A Janela Do Relatorio Tecnico (Cristian Jobi Salaini)

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Universidade Federal do Rio Grande do Sul

A “JANELA” DO RELATÓRIO TÉCNICO:


VARIABILIDADE, CRIATIVIDADE E RECONHECIMENTO
SOCIAL EM CONTEXTOS DE PERÍCIA ANTROPOLÓGICA

Cristian Jobi Salaini

Porto Alegre
2012
Universidade Federal do Rio Grande do Sul
Instituto de Filosofia e Ciências Humanas
Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social

A “JANELA” DO RELATÓRIO TÉCNICO:


VARIABILIDADE, CRIATIVIDADE E RECONHECIMENTO
SOCIAL EM CONTEXTOS DE PERÍCIA ANTROPOLÓGICA

Cristian jobi Salaini

Tese de doutorado apresentada ao Programa de


Pós-Graduação da Universidade Federal do Rio
Grande do Sul, sob a orientação da Profª. Dra.
Denise Fagundes Jardim

Porto Alegre, março de 2012

2
Para Lampião, meu pai

3
AGRADECIMENTOS

Esta tese resulta de um processo que impactou profundamente em minha

vida e visão de mundo. O contato com as pessoas que fazem parte do corpo desta

tese me privilegiou uma abertura e reconhecimento do outro que apresenta, não

tenho dúvidas, consequências profundas em minha personalidade e maneira de

sentir o mundo. Portanto, em primeiro lugar, agradeço a todas essas pessoas que

me permitiram entrar em suas vidas e compartilhar momentos fabulosos.

Agradeço ao Programa de Antropologia Social da Universidade Federal do

Rio Grande do Sul pela oportunidade de realizar este trabalho que contou com o

diálogo com diversos professores e colegas.

À minha família que, mesmo longe, sempre esteve presente auxiliando

emocionalmente em todos os momentos, bons e ruins. Ela é em grande parte a

razão do esforço empreendido. À minha mãe e irmã, pela dedicação a mim. Aos

meus sobrinhos, pela alegria. Ao meu cunhado Zilmar pelos ensinamentos morais.

Gostaria de realizar um agradecimento ao meu pai, em memória, pela introdução no

caminho do saber.

Aos colegas de doutorado com quem troquei experiências acadêmicas e

outras. Agradeço ao NACI – Núcleo de Antropologia e Cidadania pelo papel

fundamental em minha formação acadêmica através da amplitude de temas de

pesquisa que atravessa o grupo. Sem dúvida alguma, este núcleo de pesquisa é

parte incontornável de minha trajetória profissional e acadêmica.

À professora Daisy Macedo de Barcellos, minha eterna mentora, pelo papel

fundamental em minha formação e pela introdução pelos caminhos da antropologia.


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Tua participação na minha vida não se resume à minha formação acadêmica e

profissional. Sou eternamente grato!

Agradeço ao meu “amigo-irmão” Vinicius Pereira de Oliveira pela amizade

incondicional. Acho que já podemos escrever um livro de histórias, certo? Muitas

aventuras ainda estão por vir, Bino!

Agradeço à minha amiga Rosana Pinheiro Machado por toda a parceria e

pela força nos mais diferentes momentos e aspectos. Que o teu sucesso pessoal e

profissional continue em velocidade máxima! Ele está na ordem direta do teu

caráter.

Agradeço à “Janja” por ter me ajudado a entender certas coisas simples e

importantes da vida. A tua serenidade e modo de ver o mundo continuam me

encantando, não importa quantas vezes eu já tenha “subido o morro”.

Agradeço à Reijane Pinheiro pela amizade e parceria que se estenderam para

muito além do doutorado. Eu desejo tudo de bom para ti...e para a Beatriz, claro! Ô

Cavalcanti!

Ao Marcelo Moura Mello pela enorme interlocução intelectual. A tua

participação em minha trajetória me levou para novos rumos da temática quilombola.

Tuas reflexões tiveram papel fundamental na construção desta tese.

Agradeço à Miriam Chagas pela “mitologia de fundação” de meu ingresso

pelos caminhos da antropologia. Tu lembras do ônibus para Morro Alto?

Ao meu amigo Rodrigo de Azevedo Weimer pela tão imaginativa amizade.

Rodrigo, muitas BE’s estão por vir! Cara, tu é um barato!

Ao amigo Marcelo Oio. Oio, Oio, Oio.

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Agradeço à Mariana Balen pela trajetória de amizade e de incursões

quilombolas! A tua participação em trabalhos de campo só fez tudo ficar muito mais

divertido!

Agradeço à amiga Lucia Scalco pela amizade. Você foi uma das grandes

conquistas desse processo de doutoramento. Espero que tu estejas por perto

sempre!

Agradeço à Janaína Lobo por não me deixar esquecer os caminhos do bem...

Alguns professores tiveram papel fundamental em minha formação

acadêmica e pessoal: Veriano Terto Júnior, Claudia Fonseca, José Carlos dos

Anjos, Maria Eunice Maciel e Ruben Oliven. Muito obrigado a todos vocês pelas

conversas e ensinamentos.

Agradeço pelo carinho sempre presente da Márcio’s family. Estamos longe...

mas estamos juntos!

Aos sempre amigos: André Nunes (Buyuh), Lucenira Kessler, Henrique

Felber, Ieda Ramos, Andréa Grazziani, Vera Regina Rodrigues, Vinicius Aguiar de

Souza (Pingo), Maria da Graça Pardelhas, Nara Magalhães, Nair Negrão Cauduro,

Sherol Santos, Francisco Conrado e Bernardo de Magalhães.

À Estela Conrado. Acredite, os portais estão se abrindo.

Agradeço ao meu amor, Renata, por tudo que significas para mim. Os

caminhos da vida são meio malucos às vezes... mas agora não deixo você escapar

nunca mais!

A todos os meus “senseis”! Vadacir, muito obrigado pela ajuda no retorno ao

“caminho”...

6
Ao RAÍZES D’ÁFRICA, pelo aprendizado nos caminhos do coração. Me sinto

em casa com esse pessoal! Vocês são pessoas fantásticas! Só coração.

Ao IACOREQ pela possibilidade se sentir que sempre vale a pena se lutar por

algo!

À minha orientadora, Denise Jardim, pela amizade, senso de humor e pelas

contribuições que sempre privilegiaram diferentes ângulos e visadas sobre o tema.

Agradeço à ESPM pela instigante oportunidade profissional e calorosa

acolhida.

Agradeço ao CNPQ pela criação de condições favoráveis à execução do

trabalho.

7
Naquele tempo, o mundo dos
espelhos e o mundo dos homens não
estavam, como agora, incomunicáveis.
Eram, além disso, muito diferentes; não
coincidiam nem os seres, nem as cores, nem
as formas. Ambos os reinos, o especular e o
humano, viviam em paz; entrava-se e saia-
se pelos espelhos. Uma noite, a gente do
espelho invadiu a Terra. Sua força era
grande, porém ao cabo de sangrentas
batalhas as artes mágicas do Imperador
Amarelo prevaleceram. Este rechaçou os
invasores, encarcerou-os nos espelhos e
lhes impôs a tarefa de repetir, como numa
espécie de sonho, todos os atos dos
homens. Provou-os de sua força e de sua
figura e reduziu-os a meros reflexos servis.
Um dia, entretanto, livrar-se-ão dessa
mágica letargia.
O primeiro a despertar será o Peixe.
No fundo do espelho perceberemos uma
linha muito tênue e a cor dessa linha não se
parecerá com nenhuma outra. Depois, irão
despertando as outras formas. Aos poucos
diferirão de nós, aos poucos deixarão de nos
imitar. Romperão as barreiras de vidro ou de
metal, e dessa vez não serão vencidas.
Junto às criaturas dos espelhos combaterão
as criaturas da água.

Jorge Luis Borges

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RESUMO

O objeto desta tese é o próprio trabalho antropológico e etnográfico quando

imerso em situações de perícia. Os contextos de perícia antropológica evidenciam

um complexo quadro social, repleto de agentes e nuances que nem sempre são

contemplados no texto do laudo ou do relatório técnico. Discutir as vicissitudes do

trabalho de campo e da etnografia nestas situações produz um alargamento

conceitual tanto da maneira como interpretamos os trabalhos técnicos, como

também do próprio universo da antropologia social.

Procuro problematizar a minha participação – na condição de antropólogo-

perito – na produção de relatórios técnicos de reconhecimento territorial de

comunidades quilombolas no Brasil. Procuro evidenciar como a variabilidade de

contextos etnográficos apresentados desafia qualquer tentativa de operação

dedutiva simples tendo como referência a categoria quilombo. Parto de premissa

acerca da existência de um diálogo criativo entre os casos empíricos, operações

classificatórias oficiais e as categorias antropológicas. Tendo como base situações e

“cenas” de meu trabalho de campo em comunidades quilombolas do Rio Grande do

Sul e do Sergipe, demonstro a existência de camadas do reconhecimento social, da

criatividade da memória coletiva, e de elementos das territorialidades, nem sempre

visíveis ou apreensíveis no âmbito da operação do relatório técnico. O aparato legal

que rege a questão quilombola (artigo 68 do Ato das Disposições Constitucionais

Transitórias da Constituição Federal e suas derivações infraconstitucionais) funciona

como enquadramento fundamental de produção identitária destes grupos sociais,

não se apresentando, contudo, como o único. Neste sentido, existem diferentes

9
enquadramentos que dialogam com as historicidades dos grupos e que produzem

uma dinâmica classificatória de natureza complexa.

Palavras-chave: reconhecimento social, memória, territorialidade, criatividade

social, etnografia e perícia antropológica.

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ABSTRACT

The main purpose of this thesis is to study the anthropological and

ethnographic work when applied to the context of technical anthropological reports.

On discussing the complexity of fieldwork and ethnography on these situations, I

seek to offer a broader view of the ways we interpret the technical reports, as well as

the social anthropology field itself.

This work has as background the innovations brought by the article 68 of the

Federal Constitution - and its infraconstitutional derivations – in what concerns

quilombolas territorial rights. It intends to problematize my participation – in the

condition of expert anthropologist - in the production of technical reports of territorial

acknowledgement of quilombolas communities in Brazil. I seek to highlight how the

variability of the etnographic contexts presented defy any attempt of simple deductive

operation using as reference the quilombola category. I start from the premise about

the existence of a creative dialogue between empirical cases, official classificatory

operations and the anthropological categories. Using as base the situations and

“scenes” from my field work with quilombolas communities of the Rio Grande do Sul

and Sergipe, I demonstrate the existence of layers of social recognition, of creativity

of the collective memory, and of elements of territorialities, not always visible and

apprehensible within the scope of the operation of the technical report. The legal

apparatus that dictates the quilombolas’ question works as a fundamental framework

of the identitary production of these social groups, not being present, however, as a

sole feature. In this sense, there are different frameworks that dialogue with the

historicities of the groups and that produce a classificatory dynamics of complex

nature.

11
Key-words: social recognition, memory, territoriality, social creativity, ethnography.

12
SUMÁRIO

INTRODUÇÃO .......................................................................................................... 15

1 JANELAS CONCEITUAIS E LEITURAS ETNOGRÁFICAS. ................................ 34

1.1 A memória enquanto conceito crítico para o reconhecimento. ............................ 34

1.2 Territorialidades em múltiplos níveis. .................................................................. 38

1.3 Escalas do reconhecimento social. ..................................................................... 41

1.4 Experiência etnográfica e relatórios de quilombos. ............................................. 46

1.5 A releitura do relatório técnico: novos olhares..................................................... 83

2 QUILOMBO DOS ALPES. A ETNOGRAFIA DO MÚTUO RECONHECIMENTO. 92

2.1 Mediações com a memória. ................................................................................ 95

2.1.1 Dona Edwirges: a escravidão e o emblema das lutas atuais. ........................ 100

2.2 Rosângela Elias, a “Janja”: liderança e mediações do reconhecimento. .......... 115

2.3 A manutenção da identidade. Criatividade e constrangimentos sociais. ........... 123

2.4 Territorialidade mítico religiosa. Nominações criativas. ..................................... 136

3 RINCÃO DOS NEGROS. RECONSTITUINDO AS FRATURAS. ........................ 153

3.1 Mantoca e o “fora-da-lei”. A memória subversiva. ............................................. 156

3.2 A legitimidade nativa construída no contexto do relatório. ................................ 165

3.3 Seu Joci e os “históricos”. A memória reflexiva. ................................................ 169

3.4 Jacinta Souza e a “boa sinhá”. A memória aglutinadora. .................................. 174

3.5 Etnografia e camadas mitológicas ..................................................................... 184

3.6 Dançando no Rincão dos Negros. Reconhecimento local. ............................... 186

3.7 “Tudo faceiros nas terras dos pretos!” Arquivos mentais coletivos. .................. 189

13
4 RINCÃO DOS CAIXÕES. RECONHECIMENTO EM MÚLTIPLOS NÍVEIS. ....... 202

4.1 Os micro processos de reconhecimento. .......................................................... 205

4.2 Régis Fiúza: mitologia de fundação do território. .............................................. 215

4.3 Territorialidade, mito e corporalidade quilombola. ............................................. 222

4.4 O transitar pelo espaço e a evocação da memória. .......................................... 228

4.5 Dona Erocilda: do passado negro ao pleito atual. ............................................. 251

4.6 “Carambola” ou quilombola? As categorias em diálogo intercultural. ................ 260

4.7 Memória e noções de justiça. Mapas e territorialidades. ................................... 263

5 O TRABALHO DE CAMPO EM SERGIPE. AMPLIANDO DIÁLOGOS. ............. 269

5.1 Narrativas subversivas e a mitologia do sobrenatural. ...................................... 271

5.2 Quilombo do Pontal da Barra: Contexto inicial de pesquisa. ............................. 306

5.2.1 Entre o “dito” e o “não-dito”. As desconfianças da identidade. ....................... 309

5.2.2 O quilombo “em aberto”. Sentidos possíveis no espaço do relatório técnico. 321

5.2.3 O reconhecimento como ato moral. ............................................................... 332

CONSIDERAÇÕES FINAIS .................................................................................... 339

REFERÊNCIAS ....................................................................................................... 349

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INTRODUÇÃO

Esta tese de doutorado resulta de um processo reflexivo que acompanha

minha trajetória profissional enquanto constituidor de equipes destinadas à produção

de laudos, relatórios técnicos e pareceres acerca de grupos sociais que vêm

ganhando evidência através de suas lutas por reconhecimento por parte da

sociedade brasileira. Estas atuações, inseridas nas áreas do patrimônio cultural

brasileiro1 e também do reconhecimento étnico-territorial de comunidades

remanescentes de quilombos, traduziram-se na possibilidade de uma reflexão que

se estende no tempo e no espaço, desenhando um quadro que apresenta uma série

de aproximações e afastamentos entre as situações etnográficas vivenciadas,

desafiando qualquer desejo classificatório precipitado. O relatório técnico – que faz

parte do aparato legal e administrativo no que concerne ao reconhecimento e

delimitação de territórios quilombolas – se apresenta nesta tese enquanto uma

“janela”. Uma janela que, quando aberta, nos proporciona lançar um olhar até onde

“a vista alcança”.

Pretende-se neste trabalho, através da revisitação de certas situações

etnográficas por mim vivenciadas e elencadas a seguir, trazer à luz aspectos que

constituem a historicidade de grupos pesquisados, demonstrando o território como

um “organismo vivo” que trabalha com elementos da vida coletiva que vão muito

além das possibilidades apresentadas em mapas institucionais. Busca-se, na

1
Minha dissertação de mestrado intitulada “Nossos heróis não morreram: um estudo antropológico
sobre formas de ‘ser negro’ e de ‘ser gaúcho’ no Rio Grande do Sul” constitui-se num desdobramento
de processo por mim vivenciado junto à equipe que realizou um Inventário Nacional de Referências
Culturais que tinha como foco a participação dos lanceiros negros na Revolução Farroupilha. A
dissertação foi defendida neste mesmo programa de pós-graduação em antropologia social.
15
presente tese, a constituição de um vaso comunicante entre as evidências

etnográficas construídas até o momento e a possibilidade de um novo olhar ao tema

proposto. Afinal, o que aprendemos na constituição de laudos e relatórios técnicos?

Como repensar percursos de pesquisa?

O objeto desta tese é o próprio trabalho antropológico e etnográfico

quando imerso em situações de perícia. Os contextos de perícia antropológica

evidenciam um complexo quadro social, repleto de agentes e nuances que

nem sempre são contemplados no texto do laudo ou do relatório técnico.

Discutir as vicissitudes do trabalho de campo e da etnografia nestas situações

produz um alargamento conceitual tanto da maneira como interpretamos os

trabalhos técnicos, como também do próprio universo da antropologia social.

Não se trata, portanto, de um “estudo de caso” ou de um estudo de caráter

comparativo. O objetivo é examinar diferentes “cenas” de meu percurso etnográfico

que possam revelar a constituição dos problemas colocados pelo trabalho de

campo, assim como de novos “coloridos” da vida social. O objetivo é colocar

experiências vivenciadas por mim, em situações de perícias nos estados do Rio

Grande do Sul e do Sergipe, a serviço de uma reflexão sobre a variabilidade

produzida no contato etnográfico e sobre as formas como o trabalho antropológico

vem sendo orientado no espaço-tempo de um relatório produzido para fins de

reconhecimento territorial. No entanto, deve-se destacar, esta tese encontra limites

interpretativos na própria “negociação” de situações e fatos da vida quilombola que

ocorreram no trabalho de campo. Neste sentido, reside a escolha da manutenção

dos nomes originais dos informantes.

16
Em 2007 iniciei meu trabalho de campo em duas comunidades quilombolas

do Rio Grande do Sul: a comunidade quilombola dos Alpes (situada em Porto

Alegre) e a comunidade quilombola do Rincão dos Negros (situada em Rio

Pardo/RS). No caso desta última comunidade, o trabalho de campo que abrangeu a

construção do relatório técnico se estendeu até início de 2008. No caso da primeira,

o contato se estendeu para além da perícia antropológica, até os dias atuais. À

época da construção do relatório técnico, tínhamos como enquadramento jurídico-

administrativo o artigo 68 do ADCT, o Decreto 4.887/2003 e a Instrução Normativa

de número 20. As preocupações relativas ao relatório técnico, que versavam

fundamentalmente sobre a constituição do “mapa da área”, não dava conta das

complexidades simbólicas que iam se revelando durante o trabalho de campo.

Imagens territoriais complexas e recheadas de juízos de valor e noções de justiça

acerca do passado e do presente faziam parte do cardápio de possibilidades. Além

disso, as diferentes possibilidades evocativas da memória, traduziam-se em “algo

mais” do que um uso instrumental do passado para os fins políticos do presente.

Neste sentido, a complexidade da vida nativa transparecia em uma complexidade

que produzia um “excedente” com relação às demandas administrativas.

