A Janela Do Relatorio Tecnico (Cristian Jobi Salaini)
A Janela Do Relatorio Tecnico (Cristian Jobi Salaini)
A Janela Do Relatorio Tecnico (Cristian Jobi Salaini)
Porto Alegre
2012
Universidade Federal do Rio Grande do Sul
Instituto de Filosofia e Ciências Humanas
Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social
2
Para Lampião, meu pai
3
AGRADECIMENTOS
vida e visão de mundo. O contato com as pessoas que fazem parte do corpo desta
sentir o mundo. Portanto, em primeiro lugar, agradeço a todas essas pessoas que
Rio Grande do Sul pela oportunidade de realizar este trabalho que contou com o
razão do esforço empreendido. À minha mãe e irmã, pela dedicação a mim. Aos
meus sobrinhos, pela alegria. Ao meu cunhado Zilmar pelos ensinamentos morais.
caminho do saber.
pesquisa que atravessa o grupo. Sem dúvida alguma, este núcleo de pesquisa é
pela força nos mais diferentes momentos e aspectos. Que o teu sucesso pessoal e
caráter.
muito além do doutorado. Eu desejo tudo de bom para ti...e para a Beatriz, claro! Ô
Cavalcanti!
5
Agradeço à Mariana Balen pela trajetória de amizade e de incursões
quilombolas! A tua participação em trabalhos de campo só fez tudo ficar muito mais
divertido!
Agradeço à amiga Lucia Scalco pela amizade. Você foi uma das grandes
sempre!
acadêmica e pessoal: Veriano Terto Júnior, Claudia Fonseca, José Carlos dos
Anjos, Maria Eunice Maciel e Ruben Oliven. Muito obrigado a todos vocês pelas
conversas e ensinamentos.
Felber, Ieda Ramos, Andréa Grazziani, Vera Regina Rodrigues, Vinicius Aguiar de
Souza (Pingo), Maria da Graça Pardelhas, Nara Magalhães, Nair Negrão Cauduro,
Agradeço ao meu amor, Renata, por tudo que significas para mim. Os
caminhos da vida são meio malucos às vezes... mas agora não deixo você escapar
nunca mais!
“caminho”...
6
Ao RAÍZES D’ÁFRICA, pelo aprendizado nos caminhos do coração. Me sinto
Ao IACOREQ pela possibilidade se sentir que sempre vale a pena se lutar por
algo!
acolhida.
trabalho.
7
Naquele tempo, o mundo dos
espelhos e o mundo dos homens não
estavam, como agora, incomunicáveis.
Eram, além disso, muito diferentes; não
coincidiam nem os seres, nem as cores, nem
as formas. Ambos os reinos, o especular e o
humano, viviam em paz; entrava-se e saia-
se pelos espelhos. Uma noite, a gente do
espelho invadiu a Terra. Sua força era
grande, porém ao cabo de sangrentas
batalhas as artes mágicas do Imperador
Amarelo prevaleceram. Este rechaçou os
invasores, encarcerou-os nos espelhos e
lhes impôs a tarefa de repetir, como numa
espécie de sonho, todos os atos dos
homens. Provou-os de sua força e de sua
figura e reduziu-os a meros reflexos servis.
Um dia, entretanto, livrar-se-ão dessa
mágica letargia.
O primeiro a despertar será o Peixe.
No fundo do espelho perceberemos uma
linha muito tênue e a cor dessa linha não se
parecerá com nenhuma outra. Depois, irão
despertando as outras formas. Aos poucos
diferirão de nós, aos poucos deixarão de nos
imitar. Romperão as barreiras de vidro ou de
metal, e dessa vez não serão vencidas.
Junto às criaturas dos espelhos combaterão
as criaturas da água.
8
RESUMO
um complexo quadro social, repleto de agentes e nuances que nem sempre são
9
enquadramentos que dialogam com as historicidades dos grupos e que produzem
10
ABSTRACT
seek to offer a broader view of the ways we interpret the technical reports, as well as
This work has as background the innovations brought by the article 68 of the
variability of the etnographic contexts presented defy any attempt of simple deductive
operation using as reference the quilombola category. I start from the premise about
operations and the anthropological categories. Using as base the situations and
“scenes” from my field work with quilombolas communities of the Rio Grande do Sul
of the collective memory, and of elements of territorialities, not always visible and
apprehensible within the scope of the operation of the technical report. The legal
of the identitary production of these social groups, not being present, however, as a
sole feature. In this sense, there are different frameworks that dialogue with the
nature.
11
Key-words: social recognition, memory, territoriality, social creativity, ethnography.
12
SUMÁRIO
INTRODUÇÃO .......................................................................................................... 15
2.1.1 Dona Edwirges: a escravidão e o emblema das lutas atuais. ........................ 100
3.7 “Tudo faceiros nas terras dos pretos!” Arquivos mentais coletivos. .................. 189
13
4 RINCÃO DOS CAIXÕES. RECONHECIMENTO EM MÚLTIPLOS NÍVEIS. ....... 202
5.2.2 O quilombo “em aberto”. Sentidos possíveis no espaço do relatório técnico. 321
14
INTRODUÇÃO
“janela”. Uma janela que, quando aberta, nos proporciona lançar um olhar até onde
“a vista alcança”.
etnográficas por mim vivenciadas e elencadas a seguir, trazer à luz aspectos que
um “organismo vivo” que trabalha com elementos da vida coletiva que vão muito
1
Minha dissertação de mestrado intitulada “Nossos heróis não morreram: um estudo antropológico
sobre formas de ‘ser negro’ e de ‘ser gaúcho’ no Rio Grande do Sul” constitui-se num desdobramento
de processo por mim vivenciado junto à equipe que realizou um Inventário Nacional de Referências
Culturais que tinha como foco a participação dos lanceiros negros na Revolução Farroupilha. A
dissertação foi defendida neste mesmo programa de pós-graduação em antropologia social.
15
presente tese, a constituição de um vaso comunicante entre as evidências
16
Em 2007 iniciei meu trabalho de campo em duas comunidades quilombolas
como camada fundamental, porém, não única das lutas morais por justiça do grupo
17
quilombola. A etnografia, mais uma vez, num processo de “escavação” de memórias
subversivo que parecia ter resistido ao tempo. Além disso, esses “encantados”
2
A equipe foi composta, além de mim, por Mariana Balen Fernandes (antropóloga), Aderval da Costa
(antropólogo) e Vinícius P. de Oliveira (historiador).
18
silenciamentos. Neste sentido, as classificações operatórias administrativas estavam
relativamente em risco.
antropólogo passa a figurar outros papéis, que carregam, inclusive, relações afetivas
“criatividade” sofra certa redução no processo de tradução das categorias. Se, por
19
“categorias administrativas”, configura-se, em outra medida, uma capacidade
estudadas.
como os limites e as possibilidades deste jogo são dados no próprio embate; não se
20
social: é quando se encontra nexos conectivos com a memória do “outro” que se
ainda, nem sempre se encontra visível a “olho nu”, normalmente em decorrência das
vida e suas historicidades. Além disso, tem-se uma série de práticas locais de
justiça, através de avaliações morais, por parte dos quilombolas, sobre situações do
tanto, os capítulos desta tese são construídos com o objetivo de dar conta destes
um contato etnográfico continuado com este grupo, desde o ano de 2007, pude
22
presenciar diferentes nuances da construção identitária. O contato por um período
apreensão de vários papéis assumidos pelo próprio etnógrafo, ora tomando a figura
de um agente Estatal, ora assumindo outros papéis elencados pelo próprio grupo
tempo em que ela aciona uma função aglutinadora, apresenta-se também enquanto
evidencia uma construção que atende fins morais, articulados no grupo, e que
categorias religiosas.
comunidade do Rincão dos Negros, situada no município de Rio Pardo, Rio Grande
uma ênfase especial na apreensão, por parte do grupo, de um território nem sempre
23
que ocupam um papel conector do território, fornecendo um elemento multiplicador
da memória.
dotam a palavra de poder, fazendo com que ela ecoe no seio do grupo, repercutindo
que a memória muitas vezes acaba sendo articulada com uma técnica do
de grupos que realizam um corte relativo entre o lembrar e o falar. No contexto atual,
acerca das situações vividas pelo grupo. Faz parte do objetivo do capítulo
24
demonstrar como o atual pleito quilombola vivenciado pelo grupo é parte de um
negro no Brasil que apontam para a riqueza de contextos e situações que dialogam,
2002; Anjos & Silva, 2004; Barcellos, et.alli., 2004; Carvalho, 1996; Chagas, 2005;
simbolicamente para fora do domínio da civilização (Almeida, 2002). Esta noção que
3
Desde a reforma constituinte de 1988, no Brasil, abriu-se a possibilidade de reconhecimento dos
espaços que guardam relação histórica com a escravidão, assegurando-lhes direitos territoriais. O
Artigo 68 do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias (ADCT) trouxe consigo um aparato
legal que procura relacionar comunidades negras contemporâneas, portadoras de determinadas
especificidades étnicas, com a experiência histórica dos quilombos. Esta inovação constitucional
trouxe consigo uma abertura de discussões relacionadas à pauta quilombola, que se desenrolam até
o atual cenário contemporâneo. Em diálogo com esse artigo constitucional, temos hoje o Decreto n.
4.887/03 e a Instrução Normativa n. 49 (IN 49), que se constituem enquanto aparato
infraconstitucional que vêm a regulamentar o artigo acima citado. Essa inovação do ponto de vista
étnico-territorial no Brasil ganha as seguintes palavras no texto constitucional: “Aos remanescentes
das comunidades de quilombos que estejam ocupando suas terras é reconhecida a propriedade
definitiva, devendo o Estado emitir-lhes títulos respectivos”.
4
Esse tema possui uma história mais longa que remonta, em sua gênese, a diferentes estudos e
enfoques sobre comunidades negras rurais no Brasil (Brandão, 1977; Vogt & Fry, 1996; Bandeira,
1988; Gusmão, 1990).
5
Almeida (2002) demonstra como diferentes autores tomaram como referência uma noção jurídica-
formal de quilombo do período colonial, como aquela formulada como uma “resposta ao Rei de
Portugal” decorrente de uma consulta feita ao Conselho Ultramarino de 1740. Segundo esta versão
corrente, o quilombo seria definido por critérios fundamentais que envolvem a fuga, uma quantidade
mínima de “fugidos”, a ideia de um isolamento geográfico (fora da civilização, em um espaço de
natureza), a existência de um “rancho” e de “pilões” (Almeida, 2002).
25
idílico e fora das relações de produção e de mercado, gerando “outro tipo de divisão,
abolição – que não foram incorporadas nas definições formais acerca do quilombo,
formais do ambiente colonial (Almeida, 2002). Extensivo a este elemento, existe todo
cidades (Gomes, 1996). A reflexão destas relações coloniais complexas aponta para
político-jurídico que se articula com a historicidade destes grupos (algo que não
26
e sociais, lutando pelas suas sobrevivências físicas e simbólicas, não obstante a
6
Arruti (2008) demonstra como o quilombo, do ponto de vista teórico, apresenta uma genealogia que
resulta em diferentes possibilidades interpretativas. Em um primeiro plano analítico, temos as versões
que colocam o quilombo como reproduções de “modelos africanos”, uma forma de resistência cultural
que promoveria relações diretas com a África. Em um segundo plano, temos uma interpretação
classista do quilombo de Palmares, onde ali é visto um foco de resistência popular com relação às
estruturas de dominação. Um terceiro plano de ressemantização do quilombo é encontrado no
movimento negro que coloca o mesmo num plano de ícone da resistência negra. Os bastidores das
discussões em torno do artigo 68 do ADCT da CF revelam pelo menos duas posições delineadas:
uma diretamente ligada à militância, que entende o quilombo como um ponto fundamental de
resistência da cultura negra, e outro, diretamente relacionado com as demandas por acesso à terra e
à reforma agrária (Arruti, 2008).
27
elemento sempre acarreta em nova fixidez das categorias nominativas do Estado,
que não dão conta dos processos apresentados através dos “fatos sociais
quilombolas”.
elemento central da trama reflexiva que irá seguir: a questão da variabilidade. Algo
deve ser dito, de antemão, sobre este elemento que permeia toda a minha reflexão.
De que tipo de variabilidade estaria aqui falando? Em que sentido, mais ou menos
28
alteridade radical, onde os grupos sociais são colocados sob a suspeita de pouca
de devir histórico das categorias vindas “de fora”. A tese recai sobre esses
construção identitária.
perícias nos estados do Rio Grande do Sul e do Sergipe, a serviço de uma reflexão
que dialogam com camadas históricas específicas, apesar de não dialogarem com a
no fundo uma "dobra" daquilo que é possível ser apreendido pela visão nativa
acerca de suas histórias. Interessa, nesse sentido, lançar o olhar a estes aspectos
acabam por tomar formas mais subversivas. Interessa, contudo, evidenciar o caráter
técnica – mesmo que dialoguem de forma intensa com este momento importante de
vida social, como a memória coletiva do grupo analisado, como resultado único de
identidade étnica ainda é uma questão a ser desvelada. Ao tomar contato com as
que compartilham de seu “entorno”. Vale notar que, devido à morosidade hoje
locais, mas que dizem também respeito a uma reconfiguração de suas relações no
âmbito local a partir dos desdobramentos dos pleitos. Parte-se da premissa que o
lentes para estas outras camadas do fenômeno étnico que se apresentam para um
proposto por Barth (2003). O “nível micro”, que se relaciona com o contexto vivido e
estas “grandes políticas” para os universos locais. Toma-se como ponto de partida
que o Estado brasileiro, através de seu aparato com relação à questão quilombola,
percurso etnográfico de pelo menos dois pontos de vista: um que diz respeito à
importante, versa sobre um revisitar conceitual que incorpore uma nova luz e novos
ângulos sob o trabalho de campo vivenciado nos últimos anos junto às comunidades
quilombolas.
33
1 JANELAS CONCEITUAIS E LEITURAS ETNOGRÁFICAS.
operador analítico, com diferentes níveis dos grupos sociais estudados. Interessa
aqui, além de seu papel produtor de coesão grupal, avaliar os sentidos “em
34
coeherence to practices of memory by having recourse to an
anthropological concept of culture (Fabian, 2001, p. 159).
(Fabian, 2001). Neste sentido, na presente tese, se lida com níveis que estão para
Porém, ao tratarmos com minorias, lidamos com certas fraturas que se expressam
35
“memória recalcada” que pode ou não chegar aos espaços públicos, tornando-se
memória coletiva, não se encontra mais imersa apenas nas redes de sociabilidade
como universo de análise para o seu argumento etnografia realizada na Índia, que
tem como palco as disputas sobre um templo (Sri Partasalati Svami) na cidade de
memória, neste sentido, não obedece a uma lógica evocativa livre; faz-se necessário
cuidado de não situarmos a memória em um local que responderia apenas aos fins
antemão que constituem a memória e que não estão deslocados de seus contextos
37
socioculturais. Se sempre houve uma ressemantização das memórias locais em face
sobre esse tema que aponta para as relações específicas que esses grupos sociais
encaixe em categorias, devido à imensa complexidade dos grupos que poderiam ser
38
“precisa-se de uma abordagem histórica que trata do contexto específico em que
surgiu e dos contextos em que foi defendido e/ou reafirmado”. (Little, 2002, p.3-4).
administrativos que tem a função de produzir uma precisa delimitação de uma área
grupos estudados. Não se trata de pensar o mapa como não representativo das
entender o território não aparece apenas como um local da identidade, mas também
que dialogam com camadas históricas específicas, apesar de não dialogarem com a
acerca de suas histórias. Interessa, nesse sentido, lançar o olhar a estes aspectos
aqui seria sobre o “interesse”, por parte destes agentes, acerca das complexas
simbólica destes grupos, criando “imagens subversivas” do passado que não são
nativas, repletas de tramas cifradas sobre o passado, podem ser interpretadas pelas
lentes jurídicas?
Existem versões de justiça que talvez não sejam tão óbvias a um leitor
mais ou menos recentes vivenciadas junto aos setores públicos, podem servir de
trata apenas de mostrar ao Estado que o pleito é justo. Obviamente, a relação com o
41
noções de justiça presentes no campo não parecem se construir apenas na busca
possibilidades neste sentido são bastante variadas e acabam por produzir uma
(Honneth, 2003).
por níveis e camadas. O foco recai sobre esquemas de reconhecimento sociais que
lidam com “esquemas locais da vida nativa”, onde os quilombolas lutam por
frente, portanto, a lutas por reconhecimento que possuem uma vocação moral,
42
morais, e de maneira tão tenaz que incumbe hoje ao modelo de
conflito baseado na teoria do reconhecimento, além da função de
complementação, também a tarefa de uma correlação possível:
mesmo aquilo que, na qualidade de interesse coletivo, vem a guiar a
ação num conflito não precisa representar nada de último e
originário, senão que já pode ter se constituído num horizonte de
experiências morais, em que estão inseridas pretensões normativas
de reconhecimento e respeito – esse é o caso, por exemplo, em toda
parte onde a estima social de uma pessoa ou de um grupo está
correlacionada de modo tão unívoco com a medida de seu poder de
dispor de determinados bens que só a sua aquisição pode conduzir
ao reconhecimento correspondente (Honneth, 2003, p.261-262).
vida cotidiana desses grupos que se atualizam através de relações identitárias onde
percurso dos quilombos possuem uma atuação enfática na mediação com o aparato
grupos sociais.
43
apreensão de determinadas escalas do reconhecimento auxilia no entendimento da
podem ou não produzir um encadeamento de fatos da vida social que faça com que
coletivo:
44
importante nos esquemas da vida local. Reconhecimento, contudo, como se
evidenciou durante o trabalho de campo com estes diferentes grupos sociais, não
emergência de um sujeito que agora possui uma “voz” e torna-se participante dos
reconhecimentos identitários.
realiza uma operação dialética com dois autores em especial: o filósofo idealista
cunho social. O projeto do filósofo e sociólogo alemão Axl Honneth consiste na fuga
direção, encontra respaldo nas reflexões do psicólogo social Georg Herbert Mead, o
autoestima do indivíduo encontra um tipo de “porto seguro” de base ética que possa
Porém, conforme pontua (Maia & Garces, 2012), ao refletir sobre os alcances da
lutas sociais como algo homogêneo. Existem uma série de mediações que conectam
estas lutas morais no seio destas comunidades que devemos relevar, sob pena de
sujeitos mobilizam-se e são mobilizados pelo pleito coletivo através dos processos e
tramas sociais.
levou por reflexões que vão desde a aplicação destas políticas públicas até
nos caminhos que serão tomados nessa tese. Pretendo fornecer elementos que
46
Já em minha dissertação de mestrado, defendida em 2006, pelo mesmo
no estado. Essas memórias apresentaram uma matriz. Essa matriz é enraizada por
narrativas míticas que tomam como ponto nodal a figura dos combatentes negros
que lutavam sob o comando das tropas farroupilhas: os lanceiros negros. Mas a
dessa releitura mítica evocada pela memória. Memória, bem da verdade, entendida
como constituída pelo imaginário social. Já que a estrutura mítica não apresenta
todas as respostas é preciso preencher a memória com algo que promova sentido
poder-se-ia dizer que o ato vem a afetar a forma como o negro é visto e
representado na história gaúcha. Seja pela história oficial, que acaba sendo
“pressionada” por um revigoramento dos “fatos”, seja pela história narrada, que se
vê às voltas com novas versões da vida social que não podem ser negadas. Na
“negro-gaúcho”.
47
Do ponto de vista da pesquisa etnográfica, o caminho dessa identidade
essa ação não se situavam num ponto específico do espaço (ou do tempo). Daí a
48
construção de um trabalho etnográfico de muito fôlego, redigido a muitas mãos. E,
creio eu, não poderia ser de outra maneira, devido à complexidade daquele grupo
dúvida alguma, o laudo de Morro Alto foi realizado em um momento que se firmou
De qualquer forma, fica bastante claro que o universo de sentidos captados nessa
próprio laudo que, em última análise, seria o objetivo mais evidente de todo o
processo.
é algo que gerou e ainda gera discussões a respeito das lideranças, que por vezes
49
Em 2004, participei do grupo de pesquisa7 encarregado da realização do
bastante emblemático por uma gama de motivos e, entre eles, pelo fato de
segundo seus críticos, seria falso. De uma forma bastante geral, poder-se-ia dizer
quilombo em meio a um dos bairros mais nobres da cidade de Porto Alegre, o bairro
Três Figueiras. Além disso, outro elemento bastante recorrente nos discursos
dos relatórios técnicos) e/ou indiretamente (no caso dos trabalhos acadêmicos
7
A equipe de pesquisa responsável por este trabalho era composta pela antropóloga Ana Paula
Comin de Carvalho, pelo historiador Rodrigo de Azevedo Weimer e por mim, então mestrando em
Antropologia Social pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul.
50
administrativos e acadêmicos. As discussões que envolveram a construção da
experiências sociais dos grupos estudados. Este rigor parece inatingível no que
onde “as regras nem sempre se prestam a ser formalizadas nem ditas, como no
58).
8
A preocupação com a constituição de uma “área efetivamente ocupada”
baseia-se no receio sobre possíveis impactos negativos que uma área definida
(na definição de áreas indígenas e de trabalhadores sem terra, por exemplo). Esta
da “natureza humana” que age através de uma atitude autointeressada por bens e
8
Em 2009 o deputado Valdir Colatto, aponta para uma possível atitude interessada envolvida nos
pleitos territoriais quilombolas: “A partir do mecanismo da auto-titulação, que está previsto no
Decreto, qualquer pessoa pode reivindicar as terras que indicar necessárias. Precisamos mudar este
dispositivo para não levar prejuízos aos produtores que possuem terras tituladas e para evitar a ação
de aproveitadores. Por isso vamos mostrar à AGU quais pontos estão sendo desrespeitados”, disse
Colatto. Não somos contra a demarcação das terras, mas precisamos ter critérios claros. Do jeito que
está esse decreto está levando insegurança para o campo, concluiu”.
51
complexidade e variedades de situações encontradas nos trabalhos de campo.
de uma “natureza humana” interessada, pode evitar “um fim trágico ao se imaginar
que a variedade etnográfica não existe, ou decretar, simplesmente, que ela venha a
também uma idéia de hipervalorização do étnico vista como algo artificial, seja nos
(Leite, 1999) dos grupos quilombolas no cenário mais amplo. Deve-se que destacar
presa a um momento do quadro político: uma fotografia que acaba por cristalizar um
institucionais.
político. Não cabe aqui realizar um longo apanhado sobre as teorias da etnicidade
(Streiff-Fenart & Poutignat, 1998; Vermeulen & Govers, 1997). Tendo em vista a
nossa pretendida perspectiva dentro do debate intelectual que se figura, basta dizer
dessas perspectivas a priori, pois a perspectiva aqui é que elas não devem ser
54
Segundo as críticas que conferem uma razão unicamente instrumental aos
identitário. Segundo outras versões, existiria um exagero nos processos quem vem
vista, a resposta a essa critica não seria a recaída numa versão estritamente
o mundo jurídico, com o mundo dos papéis. Mais de uma vez houve tentativas no
sujeita a litígio. A questão de fundo que já podia ser colocada naquele momento era
55
a respeito dos regimes de propriedade e suas relevâncias. Ora, o que deveria ser
jurídico que toma o espaço enquanto mercadoria. Porém, do ponto de vista desses
relação ao seu entorno. Parecia ser uma questão fundamental, dentro de um embate
satisfazer certas exigências para entrar na ordem do discurso (Foucault, 2001). Não
56
Entendo que o processo social de afirmação étnica, referido aos
chamados quilombolas, não se desencadeia necessariamente a
partir da Constituição de 1988, uma vez que ela própria é resultante
de intensas mobilizações, acirrados conflitos e lutas sociais que
impuseram as denominadas terras de preto, mocambos, lugar de
preto e outras designações que consolidaram de certo modo as
diferentes modalidades de territorialização das comunidades
remanescentes de quilombo. Sob esse aspecto, a Constituição
consiste mais no resultado de um processo de conquistas de direitos
e é deste prisma que se pode asseverar que a Constituição de 1988
estabelece uma clivagem na história dos movimentos sociais,
especialmente daqueles baseados em fatores étnicos (Almeida,
2004: 12).
uma série de comunidades negras pelo Rio Grande do Sul que não passavam por
situações tomando-o como único ponto de partida. Lidamos com comunidades que,
9
A equipe que constituiu este projeto contou com a presença de Cristian Jobi Salaini, Vera Regina
Rodrigues, Luciana Conceição e Luisa Andrade. O projeto foi financiado pela FAPERGS (Fundação
de Apoio do Rio Grande do Sul) e ocorreu junto ao NACI (Núcleo de Antropologia e Cidadania) da
Universidade Federal do Rio Grande do Sul.
