramente em nosso entorno, pois estamos imersos nele, não importando o que
estamos fazendo ou o que nos interessa naquele momento. No entanto, mesmo sendo uma
escuta passiva, nós reagimos a ela, seja só por um reflexo condicionado ou uma memória
daqueles sons. Já écouter refere-se a uma atitude ativa do ouvinte, na qual ele associa,
espontaneamente, o som à fonte sonora que o produziu. Segundo Schaeffer, essa escuta está
110
Ressaltamos que os diversos conceitos apresentados em Tratado dos objetos musicais, de Schaeffer, são
bastante complexos e exigem uma leitura cuidadosa e aprofundada. Como esse assunto não é objetivo deste
trabalho, apesar de servir como referência, apresento sinteticamente os conceitos em torno da escuta reduzida,
mas o leitor interessado pode se remeter diretamente à fonte (SCHAEFFER, 1966), como também a outros
trabalhos que discutem o assunto, como Brito (2007), Chion (2014), Costa (2003), Reyner (2011) e Santos
(2006), entre outros.
124
ligada à causa que originou o som e o ouvinte percebe o som como índice do evento sonoro
(SCHAEFFER, 1966, p. 114-115).
Segundo Santos (2006, p. 59), entendre está relacionado a “uma determinada intenção,
encontrando-se diretamente ligada às preferências e experiências do ouvinte e selecionando
aquilo que é de seu interesse particular”. De acordo com a mesma autora, Schaeffer associa
esse modo de escuta aos dois anteriores: ouïr-entendre e écouter-entendre. Na primeira
associação, o ouvinte seleciona o som que lhe é mais “atrativo, interessante ou significativo,
mas ignorando qualquer mensagem que ele possa conter”, mudando de foco entre um som e
outro de acordo com o que se vai desenvolvendo sonoramente em seu entorno. Já na segunda,
retira do entorno sonoro no qual está imerso o som que irá escutar, aprofundando essa escuta,
percebendo suas nuanças, no que Schaeffer denomina “escuta qualificada”.
Schaeffer (1966, p. 120) define duas tendências de escuta, subdividindo cada uma em
duas atitudes: escuta natural e escuta cultural, ao lado de escuta banal e escuta prática ou
especializada. A escuta natural está presente em todos nós, seres humanos, e se relaciona à
percepção do som para sinalizar um evento, um acontecimento, isto é, um indício. Já a escuta
cultural está relacionada a aspectos mais abstratos, se referindo “à mensagem, aos
significados e ‘valores’ dos quais o som é portador”111 (SCHAEFFER, 1966, p. 121), aos
quais estamos condicionados pelo ambiente cultural no qual vivemos. O outro par de escutas
(banal e especializada) considera o som como índice e dentro de um contexto cultural, mas há
diferenças em relação à intenção de escuta. A banal é mais superficial112 e a especializada,
mais direcionada, mais focada (SCHAEFFER, 1966, p. 122).
Segundo Schaeffer (1966, p. 155), direcionamos nossa escuta de duas maneiras: para a
111
“[...] au message, à la signification, aux valeurs dont le son est porteur” (SCHAEFFER, 1966, p. 121).
112
Santos (2006, p. 61) ressalta que não existe julgamento de valor em relação à escuta banal, da qual o
compositor aponta vantagens, como a de estar mais aberto a diversas direções.
125
linguagem sonora. Segundo Santos, a análise de Schaeffer questiona esse dualismo, propondo
um outro tipo de escuta. Ela afirma que ele busca “perceber aquilo que seria a ‘unidade
p. 61).
Segundo Reyner (2011, p. 103), o que caracteriza essa escuta apontada por Santos
(2006), a escuta reduzida de Schaeffer,113 é “uma atitude de escuta, uma perversão das
e entendre”. Nesse sentido, a escuta reduzida busca o não condicionamento das escutas que se
operam espontaneamente, e segue em direção ao som em si, independente dos índices que
pode revelar ou seu significado. De acordo com o próprio Schaeffer, na escuta reduzida “a
intenção se dirige ao próprio som [...] esquecendo-se dos índices e valores em benefício de
uma percepção global, de conjunto, rara, porém incontestável porque, ao haver descuidado
89, tradução nossa). Para ele, a definição de objeto sonoro é “o próprio som, considerado em
sua natureza sonora, e não como objeto material (qualquer instrumento dispositivo) do qual
provém”114 (SCHAEFFER, 1966, 23, tradução nossa). Esses dois conceitos, objeto sonoro e
escuta reduzida, foram fundamentais para a criação da música concreta, denominada assim
Por fim, é interessante lembrar que o pensamento de Pierre Schaeffer foi construído
estruturação musical, anterior mesmo à experiência. Schaeffer cria a música concreta a partir
da escuta e do fazer musical, isto é, “propõe uma mudança de foco da dupla fazer/ouvir para
113
Esse conceito não é definido direta e textualmente em Traité des objets musicaux, sendo tratado em algumas
páginas, em meio a outros conceitos. Apresentá-lo como no original não seria pertinente ao objetivo desta
dissertação, portanto, optei por buscar referências que já se debruçaram sobre as proposições de Schaeffer e que
estão mais de acordo com as dimensões deste trabalho.
114
“[...] le son lui-méme, considèré dans su nature sonore, et non pas l'objet matériel (instrument ou dispositif
quelconque) dont il provient” (SCHAEFFER, 1966, 23).
126
O estudo de Brito (2007) sobre o fazer musical das crianças confirma a associação
feita acima, relacionando a música das crianças à estética do impreciso concebida por
115
SCHAEFFER, P. Introduction à la musique concrète. Polyphonie – La musique mécanisée, Paris: Richard-
-Masse, v. 6, 1950.
127
Embora Beatriz não seja uma criança pequena, ela criou sua música a partir de
elementos próximos aos da música concreta e teve uma atitude bem parecida com a de um
músico concreto, como afirmamos em parágrafos anteriores. Também é possível observar
gestos, texturas e figuras em “Música sem título”, elementos comuns no universo do fazer
musical contemporâneo.
116
Segundo Brito (2007, p. 79), a estética do impreciso, como preceito estético de composição, refere-se a
“planos em que ocorrências definidas são substituídas por tendências que sugerem, que delineiam, mas não
determinam; mudanças que envolvem, especialmente, os parâmetros altura e duração, mas não apenas estes”.
117
Neste texto, usamos uma edição espanhola, La música es un juego de niños, editada em 1995, mas o original
francês data de 1984.
118
“[...] un músico encerrado en un estudio para hacer una grabación” (DELALANDE, 1995, p. 15).
128
Beatriz toca esse motivo com percussão corporal (mãos nas pernas) uma única vez
(8min34s – 8min36s) e, em seguida, ele é repetido na sustentação de ferro da harpa do piano,
porém desmembrado em duas partes, sendo que a primeira é tocada pela professora e a
segunda, por Beatriz (8min37s – 8min39s).
129
Inicia-se com uma marcação na subdivisão do pulso (tendo como referência o mesmo
da ponte) no suporte de madeira dos pedais, feita pela professora. Rapidamente, depois de 2
pulsos, Beatriz acompanha em uníssono por mais alguns pulsos, e uma maior densidade de
ritmos e velocidade faz-se sentir, culminando com um som produzido por um ataque com
baqueta na região grave das cordas do piano, terminando o momento B e iniciando o
momento C.
Esse momento é constituído por um diálogo entre aluna e professora, tocado com
baquetas nas cordas, na mesma região grave do ataque final do momento B. Pode-se perceber
um leve aumento de densidade e velocidade que termina num ataque preciso seguido de um
raspar da baqueta de lã nas cordas, que Beatriz realiza com um movimento em espiral,
apoiado pelo pedal 3C (9min30s – 9min38s). O efeito do pedal funciona como uma ligação
para o final: 10 glissandos ascendentes na região aguda das cordas do piano, tocados por
Beatriz com a parte de madeira da baqueta, terminando com um suave ataque com baquetas
nas cordas, na região média, executado pela professora.
130
Nesta reflexão, destaco a relação com o tempo na composição de Beatriz. Ela começa
a música com um andamento e um motivo rítmico preciso. Já na ponte com o momento B, os
oito pulsos são mais lentos em relação ao momento A. No início do momento B, ouve-se uma
subdivisão de um pulso mais rápido do que a ponte, mas não no mesmo andamento do
momento A. Esse pulso subdividido vai se transformando rapidamente com a presença de um
acelerando e o aumento de densidade de ritmos. A regularidade é retomada quando se inicia o
momento C com um diálogo nas cordas em outro pulso de referência, com fragmentos
rítmico-melódicos que vão aumentando a densidade, sendo interrompidos por um gesto em
espiral da baqueta de feltro nas cordas que produz, por alguns segundos, uma sonoridade sem
tempo medido. No final, o tempo é retomado com dez pulsos em um andamento próximo ao
do momento B. É interessante notar que Beatriz se relaciona com o tempo medido com
liberdade, imprimindo andamentos diferentes em cada parte, acelerandos ou mesmo um
aumento de densidade que provoca uma outra percepção do tempo.
