Todas As Distâncias: Beatriz Nascimento
Todas As Distâncias: Beatriz Nascimento
Todas As Distâncias: Beatriz Nascimento
distâncias:poemas,
aforismos e ensaios de
Beatriz Nascimento
CONSELHO EDITORIAL
Alex Ratts
Ari Sacramento
Claudia Santos
Cristian Sales
Edimilson de Almeida Pereira
Eduardo Oliveira
José Henrique de Freitas Santos
Livia Natalia
Moema Parente Augel
Oswaldo de Camargo
Ricardo Aleixo
Ronald Augusto
Beatriz Nascimento
2015
EDIÇÃO
Guellwaar Adún &
Alex Ratts
FOTO DA CAPA
DIREÇÃO DE ARTE
Dadá Jaques
ARTE-FINALIZAÇÃO
Guellwaar Adún
REVISÃO
José Henrique de Freitas Santos
FICHA CATALOGRÁFICA
Dedicado a Rosa, Ana Maria e Regina (em memória), a Carmem, Zélia e Isabel,
irmãs da família Nascimento
Abertura I
Insegurança
Prima filha
Oração I
Paciência
Regina [I]
Betha
Vertigem
Sonho
O inesperado aconteça
Baby te amo
Um retrato...
Legbá
Ancestres
Urgência (Zumbi)
Urgência II (Quilombo dos Palmares)
Mais uma vez saudade
Aeroporto
Ilha de Vera Cruz (Primeiro Nome)
Transgressão (aula de micropolítica)
Os homens da minha rua
Mídia [I]
Quero escrever um conto
Odisseia – Ano 2001
As acontecências
Aforismos
Leituras de longe-perto
D
esde que nos conhecemos em outubro de 2007, alguns minutos antes do lançamento
inéditos de Beatriz Nascimento. Entre nós dois, uma almejava publicar os poemas de sua mãe
e passou a mantê-los em sua guarda para se dedicar a esta atividade. O outro tinha a intenção
de publicar os ensaios inéditos. Foi no apartamento em Botafogo que estivemos juntos duas
vezes, em março e novembro de 2013 para fazer a pré-seleção dos poemas. Posteriormente nos
Quem conheceu pessoalmente Beatriz Nascimento sabe de sua verve poética. Quem conhece
parte de sua obra, sobretudo os textos escritos e narrados por ela no filme Ori, dirigido por Raquel
Gerber, pressupõe que ali estão trechos de poemas ou, melhor, dizendo, textos em poemas. Poetas
negras e negros que tinham proximidade com ela conheciam esta produção e dialogavam com ela,
como Jônatas Conceição da Silva de Salvador, Éle Semog e Conceição Evaristo do Rio de Janeiro,
que por sua vez têm ligações com a publicação denominada Cadernos Negros realizada a partir de
São Paulo. No acervo de Beatriz Nascimento depositado no Arquivo Nacional há material de poesia
Beatriz havia feito uma compilação de alguns poemas e aforismos escritos entre 1983 e 1986,
depois acrescida com outros redigidos até 1991, com a ressalva de que alguns não são datados. É um
material que está datilografado, encadernado, com algumas revisões feitas à mão e assim intitulado:
DO
INFINITIVO
(Cósmicos)
(Cânticos)
O poema Urgência veio a público no Jornal do MNU em 1988 e foi republicado em Eu sou
Atlântica, assim como Inusitado, Rotas, Sol e Blue e Anti-Racismo. Todos os outros são inéditos.
Além dos poemas e dos ensaios, encontramos muitas anotações manuscritas e /ou datilografadas
sobre vários temas. Decidimos, então, que esta parte do material seria denominada de “aforis-
mos”, como Beatriz mesma intitulou um de seus escritos.
Alguns poemas, aforismos e ensaios trazem no original, manuscrito e/ou datilografado, a data
e, por vezes, o horário e a localidade em que foram escritos. Algumas vezes há dedicatórias que
também deixamos na versão final. Parece que é uma tentativa de Beatriz Nascimento de indicar as
coordenadas temporais e espaciais de sua trajetória. As pessoas mencionadas são referências de seus
percursos familiares e também da vida pública. Em cada texto aqui editado mantivemos, quando
havia, o ano e a dedicatória.
No tocante à grafia das palavras, usamos as normas do atual acordo ortográfico e, no caso,
de termos e expressões em outras línguas, procuramos ficar o mais próximo possível dos origi-
nais. Quando havia mais de uma versão, optamos por nos aproximar daquela que foi datilogra-
fada e/ou compilada por Beatriz Nascimento.
Esta coletânea é o resultado de duas leituras, duas intenções, que convergem: a da filha, que
é bailarina, e a do pesquisador, antropólogo e geógrafo, que também é poeta. Muitas vezes
C
onheço Beatriz Nascimento como mãe. Uma bela mulher no qual eu me identificava.
Simplesmente mamãe. Durante a minha infância eu ouvia uma palavra em especialvindo
de Beatriz, e a palavra era “negro”. A palavra negro, vinha em variações como “o negro
brasileiro”, “o negro ame- ricano” e “a mulher negra.” Em alguma altura na minha mente infantil
eu acreditava que ela teria nascido dizendo a palavra Negro. Eu imaginava Beatriz menina com sua
família, irmãs, irmãos e pais pronunciando a palavra como seu tema principal entonado — “o negro”.
Crescendo, a palavra negro era parte do meu cotidiano — conversas, escritas e debates de minha
mãe. As palavras África e Diáspora também vinham frequentemente. Eu me perguntava: por
que a minha mãe fala do negro o tempo todo? Como uma menina negra de classe média baixa.
Crescendo no Rio de Janeiro, minha resposta veio do meu viver nesta cidade. Na minha cabeça
a favela e as faces das pessoas como eu “os negros”, não havia nenhuma poesia. Sim nós temos
o samba o carnaval, mas eu ouvia Beatriz falando de outra coisa e esta “outra coisa” era e ainda
é parte da nossa situação cotidiana.