57
quilombolas (embora isso não tenha impedido que fossem nomeadas e arroladas
tradições”:
58
Ao pensar numa relação de adequação entre o idioma étnico vivido por essas
Roy Wagner, o qual aponta para a dimensão inventiva da cultura. Ele trabalha,
pela existência de certo consenso simbólico que permite, através de uma estrutura
Porém, não se lida com um tipo de estrutura formal que estaria, a priori, calcada na
relação signo-signo: são as relações entre os signos que produzem um efeito que
10
Vale ressaltar que esse contato é atravessado por discursos que trazem diferentes conteúdos
sobre noções acerca da multiculturalidade. O antropólogo Stuart Hall nos traz uma gradiente de
possibilidades ao multiculturalismo, segundo a estratégia adotada por determinado Estado Nacional.
Encontramos desde um “multiculturalismo conservador”, onde a questão seria a assimilação dos
diferentes movimentos culturais às tradições da sociedade majoritária, até um tipo de
“multiculturalismo revolucionário”, onde o foco recai exatamente nas estruturas de poder e privilégios
assim como nos movimentos de resistência (Hall, 2003).
59
antropólogo faz parte do domínio da cultura, escapando a qualquer tentativa de
lançar o olhar rumo à existência de uma relação dialética entre o conceito em sua
camadas de sentido.
científicos. A autora aponta para o fato de, não obstante as inúmeras perspectivas
enquanto uma base incontornável das discussões teóricas que circundam o tema:
60
ponta a ponta, a literatura – ainda que em graus diversos e segundo
configurações variáveis (Boyer, 2009, p. 134).
“melhor apresentar o seu dossiê”. Teríamos aqui trabalhos guiados, a priori, por um
61
quilombola” reforça a idéia de um ser coletivo genérico cuja
representação integra amplamente as “antigas” qualidades atribuídas
ao Negro: a dança, o gosto pela festa e a música (Boyer, 2011, p.13).
proposta por Arruti (2002) na sua análise sobre direitos etno-raciais, culturais e
fundiários. Essa perspectiva parece alinhada ao que nos traz Sansone (2004) em
relação à identidade étnica como fenômeno que não deve ser essencializado, mas
Lida-se aqui com uma conjuntura contrária a uma lógica estática nas relações
inicialmente, tanto o campo político quanto o acadêmico lidam com noções pré-
Isto me leva ao diálogo com o filósofo alemão Axel Honneth, que atenta para
62
recursos pela via do reconhecimento à diferença. Nesta linha, a questão relativa ao
instrumentais, ficaria esvaziada. A questão relevante, a meu ver, reside no fato das
peças periciais com fins de reconhecimento territorial, o mesmo não era verdadeiro
laudos antropológicos As comunidades alvo foram Morro Alto (Osório Maquine), São
11
A equipe de pesquisa foi composta por mim, Cintia Beatriz Muller (antropóloga), Sherol dos Santos
(historiadora), Marcia Muller (geógrafa) e Ciane Fochesatto (geógrafa). Os três relatórios técnicos que
foram realizados sob este convênio foram coordenados pela professora Dra. Denise Fagundes
Jardim.
12
Durante o ano de 2006, através de um convênio firmado entre a UFRGS (Universidade Federal do
Rio Grande do Sul, INCRA (Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária) e FAURGS, foram
realizados os relatórios técnicos de três comunidades no Rio Grande do Sul: Comunidade Quilombola
da Mormaça (Sertão/RS), Comunidade Quilombola Luiz Guaranha (Porto Alegre/RS) e Comunidade
Quilombola Chácara das Rosas (Canoas/RS).
63
Miguel e Martiminianos, Vila Mormaça e Arvinha (estas duas últimas localizadas no
município de Sertão). Nesse momento, a produção pericial ainda não era mediada
pela atual conjuntura jurídica vigente – como o decreto 4.887/03 – e o processo não
Enquanto uma das áreas totalizava 78 hectares, a outra fora avaliada em 1472
hectares. Uma pergunta bastante óbvia, que se colocava à minha frente, nesse
Mas, afinal, qual seria o motivo da diferença contida nos dois laudos
para a questão. Sem dúvida, num contexto tão recheado de forças e visões sobre o
que poderia ser ou não um quilombo, ou ainda, sobre como deveria ser definido um
porém, num contexto muito nitidamente cruzado de diferentes forças, essa relação
configurado pelas ações afirmativas, é algo restrito de uma experiência mais vasta
priorização sobre como os sujeitos refletem sobre essas relações que são
desemboca num tipo de análise dessas comunidades que dialoga diretamente com
65
historicidades próprias ao grupo que sirvam enquanto argumentos técnicos passam
como mediador entre o “mundo dos nativos” e o “mundo jurídico”, e seu trabalho,
culturais e identitários. Outra razão: quando se trata de realizar laudos para garantir
quilombo, sua voz tem um peso superior a dos outros. Trata-se de uma voz
66
identidade de um grupo e, sobretudo, quando se trata de assegurar a legitimidade
ou a existência de um suposto quilombo, uma voz entre outras aparece como mais
objeto é reconhecido: se o quilombo é algo é também algo “do passado”, uma das
históricos são concretos e podem ser verificados por quem quer que seja.
Vale ressaltar que o contato do antropólogo com o grupo “em perícia” resume-
por um lado, contribui ao reconhecimento identitário do grupo, por outro, pode estar
científico” parece ser uma falsa questão. O que importa – e o que define – tanto os
que se pode aprender da construção de laudos parece ser uma questão relevante
(O´Dwyer, 2005).
67
expressão territorial. Trabalhei, enquanto antropólogo, na confecção do relatório
Rio Pardo, no Rio Grande do Sul. Quando iniciei minha inserção nessa comunidade,
andamento do trabalho que estava sendo por nós dirigido naquele momento. O
Rincão dos Negros, foi de uma comunidade pouco articulada politicamente em torno
do pleito que ali se desenvolvia. Além disso, outro elemento que gerou preocupação
ao lado da outra: a igreja dos pretos e a igreja dos brancos. Essa coexistência já
13
A equipe de pesquisa era composta por mim, na condição de antropólogo, pela antropóloga
Mariana Balen Fernandes e pelo historiador Alejandro Gimenez.
14
Em http://www.incra.gov.br/index.php/institucionall/legislacao--
/atosinternos/instrucoes/category/31-instrucoes-normativas
68
parecia transparecer algo sobre as forças concorrentes e, como saberíamos depois,
mais panorâmico, tínhamos um território quilombola que estaria com seu acesso
chegando a eles através das indicações locais. O que ocorria, com bastante
foi aquela que através de um testamento deixou suas terras aos seus escravos. Daí
empreendido pelos seus escravos. O que importa, nesse momento, é falar da alta
tratava-se da boa senhora, daquela que fez a boa ação de deixar suas terras aos
69
comunidade à figura de Zumbi dos Palmares, é exemplo disso. Por representar
na noção local que informava que “onde tem uma taquareira, tinha uma casa de
preto”. Essa noção era de tal forma útil que acabou se tornando um tipo de recurso
negro poderia ser visualizada, em grande medida, pelo recorte gráfico realizado
pelas taquareiras. Logo, tínhamos uma territorialidade muito evidente que, através
da ação narrativa, tornou-se mais viva do que nunca. Apesar de, num primeiro
momento, esse dado nos parecer distante, ou, pelo menos “mascarado”, era muito
evidente a existência relativamente nítida desse território que cada vez mais se
iniciais pareciam apontar, o território estava vivo e nítido e esse fato era então
70
Fotografia 1 – Conceição da Bela Cruz e Igreja de Nossa Senhora da Conceição.
Alegre, ocupa uma localização geográfica que a coloca numa situação de difícil
acesso, algo que nos remete ao início da trajetória desse grupo social, que ocorre
mais de 100 anos atrás. O grupo compartilha a noção de que o seu território
15
Esta equipe foi composta por Cristian Jobi Salaini (antropólogo), Sherol dos Santos (historiadora),
Lucimar dos Santos Vieira (geógrafa) e Leonardo Rafael dos Santos (sociólogo) e Ieda Ramos. Este
trabalho foi realizado através de uma parceria entre o INCRA e o LABORS (Laboratório de
Observação Social) da UFRGS.
71
funcionava como um local de fuga e isso tem relação direta com o seu principal mito
com mais detalhes no decorrer dessa tese), teria chegado “fugida” no território hoje
estende até os dias de hoje. O que gostaria de ressaltar nesse momento, e que
apresenta relação direta com as aspirações da presente tese, é que sua figura ecoa
relação ao quilombo do Rincão dos Negros. Existe um registro sobre o espaço que
forma como elementos da mitologia afro-religiosa são alocados pelo espaço são
religioso. Interessa-nos, aqui, o papel que essa mitologia tem na produção de valor
imaginar o longo sentido histórico que se encrava no território quilombola e que faz,
até os dias atuais, parte das categorias do grupo. Mas nesta busca acerca das
72
epistemológicos no que concerne à construção de uma memória coletiva. É neste
sentido que entendemos a memória enquanto uma prática – uma ação – que
Nesse sentido, a tradução dos aspectos identitários dos grupos não devem se
utiliza de um registro histórico mitológico, e essa alteridade parece non sense aos
qualquer forma, o que se coloca aqui é um diálogo entre partes que nem sempre se
atualizam frente aos mesmos códigos. É bem verdade que uma camada do discurso
ainda me parece que devemos focar na forma como esses diálogos são promovidos
Estado, que procura se relacionar com “justiças locais”, que representam um caráter
74
Em 2008, em minha experiência na comunidade quilombola do Rincão dos
Caixões16, tive uma experiência etnográfica que mais uma vez corroborou com
apreensão. É como se tivéssemos caixas dentro de outras caixas que nos levam a
O Rincão dos Caixões encontra-se numa das faixas limítrofes dos municípios
que numa das primeiras visitas por mim realizadas a tal comunidade, e que contava
receio) a um sujeito que passava pela estrada, ele nos disse: “Vocês devem estar
Santos, matriarca do grupo quilombola) uma comunidade dos moreno, não é?”. A
como distinta pelo seu entorno. Apesar das resistências ao quilombo, que aparecem
16
A equipe de pesquisa responsável por este relatório foi constituída por Cristian Jobi Salaini
(antropólogo), Vinicius Pereira de Oliveira (historiador) e Luiz Fontoura (geógrafo).
75
administração pública local conheciam tal comunidade; tratavam-se dos “Mariaco”,
dos morenos.
acaba evocando "ecos" e ressonâncias que indicam lugares, relações com esses
lugares e, o mais importante, noções implícitas de justiça que estão como que
Passado esse breve contexto inicial, gostaria de trazer o fato de que apesar
76
através de processos evocativos da memória, se reencontra com porções territoriais
que acabam por traduzir uma "refração" naquele espaço aparentemente tão sem
tive contato com o homem que realizou doação de parte expressiva de suas terras a
uma mulher que vinha de outro grupo social das proximidades do Rincão dos
para a produção de uma lógica diferenciada do território, que não respeita as lógicas
processos históricos calcados nos sistemas escravocratas locais, algo que, por si só,
77
ordenamento da Instrução Normativa 57, apontava, por parte da administração
forma clara na própria instrução normativa e, de forma mais ou menos velada, nas
fundo que se coloca aqui apresenta relação com uma falta de “contrastividade
cultural” (O’Dwyer, 2010) em relação a outros grupos sociais. Cabe notar que o
próprio setor administrativo – além da comunidade local de uma forma mais geral –
possuir uma tradição de longa data ou, ainda, de forma específica, eles “mal sabiam
alguma história sobre escravos, o Pontal nunca foi um quilombo”. O discurso acerca
78
O antropólogo Richard Price se declara chocado com a falta de
tradições orais profundas, como no ‘quilombo’ do Rio das Rãs,
(Bahia) e faz referência a uma vasta gama de continuidades culturais
com outras comunidades rurais brasileiras, o que contrasta com os
exemplos de quilombo que sustentam sua ‘diferença’ em relação a
comunidades não quilombolas como no Suriname. Enfim, esta visão
aponta para pouca contrastividade cultural e ‘continuidade’ no tempo
de quilombos do Brasil. Deste modo, no Suriname é evidente uma
notável ‘diferença’ cultural, social e política até mesmo para o olhar
mais desavisado. Desta perspectiva, poucos dos afro-brasileiros
classificados como “remanescentes de quilombos” seriam vistos
como quilombolas, como é o caso dos Saramaka, Ndyuka e Aulku do
Suriname, Mooretown e Accompong na Jamaica e Palenqueiros de
San Basílio da Colômbia. Tal visão sobre a pouca contrastividade
cultural e continuidade no tempo dos quilombos no Brasil em
contraposição à América Latina, encontra-se referida ao paradigma
africano de etnias (O’Dwyer, 2010, p. 23-24).
lugar à constituição de uma “técnica de lembrar”. Não apenas a memória per se,
social.
Porém, algo me saltou aos olhos logo nas primeiras visitas realizadas nessas
realmente muito difícil encontrar alguém que não tenha vivido ou ouvido falar sobre
alguma situação que envolvesse certas forças sobrenaturais – “os encantados” - que
O negro d´água tem aparição freqüente numa lagoa que leva o seu nome: “a
lagoa do negro d´água”. Esta lagoa localiza-se nas proximidades de uma antiga
escravos que ali habitavam. O negro d´água, segundo as narrativas locais, acaba
envolvendo e levando para o fundo das águas aqueles sujeitos que se aventuram de
forma desmedida pela lagoa. É preciso ter cuidado com o negro d´água, pois ele é
apresenta como um homem negro que tem a metade inferior de seu corpo na forma
de um peixe. Já foi visto como uma mulher negra de cabelos longos, e outros dizem
que ele pode aparecer transmutado na forma de duas crianças. O que importa é que
(um tipo de coração do mapa quilombola) que acaba sempre por evocar imagens e
ponto de vista da construção do relatório técnico, dizia respeito aos “fatos concretos”
80
Por exemplo, durante o período em que estive fazendo campo foram
muitas as situações sociais, no sentido de tomar a narração como
um evento social, em que pude ouvir histórias, como a do “neguinho
d´água” ou, mais tarde, o “nego que matou o senhor”, de tal modo a
dimensioná-la como expressão oral de uma sensibilidade jurídica do
grupo, de seus sentimentos de justiça que remontam sua relação
com a história da escravidão, e que os une sob uma cosmovisão
compartilhada – uma memória coletiva social – que toma expressão
independentemente das diversas situações jurídicas em que se
encontram as terras, das segmentações que marcam os grupos
domésticos, ramos familiares e parentagens, bem como do uso de
um discurso normativo de âmbito comunitário que não atém a
privilegiar unicamente a relação com a esfera legal estatal (Chagas,
2005, p. 121).
encadeiam frente aos pleitos territoriais. Porém, seria um exagero imaginar que os
que é dotado de uma complexidade nem sempre capaz de ser captada em sua
81
Fotografia 2 – Lagoa do Negro D’Água, na comunidade quilombola de Ladeiras.
olhar nesses contextos. Meu contato com diversidades raciais no interior do Rio
públicas específicas, sejam elas na área do patrimônio cultural, sejam elas na área
da regularização fundiária. 17
forma de condução dos trabalhos, sejam eles de ordem ética, sejam eles de ordem
periciais. Tendo em vista a função que os relatórios técnicos ocupam nos atuais
territórios quilombolas.
17
Desenvolvi junto ao NACI (Núcleo de Antropologia e Cidadania) um projeto de pesquisa que
apresenta como foco o “reconhecimento” de comunidades negras que não conflagraram nenhum tipo
de pleito junto às instituições públicas. Esse trabalho vem possibilitando um quadro geral das
experiências negras no estado. Essas relações nem sempre estão encadeadas por processos de
“etnogênese”. Ao contrário, suas complexidades são resultados de cenários locais dotados de
historicidades muito particulares.
83
A questão metodológica fundamental que se coloca diz respeito à constituição
o coevalness na forma proposta por Fabian (1983; 2001). Segundo o autor, muitos
antropólogos supõem que seus pesquisados são coevos a eles, pecam, contudo,
pesquisa de doutorado pretende resgatar essa dimensão “perdida” por mim devido
quilombola de Cambará/RS:
Daí ser necessário tomar cuidado para não situar os ‘nativos’ e, por
decorrência, as narrativas, em um outro tempo que não é o do
antropólogo. Contudo, o fato de antropólogo e ‘nativo’
84
compartilharem o mesmo tempo não significa que manifestem as
mesmas reações em face dele. É por isso que não reduzo as falas
dos homens e mulheres de Cambará às contingências históricas do
momento. Não considero essas narrativas como meras adequações
às perguntas do ouvinte (no caso em pauta, o antropólogo). Há de se
ter cuidado para não transformar o ‘informante’ num ‘respondente’
ou, dito de outra forma, em sujeito passivo da interação, cujas falas
manifestariam tão somente fluxos que o englobam e uma adequação
à curiosidade antropológica (Mello, 2008: 217).
desenvolve a seguir são quadros do trabalho de campo que acabam por levantar
perguntas. Para além das questões imediatas colocadas pelo ofício do trabalho de
ordem pericial, meu objetivo é introduzir novos ângulos e escalas de análise aos
processos vivenciados.
85
Sendo assim, a busca caminha no sentido da possibilidade de comunicação
entre esses diferentes textos culturais. Estão aqui expostas experiências que tomam
como ponto de partida os quadros de reflexão periciais que possuem uma série de
também fazem parte das derivações possíveis através deste “jogo de espelhos”
identitários que são construídos com relação a um “outro” e, ainda mais, através de
construções narrativas dirige para novos rumos, onde nem os antropólogos são
original em relação ao ofício etnográfico, precisa ser revisitada no que diz respeito
produzir novas leituras e narrativas acerca desses grupos que não derivem apenas
86
“coloridos” da vida social que não estão presos às caixas do relatório técnico. Não
Portanto, esse “revisitar” que se propõe aqui não tem, claro, aspirações
perto com a “vida nativa”. A própria mitologia grupal faz parte destas relações de
É neste sentido que se deve, sob pena de “pasteurizar” a vida nativa, fugir
87
Deve-se privilegiar as multiplicidades de espaços e tempos que constituem a
campo. Não ter isto em mente, “limpando” todo o campo das “incoerências”
social, onde os atores não são mais vistos como constituintes de processos
seletiva – que tem na teorização (ou na reificação de uma teoria) seu objetivo
culturalismo antropológico que acaba por produzir uma relação metonímica com o
seu objeto, já que a parte é comprada pelo todo. O objeto, portanto, não seria
temporalidades diferenciadas:
do tempo e do espaço. Se é verdade que a minha leitura etnográfica lança seu olhar
89
idéia dessa travessia é demonstrar que a escravidão não teve seu projeto findo com
90
A operação reflexiva aqui realizada não se situa nem no campo de uma
realidades apreendidas.
91
2. QUILOMBO DOS ALPES. A ETNOGRAFIA DO MÚTUO RECONHECIMENTO.
do trabalho de campo junto aos Alpes, não cheguei a dar um sentido concreto à
adjetivação. Dentre tantas coisas que ouvimos em campo, parece que são
campo, algumas coisas foram sendo reveladas. Se, de alguma forma, o antropólogo
também verdadeiro que o etnógrafo é cooptado pelo seu universo de pesquisa. Não
trago aqui esse elemento apenas para apresentar algo no mais nobre estilo “diário
2010). Não se trata de recair num campo de subjetividades irrestritas. Ou, ainda, na
impossível não dialogar com essa questão nas escritas etnográficas (Geertz, 2002).
antropólogo não “se torna” seu nativo, sob pena de assunção de todas as
certos abalos. Talvez não se possa falar de abalos que beirem a “conversão”
cultura estudada). Mas se trata de possibilidades de diálogos com o outro que estão
muito além do campo reflexivo produzido por um relatório técnico. Existe aqui a
93
Talvez de todas as experiências por mim vivenciadas durante a trajetória de
continuidade após esse período, foi possível estabelecer relação com diferentes
dessa assunção da identidade quilombola. Seja como for, posso dizer que o contato
colocando-me em “risco”.
segurança pelo quadro constituinte de forças, talvez o mesmo não possa ser dito
contato com esse grupo – que se estende até os dias atuais – talvez tenha
que compõem a identidade. Neste sentido, procuro trazer aqui diversos quadros que
buscam dialogar com essa “luta por reconhecimento”, que articula desde iniciativas
mais “organizadas” de pleitos até estratégias mais veladas, como a manutenção das
Meu objetivo aqui não é tentar traduzir meu contato com esse grupo no mais
quilombo dos Alpes. Ainda no início do meu trabalho de campo nos Alpes, no ano
2007, muitas das primeiras conversas com o grupo eram abertas com os fantasmas
recuarem das brincadeiras antes do cair da noite, apresentam-se aos gritos, aos
“assovios”. Além disso, outro elemento típico aos fantasmas dos Alpes, e
contudo, possuem uma identidade atribuída pela comunidade quilombola dos Alpes:
tratam-se dos antigos escravos que viveram na região. Algo sempre “no ar” durante
minha presença junto ao grupo diz respeito a estes escravos que, segundo a
95
Inicio este tópico com essa breve narrativa no intuito de apresentar aquilo que
uma metáfora das relações possíveis naquele espaço. Cabe notar que na percepção
do grupo esses gritos dos antigos escravos, que sempre “rondaram” o local, não
devem ser ignorados. Trata-se de um território que esteve aguardando por novos
relações com a memória, as premissas que pretendem permear todo este trabalho.
Certamente, como nos ensina Maurice Halbawchs, a memória atende certas funções
sociais que servem como “instrumentos utilizados pela memória coletiva para
reconstruir uma imagem do passado, a qual está de acordo, em cada época, com a
96
exatamente como um “critério de prova” da ocupação quilombola (Mas e os
com isso argumentar sobre uma ingênua “postura tabula rasa” que dirigiria o
que não possua algum tipo de estrutura conceitual a priori. Não se trata também de
outro que se apresenta de forma um tanto quanto ambígua ao “nativo”, e que pode
sua relação com o grupo estudado pode desenhar outras possibilidades identitárias.
esses “ecos” das práticas de Dona Edwirges. Não se trata, portanto, de “meros”
valorativas. Valores que hoje funcionam enquanto alavancas das lutas por
lembrança desta figura emblemática produz uma relação clara com a identidade do
grupo e gera uma relativa coesão, não é prudente esquecer o caráter processual
equânime por todo o grupo. Parte da parentela de Dona Edwirges, muitos que não
98
mais velhos: “Quem foi Dona Edwirges?”. Outros possuidores de imagens “mais
compartilhada pelo grupo, além da memória coletiva “em si”. Estas técnicas de
código que se articula com outras práticas, como o cuidado com as ervas, a
primário. Procuro evidenciar como o ato evocativo também revela um código que
situação com as crianças do quilombo que me fez pensar sobre estes tipos de
relações. Durante uma das brincadeiras (às quais eu não raramente era chamado a
participar) uma criança se apresentou a mim com um “louva Deus” nas mãos,
pedindo para que eu pegasse, de forma bastante natural. Seguido a este fato, uma
criança me puxou pelo braço dizendo: “Cristian, vamos lá ver a minha bananeira?”.
minha jovem interlocutora me incentivava a pegar uma banana, ela diz: “Foi a Janja
que ensinou, pois ela diz que a vó [Edwirges] já fazia essas coisas”.
99
Pretendo, portanto, destacar pelo menos dois elementos desses processos
para um determinado ponto do olhar. Diz respeito também a esses juízos produzidos
percepções morais, por sua vez, funcionam como um tipo de alavanca das lutas por
lembrar que reverbera pelo território como “técnicas nativas” destes saberes-fazer.
de prova” da ocupação negra da região. De uma forma geral poderíamos dizer que
esta expectativa se encontrava diluída num campo de atuação amplo que envolvia
temporais com a história da fundadora (tarefa que foi cumprida, penso eu). No
para muito além de um simples “uso do passado” para que busque dar sentido às
background simbólico do grupo que está para além das figurações do relatório
técnico.
São Jerônimo, Arroio dos Ratos e Charqueadas, no Rio Grande do Sul. Esta região,
de mão-de-obra escrava. Além disso, a expansão das charqueadas para além das
estâncias de Rio Grande produziu outras unidades nas margens das lagoas dos
101
Patos e Mirim, assim como do próprio Guaíba, fato que esquentou o contingente de
em algum distrito de Belém, por volta do ano de 1930. Outras irmãs de Edwirges
sentido de diminuição dos “custos de subsistência de sua própria casa, mas também
Dona Edwirges e seu marido, que “fugiram” de uma fazenda na qual trabalhavam
em Belém, segundo os relatos, andaram dias até chegarem ao Morro dos Alpes,
sociais do grupo. Ela apresenta uma clara relação com um substrato moral do grupo,
que produz noções sobre o justo e o injusto, via relações metafóricas entre passado
102
e presente. As atuais situações de dificuldades quotidianas são atualizadas em
segundo a sugestão local, como “mais uma das lutas... que já começaram lá na Vó”
[Edwirges]. Neste sentido, mais do que um tipo de memória que apenas delinearia
de um objeto sempre posto à reflexão, algo que envolve embates morais e efeitos
territorializantes profundos.