De 2008 a meados de 2009 trabalhei na confecção do relatório técnico da

comunidade quilombola do Rincão dos Caixões, localizada na cidade de

Jacuizinho/RS. A comunidade apresentava um complexo processo de

reconhecimento social que dialogava com diferentes camadas de apreensão. O

grupo buscava intensamente o reconhecimento dos atores locais, vizinhança e

antigos proprietários da região. Neste sentido, havia um processo de

retroalimentação de camadas de reconhecimento onde o Estado parecia figurar

como camada fundamental, porém, não única das lutas morais por justiça do grupo

17
quilombola. A etnografia, mais uma vez, num processo de “escavação” de memórias

e possibilidades simbólicas sofria algum tipo de recorte na operação administrativa.

Apresentava-se como elemento bastante claro que o “mapa técnico”, importante às

operações técnico-administrativas, não coincidia exatamente com o mapa cognitivo

quilombola, sempre constituído de fronteiras mais “borradas”.

Da metade de 2009 até metade de 2011 tive o desafio de participar da

construção de relatórios antropológicos no estado do Sergipe com mais dois

antropólogos2. Agora o trabalho seria realizado sob a ordenação colocada na

Instrução Normativa número 57. A busca por “elementos objetivos”, apresentada na

IN apresentava dificuldades ao trabalho antropológico. Um “clima de busca por

dados objetivos” parecia tomar conta de algumas perspectivas oriundas do setor

administrativo, logo quando o trabalho de campo apontava para outros rumos. As

comunidades de Caraíbas (município de Canhoba), Ladeiras (município de Japoatã)

e Forte (município de Cumbe) apresentavam uma linguagem e práticas fortemente

conectadas a certas imagens do domínio do sobrenatural e do mitológico. Na

qualidade de “ecos do passado”, esta linguagem apresentava um elemento

subversivo que parecia ter resistido ao tempo. Além disso, esses “encantados”

apresentavam-se como “porta-vozes” acerca das noções de justo e de injusto

orientadas pelo grupo. Seria interessante à operação administrativa este tipo de

abordagem? Seria suficiente “sério”? O caso do Pontal da Barra, localizado em

Barra dos Coqueiros, foi igualmente desafiador. Este processo de reconhecimento,

colocado em um amplo quadro de “desconfiança da identidade”, criava um quadro

complexo no interior do grupo repleto de jogos de espelhos identitários e de

2
A equipe foi composta, além de mim, por Mariana Balen Fernandes (antropóloga), Aderval da Costa
(antropólogo) e Vinícius P. de Oliveira (historiador).
18
silenciamentos. Neste sentido, as classificações operatórias administrativas estavam

relativamente em risco.

Paradoxalmente, na medida em que as exigências administrativas por

“objetividade” cresciam mais elementos da ordem do incomensurável surgiam no

contexto do trabalho de campo. Assim como eu percorri temporalmente situações de

perícia, também as Instruções Normativas (e discussões técnico-jurídicas) foram se

transformando, demandando uma maior “objetividade” do trabalho antropológico.

A complexidade do trabalho etnográfico dirige à problematização dos papéis

construídos durante os percursos de pesquisa. Se, em determinadas situações, o

pesquisador é interpelado enquanto representante das vias técnico-administrativas,

em outros, principalmente durante a consolidação do trabalho de campo, o

antropólogo passa a figurar outros papéis, que carregam, inclusive, relações afetivas

com os seus informantes – elemento este incontornável da relação etnográfica que

também nos revela as possibilidades colocadas nestes “jogos de espelhos” (Novaes,

1993) identitários do trabalho etnográfico.

O trabalho do relatório técnico encontra suas limitações devido às restrições e

aos constrangimentos técnicos que servem de pano de fundo, nestes contextos, ao

trabalho do antropólogo. Porém, como gostaria de argumentar, ele atua enquanto

uma possibilidade; uma “janela” que possibilita a ampliação da imagem conceitual

destes grupos sociais (como confirmam os inúmeros trabalhos acadêmicos

derivados de experiências desta ordem). Evidencia-se o caráter criativo

proporcionado pelo processo de construção do relatório técnico, mesmo que essa

“criatividade” sofra certa redução no processo de tradução das categorias. Se, por

um lado, encontra-se um embate de forças entre as “categorias nativas” e as

19
“categorias administrativas”, configura-se, em outra medida, uma capacidade

inventiva: são exatamente essas dificuldades que colocam ao antropólogo a

necessidade conceitual – e ética - de alargamento conceitual sobre as realidades

estudadas.

O foco desta tese delineia-se na apreensão de um diálogo criativo – e não

raramente complexo – entre as categorias “de cima” e as “lógicas nativas”. Estas

complexidades do jogo intercultural que envolve quilombolas, antropólogos e

agentes do Estado muitas vezes não são alcançadas durante os processos

classificatórios usuais. Pretendo problematizar este diálogo criativo, demonstrando

como os limites e as possibilidades deste jogo são dados no próprio embate; não se

tratando de um simples encaixe de categorias. Qualquer tentativa de objetivação

sistemática da “categoria quilombo”, através de um processo inspirado em um tipo

de operação indutiva, acarreta em um processo violento de redução conceitual. A

presente reflexão toma como ponto de partida a apreensão de um jogo dialético

entre categorias estatais e “nativas” que só é objetivável num horizonte intangível e

teórico. Minha preocupação recai sobre este conjunto de experiências que

constituem um tipo de “quilombo na prática”.

Faz-se necessário evidenciar que a presente tese encontra terreno firme em

três eixos analíticos. A perspectiva escolhida apresenta-se aqui na forma de certas

premissas que mediarão – em maior ou menor grau dependendo da situação

etnográfica – toda a escrita desta tese:

1. A criatividade da memória. Ao longo da tese privilegiarei a demonstração

de diferentes relações com a memória dos grupos abordados. A preocupação está

no entendimento da memória enquanto um conceito crítico para o reconhecimento

20
social: é quando se encontra nexos conectivos com a memória do “outro” que se

ultrapassa o nível do conhecimento rumo ao (re)conhecimento (Fabian, 2001). A

memória enquanto produtora de coesão e de emblemas de lutas; a memória como

uma técnica de (re)construção dialética do território. Procura-se evidenciar também a

memória como comportadora de uma tensão entre o “dito” e o “não-dito” e a sua

relação com o silêncio (Pollak, 1989; 2000).

2. Mediações com o território. O território é apreendido não apenas

enquanto um lócus da identidade, mas como um espaço do embate da identidade.

Durante o trabalho etnográfico, num contexto de perícia, o pesquisador opera o

desvelamento de um “quebra-cabeça do território”. Este território, repleto de

significação e expressivo da vida social quilombola, não raramente encontra um

processo redutivo na construção do relatório antropológico. O território quilombola,

ainda, nem sempre se encontra visível a “olho nu”, normalmente em decorrência das

configurações espaciais e sociais que “escondem” o seu sentido. O processo de

construção do trabalho etnográfico produz um tipo de (re)construção do território que

encontra respaldo em um “saber-fazer nativo”.

3. Reconhecimentos sociais e práticas de justiça. O reconhecimento social

se dá através de diferentes níveis e escalas de apreensão. O enquadramento das

políticas multiculturalistas versa sobre um deles. Temos outros processos, porém,

que se relacionam com outras “engrenagens do reconhecimento”. Alçar o olhar a

estes microprocessos do reconhecimento entre um “eu” e um “outro” que estão para

além da cena administrativa, produz um alargamento conceitual sobre o percurso da

vida e suas historicidades. Além disso, tem-se uma série de práticas locais de

justiça, através de avaliações morais, por parte dos quilombolas, sobre situações do

passado e do presente. Estas avaliações morais, cristalizadas em espaços do


21
território, na mitologia local e em “narrativas” fantásticas produzem práticas

subversivas, que não são facilmente apreensíveis pelas operações classificatórias

da identidade e do território operadas pelos campos do direito e administrativo.

O presente estudo visa expandir as reflexões sobre situações tidas como

incomensuráveis e potencialmente deixadas de lado nos relatórios técnicos. Para

tanto, os capítulos desta tese são construídos com o objetivo de dar conta destes

três eixos principais.

Deve-se considerar que os capítulos, ao versarem sobre diferentes situações

etnográficas por mim vivenciadas, apresentam, entre si, inúmeros afastamentos e

aproximações. Não se trata de uma comparação substancialista entre comunidades.

O objetivo é revelar que tipos de questões podem surgir decorrentes da variabilidade

do trabalho etnográfico, aprofundando lentes e olhares.

No capítulo 1 procuro demonstrar como as questões centrais presentes na

atual reflexão dialogam diretamente com a minha trajetória de pesquisa junto às

comunidades quilombolas com as quais tive contato em meu percurso. Demonstrar-

se-á algumas peculiaridades relativas aos trabalhos de campo realizados, focando

nos problemas políticos e conceituais relativos a cada uma dessas experiências. A

intenção está no delineamento de problemas que serão discutidos nos capítulos

seguintes. Ainda neste capítulo, é realizada uma reflexão sobre os caminhos

metodológicos tomados na presente tese, tendo em vista um processo de

revisitação de situações já experienciadas em contextos de perícia.

No capítulo 2, apresento elementos de minha experiência de campo junto à

comunidade quilombola dos Alpes, situada na cidade de Porto Alegre. Através de

um contato etnográfico continuado com este grupo, desde o ano de 2007, pude

22
presenciar diferentes nuances da construção identitária. O contato por um período

relativamente longo de tempo com a comunidade pesquisada privilegiou a

apreensão de vários papéis assumidos pelo próprio etnógrafo, ora tomando a figura

de um agente Estatal, ora assumindo outros papéis elencados pelo próprio grupo

nesse percurso de relação com o pesquisador. O foco aqui é a demonstração da

memória enquanto articuladora de diferentes papéis no seio do grupo: ao mesmo

tempo em que ela aciona uma função aglutinadora, apresenta-se também enquanto

uma técnica – um saber-fazer – que atua na restituição de fraturas e de processos

reflexivos que conectam passado e presente (onde o etnógrafo também começa a

tocar e compartilhar determinados pontos desta memória compartilhada). Destacarei

como a “manutenção da identidade”, para além do momento do pleito quilombola,

evidencia uma construção que atende fins morais, articulados no grupo, e que

buscam o reconhecimento social em diferentes arenas, locais e extra-locais.

Demonstrarei como a territorialidade do grupo vem (re)articulando - através de um

processo de reajustes com a memória – um território nominado através de

categorias religiosas.

No capítulo 3, desenvolvo elementos de minha experiência etnográfica junto à

comunidade do Rincão dos Negros, situada no município de Rio Pardo, Rio Grande

do Sul. Visito o processo de diálogo do grupo com seus elementos mítico-territoriais,

e de que maneira essa “releitura” mitológica efetua (re)ajustes com o passado

através do diálogo com antigos protagonistas do grupo e com os agentes que

entram no “espaço quilombola” na figura do pleito territorial. Este capítulo apresenta

uma ênfase especial na apreensão, por parte do grupo, de um território nem sempre

tangível ao olhar externo, apesar de perene ao grupo não obstante as

reconformações físicas do espaço. Procuro ressaltar a atuação de certos sujeitos

23
que ocupam um papel conector do território, fornecendo um elemento multiplicador

da memória.

No capítulo 4, trabalho com os micro processos de reconhecimento social da

comunidade quilombola do Rincão dos Caixões, situada no município de Jacuizinho,

no Rio Grande do Sul. Meu objetivo é captar o processo de reconhecimento desta

comunidade como composto de diferentes níveis e camadas. Ao mesmo tempo em

que a comunidade atravessa um processo de reconhecimento pelo enquadramento

jurídico brasileiro, temos outros processos que levam em conta reconhecimentos

locais: vizinhança, outros agentes públicos locais, etc. Procurarei demonstrar a

perenidade de um território que permanece rico em sentido não obstante a

passagem de diversos proprietários legais pelo espaço. Aqui, tem-se novamente a

figura de “guardiães da memória” que, para além do papel evocativo da lembrança,

dotam a palavra de poder, fazendo com que ela ecoe no seio do grupo, repercutindo

nas conexões possíveis entre passado e presente.

O capítulo 5 é reservado à discussão de trabalho de campo realizado em

comunidades quilombolas do estado do Sergipe. Evidencio situações de campo em

que a memória muitas vezes acaba sendo articulada com uma técnica do

silenciamento, repleta de tensões entre o “dito” e o “não-dito”, fruto da própria lógica

de grupos que realizam um corte relativo entre o lembrar e o falar. No contexto atual,

essa tensão muitas vezes é aquecida pelas “desconfianças” acerca da identidade

quilombola. Procuro demonstrar experiências reveladoras de um território

“criptografado” por certa mitologia do sobrenatural. O acesso ao sobrenatural indica

uma chave de entendimento de um território persistente e repleto de juízos morais

acerca das situações vividas pelo grupo. Faz parte do objetivo do capítulo

24
demonstrar como o atual pleito quilombola vivenciado pelo grupo é parte de um

percurso que atualiza mais um nível de luta por reconhecimento.

O artigo 68 da Constituição Federal Brasileira e o seu aparato

infraconstitucional3 criaram, do ponto de vista legal, uma “revolução” no que diz

respeito aos processos de reconhecimento de comunidades quilombolas no Brasil.

Há uma diversidade de experiências de pesquisas já conhecidas desse segmento

negro no Brasil que apontam para a riqueza de contextos e situações que dialogam,

hoje, com a categoria jurídica “remanescentes de quilombo” (Almeida, 1996, 1998,

2002; Anjos & Silva, 2004; Barcellos, et.alli., 2004; Carvalho, 1996; Chagas, 2005;

Leite, 1999, 2003; O'Dwyer, 1995, 2002)4.

A literatura antropológica sobre o tema aponta para a desconstrução das

versões frigorificadas – e coloniais - do conceito de quilombo5 que o relacionariam

diretamente com as noções de “fuga” e “isolamento”, situando-o física e

simbolicamente para fora do domínio da civilização (Almeida, 2002). Esta noção que

toma o isolamento como ponto central derivou na interpretação de um quilombo

3
Desde a reforma constituinte de 1988, no Brasil, abriu-se a possibilidade de reconhecimento dos
espaços que guardam relação histórica com a escravidão, assegurando-lhes direitos territoriais. O
Artigo 68 do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias (ADCT) trouxe consigo um aparato
legal que procura relacionar comunidades negras contemporâneas, portadoras de determinadas
especificidades étnicas, com a experiência histórica dos quilombos. Esta inovação constitucional
trouxe consigo uma abertura de discussões relacionadas à pauta quilombola, que se desenrolam até
o atual cenário contemporâneo. Em diálogo com esse artigo constitucional, temos hoje o Decreto n.
4.887/03 e a Instrução Normativa n. 49 (IN 49), que se constituem enquanto aparato
infraconstitucional que vêm a regulamentar o artigo acima citado. Essa inovação do ponto de vista
étnico-territorial no Brasil ganha as seguintes palavras no texto constitucional: “Aos remanescentes
das comunidades de quilombos que estejam ocupando suas terras é reconhecida a propriedade
definitiva, devendo o Estado emitir-lhes títulos respectivos”.
4
Esse tema possui uma história mais longa que remonta, em sua gênese, a diferentes estudos e
enfoques sobre comunidades negras rurais no Brasil (Brandão, 1977; Vogt & Fry, 1996; Bandeira,
1988; Gusmão, 1990).
5
Almeida (2002) demonstra como diferentes autores tomaram como referência uma noção jurídica-
formal de quilombo do período colonial, como aquela formulada como uma “resposta ao Rei de
Portugal” decorrente de uma consulta feita ao Conselho Ultramarino de 1740. Segundo esta versão
corrente, o quilombo seria definido por critérios fundamentais que envolvem a fuga, uma quantidade
mínima de “fugidos”, a ideia de um isolamento geográfico (fora da civilização, em um espaço de
natureza), a existência de um “rancho” e de “pilões” (Almeida, 2002).
25
idílico e fora das relações de produção e de mercado, gerando “outro tipo de divisão,

que descreve os quilombos marginalmente, fora do domínio físico das plantations”

(Almeida, 2002, p. 48). A reflexão acerca do campo semântico do conceito de

quilombo demonstra uma série de possibilidades associativas – ainda no pré-

abolição – que não foram incorporadas nas definições formais acerca do quilombo,

promovendo já uma defasagem entre as “situações práticas” e as definições jurídico-

formais do ambiente colonial (Almeida, 2002). Extensivo a este elemento, existe todo

um conjunto de reflexões promovidas pela historiografia sobre o assunto que

procura demonstrar como os grupos negros poderiam estabelecer uma posição de

“fundo de fazenda”, produzindo relações de continuidade com o centro escravocrata,

mantendo inclusive relações comerciais e de proximidade com as fazendas, vilas e

cidades (Gomes, 1996). A reflexão destas relações coloniais complexas aponta para

um ponto de inflexão que desafia o aparato conceitual onde “fuga” e “isolamento” se

transformam em palavras de ordem.

Fica delineado aqui o centro da análise sobre o quilombo enquanto lócus do

político. Trata-se de um espaço que sempre esteve frente a processos de

negociação com as ordens vigentes. Parte-se da premissa geral de que o artigo 68

da Constituição Federal Brasileira aparece enquanto mais um enquadramento

político-jurídico que se articula com a historicidade destes grupos (algo que não

minimiza o imenso ganho político derivado desta inovação constitucional). Neste

sentido, os “quilombos de hoje” não se apresentam enquanto uma reminiscência ou

sobrevivência do passado. Ao contrário, a posição da qual emergem os quilombos

sugere a existência de uma variedade de casos que produzem um arranjo mínimo

para a sua definição. O processo de definição do quilombo apresenta relação direta

com esquemas societários que se mantiveram vivos nos enquadramentos históricos

26
e sociais, lutando pelas suas sobrevivências físicas e simbólicas, não obstante a

sempre presente defasagem categórica produzida pelos classificadores externos.

Trata-se principalmente do resultado de processos de confrontação,


e não de lugares utópicos e despolitizados. Aqui estaria a posição de
onde emergem os quilombos. Em resumo, é uma impropriedade lidar
com esse processo como “sobrevivência”, como “remanescente”,
como sobra ou resíduo, porquanto sugere ser justamente o oposto: é
o que logrou uma reprodução, é que se manteve mais preservado, é
o que manteve o quadro natural em melhores condições de uso e é o
que garantiu a esses grupos sociais condições para viver
independentemente dos favores e benefícios do Estado (Almeida,
2002, p.77-78).