Como criança ouvindo tudo isso, um dos meus maiores monstros se tornou o “racismo” e este
monstro tinha um sobrenome: injustiça racial e humana.
Beatriz foi à África, ao Caribe. Escreveu muito. Muito sobre o negro e o racismo. Mas um dia
perto da então comemorada data da abolição da escravatura, 13 de Maio uma frase me chamou
a atenção. “É preciso saber de onde se vem para saber onde se vai”. E está foi a primeira vez que
percebi que ativismo também tinha poesia.
Quero.
Extrair qualquer síndrome
Qualquer aparência do que não sou
Qualquer vínculo com o passado odiado que restou
Quero.
Palma verde e nua
Herança que cultivei
Quero, resumir numa só
As fantasias com que sonhei...
Não a mim
Que por tua mão fui
Conduzido entre coqueiros
Mas ao balido do cordeiro
Que em lobo prenuncia
Pensava em mim
No firmamento
Em vaga estrela perplexo instrumento
Espelho vivo
Sediciosa, torturante
Ceifas seivas abundantes
Envoltas em amor e cuidado
Criadas em conforto e carinho
Do ventre terno da minha mãe
De quem tiras o direito
De extrair sumo de tanto vigor?
Parte de tantas partes?
Amor do ventre do amor.
Quem és tu ave doída?
Corpo e carne destruída.
Para interromper o conjunto?
De sonhos harmoniosos,
Criados na alcova dos meus pais?
A quem foi chamada Rainha
Bela e sonora chamada,
A quem tu agora destróis...
Um retrato,
Um espelho.
Um rosto
Um outro rosto.
Quantas faces de si em si mesma?!
Aeroporto porto do ar
Aterrisse minha paz
Sem volteios circundantes
Sem choques no concreto
“Ah! Cidade
Sinto calor, sinto frio
Nor-destino do Brasil
Vivo entre São Paulo e Rio
Porque não posso chorar”
As acontecências
Nem sempre acontecem
Na gente
Terra azul
Céu escuro
Fantasmas passam nas ruas
Como eu fantasma nua
A caminhar
A quem procuro?
Em que corpo quero estar
Em que cama repousa espírito tão inquieto?
Nas notas de sol em ritmo-Blues
Em remansos passados
Em fechados futuros
Em furioso silêncio
Prenhe de luz
Plenilúnio
Altiva força benfazeja
Um certeiro retornar
Ambiciosa e divina
Maliciosa (e) impulsiva
Incandescente (e) intempestiva
Serenidade anuncia
A quem te dirige o olhar
Estela tu és estrela
Que com as outras caminhas
Em busca de um riso solto
De um se fechar quase roto
De prenúncios de luz
Em ofuscante neon
Regozijam teu futuro
Rememoram teu passado
Repercutem em teu presente
Em torno de ti
Duas luas
Transitam em quase dunas
Esperando ver-te brilhar
Hoje eu estou livre como se tivesse ar nas veias Que não modificou sua trajetória
Hoje eu estou em prontidão como se tivesse exorcizado Desta dor íntima que não extraio
todos os meus fantasmas e à espera de outros muito maiores
Hoje eu não amo a ninguém na espera de que aconteça o amor Sim, sinto culpa
Hoje viro-me para todos os lados e a paisagem é a mesma
Num território pântano do consciente
Sem paixão
Porque um beijo poderia modificar o
Hoje eu não estou triste porque já chorei todas as minhas
Universo
vísceras e elas estão recompostas
E fazer Vênus mais amiga da Terra
Hoje eu espero a seta que primeiro me atingirá: amor ou ódio
Fazer a Via Láctea mais visível
Hoje eu não estou alegre porque nada foi anunciado
E me transportar àquela original
Hoje eu estou atenta enquanto me restar um sonho
Sonho irrealizável, orgasmo intransponível
Hoje eu estou breve como um terrível pesadelo
Ontem ouvi tua voz no arquivo da TV
E foi como se o tempo não tivesse passado
Como se não tivesse viajado para mundo bem distante
Sinto-te na parede da sala, compondo meu ambiente
Resgatando meu interior num voo para outro espaço
E me serenas o presente nas cores do teu instrumento
Me faz esperar o futuro no vibrar das tuas dissonâncias
Minha flor ficou viva uma semana. Quanta vida ela me deu! Cada vez que a olhava sentia que eu
conseguira ultrapassar mais um instante. Lembrava-me da poesia daquela noite. Do bem-estar que
aquelas pessoas transmitiram. E quase acreditei que o espírito estava presente.
Quanto trabalho eu dou à luz.
Várzea das Flores era o nome da casa de vovô. Casa que eu não conheci, por isso mesmo
eternamente presente na minha memória.
Mas se eu a visse seria como vi Angola. Onde enlouqueci para poder viver aquele instante só para
mim.
Porque eu não tenho fé. Porque eu não acredito? Será que é porque eu não vejo? Deus dá-me o
dom de ver
Tudo começou com Eduardo. É preciso saber de onde se vem, para saber aonde se vai.
E eu já estava. Já não ía, nem vinha.
Há prisão na Liberdade. Chama-se solidão que os demais nos criam. O corpo sólido
no espaço, quente ou frio ao redor. Sou o meu próprio nó…!
De todos os amores de minha vida, de todos os muitos amores que me fizeram a vida;
está minha terra, o lugar, os lugares do meu país. De todos esses amores, às vezes dores,
elas marcando meu corpo ceivando-o e cevando-o em sangue e carne vigorosos.
Se eu pudesse encontrar o fio onde tudo se confundiu. Se me senti enganada e dei chances de
afirmarem o desencanto de não ter ainda forças de braços, num rijo e apertado abraço desligado
de mim. Me sentiria com sono, sem este estado de vigília, que dura por tanto tempo e leva-me à
exaustão.
Se meu cérebro descansasse de recordações perversas, de dilaceradas lembranças! Se eu pudesse
escrever não tormento, mas alegria, não ressentimento, mas afirmação. Ah! Se pudesse descrever
objetivas razões e não meu próprio subjetivo alçando-me a essas horas intactas.