Edwirges. No que cabe ao presente estudo, pretendo ressaltar que essa memória
está delineando uma das “faces” do grupo em termos simbólicos, ressaltando a sua
103
Existe um relato principal trazido por diferentes entrevistados que apresenta
Dona Edwirges como uma mulher que “subiu o morro” em busca de refúgio. Isto teria
acontecido pelo fato de seu marido ter quebrado a guampa de um boi e, devido à
perseguição de seu “senhor”, teria sido necessário encontrar abrigo em algum lugar
caso não a fizessem, seu marido seria levado ao “tronco” e surrado por tal “senhor”.
que leva em consideração elementos como a “fuga do senhor”, que ocorre como
única alternativa possível de escape à tortura de seu algoz: a ida ao tronco. Mesmo
“Já era uma pessoa que veio fugida da escravidão. Deve de ser uma
escrava fugida de algum lugar... aqui no morro. Aqui bem dizer era
mato, não existia nada. O único refúgio era aqui em cima (...).
Fugida... vive só do trabalho. Eles obrigaram pessoas negras pra
vários locais... embarcaram pessoas negras. E nessa aí acho que ela
conseguiu. Ela trabalhava numa casa de coronel. E aí ela escapou e
veio pra cá. Acho que era escrava... ela tinha 127 anos... uma idade
bem avançada. Minha mãe dizia que ela olhava pro centro e achava
que era vaga-lume que tinha lá... a cidade se formando... nós
estamos dentro de um redemoinho aqui, um vulcão”.
“Quando ela veio pra cá veio já com o Tio Calo e o Tio Vilson que
eram pequeninhos. O que a mãe conta é que o marido dela quebrou
104
a guampa dum boi e por isso eles vieram. Até o medo de ser
chicoteado no palanque... castigado. Ela veio fugida e ficou... um
lugar adequado... porque aqui é um morro dá pra ver tudo pra tudo
que é lado. É dela que a gente começou os primeiros passos. Ela
criou a mãe desde pequeninha e aí a partir dai o pai casou com a
mãe, teve nós. Nós fomos criados perto dela...é uma união. A gente
ta interligado...” 20
memória possibilitam a reconstrução desse passado que teve a sua origem nessa
ancestral negra. Operar, hoje, com a imagem mental de Dona Edwirges ressalta a
20
Entrevista realizada por Cristian Jobi Salaini com Rosângela Elias da Silva em 2008.
105
Fotografia 5 – “Local onde era a casa do Tio Vilson” – filho de Dona Edwirges. Trata-
se de um dos espaços utilizados para a coleta de ervas
se transforma em um tipo de figura moral que deve servir de modelo ao grupo. Esta
memória, desde que o atual pleito quilombola tomou curso, acabou recebendo um
refração pelo grupo, se torna um tipo de emblema moral e ponto de partida nas
atuais lutas por identidade. Seria bastante raso, contudo, afirmar que a evocação
pleito quilombola. Em diferentes momentos de meu contato com este grupo foi
106
possível evidenciar que esta memória, que hoje se torna um tipo de engrenagem
pelas lutas de reconhecimento social, atua em níveis nas práticas sociais do grupo,
significar “querer aprender”. Os sujeitos não possuem, claro, a mesma relação com a
conectivos entre histórias de vida pessoais e uma trajetória coletiva, ancorada nesse
ensinou aos seus filhos que se tornaram ocupantes do território 21. A comunidade
presente. “Foi a vó que ensinou a andar por aqui”: Dona Edwirges não foi apenas
aquela que teria “desbravado” inicialmente aquele território; foi aquela que transmitiu
aos seus herdeiros, através do registro oral e das práticas locais por ela realizadas,
21
Muitos membros da comunidade possuem “mapas mentais” das antigas ocupações do território.
Este conhecimento teria sido passado de forma geracional, tendo em Dona Edwiges, a precursora no
que diz respeito a este empreendimento.
107
lembrar e narrar histórias a respeito de Dona Edwirges significa reconhecer, no
108
quando não tem dinheiro para ir numa farmácia para comprar
remédio, ou os postos que não tinha posto, antigamente, aqui em
cima, tinha que se deslocando até o posto. A mãe antigamente fazia
com o eucalipto cheiroso, ela fervia o eucalipto, isto é uma coisa que
já vem de geração também, fervia os eucaliptos e fazia aquele
bochecho botava o pano na cabeça da criança e fazia aquele vapor,
pro meu irmão que tinha problema bronquite asmática e
sinusite,então a mãe usava muito as folhas do eucalipto, era uma
coisa que era fundamental, como a gente não tinha luz naquela
época, não tinha água e já morava aqui em cima também. Então,
agente vê que ervas medicinais ajudam muito, acho que o grande
começo de tudo foi a partir das ervas medicinais, até vim a química,
até vim estes estudos para elaborar os remédios parar para as
farmácias, começou a partir das ervas. Então a gente tem um
entendimento que ervas medicinais faz parte da vida de todos.” 22
vem realizando um diálogo reflexivo sobre as suas memórias e práticas sociais que
sempre criativos, dialogam com essa ética espacial que se encontra nesse universo
22
Entrevista realizada com Valdir Elias por Cristian Jobi Salaini em 2009.
109
moral prévio do grupo. O “Tio Vilson”, filho de Edwirges, é conhecido como um dos
23
Entrevista realizada com Rosângela Elias por Cristian Jobi Salaini em 2009.
110
Fotografia 7 – Local de referência da primeira moradia de Dona Edwirges.
111
Dona Edwirges se apresenta enquanto portadora dos atuais nexos de
do território. Tem-se, então, um caso de articulação étnica que toma como ponto de
partida a crença em uma origem compartilhada. Porém, essa crença não figura em
algum tipo de “memória residual” do grupo e também não está baseada em imagens
compartilhado.
“Vamos lutar contra eles porque a vó veio aqui pra cima... nos
criamos aqui. A gente sempre teve liberdade em todos os pontos...
Essas imobiliárias se dizem dono e não apresentam papel nenhum.
Nós não temos papel, mas temos a nossa história. Isso é mais
importante. Uma realidade que vivemos aqui dentro. Nossa avó pisou
aqui dentro e nós continuamos aqui. Não saímos, né. E vamos lutar
contra isso aí. É ela é o foco dessas historia aí...” 24
24
Entrevista realizada com Gumercindo Elias da Silva em 2009.
112
Fotografia 9 – Associação Quilombola Dona Edwirges.
seria um espaço político do presente como algo separado das representações mais
talvez não pudesse dar conta das intricadas redes e papéis desencadeados frente a
113
estes processos eminentemente reflexivos, morais e territorializantes atualizados
(Sahlins, 2003). As lutas por direitos e acessos por recursos materiais, no presente,
interpretativa profunda acerca dos arranjos que colocam o “pleito” atual como
114
Fotografia 10 – Mapa de localização do Quilombo dos Alpes.
Creio que algumas palavras devam ser ditas sobre a “Janja”, a atual
quilombo dos Alpes, torna-se, penso eu, praticamente impossível não misturar um
pouco a história daquele local com a história desta figura emblemática. Meu objetivo
memória coletiva e da identidade dos mais antigos e dos moradores “mais novos”.
Apesar de merecida, meu relato aqui não se trata apenas de um tipo de homenagem
115
a essa emblemática figura. Gostaria de ponderar como alguns atores acabam por
sempre uma lucidez incrível que produziu um tipo de simetrização entre as relações
pesquisador-pesquisado.
elementos que me deixaram muito empolgado. Um deles, com certeza, diz respeito
ao domínio que Janja possui do território em questão. Ela é conhecida por sua
habitações com esse elemento. Os próprios irmãos de Janja costumam dizer que
eles próprios ficam perplexos com sua habilidade e conhecimento com as pedras,
denominada batuque, ser filha de Xangô. Janja dificilmente “desce do morro” (como
ela mesma costuma dizer). O ato de “descer do morro” indica uma viagem para “a
cidade”, fato que para quem conhece a localização do quilombo dos Alpes não é
trabalho “na cidade”, Janja sempre está “no morro”, lidando com suas pedras,
dinâmicas da vida local e suas derivações que apareciam sempre de forma mais
relatório antropológico. Eu mantenho contato com o quilombo dos Alpes até hoje e
muitas das questões e problemas colocados acabam por transcender aqueles que
diferenças internas dentro do grupo quilombola. Janja, entre uma conversa e outra,
sociológica” que diz respeito a uma fuga de uma “perspectiva culturalista” onde o
necessidade de existência dos mesmos), algo que acaba por expressar “jeitos
campo jurídico acaba por ditar tendências de abordagem analítica sobre tais
as estruturas impostas pelos agentes externos. Neste sentido, pode-se dizer que as
sociedade envolvente.
estruturas maiores. Esta perspectiva, que, em última análise toca, nas relações
entre a dinâmica dos grupos étnicos na história e a ação histórica tratada como mera
jogo, do ponto de vista do grupo, são as maneiras com as quais as suas noções de
para uma versão onde a associação apareceria enquanto um tipo de “etnia federal”:
118
É claro que é preciso ficar atento para as inúmeras possibilidades de
conexões entre Estado e micropolíticas mais localizadas. Mas penso que o que o
interpretativas sobre o mundo social. A forma de conexão política que Janja ajuda a
Associação Quilombola dos Alpes figura um tipo de organização local que aloca as
administrativas.
tradicionais. Mas situar a “história nativa” naquilo que o autor chama de “presentismo
da memória” (Mello, 2008) acaba por recair em uma versão onde as identidades
119
padrões ditados por esse ente maior. A antropologia pode acabar se
configurando como mecanismo homogeneizador, na medida em que
os ‘discursos nativos’ nada mais são do que epifenômenos de uma
ordem maior que os supera e sobrepuja (Mello, 2008, p. 37-38).
Interessa aqui essa “janela” interpretativa introduzia por este novo campo de
que faz parte do universo cognitivo quilombo, repleto de mediações e fronteiras nem
fato acaba por gerar manobras de nossa mediadora junto aos moradores do
quilombo dos Alpes. Muitos quilombolas, durante esse processo que envolve o
em que a titulação ainda não ocorreu, gerando prejuízos diários no que diz respeito
120
pelo grupo quilombola desde seu reconhecimento pela Fundação Palmares em
2005.
quando dois irmãos de Janja foram mortos por um antigo morador. O fato gerou
nesse momento ecoou pelos quadros do grupo, já que a mesma argumentava sobre
imersas em contextos de desrespeito social. Para além da discussão mais direta que
121
poderia ser um simples acidente, como uma coerção produzida para
ferir, do que seria uma agressão intencionada, percebida esta última
como uma verdadeira ofensa moral e, por conseguinte, como uma
negação de reconhecimento (Cardoso de Oliveira, 2005, p. 34).
cotidiana que se atualiza via relações complexas. O grupo possui conflitos que
substancialização. Isto não quer dizer que o grupo não continue constituindo os seus
continuidades. Logo, Janja nos desafia a entender o quilombo dos Alpes como um
faz-se necessário atentar para as diferentes camadas da vida social que não fiquem
122
2.3 A manutenção da identidade. Criatividade e constrangimentos sociais.
manutenção desta identidade “valeria a pena”? Meu contato com a comunidade dos
Alpes foi muito além daquele produzido durante o tempo de constituição do relatório
papel fundamental das trocas e fluxos culturais que, em grande medida, fazem parte
identitária os sinais manifestos entram nos jogos de negociação e o grupo acaba por
elencar, deixando mais evidentes, aqueles sinais que produzam certos contrastes
123
social, porém, acaba por revelar certos problemas que vão além do “momento de
caminho das teorias da etnicidade que, inclusive, fazem parte do aparato reflexivo
trazer outros contornos à questão que revelam esquemas intrincados da vida social
certas inovações à vida social do grupo, ela não se dá de forma absoluta. Muitos
“naturalmente”. O grupo, por outro lado, não está mais “livre” e sua condição de
pleiteante coloca novos riscos e o ônus da nova condição. Talvez esse elemento
(re)coloque o desafio de pensar uma boa relação entre a criatividade contida nos
estão contidos na ordem da vida do grupo. Neste sentido, não é difícil imaginar
Esta questão, certamente não passiva e de não fácil resolução, tem sido
racional” (free choices) que estaria contigo na teoria barthiana – como em sua
pondera que:
124
requisitos sine qua non de pertencimento grupal. Os grupos étnicos
reinventam- se, e não pretendo negar tal afirmação, mas isso não é
incompatível com a idéia de o fazerem com base em condições
transmitidas, institucionais, tradicionais, que podem ser variáveis,
mas que existem e se impõem às dinâmicas de pertencimento étnico.
O argumento do norueguês é, com isso, conduzido de volta a seu
incômodo princípio. A teoria da etnicidade não se pode basear
somente no momento “criativo” (e carismático) da constituição das
fronteiras étnicas, mas deve também contemplar, necessariamente, o
processo de “institucionalização” desses limites. Isso nos leva a um
novo problema. Os grupos dedicados a “negociar” suas estratégias
em cada interação geralmente não dispõem, todos, dos mesmos
recursos para fazê-lo: alguns são mais iguais que outros e têm mais
possibilidades de materializarem as identidades que lhes convierem
(Villar, 2004, p. 185).
Oliveira, 2006, p. 21). O fato relevante aqui seria a notabilidade sobre o fato que os
125
de evocação identitária “que uma pessoa pode assumir, como essa pessoa pode
62).
notar que nem toda a parentela da matriarca Edwirges dos Santos aderiu ao
enquanto primeira moradora da região, pois haveria uma outra “avó antiga” que
dos Alpes. Ainda no início da pesquisa, quando de uma medição do território por um
topógrafo do INCRA, este foi recebido por uma moradora do Morro, não quilombola,
com uma arma de fogo na mão que o ameaçava caso este “invadisse” suas terras.
Uma série de conflitos foi se acirrando com os próprios moradores do bairro que, a
cada política pública trazida ao bairro, fazia questão de dizer que o “grupo da Janja”
não possuía mais “direitos” compartilhados com o restante do bairro, já que agora
chegada da luz no quilombo foi de extrema dificuldade, já que a vila ao lado, que
126
conta com a Associação dos Alpes, teria “excluído” o quilombo desta ação. Este
caso teria relação direta com o fato do quilombo não ser mais reconhecido como
“Agora mesmo essa questão da luz aí, a gente sofreu bah! Uma
discriminação, assim, horrível. Sentimo na pele né. O tempo toda a
gente tá brigando ali (...). E daí veio a luz carente, e nós não ia ser
contemplado. Simplesmente eles fizeram a reunião tudo articulado aí
entre eles, ali, moradores do beco e deixaram nós de fora. Daí veio o
quilombo (...) Daí eles acharam que nós tinha que ser dividido.
Tinham que separar nós mesmo, né. Se a gente quiser alguma coisa,
a gente pedia pro pessoal que tava acompanhado nós ali de
quilombo. ´Quer leite do posto?´ - ´O pessoal do quilombo que se
vire. Vai buscar, também. Tem que ter recurso, lá” 25
de saúde local.
toma como referência esses dois agentes. As “brigas” em torno dos apoios
25
Entrevista realizada por Cristian Jobi Salaini com Rosângela Elias da Silva em 2009.
127
parte desse quadro. As “fofocas” também fazem parte dos processos de
dos Alpes é reconhecida por muitos moradores locais, evidencia isso: um grupo que,
mesmo incorporado aos esquemas de vida local, sempre foi diferenciado, seja por
sua posição geográfica mais “isolada”, seja pelos seus modos de vida particulares.
seus parentes estão distribuídos pelo “morro” de forma mais ampla. No entanto,
explicam que não fazem, necessariamente, parte do quilombo. Nesse sentido, “ser
quilombola. Isto fez com que um topógrafo do INCRA circulasse pelo território em
uma ligação telefônica perplexa com o fato de que, segundo o seu entendimento do
responsável pelo processo, a “pedreira do Xangô” deveria ficar fora do território final
a ser demarcado. Este fato gerou desconfortos por parte da comunidade, já que
historicamente acabou perdendo uma boa parcela dos espaços freqüentados pela
128
comunidade para o seminário vizinho ao quilombo. Conseqüência disso foi minha
sujeita a litígio. Este tipo de situação abre espaço para a reflexão acerca da
2005)? Quando analisa essas relações tendo como foco a comunidade quilombola
129
reconhecimento, aceitam a possibilidade de encontro com o mundo jurídico-
(que hoje em dia acaba por “dividir” o espaço em dois). Claramente, na forma de
ficou de fora da área a ser delimitadas, a fim de evitar maiores problemas do ponto
130
mata nativa da área vão muito além da área negociada e que foi levada a cabo no
futuros, às políticas públicas com as quais o grupo pretende articular, aos novos
131
Essa “argumentação quilombola” deve ser evidenciada, a fim de fugir de
diferenciadas sobre os eventos. Durante meu trabalho de campo nos Alpes, foi
compartilhado.
defesa à mata nativa do Morro dos Alpes. As queimadas e a destruição extensa área
Porto Alegre) sempre fizeram parte das pautas de discussão do grupo quilombola. O
que chama a atenção, nestes casos, é que as “defesas” não eram necessariamente
dirigidas a espaços que estão colocados dentro das definições do mapa técnico do
quilombo. Este elemento nos faz retomar a idéia de que as relações compostas na
vida cotidiana dos moradores caminham para muito além do espaço ou das
132
Algo deve ser dito quanto às vigílias que, como pude evidenciar, são
São realizadas pela comunidade quando esta se encontra em risco de ser “invadida”
físico do quilombo.
natureza das “misteriosas” visitas, fica receosa de circular pelos tradicionais espaços
que lhe são de costume. Assim, os locais que são nitidamente reconhecidos pelo
grupo como sendo “do quilombo” têm o seu acesso reduzido em função de uma
Porém, cabe notar que a atitude tomada pela comunidade negra, frente à
possibilidade de ter seu território “invadido”, acaba por evidenciar o caráter coletivo
das ações que são recorrentemente encontradas no espaço aqui apresentado até o
do território quilombola.
com a esta ação específica no espaço do território quilombola. Porém, esta ação
não se resume apenas ao desenvolvimento de tal cerca. Existe também uma “vigília”
134
Fotografia 13 - Trabalho coletivo da comunidade na construção da cerca.
Minha trajetória junto a este grupo social durante estes anos aponta para
políticas públicas ao grupo, sob o argumento de que “nem sempre a visibilidade traz
coisas boas”. Segundo ela, ficava claro que a visibilidade teria um preço alto, onde
135
O que fica evidente, nesta relação entre a comunidade quilombola, o aparato
do ponto de vista da identidade. Por um lado, essa abertura ao agente figurado pelo
outro lado, essas construções atuam em certo nível da apreensão identitária, não
“tradições” e com a sua historicidade, com a diferença que agora tem novos desafios
quilombola, já que, em certo sentido, não mais é possível pensá-la fora desse novo
O objetivo nesta seção é discutir a maneira criativa com a qual o grupo vem
junto à comunidade. Durante meu contato de pesquisa com os Alpes, que teve início
espaços físicos. Alguns espaços são simultaneamente locais das antigas e novas
136
percurso de pesquisa, algo que coloca o percurso do relatório técnico enquanto um
processo reflexivo por parte dos próprios quilombolas. Reflexivo, pois não se trata de
É preciso dizer que não foram poucas minhas caminhadas pelo território do
grupo social hoje conhecido como “Quilombo dos Alpes”. Porém, apesar das
categorias que “saltam aos olhos” a todo o momento, e que expressam seus
espaços vividos e ancestrais, não posso dizer que elas tenham sido imediatamente
apreendidas por mim. Realmente precisei de certo tempo até concretizar, do ponto
de vista analítico, que as categorias articuladas por este grupo social são
grupo, dando sentido a um espaço dotado de uma historicidade específica. Se, num
137
pertencimento religioso, seja este individual ou coletivo. Elas informam, antes de
associação que realiza com a vida comunitária do grupo, atua como conector entre o
serem acionados, nos revelam uma conexão indissociável entre prática religiosa e
conhecimento do território.
religioso central ao grupo; é ele quem “atende” à comunidade. A casa do Pai Milton
cultua a nação jejé com Ijexá26, conhecida por operar com o cruzamento entre “duas
26
“Para o Rio Grande do Sul desceram os negros da Costa da Guiné ou Nigéria, com suas Nações:
Jeje, Ijexá, Oyó e Nagô. Como a escolha de ficar juntos ou não não pertencia aos negros, estes eram
misturados nos navios, havendo assim uma união de Nações, destacando-se suas peculiaridades.
Nascendo assim outras nações: Jeje-Ijexá, Jeje-Oyó, Jeje-Nagô, e assim por diante”
http://www.xapana.com.br/apresentacao.htm, 16/11/07, 16h39min.
27
Os 12 Orixás são: Bará, Ogum, Iansã, Xangô, Odé, Otim, Ossanha, Obá, Xapanã, Oxum, Iemanjá
e Oxalá e eles variam se aliando a outros, por exemplo Ossaim de Xapanã.
138
reservado aos Exu e Pomba-Gira. Cada uma dessas entidades tem “um lugar onde”
“(...) todo mundo conhece... Já sabe onde tem que ir... esse aqui é no
mato assim, esse aqui é dentro d’água, esse aqui é ali naquele
cruzeiro de mato, e assim eles vão indo lá. Não precisa ta junto
deles, eles já sabem, não precisa ta sempre junto. Eu só faço aqui,
monto aqui, quando dá pra mim ir eu vou, mas quando não dá que
tem muito serviço eu digo: isso é em tal lugar (...) agente precisa de
cruzeiro de mato, e tem certos serviços que tem que ser específicos
daquele lugar, senão não dá efeito”. 28
28
Entrevista realizada por Cristian Jobi Salaini com Pai Milton em 2007.
139
As “oferendas religiosas” são colocadas em locais específicos do morro que
representações do grupo ocorre uma fusão entre o elemento religioso e espaços que
religiosa que encontra nexos seletivos com a dimensão étnica em jogo. A construção
construídos em sua história local e que preservam a relação com os seus espaços
140
Esses lugares próprios à oferenda – que mudam dependendo da entidade
“escaladas”, é o receptáculo das oferendas de Xangô. Nos dias de hoje, com relação
seguranças com seus “cães treinados”. A pedreira, onde muitos dos antigos
quilombolas eram “livres” para circular no morro. Hoje tida com um espaço que
possui acesso relativamente restrito aos quilombolas, antes era local privilegiado de
nominado “pedreira do Xangô”. Interessante notar que muitos moradores não são
29
Categoria para aqueles que frequentam a casa de religião, mas não passam por todas as fases
iniciatórias.
141
entanto, o domínio e entendimento de determinadas categorias realça a relação que
da Oxum, foi-me explicado que se tratava de um “espaço dos antigos”. Espaço dos
antigos, nesse caso, tem relação direta com os espaços lúdicos frequentados no
evidenciar neste momento é que não estamos lidando com um tipo de “fixidez
A gruta dos Pretos Velhos, que foi construída cima de pedra plana, localizada
muitos dos atuais moradores da comunidade negra dos Alpes. Muitos espaços do
30
Fala de uma das netas da Dona Jane, filha de criação de Dona Edwirges.
142
Fotografia 15 – Locais onde as entidades “comem”.
espaço reflexivo e sujeito a (re)leituras. Essas releituras, claro, não são livres de
143
Vale ressaltar que – como já foi colocado em tópico anterior – a pedreira de
dúvida pelos operadores, algo que rapidamente foi contestado pelos quilombolas
dos Alpes.
diferencial – dos sinais diacríticos elencados. Mas vale ressaltar essa técnica
classificatória do grupo que faz com que o operador religioso se apresente como
elemento territorial-religioso:
Não tem mais muito lugar de mata fechada, água pura, para largar as
obrigações. O pessoal me liga e diz: Milton tu é privilegiado. Aí, volta
e meia acho coisa largada por aqui, mas é só olhar que já sei de
quem é. Não me importo, mas não gosto quando não avisam, tem os
mais chegados que ligam: Milton vou aí largar umas coisinhas. Eu
31
digo: vem né”
31
Entrevista realizada por Cristian Jobi Salaini com Pai Milton. Esse privilégio reflete um problema
que vem sendo discutido pelo Município de Porto Alegre: a dificuldade que as “casas de religião”
enfrentam para encontrar lugares adequados para suas práticas. Assim, a comunidade pode também
145
No passado, o Morro dos Alpes apresentou-se enquanto espaço de “fuga” e
vida em isolamento dos “perigos” externos. Hoje, o Morro dos Alpes releva-se como
como relatado na fala acima, há uma diferença entre o que vem “de dentro” e o que
“vem de fora” nesse tipo de prática – “quando alguém de fora coloca alguma coisa
potencial afro-religioso, inclusive, pelos “de fora” da comunidade. Todavia, são nas
espaço: seja através das atividades oriundas do seio do próprio grupo, seja pelas
que está fortemente conectado com a vida geral do grupo. Cabe notar a constante
ser apontada como um lugar de resistência dessa cosmologia na cidade que, com a urbanização,
cada vez mais perde espaços para a efetivação de sua prática religiosa.