Apresentar, porém, o quilombo enquanto objeto em disputa e submetido a

alargamentos semânticos em função dos desafios empíricos apresentados pelos

casos concretos não decorre em um esvaziamento de sua categoria e do seu

potencial enquanto significante. A própria categoria, dotada de historicidade, é

resultado de uma série de cruzamentos entre movimentos sociais, campo jurídico e

administrativo e da própria disciplina antropológica 6. A questão aqui gira em torno de

um diálogo criativo entre o “mundo nativo” e as operações públicas de

reconhecimento que apresentam sempre um tipo de defasagem conceitual. Este

6
Arruti (2008) demonstra como o quilombo, do ponto de vista teórico, apresenta uma genealogia que
resulta em diferentes possibilidades interpretativas. Em um primeiro plano analítico, temos as versões
que colocam o quilombo como reproduções de “modelos africanos”, uma forma de resistência cultural
que promoveria relações diretas com a África. Em um segundo plano, temos uma interpretação
classista do quilombo de Palmares, onde ali é visto um foco de resistência popular com relação às
estruturas de dominação. Um terceiro plano de ressemantização do quilombo é encontrado no
movimento negro que coloca o mesmo num plano de ícone da resistência negra. Os bastidores das
discussões em torno do artigo 68 do ADCT da CF revelam pelo menos duas posições delineadas:
uma diretamente ligada à militância, que entende o quilombo como um ponto fundamental de
resistência da cultura negra, e outro, diretamente relacionado com as demandas por acesso à terra e
à reforma agrária (Arruti, 2008).

27
elemento sempre acarreta em nova fixidez das categorias nominativas do Estado,

que não dão conta dos processos apresentados através dos “fatos sociais

quilombolas”.

O compromisso estabelecido entre discurso antropológico e discurso


jurídico e administrativo neste processo de nominação custou aos
antropólogos a colaboração direta nas práticas divisórias estatais,
por meio do estabelecimento de uma nova categoria classificatória,
cuja função foi, novamente, reduzir a variedade das experiências e
representações sociais a um modelo de denominação jurídico-
administrativa (Arruti, p. 26-27, 2008).

Minha participação em equipes destinadas à produção de relatórios técnicos

com vistas ao reconhecimento identitário de comunidades quilombolas me levou ao

elemento central da trama reflexiva que irá seguir: a questão da variabilidade. Algo

deve ser dito, de antemão, sobre este elemento que permeia toda a minha reflexão.

De que tipo de variabilidade estaria aqui falando? Em que sentido, mais ou menos

preciso, valeria a pena trazer um leque de situações vivenciadas em campo como

possibilidade interpretativa ao “fato social quilombola”? Meu objetivo não se situa

apenas no espaço do reconhecimento da diferença, mas sobre como a diferença de

fato se constrói nessa relação que envolve comunidades, agentes do Estado e

antropólogos. Pretendo jogar luz às experiências etnográficas por mim vivenciadas

tendo em vista a seguinte premissa fundamental: a existência de um jogo criativo

entre as categorias calcadas na historicidade dos grupos quilombolas e aquelas

oriundas de enquadramentos estatais e administrativos. O olhar, calcado em um a

priori identitário sobre essas comunidades, redunda em uma busca de uma

28
alteridade radical, onde os grupos sociais são colocados sob a suspeita de pouca

“contrastividade cultural” com relação a outros grupos sociais (O’Dwyer, 2010). A

intenção não é uma comparação sistemática e substancialista entre trabalhos de

campo, e sim a produção de um diálogo entre eles que redunde em aprofundamento

da “lente” antropológica a contextos interpretativos específicos. Variabilidade aqui se

traduz, portanto, em diferentes possibilidades comunicativas que são constituídas

neste embate intercultural entre os “diferentes mundos” que envolvem o “quadro

quilombola”. Os processos diferenciados de produção de diálogo e interação dos

grupos sociais com o “aparato do reconhecimento” nos privilegiam o acesso a um

processo criativo, sempre em curso, e não a comunidades como à espera de um tipo

de devir histórico das categorias vindas “de fora”. A tese recai sobre esses

processos de reinterpretação da história que sempre dialogam com o horizonte de

possibilidades do grupo, promovendo, no embate, as próprias fronteiras dessa

construção identitária.

O pressuposto geral está na existência de um “excedente” produzido durante

o espaço-tempo do relatório antropológico que, ao ser contemplado, auxilia no

alargamento dos processos interpretativos sobre a gênese da construção

identitárias. O objetivo é colocar experiências vivenciadas por mim, em situações de

perícias nos estados do Rio Grande do Sul e do Sergipe, a serviço de uma reflexão

sobre a variabilidade produzida no contato etnográfico e sobre as formas como o

trabalho antropológico vem sendo orientado no espaço-tempo de um relatório

produzido para fins de reconhecimento territorial.

Pretende-se, aqui, focar na dimensão de territórios repletos de historicidade,

que dialogam com camadas históricas específicas, apesar de não dialogarem com a

"lógica do papel" ou da escritura cartorial. Este território, apresentado no relatório


29
técnico, e que serve como referência fundamental aos operadores administrativos, é

no fundo uma "dobra" daquilo que é possível ser apreendido pela visão nativa

acerca de suas histórias. Interessa, nesse sentido, lançar o olhar a estes aspectos

velados e subversivos do território que conferem um sentido ao mesmo de forma

mais ou menos independente aos processos de “recorte” do território, exigidos pelas

dinâmicas administrativas. Cabe retornar aos sentidos do espaço que remetem a

camadas de histórias vivas dos grupos.

O foco analítico privilegiará o exame das camadas que compõem os

diferentes níveis de reconhecimento. O Estado, neste sentido, é entendido como um

destes níveis de reconhecimento, não se constituindo, porém, como o único.

Existem outras camadas mais evidentes do reconhecimento social e outras que

acabam por tomar formas mais subversivas. Interessa, contudo, evidenciar o caráter

comunicativo entre essas camadas de reconhecimento. O objetivo é desvelar

situações do trabalho de campo, que incorporam contextos e situações,

evidenciando alguns problemas que estão para além da situação laudatória ou

técnica – mesmo que dialoguem de forma intensa com este momento importante de

apreensão do fenômeno étnico. Assim, trazer para a análise antropológica uma

versão não “pasteurizada” da vida nativa, através da reincorporação da história e de

eventos aparentemente banais e anedóticos, nos previne do risco de uma leitura

extremamente formalista e até mesmo “culturalista” da vida social (Bensa, 1998).

Muitos estudos antropológicos em comunidades quilombolas apresentam um

quadro específico da história política do grupo que versa sobre as proximidades de

um desencadeamento do pleito fundiário e suas resultantes relações com o Estado,

com o ordenamento legal existente e com as categorias oriundas do campo

acadêmico, principalmente do campo da Antropologia Social. Sem dúvida, isso


30
ocorre porque, em muitos casos, os pesquisadores têm o seu primeiro contato com

determinada comunidade justamente no contexto de produção de um laudo ou

relatório para fins de demarcação étnico-territorial.

Poder-se-ia dizer que, em certo sentido, os estudos dessa temática, do ponto

de vista do trabalho de campo, acabam respeitando a lógica do contato exercido

pelo pesquisador num momento importante, porém, não único do processo do

desvelar identitário. Isto tem levado muitos pesquisadores a ressaltarem aspectos da

vida social, como a memória coletiva do grupo analisado, como resultado único de

quadros do presente – um momento de “efervescência identitária” – não acessando

outros caminhos construídos pela memória social do grupo, apresentando-a apenas

como “construções” fruto das aspirações políticas do momento. Faz-se necessário

ressaltar a importante conexão entre os processos de construção da memória e o

papel que ela ocupa nos esquemas de reconhecimento do “outro”. Encontrar o

“outro” em algum ponto da memória, compartilhando um espaço da lembrança, nos

leva um profundo processo de reconhecimento que afeta, através de um processo

intercultural, as categorias do “eu” e do “outro” (Fabian, 2011).

Apresenta-se um campo de inúmeras perplexidades no que diz respeito ao

reconhecimento de territórios negros, segundo possibilidades técnico-jurídicas hoje

vigentes. A auto-atribuição é possível, porém, a continuidade e sustentabilidade da

identidade étnica ainda é uma questão a ser desvelada. Ao tomar contato com as

categorias acadêmicas e jurídicas existentes – que ainda estão abertas a processos

e alargamentos semânticos (Almeida, 1996; Arruti, 1997) – o grupo realiza

determinados ajustes identitários que produzem consequências graves com aqueles

que compartilham de seu “entorno”. Vale notar que, devido à morosidade hoje

instaurada pelo Estado brasileiro nessa modalidade de demarcação fundiária, os


31
caminhos dos grupos no que diz respeito à sustentabilidade de suas identidades

étnicas ganham em complexidade, não se resumindo ao momento da auto-

atribuição. Por outro lado, as comunidades que não se encontram em processo de

reconhecimento enfrentam outros embates identitários que respeitam os códigos

locais, mas que dizem também respeito a uma reconfiguração de suas relações no

âmbito local a partir dos desdobramentos dos pleitos. Parte-se da premissa que o

artigo 68 do ADCT na Constituição Federal brasileira trouxe, sem dúvida, um

contexto fundamental de arranjo dessas identidades, porém, seria insuficiente

explicar a diversidade de situações tomando-o como único ponto de partida.

Pode-se entender a constituição do fenômeno étnico como fruto de um

processo de etnogênese. Nesse sentido, grupos, ancorados na idéia de uma

descendência comum, fundamentam sua organização na crença da legitimidade das

organizações de base étnica enquanto sistema ideológico que dá sentido à

existência das minorias (Banton, 1977). Mas os processos de etnogênese nos

colocam frente a apenas umas das “janelas” conceituais passíveis de visualização

do fenômeno étnico. Isto nos coloca o desafio de produção de ajustes de nossas

lentes para estas outras camadas do fenômeno étnico que se apresentam para um

“leitor desavisado” enquanto dados rarefeitos e sem “utilidade conceitual”.

Os novos usos interpretativos da raça e da etnia – e muitas de suas

derivações – acabam trabalhando em um determinado nível da politização e não em

suas diversas escalas de experiência social. Assim, toma-se como pressuposto,

tendo em vista fins heurísticos, a constituição de três níveis do fenômeno étnico

proposto por Barth (2003). O “nível micro”, que se relaciona com o contexto vivido e

com os processos de interações pessoais. O “nível médio”, que constitui o campo de

recrutamento da ação política, onde esta toma forma a despeito da existência de


32
conflitos internos do grupo produtor da ação; e, por último, o “nível macro”. Este

nível relaciona-se com o espaço de produção das políticas estatais e ideologias no

âmbito transnacional e internacional. Não obstante, os atores procuram traduzir

estas “grandes políticas” para os universos locais. Toma-se como ponto de partida

que o Estado brasileiro, através de seu aparato com relação à questão quilombola,

não possui uma dimensão emanadora de identidades: ele apresenta-se em um dos

níveis de apreensão da análise.

Do ponto de vista analítico, a preocupação está em um “reolhar” de meu

percurso etnográfico de pelo menos dois pontos de vista: um que diz respeito à

possibilidade de continuidade do próprio trabalho de campo para além da

espacialidade e temporalidade do relatório técnico. O outro motivo, talvez mais

importante, versa sobre um revisitar conceitual que incorpore uma nova luz e novos

ângulos sob o trabalho de campo vivenciado nos últimos anos junto às comunidades

quilombolas.

33
1 JANELAS CONCEITUAIS E LEITURAS ETNOGRÁFICAS.

1.1 A memória enquanto conceito crítico para o reconhecimento.

Fabian (2001) aponta para a relação entre o reconhecimento social e a

memória, já que o “lembrar o outro” está para além de um simples processo de

conhecimento. O autor nos leva a refletir sobre as relações existentes entre a

memória e o reconhecimento “do outro”.

Parte-se da premissa fundamental de que a memória deve articular, enquanto

operador analítico, com diferentes níveis dos grupos sociais estudados. Interessa

aqui, além de seu papel produtor de coesão grupal, avaliar os sentidos “em

movimento” produzidos pela ação da memória. A produção de uma etnografia infere

em um processo de reconhecimento do “outro”. Como discute Fabian (2001), apesar

de a memória não englobar todo o processo de reconhecimento, pensar sobre a

memória em processos de reconhecimento permite fugir de certo “enclausuramento”

do conceito decorrente de um “boom da memória” e dos estudos de identidade. O

problema, segundo o autor, aparece quando a memória se apresenta como um

espelho de modelos mecânicos de sociedade e cultura, não privilegiando a

“criatividade da memória”. Neste sentido, perde-se o seu potencial subversivo

enquanto categoria explicativa:

As a result, memory’s creative, often subversive potencial will no


longer be recognized as phenomenom, and as concept, memory may
become almost indistinguishable from either identity or culture. This
melding may happen when scholars from other fields seek to give

34
coeherence to practices of memory by having recourse to an
anthropological concept of culture (Fabian, 2001, p. 159).

O autor não está preocupado com uma noção de reconhecimento que

dialogue diretamente com os debates travados no campo do multiculturalismo ou

das políticas de reconhecimento. Quanto o “eu” e o “outro” alcançam um ponto do

qual é possível “lembrar o presente”, compartilhando em alguma medida o “passado

do outro”, fica-se frente a um processo de mútuo reconhecimento que afeta

radicalmente tanto o “conhecedor” tanto quanto provoca uma reconstituição da

identidade do outro. Reconhecimento infere na constituição de uma memória

conjunta compartilhada que afeta ambas as partes. De fato, amplia-se o

conhecimento do outro, derivando-se daí um processo de inter-reconhecimento

(Fabian, 2001). Neste sentido, na presente tese, se lida com níveis que estão para

além dos processos de reconhecimento alavancados pelo Estado brasileiro. Os

níveis de reconhecimento são múltiplos e envolvem etnógrafos, vizinhanças e os

entornos sociais dos grupos sociais em questão.

A memória coletiva aponta para diferentes níveis de coesão, continuidade e

estabilidade de “comunidades afetivas”, sejam elas nações, regiões, minorias ou até

mesmo outras unidades de pertencimento. Ainda, quadros sociais da memória,

conforme nos ensina o sociólogo francês Maurice Halbawchs, apontam para a

dimensão presente da construção da memória, sendo ela acionada no sentido de

estabelecer laços sólidos que façam sentido à continuidade de grupos sociais.

Porém, ao tratarmos com minorias, lidamos com certas fraturas que se expressam

através de um silenciamento e de um “não-dito” que nem sempre está evidente ao

pesquisador. Esta é uma característica de grupos que trabalham com um tipo de

35
“memória recalcada” que pode ou não chegar aos espaços públicos, tornando-se

visível, dependendo da conjuntura sócio-histórica. Portanto, conforme Pollak (1989),

o analista deve realizar um esforço no sentido de captar a descontinuidade e o

caráter conflitivo da memória, não focando assim apenas em seus elementos

geradores de coesão. Esta tese apresenta, enquanto eixo interpretativo, o processo

de certas memórias “subversivas” que constituem um tipo de micropolítica

quilombola, emergindo em momentos emblemáticos. Este processo que acaba por

produzir uma tensão entre a lembrança e o “dizível” constitui um elemento

importante no que tange o entendimento dos diálogos realizados com as “formas de

lembrar quilombola”. A palavra pode ficar “presa” à espera de novos

enquadramentos e escalas evocativas. O próprio silêncio, neste sentido, aparece

enquanto estratégia de sobrevivência social em função de eventos de caráter

traumático (Pollak, 2000).

As memórias que emergem são “colocadas” à prova, sofrendo um processo

constante de avaliações sociais. No caso quilombola, essa reflexão faz-se

fundamental, já que a identidade, que apresenta um forte elemento ancorado na

memória coletiva, não se encontra mais imersa apenas nas redes de sociabilidade

do grupo. Ela transborda esses limites e dialoga com outras arenas e

enquadramentos, sendo colocada constantemente à prova por sucessivos

processos de justificação social:

O trabalho de enquadramento da memória se alimenta do material


fornecido pela história. Esse material pode sem dúvida ser
interpretado e combinado a um sem-número de referências
associadas; guiado pela preocupação não apenas de manter as
fronteiras sociais, mas também de modificá-las, esse trabalho
36
reinterpreta incessantemente o passado em função dos combates do
presente e do futuro. Mas, assim como a exigência de justificação
discutida acima limita a falsificação pura e simples do passado na
sua reconstrução política, o trabalho permanente de reinterpretação
do passado é contido por uma exigência de credibilidade que
depende da coerência dos discursos sucessivos (Pollak, 1989:02).

Appadurai (1981), em artigo intitulado “The past as a scarce resource”, realiza

uma crítica a versões funcionalistas – como a malinowskiana – onde as lutas

presentes se apropriariam do passado de forma completamente “plástica”. Ele toma

como universo de análise para o seu argumento etnografia realizada na Índia, que

tem como palco as disputas sobre um templo (Sri Partasalati Svami) na cidade de

Madras. A demonstração gira em torno de um conjunto de “normas sociais” que

funcionam enquanto constrangimentos nos processos evocativos da memória. A

memória, neste sentido, não obedece a uma lógica evocativa livre; faz-se necessário

satisfazer determinados critérios de verossimilhança que dialogam com as

construções socioculturais do grupo. No trabalho de Mello (2008), o autor tem

uma preocupação em demonstrar – com o olhar na comunidade quilombola de

Cambará/RS – como a memória atua através de lógicas complexas nos processos

de reconhecimento. Ao longo de seu trabalho, o autor procura fugir de certa noção

de “presentismo da memória”. Realiza crítica apreendendo um nível conceitual de

análise e também as reverberações que esta noção pode encontrar no campo

político. Um dos eixos argumentativos do autor trata da demonstração de que, se a

memória é mobilizada para fins identitários colocados no presente, devemos ter o

cuidado de não situarmos a memória em um local que responderia apenas aos fins

políticos do presente. Neste sentido, devemos estar atentos aos processos de

antemão que constituem a memória e que não estão deslocados de seus contextos
37
socioculturais. Se sempre houve uma ressemantização das memórias locais em face

ao contato com os agentes externos, podemos supor que as noções apresentadas

nas narrativas dos grupos já servem como um relativo substrato às demandas do

presente. Assim, sem deixar de lado a perspectiva construcionista trazida por

Maurice Halbawchs, abre-se a possibilidade de considerar um quadro complexo “no

qual memórias subterrâneas são alçadas à condição de visibilidade menos como

resposta, efeito ou reação a uma entidade maior, e mais pela incorporação,

ressemantização e (re) adaptação das transformações do contexto englobante,

estando assentadas nas bases fundamentais definidoras do grupo” (Mello, p. 44-45).

1.2 Territorialidades em múltiplos níveis.

Um dos eixos desta tese recai na relação existente entre as comunidades

quilombolas e suas porções territoriais. Há um consenso na literatura antropológica

sobre esse tema que aponta para as relações específicas que esses grupos sociais

desenvolvem historicamente com seus territórios, dialogando com noções que

apreendem apropriações e usos coletivos particulares do espaço, como as “terras de

preto”, “terras de santos” ou “terras de índio” (Almeida, 1989). No campo empírico,

encontramos uma variedade de relações com as territorialidades que persistem

através da memória, mitologia, sistemas de parentesco e relações específicas com o

território. A diversidade fundiária no Brasil, para além da questão quilombola –

caboclos, caiçaras, caipiras, sertanejos, etc. – desafia qualquer tentativa simples de

encaixe em categorias, devido à imensa complexidade dos grupos que poderiam ser

enquadrados em uma mesma categoria. Para analisar o território de qualquer grupo,

38
“precisa-se de uma abordagem histórica que trata do contexto específico em que

surgiu e dos contextos em que foi defendido e/ou reafirmado”. (Little, 2002, p.3-4).