Uso o termo gesto de acordo com Costa (2003), a partir do referencial de análise de
Brian Ferneyhough, professor e compositor inglês. Segundo Costa (2003, p. 101):
[...] o termo gesto, como a maioria dos termos usados na análise musical, é
emprestado de seu sentido mais genérico e corporal e pode sugerir algo no
sentido de um movimento que tem um percurso (começo, meio e fim) e que
representa uma intervenção no ambiente, revestida de significado.
No decorrer dos anos em sala de aula, fazendo música junto com os alunos, tenho
observado que sons diversos nascem de simples gestos e a eles são incorporadas intenções
sonoras, que revelam o pensamento musical das crianças. Esses procedimentos acontecem
com os mais novos e os mais velhos, com maior ou menor complexidade e consciência da
131
Como já foi dito anteriormente, o processo vivido por Beatriz na elaboração de sua
composição revela muito de sua vivência musical com o piano, isto é, os gestos, a exploração
e as descobertas formaram um repertório de possibilidades sonoras que ela, ao compor,
acionou de forma intuitiva em alguns momentos e intelectualmente em outros. Dois
momentos da livre improvisação usados depois na composição servem de exemplo: no
primeiro, com uma baqueta de feltro nas cordas do piano, Beatriz faz um gesto em espiral
(3min14s – 3min24s), no segundo, desliza a baqueta rapidamente para a direita e para a
esquerda nas cordas agudas do piano (3min31s – 3min40s). Segundo me disse depois da
atividade, a sonoridade que resultou desses gestos a agradou bastante. Aulas depois,
estruturando sua composição, toca o primeiro “gesto-som” sem uma intenção predefinida,
mais como uma memória que veio à tona do que como uma escolha – o “gesto-som”
simplesmente aconteceu. Em seguida, decide que já era o momento de terminar a música e,
depois de alguns segundos, diz: “tive uma ideia”. Lembra-se do segundo gesto e, por alguns
instantes, empenha-se em encontrar o resultado sonoro exato, buscando o mesmo lugar que
havia tocado e o mesmo modo de ação, com uma clara intenção. A memória a guia e, quando
encontra, demonstra contentamento com o que tocou. É possível observar esse processo no
diálogo transcrito abaixo (7min18s – 8min30s):
Beatriz: ... aí, a gente podia pegar um negócio pra começar [e] ir finalizando.
Professora: Ah! Já ir para um final.
Beatriz: Ir finalizando, que já tá ficando grande.
Professora: Tá.
132
Beatriz: Aí, a gente vai finalizando... e como a gente finaliza? Ô! Já tive uma ideia!
Pega essa parte daqui – e aponta com a baqueta as cordas agudas do piano, no
lugar que havia tocado anteriormente.
Professora: Aquele som que você gostou?
Beatriz: Tava aqui. Deixa eu ver.
Nesse momento, Beatriz pega a baqueta de feltro, retoma o gesto anterior (o da espiral
nas cordas da região grave) e busca o “gesto-som” de que se lembrara e que lhe parecia uma
ótima ideia para o final da música. De imediato, não consegue o resultado sonoro que
pretendia, então tenta novamente em outras partes até descobrir o som que tinha em mente e
comentar:
Beatriz: Ficou legal. Aí você finaliza com... qualquer coisa... um som grave, uma coisa
grave e aí você faz – e faz um gesto como se tivesse realizando um ataque com
a baqueta sobre as cordas.
Por fim, destaco a elaboração da composição de Beatriz. Ela apresenta uma primeira
ideia, o motivo rítmico tocado em percussão corporal, reafirmando-o três vezes, mas variando
o timbre a cada vez: na segunda, começa sendo tocado numa parte do suporte de ferro e
termina em outra, que soa mais agudo; na terceira vez, o motivo ganha volume e mistura as
duas alturas, compondo um outro timbre quando tocado em uníssono por nós duas; na quarta
vez, é tocado só no suporte de ferro, soando mais grave.
Relembro que minha participação aconteceu a pedido da própria aluna, que conduziu a
situação indicando o que queria que eu fizesse, o que tentei realizar o mais aproximado
possível de sua concepção, apesar de que a maior parte da música acontece no âmbito da
imprecisão quanto às alturas, durações ou intensidades. O interesse maior de Beatriz era
claramente no campo dos timbres, aí sim, ela indicava a região onde tocar, a ação – percutir,
raspar, deslizar etc. – e a baqueta a usar. Certamente, o espaço da imprecisão como concepção
musical fez com que minha interação no ato de tocar também sugerisse caminhos, mas as
ideias sonoras e musicais foram de Beatriz.
Embora não seja o foco principal desta pesquisa, parece-me importante refletir a
respeito de uma questão que surgiu na descrição do processo criativo de Beatriz, também
presente nos exemplos a seguir: professor e aluno fazerem música juntos contribui
efetivamente para a formação musical do aluno?
Certamente, o professor tem mais bagagem musical e experiência do que o aluno, mas,
em propostas como essa, o professor transita entre duas posturas: numa, deixa de ser professor
e os dois instrumentistas fazem música juntos; na outra, torna-se observador atento da atuação
do aluno e do fluxo musical, para intervir com seu conhecimento no momento mais adequado
e ampliar o repertório de possibilidades do aluno. Contudo, para transitar adequadamente
entre uma postura e outra, é preciso que se guie por pressupostos diferentes da concepção
tradicional de uma aula, em que o professor ensina e o aluno aprende. Segundo Brito (2004, p.
121), Koellreutter dizia: “Eu só respondo como professor, quando o aluno pergunta. Eu faço
música com ele. A gente se autoeduca coletivamente por meio do debate, do diálogo”.
134
Faz-se necessário salientar que construir esse espaço agenciador e transformador não é
tarefa fácil, pois as concepções vigentes, em que a maioria de nós – professores de música –
fomos formados, estão construídas sobre um pensamento em que reinam a linearidade, as
dicotomias, as hierarquias e a compreensão de um mundo segmentado, tanto no conhecimento
como nas relações humanas. Transcender esses paradigmas é tarefa que exige grande
disponibilidade e flexibilidade diante de um espaço onde as certezas são substituídas pelo “vir
a ser”, a uniformidade pela diversidade, a inércia pela iniciativa, a estabilidade pelo
movimento e o controle constante pela liberdade responsável. Permitir esse novo espaço na
sala de aula propicia um terreno profícuo para que o impulso criador floresça e se desenvolva.
3.3 “Mistério”
refletir sobre caminhos que auxiliem o professor na condução desse processo criativo e sobre
quatro mãos – professora e aluna – e disparou o estudo de outros conteúdos musicais em aula.
Apresentando Laura
Laura é aluna da EMIA desde 2008, quando ingressou com 5 anos de idade.
coral, em 2011 e 2012. Começou suas aulas de piano no segundo semestre de 2011, as quais
frequenta até este ano de 2014. Atualmente, além das aulas de piano, que são optativas, faz o
curso de música, que escolheu este ano, cumprindo as orientações do currículo obrigatório
Laura é uma criança quieta, não se expõe muito e faz o que se propõe com interesse e
segurança aos pequenos desafios propostos em aula. Apesar de não ter piano nem teclado em
sua casa, segue as orientações de estudo com dedicação, indo à escola estudar uma vez por
semana, por trinta minutos. Habitualmente, não traz composições para a aula, apesar de
relatar que gosta de brincar e inventar músicas nas horas de estudo e demonstrar bastante
Antes da proposta da livre improvisação a quatro mãos, Laura já tinha feito essa
atividade três ou quatro vezes, mas sempre como solista. A improvisação não foi registrada
em vídeo, mas é referência para o estudo da composição de Laura, pois dali surgiram
passagens cromáticas cuja sonoridade a encantou.
A primeira reflexão disparada pela livre improvisação trata do prazer que Laura
demonstrou ao executar escalas cromáticas ao piano.