146
mesmo tempo, essa religiosidade é trazida a este centro, revelando a importância
uma “grutinha dos Pretos Velhos” em local muito próximo à atual sede da
associação quilombola:
Alguns anos atrás, duas estátuas de dois “Pretos Velhos” foram encontradas
religiosas que promovem um processo reflexivo, por parte dos quilombolas, sobre
grupo. Porém, ela não atua de forma isolada. É através da metáfora do território que
32
Entrevista realizada por Cristian Jobi Salaini com Rosângela Elias da Silva em 2008.
147
Fotografia 18 – Gruta dos Pretos Velhos.
148
Os espaços de pertencimento tradicionais da comunidade são “confundidos”
“de dentro” e os “de fora” da comunidade. Mesmo que o espaço natural do Morro
dos Alpes seja reconhecido como privilegiado à prática religiosa, são os “de dentro”
foi trazer algo da “natureza” do grupo, mostrando uma natureza a priori dos
possível das representações espaciais, é porque ela informa o grupo (e também nos
informa) sobre a sua vivência naquele território. Se, como é possível evidenciar,
existe um espaço natural preservado – uma vasta área de mata nativa – no Morro
dos Alpes, isto não é fruto do acaso. É resultado de uma cosmologia específica que
mentais coletivas dos grupos que ali articulam, do ponto de vista de um "leitor
149
desavisado" ele pode não aparecer, num primeiro momento, como um desenho pré-
definido. Ele não é um mapa geográfico, mesmo que, do ponto de vista da operação
técnica que articula o território, ele acabe sendo. Se há um "recorte" realizado nesse
território que não raramente aparece como um elemento difuso aos agentes
daquilo que é "justo" implicaria num prejuízo que atua de forma concomitante nos
planos moral e prático do grupo. Do ponto de vista moral, e pode-se demonstrar isso
do ponto de vista etnográfico, não se deve pleitear nada além daquilo a que se tem
que a comunidade deverá sustentar junto aos seus vizinhos e aos seus lindeiros.
Isto significa que o grupo, de forma mais ou menos direta, continua se relacionando
própria, que não é necessariamente aquela que conhecemos enquanto técnica. Há,
sempre foi e vem sendo aquele de criar algum tipo de canal entre essas "linguagens
num tipo de gramática que não é aquele que os operadores, ou nós, os "possuidores
150
de bens", conhecemos. Existe uma forma que emerge, muitas vezes de maneira
individual. Não quero dizer com isso que não haja pessoas, dentro de um território
exotismo. Tanto que existem hoje, do ponto de vista administrativo, estratégias que
aqui é entender que, de uma forma mais ou menos independente das pessoas que
nele habitam, o território comporta uma gramática e uma seqüência significativa que
lhe dão uma relativa autonomia, fazendo com que ele, de certa maneira, "fale por si".
comunidade quilombola.
maneiras. Creio não ser de difícil aceitação a hipótese de que, em função dos
hegemônicos, e sem o domínio do "mundo dos papéis", não é difícil imaginar uma
assunção quilombola.
151
A etnografia oferece as ferramentas que levam a esse processo de
processo mais longo, pois, como dito anteriormente, a priori, o território não é um
152
3 RINCÃO DOS NEGROS. RECONSTITUINDO AS FRATURAS.
estendendo-se por 2008 e pequena porção do ano de 2009 33. Como dito
em torno do pleito que se desenvolvia. Esta dificuldade, colocada mais num quadro
parecia apresentar como uma das dificuldades o fato de existirem “poucos negros”
fundacional que acaba por realizar uma “ponte” entre a memória e história dos
escravos. Leituras mais atentas sobre a mitologia local colocam, todavia, imagens
33
A equipe de pesquisa foi formada, além de mim, pela antropóloga Mariana Balen Fernandes e pelo
historiador Alejandro Gimeno. O trabalho ocorreu através de uma parceria entre o INCRA do RS e o
LABORS (Laboratório de Observação Social da UFRGS) sob a coordenação do sociólogo Ivaldo
Gehlen.
34
Durante nossa permanência em campo a presidência da Associação Quilombola estava nas mãos
do quilombola Adair dos Santos.
35
Detalhes sobre o testamento de Jacinta e sobre sua doação ver em “Relatório sócio-histórico-
antropológico do Rincão dos Negros (INCRA, 2008).
153
mais subversivas do passado negro da região. Figura não facilmente acessível pela
memória local, o antigo líder negro Mantoca percorre o caminho de uma memória
societários e, mais que isso, de juízos morais sobre antigas situações vivenciadas.
de um herói negro que, à medida que o pleito foi se tonificando, emergiu a outras
Estas relações entre as figuras mitológicas nos dirigem para a própria construção da
etc.).
como seu Joci dos Santos, ocupam um papel fundamental nas operações
operações de diálogo entre a memória do grupo (que está para muito além dos fins
155
3.1 Mantoca e o “fora-da-lei”. A memória subversiva.
como elemento que se confunde com o irreal ou como camada a ser descortinada
os limites daquilo que entendemos como “Rincão dos Negros”. Neste sentido, não
(Veyne, 1983).
e analogias são corolárias disso e não atuam apenas nos planos das
histórica certos códigos fundamentais de ação. Porém, deve-se ter em mente, essa
156
revisão e a dinâmica entre cultura e história não se dão sem “amarras”. Sahlins
limites estruturais:
grupo para com ele mesmo (passado e presente) e, ao mesmo tempo, um jogo de
encontros que fazem parte do ato evocativo, sob pena de perder o emaranhado
com a própria forma de ocupação daquele território. Mais que isso, trata-se também
157
Algo que chama a atenção, na forma como a narrativa do Mantoca foi por
mim acessada, durante o trabalho de campo, diz respeito ao fato de não se tratar de
uma história acessível de forma fácil ou direta. Trata-se de uma história que me
chegou, num primeiro momento, através de fragmentos e “aos pedaços”. Com esses
com um “Mas o senhor já sabe dessa história? Foi um assassinato que ocorreu por
aqui”. A reticência na forma de narrar o ocorrido revelou uma memória coletiva a ser
descortinada, algo que não estava, pelo menos num primeiro momento, no panteão
campo, enquanto uma história velada, algo que parecia revelar um elemento
uma dimensão histórica fundamental ao grupo que não pode ser negada. Ela revela
algo. Lida-se com uma espécie de operador totêmico que revela relações da
O que cabe notar aqui é que muitas dessas histórias apresentam uma relação
formais mais gerais, apresentadas pelo grupo, de narrar suas próprias vidas assim
como capital da memória coletiva do grupo. Mesmo que algumas pessoas contem
essa história, num primeiro momento, de forma um pouco “desconfiada”, fica muito
claro como ela aglutina um modo de interpretar as relações entre negros e “não-
negros” na localidade.
158
Mantoca fazia parte de uma das inúmeras antigas famílias negras que
“Ah não! Isso é falado! Isso todo mundo sabe. Isso todo mundo sabe!
Isso todo mundo sabe, não é só eu que sei! Isso não é só eu que sei!
Isso todo mundo sabe, isso é falado! Essa morenada tudo que
moravam, que aí saíram daí, moram aí e mora no Esteio. Moram no
Esteio, moram em Porto Alegre e moravam tudo lá e moram em Vera
Cruz, sabe, tudo contavam essa história. Eu ouvi falar nessa história.
Por isso que eu digo que essa Dona Sinhá, né, isso era parente do
falecido Mantoca. É, isso aí é falado. Isso aí ta abafado! O Mantoca,
esse [a história], era o Quincho e a Dona Sinhá. Isso eram os donos!
Isso todo mundo sabe. Mas por que que mataram ele? Ué, porque
que mataram...[baixa a voz]. E o terraredo era dos dois véio?! Ué, os
Panta [ voz baixa, risos] Os Panta. Sabia que tinha os Panta...Tudo
aí. Tudo parente por essas bandas da faixa de Cachoeira. Tem uns
Quincho daquela igreja ali, da igreja grande aquela. É os Quincho o
dono daquela igreja. Morava, mais isso já foi tudo caído,
desmanchado. Foi tudo caído, tudo desmanchado. Até os morenos
que moravam ali também. Foi ficando e aí foram desmanchando
aquilo e aquilo foi caindo. Todo aquele rincão ali era tudo aquele
rincão, aquela igreja ali era um casaredo só. Até a estrada de
Cachoeira era um casaredo só! Tudo sabe! Não é só... Tem miles,
milhão e milhão de gente, tudo sabe de quem era essas terras!
Ããhhh... Quem eram os donos dessa terra se não era a falecida
Sinhá e esse veio aí. Diz, diz que juntou assim sessenta homi! Ué,
mas ué... Mas eles podem contar por aí!!! Porque abrem a boca pra
contar? Porque eles não contam? Até a Santa sabe! Juntou sessenta
homi, diz que... Eu era criança e ouvi dizer: sessenta homi pra matar
159
o falecido Mantoca a tiro no mais! Uma bala...Era canhão e aquelas
coisas de quartel, que esses Panta tinham! Mas sessenta homi pra
matar um só, heim?! (...) Todo mundo sabe! Só eu que sou [era na
época] criança, mas eu tenho meio uma lembrança que eu vi contar
até o dia que diz que saiu aquele tiroteeeiooo, meus Deus! Era uma
guerra! Sessenta homi! Todo mundo sabe aí, todo mundo sabe:
sessenta homi. Sessenta homi pra matar um só”. 36
Fotografia 21 – Dona Ema em frente à árvore onde está enterrado seu pai,
no Rincão dos Negros.
36
Entrevista realizada por Cristian Jobi Salaini e Mariana Balen Fernandes com Ema em 2008.
160
Segundo os relatos, Mantoca seria um dos principais responsáveis pelo
“cuidado” com os limites e fronteiras das terras negras. Isto porque essas fronteiras
estariam se tornando cada vez mais móveis, devido à interferência gerada pelos
essas cercas propunham esses “novos limites”, lá estava Mantoca a desfazer com a
“Mataram o Mantoca lá... por causa das terras... esses dois negros
que mais batalhavam por causa das terras... era dois irmãos... o
Mantoca eles mataram. Muitos de cavalo atacaram ele lá embaixo na
encruzilhada...os negros que tocavam! Minha mãe era sobrinha do
Mantoca....minha mãe é Prudêncio e meu pai é David, mas nós
assinamos só David.” 37
37
Entrevista realizada por Cristian Jobi Salaini e Mariana Balen Fernandes com Joci Davi em 2008.
161
tamparam, no final agarraram e consumiram com os papéis, tocaram
fogo no cartório, eles consumiram com tudo, o terreno da minha
38
avó...”
homens, que estariam todos armados, desferiram uma série de disparos com o fim
golpe de faca no rosto de um dos líderes da ação assassina. Tudo isso teria
do Mantoca”.
“Isso foi logo adiante daquela encruzilhada de estrada que tem ali...
nessa época eu era pequeno, mas eu me lembro de quando falecido
meu pai foi e disse vocês são crianças vocês não podem ir lá... não
podia ir lá porque o dia que mataram o homem... mas dali em diante
a gente foi gravando tudo que o pai falava a respeito do Mantoca...
dai depois a gente foi crescendo, mas ficou com aquela gravação
como existia até pouco tempo o homem que acabou de matar o
Mantoca que era o Lico Brum que morreu... quando o homem tava
caído no chão ele chegou em cima... o homem caiu com o facão na
mão ele foi e disse “ Ah desgraçado”. Chegou em cima pra acabar de
matar... ele ainda tava ainda movimentado com a ânsia da morte ele
levantou o facão e pegou bem na testa desse Lico Brum e ficou com
um caroço na testa dele assim que ate agora os últimos momentos
38
Entrevista realizada por Cristian Jobi Salaini e Mariana Balen Fernandes com Francisco dos Santos
em 2008.
162
que ele morreu ele tava com um sinal na testa do facão que pegou
na testa (...) ele chegou ainda se aproximou pra terminar de matar e
com a ânsia da morte ele levantou o facão e deixou marcado...ele
era bom de briga mas eles pra se adonar das terras então eles
queriam era terminar mesma coisa o Maneco Prudêncio era pai do
batista então os Panta fechavam... queriam se adonar das terra aí o
Maneco Prudêncio cortava a cerca se ele não podia corta de dia ele
cortava de noite e ae pro fim eles se juntaram um grupamento muito
grande pra termina com ele e ele teve de se vestir de mulher e fugir
pra porto alegre ...pra escapar (...) Ele não podia aparecer ele vinha
39
de noite que as terra tavam fechada... ele cortava o arame!”
39
Entrevista realizada por Cristian Jobi Salaini e Mariana Balen Fernandes com Adão em 2008.
40
Entrevista realizada por Cristian Jobi Salaini e Mariana Balen Fernandes com Miguel Souza em
2008.
163
“Ele teve que sair vestido de mulher queriam matar ele como
mataram o Mantoca... o coitado do veio e desceu na Vargem e os
cavaleiros vieram pra matar o tio Maneco Prudêncio... e ae a veia
deu o vestido dela pra ele vestir... senão eles tinham matado. (...)
Daí tinham matado ele também e a gente ia ficar sem terra!” 41
verdade” por trás do mito. Nesse momento, ele apresenta-se como elemento capaz
comunidade.
comunidade de sentido, uma comunidade moral. Mesmo que conhecida por outros
que não apenas os negros da região, ao ser contada por eles, ela dimensiona o
caráter étnico em questão, já que o fato que envolve Mantoca teria ocorrido entre
“brancos” e “negros”.
fazendo como o Mantoca”. Assim, lida-se com uma “mitopráxis” (Sahlins, 1990), já
que não se está frente a uma história que ocupa um lugar “frio” da memória coletiva
do grupo. Pelo contrário, lida-se com uma memória coletiva que ajuda fortemente a
forma mais ampla. Esse “espaço sagrado” do grupo traz à luz elementos que dizem
41
Entrevista realizada por Cristian Jobi Salaini e Mariana Balen Fernandes com Santa em 2008.
164
respeito aos antigos e atuais vínculos dos negros com aquele território. A
membros da comunidade, fica claro como todos os novos e antigos locais estão
território. A ação doadora de Jacinta Souza não foi, de forma óbvia, suficiente para
Prudêncio, na cidade de Vera Cruz, vizinha a Rio Pardo. Nesse dia, acompanhou-
165
me na viagem a Vera Cruz seu Adair e sua irmã, Dona Santa. Tive de realizar
baile local. Como será mostrado, o baile faz parte de minhas incursões etnográficas
Dona Santa e Adair, tive uma recepção, em um primeiro momento, não muito
calorosa. A filha de Batista Prudêncio atendeu à porta e disse que o pai dela não
tinha condições de nos receber, pois não estava muito bem de saúde,
Prudêncio chega até nós. Falamos que ele nos foi indicado por moradores do
Rincão dos Negros, e que todos relacionavam sua pessoa à figura de Mantoca, seu
terras, falando das “perdas para os brancos”. Falou da história de seu tio, apontando
o mesmo para um antigo “defensor” das terras do Rincão dos Negros. Sua filha, ao
ouvir as histórias do pai, revelou que nossa chegada tinha lhe mostrado algo: que as
histórias, que sempre ouvira do pai, eram de fato verdadeiras! Ela narrou que
sempre pensou que as histórias contadas pelo pai, sobre as antigas terras do
Rincão, eram algum tipo de invencionice, e que nossa presença por lá acabava de
produzir um tipo de consolidação dos fatos narrados pelo pai. Dona Santa, tentando
me a perguntá-lo sobre Ema, moradora do Rincão dos Negros. Algo que respondeu
166
com um: “Sim! Essa mulher nada como um peixe!”. Dona Santa me olha, procurando
dar a entender, através de gestos, que os dois haviam sido antigos namorados.
dilemas éticos e políticos no que diz respeito à “produção” de histórias orais pelos
criam redes através de indivíduos que, por certo período de tempo estiveram
afastados, nos demonstram uma dinâmica que nem sempre é mostrada no campo
dos relatos técnicos. Sem dúvida alguma, para muito além do objetivo operacional
para o qual os relatórios são destinados, eles são “bons para pensar” lógicas de
167
Fotografia 22 - Batista Prudêncio, filho de Maneco Prudêncio. Antigo morador do
Rincão dos Negros, hoje reside em Vera Cruz/RS.
“retrato” do outro faz parte das discussões mais trabalhadas da disciplina, nem
relação, para que o trabalho pericial não tenda a ser desenhado como um
pesquisa no Rincão dos Negros. Sempre que iniciava o processo de entrevista com
alguém do Rincão dos Negros, principalmente entre os mais antigos, a fala era
sempre a mesma: “vocês precisam falar com aquele homem lá (o seu Joci)!”. Seu
Joci ocupava um papel fundamental no ambiente do Rincão dos Negros, pois, como
169
gostava de se definir, era um tipo de estudioso local – algo que contava com o
algo que ficou muito presentes em nossos contatos com o mesmo – o local deveria
se chamar “Rincão dos Negros, Rincão dos Souza”. O sobrenome Souza, do qual
ele não abria mão de maneira alguma, referia-se a Jacinta Souza, a senhora que
deixou enquanto herdeiros seus antigos escravos. Seu Joci, convicto da “ação
Souza para os seus escravos, e ela mandou que ali eles fizessem uma cruz e depois
Tivemos uma curiosa conversa informal com Joci, frente ao seu próprio
seu Joci, construindo seu próprio túmulo. O fato me fez parar e iniciar uma conversa
com o mesmo que, convictamente, repetia que sua tarefa tinha relação com a
certeza que ele gostaria de ter de que seria sepultado junto às terras dos Souza, de
Jacinta Souza. Seu Joci, que em diferentes conversas, de forma repetida, sempre
neste mesmo encontro frente ao túmulo, ele aponta possibilidades sobre a forma
ser construído: “tem duas maneiras de comprovarmos isso daqui: através dos
históricos da Jacinta Souza e através dos grupos de negros que moram ainda aqui”.
Pensando junto com Appadurai (1982), tem-se que a memória, ao dialogar com
contudo, enquanto um suporte que dialoga com outros textos da memória cultural do
grupo, evidenciando que o trabalho da memória não dialoga com quadros temporais
coletiva.
171
Fotografia 24 – Túmulo de Seu Joci David.
Fotografia 25 - Joci David dos Santos em sua residência, no Rincão dos Negros.
42
Entrevista realizada por Cristian Jobi Salaini, Mariana Balen Fernandes e Alejandro Gimenez com
Seu Joci David em 2007.
173
Importante dizer que ascender à História faz parte dos reconhecimentos
morais desenvolvidos pelo grupo. Seu Joci, que nos ensinava a estratégia mais
elemento. Não bastaria apenas a imersão, por parte do pesquisador, nas histórias
locais que fazem parte das trajetórias mais íntimas da comunidade; seria necessário
grupo atrás de suas memórias (um bom momento para os mais jovens se
conforme sempre frisado por Joci – deveriam reverter em planos mais altos de
reconhecimento, e por isso mesmo Jacinta Souza não deveria ser esquecida, já que
Dona Geralci
relatar fatos e acontecimentos de um passado distante. Ela aparece como eixo das
43
Frase dita por Dona Geralci.
174
narrativas que versam sobre a ocupação negra naquela terra, promovendo nexos
Jacinta Souza é lembrada como aquela que processou uma doação das
hoje na região. Ao ser trazida pela narrativa do grupo de forma ampla, torna-se o
(existência de escravos e testamento) bem como de uma personagem que deu aos
das famílias quilombolas remete a esta crença de que a doação das terras é um
escravo.
memória coletiva para reconstruir uma imagem do passado, a qual está de acordo,
tradução minha).
175
Decorre disto que mesmo o depoimento individual é capaz de localizar os
grupos de referência deste indivíduo. Assim, evidencia-se uma relação entre grupo e
memória coletiva, já que esta última só existe em função daquilo que é capaz de
grupo. Neste sentido, trabalha-se aqui no registro de pelo menos dois níveis de
diretamente com o “universo branco” e outro, que dialoga mais diretamente com
àquele território. Assim, Jacinta Souza persiste enquanto elemento da “história viva”
como elo conector de elementos presentes nas vidas cotidianas das pessoas do
176
Porém, o que antes foi motivo de “merecimento” para os escravos, expresso
por meio de doação de terras por Jacinta Souza, hoje se torna causa de conflito
nas “beiradas” de um território muito mais amplo que reside tanto na memória do
grupo como no inventário deixado por Jacinta Souza – a responsável pela doação
Joci: Acho que teria que ser branca. Geralmente sinhá, sinhô,
senhor, sinhá ou senhores eram brancos né. Então eu acho, teria
que ser branco né. Então ela tinha, os véio diziam que ela tinha uma
senzala, essa ali na frente... na época, nessa época não tinha igreja,
não tinha nada. Era campo, só! Tinha a terra, que era a terra dela e
a... o galpão lá, a senzala que era onde paravam os negros escravos
lá. Então, como sempre os véio contavam, como contavam...
177
existiam muito senhor ruim. Mas porque eles diziam, essa eu acho
que não era ruim, a Jacinta Souza. Aí ela tinha o galpão lá com eles
e tinha santo. Então, todos os feriados ela pegava os escravos dela e
vinha ali, onde é a igreja hoje, mas naquele tempo não tinha igreja,
era campo só, só campo. Ela pegava e trazia eles pra rezar. Então,
eu acho, já pra mim assim, que essa já não era uma sinhá ruim, né.
Porque, pelo menos, quanto a gente ouvia falar que muito senhor
matavam e davam. Tinha o tal de tronco, pelourinhos, que davam no
negro pra executar e muitas outras coisas que judiavam.
Joci: Olha aqui acho que tinha algum, pelo que dizem, mas a gente já
fala no geral né. E então, ela quando... como é aquele negócio que
eles tinham...? Que ela tinha o santo e trazia eles no feriado pra
rezar, todo feriado ela trazia pra rezar ali. Ela rezava, ta tudo bem.
Quando chegou na época que, depois a Princesa Isabel deu a
liberdade, ela pegou a terra e os santos que ela tinha lá, dizem os
mais velhos, os antigos diziam, que entregou praqueles escravos que
eram dela, entregou a terra que é a terra do Rincão esse. Então
entregou a terra e os santos pra eles, pros negros, os escravos dela
né. Aí, depois que ela entregou a terra pra eles, eles dispensaram,
mas tudo... Mas naquela época ganharam a terra, mas dinheiro eles
não tinham, não tinham condições, tudo difícil. Mas se lembraram
assim daquele local, daquele lugar ali que era campo: “Vamos fazer
uma igrejinha aqui”. Só que não tinham dinheiro, né, mas
começaram a fazer a igrejinha, pau-a-pique. Vocês sabem o que é
pau-a-pique?
Mariana: Sim.
178
melhorar, foram melhorando e tudo, então aquilo a terra era deles,
tudo deles. Aí, quando... mais ou menos, um certo tempo que as
coisas melhoraram um pouco, que aí eles começaram melhorar a
igrejinha, aí que os brancos ali fundaram aquela outra igreja. Que
aquela igrejinha pequenininha, a Imaculada Conceição da Bela Cruz,
aquela é a mãe da outra.
44
Joci: Só tinha negros. Quando, no início, só tinha negros.
“Os véio diziam que ela [Jacinta Souza] tinha a Senzala... onde
paravam os escravos lá... todos os feriados ela pegava os escravos
dela e trazia pra rezar... não era uma sinhá ruim né... a gente ouvia
falar que muito senhor matava... judiava... aí então ela trazia eles pra
rezar ali... quando a Princesa Isabel deu a liberdade... ela pegou os
santos ali e entregou pros escravos... que era a terra do Rincão...
entregou a terra e os santos pros escravos... daí eles começaram a
fazer a igrejinha... pau-a-pique... foi assim que eles começaram... a
terra era deles... quando depois melhoraram um pouco...melhoraram
a igrejinha... os brancos fundaram a outra igreja... a igreja Nossa
Senhora Conceição da Bela-Cruz é a mãe da outra!” 45
“Porque ali era deles! Pois aquilo ali eram as terras da Jacinta Souza
que deixou aquelas terras tudo que vai até do lado Passo da Areia...
depois do Passo do Pai Pedro... que mora a Eloa... era do pai dele
era avô dele... quer dizer que aquilo ali é fora... mas lá pra trás
praqueles campo onde tem aquelas casa dos Panta tudo era terra
dos negro... doado pela Jacinta Souza... tanto é que pra ver aquela
cruz que tem lá dentro... era a cruz que a Jacinta Souza essa rezava
pros escravos... depois não sei se era um galpão o que era que ela
44
Entrevista realizada por Mariana Balen Fernandes com Seu Joci David em 2008.