Todavia, no atual contexto político de reconhecimento de grupos

quilombolas, tem-se uma conjuntura complexa, onde o território - e suas múltiplas

mediações - é balizado por uma seqüência de eventos e agentes. Há um longo

processo envolvido entre o reconhecimento enquanto "remanescente de quilombo" e

o título coletivo de propriedade concedido em nome da associação quilombola. O

eixo da presente tese focará na premissa de apreensão de um território que nem

sempre é imediatamente visível ao "leitor desavisado" (a olho nu). Do ponto de vista

dos operadores administrativos, existe uma noção de território que, apesar de

baseada na leitura antropológica através dos relatórios de identificação e

delimitação, precisa fixar limites físicos; o território apresenta-se em sua "versão

geométrica", como uma “dobra”:

O território da comunidade é um espaço de vivência, no qual muitas


das imagens dos antepassados são evocadas constituindo o tecido
de sociabilidades que é o território. Os lugares de casas antigas,
salões de dança, plantações, marcos, taperas, locais de trabalho,
são também perspectivas que, em contágio com os conceitos da
antropologia, desdobram o espaço como um texto, o texto inscrito
nos corpos quilombolas como um território. Nessa lógica do sentido,
o laudo é a dobra do território (Ramos, 2009).

Esta dobra do laudo/relatório é resultado e resultante de movimentos

diversos. Seja porque os processos posteriores (pós-produção do relatório/laudo) de

negociação com os demais agentes do Estado precisaram produzir uma

demarcação exclusiva de certos elementos ou, seja porque, de forma bastante


39
simples, o excedente simbólico da “vida nativa” não é apreensível em um mapa,

temos sempre a produção de um relato que simplifica em maior ou menor grau a

vida nativa. Nesta tradução da vivência nativa na categoria de um “povo” dotado de

uma especificidade não há uma transmutação imediata de elementos; a tradução

exige um processo que se demonstra sempre redutivo.

O “mapa quilombola” apresentado no relatório técnico aos operadores

administrativos que tem a função de produzir uma precisa delimitação de uma área

física é profundamente inspirado em aspectos fundamentais da vida simbólica dos

grupos estudados. Não se trata de pensar o mapa como não representativo das

aspirações territoriais quilombolas; ele é, contudo, incompleto fruto de diferentes

processos de recorte que invadem o processo técnico e político de constituição do

laudo/relatório. As técnicas de controle operadas no curso do diálogo entre as

categorias “de cima” e as categorias quilombolas, pode fazer transparecer uma

unicidade onde, de fato, há uma fragmentação relativa. Apontar para os processos

que constituem a complexidade dos enlaces territoriais, evocando os seus

movimentos dinâmicos e repletos de níveis, revela uma importante possibilidade de

não exotização e encaixe exagerado em categorias pré-arranjadas. Trata-se de

entender o território não aparece apenas como um local da identidade, mas também

enquanto um local de “embate da identidade”, o problema amplia-se para além da

diversidade dos grupos, nos colocando frente a um processo de construção dessa

diversidade “na prática”.

Pretende-se, aqui, focar na dimensão de territórios repletos de historicidade,

que dialogam com camadas históricas específicas, apesar de não dialogarem com a

"lógica do papel" ou da escritura cartorial. Este território, apresentado no relatório

técnico, e que serve como referência fundamental aos operadores administrativos, é


40
no fundo uma "dobra" daquilo que é possível ser apreendido pela visão nativa

acerca de suas histórias. Interessa, nesse sentido, lançar o olhar a estes aspectos

velados e subversivos do território que conferem um sentido ao mesmo de forma

mais ou menos independente aos processos de “recorte” do território, exigidos pelas

dinâmicas administrativas. Cabe retornar aos sentidos do espaço que remetem a

camadas de histórias vivas dos grupos.

1.3 Escalas do reconhecimento social.

Chagas (2005) problematiza o contato entre o “mundo do direito” com a

complexa dinâmica de busca por direitos pelas comunidades quilombolas. A questão

aqui seria sobre o “interesse”, por parte destes agentes, acerca das complexas

tramas míticas e históricas que por vezes compõem os modelos de sobrevivência

simbólica destes grupos, criando “imagens subversivas” do passado que não são

obviamente traduzíveis ao universo dos operadores. Em que medida as leituras

nativas, repletas de tramas cifradas sobre o passado, podem ser interpretadas pelas

lentes jurídicas?

Existem versões de justiça que talvez não sejam tão óbvias a um leitor

desavisado. Locais antigos, narrativas, opiniões sobre eventos passados e situações

mais ou menos recentes vivenciadas junto aos setores públicos, podem servir de

estopim para a (re)elaboração de narrativas sobre o justo ou o não justo. Não se

trata apenas de mostrar ao Estado que o pleito é justo. Obviamente, a relação com o

Estado é fundamental e se apresenta, inclusive, por diferentes vias, enquanto um

dos possibilitadores da presente discussão. Porém, faz-se necessário ressaltar, as

41
noções de justiça presentes no campo não parecem se construir apenas na busca

de um reconhecimento que deve ser processado por parte do Estado. As

possibilidades neste sentido são bastante variadas e acabam por produzir uma

construção intersubjetiva que coloca os próprios sujeitos em processos de releituras

e reelaborações identitárias. A relação com o Estado aqui é vista como uma

possibilidade intercultural que compõe um dos níveis do reconhecimento social

(Honneth, 2003).

Entende-se aqui os processos de reconhecimentos sociais como compostos

por níveis e camadas. O foco recai sobre esquemas de reconhecimento sociais que

respeitam certas “ordens do vivido”. Temos diferentes níveis de reconhecimentos

mútuos que procuram apreender as relações construídas entre pequisador-

pesquisado, Estado-pesquisado e também outras ordens de reconhecimentos que

lidam com “esquemas locais da vida nativa”, onde os quilombolas lutam por

reconhecimento em seus circuitos mais localizados.

O modelo conceitual proposto pelo filósofo Axel Honneth auxilia neste

caminho, já que o autor articula com a inter-relação de diferentes camadas no

campo da luta por reconhecimento: o amor, o direito e a estima. O filósofo

demonstra como esses elementos fazem parte de uma gramática do

reconhecimento entre um “nós” e os “outros”, que ativados por percepções de

situações de desrespeito social articulam uma luta por reconhecimento. Estamos

frente, portanto, a lutas por reconhecimento que possuem uma vocação moral,

fugindo de uma versão utilitarista da ação social:

(...) a fixação da teoria social na dimensão do interesse também


acaba obstruindo o olhar para o significado social dos sentimentos

42
morais, e de maneira tão tenaz que incumbe hoje ao modelo de
conflito baseado na teoria do reconhecimento, além da função de
complementação, também a tarefa de uma correlação possível:
mesmo aquilo que, na qualidade de interesse coletivo, vem a guiar a
ação num conflito não precisa representar nada de último e
originário, senão que já pode ter se constituído num horizonte de
experiências morais, em que estão inseridas pretensões normativas
de reconhecimento e respeito – esse é o caso, por exemplo, em toda
parte onde a estima social de uma pessoa ou de um grupo está
correlacionada de modo tão unívoco com a medida de seu poder de
dispor de determinados bens que só a sua aquisição pode conduzir
ao reconhecimento correspondente (Honneth, 2003, p.261-262).

Com relação aos universos de pesquisa (re)visitados na presente tese, este

esquema analítico se apresenta de extrema valia por uma série de motivos. A

preocupação fundamental aqui não está em avaliar o alcance do reconhecimento de

comunidades minoritárias pelo Estado brasileiro, somente. Temos um desvelar da

vida cotidiana desses grupos que se atualizam através de relações identitárias onde

as situações de desrespeito estão colocadas. A relação com os movimentos sociais

(o movimento social negro, por exemplo), que em determinados momentos do

percurso dos quilombos possuem uma atuação enfática na mediação com o aparato

administrativo, também faz parte desses processos de atualização identitária destes

grupos sociais.

Na relação produzida com o Estado caminha-se para outros rumos do

reconhecimento que, de maneira mais ou menos conflitiva, atualizam os esquemas

de reconhecimento através de uma nova gramática. Não se argumenta sobre uma

relação de causalidade entre estes diferentes níveis do reconhecimento, como se

fosse necessário que os grupos percorressem certas “etapas”. No entanto, a

43
apreensão de determinadas escalas do reconhecimento auxilia no entendimento da

complexa teia que é constituída de possibilidades no que tange ao reconhecimento

de ordem moral produzido também no âmbito das microrrelações. Estas, contudo,

podem ou não produzir um encadeamento de fatos da vida social que faça com que

experiências isoladas procurem respaldo num enquadramento ético de maior

superfície – o Estado por exemplo (Honneth, 2003). O sentimento de desrespeito,

contudo, conforme demonstra Honneth, apresenta-se enquanto um elemento

potencial para que essa percepção individualizada se incorpore em um ordenamento

comunal. É necessária a construção de uma ponte semântica entre o individual e o

coletivo:

Por fim, a alternativa entre finalidades pessoais e impessoais


tampouco é inteiramente pertinente em relação a uma luta assim
entendida, visto que em principio esta só pode ser determinada por
idéias e exigências gerais, em que os diversos atores vêem
positivamente superadas suas experiências individuais de
desrespeito; entre as finalidades impessoais de um movimento social
e as experiências privadas que seus membros têm da lesão, deve
haver uma ponte semântica que pelo menos seja tão resistente que
permita a constituição de uma identidade coletiva (Honneth, 2003, p.
257-258).

O reconhecimento social não dialoga com aspirações estritamente colocadas

no âmbito das relações com os canais públicos, apesar de fortemente relacionados

com eles, nos contextos de demandas políticas. O reconhecimento por parte do

Estado, por exemplo, pode derivar em reconhecimentos de ordem local, onde o

reconhecimento por parte de um “antigo vizinho” acaba tomando um peso

44
importante nos esquemas da vida local. Reconhecimento, contudo, como se

evidenciou durante o trabalho de campo com estes diferentes grupos sociais, não

implica necessariamente em aceitação imediata. Todavia, a possibilidade de

emergência de um sujeito que agora possui uma “voz” e torna-se participante dos

fóruns discursivos demonstra algo do curso de ação dos processos de

reconhecimentos identitários.

Um de seus claros objetivos, através de sua digressão teórica, reside na fuga

das teorias de caráter contratualista (Hobbes, Rosseau e Locke). Neste sentido,

realiza uma operação dialética com dois autores em especial: o filósofo idealista

alemão Georg F.Hegel e o psicólogo social George H. Mead.

Honneth (2003) demonstra como Hegel, filósofo alemão, aponta para

elementos que perfazem o caminho da teoria do reconhecimento. Hegel já aponta

para a possibilidade de uma tese especulativa onde “a formação do EU prático está

ligada a pressuposição do reconhecimento recíproco entre dois sujeitos: só quando

dois indivíduos se vêem confirmados em sua autonomia por seu respectivo

defrontante eles podem chegar de maneira completa a uma compreensão de si

mesmos como um EU autonomamente agente e individuado” (Honneth, 2003, p.

119-120). Sua análise, porém, recaiu na relação recíproca entre sujeitos

individuados, não construindo, portanto, uma base empírica desse inter-

reconhecimento de um ponto de vista que tomasse como premissa as relações de

cunho social. O projeto do filósofo e sociólogo alemão Axl Honneth consiste na fuga

do caráter metafísico do reconhecimento encontrado em Hegel; o objetivo é

estabelecer as bases de uma psicologia social empiricamente sustentada. Nesta

direção, encontra respaldo nas reflexões do psicólogo social Georg Herbert Mead, o

qual se debruça na construção de bases empíricas e naturalistas para o


45
entendimento das condições do inter-reconhecimento moral; caminha-se aqui rumo

a uma teoria de substrato sociológico a ser desenhada na teoria do reconhecimento

social de Honneth. A questão aqui é saber se um sentimento subjetivo de

desrespeito pode se conectar com uma “comunidade se sentido moral” onde a

autoestima do indivíduo encontra um tipo de “porto seguro” de base ética que possa

fundamentar seus sentimentos, levando-o a níveis mais altos de reconhecimento.

Porém, conforme pontua (Maia & Garces, 2012), ao refletir sobre os alcances da

teoria do reconhecimento, não devemos pensar este “engajamento comum” das

lutas sociais como algo homogêneo. Existem uma série de mediações que conectam

estas lutas morais no seio destas comunidades que devemos relevar, sob pena de

uma construção estática e redutora dos pleitos coletivos. As lutas por

reconhecimento são definidas em diferentes níveis e escalas de leitura, onde os

sujeitos mobilizam-se e são mobilizados pelo pleito coletivo através dos processos e

tramas sociais.

1.4 Experiência etnográfica e relatórios de quilombos.

Creio que minha inserção em momentos específicos de trabalhos destinados

a políticas públicas que apresentam como foco as populações afro-brasileiras me

levou por reflexões que vão desde a aplicação destas políticas públicas até

questionamentos de ordem mais conceitual, que, de forma inevitável, desembocam

nos caminhos que serão tomados nessa tese. Pretendo fornecer elementos que

possam subsidiar o leitor na busca da linha de ação do presente trabalho.

46
Já em minha dissertação de mestrado, defendida em 2006, pelo mesmo

programa de antropologia social, me vi às voltas com questões relacionadas à

memória coletiva, identidades étnicas e imaginárias sociais de coletividades

gaúchas. O trabalho versou sobre a emergência étnica de grupos que memorializam

a participação negra em evento tido como emblemático no Rio Grande do Sul: a

Revolução Farroupilha. Os atos de evocação dessa memória coletiva negra

apresentaram uma série de conseqüências do ponto de vista das disputas

identitárias, marcando um processo de consolidação de um espaço simbólico negro

no estado. Essas memórias apresentaram uma matriz. Essa matriz é enraizada por

narrativas míticas que tomam como ponto nodal a figura dos combatentes negros

que lutavam sob o comando das tropas farroupilhas: os lanceiros negros. Mas a

questão fundamental, o problema de pesquisa propriamente dito, estava nos efeitos

dessa releitura mítica evocada pela memória. Memória, bem da verdade, entendida

como constituída pelo imaginário social. Já que a estrutura mítica não apresenta

todas as respostas é preciso preencher a memória com algo que promova sentido

às narrativas. Quanto aos efeitos do ato de rememorar, apesar de imprecisos,

poder-se-ia dizer que o ato vem a afetar a forma como o negro é visto e

representado na história gaúcha. Seja pela história oficial, que acaba sendo

“pressionada” por um revigoramento dos “fatos”, seja pela história narrada, que se

vê às voltas com novas versões da vida social que não podem ser negadas. Na

dissertação evidencia-se o modo como ativistas diversos manejam e significam esse

protagonismo, colocando em risco o papel da participação negra na construção da

identidade gaúcha, através da consolidação da figura de um “gaúcho-negro” ou

“negro-gaúcho”.

47
Do ponto de vista da pesquisa etnográfica, o caminho dessa identidade

lançou o desafio de tentar dar um sentido, um eixo, às memórias e práticas sociais

envolvidas em torno dessa mobilização social, já que os agentes responsáveis por

essa ação não se situavam num ponto específico do espaço (ou do tempo). Daí a

dificuldade de lidar com um campo fragmentado – determinado grupo social e/ou

informante poderia situar-se em Porto Alegre/RS ou em Caçapava do Sul/RS. Logo,

a necessidade de dar um sentido às diferentes versões rememoradas, tendo em

vista a perspectiva de um campo etnográfico multissituado e não exatamente

caracterizado pelo famoso modelo Malinowskiano de um trabalho de campo “full-

time”. Esta característica metodológica apresentada no trabalho acima comentado

torna-se, nesse momento, extremamente importante de ser levada em consideração,

já que a presente tese propõe-se a adotar estratégias e leituras tomando o trabalho

de campo como composto de uma diversidade de grupos e localidades. Não

pretendo, na presente tese, focar em uma ou outra comunidade, ou até mesmo

estabelecer uma relação diretamente comparativa entre elas; de fato, o interesse

reside na apreensão sobre o que diferentes casos e situações podem contribuir e

desvelar a respeito de novos prismas sobre o fenômeno da territorialidade e das

identidades, seja através da “janela” do mito, da memória ou de qualquer outro

conceito relevante no entendimento da realidade social.

Minha participação junto a pesquisas relacionadas às comunidades

quilombolas remonta ao ano de 2001, quando, sob a coordenação da profª. Dra.

Daisy Macedo de Barcellos, foi conduzido um laudo pericial com fins de

reconhecimento territorial da comunidade quilombola de Morro Alto, situada nos

municípios de Osório e Maquine, no Rio Grande do Sul. Naquele momento, apesar

de minha incipiente participação, pude presenciar o complexo processo de

48
construção de um trabalho etnográfico de muito fôlego, redigido a muitas mãos. E,

creio eu, não poderia ser de outra maneira, devido à complexidade daquele grupo

social dotado de continuidades e descontinuidades simbólicas e territoriais. Sem

dúvida alguma, o laudo de Morro Alto foi realizado em um momento que se firmou

como emblemático na história das comunidades quilombolas do Rio Grande do Sul,

derivando em variados trabalhos acadêmicos com diferentes vocações conceituais.

De qualquer forma, fica bastante claro que o universo de sentidos captados nessa

incursão etnográfica realizada a diversas mãos transbordou o espaço-tempo do

próprio laudo que, em última análise, seria o objetivo mais evidente de todo o

processo.

O mapa, confeccionado ao final do trabalho, traria uma adequação daquilo

que se poderia melhor traduzir do processo de construção etnográfica. Ainda assim,

é algo que gerou e ainda gera discussões a respeito das lideranças, que por vezes

entendem que os limites territoriais estão além daqueles propostos no laudo

antropológico. A questão, contudo, que já naquele momento eu podia reter – sempre

com o olhar na complexidade envolvida no processo político que é a construção de

um laudo – é aquela que coloca o drama de “encaixar” a história de uma

comunidade dentro de um mapa. Ou de realizar um recorte, uma dobra do território

(Ramos, 2009). A procura de uma estabilização territorial mais adequada aos

anseios políticos do grupo e também aos elementos produzidos pelo contato

etnográfico: o mapa transforma-se num “objeto” que, em diferentes sentidos, está

aquém da complexidade etnográfica e, ao mesmo tempo, apresenta-se como um

fato político, uma ferramenta técnica e política.