A partir da concepção de que as ideias das crianças partem sempre de algo concreto, o
motivo central da composição “Mistério” surgiu das passagens cromáticas que emergiram
espontaneamente na livre improvisação e muito agradaram Laura. Ao observar que o
cromatismo a tinha encantado, debruçamo-nos sobre ele: nomeando, aprendendo o dedilhado
tradicional119 e exercitando escalas cromáticas por toda a extensão do piano. Sua alegria foi
perceptível, provocada pela sensação físico-sonora ao deslizar da mão sobre o teclado do
119
Começando pela nota dó, por exemplo: 1 3 1 3 1 2 3 1 3 1 3 1 2 3 1....., movimento ascendente; 2 1 3 1 3 1 3
2 1 3 1 3 2 1 3.... e assim por diante, no movimento descendente.
137
piano. De minha prática pianística, recordo muitos momentos de satisfação ao tocar escalas de
todos os tipos no piano.
Delalande (1995, p. 5, tradução nossa) afirma que a música está intimamente ligada ao
gesto, seja quando tocamos um instrumento, dançamos ou mesmo quando a ouvimos. O autor
ainda aponta que “a criança conhece, por assim dizer, o mundo exterior por meio de suas
mãos e gestos. Ela adquire um certo número de esquemas motores que lhe dão domínio do
seu entorno. O pianista [...] também adquire, por meio do exercício, automatismos
motrizes”.120 Pode-se comparar, também, o prazer que o movimento corporal causa às
crianças com a profunda fonte de prazer que “as escalas que sobem sozinhas, às vezes,” são
para os pianistas (Delalande, 1995, p. 17-18, tradução nossa).
“Mistério” – a aula
Descrevo a aula em que Laura me apresentou sua composição “Mistério”, sua lição de
casa da aula anterior.
Ela entrou na sala para sua aula semanal de piano com uma postura mais expansiva e
vivaz, bem diferente de sua quietude e discrição habituais. Sua alegria chamou minha atenção
e brinquei com ela:
Professora: Oi, Laura! Viu o passarinho verde?
Laura: Fiz o que você me pediu – disse, esboçando um leve sorriso.
Professora: O quê?
Laura: A música... do cromatismo – e, assim, a aula começou.
Destaco esse pequeno diálogo para mostrar o envolvimento significativo de Laura com
seu processo criativo. Em décadas de sala de aula junto a crianças, posso afirmar que elas se
revelam a nós por meio de pequenas atitudes, expressões ou poucas palavras. Assim, Laura se
mostrou por essa nova vivacidade e ao sorrir discretamente quando respondeu “fiz o que você
me pediu”, apresentando sua música. Participar, criar, envolver-se são componentes que
podem agregar significação à aula de piano, além de serem recursos importantes para o
próprio aprendizado. Campos (2000, p. 38) afirma a importância da participação ativa do
120
“El niño toma conocimiento, por así decirlo, dle mundo exterior por medio de sus manos y sus gestos.
Adquiere un cierto número de esquemas motrices que le dan dominio sobre su entorno. El pianista[...] adquiere,
por medio del ejercicio, automatismos motrices” (Delalande, 1995, p. 5).
138
aluno no aprendizado de piano, “como ser investigador e criador, não mais como apenas um
intérprete”. Gainza reforça o valor do protagonismo do aluno em seu aprendizado como
condição para um saudável desenvolvimento musical:
Depois de tocar sua música, Laura me informou que ainda faltava um final, pois não
havia conseguido pensar em um. Começamos, então, um trabalho de criação para ajudá-la a
descobrir o final que considerasse mais adequado à sua música. A seguir, o diálogo e a
descrição de alguns dos procedimentos adotados:
Professora: Você acha que a duração da música está curta, longa ou o tempo certo?
Laura: Queria que fosse um pouco mais comprida.
Professora: você pensa em usar mais uma vez o cluster que me disse que parece um
susto? Lembra que me disse que era pra deixar a música mais interessante?
Laura: Eu podia deixar bem pro finalzinho da música.
Professora: Pode ser... precisa experimentar.
Chamei sua atenção para a região do teclado que predominava em sua música: a região
média. Sugeri que ela poderia usar outras regiões, pois a mudança poderia soar como uma
novidade. Laura ouviu, pensou um pouco e disse que queria mesmo ficar na região média,
mas, no fim do processo, quando já decidira dois clusters para o final da música (11min29s –
11min37s), voltou atrás e acrescentou uma pequena figura cromática na região grave
(11min38s – 11min46s), o que acredito que tenha sido uma boa ideia, pois deu mais equilíbrio
à peça.
Outro proposta para ajudá-la foi a de tocar a música até o final provisório e seguir
improvisando, pois a partir da improvisação poderia surgir alguma ideia que a agradasse e
fosse interessante para o fim que almejava. Assim foi feito, e Laura gostou de um cromatismo
121
“[...] la persona que aprende música debe hacerlo desde sí misma, constituyendose en protagonista activa de
su propio aprendizaje. [...] Sí no le permitimos al alumno que pregunte, que invente, y que procese luego sus
propias experiencias, lo condenamos a convertirse en un recipiente pasivo de datos que le son
suministradosdesde afuera, lo cual dificultará, naturalmente, sus procesos de desarollo” (GAINZA, 2008, p. 175-
176).
139
que tocou em movimento contrário, ideia que acrescentou depois do cluster (10min45s –
10min55s). Dessa forma, continuamos o trabalho de criação até Laura se sentir satisfeita com
a finalização de sua música.
A partir dessa premissa, tentei não conduzir a criação de Laura, mas oferecer recursos
para ampliar suas percepções, auxiliando em suas escolhas, porém receio que a certeza de tal
procedimento nunca é absoluta. No entanto, considero que a avaliação constante do processo
da aula e a observação atenta de reações, comportamentos e desenvolvimento musical do
aluno podem indicar se estamos no caminho correto.
Uma semana após a aula descrita, gravamos em vídeo o depoimento de Laura sobre
seu processo de criação de “Mistério”. Falar a respeito de seu processo, gravar e ouvir a
própria fala têm sido recursos usados em diversos momentos de suas aulas de piano.
140
A convivência com as crianças tem me revelado que elas gostam muito de usar
tecnologias, mesmo as mais simples como um gravador de áudio ou de vídeo que há na
maioria dos celulares atualmente. Esses recursos tecnológicos fazem parte do cotidiano de
grande parte das crianças e adolescentes brasileiros, nas diversas classes sociais e, para o
professor, podem ser ferramentas valiosas em sala de aula e, posteriormente, meio de análise
para um aprofundamento do pensar/fazer musical das crianças. Beineke (2009, p. 145)
ressalta que a perspectiva da criança sobre sua relação com a música muitas vezes não é
percebida no momento em que elas estão compondo, mas sim quando “elas falam sobre o que
pensam das suas experiências em sala de aula”. Dessa forma, mesmo após a gravação, a fala
da Laura serviu para retomarmos juntas algumas de suas afirmações, aprofundando sua
consciência tanto dos conceitos musicais emergentes como de seu próprio processo musical.
Burnard (2000) defende algumas proposições que corroboram com a proposta feita à
Laura de falar sobre seu processo de composição. A pesquisadora defende que os professores
estimulem as crianças a discutir e refletir sobre suas experiências musicais, pois essa reflexão
pode ajudá-las a ter uma consciência mais profunda de seu fazer musical:
122
“Our aim as music educators should be to facilitate a form of music education that focuses on genuine
experiences of children being improvisers and composers rather than acting out a pre-defined model.
Subsequently, we must encourage and assist the children to think critically and creatively. […] Children should
be encouraged to: (i) discuss what it is that is intrinsic to their own musical experience; (ii) identify themselves
not only as music makers but as music creators; and (iii) encouraged to reflect on what it is to improvise and
compose. If we acknowledge the importance of the words of children then they will socially construct the ways
they compose and improvise in the classroom. Sharing understanding will help the children to recognise why
they are doing a certain activity and what they are doing, leading to an awareness of how they are doing it. Thus,
by giving children the opportunity to articulate their understandings we enhance learning” (BURNARD, 2000, p.
21-22).
141
123
Laura se refere ao teclado do piano e não ao teclado eletrônico. Ela usa esse termo porque muitas vezes
improvisávamos também nas cordas do piano.
124
Brincadeira da aranha é o apelido que demos às escalas cromáticas, na alusão à imagem dos dedos
percorrendo o teclado.
125
Laura se refere ao começo da variação (10min07s – 10min13s) que ela havia criado para “Palito chinês”,
primeira peça musical de Palitos chineses, de Gainza.
142
Laura: Eu gostei mais da parte da música dos sustos, porque tá bem leve a música e
daí do nada vem um... um susto assim! (Laura faz o gesto com as mãos como
se tocasse o cluster.)
Professora: Que parte é? Mostra pra gente.