45
Entrevista realizada por Mariana Balen Fernandes com Seu Joci David em 2008.
179
se reunia pra rezar pros escravos... e aquela cruz continuou naquele
lugar e depois construíram aquela capela que continua lá até hoje...
tu vê qtos anos! De certo uns 200 anos!” 46
notar que a memória de Jacinta Souza “transborda” os limites que estariam contidos
comum sempre apresentam, de forma direta ou indireta, algum tipo de relação com
ascendência que apresenta relação com essa figura emblemática. Mesmo que, no
plano da memória do grupo, nem sempre seja possível resgatar isso com exatidão,
“... devido aos meus avós... na época da abolição diz que ela doou
pros negros... Souzas... era Jacinta Souza e nós assinamos Souza
por causa disso né... por causa do meu vô... bisavô... por isso nós
assinamos Souza...” 47
46
Entrevista realizada por Cristian Jobi Salaini, Mariana Balen Fernandes e Alejandro Gimenez com
Jardelina Souza, filha de ex-moradores do Rincão dos Negros, em 2007.
47
Entrevista realizada por Cristian Jobi Salaini, Mariana Balen Fernandes e Alejandro Gimenez com
Miguel Souza, ex-morador do Rincão dos Negros, em 2007.
180
ou Princesa Isabel É Princesa Isabel eu acho, né Eu faço confusão
da D. Jacinta com a Princesa...” 48
“Que diz que doou aquelas... Que doou aquele lugar ali da igreja, foi
essa Jacinta Souza que doou pra fazer igreja, ela mesma fez essa
igreja e ia rezar ali... Que ia rezar com os escravos dela ali. E ali ao
redor da igreja tem os meus cunhados que moram ali, também agora
eu perdi o meu marido, o meu marido, as terras dele era ali, aí eu
fiquei com um bocadinho de terra ali perto da igreja...” 49
relação direta com o imaginário local da comunidade negra, sejam eles ainda
moradores ou não do Rincão dos Negros. Podem-se elencar aqui alguns aspectos
que colocam essa figura num local fundamental no que diz respeito ao
oralidade, fica claro que Jacinta Souza era a antiga proprietária das terras e, sua
juntamente com seus escravos – como propulsora das práticas locais religiosas. Sua
antiga moradia é apontada, por grande parte dos entrevistados, como localizada nas
“umbu”.
48
Entrevista realizada por Cristian Jobi Salaini, Mariana Balen Fernandes e Alejandro Gimenez com
Dona Geralci, ex-moradora do Rincão dos Negros, em 2007.
49
Entrevista realizada por Cristian Jobi Salaini, Mariana Balen Fernandes e Alejandro Gimenez com
Claides David, que reside próximo ao Rincão dos Negros, em 2007.
181
Sua figura é representada muitas vezes através da imagem metafórica de
Princesa Isabel. Isso remete à idéia do “bom senhor” que ajudou os escravos.
uma comunidade de sentido em seu redor. As pessoas relacionam a ela sua origem
naquele local. Assim como Jacinta Souza, Mantoca povoa o imaginário social do
grupo.
escravos. Porém, vale ressaltar aqui que a presença de tal documentação atua, no
memória.
182
Fotografia 26 – Sr. Adair David (presidente da associação no momento em que o
relatório foi produzido) junto à árvore próxima à provável moradia de Jacinta Souza.
um tipo de patrimônio mais particular de acesso mais dificultado. Este sujeito fora-
da-lei, sem sobra de dúvida, apesar de ocupar um local menos acessível das
condição de um “outro”, que pelo menos até certa medida da pesquisa, coincide com
para muitos moradores do Rincão, possuía valor jurídico atual. Visualiza-se certas
forma relativamente autônoma das relações com o Estado e das relações com o
“senhor”. Isto não significa reduzir o papel destes outros personagens – o Estado e o
classificatória fácil vinda “de cima”. A “evidência material” do quilombo cede lugar a
184
Se porventura houver uma escavação para identificar quilombo,
nesse contexto, ela resultará quando muito na reconstituição dos
alicerces da casa-grande, o que poderá parecer contraditório e
extremamente paradoxal para os operadores do direito. (...) A
observação etnográfica aqui permite romper com o positivismo da
definição jurídica e chama a atenção para os instrumentos
epistemológicos tão odiados pelos empiristas e positivistas. É com
base nesses instrumentos que se pode reinterpretar criticamente o
conceito e asseverar que a situação de quilombo existe onde há uma
produção autônoma que não passa pelo grande proprietário ou pelo
senhor de escravos como mediador efetivo, embora simbolicamente
tal mediação possa ser estrategicamente mantida numa
reapropriação do mito do “bom senhor”, tal como se detecta hoje em
certas condições de aforamento (Almeida, 2002, p. 60-61).
por seus feitos de manutenção dos limites da “aldeia dos negros”, lutando contra as
injustiças colocadas pelos antigos brancos que avançavam sobre suas terras. Uma
funciona como elo com o passado escravocrata e como a “prova real” da identidade
do grupo que almeja planos mais altos de representação frente a esse estranho que
185
3.6 Dançando no Rincão dos Negros. Reconhecimento local.
pelo relatório técnico. Afinal, o que poderia existir de tão importante em um baile
locais, foi chegado o momento da participação, já que Dona Santa fazia realmente
muita questão de nossa introdução nesse tipo de atividade típica dos finais de
durante o desenrolar das situações, não ocorreu de forma tão ingênua ou fortuita
participação nos bailes locais foi boa, pois "puderam ver os brancos dançando com
os negros, e que existiam brancos que não eram racistas". O baile, momento
elementos da vida cotidiana dos moradores do Rincão dos Negros. Apesar da não
existência de uma corda que separasse brancos e negros nos bailes 50, ficava clara a
50
Cabe notar que em muitas localidades do Rio Grande do Sul, até meados dos anos 60 (em
algumas localidades esse prazo foi mais longo), existiam bailes separados por uma corda. O objetivo
186
separação na hora da dança, na hora da escolha dos pares. Já na chegada ao local
ficava muito claro o fato de que os "morenos" estavam chegando à festa dos
alemães.
Estava frente, a partir da iniciativa de Dona Santa de nos levar ao baile local,
festividade, que tinha relação com uma possibilidade muito pouco freqüente naquele
espaço: brancos dançando livremente com negros. Dona Santa, através de sua
microrreconhecimento local, onde uma senhora negra dançava com “os brancos
estudados de fora”.
evidência de um papel que nos foi colocado e que atuava diretamente nas relações
mais corriqueiras da vida local. O “ser visto com alguém de fora” e, mais que isso,
social.
dizer, claro, que a presença da equipe junto à Dona Santa alterou o esquema das
era a divisão do baile entre brancos e negros. Todos poderiam frequentar o mesmo “salão”, no
entanto, não era permitida a dança entre brancos e negros.
187
refletir em parcelas do grupo quilombola e, mais que isso, refletir de forma
188
Este caso é apenas exemplar de outros espaços e situações que, assim como
o baile, são entendidos como desrespeitosos pelo grupo. O boteco local, a igreja e
brancos e negros que, apesar das transformações ocorridas nas ultimas décadas,
igrejas dos brancos e vice-versa, outros códigos mais ou menos velados de conduta
entre brancos e negros desde que certas regras sejam estabelecidas e respeitadas.
3.7 “Tudo faceiros nas terras dos pretos!” Arquivos mentais coletivos.
espaço que hoje é ocupado pelas duas igrejas da região: A “igreja dos pretos” (ou
dos escravos) e a “igreja dos brancos”. Até meados da década de 60 havia uma
divisão fisicamente definida entra as duas igrejas através de uma cerca. Hoje o local
encontro com um ex-morador do Rincão dos Negros - Miguel Souza - (hoje residente
189
na cidade de Viamão/RS), escuto uma narrativa sobre um dos encontros festivos
mato e lá acabou morrendo. Algo que, segundo Miguel, tratou-se de uma “busca por
justiça”:
190
Cristian: Como é que morreu, será?
hoje um Rincão dos Negros povoado de forma rarefeita, quando pensamos nas
retorno ao espaço, sempre presente, articula-se com esse território ainda vivo na
memória; o território vive, mas não é mais vivido como nos “tempos antigos”.
ao passado, cabe notar que há uma forma de lembrar que respeita a apreensão de
51
Entrevista realizada por Cristian Jobi Salaini com Miguel Souza em 2007.
191
Normalmente, os mapas do presente acabam por criar uma imagem parcial
atualizada via outros esquemas evocativos. Não raramente, esse momento eclode
com uma força mais notável por ocasião de um pleito por reconhecimento territorial.
encontra vivo através do ato narrativo e, acabam por desenhar os contornos dos
Dona Ema narra a presença de sua família na comunidade como inscrita num
circuito de relações que foram mais amplas no passado – “Isso aqui era tudo terra
antiga ocupação, densificada pela presença negra na região, e a atual: uma pálida
O irmão de Dona Ema, seu Adão, traz sua vivência naquele espaço ainda
hoje vivido por sua irmã. Narra também um passado que indica a densa povoação
ocupações negras da região. Porém, aponta também para a lógica do êxodo das
“É... porque isso ali acima da nossa casa... isso ali era minado de
gente morena que isso vinha de lá de cima tem os marcos em cada
taquarera que tem era um morador que morava ali... entao vinha até
aqui perto da casa da tia Ema pro outro lado da cerca tinha
morador... eu me lembro de que tinha as veinha com 90... 100 ano
que andavam carcudinha com bastãozinho(...) pro fim eles foram
apertando sabe.. apertando a negrada e a negrada tiveram que
respingar porque ficaram muito apertado né ali... teve gente que
compraram e aí não tinha dinheiro pra pagar... e aí o cara ia lá e
tirava um pedaço de terra dele... Isso mesmo... mais ou menos isso
aí. Eu me lembro de gente que morava no Rincão que teve que
entregar as terras em divida de mercadoria de alimento pra comer...
não tinha cerca... às vezes era gravatal não tinha condições de fazer
uma cerca de arame e aí como os branco tinham condição de fazer
53
foram fechando... fazendo cerca de alambrado...”
52
Entrevista realizada por Cristian Jobi Salaini e Mariana Balen Fernandes com Ema em 2007.
53
Entrevista realizada por Cristian Jobi Salaini e Mariana Balen Fernandes com Adão em 2007.
193
Dona Santa, 65 anos, relata a antiguidade de ocupação no espaço que hoje
divide com a família de seu irmão, o “Daíde”. Mostra os lugares em que o avô
existentes ainda hoje no espaço de seu núcleo familiar. Assim como nos casos
sobrevivência do grupo.
“Tinha bastante gente preta aqui. Aqui pra baixo era só gente
morena... a gente do falecido pai... tio Afonso, tio Prudêncio, tio
Estevão, tio Roma... tudo gente do falecido pai porque aí a Jacinta
Souza deu pros escravo... pros moreno que era os preto né... aqui
pra baixo era só casa e casa de moreno... e aí os branco foram
tomando as terra dos preto. Essa terra aqui na minha frente que vai
até ali embaixo no açude... que era nosso açude (...) Rincão dos
Crioulo mesmo que chamavam... e no fim ta só eu e Daíde aqui...
morando aqui (...) a cerca era tudo aberto aqui... a gente passava
aqui e ia buscar lenha... quantas carga de lenha... e depois eu
pegava os bois e ia buscar... tinha bastante mato mas é que antes do
Alvino Panta compro isso aí eles devastaram quase tudo. Eles
tomavam as terras das pessoas... eles compravam um hectare da
pessoa e iam fechando tudo.” 54
54
Entrevista realizada por Cristian Jobi Salaini e Mariana Balen Fernandes com Santa em 2007.
194
Fotografia 29 – Casa ocupada por Didi.
entre os “tempos antigos” e a atual ocupação negra. Narra um tempo onde as “terra
colheitadeira de seu atual vizinho passando rente aos limites de sua moradia, Dona
Santa comenta, de forma perplexa: “Tudo facero na terra dos preto!”. A atual
ocupação física da família de Dona Santa responde, hoje, a uma pequena porção do
Seu irmão, Daíde, 68 anos, também demonstra com precisão os limites das
terras ocupadas anteriormente pela sua família. Contudo, cabe notar como a
narrativa de Daíde corrobora, mais uma vez, a idéia de que seu circuito familiar
“Rincão dos Negros”. A família, dessa forma, concretiza o seu sentido pleno quando
englobada por seu núcleo negro de referência. Daíde narra também outras famílias
“Cada taquarera é uma casa... era uma casa. Quando caia uma
parede já tinha uma casa pra fazer... lá na Percília... pai da Percília...
uma taquarera... os antigos. Era uma vila de casa de negrada. Ali
morava o Felisbino... o falecido tio Artur... o falecido Odalino e do
outro lado morava o falecido tio Congo... o Machado... o Dorvalino
Machado... é tio dos irmãos da igreja” 55
55
Entrevista realizada por Cristian Jobi Salaini, com Daíde dos Santos em 2008.
196
Cabe notar que durante a construção do relatório técnico uma das estratégias
moradores negros – “Aqui era a casa do Seu Congo!”. O ato de encontrar uma
taquareira e a óbvia pergunta seguinte sobre quem ali morava no passado acabava
concreto com relação ao espaço. Mesmo que a maioria dos moradores tenham ido
embora face às pressões históricas, os moradores que ali permanecem ainda vivem
proposta ao INCRA o que resultava num discurso ainda bastante frágil, por parte dos
197
apresentadas pelo grupo quilombola. Se, por um lado, a relativa fragmentação acima
citada poderia derivar em uma fragilidade do grupo frente a outros grupos em litígio
56
Entrevista realizada por Cristian Jobi Salaini e Mariana Balen Fernandes com Miguel Souza em
2007.
199
Fotografia 32 - Seu Daíde “imitando” a forma de cavalgar de uma importante figura
ancestral do Rincão dos Negros: a tia Dominga.
“Só os irmãos do falecido pai eram uns 13... foram tomando desde lá
de cima... e os outros lá pra cima era só casa... de uma certa altura...
dali da igreja Santo Antonio até lá em cima era só casa de negro! Só
negrada! (...) Ficou o falecido pai que ficou agüentando (...) não tinha
arame... não tinha cerca... só preto! Tudo acostumado junto...
quando eles vieram... que foram fazendo as casas... tudo
acostumado junto... foram casando e fazendo as casinhas e faziam
em conjunto... fazia uma casa primeiro e depois juntava pra fazer
outra... um pixurú!” 57
57
Entrevista realizada por Cristian Jobi Salaini e Mariana Balen Fernandes com Daíde em 2007.
200
memória coletiva: Os atuais espaços familiares do Rincão dos Negros atuam como
taquareras, depois foram vindo as cercas... antes tinha os gravatal, só depois vieram
as cercas”.
conecta atuais e antigos moradores do Rincão, eles se ligam a esse território pela
residiram” assim como todos são capazes de apontar os marcos memoriais que
Rincão dos Caixões, localizada na cidade de Jacuizinho no Rio Grande do Sul 58.
58
Este trabalho foi coordenado por mim, na condição de antropólogo. A equipe de pesquisa foi
constituída por Vinicius Pereira de Oliveira (historiador), Luiz Fontoura (geógrafo), Maria do Carmo
Aguillar (bolsista de história), Tatiana Rodrigues (bolsista de ciências sociais) e Nanashara Sanches
(bolsista de geografia). O relatório técnico foi realizado através de parceria realizada entre INCRA e
LABORS (Laboratório de Observação Social da UFRGS) sob a coordenação do professor José
Carlos dos Anjos.
202
Fotografia 33 – Localização da cidade de Jacuizinho.
dependência com a sociedade local. Esses negros “de fundo de fazenda” acabam se
203
constituindo em um tipo de mão-de-obra barata aos sucessivos proprietários que se
anos de 2008 e 2009 (existiram retornos realizados por mim à comunidade nos anos
através das categorias sociais existentes para determinado contexto – ora eles são a
Com relação a este ponto, devo (re)apresentar aqui o problema colocado pela
que vão muito além disto – apesar de dialogar, claro, com as possibilidades
59
Detalhes consultar o “Relatório sócio-histórico-antropológico da comunidade do Rincão dos
Caixões” (INCRA, 2009).
204
que evoca a permanência de um grupo social no tempo para também se apresentar
forma de argumentos do grupo com relação à sua identidade: a palavra tem poder
social.
passado do grupo. Ele ainda faz parte da prática, de um modo de “estar no mundo”.
resgatar algo do passado (me refiro aos contingentes territoriais não mais
lá”.
205
motivação de uso do solo – o “boom” da soja, por exemplo –, sempre encontrou
em sua história, compartilhou com o seu entorno aquilo que chamaremos aqui de
Régis Fiúza, ao conceder uma porção de terras a Erocilda dos Santos, o faz pelo
o próprio relato de Dona Erocilda, Fiúza, no ato de doação, declara que daria aquela
terra para que ela pudesse criar os seus “negrinhos”. Em entrevista realizada com o
diferença por Fiúza no momento da emblemática doação. Ele narra que havia uma
mulher (Dona Erocilda) chorando à beira do rio (Caixões) e, como ela vinha de outra
fazenda, na qual havia inclusive levado uma surra, ele ofereceu as terras para que
ia dizer que nesse momento já se tem um marcante elemento no que diz respeito ao
206
Como se verá em outro momento, a comunidade se estabelece, quando da
venda das terras a João Carlos Kremer por Fiúza, através de relações de trabalho
apropriação de mão-de-obra.
Cabe notar que o grupo social de uma forma geral, e Dona Erocilda de uma
forma muito intensa, são reconhecidos pelo entorno de uma forma bem ampla. A
naquela região.
Dona Erocilda dos Santos, conhecida por muitos como “Tia Fia”, é lembrada
por muitos como parteira, tendo realizado, inclusive, o parto de muitas pessoas da
região que não pertencem, necessariamente, ao grupo social negro no qual ela
207
Erocilda: Tá lá ó, a mãe dela mandou me buscar aqui pra mim ir
fazer um parto dela lá na Tabajara, né, lá na Tabajara...
Querli (filha): A minha mãe também, né, a senhora foi lá, tanta gente.
Sebastião (marido de uma neta): Mas não só quilombolas, no caso,
né.
Cristian: Sim, sim, isso que eu queria perguntar...
Sebastião: Tem gente aqui pertinho que... a mulher do S. Nenê, aqui,
o parto... A senhora também fez do piá, né?
Erocilda: Ham, ham. Da mulher do finado Sírio, umas quantas.” 60
Tem-se que desde muito cedo a ocupação negra efetuada pela comunidade
acionada via reconhecimento de uma distintividade que está dada pelo fenótipo – a
utilizadas para diferentes fins. Tem-se, portanto, claras fronteiras que promovem o
Porém, essa clara distinção realizada pelo entorno sempre atuou, sobretudo,
informais.
60
Entrevista realizada com Sebastião Cardoso e Erocilda dos Santos em 19/04/2008, por Cristian
Jobi Salaini e Vinicius Pereira de Oliveira.
208
A comunidade narra que antes do pleito quilombola os proprietários de terras
vizinhos chegavam de carro para buscar as mulheres para limparem as suas casas
proprietários.
plantio da soja.
61
Detalhes ver Rubert (2005).
209
Fotografia 34 – Vista panorâmica da Comunidade do Rincão dos Caixões em 2008.
210
Fotografia 35 - Termo de Ajuste de Conduta (TAC) referente à área provisória da
comunidade quilombola do Rincão dos Caixões.
211
Deve-se evidenciar que o contato com o RS Rural faz parte de um outro
programa conter essa política específica para grupos quilombolas, o grupo precisa
articular o seu modo de vida particular com as demandas “de fora”. Mas o que
os “negros” do local são procurados para falarem sobre suas histórias da região.
62
Entrevista realizada com Márcio Alves, técnico da EMATER de Jacuizinho, em 2008, por Cristian
Jobi Salaini e Vinicius Pereira de Oliveira.
212
Fica claro, nesse sentido, esse reconhecimento de uma comunidade
anos), a técnica Tânia Treviso informou conhecer de longa data a comunidade dos
grupo, a questão ambiental que, em certo sentido, atuou como “estopim” do atual
do Deputado Dionilso Marcon). Esse ato acabou por desencadear uma série de
grupo.
213
O importante a ressaltar nesse momento inicial de reflexão sobre a
que pudesse levar a cabo as ações periciais desenvolvidas pelos órgãos acima
citados (IBAMA e FEPAM). No início das negociações, foi sugerida, por parte do
Procurador, tendo como base o laudo pericial realizado pelo IBAMA, a constituição
plantio da soja. Ocorre que Idalino, que no momento era representado pelo
advogado Alex Marquese (OAB/RS 49.289), discorda de tal “raio” e, no final das
metros. Segundo relato efetuado pelo próprio Procurador Fredi Everton Wagner, em
vale ressaltar, o quilombo Rincão dos Caixões sempre viveu, em sua história, um
63
Entrevista realizada no dia 28/06/2008, e que contou com a presença de integrantes da equipe
técnica do presente relatório (Cristian Jobi Salaini e Vinicius Pereira de Oliveira) e responsáveis pelo
“Projetos Especiais do INCRA” (Ana Paula Comin de Carvalho e Rui Tapliaglera).
214
processo de definição de seu espaço que contou com esses elementos externos de
comunidade e que marca essa diferença entre um “nós” e um “eles”, sejam eles
do Rincão dos Caixões. Logo, depreende-se que o pleito quilombola que aqui se
evocação identitária.
pela permanência no local, que sempre contou com sua condição de diferença
marcada pela condição étnica e que hoje é vivida através de processos e dinâmicas
da etnicidade.
aquilo que talvez seja mesmo a própria característica do trabalho de campo: o aceite
215
de desafios e o “colocar-se em risco”. Pretendo narrar aqui meu encontro com Régis
contempladas, aparece enquanto uma figura importante por ter estabelecido um tipo
de mito de fundação daquele território. Mais do que isso, do ponto de vista das
da soja”.
uma preocupação bastante evidente, por parte de Dona Erocilda, de apresentar algo
de seu grupo naquela região. Em certa ocasião, ainda nos momentos iniciais do
trabalho de campo, Dona Erocilda levou a equipe a uma conversa com um antigo
morador local que, de forma não muito convincente e desconfiada, nos disse não
saber de nada sobre a história de Erocilda na região. Depois de muita insistência por
parte de nossa protagonista quilombola, o morador admitiu “não poder falar disso”.
Apesar do insucesso da conversa com o morador local escolhido pela Dona Erocilda
não possuir o impacto sobre o relatório que ela poderia imaginar, acabou causando
Dona Erocilda, que sempre quis que a equipe fosse ao encontro de Régis
relação a tal possibilidade. Afinal, havia muitos anos que não produzia nenhum tipo
de contato com Fiúza e, depois do acima relatado, ficava a dúvida instaurada acerca
muito bem sucedido, foi finalizado com uma despedida e com a emanação de um
“até logo, muito asé”. Este fato nos criou bastante surpresa e curiosidade, tendo em
vista que, após o insucesso do contato travado com o informante anterior, tínhamos
estado do Rio Grande do Sul. Neste encontro, Régis Fiúza e Erocilda, visivelmente
ser seguidos no sentido da apreensão das relações do grupo com aquele espaço e
64
Asé, na lingua yorubá, atua como um equivalente de “força” ou energia.
217
Fiúza apresentaria consequências de um tipo de relação que estaria para muito
comunidade quilombola.
locais. Régis Fiúza, antigo conhecido das relações locais, havia, através do presente
a produzir, mesmo que ainda de forma muito hesitante, uma reelaboração de seus
códigos de reconhecimento social com relação ao Rincão dos Caixões. Erocilda, por
outra via, podia sentir a legitimidade moral de sua trajetória social que em outro
do presente. Trata-se de uma memória subterrânea (Pollak, 1989) que alça novas
realizado entre Erocilda e Régis Fiúza, promove um “estopim” que reverbera por
certas formas sociais do grupo; “dar-se conta do passado”, promove uma ação que
instabilidade simbólica:
em um primeiro nível, uma consolidação da figura mítica ocupada por Fiúza nas
219
tempo, o encontro também efetivou um tipo de “aquecimento” deste processo de
construção de legitimidades.
220
A figura de Fiúza sempre apareceu nas narrativas de Dona Erocilda e da
Dona Erocilda, para que esta pudesse criar os seus “negrinhos”. Esta narrativa
tempo em que Dona Erocilda “rolava por aí” e trabalhava como “escrava”, referindo-
obriga sua entrada no circuito de trabalho local nas fazendas da região, até sua
não apenas por sua distância temporal. Há uma distância que é reconhecida na
sentido, a conversa com Régis Fiúza não veio apenas afirmar uma doação de terras.
aos espaços, em função das sucessivas relações processadas com o seu entorno.