49
Em 2004, participei do grupo de pesquisa7 encarregado da realização do

laudo antropológico de uma comunidade que se tornaria emblemática no que diz

respeito ao histórico de reconhecimentos de comunidades quilombolas no Rio

Grande do Sul e no Brasil: a Família Silva. A Família Silva tornou-se um caso

bastante emblemático por uma gama de motivos e, entre eles, pelo fato de

constituir-se na primeira comunidade quilombola urbana do país. Isto gerou – e

ainda gera – uma série de questionamentos a respeito da veracidade do pleito que,

segundo seus críticos, seria falso. De uma forma bastante geral, poder-se-ia dizer

que os argumentos giram em torno da noção de impossibilidade de existência de um

quilombo em meio a um dos bairros mais nobres da cidade de Porto Alegre, o bairro

Três Figueiras. Além disso, outro elemento bastante recorrente nos discursos

desconfiados acerca da assunção quilombola da Família Silva é aquele que informa

uma evocação identitária para fins estritamente instrumentais. Nesse sentido, a

identidade quilombola, segundo os críticos, seria uma forma de alcançar recursos

materiais e políticos, estritamente. Haveria uma manipulação consciente da

identidade que acarretaria no acesso aos recursos hoje destinados à pauta

quilombola e que deveriam – ou poderiam - ser acessados pelos meios universais.

Lidamos com enquadramentos contextuais que estão diretamente (no caso

dos relatórios técnicos) e/ou indiretamente (no caso dos trabalhos acadêmicos

acima referidos) relacionados aos contextos políticos e jurídicos acionados

contemporaneamente. Há um predomínio de uma leitura dos dados etnográficos em

um contexto de efervescência política. As leituras que se demonstram desconfiadas

da veracidade das identidades quilombolas percorrem diferentes domínios políticos,

7
A equipe de pesquisa responsável por este trabalho era composta pela antropóloga Ana Paula
Comin de Carvalho, pelo historiador Rodrigo de Azevedo Weimer e por mim, então mestrando em
Antropologia Social pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul.
50
administrativos e acadêmicos. As discussões que envolveram a construção da

Instrução Normativa 49 (que vem regulamentar a questão no âmbito fundiário do

INCRA) apresentaram como tema a possibilidade de se objetivar critérios para a

verificação da identidade quilombola. O objetivo seria a criação de um rigor maior

sobre a pauta, procurando delimitar com maior clareza certos elementos da

identidade quilombola. Esses procedimentos, contudo, estranhos à disciplina

antropológica, procuram gerar uma fixidez a formas complexas que perfazem as

experiências sociais dos grupos estudados. Este rigor parece inatingível no que

tange às experiências sociais e as formas consagradas de análise antropológica,

onde “as regras nem sempre se prestam a ser formalizadas nem ditas, como no

conjunto das ciências humanas ancoradas no método qualitativo” (O’Dwyer, 2010, p.

58).

8
A preocupação com a constituição de uma “área efetivamente ocupada”

baseia-se no receio sobre possíveis impactos negativos que uma área definida

através do contato com os próprios agentes do pleito – quilombolas - poderia gerar

(na definição de áreas indígenas e de trabalhadores sem terra, por exemplo). Esta

“preocupação” deriva da perspectiva fundamental de uma ”atitude interessada”

enquanto desencadeadora do pleito territorial. A cultura aqui cede espaço ao papel

da “natureza humana” que age através de uma atitude autointeressada por bens e

ganhos (O’Dwyer, 2010). Imaginar os territórios quilombolas sendo construídas

através de estratégias autointeressadas aponta para uma redução drástica da

8
Em 2009 o deputado Valdir Colatto, aponta para uma possível atitude interessada envolvida nos
pleitos territoriais quilombolas: “A partir do mecanismo da auto-titulação, que está previsto no
Decreto, qualquer pessoa pode reivindicar as terras que indicar necessárias. Precisamos mudar este
dispositivo para não levar prejuízos aos produtores que possuem terras tituladas e para evitar a ação
de aproveitadores. Por isso vamos mostrar à AGU quais pontos estão sendo desrespeitados”, disse
Colatto. Não somos contra a demarcação das terras, mas precisamos ter critérios claros. Do jeito que
está esse decreto está levando insegurança para o campo, concluiu”.
51
complexidade e variedades de situações encontradas nos trabalhos de campo.

Estabelecer como centro do debate as dinâmicas culturais sobre o território, ao invés

de uma “natureza humana” interessada, pode evitar “um fim trágico ao se imaginar

que a variedade etnográfica não existe, ou decretar, simplesmente, que ela venha a

desaparecer com a definição externa, e não de dentro, do que são as terras

‘efetivamente ocupadas’” (O’Dwyer, 2010, p.60).

A disciplina antropológica é acusada, muitas vezes, de uma impostura

científica que levaria a um alargamento conceitual da categoria “quilombo” que

recairia numa desproporcional recriação de tradições, desrespeitando a história por

negá-la qualquer possibilidade de objetividade:

Somos, ao contrário, obrigados a registrar e a discutir os sentidos


profundos socialmente patológicos da manipulação consciente por
quadros intelectuais da história objetiva das comunidades
trabalhadoras rurais brasileiras afrodescendentes, através de uma
verdadeira “invenção da tradição”. Efetivamente, não eram somente
as autoridades e os estudiosos que precisavam assimilar o novo
significado do termo quilombo.
As comunidades rurais afrodescendentes eram precisamente o
grande objeto da ressignificação do passado. [...] Com isso, se
destrói a história objetiva, escancarando-se o espaço para a
invenção do passado e da tradição. Nos fatos, o passado e a
tradição passam a ser controlados, definidos e inventados segundo a
decisão daqueles que possuem atributos intelectuais, culturais e
políticos para tal (Fiabani, 2007, 8-9).

Cabe notar que a “desconfiança” identitária não ocorre apenas em termos da

possibilidade de atribuição de uma “identidade quilombola” a determinada

comunidade negra. Ela versa, sobretudo, sobre um complexo campo semântico de


52
definições que leva em conta (além da expectativa por determinados estereótipos

esperados) tentativas de definição do conteúdo de um território quilombola: as

categorias são sempre insuficientes e incompletas na apreensão da diversidade. Há

também uma idéia de hipervalorização do étnico vista como algo artificial, seja nos

debates sobre quilombolas - aparece nas objeções (contestações) às teses do

INCRA – ou nas declarações midiáticas veiculadas em jornais e televisão

recentemente. Não há consensos científicos (historiadores ou antropólogos) sobre

como conduzir o trabalho antropológico em uma arena hiperpolitizada. Isso produz a

possibilidade de “revisitar” essas comunidades sob outro enfoque. Procuro retomar

minhas experiências no sentido de produzir um discurso sobre relações raciais fora

das vias “hiperpolitizadas”.

Trata-se de um campo de forças que dialoga fortemente com o staff

acadêmico. Nesse sentido, há uma reverberação constante entre as categorias

produzidas pelos próprios grupos sociais e aquelas produzidas no universo

acadêmico (e são alçadas como parte integrante na legitimidade de noções e falas

autorizadas na arena política). A ampliação das categorias que lançam olhar ao

fenômeno é fundamental no que diz respeito à tentativa constante de não exotização

(Leite, 1999) dos grupos quilombolas no cenário mais amplo. Deve-se que destacar

ainda que a maior parte dos estudos em comunidades quilombolas ocorre no

momento da eclosão da reivindicação étnico-fundiária. Pouco se sabe sobre os

processos de continuidade identitária sofridos por esses grupos étnicos (o “preço

pago” pela auto-atribuição quilombola).

Tem-se, portanto, um cenário contemporâneo que chama o analista a novas

possibilidades do fenômeno étnico no que diz respeito aos territórios quilombolas.

Não se trata, contudo, de uma pasteurização dos momentos políticos vivenciados


53
nesses processos. A idéia é focar o fenômeno através de outra “lente” que tenha o

analista numa outra posição que não necessariamente aquela do momento de

produção de um laudo/tese para fins de reconhecimento fundiário.

No diálogo institucional produzido com tais grupos étnicos, a análise fica

presa a um momento do quadro político: uma fotografia que acaba por cristalizar um

conjunto interpretativo sobre o estado de determinado pleito, algo inerente às

práticas de controle administrativo. Porém, o objeto de tese pretendido procura

destacar o conteúdo processual dos esquemas de reconhecimento étnico. A

autodeterminação (através do ordenamento internacional vigente e suas

conseqüências ao caso brasileiro) constitui-se num ponto fundamental ao “estopim”

dos processos, sendo um avanço do ponto de vista político e epistemológico.

Porém, cabe ainda avaliar as conseqüências e enfretamentos vivenciados pelas

comunidades no seu contato com as categorias acadêmicas, jurídicas e

institucionais.

Creio que a participação nesse processo me colocou frente a questões

extremamente importantes, do ponto de vista epistemológico, metodológico e

político. Não cabe aqui realizar um longo apanhado sobre as teorias da etnicidade

(Streiff-Fenart & Poutignat, 1998; Vermeulen & Govers, 1997). Tendo em vista a

nossa pretendida perspectiva dentro do debate intelectual que se figura, basta dizer

que se toma, como pressuposto epistemológico, uma tentativa de superação de

abordagens meramente instrumentais ou primordialistas. Não se toma nenhuma

dessas perspectivas a priori, pois a perspectiva aqui é que elas não devem ser

entendidas como categorias reveladoras dos processos de etnicidade; são, antes de

tudo, elementos e perspectivas alocadas pelos grupos e atores, contextualmente.

54
Segundo as críticas que conferem uma razão unicamente instrumental aos

pleitos quilombolas, ocorreria uma assunção da identidade quilombola que

carregaria, fundamentalmente, o objetivo de conquistar ganhos decorrentes do fato

identitário. Segundo outras versões, existiria um exagero nos processos quem vem

se desenvolvendo pelo país. O território nacional, segundo os olhares desconfiados,

estaria sendo tomado por reivindicações quilombolas que, não raramente, se

desenrolariam através de critérios demasiadamente “frouxos”. Se meu ponto de

vista, a resposta a essa critica não seria a recaída numa versão estritamente

primordialista da identidade étnica. Gilroy (2001) ajuda a pensar essa superação

entre teorias essencialistas e anti-essencialistas da etnicidade quando mostra que o

ato de “lembrar a escravidão” é moldado pelos diferentes ventos da história sem

deixar, contudo, de apresentar rotas comuns.

As trajetórias sociais do grupo demonstram fluxos históricos resultados de

idas e vindas, territorializações e desterritorializações. Ao contrário de determinada

expectativa – muitas vezes advinda de setores do movimento negro – que colocaria

a Família Silva como resultado da “Colônia Africana” de Porto Alegre, tem-se um

grupo que respeita determinadas características do pós-abolição; grupos que se

fazem e que se desfazem em outros espaços em função das contingências

históricas (Carvalho, 2008).

Igualmente, o grupo já havia, ao longo de sua história, tentado o contato com

o mundo jurídico, com o mundo dos papéis. Mais de uma vez houve tentativas no

sentido do usucapir de parcelas do espaço, sempre sem sucesso. No eclodir do

processo de reconhecimento do grupo quilombola, sempre apareceram proprietários

dispostos a reivindicar aquele espaço, o que tornava a situação sempre delicada e

sujeita a litígio. A questão de fundo que já podia ser colocada naquele momento era
55
a respeito dos regimes de propriedade e suas relevâncias. Ora, o que deveria ser

levado em conta naquele momento seriam possíveis proprietários de origens

cartoriais duvidosas, ou um tipo de propriedade que havia se construído

historicamente, pela construção de laços de reciprocidade com aquele espaço?

Obviamente, não se trata de uma questão de fácil resposta, em nosso sistema

jurídico que toma o espaço enquanto mercadoria. Porém, do ponto de vista desses

sujeitos que emergiam no espaço de reivindicação territorial local, o maior “atestado

escritural” pareciam ser suas próprias histórias, vivências e especificidades com

relação ao seu entorno. Parecia ser uma questão fundamental, dentro de um embate

que parecia focar de sobremaneira na autenticidade de tal grupo social. Sabemos

que o processo de autodefinição em torno de territórios quilombolas é atravessado

por diferentes agentes acadêmicos, estatais, movimentos sociais, entre outros. O

processo de reconhecimento, portanto, mesmo que fortemente ancorado no

processo de auto-atribuição, encontra uma série de “micro-tribunais” (Anjos, 2005)

em seu percurso, sendo facultado às comunidades pleiteantes o “ônus da prova” no

que diz respeito às suas identidades e seus desdobramentos políticos.

Os novos contextos de reivindicação étnica que emergem na atualidade – o

quilombo, neste caso de estudo – são resultantes das possibilidades discursivas

existentes somadas às historicidades de grupos particularizados: é necessário

satisfazer certas exigências para entrar na ordem do discurso (Foucault, 2001). Não

é qualquer espaço etnicamente marcado que tem a possibilidade de “tornar-se” um

quilombo. É preciso um atravessamento de forças sociais específicas para esse

empreendimento. Nesse sentido, entendem-se os atuais pleitos quilombolas

enquanto resultado de atravessamentos discursivos possíveis, e não como algo

construído de forma unilinear pelas “forças” do Estado:

56
Entendo que o processo social de afirmação étnica, referido aos
chamados quilombolas, não se desencadeia necessariamente a
partir da Constituição de 1988, uma vez que ela própria é resultante
de intensas mobilizações, acirrados conflitos e lutas sociais que
impuseram as denominadas terras de preto, mocambos, lugar de
preto e outras designações que consolidaram de certo modo as
diferentes modalidades de territorialização das comunidades
remanescentes de quilombo. Sob esse aspecto, a Constituição
consiste mais no resultado de um processo de conquistas de direitos
e é deste prisma que se pode asseverar que a Constituição de 1988
estabelece uma clivagem na história dos movimentos sociais,
especialmente daqueles baseados em fatores étnicos (Almeida,
2004: 12).

Esse conjunto de inquietações levou, em 2007, à constituição de uma equipe

de pesquisa através do NACI (Núcleo de Antropologia e Cidadania) que “visitou”

uma série de comunidades negras pelo Rio Grande do Sul que não passavam por

um processo de evocação de uma identidade quilombola. O projeto, intitulado “Atlas

das Comunidades Negras” 9, objetivou trazer à luz aspectos que constituem a

historicidade de grupos que apresentam uma diversidade de trajetórias e, por assim

dizer, “estágios” na luta por seus direitos e na própria auto-atribuição como

remanescente de quilombo. Partiu-se da premissa geral de que o Artigo 68 do ADCT

na Constituição Federal brasileira trouxe, sem dúvida, um contexto fundamental de

arranjo dessas identidades. Porém, seria insuficiente explicar a diversidade de

situações tomando-o como único ponto de partida. Lidamos com comunidades que,

até o momento da realização da pesquisa, não se auto-atribuíam enquanto

9
A equipe que constituiu este projeto contou com a presença de Cristian Jobi Salaini, Vera Regina
Rodrigues, Luciana Conceição e Luisa Andrade. O projeto foi financiado pela FAPERGS (Fundação
de Apoio do Rio Grande do Sul) e ocorreu junto ao NACI (Núcleo de Antropologia e Cidadania) da
Universidade Federal do Rio Grande do Sul.
57
quilombolas (embora isso não tenha impedido que fossem nomeadas e arroladas

em listas governamentais e dos movimentos sociais)

A experiência rendeu frutos reflexivos. Dentre eles, pudemos focar na

dimensão existente entre memória e etnicidade, procurando demonstrar como

inúmeras comunidades evidenciavam contextos evocativos que, claro, não

dialogavam com um “enquadramento maior”. Um dos objetivos de nossa apreensão

analítica, portanto, era contemplar os processos complexos construídos entre

etnicidade e memória, fugindo, assim, de um uso simplista de “invenção das

tradições”:

O uso simplista do conceito “invenção das tradições”, aliado a uma


postura realista que supõe a existência de uma “história objetiva” não
só está alheio ao fato de que o termo quilombo foi constantemente
ressemantizado ao longo da história como analisa de forma parcial e
limitada o trabalho antropológico. O fato de as memórias serem
evocadas em contextos específicos e nunca estarem acabadas não
implica numa adaptabilidade e/ou maleabilidade irrestritas. Se a
memória é mobilizada pelos sujeitos, o contrário também é
verdadeiro: elas mobilizam aqueles que recordam. Na articulação
entre etnicidade e memória, pode-se perceber a existência de
situações de desrespeito exemplar que já estão inscritas em um
horizonte moral prévio. Se a apreensão antropológica se traduz,
nesses contextos, como via de acesso e reflexão acerca de espaços
etnicamente marcados, isto não quer dizer que tais comunidades se
transformem em “reféns” dos instrumentos de pesquisa social.
Apesar de compartilharem do mesmo espaço-tempo – aquele da
etnografia – não podemos esperar que os “nativos” atuem como
meros “respondentes” às questões propostas pelo pesquisador
(Salaini & Mello, 2010, p. 47-48).

58
Ao pensar numa relação de adequação entre o idioma étnico vivido por essas

comunidades e o quilombo (mais precisamente os “remanescentes de quilombo”),

na forma como é compreendida pelos universos jurídicos e administrativos, é porque

a metáfora social é possível. Estamos lidando com situações de contato entre

grupos etnicamente marcados com o Estado brasileiro10 e, portanto, um desafio, já

que as categorias “vindas de cima” parecem sempre apresentar uma defasagem

semântica em relação à complexidade das realidades sociais enfrentadas. A

“invenção”, nesse processo comunicativo instaurado, se dá em torno de elementos

simbólicos já presentes em horizonte prévio do grupo que não servem a um tipo de

razão instrumental: o que há é uma relação possível no âmbito da cultura.

Parte-se aqui da noção de cultura talhada pelo antropólogo norte-americano

Roy Wagner, o qual aponta para a dimensão inventiva da cultura. Ele trabalha,

conceitualmente, com a idéia de que a cultura apresenta, de forma paralela, uma

dimensão inventiva e uma dimensão consensual. A primeira só é possível, de fato,

pela existência de certo consenso simbólico que permite, através de uma estrutura

mínima, um tipo de “salto interpretativo” e extensão metafórica (Wagner, 1981).

Porém, não se lida com um tipo de estrutura formal que estaria, a priori, calcada na

linguagem. Estamos às voltas com a idéia de consensos que ganham sentido na

relação signo-signo: são as relações entre os signos que produzem um efeito que

desenha convenções e que, através da ação inventiva, produzem relações

extensivas com base nessas mesmas convenções. Assim, o próprio trabalho do

10
Vale ressaltar que esse contato é atravessado por discursos que trazem diferentes conteúdos
sobre noções acerca da multiculturalidade. O antropólogo Stuart Hall nos traz uma gradiente de
possibilidades ao multiculturalismo, segundo a estratégia adotada por determinado Estado Nacional.
Encontramos desde um “multiculturalismo conservador”, onde a questão seria a assimilação dos
diferentes movimentos culturais às tradições da sociedade majoritária, até um tipo de
“multiculturalismo revolucionário”, onde o foco recai exatamente nas estruturas de poder e privilégios
assim como nos movimentos de resistência (Hall, 2003).
59
antropólogo faz parte do domínio da cultura, escapando a qualquer tentativa de

objetificação da mesma. Os sentidos do quilombo são construídos porque a

extensão metafórica é possível.