Se meu cérebro repousasse não à custa dessas drogas psicopatas, mas num descansar
legítimo, quando embalada em letal delícia meus sonhos sejam produzidos. Nunca o estado de
impotência.
S
egundo a interpretação mitológica da origem do homem, ele conseguiu a sabedoria a partir de
um crime, o de subtraí-la aos deuses. Em princípio o conhecimento é verdade a todo animal, é
o tesouro secreto dos seres onipotentes. Somente um animal, teve a pretensão maior justamente
de negar essa sua condição, e o faz através do conhecimento de si próprio.
Essa faculdade de conhecer, que lhe fora vedada em algum tempo remoto, e que ele usurpou — e
hoje em dia de maneira indecente —, segundo ainda aquelas fontes, trará de encontro ao animal
presunçoso e enlouquecido, o sofrimento e a procura milenar da felicidade perdida. Pena imposta
pelos deuses…
Profundamente consciente e conciliada com o aspecto trágico da vida humana aceito sem maiores
cuidados em toda e qualquer explicação onde a origem do conhecimento esteja relacionada à perda
da felicidade e ao pacto que o homem estabeleceu com o sofrimento. De todo o conhecimento que o
homem busca, o autoconhecimento me parece aquele que justifica o que diz a nossa tradição. Tem-
se que expiar tal crime. Isso me diz muito respeito, na medida em que me aprofundo nas origens das
relações inter-raciais no Brasil, e nas implicações dessas na psique do homem negro
Tomando inescrupulosamente como cobaia eu mesma, isto é, partindo da minha experiência, e
da dos negros mais ligados a mim — minha família, amigos, companheiros de ônibus, nas ruas, nos
estabelecimentos — tento chegar, o mais de como subjetivamente reagimos diante de uma realidade
tão opressora; de como resolvemos as questões que nos fustigam, hoje, nossas mentes, ontem nossos
corpos. Quando pretendo explicar o que se produziu em quatro séculos de repressão, de ausência de
ser, vejo somente uma imensa amnésia coletiva que nos faz sofrer brutalmente. Esta amnésia coletiva
P
or volta do final da década de cinquenta o debate sobre as relações raciais que envolvem o
negro no Brasil estava na ordem do dia, não tão amplo quanto atualmente, por causa das
condições específicas da época, mas da mesma forma intenso. A emergência periódica do
debate sobre a problemática racial, a nosso ver, é denominada menos por uma atitude particular dos
negros como raça do que pela revisão moral dos valores gerais de nossa sociedade, reclamada por
determinados setores dessa mesma sociedade, e que obrigatoriamente não inclui entre si o negro; é
menos uma mudança qualitativa no comportamento racial da sociedade, que verbalizações e falá-
cias de grupos pequenos que se desviam do debate principal ao nível político, para se ocuparem de
problemas, que embora políticos, não estão em suas mãos resolver. (Se é que todos os problemas
necessitam de solução). Naquele tempo como hoje o debate racial centralizava-se na relevância do
papel da cultura do negro, da contribuição da cultural do negro, e mais recentemente na negação
da cultura ocidental empreendida pelos negros brasileiros, ao permanecerem por tempo vivendo em
condições que pouco diferem daquelas em que viviam sob o regime escravista.
Em tudo isto, embora a presença do negro exista debatendo e em alguns casos ela é individual-
mente ou em pequenos grupos possa aparecer como vanguarda daqueles debates, até agora estes
carecem de sua presença livre e expressiva questionando ou abrindo frentes para uma provável
solução, ou pelo menos para a revisão efetiva de conceitos que possam provocar uma mudança,
senão nas relações em si, pelo menos naquelas falácias. Falácias que confundem a forma que se
obrigou o homem negro de estar no mundo, causada pelo estigma do preconceito racial, com a
sua cultura intrínseca. Que confundem o seu ser com a miséria a pobreza, o obscurantismo que
impedem que ele enquanto grupo racial esteja com toda a sua potencialidade na sociedade na qual
é um dos pólos.
A
imagem do negro na literatura brasileira pode ser vista de duas maneiras, ambas muito
difíceis de relacionar com a questão da identidade na medida que há várias acepções e
variados fatores que determinam a identidade, seja ela individual ou no plano do conjunto
de indivíduos pertencente a uma mesma etnia, família ou nação. Queremos sugerir que a identidade
não se faz com um só elemento caracterizador, mas nas interrelações sociais, onde origem, meio
formador, aspirações e frustrações se combinam.
Em relação ao negro e a literatura poderemos usar como escolha dois enunciados para situar um
no outra, da forma como, grosso modo, como interagem.
1 – Com poucas exceções essa literatura é pensada e escrita por autores brancos que fazem parte
do grupo social e econômico dominante. Por intelectuais que repetem e reproduzem seres estereo-
tipados nas suas narrativas memórias ou ficções. Esta produção se faz transpondo o negro, se
numa narrativa, e principalmente, na memória, como a relação dominante entre branco e negro.
A ele são dados os papéis mais subalternos, sejam relacionados ainda ao sistema escravista, sejam
relacionados ao sistema moderno de alocação de mão de obra. No primeiro caso, são escravos ex-
e mulheres de profissão ou vidas marginais de uma realidade regional. Há ainda um outro exemplo
muito comum, negros sempre ambíguos entre o racismo e o processo de ascensão social (em Josué
O importante é verificar que o negro não fala nessa literatura de seus anseios mais íntimos
enquanto homem, da sua visão de mundo verdadeira, das diversas gamas de sua psicologia,
2- A outra vertente da abordagem, diz respeito à ausência da escrita na vida da maioria dos negros
no Brasil. Seja pelo empobrecimento e analfabetismo em que a maior parte da população brasi-
leira esteja mergulhada, seja pela demora em se estabelecer uma filosofia educacional em que os
elementos da cultura negra que remontam a origem africana sejam negligenciados do contexto do
ensino no Brasil.