Régis Fiúza é afro-religioso, filho-de-santo de Mãe Araci, que por sua vez é
referida como filha carnal de uma africana que viveu em Porto Alegre. Vincula-se à
65
Entrevista realizada por Cristian Jobi Salaini e Vinicius Pereira de Oliveira com Régis Fiúza em
2008.
222
nação Oyó, uma das vertentes da religiosidade de matriz africana que no Rio
Grande do Sul é denominada, desde o século XIX, como Batuque. Ele narra sua
que, já aos nove anos de idade, teria “recebido” uma entidade religiosa. O objetivo,
estritamente por traços óbvios e visíveis de uma religiosidade que estaria expressa
empreendimento.
O Sr. Fiúza, aos 16 anos de idade, concede uma parte de sua propriedade à
Dona Erocilda, como visto anteriormente. É importante ressaltar que essa parcela
terras que estava sob sua posse. Durante o encontro etnográfico realizado, e que
muito importante do ponto de vista da pesquisa, já que não ficou nenhum “registro
A área demarcada com a cor preta foi assinalada por Régis Fiúza como
corresponde ao que foi doado por ele a Dona Erocilda dos Santos.
223
Figura 37 - Imagem aérea com indicações feitas por Régis Fiúza à equipe de pesquisa
sobre a área doada.
quilombola ter sofrido seu processo de expropriação quando da saída do Sr. Fiúza
dos proprietários seguintes que tem no plantio de soja o foco da cultura agrícola.
Com base nisso, pode-se questionar os motivos de tal doação realizada por Régis
e, mais que isso, fornece algumas condições para a sua continuidade naquele
religiosidade desde os nove anos de idade – e redirecionar o olhar para uma forma
específica que cria um universo para a continuidade naquele espaço. Fiúza, além de
realizada entre uma visão que integra sociedade e natureza com aquela trazida pela
gerenciamento dos recursos naturais que está inscrita no modus vivendi do grupo:
225
maravilha seria se ele abrisse a mão pra mim e me doasse aquilo
que agora estou precisando, é tão pouco, mas pra ele é tão grande,
tão compensador, uma vitória tão bela, que seria assim, uma coisa
exuberante pra pessoa, né, se sentir, perante Deus o Criador. Eu sou
de Religião Afro, Olorum, que digo assim, ficaria muito contente com
isso aí, que eu quero que essas pessoas que tão lá que abram a
mão disso aí, em nome de Deus, em nome de Olorum, que eles
façam isso pra essa Sra. Eles não vão levar nada, né, por que
querem? Deixem as pessoas com a sua parte, que possam tirar da
terra o seu sustento, o seu pão de cada dia... Hoje em dia tudo é tão
difícil, a gente vive batalhando, nós não vivemos, nós sobrevivemos
no mundo que temos aí, desse jeito aí, nós todos deveríamos ser
irmãos, de todas as crenças, a melhor religião é aquela que faz
alguma coisa para a humanidade, aquela religião que me fazer... A
pessoa feliz e que faz alguma coisa pras pessoas, então essa é a
melhor religião, esses seres humanos podem contar que são felizes,
que daí tão passando a felicidade, harmonia para um todo, né, isso
aí é muito importante pra mim, por exemplo, assim, que sou da
religião Afro, que cultuo, faço de tudo pra participar, o que tiver em
mim, né, pra fazer isso aí...” 66
mais do que uma relação entre indivíduos. O que ocorre, de fato, são afinidades
66
Entrevista realizada por Cristian Salaini e Vinícius Oliveira com Régis Fiúza e Erocilda dos Santos
na cidade de Soledade em 2008.
226
Tem-se, contudo, uma instauração – um “estopim” – do território que é inaugurado
Dona Erocilda pôde fixar-se naquele espaço, após uma trajetória pessoal e familiar
muito específica nesse sentido. Sua forma de viver, fortemente baseada nos
esquemas da tradição por ela herdados, somada a essa “ética do encontro” com
227
4.4 O transitar pelo espaço e a evocação da memória.
espaços de referência.
pela atualização de antigos espaços não mais freqüentados pelo grupo, temos
fazer que façam parte do circuito do grupo. Não argumento aqui sobre a existência
reconhecimento de uma força territorializante que, claro, vem alçando outros níveis
obedece algo mais parecido com uma relação dialética de saberes do que como um
território “apenas lembrado”. O ato memorativo, que alça vôos maiores e de longo
228
Como visto anteriormente, Dona Erocilda e seus descendentes conviveram,
lavouras de soja de seus patrões desde muito jovens, produzem um modelo de uso
especialmente nos últimos quatro anos. Isso ocorre como resultado de duas forças
67
Como será mostrado adiante, os laços de parentesco e afinidade mantém outras famílias, não mais
residentes no Rincão, ligadas ao grupo de origem. Porém, apesar deste primeiro aumento do espaço
realizado, muitas famílias negras continuam trabalhando para o entorno reproduzindo modelos de
exclusão social da região. O trabalho em pedreiras, por exemplo, constitui-se como caminho de
muitos moradores negros do Rincão dos Caixões.
229
comunidade, desencadeando as condições possíveis do atual pleito por definição
território. São os laços sociais de pertença que definem o território negro do Rincão
relação aos vizinhos que se fundaram, de forma principal, nas relações de trabalho
que construíram aquele espaço. João Kremer comprou as terras de Régis Fiúza – o
proprietário. Almeri, filha de Erocilda dos Santos, lembra quando trabalhou na casa
de João Kremer enquanto caseira. Quando Kremer vendeu suas terras e partiu para
o Piauí, seu filho o acompanhou. Caminhando pelo espaço, Almeri mostra sua
230
Almeri: É.
Cristian: Daí era pra cuidar da casa?
Almeri: É.
Cristian: Ficava meio de caseira?
Almeri: Ham, ham. Ficava de caseira. Depois morei lá naqueles
eucaliptos na terra do João Carlos, faz oito anos que eu saí de lá, daí
fui morar lá, daí vim pra ali morar com a mãe.
Cristian: Então tu morou em três lugares aqui nessa...
Almeri: Ham, ham. Aqueles eucaliptos todos lá fui eu que plantei...
Cristian: Tá, mas oito anos atrás não era mais o João Kremer, já era
do...
Almeri: Não! Aquela já é outra área, do lado de lá.
Cristian: Ah!
Almeri: Era do João Carlos, ali onde eu falei pra ti que era a granja...
Cristian: Mas quanto tempo faz que ele foi pro Piauí?
Almeri: Faz oito anos.
Cristian: Ah, daí tu saiu dali exatamente quando ele foi embora, foi
isso?
Almeri: Foi. Daí eu saí de lá e fui morar ali de novo.
Querli: Ela tem um filho dela que mora lá com ele.
Almeri: Hum, hum.
Querli: Desde pequeno.
Almeri: Foi pra trabalhar lá com eles...
Querli: Desde os 12 anos.” 68
68
Entrevista realizada por Cristian Jobi Salaini com Almeri e Querli em 2008.
231
torno do pleito quilombola, o grupo aponta que “negro” não pode mais plantar lá de
jeito nenhum.
232
Fotografia 39 – Equipe de pesquisa analisando o território juntamente com a
comunidade quilombola.
233
que alternam memórias de um território que é, ao mesmo tempo, lúdico e sofrido. A
brincadeiras que compartilhava com os seus irmãos junto a um olho d´água que hoje
se encontra das terras de Vendrúsculo, em meio à soja. Narra que enquanto sua
“Querli: Ah, nós brincava, nós éramos criança e nós brincava tudo
aqui assim ó, a mãe trabalhava ali e nós ficávamos aqui.
Gino: Nunca secava aí.
Querli: Nunca secava. Olha lá o olho d’água até entupido...
Acabaram com o olho d’água, que judiaria! A gente ficava nervosa
quando começa olhar isso aí, dá uns nervos na gente... Nós fazia
acampamento, fazia almoço aqui, fazia um foguinho, fazia almoço
pra nós trabalhar, pegava água daqui... Secou!
Gino: Tá terminando...
Etuíno: Mas ali entupiu.
Qquerli: Entupiu tudo.
Cristian: Querli, mas me fala de novo, o que vocês vinham fazer aqui
quando eram gurizada?
Querli: Já que a mãe trabalhava aqui, aí nós vinha e ficava perto do
olho d’água e fazia fogo, fazia almoço, vinham da lavoura e ficavam
aqui na sombra... Na beira do olho d’água, né, era aqui assim e aqui
nós ficava o dia inteiro brincando e eles na lavoura, daí de tardezinha
nós íamos pra casa, no outro dia de novo pra cá.
Cristian: O que eram as brincadeiras?
Querli: Trepava nas árvores, brincando, casinha de pedrinha, né, era
o que...
Cristian: Fazia tempo que vocês não vinham aqui?
Querli: Ah! Eu faz uns quantos anos...
234
Almeri: Depois que eles plantaram soja aqui, nós sempre vinha
buscar mandioca... E depois que eles plantaram soja, daí eles
proibiram passar, com soja, não era pra vim, aí nós nem as
mandiocas nós viemos buscar mais...” 69
Fotografia 40 – Seu Gino mostrando o antigo olho d’água utilizado pela Comunidade
Quilombola, seco em função da lavoura mecanizada da soja.
do Fiúza” atuam em oposição tanto aos “tempos do Kremer” como aos “tempos do
Idalino”. Enquanto a relação vivida com o Sr. Fiúza evoca a lembrança dos “tempos
memória que fala dos “tempos da soja”. Ainda, pode-se dizer que os “tempos do
69
Entrevista realizada por Cristian Jobi Salaini com Almeri e Querli em 2008.
235
Fiúza” evocam, do ponto de vista da memória coletiva do grupo, uma parte da
“caminho das ervas” mostra uma forma de percepção daquele território que não está
foi, no passado, desenhado pelo “campo” e pelo “mato”. O conhecimento das ervas,
esse espaço hoje reconhecido como “da soja”, porta sinais que fazem parte do
70
Entrevista realizada por Cristian Jobi Salaini com Gino em 2008.
236
“Cristian: Mas o que é, o que é?
Almeri: A begônia.
Cristian: Begônia? E o que mais que tu... Heim Almeri, tu pegou ali o
negócio que era... O urtigão, tu falou?
Almeri: Urtigão.
Querli Esse aqui ó, que é o urtigão.
Cristian: O que é esse aqui? Heim Almeri, mas esse remédio, o
urtigão, é pra bexiga?
Almeri: É. Arranca a raiz e cozinha ele, daí tu cozinha, ferve e toma
por água, pra bexiga.
Cristian: Como é que prepara, ferve tu falou?
Almeri: É.
Gino: Ferve e toma por água, fria.
Almeri: Põe na geladeira e toma por água.
Cristian: E quem que ensinou pra vocês isso aí?
Gino Isso aí é antigo, do tempo do meu pai. Pai e avô.
Cristian: Mas tem outras ervas que eles ensinavam?
Almeri: Tem! Tem essa...
Gino: Tem a tal de babosa... De tudo um pouco...
Cristian: Mas então me dêem os exemplos aí?
Almeri: Malva, trançagem, tem esse outro...
Licindo: Pra tomar, esse é pro estômago, tem pra úlcera... Essas
coisas assim é a primeira coisa, lá em casa deve ter um pezinho, não
tá bem...
Gino: A mãe entende, lá, a mãe tem o... Aquele, sei lá...
Almeri: Alcachofra.
Gino: Tem um pé lá.
Licindo: Mas aqui também é que nós vivia, aqui era área que nós
vivia.” 71
71
Entrevista realizada por Cristian Jobi Salaini com Almeri dos Santos e Licindo dos Santos no ano
de 2008.
237
Fotografia 41 – Comunidade quilombola em caminhada pelo território acompanhada
pela equipe de pesquisa.
aqui pela apreensão do detalhe físico. Aquela paisagem que, do ponto de vista de
um “leitor desavisado”, poderia ser interpretada apenas como uma paisagem da soja
retém esse detalhe como conhecimento compartilhado por sua tradição, evocando
238
quadros sociais são “instrumentos utilizados pela memória coletiva para reconstruir
Mas vale ressaltar, mais uma vez, que se trata aqui de uma memória
reflexão antropológica, cabe notar que esse sentido de pertença se dá, em grande
239
Fotografia 42 - Comunidade quilombola em caminhada pelo território acompanhada
da equipe de pesquisa.
Rincão dos Caixões se inscreve num território. A premissa na qual me debruço aqui
diz respeito a um modo singular de vida que articula, via sistemas simbólicos
território, ao longo dos períodos sucessórios que permearam o seu percurso, foi a
Uma possível inquietante questão que poderíamos realizar com relação a tal
de cultura. Na forma proposta pelo autor, o patrimônio cultural atua como extensão
“fato social total”, nos termos do antropólogo francês Marcel Mauss. Assim, o
Nação – sobre a qual estou debruçado até o momento – o autor atenta para o fato
categoria, o patrimônio:
que dialoga diretamente com sua tradição e com os saberes locais. As moradias,
pela não utilização de cercas, continham – e ainda contêm – como elemento que
constitui suas “bordas” o cultivo de ervas e pequenas hortas que fazem parte do
“Vinícius: Ela falava alguma coisa da mãe dela, a sua avó, contava
alguma história desses mais antigos da família?
Erocilda: Da minha avó?
Vinícius: Isso.
Erocilda: Ela falava, era gente... As “bugra velha”, eram bugres, eram
bugres do “gomo da taquara”.
242
Cristian: Bugre do gomo?
Erocilda: Da taquara. (Risada).
Cristian: Como é que é isso aí, me explica isso aí, como é que é isso
aí, o bugre do...
Erocilda: Pois é, o que eu quero dizer, não é, que a minha avó, a
mãe da minha mãe, a minha avó foi criada... A maioria, nos tempos
dos matos. O senhor ouviu falar na tal (?) de morcego? Pois é, eles
catavam isso pra comer, eram bugres mesmo... O meu avô, que é o
pai da minha mãe, o compadre não conheceu... Você não conheceu,
mas a tua mãe conheceu, a tua mãe conheceu o meu avô, um bugre,
um bugre legítimo mesmo, esse aí veio, eu tava aí, morou aí no sítio,
trouxe a família pra aí e ficou ali, que é o meu avô.” 72
72
Entrevista realizada por Cristian Jobi Salaini e Vinícius Oliveira em 2008.
243
Fotografia 44 – Almeri colhendo ervas medicinais no território do quilombo.
dos saberes. Isto aponta de sobremaneira para duas forças existentes no ambiente
sócio cultural do Rincão dos Caixões; uma externa ao grupo, que procura o
étnicas que, por sua vez, elencaram os elementos possíveis e necessários para o
construção identitária. Não há, portanto, como separar esses polos – cultura e
natureza – nessa forma de interpretação do mundo conduzida por este grupo social.
Seja através de sua relação histórica com o rio, com os “matos antigos”, com os
capões ou com as trilhas de ervas, vislumbra-se ali uma conduta corporal e uma
245
forma de se inscrever no espaço que não têm como ser compreendidas se não levar
dos Caixões:
246
Querli: Não acham um pé de pitanga...
Gino: Eles comem bergamota porque nós temos os pés aí, né, nós
plantamos a pocam, que nem diz lá no Mato Grosso, lá não é
bergamota, é pocam, então daí... A gente plantou na época (...).” 73
relação ao Rio dos Caixões. Desde a chegada de Dona Erocilda na região, o rio é
como aqueles que estão “lá no fundão perto do rio”. Porém, essa mudança na
“Querli: (...) Mas credo, era bem bom no tempo que de gurizada.
Luiz: E o peixe ainda tem?
Querli: Olha, tem um pouco...
Gino: Mas tá pouco, pouco. De uns anos pra cá nesses rios não dão
como davam antes, não é muita coisa, né, a parte, se tu quer comer
um peixe mesmo, é nos açudes, né, que os caras cuidam, né, hoje
ainda eu dei uma sarrafadas lá e ainda trouxe umas carpezinha aí.
C: Então mudou isso?
Gino: Antigamente...
Querli: Naquele tempo que eu vejo, parece que era mais fundo...
Agora como ali ó, essas curvas, aquelas lavouras largaram...
Gino: Antigamente largavam tudo lá dentro, ia tudo pros rios, foi
terminando... Agora já não, agora já nem existe entulho, fazem o
plantio direto...
73
Entrevista com Gino e Querli (filhos de Erocilda dos Santos) realizada por Cristian Salaini e Luiz
Fontoura em 2008.
247
Querli: (...) Tinha aqueles montam de pedra que sai dessas lavouras,
né... Aí modificou tudo um poço aí que chegava sair água azul, agora
74
tá entupido, agora não é mais igual era antes.”
recursos naturais da região. São inúmeras as narrativas que colocam frente aos
“tempos que existiam ervas”, “os tempos do mato”, e assim por diante. Isto
perspectiva territorial. O que cabe aqui é ressaltar que essa devastação produzida
suas identidades sociais e coletivas. Dos Anjos (2008) fala de situação correlata em
74
Entrevista com Gino e Querli (filhos de Erocilda dos Santos) realizada por Cristian Salaini e Luiz
Fontoura em 2008.
248
com a exasperação dos solos, já que a destruição do ambiente é
capaz de interferir na própria memória do grupo (Borba, 2008).
grupo quilombola tem início através de uma denúncia, realizada pela comunidade
recursos naturais da região, não é atual. Ela vem tomando corpo ao longo da história
de cinco décadas desse grupo social negro aqui em questão. Se essa denúncia vem
249
Fotografia 46 – Margens do Rio dos Caixões, próximo ao quilombo.
250
4.5 Dona Erocilda: do passado negro ao pleito atual.
dizia: “Tu achas que eu não sei que tu estavas gravando esta conversa? Tu estava
era gravando tudo que eu sei!”. O interpelo me pegou um pouco de surpresa, já que
parecia haver algo mais em sua questão do que a simples inquietação do uso de um
gravador que, em verdade, nem estava ligado durante a reunião. Parecia-me que a
pergunta escondia algo que foi me sendo revelado durante meu contato com essa
de um certo papel interventor. Digo isto porque no curso do trabalho de campo esta
noção acerca do papel dos agentes públicos ficava bastante clara, já que o grupo ia
75
Instituto para Assessoria de Comunidades Quilombolas do Rio Grande do Sul.
251
se transformando em algo de diferentes instâncias do poder público. Meu contato
destes “jogos de espelhos” que representam o trabalho de campo. Se, num primeiro
momento, a minha figura parece ter construído uma relação clara calcada na figura
aquelas que se apóiam em laços afetivos que, sem dúvida alguma, fazem parte das
caso do Rincão dos Caixões, não haveria como desenrolar uma etnografia – uma
emblemática.
Fotografia 48 – Dona Erocilda dos Santos em sua casa no Rincão dos Caixões.
historicidade do grupo, seja por sua fala, seja pelo modelo normativo que sua
presença matriarcal imprime àquele espaço. De fato, sua história confunde-se com a
história do grupo negro em questão: pode-se dizer que Dona Erocilda age como a
presente. Dona Erocilda narra sua primeira fixação no território como resultado de
uma doação realizada pelo antigo proprietário, Régis Fiúza, como foi dito
anteriormente: “Tu sempre foi escrava... fica com essa terra pra criar os teus
“Erocilda: O Régio me deu aqui, tudo era mato aí, ele me...
Cristian: E a senhora veio vindo?
Erocilda: É, daí ele me deu pra fazer um barraquinho e ficar aí com
as crianças, aí quando fazia uma semana que eu tava aqui, ele
disse, “tu vai criar os teus filhos e o que tu produzir tu cria aí, não sai
a caminhar mais, trabalhar de graça pros outros”, porque ele sabia, o
pai dele, a mãe dele, moravam em Jacuizinho, a tia dele, os tios, o
Vequinho tá morando até hoje ali, que o Veco é tio do Régio e daí,
“tu fica aí, os negrinhos que tu aumentar, tu cria aí”, ele disse pra
mim, mas aí eu disse pra ele assim, “mas o que tu quer dizer assim,
aumentar, eu não sou porca, viu!”, eu disse brincando com ele, né,
mas ele disse, “mas vai aumentar, vai aumentar”, muito, daí eu fiquei
aqui, aí fiz um barraquinho e ele disse, “tu faz aí que eu vou te
mandar uma semente de lá”, ele já tava morando em Soledade e
76
mora lá ainda, ele tem a casa dele em Soledade.”
76
Entrevista realizada por Cristian Jobi Salaini e Vinícius Pereira de Oliveira com Erocilda dos Santos
em 2008.
253
Ao mesmo tempo, essas narrativas repercutem no lugar de liderança
destinado a ela no interior do espaço77. Ela ocupa um forte papel na escolha sobre
quem pode e quem não pode residir na comunidade, quando de um casamento com
alguém de fora, por exemplo. Há, nesse sentido, “regras” de afinidade que regem a
Cardoso, marido de sua neta Andréa dos Santos Cardoso, como responsável pela
de seus filhos saberem ler ou escrever, apontando para a dificuldade de lidar com o
quilombo e o universo que emerge em função do pleito atual, realiza tal escolha com
o objetivo de promover um acesso ao “mundo dos letrados” pelo mundo dos “não
letrados”.
77
Como visto anteriormente, a negociação destinada ao aumento do espaço agriculturável da
comunidade, que contou com a presença da Procuradoria da República de Cruz Alta, Quilombo do
Rincão dos Caixões e o atual proprietário das terras que divisam com a comunidade, tomou a casa
de Dona Erocilda como “ponto zero” da nova marcação. Dona Erocilda, figura central à comunidade
em questão, foi reconhecida pelos “agentes externos”.
78
Como visto em outra seção, o relatório sócio-histórico-antropológico em questão, realizado na
condução do processo admistrativo 54220.001415/2006-39 da 11ª Superintendência do INCRA, é
resultado de um percurso mais longo do reconhecimento político da comunidade que vem sendo
realizado por “agentes externos” de diferentes instâncias.
254
O que interessa aqui, nesse momento, é resgatar o potencial que a trajetória
aponta para o fato de ter “rolado muito por aí”, de ter sempre trabalhado “pros
outros” como “escrava”. Como já referido, quando de sua chegada ao Rincão dos
Caixões, com o seu primeiro marido, ela conheceu Régis Fiúza, o então proprietário
do conjunto de terras nos quais se encontra atualmente o grupo negro. Narra que, já
residente “pro lado de lá do rio”, onde construí sua primeira moradia – “era tudo
“escravo” vem a integrar diferentes temporalidades por ela vividas naquele território.
79
Entrevista realizada por Cristian Jobi Salaini e Vinícius Pereira de Oliveira com Erocilda dos Santos
em 2008.
255
O “ser escravo”, que ela utiliza como condição explicativa desde a sua chegada ao
local, evidenciando uma condição de se “estar rolando por aí” é atualizada para
“Erocilda: Mas ele disse, ele disse pra mim, “eu vou te de dar um
pedacinho pra ti deixar de ser escrava, trabalhar de graça, bem dizer,
pros outros”. Escrava, que eles queriam dizer, sabe o que era? Se eu
plantasse aí um saco de feijão na terra do (Bolonho?) ali, né,
plantava em “sucia” [“sociedade”], se colhia cinco sacos, eu tinha
saco e meio só, o resto era do dono da terra, né, e trabalhava assim,
por isso que ele dizia que a gente é escravo, que vivia só... Saía dali
ia pra outro, saía dali pra outro, né, até que eu cheguei aqui e aqui eu
“despalanquei”... O senhor vê, a gente plantar uma lavoura aí, de
“sucia”, não íamos longe. E assim aconteceu pra mim... E nunca a
gente arrumava nada, nada mais do que uma comidinha, pra ter pra
comer e às vezes passava fome ainda, às vezes passava fome.” 80
organizada por Dona Erocilda, remeter a uma série de juízos sobre o presente. “Ser
escravo” não faz parte de um tipo de memória recalcada pelo grupo, uma memória
80
Entrevista realizada por Cristian Jobi Salaini e Vinícius Pereira de Oliveira com Erocilda dos Santos
em 2008.
256
algo que se reproduz pelas condições vividas pelas gerações sucessórias de Dona
Erocilda:
Pode-se dizer que a trajetória social de Erocilda dos Santos funciona como
81
Entrevista realizada por Cristian Jobi Salaini e Vinícius Pereira de Oliveira com Erocilda dos Santos
e seu filho Gino em 2008.
257
figura de destaque é produto e produtora de um modo particular de existência e
arranjos calcados no modelo da família extensa que toma Erocilda dos Santos como
percepção de ter sido sempre “escrava” – algo que se reproduz pelo grupo de forma
ampla.
consecução da trajetória de Dona Erocilda nos termos em que ela se deu. Ainda,
sua vinda de outra comunidade negra – que hoje também desenvolve pleito por
novos ajustes entre o pleito atual e o seu “passado escravo”. Ela faz questão de
258
Fotografia 49 – Comunidade Quilombola do Sítio. Edoilde Xavier da Silva (Dona Funé),
Oralina Fernandes da Silva (Dona Pretinha) e Erocilda dos Santos.