O esforço, contudo, é evidenciar este “quilombo na prática”. A proposta é

lançar o olhar rumo à existência de uma relação dialética entre o conceito em sua

“versão administrativa” e as experiências encontradas no universo empírico. O

alargamento conceitual do quilombo ocorre à medida que novas situações se

apresentam, desafiando o escopo de apreensão do pesquisador e dos demais

agentes envolvidos. Esta relação dialética não prevê, contudo, possibilidades

indefinidas de plasticidade quanto ao alargamento do conceito. Os universos

empíricos possuem os elementos mínimos para a geração desse “estopim” da

identidade, algo que, no decorrer do contato com o grupo, ganha em complexidade e

camadas de sentido.

Boyer (2009) procura problematizar o papel do antropólogo neste campo de

estudos, onde este atuaria, simultaneamente, como um “meio” para a

implementação de políticas públicas, e enquanto uma fonte de novos conhecimentos

científicos. A autora aponta para o fato de, não obstante as inúmeras perspectivas

do campo antropológico com relação ao tema quilombola, o Estado situa-se

enquanto uma base incontornável das discussões teóricas que circundam o tema:

Por isto, não obstante os autores debaterem sobre a definição de


quilombo aceita pelo Estado, as suas discussões se situam no
quadro predefinido das orientações e das categorias adotadas por
este, sem que elas sejam nunca submetidas à análise. Esta tensão
entre programa científico e compromisso militante atravessa, de

60
ponta a ponta, a literatura – ainda que em graus diversos e segundo
configurações variáveis (Boyer, 2009, p. 134).

Cabe acrescentar à sua linha argumentativa, porém, que apesar das

definições operatórias dadas pelo Estado funcionarem como um ponto de partida

fundamental discursivo sobre o tema – também construído através de intensos

embates intelectuais, políticos e militantes –, tem-se um acúmulo de experiências

com as comunidades quilombolas que acabaram por gerar uma série de

possibilidades interpretativas e políticas que estão apenas relativamente conectadas

ao Estado. Se o Estado se apresenta enquanto dado gerativo de demandas, suas

categorias ainda sofrem o impacto das experiências concretas que produzem um

tipo de excedente de significados com relação ao “código estatal”. Em decorrência

disto temos um tipo de “jurisprudência quilombola” que vai se modelando de forma

mais ou menos dependente do Estado.

A autora chega a realizar uma crítica mais contundente à atuação dos

antropólogos no que diz respeito às práticas classificatórias da pauta quilombola. Ela

questiona se os antropólogos, “tão entregues a seu desejo de fazer o bem”, não

estariam adaptando o discurso das pessoas às categorias administrativas para

“melhor apresentar o seu dossiê”. Teríamos aqui trabalhos guiados, a priori, por um

tipo de “certeza da diferença quilombola” (Boyer, 2011, p.13).

Ora, os constrangimentos que balizam as interpretações dos


antropólogos levam-nos, a maior parte das vezes, a restituir « uma
imagem extremamente simplificada e rasa do mundo [e não] a
experiência pessoal e social das realidades dos outros. Pois, falar de
“povo quilombola”, de “povoado quilombola” ou de “candidato

61
quilombola” reforça a idéia de um ser coletivo genérico cuja
representação integra amplamente as “antigas” qualidades atribuídas
ao Negro: a dança, o gosto pela festa e a música (Boyer, 2011, p.13).

Nesse sentido, as relações etno-raciais percebidas como processos em

contínua ressemantização expressam a imbricação entre a dinâmica da realidade

social e a formulação de novos enquadramentos teóricos. Pensando no contexto

latino-americano, esse viés processual dialoga com a visão de fluxo de culturas e

estratégias sociais entre comunidades indígenas e negras no Brasil e na Colômbia,

proposta por Arruti (2002) na sua análise sobre direitos etno-raciais, culturais e

fundiários. Essa perspectiva parece alinhada ao que nos traz Sansone (2004) em

relação à identidade étnica como fenômeno que não deve ser essencializado, mas

concebido como um processo afetado pela história e pelas circunstâncias

contemporâneas e tanto pela dinâmica local quanto global.

Lida-se aqui com uma conjuntura contrária a uma lógica estática nas relações

etno-raciais que se apresenta como uma densa apreensão conceitual da

terminologia construída para designar genericamente os territórios negros. Se,

inicialmente, tanto o campo político quanto o acadêmico lidam com noções pré-

concebidas de quilombos e palenques como reminiscências históricas do período

escravocrata, ao melhor estilo dos Estudos Africanistas na busca pela essência

africana nas manifestações culturais e religiosas do negro brasileiro, logo, a

inconsistência e os limites contidos nessas apreensões do social levam à

ressignificação e à ampliação do conceito.

Isto me leva ao diálogo com o filósofo alemão Axel Honneth, que atenta para

o conteúdo de ordem moral das demandas identitárias, o acesso à distribuição de

62
recursos pela via do reconhecimento à diferença. Nesta linha, a questão relativa ao

“ser” ou “não ser” quilombola, ou se a demanda atende estritamente ou não a fins

instrumentais, ficaria esvaziada. A questão relevante, a meu ver, reside no fato das

memórias, narrativas e fatos da vida local evocarem noções de justiça que

indicavam o caminho de uma demanda possível. O problema residia e, em certa

medida ainda reside, em estar pronto para a “bateria de testes da identidade”

imposta, e o princípio defensivo desses processos sempre foram, em grande

medida, os próprios elementos constitutivos da territorialidade.

Em 2006 tive a oportunidade de participar, junto com uma equipe de

pesquisadores11 do NACI (Núcleo de Antropologia e Cidadania) de um processo de

construção de relatórios técnicos com a finalidade de reconhecimento de três

comunidades quilombolas – e seus respectivos territórios – no estado do Rio Grande

do Sul12. Mais especificamente, trabalhei, enquanto antropólogo, junto à comunidade

quilombola conhecida como “Vila Mormaça”, na cidade de Sertão, interior do Rio

Grande do Sul. A entrada de nossa equipe na constituição desse relatório técnico se

deu num contexto bastante delicado. Enquanto as duas outras comunidades

estudadas no convênio realizado com o INCRA estreavam na fase de construção de

peças periciais com fins de reconhecimento territorial, o mesmo não era verdadeiro

no caso do Quilombo da Mormaça. Em 2001, foram realizados, em parceria com a

STCAS (Secretaria do Trabalho, Cidadania e Assistência Social) e a UFRGS três

laudos antropológicos As comunidades alvo foram Morro Alto (Osório Maquine), São

11
A equipe de pesquisa foi composta por mim, Cintia Beatriz Muller (antropóloga), Sherol dos Santos
(historiadora), Marcia Muller (geógrafa) e Ciane Fochesatto (geógrafa). Os três relatórios técnicos que
foram realizados sob este convênio foram coordenados pela professora Dra. Denise Fagundes
Jardim.
12
Durante o ano de 2006, através de um convênio firmado entre a UFRGS (Universidade Federal do
Rio Grande do Sul, INCRA (Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária) e FAURGS, foram
realizados os relatórios técnicos de três comunidades no Rio Grande do Sul: Comunidade Quilombola
da Mormaça (Sertão/RS), Comunidade Quilombola Luiz Guaranha (Porto Alegre/RS) e Comunidade
Quilombola Chácara das Rosas (Canoas/RS).
63
Miguel e Martiminianos, Vila Mormaça e Arvinha (estas duas últimas localizadas no

município de Sertão). Nesse momento, a produção pericial ainda não era mediada

pela atual conjuntura jurídica vigente – como o decreto 4.887/03 – e o processo não

era competência do INCRA. A questão é que, do processo de constituição desse

primeiro laudo realizado no quilombo da Vila Mormaça, resultaram dois outros

diferentes que apontavam duas áreas de valores significativamente distintos.

Enquanto uma das áreas totalizava 78 hectares, a outra fora avaliada em 1472

hectares. Uma pergunta bastante óbvia, que se colocava à minha frente, nesse

momento inicial de pesquisa junto a essa comunidade, era o porquê de áreas

quantitativamente e qualitativamente tão discrepantes. Foi nesse contexto que o

nosso trabalhou iniciou no Quilombo da Mormaça, na condição de construção de um

relatório complementar que, já dentro do atual ordenamento jurídico existente com

relação à pauta quilombola, pudesse constituir um tipo de “tira-teima”; um novo

fundamento técnico que pudesse dar continuidade aos andamentos do RTID

(Relatório Técnico de Identificação e Delimitação) de tal comunidade.

A comunidade, que já se encontrava fragilizada em função das pressões

locais e da morosidade do processo de reconhecimento territorial, agora se

encontrava numa outra etapa de construção de sua história: a elaboração de um

relatório complementar sobre o qual era depositada a expectativa de “bater o

martelo” sobre a divergência ocorrida nos anteriores.

Mas, afinal, qual seria o motivo da diferença contida nos dois laudos

apresentados? Seria, obviamente, bastante pretensioso procurar apontar um motivo

para a questão. Sem dúvida, num contexto tão recheado de forças e visões sobre o

que poderia ser ou não um quilombo, ou ainda, sobre como deveria ser definido um

território, é possível imaginar que diferentes resultados interpretativos sejam


64
possíveis a um processo de construção pericial, dependendo das janelas

interpretativas empregadas – os conceitos. Com relação às questões de fundo que

procuro desenhar na presente tese, cabe destacar essa relação fundamental

existente entre o mundo dos conceitos e os sujeitos de “carne e osso”. Os

conceitos, num contexto de produção pericial, são evidentemente políticos. Sem

dúvida, não há nunca de se dissociar o caráter político do emprego de conceitos,

porém, num contexto muito nitidamente cruzado de diferentes forças, essa relação

torna-se bastante evidente. Afinal, seria possível construir um programa

metodológico-conceitual que dê conta, na maioria dos casos, da construção

“laudatória” de um determinado território quilombola? Quais seriam as “lentes” mais

apropriadas à leitura interpretativa desses processos que colocam o antropólogo

numa certa condição de validador científico do território?

Ao “chegar ao quilombo”, a experiência do pesquisador percebe que o pleito,

configurado pelas ações afirmativas, é algo restrito de uma experiência mais vasta

de resistência e vida comunitária e que, além disso, há enormes variações regionais

sobre a relação de dependência e subordinação com o entorno. Mas não há uma

priorização sobre como os sujeitos refletem sobre essas relações que são

identificadas como de "dependência" e subordinação pelos pesquisadores.

No caso específico de “relatórios sócio-histórico-antropológicos” o problema

de pesquisa gira em torno da argumentação sobre a conjugação entre identidades

negras coletivas e identidades quilombolas, segundo legislação vigente. Isto

desemboca num tipo de análise dessas comunidades que dialoga diretamente com

noções – oriundas de diversos agentes – sobre a “veracidade” do quilombo. Ainda, a

dimensão física da “área quilombola” estudada, além dos critérios étnicos e de

65
historicidades próprias ao grupo que sirvam enquanto argumentos técnicos passam

a ser o centro das atenções.

Nesse sentido, produz-se um tipo de conhecimento que se encontra

destinado a um universo argumentativo que respeita parâmetros institucionais e

legais específicos (artigo 68 do ADCT da Constituição Federal Brasileira, Decreto

4.887, Instrução normativa 20 do INCRA, etc.). O antropólogo, nesses casos, atua

como mediador entre o “mundo dos nativos” e o “mundo jurídico”, e seu trabalho,

não raramente, ganha um caráter de “prova” (Carreira, 2005).

Tal tipo de “tradução etnográfica” nem sempre corresponde ao que


se espera dos relatórios antropológicos pelas instâncias
consideradas de avaliação e defesa dos interesses da administração
pública. Assim, novos desafios se colocam ao trabalho do
antropólogo em condição de produção de laudos e relatórios sobre
terras de quilombos e na atuação da ABA com novos atores
institucionais. Destacam-se aqui a ação da AGU, que normatiza os
relatórios antropológicos segundo critérios estranhos à disciplina, e
também do GSI, como instância de avaliação desses mesmos
relatórios (...) (O’Dwyer, 2010, p.15-16).

Entre tantas vozes, o antropólogo ocupa certa posição de prestígio. Uma

razão: trata-se de um profissional de culturas e alteridades; a princípio, dentro do

campo da ciência, nenhum outro ator é capaz de delimitar e interpretar dados

culturais e identitários. Outra razão: quando se trata de realizar laudos para garantir

juridicamente a atribuição de terras a um determinado grupo de remanescentes de

quilombo, sua voz tem um peso superior a dos outros. Trata-se de uma voz

juridicamente constituída. Não obstante, contra as mil e uma maneiras de legitimar a

66
identidade de um grupo e, sobretudo, quando se trata de assegurar a legitimidade

ou a existência de um suposto quilombo, uma voz entre outras aparece como mais

habilitada a emitir respostas: trata-se da voz do historiador. Primeiro, porque seu

objeto é reconhecido: se o quilombo é algo é também algo “do passado”, uma das

maneiras de atestar a sua existência são os documentos históricos. Segundo,

porque seu método é baseado em uma suposição de tangibilidade: os documentos

históricos são concretos e podem ser verificados por quem quer que seja.

Vale ressaltar que o contato do antropólogo com o grupo “em perícia” resume-

se a um quadro específico da vida comunitária e tem o objetivo de “traduzir” as

categorias êmicas ao grupo a todo um universo jurídico e administrativo. Porém, em

certo sentido, o grupo social se vê num tipo de “camisa de força” resultado de um

enquadramento metodológico específico; se o trabalho de campo do antropólogo,

por um lado, contribui ao reconhecimento identitário do grupo, por outro, pode estar

reforçando certas categorias estereotípicas comuns de um processo de exotização.

Porém, a integridade do ofício profissional parece estar resguardada na

possibilidade de se levar até as últimas conseqüências as premissas antropológicas

para dentro do trabalho técnico (Anjos, 2005). Se o laudo é ou não um “produto

científico” parece ser uma falsa questão. O que importa – e o que define – tanto os

trabalhos acadêmicos como aqueles de natureza técnica é a atividade de campo

enquanto definidor do fazer antropológico: a busca pelas evidências etnográficas. O

que se pode aprender da construção de laudos parece ser uma questão relevante

(O´Dwyer, 2005).

Em 2007, eu teria uma experiência que seria fundamental em meu

aprendizado de pesquisa junto às comunidades quilombolas e às suas formas de

67
expressão territorial. Trabalhei, enquanto antropólogo, na confecção do relatório

técnico da comunidade quilombola Rincão dos Negros, localizada no município de

Rio Pardo, no Rio Grande do Sul. Quando iniciei minha inserção nessa comunidade,

juntamente como equipe técnica responsável13, tive uma impressão bastante

imprecisa e, confesso, um tanto quanto pessimista com relação ao futuro do

andamento do trabalho que estava sendo por nós dirigido naquele momento. O

contexto de produção deste relatório dialogou com a Instrução Normativa de número

2014. Apesar de os impactos da tendência à objetivação do relatório técnico não

terem sido tão drásticos como em outros casos (a instrução normativa 57 e os

relatórios de Sergipe, como veremos adianta), o diálogo entre o campo

administrativo – pronto a capturar a complexidade – e as experiências de campo

apresentaram situações de características disjuntivas.

A sensação que tive, ao realizar os primeiros contatos com os moradores do

Rincão dos Negros, foi de uma comunidade pouco articulada politicamente em torno

do pleito que ali se desenvolvia. Além disso, outro elemento que gerou preocupação

entre os membros da nossa equipe de pesquisa era a aparente falta de informantes

que pudessem nos auxiliar no processo de pesquisa. Isto porque a densidade de

ocupação da comunidade quilombola era realmente muito reduzida, além de

ocuparem pontos bastante esparsos do espaço que então estávamos tentando

conhecer. A “pista” mais evidente de pesquisa – e que já indicava algo sobre o

território – era a coexistência de duas igrejas de qualidades distintas, situadas uma

ao lado da outra: a igreja dos pretos e a igreja dos brancos. Essa coexistência já

13
A equipe de pesquisa era composta por mim, na condição de antropólogo, pela antropóloga
Mariana Balen Fernandes e pelo historiador Alejandro Gimenez.
14
Em http://www.incra.gov.br/index.php/institucionall/legislacao--
/atosinternos/instrucoes/category/31-instrucoes-normativas

68
parecia transparecer algo sobre as forças concorrentes e, como saberíamos depois,

relativamente complementares que ali se colocavam. Porém, de um ponto de vista

mais panorâmico, tínhamos um território quilombola que estaria com seu acesso

dificultado, pelo menos no que dizia respeito a elementos evidentes de uma

territorialidade. Seria preciso ir um pouco além, um pouco mais fundo, tentando

estabelecer ligações entre as aparentes fraturas que pareciam se apresentar sobre a

territorialidade negra da região.

Realmente, restavam pequenos “núcleos negros” na região, e foi-se

chegando a eles através das indicações locais. O que ocorria, com bastante

freqüência, ao se iniciar as conversas com as pessoas desses locais, era a

produção de ações narrativas do passado que, de forma bastante intensa, pareciam

privilegiar a presença de protagonistas. Esses protagonistas, porém, do ponto de

vista da evocação da memória, se colocavam em camadas distintas. Jacinta Souza

foi aquela que através de um testamento deixou suas terras aos seus escravos. Daí

a construção da “igreja dos pretos”, algo que ocorreu através do trabalho

empreendido pelos seus escravos. O que importa, nesse momento, é falar da alta

apropriação semântica, realizada no seio do grupo, da figura de Jacinta Souza, que

acaba sendo metaforizada através da referência de princesa Isabel. Ou seja,

tratava-se da boa senhora, daquela que fez a boa ação de deixar suas terras aos

negros, criando um início à história negra da região. Como veremos adiante, a

memória em torno dessa figura acaba realizando a conexão de partes

aparentemente dispersas, criando certa unidade em torno do espaço, através do ato

de lembrá-la. Outras figuras de ordem mítico-territorial também apresentam peso

fundamental na história do grupo, mesmo que apresentem um ou outro tipo de

modelo de evocação de memória. O famoso Mantoca, comparado por alguns da

69
comunidade à figura de Zumbi dos Palmares, é exemplo disso. Por representar

dramas coletivos relacionados aos processos de expropriação negra da região, faz

parte dos segredos e das estratégias do grupo de esquecimento.

Outro elemento fortemente presente na memória do grupo e que parecia

revelar um “mapa mental coletivo” da territorialidade negra da região estava contida

na noção local que informava que “onde tem uma taquareira, tinha uma casa de

preto”. Essa noção era de tal forma útil que acabou se tornando um tipo de recurso

metodológico na construção de mapas preliminares; a “planta baixa” do território

negro poderia ser visualizada, em grande medida, pelo recorte gráfico realizado

pelas taquareiras. Logo, tínhamos uma territorialidade muito evidente que, através

da ação narrativa, tornou-se mais viva do que nunca. Apesar de, num primeiro

momento, esse dado nos parecer distante, ou, pelo menos “mascarado”, era muito

evidente a existência relativamente nítida desse território que cada vez mais se

consolidava pela recorrência narrativa; ao contrário do que minhas impressões

iniciais pareciam apontar, o território estava vivo e nítido e esse fato era então

passível de demonstração. E vias de acesso a essa demonstração que

evidenciavam o processo de etnicidade do grupo apresentavam enquanto princípios

fundamentais a memória e a mitologia do grupo.