Ora, é preciso, antes de mais nada, analisar o papel de uma possível oralidade de origem africana,
segundo alguns estudiosos ainda presentes no comportamento da comunicação dos negros. É preciso
vê-la não somente como uma tradição a ser preservada ou regatada, mas também como uma variante
do processo de dominação que marca a desigualdade racial e social. O profundo empobrecimento que
levou essa camada da população à miséria após a Abolição da Escravatura, apoiado em fatores tais
como: a crise econômica nas primeiras décadas do século, o não assentamento daqueles ex-escravos
em estabelecimentos fundiários (substituição pelo imigrante); o crescente vigor do preconceito e
discriminação raciais no mercado de trabalho ascendente; a política centralizadora do Estado; a
A
historiadora, professora, ativista e poeta brasileira Beatriz Nascimento, nascida em
julho de 1942 e falecida em janeiro de 1995, deixou uma obra composta por ensaios,
poemas e aforismos que em parte estava dispersa em livros, revistas e jornais esgotados
ou de difícil acesso o que a colocava e também o seu trabalho em relativa situação de esquecimen-
to. Sua principal pesquisa abordava os quilombos que existiram em todas as regiões do Brasil. Ela
também se dedicou a estudar outras espacialidades e culturas negras, além de ter escrito alguns
artigos a respeito de mulheres negras. Em vida, ela divulgou poucos poemas. Parte de seus ensaios
foi republicada em Eu sou Atlântica: sobre a trajetória de vida de Beatriz Nascimento no qual
estabeleço um diálogo com sua obra. Este livro foi feito a partir do contato inicial com familiares
e pessoas amigas e, posteriormente, com uma pesquisa nos acervos localizados no Rio de Janeiro
e em São Paulo.
Lapa, Rio de Janeiro, conheci Bethania Gomes, filha do primeiro casamento de Beatriz Nascimento
com o arquiteto cabo-verdiano José Gomes, bailarina e professora de dança. Soube que ela tinha a
intenção de publicar os poemas de sua mãe e manifestei a vontade de trazer à tona os ensaios inédi-
tos. A partir de 2008 voltei a trabalhar com o acervo do Arquivo Nacional, me dedicando a levantar
e analisar os projetos acadêmicos, ensaios e artigos. Desde 2012, Bethania e eu temos trabalhado
com o conjunto dos poemas, aforismos e outras anotações que estão em suas mãos.
116 Todas (as) distâncias
Entre textos negros e femininos
No processo de pesquisa com a obra de Beatriz Nascimento trabalhei com o acervo que está
distribuído em dois locais. O primeiro foi o material levantado para a realização do filme Ori, do
qual Beatriz foi a principal pesquisadora, doado pela diretora Raquel Gerber ao Centro de Estudos
Africanos da Universidade de São Paulo. À época, a coleção de artigos, recortes de jornal, panfletos
e cartazes estava disposta em algumas caixas sem catalogação. O mesmo se deu com o conjunto de
documentos doado pela família para o Arquivo Nacional, localizado na cidade do Rio de Janeiro,
acondicionado em várias caixas não catalogadas.
Os ensaios inéditos de Beatriz Nascimento tratam das relações raciais e trazem reminiscências
de sua vida enquanto negra, mulher, menina, estudante, pesquisadora, mãe e filha. Os aforismos
e outras anotações tocam nos mesmos temas. Algumas trazem registros e reflexões de momentos
particulares como o tratamento de transtornos psíquicos ou da perda de familiares e amigas/os. De
um lado, estes escritos de Beatriz, realizados entre os ano 1970 e 1990, lembram algumas memórias
de Carolina Maria de Jesus nos livros Quarto de despejo e Diário de Bitita, datados dos anos 1950
e 1960 (considerando as versões editadas e os cadernos sem edição), no sentido de trazerem a
experiência de uma mulher negra oriunda das classes populares e sua preocupação de marcar as
questões que lhe atingem e interessam, os seus percursos, suas temporalidades, os lugares e as pessoas
com quem ela estabelece relações próximas ou distantes. De outro lado, ao contrário de Carolina,
são textos de uma pessoa que ascendeu socialmente e passou pelo processo de escolarização até a
formação acadêmica, além do ativismo no movimento negro.
Os escritos publicados e inéditos de Beatriz Nascimento evocam a memória de Lélia Gonzalez,
outra acadêmica e ativista que lhe foi contemporânea, conquanto tratam de temas comuns, a exem-
plo do racismo, dos espaços negros, da mulher negra, além de trazerem algumas referências pessoais
Beatriz escreve vários poemas e alguns ensaios que trazem à tona o feminino, as mulheres, a
mulher negra. A autora, ativista e artista não era vinculada diretamente aos círculos feministas de
sua época, nem mesmo aos grupos de mulheres negras, mas era conhecida neste campo. Em 1986 o
De sua obra publicada eram conhecidos os ensaios A mulher negra na força de trabalho publicado
no jornal Última Hora em 25 de julho de 1976 e A mulher negra e o amor que compõe a edição de fe-
vereiro e março de 1990 do Jornal Maioria Falante. No primeiro artigo, a partir dos recenseamentos da
população brasileira e de uma reflexão acerca do processo histórico, ela aponta a situação de “inferiori-
dade social” da mulher negra. No segundo, ela se dedica a estabelecer uma correlação entre os processos
Vários poemas que trazem como tema as mulheres e o feminino foram escritos neste período.
Em Insegurança, datado de 1988, Beatriz se volta para as mulheres de sua família e ao tempo da
infância sem se referir ao seu pertencimento racial. É possível distinguir três partes, três fases de
nascimento. A primeira se faz a partir da mulher mais próxima, da mãe. O ventre materno é com-
Um segundo nascimento acontece tendo em volta outras mulheres próximas que não sabemos se
pertencem à família ou à vizinhança. Ocorre também um segundo momento de angústia:
De longínquas paragens
(…)
(…)
(…)
Beatriz Nascimento reflete como vivência e estudo várias espacialidades negras, a começar pelas
cidades de residência e a pesquisa acerca de quilombos e expressões culturais afro-brasileiras. En-
quanto menina (e posteriormente mulher) de origem negra e pobre conheceu certa ascensão social
e teve uma mobilidade espacial, saindo de Aracaju para o Rio de Janeiro, morando primeiro no
subúrbio e depois na Zona Sul da capital.