Arroio do Tigre, em 2008.
O que ocorre nesse longo percurso que levou Erocilda dos Santos do Sítio ao
Rincão dos Caixões releva muito mais que um simples deslocamento físico. Fala-se
Nesse sentido, o que deve estar em mente, por parte do leitor, é o aspecto de
resistência cultural contido nessa trajetória. Ela carrega consigo parte da força que
explicita uma forma de se colocar num espaço que se distingue de seu entorno.
259
4.6 “Carambola” ou quilombola? As categorias em diálogo intercultural.
pesquisa, falavam muito da nova condição dos “carambolas” – “Nós somos todos
carambolas agora!” (em alusão a quilombolas) – adotada pelo seu grupo social. Este
ser interpretado como o próprio atestado da ignorância do grupo social face ao pleito
em curso. O trabalho de campo, porém, acaba por demonstrar uma via mais longa
onde o grupo social produz uma relação de “conversação” com as categorias por ele
administrativas (neste caso assumir de uma vez por todas uma “identidade
condições existenciais que façam sentido ao pleito atual. Não se trata de uma
perdas relativas. A identidade do grupo – sua “cultura” – acaba por viver como por
entre “dois mundos”. Um de sua cultura “para fora” e outro de sua cultura “para
Cabe notar que não se trata de um “mundo” mais verdadeiro que o outro; o que está
comunicativa.
260
Bensa mostra como durante o século XIX os missionários e viajantes que
passavam pelo povo Kanak, da Nova Caledônia, não poderiam imaginar que um dia
este grupo social poderia alçar o status de pertencente à “cultura”. Mas foi preciso o
tipo de cálculo nacionalista acerca dos ganhos que o governo francês poderia
um Centro Cultural Tjibaou e dos recortes e tensões existentes entre uma “cultura
para si” – dos próprios Kanak – e dessa cultura “para fora” que resulta do processo
261
se oriunda das distintas apropriações da “cultura”. Existem níveis de apreensão
negociados para fins de demonstração neste novo mundo dos pleitos promove um
agentes locais. Se, por um lado, a reflexão acadêmica procura ampliar os sentidos
maneira problemática. Não se trata nem de uma aceitação prévia dos conteúdos
formais e nem de uma rejeição dos mesmos. O que está em jogo é um tipo de
262
4.7 Memória e noções de justiça. Mapas e territorialidades.
própria interpretação, por parte do grupo, dos limites possíveis e justos do pleito
A memória demarca um espaço que, hoje, não pode ser mais trafegado pela
quilombola naquele espaço. Aliás, pode-se afirmar que é a própria ação social desse
grupo coletivo que constitui aquele espaço; temos ali uma territorialidade negra
importa ressaltar aqui, de forma bastante intensa, é a conexão direta entre este
mapa é resultado de uma dialética nas noções de justiça que compõe o horizonte de
263
Fotografia 50 – Discussão acerca dos limites da área quilombola.
travados pela comunidade e seu entorno por um estilo de vida e por uma forma de
resistência de sua tradição cultural. O resultado disso é uma interpretação, por parte
do grupo, que evidencia o atual processo como uma luta por direitos. Isso revela o
papel ocupado pela comunidade nas relações de trabalho local. Ao mesmo tempo
em que evidencia o papel da reprodução de seu modo de vida local, o grupo retoma
essa identidade para reivindicar uma realocação nas relações que sempre
264
colocaram o grupo numa situação de desvantagem e de exploração da força de
trabalho. Encontra-se, portanto, uma noção de justiça que dialoga com o histórico de
vida do grupo:
que fazem e fizeram parte das relações históricas da comunidade. Muitas vezes, a
Porém, do ponto de vista dos atores sociais aqui envolvidos no pleito fundiário – a
82
Entrevista com Almeri e Licindo, enquanto este último realizava a colheita do milho em 2008.
265
comunidade quilombola do Rincão dos Caixões – esta conjuntura privilegia a própria
sobrevivência simbólica que age nos meandros desse próprio sistema excludente.
próprios limites da demanda quilombola. Não se trata apenas de uma busca por
Mas afinal, o que seria, hoje, esse território quilombola? Baseado em quais
desse grupo? E, um elemento chave dessa construção: Quais são os limites dessa
relatório técnico foi o resultado de uma sucessiva luta por estabilizações de sentido.
pontos do mapa. O grupo resolve deixá-los de fora, pois entende que “não seria
266
A tradição do grupo se expressa naquele espaço físico e mais que isso: ela
territorialidade quilombola que se expressa no presente. Isto quer dizer que o grupo
articula este diálogo com sua história com aquilo que – nas próprias palavras
funciona como um ponto de encontro entre a rica trajetória social deste grupo e
aquilo que o grupo entende como sendo possível como substrato da atual demanda
territorial.
seu modus vivendi enquanto elementos fundantes de seu território, e dali retirar os
elementos de uma “forma de pensar” que acaba por apontar limites para seu
dialético entre passado e futuro, entre memória e pleito coletivo. O resultado disso
268
5 O TRABALHO DE CAMPO EM SERGIPE. AMPLIANDO DIÁLOGOS.
201184.
acabam por desenhar um território nem sempre de “bordas” e limites muito claros
83
Neste trabalho no estado do Sergipe contei com equipe constituída pelo antropólogo Aderval da
Costa, pela antropóloga Mariana Balen Fernandes e pelo historiador Vinicius Pereira de Oliveira.
84
Obra emblemática que explora a questão quilombola em Sergipe é o livro “Mocambo: Antropologia
e História do processo de formação quilombola”. O livro fala sobre a complexidade do processo de
etnogênese da comunidade quilombola conhecida como “Mocambo”, apontando para as relações
entre história e memória e as teias identitárias no processo de gênese quilombola que, de forma
bastante intensa, dialogam com uma “identidade indígena”.
269
ser interpretada como um elemento constituinte do aparato museológico do grupo,
futuro, no entanto, são alçadas no plano dos juízos morais realizados pelos grupos.
semânticos. Diálogos que, como destacado até o momento no corpo desta análise,
veladas de enlace da memória. As tensões entre o dito e o não dito revelam uma
forma disjuntiva de acesso à memória, mas que está profundamente enraizada nas
270
em noções e juízos acerca de situações do passado e do presente vivenciados pelo
grupo.
vezes, sob essas percepções mais ou menos veladas acerca da “objetividade” dos
administrativa precisa efetuar um recorte da vida quilombola que seja tangível aos
mesmo que mais escasso nos dias atuais, está “por aí, assoviando entre uma casa e
“mundo inferior” que “vive” numa lagoa que leva seu nome – estão ainda vivos no
Existe uma imagem, contida em seus “animais do espelho” que fala sobre a relação
Esta narrativa fantástica produzida por Borges me inspira a refletir sobre estes
muito semelhantes no que diz respeito ao seu contato com o sobrenatural e sua
273
quilombola. Esta mitologia do sobrenatural que aqui segue é expressa pela presença
produzem mais do que uma relação meramente associativa com o território. Neste
da “pajelança”, por exemplo, têm sido tema de diferentes disciplinas, como folclore,
“fantásticas” da Amazônia dos finais do século XIX até metade do século XX. O
85
Há discussão correlata acerca da participação dos intelectuais, políticos e demais agentes na
construção de legitimidades religiosas e políticas em “Vovó Nagô e Papai Branco: Usos e Abusos da
África no Brasil” (Dantas, 1988).
274
Alvarenga, entre outros, fazem parte desta teia construída entre intelectuais, pajés e
feiticeiros.
Mas a atuação dos pajés e, por extensão, da pajelança, que deveria aparecer
os “encantados”.
jornais. Por seu turno, a polícia muitas vezes chegava aos pajés e feiticeiros a partir
dos comentários saídos das redações das gazetas. Ampliando a teia, muitos
vista acadêmico, nas relações existentes nas práticas amazônicas. Como o autor
275
desconhecidos, sendo que a pedra fundacional deste tipo de estudo estaria remetida
sincrônica, algo que contribuiu em muito para a fuga de leituras de fundo folclorista
asseguradas pela leitura mítica, que para além de uma oposição simples em relação
86
Eduardo Galvão foi orientando do antropólogo americano Charles Wagley, outro estudioso do
fenômeno.
276
relação a um determinado imóvel, é também verdadeiro o fato que aponta o mito, no
mesmo tempo em que a memória coletiva aponta para certos consensos do grupo e,
descontínua da memória.
imanência vivida pelos grupos que nem sempre está imediatamente acessível ao
fatos míticos. Trata-se, sobretudo, de atentar para uma "escritura mítica" que acaba
por instaurar uma "ética espacial" que já "estava lá" (retirando qualquer tendência
dissertação do Marcelo Moura, digo que a memória não está atendendo apenas a
memorativo.
Se o mito possui camadas, então ele é bom pra entender as coisas, pois
revela diferentes níveis do problema que fornecem certas “chaves de entrada” para
277
que muito transcende as expectativas apresentadas pelo mapa do relatório técnico
explicativo. Aponta para o fato de, ao ter aparecido como um tipo de substituto para
muito heterogêneos. Neste sentido, o autor procura definir, de forma clara, o sentido
técnico. Neste sentido, algo deve ser dito acerca da leitura dos dados míticos
278
quando incorporada à apreensão metodológica. Ginzburg (1990) evidencia como o
método indiciário no sentido de distinguir obras falsas das originais. Ele demonstra
“pintar uma orelha”, por exemplo, pode revelar certas vocações pictóricas que estão
dialoga com certos paradigmas mais amplos que fazem que o “detalhe”, ou a
mais amplos. Bensa (1998) mostra como esse elemento é transmitido para a micro-
dos grupos traz um pouco mais que imagens “anedóticas”. Ao mesmo tempo em que
279
grupos. Os fragmentos, pequenos pedaços mitológicos, os “restos” da casa grande
onde os fantasmas ainda habitam, essas narrativas todas, acabam por revelar, em
Meu intento aqui, claro, não é recair numa leitura que coloca o mitológico
Interessa-me evidenciar o fato comunicativo que faz a vida mitológica colocar luz
sobre a história e vice-versa: “Não lemos a memória como ‘texto’, mas como
Normalmente, quando esse tema aparecia nas conversas informais, ou, quando
interpelado (“Afinal, porque que diabos este pesquisador quer saber dessas
maluquices da caipora?”). Sempre que procurava alguém mais velho com a intenção
quer dizer que as pessoas não continuassem narrando os eventos vividos com a
etnográfico” a ser levado em conta pelo analista. Eles revelam sentidos que nem
(1998) coloca essas “ginásticas” do ato da fala, que ensinam um pouco mais sobre
281
Fotografia 52 – “Seu Luis” narrando as histórias da Caipora.
282
Fotografia 53 – Trilha para a Gruta de Santa Bárbara.
283
Fotografia 55 – Gruta Santa Bárbara.
O ato de caminhar pelo espaço revela um sentido que está contido tanto na
memória, posso citar, de forma breve, alguns locais que fazem parte do elenco
a “solta” são alguns desses locais. Há, porém, uma forma de visualização desse
território, por parte dos quilombolas, que não necessariamente coincide com as
formas mais atuais de apreensão desse espaço, principalmente no que diz respeito
porém, foram como que “recalcados” pela expansão do agronegócio local. É o caso
pequenas roças domésticas, assim como de coleta de frutas locais, foi sendo
“apagado” pela falta de permissão por parte dos proprietários mais atuais. Através
284
da sucessão dominial das terras denominadas por “solta”, houve uma decrescente
totalmente ocupada pelo grupo, até um momento em que esta possibilidade tornou-
constitui-se num dos principais núcleos do quilombo de Ladeiras, devido ao seu uso
mesmo núcleo territorial em Ladeiras. O lago é povoado pela figura mítica do “negro
Ladeiras, pode se apresentar de diferentes formas; meio homem, meio peixe, ou até
mesmo através da representação de uma criança. Seja como for, o lago apresenta-
tronco e ao antigo engenho. Esta parte do território quilombola sempre foi utilizada
para a caça, no passado, devido à forte densidade de matas, como também à coleta
O negro d’água tem aparição freqüente numa lagoa que leva o seu nome: “a
lagoa do negro d’água”. Esta lagoa localiza-se nas proximidades de uma antiga casa
escravos que ali habitavam. O negro d’água, segundo as narrativas locais, acaba
285
envolvendo e levando para o fundo das águas aqueles sujeitos que se aventuram de
alguns, ele aparece na figura de “meio homem-meio peixe”. Para outros, ele chama
na forma infantil – pode ser uma criança ou duas crianças. Outras narrativas dizem
que o negro d’água pode aparecer em uma forma feminina que, segundo alguns,
metáforas acerca das relações entre a história e memória. O “neguinho d’água” não
pode ser capturado pelo jogo civilizacional (Chagas, 2005) transformando uma das
foi capturado pelo tempo, ela dialoga de forma incansável com as novas formas
atuar eficazmente.
286
A imagem do negro d’água – e a lagoa – atua como uma dimensão
expressiva do território (um tipo de coração do mapa quilombola) que acaba sempre
por evocar imagens e narrativas da escravidão; um ponto de origem que toma como
287
Fotografia 56 – Quilombolas de Ladeiras procurando vestígios de
uma antiga “casa grande”.
288
O negro d’água se transmuta em um “encantado” de sentido muito peculiar. A
lagoa da qual faz parte e sua localização privilegiadamente colocada ao lado das
“antigas ruínas” e dos troncos servem como a mola da comunicação produzida pela
espaços mitológicos carrega uma densidade histórica que revela aquele que
memória: evidencia a própria ação social do grupo perante o espaço: implica numa
leitura mitológica sobre a qual se evidencia uma “captura incompleta”, pois, não
equipe de pesquisa cada vez mais se deparava com camadas profundas de sentido
289
presente realizam um processo seletivo com o passado. Antigos espaços, como o
algo negociado com o passado e que envolve um diálogo criativo com as imagens e
extremamente vivos em seu modus vivendi. Deve-se ter em mente que, apesar do
acesso dificultado aos antigos territórios, ocasionado pela pressão maciça dos novos
mato são traduzidos como um tempo de relativa estabilidade do grupo no que diz
negras ali residentes, como a “família Piloto” e a “Família Sertão”. O senhor Manoel
comunidade quilombola, existe um território que ainda é vivido pelo grupo: se isso,
muitas vezes, não ocorre do ponto de vista do acesso físico ao espaço, ocorre
através das operações no campo da memória, que acabam por revelar um território
elemento que aparece de forma bastante intensa nas narrativas do grupo: o mito e
grupo quilombola, que aloca no campo da memória essa dimensão mitológica com
disso, essa mitologia atualizada pelo grupo dialoga com definições de um espaço
físico que vai tomando forma pela força narrativa. Portanto, aos fins que se dirigem o
argumento dessa tese, é importante ressaltar que não interessa a "realidade dos
agentes que evocam o atual pleito quilombola. Portanto, não cabe aos antropólogos
87
Entrevista realizada por Cristian Salaini e Mariana Balen Fernandes com Manoel Luis dos Santos,
em 2010.
292
ocupar o papel de "censores", e sim a tarefa de seguir os passos propostos pela
memória do grupo.
grupo remete a uma série de eventos pretéritos que ajudam a entender a lógica de
fronteiras territoriais. Certos contornos sobre o vínculo do grupo com uma dimensão
espaço.
mais desavisados. É possível “sentir” que a Caipora está presente através de seus
geográfica, “invertendo” o norte e o sul, o leste e o oeste, o que, não fosse a atuação
com o espaço.
293
encantaram. Neste processo não interfere nenhum mérito moral,
como no caso dos santos, que são freqüentemente pensados como
pessoas que praticaram o bem enquanto eram vivas. As pessoas se
encantam porque são atraídas por outros encantados para o
“encante”, seu local de morada. O encante se encontra “no fundo”,
normalmente no dos rios e lagos, em cidades subterrâneas ou sub-
aquáticas. Para que alguém seja levado para o fundo, por um
encantado, é preciso que este “se agrade” da pessoa, por alguma
razão. É comum a idéia de que, se alguém for levado por algum
encantado para visitar o encante, deve evitar comer as coisas que
lhe são oferecidas, caso contrário se encantará, não podendo mais
viver no mundo da superfície, como os demais seres humanos. Há
também a idéia de que os grandes pajés são levados pelos
encantados para o fundo, onde aprendem sua arte; mas, neste caso,
eles retornam à superfície, como xamãs, para poder praticar a
pajelança. É muito forte, na região do Salgado, a idéia dessas
entidades como encantados ou bichos do fundo. Mas não está
ausente a referência constante aos “encantados da mata”, que são
apenas dois: a Anhanga e a Curupira. Trata-se, neste caso, de seres
perigosos, que podem provocar mau-olhado nas pessoas, ou
“mundiálas”, isto é, fazê-las perder-se na mata. Isto acontece com os
caçadores que cometem “abusos”, sobretudo os que têm o costume
de caçar persistentemente um só tipo de caça. (Maués, 2006, p.264).
Parece ser auto-evidente o fato de esse mito dialogar com perspectivas sobre
a natureza, servindo como uma espécie de tabu e limite àquele que se embrenha na
mata. O que interessa aqui, todavia, é referenciar o espaço que esse mito ocupa, no
um universo imaginário muito maior que faz parte dessa forma de “ser” e “estar” no
mundo. Portanto, isolá-lo não faz parte da estratégia última de análise. O que
importa notar é que, no caso em questão, o mito da Caipora realiza uma operação
que engloba um tempo pretérito e um tempo presente. Mesmo que a Caipora não
294
seja mais tão facilmente encontrada nos dias de hoje – em função da menor
densificação das matas, segundo os relatos locais – basta “dar umas voltas por aí no
importantes da vida social deixa transparecer um território quilombola que está ali
Mesmo que o território físico esteja hoje limitado, em função da sucessiva perda
com a natureza:
295
defunto desse cara era meu amigo de caçada. Aí ele morreu... uns
três ou quatro anos, eu fui caçar... o caçador conhece. Aí eu fui
caçar... na chegada do mato, esse cara apareceu. Esse cara, o
cachorro dele tava correndo para um tatu. (...) Quando cheguei lá na
frente... bem ali, eu tava sentado na beira da estrada e o cachorro do
meu parceiro que já tinha morrido há seis anos atrás me assustou...
eu não conhecei a fala, né... era daquele parceiro meu que tinha
caçado junto comigo e já tinha morrido há seis anos. Arrancou o tatu
e depois passou com aquele jeitinho por mim... aí me lembrei dele. E
era ele.” 88
de apreensão territorial.
88
Entrevista realizada com Seu Luis na comunidade de Caraíbas, localizada na cidade de
Canhoba/SE.
296
Fotografia 58 – Quilombolas de Caraíbas discutindo o território.
Sem dúvida alguma, o ato de reconhecer esse mito confere ao seu narrador a
pela memória coletiva. O ato narrativo conforma uma identidade coletiva a seus
direta” com a Caipora, ou seja, nunca foram ludibriados por ela durante um ato de
grupo que não está baseada num aparato documental. Logo, esse encontro com o
297
fantástico, coloca o pesquisador frente a frente com essa historicidade do grupo que
atualiza, nos dias de hoje, via mito, os seus esquemas de pertencimentos territoriais.
Ainda, vale notar que o espaço mítico conta também sobre as transformações
do espaço. Os lugares antigamente habitados pela Caipora são, nos dias de hoje,
Nesses lugares torna-se difícil encontrar a Caipora, já que o mato e a natureza não
domínio territorial por parte do grupo. Fica evidente, através da apreensão dos
casas, ou, ainda, algum jovem caçador é surpreendido pelo desnorteio trazido pela
caipora me confundiu”.
298
aos assuntos que versam sobre o território, sobre as antigas matas e sobre as
ser uma chave de memória para o início de narrativas que tomam como espaço
evidenciarem que essa figura sobrenatural, apesar de não muito aparecer nos dias
de hoje, ainda “estar por aí”, funciona como uma metáfora dos diálogos existentes
com o desaparecimento das matas e, mais, que isso, se esse espaço temporal
tempo, a permanência da caipora, dessa criatura que pode ainda estar assoviando
em um “pequeno capão” ou ainda por entre casas dos moradores, revela essa
incontornável ao grupo.
299
A caipora, assim como o negro d’água, está sujeita a transmutações. Na
comunidade quilombola do Forte (Cumbe/SE) ela também pode ser entendida como
“a” saci Muitos narradores fazem questão de frisar que não há uma relação com o
Também, conforme o relato de alguns, “a” saci tem duas pernas e não uma,
uma relação visceral desta com o meio territorial. O território, do ponto de vista
acerca da caipora, que estão depositadas em sua “forma física”, por exemplo. Esta
porém, informa novas relações com o mesmo espaço de outrora, não obstante as
que está colocado na linguagem mais subversiva do grupo. Esta ligação ainda
velada, demonstra um laço com o território que não foi possível de ser “apagado”. As
sobrenatural.
300
Nas discussões finais acerca do formato da área quilombola, algo muito
recorrente durante as falas dos moradores era o posicionamento no mapa dos locais
onde havia mais caipora – “Aqui tinha caipora!”. Em meio ao apontamento de atuais
registros: aquele mais recente no plano temporal, que evidencia a lógica das
uma mensagem criptografada do território quilombola a ser entendido como que nas
301
“Maria: Sei que aqui a lenda do saci pererê ainda permanece. A
lenda do saci pererê permanece é porque sempre, infelizmente com
certeza hoje... mas tinha aqui na comunidade aqui, mais adiante lá,
partes mais de mata, e gente ouve ele assoviando e mexendo por
cima da casa, quebra prato, panela, você volta, chega dentro de casa
e tá tudo no mesmo lugar.
Cristian: É mesmo?
Maria: verdade verdadeira.
Cristian: mas por que será que ele faz isso?
Maria: Perversidade, né? Ela contava muito, muitas vezes ela
contava muito essa história do Saci-Pererê, e permanece, até hoje
permanece. Tinha um rapaz que mora no fundo da minha casa que
ela assoviava, tinha um assovio bem forte ela, se onde ele tiver ele
fica, ele não vai pra casa, ele tem medo, porque ela já bateu nele,
pegou ele, deu um coro em muitas pessoas aqui da comunidade, na
roça, ela engana e bate, o saci pererê.
Vinicius: pega as pessoas?
Aderval: É ela ou ele?
Maria: ou ele, ou ela, porque ele se transforma em duas coisas, tanto
nele quanto nela.
Aderval: Sério? Como?
Zuleide: me perdi, não teve jeito.
Aderval: Ficou confundida?
Zuleide: me confundia todo. Outro dia eu quase não cheguei lá.
Aderval: Mas então não é só daqui?
Maria: Ele já enganou na saída de casa, ele engana ela já na saída
daqui.
Cristian: Ah... foi na saída daqui já?
Zuleide: Quando eu cheguei lá, não sabia mais pra onde eu ia. E
onde estava. Só via coqueiro e mato.
Aderval: Ficou perdida lá?
Zuleide: o dia todo.
Aderval: vocês tratam mais o saci pererê como ela ou como ele?
Maria: Mais como ela. Porque teve uma senhora aqui, que faleceu há
pouco tempo, que ela tava na roça e outro senhor, aqui da
comunidade também, tava na roça, ela trabalhando, e ela o saci
302
pererê bateu nela, bateu, bateu, e ela gritava que era outro homem,
ela tava no corpo de outra pessoa. Ele não estava aqui na
comunidade, ele estava trabalhando lá em...
Cristian: mas será que o saci pererê aparece mais na roça ou mais
em...
Maria: na roça, ele só aparece mais a noite assim
Cristian: E na roça?
Maria: nas roças. No mato engana os caçador, ainda tem bastante
caçador aqui, engana o caçador e os cachorros.” 89
senhor que tinha um “namoro com a caipora”, algo que, conforme ele narra,
provocou o ciúme de sua esposa. Seu Genilson narra que em diversas ocasiões a
acontece, ele sabe que é necessário ir para a mata para acender um charuto para
“acalmá-la”. Seu Genilson remete esse tipo de relação ao fato de não poder se
distanciar da mata e conta que, algumas vezes por ano, sai de sua casa e dorme
algumas noites no meio do mato, pois tem uma relação muito forte com a caipora.
Seu Genilson é conhecido na comunidade pelos seus poderes de cura e pelos seus
território.
89
Entrevista realizada em 2010 por Cristian Salaini, Aderval da Costa e Vinicius P. de Oliveira na
comunidade do Forte. Participaram desta entrevista Maria e Zuleide.
303
Maria: a determinada regra que ela exige
Cristian: e como é que você sabe o que ela exige?