70
Fotografia 1 – Conceição da Bela Cruz e Igreja de Nossa Senhora da Conceição.

Fonte: Cristian Jobi Salaini

No mesmo ano de 2007, iniciei minha participação15, enquanto antropólogo,

na elaboração do relatório técnico da comunidade quilombola dos Alpes, na cidade

de Porto Alegre. Esta comunidade, que se encontra no bairro Grutinha de Porto

Alegre, ocupa uma localização geográfica que a coloca numa situação de difícil

acesso, algo que nos remete ao início da trajetória desse grupo social, que ocorre

mais de 100 anos atrás. O grupo compartilha a noção de que o seu território

15
Esta equipe foi composta por Cristian Jobi Salaini (antropólogo), Sherol dos Santos (historiadora),
Lucimar dos Santos Vieira (geógrafa) e Leonardo Rafael dos Santos (sociólogo) e Ieda Ramos. Este
trabalho foi realizado através de uma parceria entre o INCRA e o LABORS (Laboratório de
Observação Social) da UFRGS.
71
funcionava como um local de fuga e isso tem relação direta com o seu principal mito

de fundação: a Dona Edwirges. Dona Edwirges, segundo os relatos (veremos isso

com mais detalhes no decorrer dessa tese), teria chegado “fugida” no território hoje

ocupado pela comunidade, e ali iniciou um processo de territorialização que se

estende até os dias de hoje. O que gostaria de ressaltar nesse momento, e que

apresenta relação direta com as aspirações da presente tese, é que sua figura ecoa

do passado, tornando-se local não contornável quando procuramos delinear algo da

identidade do grupo. As narrativas em torno dessa figura emblemática são evocadas

no sentido do estabelecimento de uma memória coletiva e de vínculos com o

espaço. Dona Edwirges confunde-se com o território do quilombo dos Alpes.

A forma como o território é representado e vivido por elementos de ordem

mítica nos coloca questões bastante semelhantes àquelas acima relatadas em

relação ao quilombo do Rincão dos Negros. Existe um registro sobre o espaço que

produz um tipo de “arquivo sócio-mental” que é gerenciado pela comunidade. A

forma como elementos da mitologia afro-religiosa são alocados pelo espaço são

exemplos disso, não se tratando, necessariamente, de um substancialismo afro-

religioso. Interessa-nos, aqui, o papel que essa mitologia tem na produção de valor

significativo à historicidade do grupo social. Novamente, as contingências atuais,

como as inúmeras ameaças sofridas pelo grupo (especulação imobiliária, por

exemplo), não conseguiram arrefecer o sentido territorial calcado na memória e na

mitologia do grupo. Um “viajante desavisado”, ao trafegar pelo quilombo, não pode

imaginar o longo sentido histórico que se encrava no território quilombola e que faz,

até os dias atuais, parte das categorias do grupo. Mas nesta busca acerca das

“camadas perceptivas” do grupo devemos ponderar que nem todos os participantes

compartilham da mesma maneira da memória, nos colocando desafios

72
epistemológicos no que concerne à construção de uma memória coletiva. É neste

sentido que entendemos a memória enquanto uma prática – uma ação – que

introduz um fórum de discussões acerca dos juízos, valores e esquemas locais. A

memória versa sobre um tipo de “saber-fazer” que ensina aos quilombolas os

elementos do grupo que devem ser “mais lembrados”.

Nesse sentido, a tradução dos aspectos identitários dos grupos não devem se

resumir a um tipo de “registro historiográfico” (Chagas, 2005), pois ao nível das

“outras sensibilidades” a experiência negra é múltipla, multifacetada e por vezes se

utiliza de um registro histórico mitológico, e essa alteridade parece non sense aos

operadores estatais. Recentemente, durante o processo de demarcação dessa

comunidade quilombola, que é realizada através de profissionais topógrafos do

INCRA (e que se encontra ainda em desenvolvimento), houve uma discussão sobre

a pertinência de inclusão de um dos espaços tidos como fundamentais à mitologia

territorial do grupo: a “pedreira do Xangô”.

Obviamente, a autarquia, no desenvolvimento de suas funções, apresenta

preocupações que dizem respeito aos processos que envolvem desapropriações e,

por conseqüência, às decorrentes negociações com os atuais proprietários. De

qualquer forma, o que se coloca aqui é um diálogo entre partes que nem sempre se

atualizam frente aos mesmos códigos. É bem verdade que uma camada do discurso

antropológico permeou etapas ou esferas do campo administrativo e jurídico. Mas

ainda me parece que devemos focar na forma como esses diálogos são promovidos

(linguagens nativas e linguagens institucionais), pois estamos frente a um campo

repleto de perplexidades; temos uma noção de justiça, oriunda dos setores do

Estado, que procura se relacionar com “justiças locais”, que representam um caráter

eminentemente plural e nem sempre automaticamente apreensível pelos


73
operadores. Nesse sentido, alinha-se aqui com a perspectiva proposta por Chagas

(2005), no que diz respeito a essa relação entre as realidades mítico-históricas e

outros campos de saberes, em sua pesquisa de campo na comunidade quilombola

do Morro Alto, no Rio Grande do Sul:

E as minhas lentes? Com que dimensão o campo se apresentava


aos meus olhos? Passados tantos anos dessa conversa ainda posso
recordar o quanto aquela figuração de recusa do neguinho d´água à
tentativa “civilizacional/colonial”, que nesta narrativa era
“representada” pelo “tratamento” dispensado ao mesmo, me instigou
a pensar sobre os “conteúdos” que aquele texto carregava
metaforicamente sobre suas histórias. Especialmente me ajudou a
visualizar o “tom” da empreitada que tais pesquisas envolvem, e
posicionar as diferentes maneiras de recordar o passado para além
dos modos que estariam a supor as “lentes jurídicas”.
A perspectiva jurídica se interessaria em acolher a profundidade do
imaginário expressivo das “leituras” mítico-históricas? Como a revelar
uma insuficiência dos recursos analíticos que indagavam sob o
estrito foco na procura de origens de negros fugidos, supunha que a
aproximação aos meandros e indícios que essas narrativas estavam
evocando estaria muito longe do que até então fora plausível pensar
historicamente – ou mesmo juridicamente – sobre as terras de
quilombos (Chagas, 2005, p. 17).

Compete à antropologia colocar em relevo esses aspectos da vida identitária.

Daí a necessidade do retorno ao campo e de “escutar” de forma alargada o percurso

das comunidades e os desdobramentos de suas “políticas territoriais”.

74
Em 2008, em minha experiência na comunidade quilombola do Rincão dos

Caixões16, tive uma experiência etnográfica que mais uma vez corroborou com

minha tese de que a territorialidade não se trata de uma substância. As evocações

ocorridas no percurso do trabalho etnográfico promovem, de forma paulatina, a sua

apreensão. É como se tivéssemos caixas dentro de outras caixas que nos levam a

diferentes níveis e camadas da memória do grupo.

O Rincão dos Caixões encontra-se numa das faixas limítrofes dos municípios

de Jacuizinho e de Tunas, no Rio Grande do Sul. A localização geográfica atual do

grupo é, de forma muito evidente, desfavorecida, pois o grupo vive, hoje, às

margens do Rio Caixões (em afluente do Rio Jacuí) em um terreno bastante

pedregoso e com possibilidades bastante limitadas de plantio. Existe certa

dificuldade de acesso (via automóvel) no local e temos a nítida impressão de

estarmos penetrando no “interior do interior” do município de Jacuizinho. Lembro

que numa das primeiras visitas por mim realizadas a tal comunidade, e que contava

com a presença do historiador Vinícius Oliveira, acabamos nos perdendo naquela

complexa malha de estreitas estradas de chão. Ao pedir informação (com certo

receio) a um sujeito que passava pela estrada, ele nos disse: “Vocês devem estar

atrás dos ´Mariaco´ (trata-se do sobrenome do primeiro marido de Erocilda dos

Santos, matriarca do grupo quilombola) uma comunidade dos moreno, não é?”. A

primeira impressão que tive, e que foi se confirmando ao longo do trabalho de

campo, é que realmente estávamos lidando com uma comunidade reconhecida

como distinta pelo seu entorno. Apesar das resistências ao quilombo, que aparecem

muitas vezes de forma direta ou de forma mais velada, moradores e agentes da

16
A equipe de pesquisa responsável por este relatório foi constituída por Cristian Jobi Salaini
(antropólogo), Vinicius Pereira de Oliveira (historiador) e Luiz Fontoura (geógrafo).
75
administração pública local conheciam tal comunidade; tratavam-se dos “Mariaco”,

dos morenos.

A territorialidade nunca chega a apresentar um recorte perfeito de um mapa.

Obviamente, a memória do grupo não enseja a construção de um mapa, com suas

definições precisas e escalas adequadas. O que ocorre, de fato, é um trabalho que

acaba evocando "ecos" e ressonâncias que indicam lugares, relações com esses

lugares e, o mais importante, noções implícitas de justiça que estão como que

embutidas nas narrativas.

Em 2006, a comunidade do Rincão dos caixões encontrava-se em numa

situação bastante dramática. A expansão do agronegócio local levou as plantações

de soja até as portas das famílias quilombolas, literalmente. Iniciativas do movimento

social negro levaram a questão para a Secretaria de Direitos Humanos do Estado do

Rio Grande do Sul e, em decorrência disso, o Ministério Público do município de

Cruz Alta tomou as devidas providências com relação ao caso, exigindo o

pronunciamento de órgãos do setor público (IBAMA, FEPAM), para que estes

produzissem laudos ambientais sobre a situação da comunidade e de seu entorno.

Em função das conclusões apresentadas nesses laudos, houve a feitura de

um TAC (termo de ajuste de conduta), em que a comunidade e o principal

proprietário lindeiro da comunidade realizavam um tipo de negociação. Resultado

disso foi o estabelecimento de um limite de 350 metros de raio a partir da casa de

Erocilda dos Santos (a matriarca da comunidade), e o acordo de que apenas a partir

do final desse raio seria permitido o plantio da soja.

Passado esse breve contexto inicial, gostaria de trazer o fato de que apesar

da paisagem mais ou menos uníssona provocada pelo efeito da soja, o grupo,

76
através de processos evocativos da memória, se reencontra com porções territoriais

que acabam por traduzir uma "refração" naquele espaço aparentemente tão sem

variações físicas devido ao desenho da soja.

Além disso, há um elemento calcado na mitologia do grupo que parece ter

fundado uma ética daquele espaço. Durante o processo de trabalho etnográfico, eu

tive contato com o homem que realizou doação de parte expressiva de suas terras a

uma mulher que vinha de outro grupo social das proximidades do Rincão dos

Caixões, e o motivo da doação, segundo as narrativas, ocorre através de um

encontro aparentemente aleatório. Porém, esse encontro inaugura uma forma de se

relacionar com o espaço onde a relação com os elementos da natureza ganham o

foco da narrativa, sendo recheadas pelas categorias cosmológicas afro-religiosas.

Assim, esse encontro parece ter privilegiado as condições de afinidades necessárias

para a produção de uma lógica diferenciada do território, que não respeita as lógicas

atuais de expansão do agronegócio e da soja.

De 2009 até final de 2011 tenho trabalhado na constituição de relatórios

técnicos no estado do Sergipe. Os grupos pesquisados localizam-se em municípios

distintos do estado: Quilombo do Pontal da Barra (município de Barra dos

Coqueiros), Caraíbas (município de Canhoba), Ladeiras (município de Japoatã),

Forte (município do Forte). Essas comunidades dialogam com resultados de

processos históricos calcados nos sistemas escravocratas locais, algo que, por si só,

muito contribui no meu aprendizado de como essas relações se deram no Brasil de

uma forma mais ampla.

O contexto técnico e político de construção destes relatórios se traduzia em

um clima desafiador para a equipe de pesquisa. O trabalho, construído no

77
ordenamento da Instrução Normativa 57, apontava, por parte da administração

pública, a necessidade de um trabalho “mais objetivo”. Esta perspectiva aparece de

forma clara na própria instrução normativa e, de forma mais ou menos velada, nas

reuniões de trabalho que buscavam uma orientação “mais prática” do relatório

antropológico. Muitas vezes os questionamentos, neste sentido, residiam na

“veracidade das narrativas” em oposição aos supostos documentos de natureza

comprobatória. O trabalho de campo, no entanto, nos levava para outros rumos.

No caso do Pontal da Barra, retomamos o problema de constituição de um

relatório técnico em meio a um clima de extrema desconfiança social. Os

questionamentos produzidos pelo entorno social, e até mesmo pelas conjunturas

sociais, colocam certos desafios que refletem em alguma medida na construção do

trabalho antropológico. As apreciações externas que duvidam da identidade

quilombola acabam produzindo classificações que transladam entre o “grupo pobre”,

o “grupo do MST” ou até mesmo enquanto um grupo de “caboclos”. A questão de

fundo que se coloca aqui apresenta relação com uma falta de “contrastividade

cultural” (O’Dwyer, 2010) em relação a outros grupos sociais. Cabe notar que o

argumento da “falta de contrastividade” apareceu em desconfianças de parcelas do

próprio setor administrativo – além da comunidade local de uma forma mais geral –

que sempre desembocava na seguinte pergunta: “Afinal, o Pontal da Barra é mesmo

um quilombo?”. Parte da argumentação se fundamentava no fato do grupo não

possuir uma tradição de longa data ou, ainda, de forma específica, eles “mal sabiam

alguma história sobre escravos, o Pontal nunca foi um quilombo”. O discurso acerca

da “pouca contrastividade cultural” apresenta matrizes inclusive no âmbito

acadêmico, dialogando com um “paradigma africano de etnias” (O’Dwyer, 2010):

78
O antropólogo Richard Price se declara chocado com a falta de
tradições orais profundas, como no ‘quilombo’ do Rio das Rãs,
(Bahia) e faz referência a uma vasta gama de continuidades culturais
com outras comunidades rurais brasileiras, o que contrasta com os
exemplos de quilombo que sustentam sua ‘diferença’ em relação a
comunidades não quilombolas como no Suriname. Enfim, esta visão
aponta para pouca contrastividade cultural e ‘continuidade’ no tempo
de quilombos do Brasil. Deste modo, no Suriname é evidente uma
notável ‘diferença’ cultural, social e política até mesmo para o olhar
mais desavisado. Desta perspectiva, poucos dos afro-brasileiros
classificados como “remanescentes de quilombos” seriam vistos
como quilombolas, como é o caso dos Saramaka, Ndyuka e Aulku do
Suriname, Mooretown e Accompong na Jamaica e Palenqueiros de
San Basílio da Colômbia. Tal visão sobre a pouca contrastividade
cultural e continuidade no tempo dos quilombos no Brasil em
contraposição à América Latina, encontra-se referida ao paradigma
africano de etnias (O’Dwyer, 2010, p. 23-24).

A comunidade do Pontal, neste contexto, acaba por produzir uma série de

justificações morais ao seu processo de reconhecimento, que articula passado e

presente através de imagens “fraturadas” do passado, evidenciando um estado

processual da memória. A pesquisa que, em momentos iniciais, era gestionada por

um ethos do silenciamento (Arruti, 2006) perpetrado pelo grupo, começa a ceder

lugar à constituição de uma “técnica de lembrar”. Não apenas a memória per se,

mas a própria ação narrativa passa paulatinamente a transforma-se em prática

social. Histórias, aparentemente muito fragmentadas, apontam, ao longo do trabalho

de campo, para novas conexões e possibilidades interpretativas sobre este grupo

social.

Porém, algo me saltou aos olhos logo nas primeiras visitas realizadas nessas

comunidades e que vai muito ao encontro da argumentação pretendida nessa tese:


79
a mitologia grupal enquanto expressão viva de dimensões territoriais do grupo. As

narrativas a esse respeito são realmente muito recorrentes nessas comunidades e é

realmente muito difícil encontrar alguém que não tenha vivido ou ouvido falar sobre

alguma situação que envolvesse certas forças sobrenaturais – “os encantados” - que

parecem povoar o local juntamente com os humanos. Na comunidade de Ladeiras,

por exemplo, temos o emblemático “negro d´água”.

O negro d´água tem aparição freqüente numa lagoa que leva o seu nome: “a

lagoa do negro d´água”. Esta lagoa localiza-se nas proximidades de uma antiga

casa grande e de um tronco destinado aos castigos empregados aos antigos

escravos que ali habitavam. O negro d´água, segundo as narrativas locais, acaba

envolvendo e levando para o fundo das águas aqueles sujeitos que se aventuram de

forma desmedida pela lagoa. É preciso ter cuidado com o negro d´água, pois ele é

capaz de aparecer de diferentes formas. A mais comum é aquela em que ele se

apresenta como um homem negro que tem a metade inferior de seu corpo na forma

de um peixe. Já foi visto como uma mulher negra de cabelos longos, e outros dizem

que ele pode aparecer transmutado na forma de duas crianças. O que importa é que

o negro d´água – e a lagoa – atuam como uma dimensão expressiva do território

(um tipo de coração do mapa quilombola) que acaba sempre por evocar imagens e

narrativas da escravidão; um ponto de origem que toma como elemento central as

situações do passado vivenciadas pelo grupo naquele espaço ou em outros. Em

diálogo com o cenário administrativo, estas “imagens do sobrenatural” pareciam

menos importantes ou “pouco sérias”, à revelia da frequência com que este

elemento aparecia no campo social quilombola. O elemento sempre enfatizado, do

ponto de vista da construção do relatório técnico, dizia respeito aos “fatos concretos”

passíveis de objetivação no mapa a ser delimitado. Conforme Chagas (2005):

80
Por exemplo, durante o período em que estive fazendo campo foram
muitas as situações sociais, no sentido de tomar a narração como
um evento social, em que pude ouvir histórias, como a do “neguinho
d´água” ou, mais tarde, o “nego que matou o senhor”, de tal modo a
dimensioná-la como expressão oral de uma sensibilidade jurídica do
grupo, de seus sentimentos de justiça que remontam sua relação
com a história da escravidão, e que os une sob uma cosmovisão
compartilhada – uma memória coletiva social – que toma expressão
independentemente das diversas situações jurídicas em que se
encontram as terras, das segmentações que marcam os grupos
domésticos, ramos familiares e parentagens, bem como do uso de
um discurso normativo de âmbito comunitário que não atém a
privilegiar unicamente a relação com a esfera legal estatal (Chagas,
2005, p. 121).

Essa é uma premissa fundamental da presente tese: há elementos coletivos

compartilhados – memórias coletivas e elementos míticos – que tomam expressão

de forma independente de certas contingências do momento. É bem verdade que

existem processos evocativos – que envolvem antropólogos e nativos – que se

encadeiam frente aos pleitos territoriais. Porém, seria um exagero imaginar que os

informantes são meros “respondentes” das questões formuladas pelo pesquisador

(Mello, 2009). Estamos frente a processos de constituição de “micro-justiças”, de

pleitos baseados que encontram suas vocações em determinados aspectos morais

(Honneth, 2003). Minha questão gira em torno da demonstração de que esses

aspectos, calcados no plano do ato narrativo, cristalizam-se no domínio territorial

que é dotado de uma complexidade nem sempre capaz de ser captada em sua

totalidade pelos demais agentes envolvidos.