Laura: Tem essa que é a primeira parte – e toca.
Tem aqui... – e toca outra parte.
Ainda tem outra parte que toca assim – e toca novamente.
Professora: Quando você fez a música, você pensou isso? De fazer um susto?
Laura: Sim.
Professora: Aí você usou esses clusters.
Laura acena positivamente com a cabeça.
Professora: Mais alguma coisa que você queria falar dessa música?
Laura: Hummm... Que eu não sabia, do nome... a questão do nome. Eu não sabia qual
nome pôr. Daí eu fiquei nisso! Daí, né, minha mãe falou, tipo assim: “tá sendo
um mistério pra você pôr o nome nessa música, né, como todas”. Daí eu peguei
e pus o nome dela de “Mistério”.
A professora ri.
Laura: Eu achei legal o negócio assim... mistério.
Professora: Você acha que combina com a música?
Laura: Eu acho.
Professora: E... como todas, por quê? Não entendi. Como assim?
Laura: Porque todas as músicas é uma coisa pra mim [sic] escolher o nome; é muito
difícil.
Professora: Ah, é? Difícil?
Laura: Algumas delas nem fui eu que escolhi direito, foi mais minha mãe. Minha mãe
deu uma ideia, eu elaborei a ideia e pus o nome, ou ela falou o nome e eu pus o
nome mesmo. Porque pra mim, a coisa mais difícil da música não é inventar
ela [sic]; pra mim inventar é bom, eu brinco no piano um monte de vezes. Pra
mim, inventar é bom, é legal, o meu difícil é por o nome da música [sic].
Uma primeira particularidade que se pode observar nas palavras de Laura é sua forma
de se relacionar com a criação. Para ela, o processo de criação de uma música é uma
brincadeira, um jogo: “[...] pra mim, inventar é bom, eu brinco no piano um monte de vezes”.
As palavras acima reafirmam o que Brito (2007, p. 70) indica: “As crianças cantam ou
tocam sem se preocuparem com regras, estilos, ou mesmo, com a permanência do que
fazem”. Elas se relacionam com o sonoro e com o musical da mesma forma que brincam e,
nesses momentos de puro jogo, apreendem e aprendem sobre o mundo, constituindo um
conhecimento significativo. Laura demonstrava essa postura ao me apresentar sua
composição e quando falava sobre sua música.
Como Brito (2007, p. 70) afirma, do contato e da interação com o entorno “emergem
mudanças contínuas que agregam, ao fazer musical, variáveis, possibilidades, condições,
novos conhecimentos”. Nesse caso, as possibilidades e os novos conhecimentos surgiram do
contato de Laura com o instrumento e com a música, por meio de explorações sonoras,
melodias tiradas de ouvido, partituras, improvisações, exercícios técnicos, conversas, enfim, o
verdadeiro caldeirão de abordagens musicais, que constituem as aulas semanais de piano e
seus poucos momentos individuais de estudo.
Considero que a verbalização de sua experiência fez com que ela se apropriasse mais
conscientemente do conhecimento adquirido. Desenvolver uma prática reflexiva com o aluno
pode contribuir para que ele forme um conhecimento musical significativo, além de ampliar a
natural especificidade do estudo de um instrumento musical.
variação que fizera sobre “Palito chinês” para ajudar seu processo criativo, para aquecer e
deixar que as ideias surgissem: “[...] E, na hora de começar, eu fiquei brincando, brincando e
fiquei sem ideia pra começar e aí comecei com isso, essa parte”. Nota-se que o fato de ela ter
incorporado a sua música algo que já havia feito não a incomodou de forma alguma, o que
encontra ressonância nas análises de Beineke, que conclui que:
[...] as crianças veem com naturalidade a ideia de que podem utilizar em seus
trabalhos ideias que surgiram em trabalhos de outros grupos. Segundo
Mardell, Otami e Turner (2008, p. 118), quando as crianças têm espaço para
partilhar suas ideias e refletir a respeito delas, conseguem construir um corpo
de conhecimento coletivo sobre o objeto em questão, permitindo que elas
sigam modificando e adicionando ideias e construindo compreensões
coletivas sobre como o grupo trabalha (BEINEKE, 2011, p. 101).
A atitude de Laura, clarificada pelas ideias de Beineke, pode fornecer pistas a nós
professores sobre a liberdade que as crianças têm com a composição, indicativa de uma
compreensão da criação diferente da do fazer musical adulto. Além disso, é bom lembrar que
as crianças têm muitos recursos e sabem usá-los intuitivamente quando lhes é dado um espaço
de protagonismo e de confiança em suas possibilidades de ação.
porque está bem leve a música, daí, do nada, vem um susto assim”. Situações como essa
podem indicar ao professor como se estrutura o pensamento musical dos alunos, além de,
potencialmente, se constituírem em valiosas estratégias pedagógicas para a construção do
conhecimento musical, afirmação corroborada por Brito (2007, p. 184):
É importante reiterar, que para que essas importantes evidências emerjam, é necessário
um espaço educacional que possibilite a criação, a construção de significados e
conhecimentos, o que só acontecerá se o professor estiver disposto a escutar atentamente o
aluno e a incorporar, em sua prática, proposições que estimulem um fazer mais criativo.
Como já foi dito, assumir essa postura é difícil para muitos professores de piano, devido a sua
formação musical, em que a criação só tinha lugar nas aulas de composição, e só depois de
muitos anos de estudo. Campos (2000, p. 34) nos alerta que não é fácil ensinar estimulando a
criatividade, a imaginação e o desenvolvimento da expressão dos alunos, mas que a prática
pode ser muito gratificante, ainda mais se criarmos um espaço de possibilidades onde ideias
musicais possam emergir e se concretizar. Brito define esse espaço como:
Gainza (2002, 2008, 2013) há tempos aponta a importância de se buscar uma maior
fundamentação às práticas, isto é, transcender o legado das duas primeiras épocas da
educação musical que incorporaram o corpo/movimento e a criatividade às práticas
146
Por fim, ao rever diversas vezes a gravação da música e o depoimento de Laura, faço
uma última reflexão a respeito da aula de piano como deflagradora de experiências singulares
no encontro entre música, aluno e professor. Experiências que só podem acontecer se
estivermos abertos a elas, permitindo o “complexo tempero entre o planejado e o vivido”
(NEELANDS, 2000, p. 54126 apud Cremin, Burnard, Craft, 2006, p. 117). Com certeza, é
preciso ter um planejamento e segui-lo, mas, simultaneamente, deve-se estar atento para as
possibilidades que possam surgir no caminho e não deixar que o momento disparador de uma
experiência única se perca. Experiência repleta de significado e conteúdos musicais e de vida.
Não é possível prever esse momento especial, em que professor e aluno, totalmente
integrados no fazer, compartilham uma experiência, mas, sim, estarmos atentos a ele, ao que
pode vir a acontecer.
Ana Cristina Rossetto Rocha, flautista e educadora musical, alude a uma viagem na
qual se navega por um mar de possibilidades, e para que isso possa acontecer é preciso:
126
NEELANDS, J. Drama sets you free or does it? In: DAVISON, J.; MOSS, J. (Eds.). Issues in English
teaching. London: Routledge, 2000.
147
Apresentando Arthur
Arthur é aluno da EMIA desde 2009, quando tinha 6 anos de idade. Ele frequenta as
aulas em grupo com linguagens integradas do currículo obrigatório, desde seu ingresso até o
presente ano de 2014, e, desde o primeiro semestre de 2012, tem também aulas de piano.
Arthur é muito imaginativo em tudo que faz. Gosta muito de inventar histórias, até
pequenos roteiros, e transita do som à imagem e da imagem ao som com muita facilidade.
Suas ideias brotam com tamanha fluidez que um dos desafios que lhe tenho proposto é
organizá-las e dar forma a uma de cada vez, pois, em muitos momentos, esse turbilhão de
ideias acaba por dispersá-lo, afastando-o do objetivo primeiro, que é fazer música. Depois de
2 anos trabalhando juntos, noto que Arthur vem trilhando um caminho de amadurecimento
musical.
127
Em diversas aulas, brincava com Arthur, provocando-o: “Afinal, essa é uma história musicada ou uma música
historizada?”
148
Arthur tinha 8 anos quando compôs “O gigante”, numa de suas primeiras aulas de
piano. O processo começou quando perguntei onde ele imaginava que o som do piano era
produzido. A partir dessa pergunta, desenvolveram-se algumas etapas de trabalho: olhar o
piano fechado e imaginar o que teria dentro dele, “tirar a roupa do piano”, explorar seu
mecanismo, desenhá-lo e fazer música.