Me sentia na rua um pouco eufórica por poder pensar calmamente no“meu negro”, amá-lo, exibi-lo
aos transeuntes, sem medo. Fora de mim existia um negro maltratado, que passa fome, que vive nas
piores condições de sobrevivência. A mulher negra está sozinha, prostituindo-se, serviçal doméstica
ainda os moldes coloniais. Mas eles são os outros! Os brancos pobres também estão na mesma
situação e não conheço nenhum branco de classe média que vá ao analista por que os outros vivem
não existisse ali como as outras pessoas, fossem somente por causa de minha condição de menina
pobre no subúrbio.
Beatriz conclui o ensaio falando da solidão e da fuga de seu “negro interno” face ao racismo,
rememorando também cenas do período escravista:
“Ele” fugia nessas ocasiões, me deixando, com sempre, confusa, sozinha (acho que ele é um qui-
lombola – tem mania de fugir), me deixando só uma cor. Senti naquele momento o mal-estar de tantos
equívocos e odiei o ter ficado desatenta e exposto o “meu negro” a tamanha agressão. Recolhi-o a
mim. Agora mais calma sorria da ironia da situação. Quase que eu acreditara que estava em minhas
mãos fazê-lo feliz, defendê-lo. Mas eu só o estou conhecendo, e conhecê-lo é justamente expô-lo,
perguntar e encontrar respostas, no fundo esclarecedoras como a do meu amigo analista, ou como a
do porteiro do edifício. Conhecê-lo é estar só, como era no canavial, como no tronco, como agora.
Mais uma vez ela coloca o corpo negro no centro de suas preocupações acerca da dimensão
espacial do racismo. A autora trata de um corpo em percurso, em movimento, chamando a atenção
para as fronteiras e barreiras do racismo.
Devido à pigmentação negra de uma grande parte dos doentes aí recolhidos, a imagem que se fica
dele, é que tudo é negro. O negro é a cor mais cortante, mais impressionante; e contemplando uma
porção de corpos negros nus, faz ela que as outras se ofusquem no nosso pensamento.
É uma luz negra sobre as cousas, na suposição de que, sob essa luz, o nosso olhar pudesse ver
alguma coisa.
Arrisco-me a dizer que Lima Barreto prefigura as discussões contemporâneas acerca da mascu-
linidade negra quando trata da recorrente suspeição da polícia sobre os homens “de cor” e quando
No poema Surto final (Estação terminal) Beatriz comenta uma situação de internação, de ausên-
No aforismo Se eu pudesse encontrar o fio ela se pergunta como encontrar de volta um ponto de
descanso legítimo – sem situações extremas, sem medicamentos:
escrever não tormento, mas alegria, não ressentimento, mas afirmação. Ah! Se pudesse descrever
objetivas razões e não meu próprio subjetivo alçando-me a essas horas intactas.
Se meu cérebro repousasse não à custa dessas drogas psicopatas, mas num descansar legítimo,
quando embalada em letal delícia meus sonhos sejam produzidos. Nunca o estado de impotência.
Em horas de des-espero
Tais trechos me fazem lembrar ainda – com as devidas ressalvas – o caso da poeta catalã Princesa
Inca (Cristina Martín) que, no livro La mujer-precipício se confronta com seu quadro de esquizofrenia
e dele extrai parte de sua lírica, como se pode observar no poema El insomnio es blanco:
(…)
A insônia é branca,
branca suja como o pátio do cárcere.
Branca como as vestes e as cintas dos psiquiatras.
A insônia é branca.
Branca. Branca. Branca.
Branca. Branca.
A insônia é branca.
(INCA, 2011, p. 38, tradução minha)
A exemplo de muitas e muitos poetas, Beatriz Nascimento, em vários poemas, trabalha com a
metáfora de corpos distanciados traçando rotas entre paisagens atlânticas, como foi mencionada
Vênus finita
Companhia de um ciclo
Lunar, enfática,
Estrela – Guia;
De um Universo
Polar.
Terra, firmamento,
Areia e mar
Êxtase e agonia,
Aconchego solar
Dia-estrela brilha.
Retornar quem do
Dores apaziguar.
(…)
Se és estrela termina
(…)
Para além da variedade de temas da escrita poética e ensaística de Beatriz Nascimento reite-
ro que identifico a dimensão corpórea-espacial em muitos textos de sua autoria. A preocupação
de longa data com os quilombos e depois a conexão com espaços fixos ou efêmeros das culturas
negras – terreiros, bailes black, favelas, congadas, etc. – está certamente na base dessa obser-
vação, o que se complementa com leituras de autores como Gilles Deleuze e Félix Guattari.
Quanto à poesia, a mim me parece que Beatriz se aproxima de uma ideia de Audre Lorde de que
esta “o instrumento mediante o qual nomeamos o que não tem nome para convertê-lo em um objeto
de pensamento” (LORDE, 2003, p. 15, tradução minha). A palavra pode tornar-se ela própria um
corpo.
Com vistas a uma conclusão, posso dizer que, entre os anos 1970 e 1990, além de historiadora
e ativista, Beatriz Nascimento tornou-se professora, pesquisadora e poeta, trazendo para seus tex-
Referências
BARRETO, Lima. Diário do Hospício e Cemitério dos Vivos. São Paulo, Cosac & Naif, 2010.
GILROY, Paul. O Atlântico Negro: modernidade e dupla consciência. São Paulo, Ed. 34/Rio de Janeiro, Universidade Cân-
dido Mendes – Centro de Estudos Afro-Asiáticos, 2001.