Genilson: ela exige, a gente leva fumo leva comida, se a pessoa
levar uma comida apimentada ou com alho ela não encosta... senão
você é perseguido, você se perde no lugar mais aberto do mundo
parece coisa de cinema viu, você se perde no lugar mais limpo mais
aberto que existir que existir não tem lanterna, não tem nada, você
não acha saída pra canto nenhum do mundo, ai você vai recorre a
ela tira a camisa avessa a camisa joga no chão e vira três vezes por
cima da camisa se chama cambalhota, né... ai ela abre o caminho
novamente no mesmo lugar que você se encontrava sem saída ai
ilumina o seu caminho sai você se arrepende, né... e tem que se
humilhar a ela a noite você acerta, eu canso de ver aqui ela assoviar
a minha mulher chega a ter ciúmes elas vem chamar aqui na porta
de noite ela chega e assovia aqui na porta vem encima da casa
90
mesmo aquela noite eu tinha que ir.”
guardadas como um elemento “não muito sério” (ou, pelo menos, presumidamente
não sério a um “leitor externo”) e outrora tidas como imagens pálidas acabam por
É por isso que se tem, muitas vezes, o mapa final do relatório técnico
90
Entrevista realizado por Cristian Salaini, Aderval da Costa e Vinicius de Oliveira com seu Genilson
Gonçalves da comunidade do Forte, localizada em Cumbe/SE.
304
negociações, o processo agonístico de produção de um relatório que acaba por
O sobrenatural não está mais vivo hoje do que antes. O que ocorre é que as
políticos, cabe também atentar para certas "cosmopolíticas" que não foquem
305
do ordenamento técnico jurídico, apesar de servir como elemento fundamental dos
pleitos atuais.
Este espaço, apesar de ocupar uma camada mais “profunda” da vida social
quais está sujeita. Situada no município de Barra dos Coqueiros, nas proximidades
e, através do atual pleito quilombola, procura alcançar o olhar dos setores públicos
por seu caráter etnicamente marcado. Grande parte das famílias reside às margens
de uma empresa hoteleira que almeja construir um resort no local hoje ocupado pela
306
comunidade. Isto faz com que os atuais ocupantes do território ampliem em
demarcação de seu território. Sem dúvida, a construção de tal resort não se trata da
única ameaça sofrida pelo grupo em seu período de ocupação no local. Além disto,
ambiental - IBAMA.
identidade”. Por outro lado, como pretendo discutir, essa mesma apreensão
“discurso para fora”, neste sentido, não se apresenta como falso. Ele se apresenta
307
como uma das possibilidades narrativas do grupo que vai se construindo de maneira
falas. O silêncio deve ser entendido enquanto uma prática que pode se converter no
de forma tensional com aos olhares externos, produz “imagens possíveis de si”, em
questões que vão além, claro, dos problemas típicos à reflexão antropológica. Está-
diferentes pesos pelo espaço social. Por um lado, a “fala” do antropólogo possui um
relativo poder no papel das definições, já que é esperada dele uma objetificação da
acaba saindo com certa desvantagem na corrida das definições, já que definições
309
A comunidade do Pontal da Barra, localizada na cidade de Pirambu (SE),
discutidos no corpo desta tese, onde a memória aparece enquanto um dado mais
repleto de silenciamentos.
identidades a priori. Existem, porém, outras relações éticas que se dão na própria
grupo que em função de seus “acidentes históricos” acabou por produzir uma lógica
310
do “não-dito” e do silenciamento. Neste sentido, o trabalho de pesquisa acaba por
da Família Silva, no Rio Grande do Sul, esta questão acompanhou toda a produção
origem da Família Silva calcada na antiga Colônia Africana de Porto Alegre. O laudo
muitos críticos, como uma vila “comum” de Porto Alegre não dotada de qualquer
especificidade. Não haveria, neste último sentido, nenhum sinal evidente que
“traços evidentes” de uma origem africana ou escrava. Este tipo de preocupação fica
responde:
312
vereadores que compõem a Câmara Municipal. (...)
Lamentavelmente, entendemos que todas as evidências apontam no
sentido de que não exista nenhuma comunidade remanescente de
quilombo em nosso município. Aliás, dadas as suas características
físicas: área de apenas 91 Km2, terreno baixo e plano, comprido e
estreito – próximo ao continente, circundado por oceanos e rios–
onde trafegavam embarcações; imaginamos a Ilha de Santa Luzia
como um dos locais mais improváveis para o estabelecimento de
escravos fugidos. 91
rearranjando, através de seu atual quadro histórico, uma política de controle do ato
aparentemente repleta de lacunas, só pode ser acessada pelo ajuste mais detalhado
91
Este documento me foi cedido por Robério Manoel da Silva, atual presidente da associação
quilombola.
313
enquanto locais em que a trajetória da comunidade se manifesta e se atualiza em
realizadas.
há, no caso do Pontal, um processo “em andamento”. Isto não significa que não
exista aqui um tipo de relação possível: trata-se de uma relação memorativa ainda
condicionada a um jogo de escolhas que tem como base a avaliação sistemática dos
presentes. Mas a conexão com a identidade do grupo aparece, pelos menos durante
314
“Wilson: Não, não posso falar dos escravos não, quem passou por
escravidão foi minha avó.
Mariana: Como assim?
Wilson. Eu era bem pequenininho e minha bisavó chamava Gini, a
mãe da minha vó, e a minha avó chamava Maria de Gini. A minha
bisavó dizia “Roliço meu fio vá me comprar um pedacinho de pão pra
sua vozinha”. E aí eu ia pequeno, chegava lá e dizia, minha avó quer
um pedaço de pão. Ele dizia cadê o dinheiro? Ela me dava uma
moedinha desse tamanho que eu não sabia quanto é que era, que eu
não sabia mesmo, chegava lá ele me dava um pedacinho assim. A
minha bisavó morreu com 154 anos.
Wilson: Nunca teve um dente podre na boca, e a minha vó mesmo
morreu com 146.
Mariana: E o que elas contavam dessa época?
Wilson. Ela dizia que acabo o tempo do cativeiro, os nego arrastando
carroças pra gradiar as terra pra lá e pra cá, os cachorros amarrados
de lingüiça, entendeu, arrastando aquela parreras de lingüiças no
tempo do cativeiro.
Mariana. E onde eram esses cativeiros?
Wilson. Lá em Maruim, lá em Maruím, sim senhora. (...) É aqui
92
depois de Rosário.”
realiza a conexão de “Seu Piroca” com a área local conhecida como Porto Grande.
qual a comunidade ainda hoje realiza atividades pesqueiras). Este rio tinha um papel
com uma área bem mais ampla que envolvia Aracaju, Maruim e Laranjeiras. Esta
92
Entrevista realizada por Cristian Jobi Salaini e Mariana Balen Fernandes com Wilson de Andrade
em 2010.
315
área articulada pelo Porto Grande foi, durante o século XIX, alvo do estabelecimento
que outras relações conectivas fossem realizadas. Isto não quer dizer que a
jogo aqui é uma tensão sempre avaliativa entre a lembrança e o “dizível”, e esta
fala.
tipo de “memória recalcada” pelo grupo. Todavia, como já foi apontado por Arruti
(1985), isto não se traduz num tipo de “esquecimento coletivo”. Isto quer dizer que
foi adotado, por parte do grupo, uma maneira mais “defensiva” de acesso à memória
de um jogo que se dá no atual embate político existente que atua como uma espécie
construção dos limites do que pode ser falado ou, ainda de maneira mais radical,
daquilo que pode ou deve ser lembrado. Porém, deve-se destacar que esse jogo
memória que, ao mesmo tempo em que garante certa fixidez ao grupo em termos
simbólicos, não garante que “toda a história seja contada”. O “Seu Piroca”, um
317
com as palavras – como costumam narrar muitos moradores do Pontal, aparece
“Seu Piroca” como o sujeito fundador de tal comunidade. Segundo os relatos, “Seu
quanto “fechado” e “sisudo”. Ele era “fechado” mas “ajudou muita gente”, “ajudava a
chamarei aqui de “rede de auxílio mútuos”. As pessoas mais antigas relatam, ainda
Piroca”: era preciso pedir a ele permissão para a construção de uma moradia e para
de sociabilidade que até hoje são utilizados pelo grupo, reproduzindo modelos
“Me ajudava tudo que eu precisava de comida, ele passava oito dia
no mar meu marido, né, ele cá me ajudava. (...) Porque o que ele
arrumava acho que ele... Vamos supor, se você tem um pão aqui se
tá comendo aí chega um com fome... você não vai dividi seu pão não
com aquele? (...) Eu mesmo divido porque eu sei o que eu já passei,
né, eu divido.(...) Ajudava, qualquer um ele ajudava, me ajudou
bastante também. E quando eu cheguei dai só tinha ele e a mulé
dele, ele não tinha nenhum filho ainda, aí o Airton perguntou se nós
podia fazer uma casa ali e ele disse que podia que ali, ele disse
assim que aqui é da Marinha, bem assim aqui é da Marinha. Aí, meu
marido fez uma barraquinha de palha pequenininha, aí nós ficou. Aí
depois foi chegando a cumadre Rosa, depois chego a Gildete e muita
gente. Já existia ele.” 93
pensar não apenas a memória, mas a própria estrutura dos jogos memorativos. “Seu
93
Entrevista realizada por Cristian Jobi Salaini e Mariana Balen Fernandes com Maria das Graças
Santos em 2010.
319
transparece como alguém “negro” e que certamente tem uma “origem no tempo dos
escravos”. O mito fundador, que normalmente aparece nas “narrativas formais” como
outras relações com o passado. Mesmo que isso ocorra de maneira bastante tímida,
“Converse com a Dona Maria Louca! Ela já contou para a gente histórias dessas pra
gente!”. Dona Maria, sempre muito calada (nunca foi gravada uma entrevista com
ela) foi revelando, durante o processo, alguns elementos bastante esparsos sobre a
engenhos da região. Passei a me dar conta durante o processo etnográfico que não
contexto provocado pelo relatório técnico. Lida-se, no Pontal, com o fato deste
silêncio em ação.
repensando enquanto grupo social. Os estoques étnicos que hoje compõem o Pontal
fato, cabe evidenciar, o trabalho de campo entrou em contato com uma série de
frente a um grupo que se encontra na luta por definições étnicas e culturais, estado
técnico.
321
identitário que se constrói através de um jogo de espelhos desenhado pelos “olhares
disputa no pleito.
Pontal da barra sempre aparecia, mas conversas informais, uma versão sobre a
situação atual do Pontal da Barra e os antigos quilombos, relatando que eles vivem
numa “junção como nesses quilombos antigos por aí”. O fato do Pontal da Barra ser
um espaço que vai “recebendo quem precisa” também faz parte da retórica do “ser
quilombola”. O “viver todos meio juntos, meio como bicho”, aponta para a forte
Como dito anteriormente, o Pontal da Barra, antes conhecido com a “Ilha dos
pobres que deveriam ficar juntas através de suas redes de auxílio mútuo. Duas
O “ser caboclo” sempre foi algo muito recorrente nas narrativas. Apesar do
323
Gildete: Troncos velhos... é as famílias antigas. Aí vai reformando,
né. Vão os velhos, vão chegando os outros mais novos, vão
chegando os outros, vão chegando outros, aí vai morrendo aqueles,
sabe? Aí vai se reformando. Outra família, daquela família morre os
mais velhos, vai outra família e aí onde vai começando.
Cristian: A senhora vem dos troncos velhos lá desses que a senhora
fala, lá de Alagoas.
Gildete: Não, tronco velho mesmo é das famílias velhas, antigas, que
foi formando família. Por exemplo, meu pai já é filho natural do
Bonito, a minha vó, mãe de meu pai, é do Bonito, dos olhos azuis.
Bom, essa menina, minha neta, Fernanda, é do mesmo jeito que
minha vó. Esse pessoal tudinho é do Bonito.
Mariana: Onde é?
Gildete: Em Alagoas, perto do Pontal do Peba, no sul de Alagoas.” 94
Oliveira Filho (1998) demonstra como se constrói um objeto que toma como
índio nordestino. Para fins presentes, pretendo reter o papel destas categorias – já
Este discurso externo era moldado por setores do campo administrativo e inclusive
pela rede política local da cidade de Barra dos Coqueiros, que dizia nunca ter visto
94
Entrevista realizada por Cristian Jobi Salaini e Mariana Balen Fernandes com Robério e Gildete em
2010.
324
No Pontal da Barra, o “ser caboclo” é não raramente visitado pela
nos momentos mais iniciais do pleito, enquanto um “problema”. Mais que isso, o “ser
Sergipe, em Alagoas (em Alagoas a localidade sempre referenciada foi Palmeira dos
elemento realizou uma dinâmica no grupo que lançou mão da atuação de novos
argumentação sobre essa face do “ser quilombola”. É claro que essa relação com os
genealogias.
longo da produção do relatório técnico. Não se trata de uma simples “busca por
325
identidade”, mas de dar conta da possibilidade, do ponto de vista quilombola, de
uma reflexão sobre a identidade. Esta identidade quilombola deveria alargar certos
com outras categorias, como a de quilombo. “Seu Piroca”, entre outros, como “Maria
Louca”, são entendidos pela comunidade como originários dos “tempos do cativeiro”.
Como citado anteriormente, inclusive, a região da qual o Pontal da Barra hoje faz
parte funcionou durante o século XIX como um importante entreposto marítimo que
negra”, neste sentido, fica resguardado pela certeza desta origem do “tempo dos
evidencia, ser a mistura de índios com negros também processa esta possibilidade
de uma lógica de acolhimento no local é vista por muitos como resultado do auxílio
mútuo entre os “pobres”. A categoria “pobre”, neste caso, abarca aqueles que
empobrecidos”.
diálogo negro-indígena que hoje fazem parte do Pontal da Barra. Durante o trabalho
negro”. Do ponto de vista interno ao grupo, o quilombo passava a ser uma categoria
instâncias classificatórias (Arruti, 1997; Oliveira Filho, 1998), vão sendo colocadas à
prova e ficando cada vez mais inebriadas quando olhadas sob a lente do discurso
quilombola, isso não significa que ele seja uniformemente compartilhado por todo o
campo social do Pontal da Barra. Faz parte de um código que também deve ser
social incorporado pelo grupo. O “ser quilombola” funciona enquanto essa vocação
328
aglutinadora do grupo que processa uma relação de conversação entre as diferentes
evidente diz respeito ao efeito territorializante que esse processo produz. Se desde o
“tempo do Seu Piroca” o território foi se constituindo por essa lógica do espaço de
acolhimento, hoje, pela ação mais evidente das categorias estatais, o grupo se vê
interpretativas à sua própria história. O grupo, que antes apenas vivia a sua história,
neste jogo de inter-relações entre outras instâncias que são dispostas neste campo.
hoje nos mecanismos locais de inclusão e exclusão do grupo. Mesmo que o espaço
seja mediado por uma lógica de acolhimento, cabe relevar que existem códigos
peculiares. Cabe notar que o grupo que existe hoje é resultado de processos
complexidade na constituição migratória do grupo que lhe concede, nos dias atuais,
uma relativa estabilidade enquanto grupo com um passado comum e com uma
suas vidas sociais como mais “culturalizáveis”, é também verdadeiro que essas
questões da vida social do grupo. Este jogo tensional entre o “ser quilombola” e as
330
Fotografia 61 – Dona Gildete no trabalho com o camarão.
se trata de uma pergunta com resposta inequívoca. Porém, está claro que o grupo
entorno. Uma das formas que pode ser utilizada, na visualização dessa
particularidade histórica do grupo, reside nas categorias com as quais o mesmo tem
sido reconhecido pelo entorno e que, de uma forma inversa, acabam sendo
momentos acabou entrando em algumas discussões locais, já que não via refletido
num quilombo, até os dias de hoje, exatamente por isso: porque, não obstante sua
332
O grupo é alavancado, em grande medida, pela necessidade de
forma contemporânea, num pleito político. Todavia, o atual pleito não se apresenta
sua memória coletiva, um eco que vem de longe – dos “tempos de Seu Piroca” e
(Honneth, 2003).
cabe dizer que as mesmas também produzem certa objetificação do espaço, mesmo
que essas fronteiras não sejam nitidamente claras. O que importa, ao presente
grupo dotado de determinados diferenciais com relação ao seu entorno, e que esses
entendida enquanto resultado único dos fluxos políticos vividos pela comunidade
333
“Robério: Olha, antigamente o pessoal, os negros quando se reuniam
em comunidades afastadas era com medo da chibata e viva corrida.
Hoje é o que a mesma coisa que antigamente, tanto que vocês estão
aqui. Vocês correram de lá da fome, da miséria, de tudo que vocês
estavam passando. Chegaram aqui encontraram um lugar bom de
vocês morarem e também isso origina um quilombo. Também é a
mesma coisa que acontecia antigamente. Eu digo: Bom já que é
assim, vocês estão fazendo façam pra depois não dá problema pra
ninguém. Esse tempo eu também não estava muito interessado na
coisa não. Foi, quando fui por acaso eu tava em casa ai disse: Oi
senhor Roberio, ta aqui reconhecido como Comunidade Quilombola.
Fui chamado lá no INCRA (...) fizemos já varias reuniões e ai
também já fui incentivando a outras pessoas de outras comunidades,
venham aqui, dá palestra diz como foi, diz como é. Vieram de outras
comunidades e falando sobre o que é e o que não é ser quilombolas,
quando o pessoal na atribuição a primeira pergunta que faz é: Faz
parte do quilombo? Participo, ai a pessoa se auto-declara, né. Ai foi
quando começou, graças a Deus. Na minha, não só na concepção,
em tudo os aspectos dessa comunidade, porque a comunidade daqui
da Barra dos Coqueiros a mais perseguida é essa. Existe
perseguição tanto política como também... Discriminação total, que
aqui nós somos discriminados de tudo que é jeito. Tanto agora, em
aqui a política da Barra dos Coqueiros pra você ter uma idéia, desde
que eu cheguei aqui tinha projeto pra botar energia, botar água e
hoje nós ver é isso. A energia passar e nenhuma casa dessa tem
energia. Aqui o solo é ótimo pra exploração da água, mas nenhuma
casa tem água encanada. O saneamento básico todo o projeto, todo
o dinheiro pra fazer os projetos aqui, o dinheiro se some e nunca
acontece nenhum projeto aqui. Então eu vejo que a discriminação
aqui é até demais, muito discriminada. Se o senhor chegar ali em
Pirambu ou então na Barrra dos Coqueiros e dizer: ói tive na Ilha do
Rato... Ai já vão começar a dizer... se o senhor fizer uma pesquisa
aqui em Pirambu mesmo, agora não que o pessoal já ta bem ligado,
mas antigamente aqui, aqui era olhado como se fosse uns bicho do
mato. Essa não era gente de cultura nenhuma, a discriminação aqui
sempre foi pesada. Então a gente vê o que acontecia antes com os
334
outros povos, como o povo da floresta quilombola mesmo. Até hoje
mesmo não existe uma comunidade quilombola que ninguém goste,
há discriminação em cima disso. Mas ai a gente tem fé em Deus que
a gente... antes que saia alguma decisão ai da justiça que não seja
boa e nem favorável pra gente (...) Discriminação e também que aqui
ninguém 0dá o menor valor, sem prestigio, sem nada. Aqui o pessoal
vê como se fosse um lugar de pobre, miserável... que quando sai da
miséria fica ali mesmo e acabou. (...) Não só de agora como quando
eu cheguei aqui, eu tinha uma coroa que tomava conta de mim
quando minha mãe ia trabalhar, ai o nome dela era Mirim. Ela disse:
Meu filho você vai ficar morando onde? Eu disse: Olha, eu to lá na
Ilha do Rato. Ela disse: Meu filho, saia dali que ali só tem ladrão,
vagabundo, maconheiro, ali não mora quem preste no. Então eu vou
morar ali até eu morrer. Porque é nesse povo que eu vou ficar. Mas
quando eu chegava pra cá eu via que o povo era diferente, você
julgar, e ta lá com o pessoal... mas quem mora aqui já vê que as
coisas são diferentes, que as coisas não são como as pessoas
pensam. E a mesma coisa essa discriminação, não é de agora é de
muito tempo, desde que quando nós chegamos aqui. Você ta
morando onde? Lá em Pirambu. Em qual local? Na Ilha do Rato. Vixe
Maria, rapaz você é doido ta morando ali. Era a fama que tem nessa
região todinha essa Ilha do Rato. Que aqui só tem o que não presta.
Isso daí já tem não é de agora, já é de muito tempo mesmo. Desde
os primeiros moradores até agora...
Cristian: Desde os primeiros, o senhor diz Seu Piroca naquela
época? Será que naquela época já tinha?
Robério: Já tinha
Cristian: Mas lá no inicio já. Como é que chamava na época de Seu
Piroca como é que diziam daqui?
Robério: A mesma coisa, e até hoje ainda impera, maconheiro,
ladrão, criminoso, as mulheres elas são safadas, são tudo umas
putas, o adjetivo melhor que eles arranjam dão tudo pra aqui. Ai tem
muita gente que já é de Pirambu que vem praqui curtir ai já conhece
ai diz: Olha o que falam daqui é... é isso que a pessoa pra ver tem
que primeiro ir... pro senhor ter uma ideia dois vereadores e o
335
prefeito atual daqui disse que aqui só morava vigarista, um grupo de
vigarista, a discriminação não vem de fora , vem daqui perto.” 95
relativamente novo pleito enquanto quilombola, tem-se uma apreensão que leva a
externo que sempre existiu à revelia das categorias produzidas pelo próprio grupo.
projeto centralizado.
95
Entrevista realizada com Robério da Silva (presidente da associação quilombola) em 2010 por
Cristian Jobi Salaini e Vinicius Pereira de Oliveira.
336
Logo, o atual pleito consolida-se muito mais como um resultado do que como
acontece, em primeiro lugar, uma busca por reconhecimento social. Este “estopim
ao grupo quilombola.
Estado, acaba por gerar novas dificuldades do ponto de vista local. O grupo antes
visto pelo entorno como um “espaço do perigo” precisa agora suprir a necessidade
local por uma justificativa da identidade. O que é medido, em nível local, não é
337
Ocorre um tipo de reificação de um espaço, multiplicando e ampliando a
dizer que o esquema estatal não abrange o complexo de relações locais que
338
CONSIDERAÇÕES FINAIS
quesito. Isto fica bastante claro com a construção da última Instrução Normativa que
definidoras.
339
através do aparato diferencial da identidade. Ao mesmo tempo, as realidades
empíricas são múltiplas e dotadas de complexidade, algo que faz com que a
premissa de uma “alteridade radical” fique borrada. Como toda etnografia é capaz de
enquadramento que são dadas a priori. Tampouco se deve esperar encontrar uma
conceitual, deste risco mesmo dado pelo contato dos mundos, é o que baliza os
consequências.
pela ação dos setores públicos quando em contato com grupos sociais que se
340
O reconhecimento acaba respondendo a outros níveis de apreensão do
entorno.
trabalhou-se com uma memória coletiva que denuncia uma tensão entre a coesão e
históricas vivenciadas pelo grupo e/ou pelo contato com outros grupos sociais. Isto
diferenciadas de diálogo com o passado: ora pela figura do “bom senhor, ora pela
negra. Este processo inventivo é sempre realizado com base em uma base
de seu produto final – o mapa – não pode dar conta do excesso de significados que
os “mapas mentais” operam com relações que estão para além do mapa técnico e
de seus pontos georreferenciados. Ainda, foi trabalhada a idéia que coloca o espaço
nas esferas extra-locais. Aqui também se lidou com a idéia de um território como
344
modalidade cartorial do “tipo escritura”. As relações específicas produzidas com um
que, com o atual pleito, alcançou outras dimensões. Os caminhos tomados pela
memória não são simples. As possibilidades são múltiplas e o “transitar” pelo espaço
Portanto, se a tese não se pretende comparativa, em todo o caso ela usufruiu dos
conexões categóricas no próprio curso da ação do pleito. Foi objetivo aqui apontar
também para os limites “inventivos” desta memória, que dialogam fortemente com
aspirações morais e lutas por “justiça”. Ainda, os sentidos produzidos sobre o “ser
345
certas continuidades no seio do próprio grupo e uma atitude social que presume os
possíveis olhares externos. Os sentidos identitários neste sentido são múltiplos, não
versando apenas sobre um “eu” versus um “outro”, mas também sobre jogos
com o passado.
relações mitológicas que não atuam apenas no plano de uma memória, são
quilombola” que nem sempre coincide com o “mapa técnico”. À medida que o
mundo social que se apresenta. Diálogo, claro, que não se dá de maneira livre, já
que o poder classificatório das categorias sempre está em jogo; isso não retira,
porém, o elemento inovador que diz respeito à criatividade simbólica dos grupos em
questão.
quilombola” sem temer a acusação culturalista, onde o grupo estudado seja apenas
as relações para que o “outro” possa ser enxergado em sua complexidade, através
priori. Tentativas de meros encaixes da vida nativa nas categorias “de cima”
“fantasma da folclorização”.
348
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