Apesar de descrevê-las linearmente, esclareço que essas fases não foram sucessivas,
mas se entrelaçaram, o que se relaciona à ideia postulada por Brito (2007) a partir das
pesquisas que levaram à teoria do dinamicismo, de Esther Thelen (de 1998),132 entrecruzando-
-a com Delalande. Brito (2007, p. 73-74) esclarece que a teoria do dinamicismo de Thelen
129
“Porque los sentimientos están asociados a una cierta experiencia de los propios movimientos, de la propia
respiración. Uno está vivaz cuando está contento, lento cuando sueña. Nuestros gestos son característicos de
nuestras emociones y están inscriptos en la música [...]. Lo que es seguro y ampliamente constatado en la
mayoría de las culturas es que las conductas musicales tienen en general una intención simbólica, es decir que
los músicos no hacen sonido por el sonido mismo, ni estructuras sonoras por las estructuras sonoras mismas sino
que todo eso remite a otra cosa, ua esa “otra cosa”pertenezca al orden de las imágenes o de los afectos o de la
mitología” (DELALANDE, 1995, p. 22).
130
É interessante, aqui, destacarmos que, na segunda metade do século XX, a proposta musical de Pierre
Schaeffer ao criar a música concreta foi justamente de se opor a isso, que Delalande afirma como realidade da
maioria das culturas, direcionando o foco para o sonoro, o som em si mesmo, destituído das imagens, das
significações, enfim, o som puro e a escuta reduzida.
131
“La investigación del sonido y del gesto no es sino un juego sensorio-motor, la expressión y la significación
en música se aproximan al juego simbólico y la organización es un juego de regla” (DELALANDE, 1995, p. 16).
132
Esther Thelen (1941-2004) foi psicóloga, cientista cognitivista e professora da Universidade de Indiana
(EUA) e presidiu a Sociedade Internacional para Estudos Infantis, entre 1996 e 1998.
151
A partir dessas ideias, pode-se observar que o processo de criação de Arthur foi se
complexificando à medida que ele foi incorporando e mesclando sons, imagens e histórias.
Passado um tempo, interferi e propus a ele que inventasse uma música com o efeito
sonoro que tanto o encantara. Arthur rapidamente aceitou a ideia e, decidido, disse que queria
tocar “três glissandos mais rápidos e um mais longo”, estendendo assim, a duração do último
glissando com a colocação do pedal 3C (para esclarecer: tomando-se a semínima como pulso,
o resultado sonoro foi de três semínimas e uma mínima). Ao ouvir a execução, comentou que
os primeiros eram “os passos do gigante” e o último glissando (a mínima) era um “prédio
sendo pisoteado por ele” (16min10s – 16min19s). Logo em seguida, tocou o motivo
133
Linda Smith é professora e pesquisadora do departamento de Psicologia da Universidade de Indiana (EUA).
Publicou com Esther Thielen o livro A Dynamic Systems Approach to the Development of Cognition and Action.
Cambridge, Massachusetts: The MIT Press, 1994.
152
acrescentando mais três glissandos, em metade do bloco das cordas, e disse: “são os passos do
gigante de novo, mas agora em cima de casas e não de prédios” (16min20s – 16min24s).
Perguntei a ele por que estava tocando o glissando só até a metade do grupo de cordas e ele
me respondeu: “ué, eu já não falei que eram casas, e não prédios?”.
O glissando nas cordas graves fez surgir a imagem de passos de um gigante, o que
desencadeou o resto da pequena história de Arthur, fazendo-o procurar no piano os sons para
contá-la. Na verdade, não foi possível distinguir se o som remetia à imagem ou se a imagem
buscava o som, parecendo se tratar de um processo simultâneo.
Minutos depois dos “passos do gigante sobre as casas”, Arthur se levantou, foi para o
teclado e fez alguns testes, aprovando uma segunda ascendente com as notas sol e lá mais
agudas do piano (16min27s) para a chegada “de um porquinho muito pequeno, que se
assustou com o gigante que tentou esmagá-lo, mas correu muito depressa”. Depois de outras
experimentações, escolheu um glissando ascendente por todo o teclado para o porquinho
correndo (16min29s – 16min33s). Para finalizar, a volta aos três passos iniciais do gigante
(três semínimas, tomando-a como pulso), consolado ou não com a fuga do porquinho
(16min34s – 16min36s).
Arthur ficou muito contente com sua criação e a repetiu muitas vezes, ao longo
daquele ano. As palavras de Brito descrevem muito bem aqueles momentos de Arthur: “A
criança é um ser ‘brincante’ e, brincando, faz música, pois assim se relaciona com o mundo
que descobre a cada dia” (BRITO, 2003, p. 35). Posso afirmar que essa composição teve
grande significado para Arthur, que, quando a tocava, “transformava-se em sons”, tomando de
empréstimo a expressão de Brito.
Arthur é meu aluno desde 2012 até os dias atuais, no ano de 2014, e sempre
demonstrou muita alegria em voar nas asas de sua imaginação, chegando a sofrer quando seus
153
companheiros não compartilham de seus voos. Destaco esse aspecto de sua personalidade
para situar a música “O gigante” nesse contexto de fantasia e imaginação. Contudo, é
importante ressaltar que, ao longo de quase dois anos de contato com Arthur, venho
observando suas idas e vindas para o mundo de outras fantasias, próprias dos meninos
grandes. Essas mudanças refletiram nas aulas de piano, propiciando também a possibilidade
de descobertas técnicas e conhecimentos que levaram a uma compreensão mais intelectual,
sem perder a imaginação e a criatividade, tão preciosas em Arthur. No entanto, logo nas
primeiras aulas, decidi respeitar sua individualidade e propor um primeiro contato com o
instrumento que permitisse o espaço da criação, conectado com outras formas de expressão –
dramatização, histórias, desenhos etc. –, pois percebi que imaginar e criar eram as formas
mais produtivas de se chegar a um aprendizado significativo para ele. Fundamento essa
decisão nas considerações de Gainza, que afirma que o objetivo principal de todo professor
deve ser a conexão com a “natureza profunda e com as necessidades de desenvolvimento de
seus alunos” (GAINZA, [s.d.]) através da música, e também de Brito, que aponta para uma
educação musical que considere a criança em primeiro plano, não a música:
“Ideia musical”
154
A pequena frase musical acima foi inventada por Arthur, quando ele esperava, sozinho
na sala, sua aula começar. Do lado de fora, ouvi que ele já tinha tocado várias vezes a mesma
frase; esperei por alguns minutos e, quando percebi que ele parara de tocar, entrei na sala.
Segue o pequeno diálogo que se deu, então:
Professora: Oi, Arthur! O que você tá tocando?
Arthur: Ah! Só uma ideia.
Professora: Toca pra mim?
Arthur: Tá
Professora: Muito legal, essa sua ideia. É uma ideia musical, né?
Arthur: É... – pensou um pouco. – Uma ideia musical.
Esse pequeno diálogo e a pergunta não feita me fizeram pensar muito, e cheguei a
outra questão: por que nós, professores, falamos tanto em sala de aula e disponibilizamos tão
pouco espaço para perguntas, sejam dos professores aos alunos ou dos alunos aos
professores? Não seria, ainda, resquício de uma educação herdada de séculos atrás, da qual a
premissa “professor ensina, aluno aprende” ressoa em nossos ouvidos? Seria a constante
preocupação de passar todos os conteúdos que dedicadamente selecionamos para a aula? Ou
falta de interesse em ouvir o que eles têm a nos dizer, por acreditarmos que temos muito mais
a dizer a eles do que eles a nós? Talvez todas essas as respostas estejam corretas, pois nossa
atuação em sala de aula ainda é permeada por ideias de educação cristalizadas há séculos e,
mesmo que busquemos transformar a relação triádica professor-aluno-conhecimento, ainda
esbarramos em posturas automatizadas em nossa rotina educacional. Precisamos aprender a
estar presentes, atentos, disponíveis para ouvir e cautelosos para falar, pois muitos de nós não
vivemos esse modelo de educação quando alunos, nem em nossa formação pedagógico-
-musical.
155
Seria desejável estar em sala de aula como esse mestre que promove encontros entre a
criança e a música, a criança e ela mesma, e a criança e nós, professores. Essa postura tem que
ser construída, é preciso estar totalmente imerso no contexto da aula e, ao mesmo tempo, à
parte, para observar e saber o momento ideal de intervir.
individual quanto coletivo. Nesse caminho, podemos voltar ao passado, enquanto construímos
nossas marcas no presente, nossa história” (OLIVEIRA, 2009, p. 22). Enfim, aprender com o
registro e caminhar para a transformação.