GONZALEZ, Lélia. Racismo e sexismo na cultura brasileira. In: Silva, Luiz Antônio Machado et al. Ciências Sociais Hoje 2:
movimentos sociais urbanos, minorias étnicas e outros estudos. Brasília: Anpocs, 1983, p. 223-244.
A categoria político-cultural de Amefricanidade. In: Tempo Brasileiro. Rio de Janeiro, Nº. 92/93 (jan./jun.).
1988b, p. 69-82.
INCA, Princesa. La mujer-precipício. Barcelona, Libros del Silêncio, 2011.
LORDE, Audre. La hermana, la extranjera. Madrid: Horas y Horas, 2003.
JESUS, Carolina Maria de. Meu Estranho Diário. Org. José Carlos Sebe Bom Meihy e Robert M. Levine. São Paulo: Xamã,
1996.
RATTS, Alex. Eu sou atlântica: sobre a trajetória de vida de Beatriz Nascimento. São Paulo: imprensa Oficial/Instituto
Kuanza, 2007.
RATTS, Alex & RIOS, Flávia. Lélia Gonzalez. São Paulo: Selo Negro, 2010.
I
dos de 1985: não sei se foi a coxia, o silêncio inquietante do entrar em cena, o abraço percussivo
do diretor Alceu Estevam que introduzia a música na peça Chico Rei, mas quando me foi revelado
o ofício ,aprendi a suspeitar de quando estou próxima de um chamado, ao qual não direi outra
coisa a não ser… Vamos lá!
Essa também foi a forma em que vi crescer todo o tecer inquietante da pesquisa de Alex Ratts
sobre Beatriz Nascimento resultando no livro “Eu sou Atlântica” e a partir de então, não pude
deixar de navegar no imenso mar de poesia que Beatriz concebeu, como quem concebe filhos e
personagens, misto de angústia-calma, surpresa-prazer, eu-outro.
Não é nada fácil estar entre a descoberta da sua semelhante, como nos ensina Elisa Lucinda, e
termos no outro extremo o jogo silencioso da invisibilidade que ainda nos cerca, enquanto mulheres
negras, na medida em que continuamos às voltas com o enredo que nos discrimina e não respeita
nossas especificidades em todos os campos.
Essa violência histórica que corrompe nossa força expressiva e propositiva e tenta neutralizar
nossas subjetividades tratando-nos como massa inócua, a ser modelada, pode, sim, ser superada, na
medida em que valorizemos nossos códigos de construção do saber, nossa ancestralidade e a forma
como compreendemos o mundo, o que conseqüentemente passa a implicar em novas formas de
intervenção. Assim ao ter contato com sua poesia, tive contato com o inquieto, que ali se apresenta.
Foi a resiliência, que emergia de suas linhas, que a princípio me arrebatou e, como se diz à moda
maranhense, “foi bem aí” que olhei nos olhos de Beatriz. Tive medo, e suspeitei ser difícil dizer da
Venho de uma militância, em parte parecida com o meu começo em teatro, na qual assistíamos e
discutíamos livros, vídeos e filmes sobre a causa negra. Foi assim que o filme Ori, chegou às minhas
mãos e apesar do meu contato distraído com a ficha técnica, desde o começo do filme suspeitei que
tudo em Ori era mulher, rota, movimento, trânsito: um convite ao desvendar, uma estratégia a ser
decodificada para encontrar o outro e reconhecer-se.
Aquela voz de mulher, para além da narrativa, a falar dos meus ancestrais, minha escola de
samba, meus pares em África e aqui, a falar do Atlântico, mas não daquele da memória náufraga e
negreira,mas das rotas que fortalecem o individual e o coletivo.
Vídeo e palavra me integravam àquela mulher inquieta, em seus lenços e pantalonas. Seu jeito de
contar e o sorriso grande me fizeram sentir vontade de dar a mão e abraçar... e como se não bastasse
havia também o silencio das vagas atlânticas apontado para o sal das palavras. No caminho... o
primeiro tropeço... diante do intenso poema chamado Beatriz.
Quando os poemas de Beatriz me foram apresentados tive a sensação de estar diante de um
mosaico com encaixe tênue onde a pesquisadora e militante têm por interface a poetisa. Enfim, a
materialização do Ori.
piscina sem água sem o menor receio, prontas/os simplesmente para o que há de vir em termos do
Digo isso porque vi uma mulher negra no Brasil dos anos 80 mostrar uma poesia intensa e despoja-
da onde a palavra aparecia com a força dos que resistem, dos que têm um propósito. Assim, coloquei
os sentidos em prontidão, à disposição dessa poesia dotada de força e ternura sem exposição gratuita
Desta forma, essa mulher colocada discute seu tempo, ao revelar épicos em meio ao contexto
(…)
Produto de alucinação
Armada e genocida
(…)
como em Insegurança:
(…)
(…)
Beatriz também se coloca identificada com o panorama afro-religioso como o que é visto no
poema Inusitado:
(…)
Ou ainda quando fala de inquietações e vulnerabilidades, tão presentes na seara das mulheres
negras, vítimas, ora da invisibilidade, ora da pressão imposta pela discriminação e preconceito,
expressa em Surto Final:
A coisa acontecer
Diante da poesia de Beatriz Nascimento, entre outras intenções, pretendo sempre levá-la aos
palcos pelo fio condutor da palavra e da ação, assim como também encontrar seu ruído e silêncio,
texto e subtexto, palavras e imagens, preferências e inquietações.
A
s palavras da escritora Afro-Americana Audre Lorde (1984) inspiram minha reflexão sobre
Beatriz Nascimento: “Para as mulheres, então, a poesia não é um luxo. É uma necessidade
vital de nossa existência. Ela forma a qualidade da luz dentro do qual predicamos nossos
sonhos e esperanças para a sobrevivência e mudança, feita pela primeira vez para a linguagem, então
a ideia transformada em ação tangível” (p. 37). Para Beatriz Nascimento, poesia não era um luxo,
era iluminação — a qualidade de luz na qual ela examinou a vida, o afeto e o amor. Para as mulheres
negras da diáspora a poesia tem sido uma ferramenta de sobrevivência e imaginação. É o espaço
dentro qual nós refletimos sobre o mundo e imaginamos um mundo melhor – mais compassivo, mais
justo, mais ancestral. É através da poesia que descobrimos nossa memória coletiva e nosso poder
antigo. Nós escondíamos este poder nos nossos ventres. É um poder que trouxemos da África através
do navio negreiro. A poesia de Beatriz Nascimento é uma comunhão com esse legado: a história das
nossas negras-mães do presente, o passado, através da diáspora.
O tema desta reflexão é a memória coletiva e sua transmissão. Beatriz Nascimento deixou um cofre
simbólico de contribuições filosóficas em sua poesia. No entanto, precisamos lê-la não simplesmente
como uma contribuição artística, mas também como uma extensão da suas contribuições intelectuais.
De fato, para a mulher negra a poesia sempre foi uma meio de expressão teórica, além de ser uma ma-
neira de comunicar seu afeto.
Apesar de ter escrito poucos artigos e ter deixado apenas alguns trabalhos publicados, o le-
gado intelectual de Beatriz Nascimento é amplo e profundo. Suas teorias e reflexões são aportes
contribuição teórica. Para apreciar a contribuição desta coletânea de poemas à nossa compreensão
das contribuições de Beatriz Nascimento, é preciso primeiro reconhecer o importante papel que
a poesia possui como um espaço liberatório para as mulheres negras. Tanto no Brasil quanto nas
Américas, as mulheres negras têm um forte legado como poetas. Antes da universidade e a formação
Para determinados povos, principalmente aqueles que foram colonizados, a poesia torna-se um
transgressão ao apresentar fatos e interpretações novas a uma história que antes só trazia a marca,
Como observa Lorde, dentro da poesia da mulher negra, existe uma forma de comunicação não
verbal, sob linguagem, que carrega os nossos sentimentos e interpretações do mundo (LORDE,
1984, p. 83).
Em “A Corrida Pela Teoria” (The Race for Theory), Barbara Christian (1987) apresenta uma
crítica da europeização da teoria na crítica acadêmica. Sua reprovação é direcionada principalmente
para aqueles que, ao valorizar a filosofia ocidental, menosprezam as tradições e contribuições in-
telectuais negras e indígenas. Se ao se envolver com a produção intelectual criativa das mulheres
negras, sentimos constantemente a necessidade de minimizar essas experiências como expressões
culturais puras, em vez de espaços de políticas de produção de conhecimento que apresentam a sua
própria visão teórica, desvalorizamos a importância deste trabalho criativo. Reconhecendo a poesia
como uma contribuição teórica das mulheres negras, se nota o valor intelectual dessas contribuições
e desconstrói a ideia do negro folclórico, sincrônico e não-humano, que perpetua as dinâmicas de
opressão entre o Norte e o Sul. Como Christian escreve: “As pessoas não brancas sempre teori-
zaram, mas em formas muito diferentes da forma ocidental de lógica abstrata. E eu estou inclinada
de espaços autônomos − ocorreu nas Américas entre os africanos escravizados (PRICE, 1973). Dos
cimarrones do Panamá e do Peru, aos palenques de Cuba e aos maroons da Jamaica, os africanos
escravizados estabeleceram um padrão e uma prática de fuga e luta em resposta às injustiças da
escravidão. Os quilombos foram manifestações dessa tradição no Brasil, sendo Palmares o mais
famoso deles (GOMES, 2005). Beatriz Nascimento imaginou quilombo como espaço de memória.
Ela estava profundamente atenta às complexas políticas da história para os negros, e às formas
pelas quais as histórias dos povos negros foram apagadas em função da tendência de privilegiar
arquivos escritos em detrimento dos arquivos orais (NASCIMENTO, 1982). Em sua avaliação, a
memória está no centro de qualquer projeto que aborde o passado negro e sua importância social,
histórica e cultural. Neste sentido, acredito que a poesia era um espaço simbólico de quilombo para
Beatriz Nascimento. Ela defende uma noção mais ampla de quilombo, que vai além do conceito de
comunidades remanescentes, para sugerir que essas comunidades são territórios negros que a um só
tempo representam coletividades políticas, sociais, culturais e ancestrais. Para ela, os quilombos são
espaços negros autônomos de libertação definidos por sua continuidade histórica. No conceito de
Beatriz, “A continuidade seria a vida do homem – e dos homens – continuando aparentemente sem
clivagens, embora achatada pelos vários processos e formas de dominação, subordinação, dominância
que pode estar familiarizado com... existe um terreno através do qual diferentes histórias geográfi-
cas podem ser ditas” (p. ix-x). McKittrick fala explicitamente sobre as geografias alternativas consti-
tuídas pelas experiências das mulheres negras da diáspora. Suas idéias nos conduzem a considerar os
caminhos que a vida imaginativa e material de mulheres negras desestabilizam a noção predominante
do corpo negro como um espaço sem geografia e lembrar que o espaço não é dado, mas produzido. A
leitura de McKittrick acerca de Dionne Brand e da relação entre espaço, lugar e subjetividade feminina
negra ecoa as idéias de Beatriz Nascimento sobre quilombo e o espírito da sua poesia.
Ao longo do filme Ori que Beatriz Nascimento realizou junto com a cineasta Raquel Gerber,
ouvimos a voz de Beatriz em sua tonalidade poética. Sua narração incorpora reflexões sobre
quilombos e seus significados políticos, sociais e culturais para a diáspora negra. Ela alterna
entre o eu-filosófico e a reflexão pessoal — a dor e o prazer da memória. Sua imagem também
aparece no filme, permitindo-nos vê-la como militante fervorosa do movimento negro, argu-
tário brasileiro na Universidade de São Paulo. Também podemos vê-la em casa como pessoa
calma e reflexiva, que poeticamente pensa sobre o que significa ser negra no Brasil.