A ideia
Destaco do diálogo com Arthur sua resposta à pergunta sobre o que estava tocando:
“Ah! Só uma ideia”, não uma música ou mesmo “não é nada não”, como já dissera em outras
ocasiões.
De acordo com o Dicionário Grove de Música (1994, p. 624), motivo é “uma ideia
musical curta, podendo ser melódica, harmônica ou rítmica, ou as três simultaneamente.
Independente de seu tamanho, é geralmente encarado como a menor subdivisão com
identidade própria de um tema ou frase”. Koellreutter (1990, p. 90) define a mesma palavra
como “unidade estrutural elementar melódica e/ou rítmica com duração correspondente a
duas ou três unidades de tempo”. A partir dessas definições, identificamos na ideia de Arthur
o motivo melódico-rítmico que gerou a frase musical.
157
Sua explicação revela a total integração de seu fazer e seu pensamento musical,
expresso nesse pequeno motivo. No contato diário com crianças, é possível observar que essa
inteireza sempre está presente, principalmente, nas crianças menores. Infelizmente, com o
passar dos anos, vamos nos impregnando dessa forma desconectada e fragmentada de se
relacionar com tudo e com todos. Felizmente, Arthur, com 8 para 9 anos, ainda apresenta essa
ligação entre corpo e mente, fazer e pensar, sem se contagiar pelo dualismo ainda tão presente
nos contextos educacionais. Ressalto, mais uma vez, a importância de se criar espaços
agenciadores dessas conexões para que as crianças transitem por essas formas de lidar com o
ambiente e com os objetos do conhecimento. Brito (2007, p. 70) nos alerta para como a
interação com o ambiente muda o fazer musical das crianças, muitas vezes agregando novas
possibilidades e novos conhecimentos, mas às vezes com “limitações decorrentes de
territorializações que tendem a maiorizar os modos de fazer e considerar a música”,
entendendo-se maiorizar como imposição de modos consolidados do fazer musical.
158
A performance
Registros musicais
Pedro Paulo Salles, músico e prof. dr. da USP, desenvolveu um trabalho sobre o uso
de várias notações musicais no processo de construção musical da criança que aponta a
importância da criação de notações pelas próprias crianças e critica a imposição da escrita
tradicional sem qualquer construção de significado (SALLES, 1996, p. 151-152).
160
sobre a Índia, dizendo que lá a ação musical é direta, a partir dos ouvidos, sem a interposição
dos olhos” (CAGE, 1985136 apud CAMPOS, 2000, p. 158).
Campos (2000, p. 162) ainda destaca que a escrita criada a partir das improvisações,
para a qual frequentemente se precisa de uma bula, aproxima-se da grafia contemporânea e
afirma que o contato com diferentes grafias desde o começo do estudo do instrumento pode
evitar bloqueios futuros do aluno ao se deparar com outros tipos de leitura.
Campos (2000, p. 164) considera que a leitura de cifras deve ser introduzida no estudo
do piano “o mais cedo possível, juntamente com o trabalho de escalas, música ‘tirada de
ouvido’ e transposição”. Também sugere que se parta do pentacorde e se pratique em todos os
tons, tocando tríades sobre todas as notas das escalas, e que o professor “chame a atenção do
aluno para ouvir tudo que está sendo pesquisado. O ouvido deve vir sempre em primeiro
lugar, mesmo no momento em que procuramos compreender teoricamente o que está sendo
estudado” (grifos do original). Por fim, a autora conclui que “o importante é o iniciante tomar
a maior consciência possível, criando relações entre o auditivo, o teórico e seu registro”
(CAMPOS, 2000, p. 165).
137
Delalande usa a expressão notaciones demasiado precisas para se referir principalmente à precisão de alturas
e durações da escrita tradicional.
138
“Cada elección de notación pone el acanto sobre un punto de vista. Pero, si usted anota una vez las
intervenciones, otra vez las alturas, otra, el brillo armónico o cualquier particularidad morfológica, no se arriesga
a crear esos automatismos de filtración. En el fondo, la única solución que puede resultar verdaderamente
perjucial, consiste en elegir una vez por todas una convención morfológica y manternela durante todo el año. Es
en ese caso, cuando la notación tiene un efecto simplificador y empobrecedor irreversible. Cuando la música se
reduce, poco a poco, a una caricatura” (DELALANDE, 1995, p. 129-130).
163
Por fim, considero que a sugestão de se criarem notações a partir das necessidades das
composições dos alunos, presente no artigo de Salles (1996), a confirmação na citação de
Delalande (1995) e as ideias de Campos (2000) justificam o interesse da descrição das
diferentes partituras que Arthur criou para “Ideia musical”.
As partituras de Arthur
“Ideia musical” foi uma ótima oportunidade para Arthur avançar na apropriação da
escrita tradicional, pois o motivo melódico-rítmico que criara tinha só três notas e ritmo muito
simples. Por isso, depois de muitas execuções, propus três desafios de notação, como ele
mesmo explicou “um desafio com três níveis, feito [o] de um videogame” (18min07s). A
seguir, apresento as propostas:
(1) Partitura com números de teclas: a primeira proposta feita a Arthur foi escrever
“Ideia musical” como quisesse, com a condição de que o registro fosse claro o suficiente para
que qualquer pessoa pudesse decifrá-lo, inclusive ele, na aula seguinte, caso não lembrasse de
memória. Disse-lhe que a partitura deveria funcionar como registro do que ele tocou. Arthur
164
optou por uma forma que usávamos bastante: desenhávamos um teclado e colocávamos
números nas teclas na sequência que eram tocadas, o ritmo era tocado de memória. Para ele,
“foi simples, eu fiz como números”, e apontou a partitura, começando a cantar e seguindo-a
com os dedos (18min22s – 18min40s):
1 e 2 – dó 2 3 – si 3 4 – dó 3
0 0 – rápido
/ – médio
X – longo
Por fim, Arthur também usou letras e sinais para os seguintes comandos:
R – repete
F – fim
inversão das notas
setas – na terceira repetição
Duas setas em um círculo indicam a inversão da segunda menor ascendente (si – dó),
tocada pela mão direita, para uma segunda menor descendente (dó – si), na terceira e na
quarta repetição (19min14s). Percebe-se que Arthur tinha consciência da inversão, de tal
forma que não escreveu simplesmente as notas na ordem invertida, mas fez um sinal para
165
indicá-la. No vídeo, nota-se sua percepção ao associar a inversão da figura melódica a uma
brincadeira de coordenação das mãos do seu cotidiano (19min18s – 19min30s).
Burnard (2004, p. 32) defende que, para desenvolver uma prática criativa, é essencial
compartilhar ideias e possibilitar discussões que considerem a visão dos alunos sobre sua
própria aprendizagem. A autora também aponta que:
aconteça talvez sejam uma das mais difíceis lições que os professores têm a
aprender139 (BURNARD, 2004, p. 32, tradução nossa).
(2) Partitura com nome de notas: a segunda proposta de notação sugerida a Arthur foi
a de registrar a música com os nomes das notas, indicando as durações. Não determinei como
ele deveria fazê-lo, como ocupar o espaço da folha ou quais sinais usar.
Ele fez duas linhas horizontais e dividiu o espaço entre as regiões grave, média e
aguda, colocando a inicial dessas palavras no lugar determinado. Na primeira linha, escreveu
as notas do primeiro compasso, que é tocado duas vezes, na segunda linha, as notas do
terceiro compasso, também tocado duas vezes, com a duração da última nota (SI) prolongada
na repetição.
139
“The realization that the teacher will be a powerful model for, and the facilitator of, thinking about learning is
important in enabling and supporting learning in both classroom and personal loci. Also important is the
acceptance that although the most common approach taken (as based on social constructivist theories) is one in
which the teacher teaches the learner how to learn, the reality is that classrooms will be busy with talk and with
learners learning from each other. Coming to understand pupils’ views on learning, wherever it occurs, and
allowing this to happen, may be one of the hardest lessons pre-service and practicing teachers have to learn”
(BURNARD, 2004, p. 32).
167
Para indicar as durações, Arthur usou os mesmos sinais da partitura com números. Ao
explicar o que fizera, disse que usou “as mesmas regras”, aparentemente se referindo tanto às
durações como às próprias notas, pois apontava para a partitura e cantava a melodia, não só as
durações (19min53s – 20min05s).
Ao ser indagado sobre a diferença de código que ele usou em relação às alturas, Arthur
concordou que os sinais para as durações foram os mesmos e indicou a sua divisão por região:
“Era assim: G, grave, médio, agudo” (19min45s – 19min50s). Chamei sua atenção para
mostrar que ele usara uma nova forma de registro das alturas em relação à primeira partitura e
perguntei como ele pensara, a resposta foi: “Fácil! Grave, mi... grave, médio, agudo”. Insisti
que era mais do que isso, que ele tinha escrito o nome das notas, e ele concordou: “Foi isso,
sim” (20min11s – 20min22s). Apesar de ter concordado com minha insistente afirmação de
que a escrita dos nomes das notas era mais precisa do que só a região, para Arthur, a diferença
entre as duas partituras não eram os nomes das notas, mas a indicação das regiões, essa era a
novidade que acrescentara ao registro.
(3) Partitura no pentagrama: o último desafio proposto a Arthur foi registrar sua ideia
musical no pentagrama. Em aulas anteriores, ele já se familiarizara com a pauta musical
escrevendo melodias curtas, sem figuras de duração ou fórmula de compasso, mas com as
claves, e ouvindo músicas que acompanhávamos seguindo a partitura.
Ouvir CDs acompanhando a partitura é um recurso bastante habitual nas minhas aulas
de piano com o objetivo de aproximar os alunos da escrita tradicional a partir de uma forma
de leitura global. Ela serve como um roteiro no qual as crianças identificam com certa
facilidade a correspondência entre o desenho gráfico das notas com os eventos sonoros, como:
o contorno dos desenhos melódicos com o movimento sonoro ascendente e descendente, a
sobreposição das notas nos acordes ou clusters com blocos sonoros, uma grande densidade
sonora com muitas figuras e pouca densidade com poucas figuras etc. A criança se aproxima
da leitura sem saber o que exatamente significa cada sinal, mas começando a relacionar o que
ouve e o que vê.
ao pensar em outra possibilidade de notação para as durações, os “novos processos”. Nas duas
primeiras partituras, ele usou os seguintes sinais para os sons longos, médios e curtos:
0 0 – “rápido”
/ – médio
X – longo
___ “pequeno”
______ médio
____________ longo
As palavras rápido e pequeno estão entre aspas pois são as denominações de Arthur
para os sons curtos. A precisão da notação da duração não era tão relevante para ele, nesse
momento. Sendo o papel do professor acolher o que o aluno propõe e, gradualmente, abrir
possibilidades para seu conhecimento crescer e se estruturar a partir da prática e da reflexão,
procurei agir dessa forma. Um exemplo disso é o registro das durações, depois da terceira fase
da escrita: escrevemos usando as figuras de duração que ele já conhecia, mas deixando
sempre claro que era só uma possibilidade dentre outras que ele mesmo criou. Assim, reforça-
-se o entendimento da função da escrita como registro do que é tocado e ouvido e se estimula
uma postura mais flexível diante das diversas possibilidades de escrita musical, já que ele
mesmo criou diferentes notações para um mesmo elemento.
Na EMIA, não aplicamos provas, mas fazemos avaliações constantes a cada aula,
observando o aluno e seu desenvolvimento musical ao longo do ano. Alguns professores
adotam a estratégia de avaliação conjunta de aluno e professor, no final do ano ou do
semestre. Para verificar o quanto Arthur já tinha se apropriado do mecanismo da escrita no
pentagrama, iniciei esse pequeno diálogo (20min37s – 21min27s):
Professora: ... E pra saber se é dó, si, você usou o quê?
Arthur: Ah! Clave de fá.
Professora: E aí? Como você descobriu onde era o dó se a clave mostra só o fá?
No fim da conversa (21min28s – 21min42s), perguntei se ele queria falar alguma coisa
para terminar a entrevista:
Professora: Então, uma despedida? Com a música de novo ou não?
Arthur: Ah! Se os créditos forem com essa música, aceito.
140
“El ojo y la construction intellectual no deben reemplazar la escucha y la sensibilidad. El papel no es más que
un auxiliary de la memoria, Pero no tome estas propuestas como reglas inviolables. El día que usted necesite
llamar la atención sobre la atura, hará partituras de altura y tendrá razón” (DELALANDE, 1995, p. 128).
171
É encantador observar o caminho que Arthur foi trilhando aula a aula. Suas
descobertas, suas conquistas pianísticas, seus aprendizados. Aprender a escrita tradicional é
muito gratificante, pois, como diz Campos (2000, p. 162), “no âmbito da educação musical,
não saber ler é como ser cego, fechado para as belezas que a música, ao longo se sua história
nos oferece”. No entanto, é imprescindível lembrar que fazer música não é só ler, como
afirma Paynter (1972, p. 9, tradução nossa): “Música não é colcheias e semínimas. Não são
pontos sobre o papel: são sons”.141 Por muito tempo, o ensino de piano ficou restrito à leitura
de partituras e exercícios técnicos, mas é preciso ir além, não desprezar a técnica e o
repertório escrito, mas ampliá-los, conjugando-os com outras possibilidades.
141
“Music is not quavers and crochets. It’s not dots on the paper: It’s sounds” (PAYNTER, 1972, p. 9).
172
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Da década de 1970, quando comecei a estudar piano, até o fim da década de 1980,
quando comecei a dar aulas para uma criança de 6 anos, observei poucas transformações
pedagógicas. No entanto, após os primeiros anos de imersão no cotidiano da sala de aula, a
necessidade de mudanças se fez premente. A busca por novas abordagens de educação
musical me fez refletir também sobre minha abordagem pianística. Uma questão presente
nesta dissertação surgia: por que o espaço para a criação não fazia parte da maioria dos
métodos e das práticas dos professores de piano? Dessa, surgiram outras questões sobre
princípios que poderiam fundamentar uma prática mais criativa e aspectos relacionados com o
pensamento musical das crianças. Esse questionamento norteou esta pesquisa.
mestres, apontam a criação como aspecto fundamental na educação musical. Ambos tecem
críticas ao ensino tradicional de música, que prioriza habilidades técnicas e de leitura da
escrita tradicional, focado num repertório limitado, sem espaço para a criação. É importante
destacar que os autores não negligenciam esses aspectos na formação do estudante, mas
criticam a redução do ensino musical a eles.
Dialogando com eles, as ideias de Moema Craveiro Campos e Maria Teresa Alencar
de Brito surgem como ramificações de um mesmo pensar, mas com personalidade própria.
Ambas foram alunas de Koellreutter e foram influenciadas por Gainza. Voltada para o ensino
de piano inserido no contexto da educação musical, Campos encontra na filosofia de
Aurobindo, na psicologia de Rogers e Jung, nas descobertas da física quântica, no movimento
da arte-educação e nas ideias de Paynter e Aston um leque de ideias que fundamentam sua
concepção de uma nova pedagogia pianística. Como um caminho que pode levar a uma
execução musical mais expressiva e prazerosa, a autora aponta a exploração das diversas
possibilidades sonoras do instrumento, o estímulo à relação afetiva do aluno com o
instrumento por meio do foco no interesse do aluno, diversas modalidades de improvisação e
a harmonia prática, associados à aprendizagem tradicional.
Brito defende uma educação musical que, entre outros aspectos, considere as ideias de
música das crianças em toda sua singularidade e espontaneidade. A partir da longa
experiência com crianças em aulas de música, do contato com o mestre e amigo Koellreutter,
das referências deleuzianas e da teoria dinamicista de Thelen, Brito compõe um corpo de
ideias sobre crianças e músicas. Encontrei muitos pontos de diálogo entre suas concepções e
as dos outros educadores apresentados nesta dissertação, como: a valorização do espaço
174
Beineke (2009) e Burnard (2004) também dialogam com Brito (2007) quando
ressaltam a importância de escutar e acolher a voz das crianças, respeitando sua singularidade
no fazer musical.
É importante ressaltar que, embora essas vozes estejam afinadas em diversos aspectos,
principalmente na valorização do espaço criativo na educação musical, creio que seja preciso
transformar ainda mais amplamente o ensino de música, pois a educação musical ainda
carrega princípios e condutas de um passado que precisamos transcender, como dizia
Koellreutter.
produções das crianças e a escuta de suas ideias sobre seu fazer musical, iluminados pela
pesquisa anterior, constituíram a essência do trabalho.
Por fim, como uma pesquisa qualitativa, estas reflexões procuram contribuir com a
educação musical, buscando novas possibilidades de fazer música e favorecer uma relação
professor e aluno para que haja um encontro significativo e criativo com o piano.
Como disse muitas vezes Koellreutter: “o que importa é jogar sua pedra no lago”, não
importando tanto seu tamanho, mas o movimento que produz.