Em Ori Beatriz descreve o quilombo como espaço de libertação localizado no corpo negro. Este
princípio é baseado no conceito do povo Ioruba de Ori (cabeça) no Candomblé da nação Ketu. Ori
mostra seguidores religiosos em um estado de transe. Estes momentos são estados de libertação do
ser. O estado de transe ou receber uma entidade espiritual é um espaço de quilombo. Assim, a poesia
(…) A palavra poética é um modo de narração do mundo. Não só de narração, mas talvez, antes de
tudo, de revelação do utópico desejo de construir um outro mundo. Pela poesia, inscreve-se, então,
o que o mundo poderia ser. E, ao almejar um mundo outro, a poesia revela o seu descontentamento
A mulher negra é e sempre foi precariamente colocada dentro do estado-nação nas Américas.
Por conta disso, a mulher negra vem contando com a memória coletiva e sua transmissão a fim de
articular-se como sujeito político. A poesia de Beatriz Nascimento, tal como seus ensaios e publicações
acadêmicos, nos impulsiona a repensar a política de memória negra na América Latina, imaginando
memória política como a que está tanto à terra e desterritorializada para os brasileiros negros. Os
negros em toda a América Latina constroem sua subjetividade através de memórias diaspóricas coleti-
vas de “home” (ancestralidade, África, espaço autônomo, auto-determinação). Esses imaginários ligam
nossos corpos com corpos de outras pessoas negras em toda a Circum-Atlantic. Esta memória coletiva é
menos uma questão de fato ou ficção. Antes de ser a produção afetiva, é também a produção de comu-
nidade política e identidade.
A morte precoce de Beatriz Nascimento deixou-nos suspensos no eco de sua voz poética. Ela
deixou sua alegria, a sua dor, suas esperanças e seus sonhos em sua poesia. Mas também deixou sua
complexidade, sua vontade de resistir ao racismo e opressão, e sua ancestralidade. Em seu ensaio,
“Tranformação do Silêncio” (“Transformation of Silence”), Audre Lorde (1984) também nos lembra
que “a transformação de silêncio em linguagem e ação é um ato de autorrevelação que parece sempre
Referências
CHRISTIAN, Barbara. The race for theory. Cultural Critique (1987): 51-63. ..............
EVARISTO, Conceição. Literatura negra: uma voz quilombola na literatura brasileira. Disponível em: bibliotecavirtual.
clacso.org.ar/ar/libros/aladaa/evaris.rtf.
GOMES, Flávio dos Santos. Palmares: escravidão e liberdade no Atlântico Sul.São Paulo: Contexto, 2005.
MCKITTRICK, Katherine. Demonic Grounds: Black women and the cartographies of struggle. Minneapolis, University
of Minnesota Press, 2006.
NASCIMENTO, Maria Beatriz. Kilombo e memória comunitária: um estudo de caso. Estudos Afro-Asiáticos, vol. 6, n. 7,
1982, p. 259-265.
PRICE, Richard. Maroon Societies: Rebel Slave Communities in the Americas.Garden City: Anchor Press, 1973.
RATTS, Alex. Eu sou atlântica: sobre a trajetória de vida de Beatriz Nascimento. São Paulo: imprensa Oficial/Instituto Kuanza,
2007.
O inesperado aconteça – “apareça como a luz / Do sol batendo na porta do meu lar”… Versos
de Luz do Sol, composição de Carlos Pinto e Wally Salomão, gravada por Gal Costa no disco Fatal
– Gal a todo vapor em 1971
Transgressão – Poema escrito em setembro de 1987 no período em que houve uma grande ação
policial no Morro Dona Marta, situado em Botafogo, na Zona Sul, onde Beatriz residia.
Legbá – Referência ao orixá Exu. O poema inicia dedicado ele e segue voltado para Oxumaré, cuja
saudação abrasileirada é Arroboboi!. “Sursum corda”: expressão latina utilizada antigamente nas
missas católicas e quer dizer “corações ao alto”.
Jaga ou Imbangala – povo do qual provinham alguns dos principais formadores da instituição
militar denominada quilombo no antigo reino do Congo e vizinhos em meados do século XVII
Aeroporto – “Como John in “just a jealous / Guy”, no cry…” Referência à canção Just a jealous
guy de John Lennon, gravada no disco Imagine de 1971, expressão que pode ser traduzida por
“apenas um rapaz ciumento”.
Mídia I - “Ah! Cidade / Sinto calor, sinto frio / Nor-destino do Brasil / Vivo entre São Paulo e Rio
/ Porque não posso chorar”. Trecho de Épico, canção de Caetano Veloso, gravada no disco Araçá
Azul de 1972.
Alex Ratts/pesquisa
Arnaldo Xavier (1948-2004) – Poeta e teatrólogo, autor de Boleros Pretos, A Roza da Recvsa,
Ludlud e Manual de Sobrevivência do Negro no Brasil (ilustrado pelo chargista Maurício Pestana).
Participou de várias coletâneas poéticas.
Christen A Smith – Antropóloga social e cultural, professora da Universidade do Texas em Austin, com
pesquisas na área de performance, corpo, raça e violência desenvolvidas no Brasil e América Latina.
Iléa Ferraz – Ilustradora, atriz e diretora com experiência em teatro, novelas e filmes. Participou
de apresentações de espetáculos na Europa e em Angola. Ilustrou o livro infanto-juvenil Chica da
Silva, a mulher que inventou o mar . Atuou, dentre outros, nas peças Os Negros (Jean Genet),
Doroteia (Nelson Rodrigues), Hamlet é Negro (adaptação da obra de William Shakespeare) e
Besouro Cordão de Ouro (Paulo César Pinheiro).
Lúcia Gato – Atriz, ativista do Grupo de Mulheres Negras Mãe Andresa, paulistana radicada em
São Luís do Maranhão. Protagoniza a montagem do monólogo Eu sou Atlântica baseada na poesia
de Beatriz Nascimento. É também professora da rede pública do Estado do Maranhão e Especialista
em Saúde da Mulher Negra (UFMA).