177
REFERÊNCIAS
______. Aprendizagem criativa na escola: um olhar para a perspectiva das crianças sobre suas
práticas musicais. Revista da ABEM, Londrina, v. 19, n. 26, p. 92-104, jul./dez. 2011.
______. A composição em sala de aula: como ouvir as músicas que as crianças fazem? In:
HENTSHKE, L.; SOUZA, J. (Orgs.). Avaliação em música: reflexões e práticas. São
Paulo: Moderna, 2003. cap. 7, p. 91-105.
BOJÉ, H. Klavierschule für Anfänger. Viena: Universal/Stuttgart: Ernst Klett Verlag, 1982.
______. Por uma educação musical do pensamento: educação musical menor. Revista da
ABEM, Porto Alegre, v. 21, 25-34, mar. 2009.
______. Música na educação infantil: propostas para a formação integral da criança. São
Paulo: Peirópolis, 2003.
______. Koellreutter educador: o humano como objetivo da educação musical. São Paulo:
Peirópolis, 2001.
______. Pupil-teacher conceptions and the challenge of learning: lessons from a Year 8 music
classroom. Improving Schools, v. 7, n. 1, p. 23–34, mar. 2004.
______. A ideia de jogo em obras de John Cage e no ambiente da livre improvisação. Per
Musi, Belo Horizonte, n. 19, p. 83-90, 2009.
CREMIN, T.; BURNARD, P.; CRAFT, A. Pedagogy and possibility thinking in the early
years. Thinking Skills and Creativity, n. 1, p. 108-119, 2006. Disponível em:
<http://www.sciencedirect.com/science/article/pii/S1871187106000290>. Acesso em:
2 abr. 2013.
DICIONÁRIO Cravo Albin da Música Popular Brasileira. Rio de Janeiro: Instituto Cultural
Cravo Albim. Disponível em: <http://www.dicionariompb.com.br/>. Acesso em: 18
jun. 2014.
DICIONÁRIO GROVE DE MÚSICA. Ed. concisa. Editado por Stanley Sadie. Rio de
Janeiro: Jorge Zahar, 1994.
______. De tramas e fios: um ensaio sobre a música e educação. São Paulo: UNESP, 2005.
______. En musica in dependencia: educación y crisis social. Violeta Hemsy Gainza e Pepa
Vivanco. Buenos Aires: Lumen, 2007.
______. Pedagogía musical: dos décadas de pensamiento y acción educativa. Buenos Aires:
Lumen, 2002.
______. Método para piano: introducción a la música. Tomo I. Buenos Aires: Barry, 1998.
JEFFREY, B.; CRAFT, A. Teaching creatively and teaching for creativity: distinctions and
relationships. Educational Studies, v. 30, n. 1, p. 77-87, 2004.
JORDÃO, G. et al. (Orgs.). A música na escola. São Paulo: Allucci & Associados
Comunicações, 2012. Disponível em: <http://www.amusicanaescola.com.br/o-
projeto.html>. Acesso em: 2 jan. 2013.
KOELLREUTTER, H.-J. Educação musical hoje e, quiçá, amanhã. In: LIMA, Sonia Albano
de (Org.). Educadores musicais de São Paulo: encontro e reflexões. São Paulo:
Nacional, 1998. p. 39-45.
______. O Ensino da música num mundo modificado. In: KATER, C. (Org.). Educação
musical: cadernos de estudo nº 6. Belo Horizonte:
Atravez/EMUFMG/FEA/FAPEMIG, 1997d. p. 37-44.
______. Por uma nova teoria da música, por um novo ensino da teoria musical. In: KATER,
C. (Org.). Educação musical: cadernos de estudo nº 6. Belo Horizonte:
Atravez/EMUFMG/FEA/FAPEMIG, 1997e. p. 45-52.
183
______. Educação e cultura em um mundo aberto como contribuição para promover a paz. In:
KATER, C. (Org.). Educação musical: cadernos de estudo nº 6. Belo Horizonte:
Atravez/EMUFMG/FEA/FAPEMIG, 1997g. p. 60-68.
______. Sobre o valor e desvalor da obra musical. In: KATER, C. (Org.). Educação musical:
cadernos de estudo nº 6. Belo Horizonte: Atravez/EMUFMG/FEA/FAPEMIG, 1997h.
p. 69-78.
______. A imagem do mundo na estética de nosso século. In: KATER, C. (Org.). Educação
musical: cadernos de estudo nº 6. Belo Horizonte:
Atravez/EMUFMG/FEA/FAPEMIG, 1997i. p. 103-108.
______. Música, reparos e reflexões. In: KATER, C. (Org.). Educação musical: cadernos de
estudo nº 6. Belo Horizonte: Atravez/EMUFMG/FEA/FAPEMIG, 1997j. p. 109-112.
______. Terminologia de uma nova estética da música. Porto Alegre: Movimento, 1990.
MARINO, G. Gislene Marino Costa. Currículo Lattes, 30 jan. 2014. Disponível em:
<http://lattes.cnpq.br/1670558239548904>. Acesso em. 23 mar. 2014.
MARIZ, V. História da música no Brasil. 5. ed. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2000.
MATEIRO, T.; ILARI, B. (Orgs.). Pedagogias em educação musical. Curitiba: Ibpex, 2011.
(Série Educação Musical.)
PASCOAL, M. L. Maria Lúcia Senna Machado Pascoal. Currículo Lattes, 20 jun. 2014.
Disponível em: <http://lattes.cnpq.br/1957519903631670>. Acesso em: 25 jun. 2014.
PAYNTER, J.; ASTON, P. Sound and Silence. 6. ed. Cambridge: Cambridge University
Press, 1985.
185
RAMOS, A. C. Ana Consuelo Ramos. Currículo Lattes, 14 mar. 2014. Disponível em:
<http://lattes.cnpq.br/7857274153178162>. Acesso em: 21 mar. 2014.
REYNER, I. R. Pierre Schaeffer e sua teoria da escuta. Opus, Porto Alegre, v. 17, n. 2, p. 77-
106, dez. 2011. Disponível em:
<http://www.anppom.com.br/opus/data/issues/archive/17.2/files/OPUS_17_2_Reyner.
pdf>. Acesso em: 12 abr. 2013.
ROBERT Pace Piano: Forward-Looking Teaching. Roberto Pace Piano. Disponível em:
<http://www.leerobertsmusic.com/>. Acesso em: 25 jun. 2014.
______. Tratado dos objetos musicais. Trad. Ivo Martinazzo. Brasília: Dunb, 1993.
STAKE, R. E. Pesquisa qualitativa: estudando como as coisas funcionam. Trad. Karla Reis.
Porto Alegre: Penso, 2011.
______. Musical knowledge: intuition, analysis and music education. Londres: Routledge,
1994.
186
TOURINHO, I. Encontros com Koellreutter: sobre suas histórias e seus mundos. Revista
Estudos Avançados, São Paulo: IEA-USP, v. 13, n. 35, p. 209-223, 1999.
WIDMER, E. Ludus brasiliensis: 162 peças progressivas para piano. São Paulo: Ricordi,
1966. 5 v.
WINTER, L. L. O conceito de paradoxo para Ernst Widmer. Opus, v. 11, n. 11, p. 121-139,
2005.
ANEXO A
ANEXO B
Prezados pais,
Gostaria de manifestar meu interesse em fazer minha pesquisa de mestrado na aula de música
que seu filho frequenta em nossa instituição. O trabalho é orientado pela Profa Dra Maria
Teresa Alencar de Brito, do Programa de Pós-graduação em Música da Escola de
Comunicações e Artes da Universidade de São Paulo – USP. O título da pesquisa é Processos
criativos no ensino de piano, e o trabalho de campo envolve filmagem em vídeo das aulas e
depoimentos, em forma de entrevista livre, gravados regularmente durante o curso.
Isto posto, venho pedir sua autorização para o uso da imagem e do áudio registrados em vídeo
de seu(sua) filho(a). A finalidade é apenas ilustrar a discussão pedagógica da pesquisa. As
imagens serão exibidas apenas em contexto acadêmico, ou seja, na universidade, em
congressos ou palestras onde se desenvolve essa discussão. No caso dos depoimentos,
seu(sua) filho(a) é convidado(a) a falar sobre o próprio processo de criação musical.
Muito obrigada.
_________________________________
Maria Berenice Simões de Almeida
tel: 9 8199 6026
email: [email protected]
ANEXO C
AUTORIZAÇÃO
_____________________________________ _____________________________________
EMIA
Escola Municipal de Iniciação Artística
Rua Volkswagen, s/n – Parque Lina e Paulo Raia
Jabaquara – São Paulo – SP
5017-7552 – 5017-2192
[email protected] / www.apeaemia.org.br