81
Fotografia 2 – Lagoa do Negro D’Água, na comunidade quilombola de Ladeiras.

Fonte: Cristian Jobi Salaini

Fotografia 3 – Quilombolas desenhando território próximo à Lagoa do Negro D’Água.

Fonte: Cristian Jobi Salaini


82
1.5 A releitura do relatório técnico: novos olhares.

O método em questão na presente pesquisa é antropológico e etnográfico.

Parte-se da premissa metodológica de que esse projeto visa examinar universos

conhecidos durante minha trajetória acadêmica e profissional e reposicionar meu

olhar nesses contextos. Meu contato com diversidades raciais no interior do Rio

Grande do Sul se deu, em grande parte, através de inserção prévia em políticas

públicas específicas, sejam elas na área do patrimônio cultural, sejam elas na área

da regularização fundiária. 17

Entrei em campo como técnico de equipes destinadas à realização de

trabalhos técnicos para o governo. Este fato acarreta em alguns imperativos na

forma de condução dos trabalhos, sejam eles de ordem ética, sejam eles de ordem

metodológica. Nesse sentido, surgiam algumas inquietações sobre o alcance da

observação posicionada desta maneira especifica. Revisitarei, na presente tese,

comunidades e situações por mim conhecidas durante processos de pesquisas

periciais. Tendo em vista a função que os relatórios técnicos ocupam nos atuais

contextos de reivindicações territoriais, cabe retomar certos elementos que nos

ajudem a desvelar territorialidades de grupos pesquisados, contribuindo no

alargamento semântico das categorias que procuram entender o espaço dos

territórios quilombolas.

17
Desenvolvi junto ao NACI (Núcleo de Antropologia e Cidadania) um projeto de pesquisa que
apresenta como foco o “reconhecimento” de comunidades negras que não conflagraram nenhum tipo
de pleito junto às instituições públicas. Esse trabalho vem possibilitando um quadro geral das
experiências negras no estado. Essas relações nem sempre estão encadeadas por processos de
“etnogênese”. Ao contrário, suas complexidades são resultados de cenários locais dotados de
historicidades muito particulares.
83
A questão metodológica fundamental que se coloca diz respeito à constituição

do campo etnográfico da presente tese. Tendo eu participado de diferentes

situações que envolvem comunidades quilombolas no Rio Grande do Sul e, mais

recentemente, no estado do Sergipe, certas “cenas” de pesquisa foram selecionadas

para dar conta do objetivo principal: a demonstração destas relações dialógicas e

criativas entre quilombolas e a arena administrativa. Não se trata apenas de uma

seleção de cenas, mas também de um olhar que tende a reavaliação e

aprofundamento das mesmas. As situações apresentadas nesta tese fazem parte de

um percurso e, portanto, estão colocadas em diferentes pontos das escalas

espaciais e temporais que não se encontram rigidamente condicionadas pelos atos

administrativos ou judiciais, apesar das conexões óbvias.

Existe uma série de situações etnográficas por mim vivenciadas, durante

situações de perícia, que extrapolam em muito os roteiros pré-estabelecidos da

produção de um relatório técnico antropológico. Portanto a busca aqui é de resgatar

o coevalness na forma proposta por Fabian (1983; 2001). Segundo o autor, muitos

antropólogos supõem que seus pesquisados são coevos a eles, pecam, contudo,

pela ausência desse elemento – o coevalness. Metodologicamente, a presente

pesquisa de doutorado pretende resgatar essa dimensão “perdida” por mim devido

às características dos trabalhos de campo (perícias) realizados nesse tema.

Pensando com Mello (2008), em sua experiência etnográfica na comunidade

quilombola de Cambará/RS:

Daí ser necessário tomar cuidado para não situar os ‘nativos’ e, por
decorrência, as narrativas, em um outro tempo que não é o do
antropólogo. Contudo, o fato de antropólogo e ‘nativo’

84
compartilharem o mesmo tempo não significa que manifestem as
mesmas reações em face dele. É por isso que não reduzo as falas
dos homens e mulheres de Cambará às contingências históricas do
momento. Não considero essas narrativas como meras adequações
às perguntas do ouvinte (no caso em pauta, o antropólogo). Há de se
ter cuidado para não transformar o ‘informante’ num ‘respondente’
ou, dito de outra forma, em sujeito passivo da interação, cujas falas
manifestariam tão somente fluxos que o englobam e uma adequação
à curiosidade antropológica (Mello, 2008: 217).

Meu universo de pesquisa, nesta tese, será construído em localidades já

mapeadas e que se apresentam em diferentes etapas dos pleitos. O contato com

pessoas e contextos já conhecidos permite a construção de um universo

diversificado em termos de relações étnico-raciais. Revisitarei comunidades

aparentemente muito distintas em função de suas características gerais: o quilombo

urbano dos Alpes, localizado na cidade de Porto Alegre/RS, e o quilombo Rincão

dos Caixões, localizado na cidade de Jacuizinho/RS, o quilombo Rincão dos Negros,

na cidade de Rio Pardo/RS e algumas comunidades quilombolas de uma recente

experiência de pesquisa que venho tendo contato no estado do Sergipe: Ladeiras,

Caraíbas e Pontal da Barra.

A análise procura ir além de uma lógica comparativa entre grupos ou

situações vivenciadas etnograficamente. Considerando o trabalho de campo como

uma possibilidade de construção de uma comunicação intercultural, o que se

desenvolve a seguir são quadros do trabalho de campo que acabam por levantar

perguntas. Para além das questões imediatas colocadas pelo ofício do trabalho de

ordem pericial, meu objetivo é introduzir novos ângulos e escalas de análise aos

processos vivenciados.

85
Sendo assim, a busca caminha no sentido da possibilidade de comunicação

entre esses diferentes textos culturais. Estão aqui expostas experiências que tomam

como ponto de partida os quadros de reflexão periciais que possuem uma série de

categorias arroladas e que, em princípio, devem ser perseguidas pelo antropólogo.

Mas, na experiência etnográfica, há uma série de jogos de interconhecimento entre

as diferentes posições que são produzidas em campo. Existe um antropólogo que,

por vezes, do ponto de vista identitário, no contato com os “nativos”, se constrói

enquanto a própria figura do Estado. Em outros momentos, o antropólogo que pode

se descolar dessa postura construindo a figura do “pesquisador militante”. Os

pesquisados, de sua parte, produzem as respostas mais adequadas aos contextos

dos jogos identitários. As narrativas construídas, os contextos passíveis de serem

mostrados ao pesquisador, assim como o conteúdo de determinadas formulações,

também fazem parte das derivações possíveis através deste “jogo de espelhos”

identitários que são construídos com relação a um “outro” e, ainda mais, através de

uma presunção do outro – um “outro possível” ou imaginado (Novaes, 1983).

Estar atento às nuances dos contextos do trabalho etnográfico e das

construções narrativas dirige para novos rumos, onde nem os antropólogos são

reféns da escrita pericial, tampouco os informantes são reféns do contexto de

pesquisa. Essa redobrada atenção metodológica, apesar de não necessariamente

original em relação ao ofício etnográfico, precisa ser revisitada no que diz respeito

aos estudos que têm como universo as comunidades quilombolas. Faz-se

necessário repensar novos jogos de escalas e níveis de análise que possam

produzir novas leituras e narrativas acerca desses grupos que não derivem apenas

na clássica distinção entre um “nós” e um “eles”. Apesar de todo o poder explicativo

das categorias dos campos teóricos da etnicidade, devemos ter em contra os

86
“coloridos” da vida social que não estão presos às caixas do relatório técnico. Não

se trata, entretanto, de produzir uma leitura negativa do relatório antropológico. Se,

por um lado, ele produz certo fechamento pelas necessidades conjunturais de

técnicas de controle e classificação, há também a possibilidade de entender o

relatório enquanto uma “janela” que, dependendo do ângulo visual do observador,

pode produzir novas leituras aos acontecimentos da vida nativa.

Portanto, esse “revisitar” que se propõe aqui não tem, claro, aspirações

estritamente geográficas. Não se trata apenas de (re)visitar os grupos pesquisados,

mas (re)visitar episodicamente algumas dessas “janelas”, produzindo um horizonte

de contato e conversação entre elas.

Busca-se a demonstração de construções específicas de justiça que se dão

contextualmente no tempo e no espaço. Estas construções, como pretendo

demonstrar, podem ser pensadas através da percepção de níveis e camadas.

Pleitos políticos são construídos evocando memórias. Ao mesmo tempo, memórias

se reorganizam alavancando pleitos. As relações com o Estado perfazem um nível

importante de reconhecimento público, não se constituindo, porém, como a única

forma de reconhecimento possível, já que existem outras que dialogam mais de

perto com a “vida nativa”. A própria mitologia grupal faz parte destas relações de

reconhecimento localmente percebidas e construídas. Convém estar atento a estes

diferentes níveis e escalas da vida social que atuam através da produção de

continuidades e descontinuidades, sem deixar, contudo, de produzir alguns vasos

comunicantes entre si.

É neste sentido que se deve, sob pena de “pasteurizar” a vida nativa, fugir

das apreensões simplificadas e que compõem um tipo de coerência funcionalista.

87
Deve-se privilegiar as multiplicidades de espaços e tempos que constituem a

descrição etnográfica, assim como as incertezas e contradições do trabalho de

campo. Não ter isto em mente, “limpando” todo o campo das “incoerências”

inerentes ao trabalho etnográfico, articula com uma “leitura chapada” da realidade

social, onde os atores não são mais vistos como constituintes de processos

interculturais, atuando apenas enquanto expressores de categorias escolhidas pelo

analista: “Trata-se de macular a descrição empírica, o quanto possível, com todos os

traços de incerteza, ambigüidade e linhas de fuga experimentadas pelos atores

concretos, em lugar de buscar a descrição mais elegante – limpa, simplificada,

seletiva – que tem na teorização (ou na reificação de uma teoria) seu objetivo

prioritário” (Arruti, 2006, p. 37).

Segundo Bensa (1998), podemos pensar em uma possibilidade de fuga ao

culturalismo antropológico que acaba por produzir uma relação metonímica com o

seu objeto, já que a parte é comprada pelo todo. O objeto, portanto, não seria

construído apenas pela coleta exaustiva do etnógrafo, construído pela densidade do

“material coletado”. Ao contrário, está-se frente a um objeto que, pela profundidade

de análise, sob um ou mais ângulos escolhidos, tem revelado escalas e

temporalidades diferenciadas:

(...) a etnografia deveria ser capaz de revelar os diversos campos do


discurso em que coexistem declarações oficiais, elucubrações
marginais, concepções unanimemente aceitas ou compartilhadas por
alguns, enunciados proibidos ou excepcionais e mesmo, muito
aquém de tudo o que se pode ouvir, proposições impensadas; sem
que estas últimas, contudo, sejam dotadas de um privilégio heurístico
particular. Dessa forma, os processos por meio dos quais os
acontecimentos são construídos, e seus ecos na vida social são
88
conservados ou alterados, serão desvendados em toda a sua
diacronia (Bensa, 1998).

Neste sentido, ao encarar os múltiplos níveis dos processos de

reconhecimento quilombola, pretende-se estar atento ao poder heurístico dos

diferentes enunciados possíveis do trabalho de campo. Tanto o discurso

administrativo, através de suas vias de objetivação quilombola, quanto os elementos

mitológicos e sobrenaturais residentes nas falas e práticas apreendidas no processo

etnográfico, são reveladores de vozes e escutas possíveis ao empreendimento de

pesquisa antropológica. As vozes subversivas, que resistem à passagem do tempo

revelando juízos morais e noções particulares de justiça, ganham um sentido prático

no presente; elas atuam enquanto um dos motores da engrenagem pela luta de

reconhecimento em outras escalas representativas – O Estado, por exemplo.

Portanto, na presente tese, elas ganham um estatuto epistemológico equalizado

com outros discursos políticos do campo social.

A imagem do Atlântico Negro, conforme ensina Gilroy (2001), remete a tipos

de estruturas narrativas que desafiam qualquer hermetismo étnico. O foco parece

ser encontrar um ponto onde, não obstante os enlaces identitários localmente

construídos, seja possível visualizar essas continuidades históricas processadas

pela travessia do atlântico negro. Neste sentido, o empreendimento procura a fuga

dos absolutismos étnicos, evidenciando mobilidades da raça e do racismo ao longo

do tempo e do espaço. Se é verdade que a minha leitura etnográfica lança seu olhar

aos complexos e diferenciados caminhos do reconhecimento, não é menos

verdadeiro o fato destas trajetórias tão singulares apresentarem rotas comuns. A

89
idéia dessa travessia é demonstrar que a escravidão não teve seu projeto findo com

a modernidade, sua ação é ainda apreensível através destes “ecos do passado”.

É neste sentido que, ao me apropriar dessa imagem de Gilroy, que toma a

imagem de navios em movimento pelos continentes, vejo o meu percurso enquanto

etnógrafo. Estas minhas travessias por determinados grupos quilombolas me

levaram a lugares tão diferentes que, em contrapartida, se comunicam através de

referentes e imagens comuns. O Atlântico negro.

Os navios também nos reportam à Middle Passage, à micropolítica


semilembrada do tráfico de escravos e sua relação tanto com a
industrialização quanto com a modernização. Subir a bordo, por
assim dizer, oferece um meio para reconceituar a relação ortodoxa
entre a modernidade e o que é tomado como sua pré-história.
Fornece um sentido diferente de onde se poderia pensar o início da
modernidade em si mesma nas relações constitutivas com
estrangeiros, que fundam e, ao mesmo tempo, moderam um sentido
autoconsciente de civilização ocidental. Por todas essas razões, o
navio é o primeiro dos cronótopos modernos pressupostos por
minhas tentativas de repensar a modernidade por meio da história do
Atlântico negro e da diáspora africana no hemisfério ocidental. No
espírito aventureiro proposto por James Clifford em sua influente
obra sobre a cultura viajante, quero considerar o impacto que esta
reconceituação extranacional, transcultural, poderia produzir na
história política e cultural dos negros americanos e na dos negros na
Europa. Na história recente, isso certamente significará reavaliar
Garvey e o garveyismo, o pan-africanismo e o Poder Negro como
fenômenos hemisféricos, se não globais. Na periodização da política
negra moderna, será necessária urna nova reflexão sobre a
importância do Haiti e sua revolução para o desenvolvimento do
pensamento político africano-americano e movimentos de resistência
(Gilroy, 2001, p. 60-61).

90
A operação reflexiva aqui realizada não se situa nem no campo de uma

operação indutiva simples – um acúmulo de “casos quilombolas” - com o objetivo de

uma generalização que teria como base os casos apresentados, tampouco um

operação dedutiva, onde casos particulares derivariam de um “modelo geral de

quilombola”. O esforço aqui é a produção reflexiva entre contextos de pesquisa,

resguardando o que apresentam em sua singularidade e, ao mesmo tempo,

ponderar aspectos semelhantes que promovem um espaço comunicativo entre as

realidades apreendidas.

91
2. QUILOMBO DOS ALPES. A ETNOGRAFIA DO MÚTUO RECONHECIMENTO.

“O guerreiro” ou “o cavaleiro” sempre foram algumas das denominações

dirigidas por Janja18 à minha pessoa. Definição esta diretamente relacionada ao

panteão mitológico afro-religioso brasileiro19. Confesso que, nos primeiros momentos

do trabalho de campo junto aos Alpes, não cheguei a dar um sentido concreto à

adjetivação. Dentre tantas coisas que ouvimos em campo, parece que são

incorporadas ao nosso “arsenal analítico” aquelas que nossos “ouvidos teóricos”

estão preparados para captar. De qualquer forma, ao longo do tempo, imergindo no

campo, algumas coisas foram sendo reveladas. Se, de alguma forma, o antropólogo

– o etnógrafo – entra como um tipo de figura “intrusa” em seu universo de pesquisa

(ainda mais se pensarmos nas condições oriundas de um trabalho pericial) é

também verdadeiro que o etnógrafo é cooptado pelo seu universo de pesquisa. Não

trago aqui esse elemento apenas para apresentar algo no mais nobre estilo “diário

de campo”, com o objetivo de relatar o famoso “anthropological blues” (Da Matta,

2010). Não se trata de recair num campo de subjetividades irrestritas. Ou, ainda, na

tentativa de construção de um gênero narrativo “mais literário”, mesmo que seja

impossível não dialogar com essa questão nas escritas etnográficas (Geertz, 2002).

O objetivo é demonstrar como o contato etnográfico versa sobre um processo de

interculturalidade. Exercitar essa interculturalidade na escrita etnográfica parece


18
Rosângela Elias, a atual presidente da Associação Quilombola dos Alpes.
19
Em conversa com o amigo Vinicius Pereira de Oliveira, afro-religioso, este me explica o significado
do cavaleiro. Segundo as suas próprias palavras: “... um dia tavam os orixás indo para uma festa, e o
Oxalá, muito velhinho e todo curvado, pediu ajuda para o Xangô... esse, muito metido, disse que não
ia ficar carregando ninguém, e foi embora... depois passa o Ogum... que então carrega prontamente o
Oxalá nas costas... desde então ele ficou conhecido como o cavaleiro do Oxalá, tanto que trabalham
muito juntos... e o Xangô foi condenado a comer em prato de madeira (gamela), como os escravos
comiam, Por sinal o único que come em gamela, por não ter respeitado o ancião e babá Oxalá”.
Logo, o “cavaleiro”, na mitologia afro-religiosa, coincide com a divindade Ogum. O curioso é que ao
“jogar” – ato divinatório realizado com a utilização de búzios em uma terreira – o meu “orixá de
cabeça” sempre foi apontado como sendo Ogum.
92
constituir mais do que um jogo retórico. Fica-se, de fato, frente a processos de

construção de intersubjetividades. Se, como demonstra (Viveiros de Castro, 2002), o

antropólogo não “se torna” seu nativo, sob pena de assunção de todas as

conseqüências lógicas decorrentes disto, parece verdadeiro que se trabalha com

certos abalos. Talvez não se possa falar de abalos que beirem a “conversão”

(apesar dos inúmeros relatos de antropólogos “convertidos” a certos elementos da

cultura estudada). Mas se trata de possibilidades de diálogos com o outro que estão

muito além do campo reflexivo produzido por um relatório técnico. Existe aqui a

possibilidade de constituição de um espaço epistemológico para o “afeto”, dentro da

reflexão antropológica, que não esteja confinado ao lugar da representação,

conforme argumenta a etnóloga francesa Jeanne Fravet-Saada:

Ora, entre pessoas igualmente afetadas por estarem ocupando tais


lugares, acontecem coisas às quais jamais é dado a um etnógrafo
assistir, fala-se de coisas que os etnógrafos não falam, ou então as
pessoas se calam, mas trata-se também de comunicação.
Experimentando as intensidades ligadas a tal lugar, descobre-se,
aliás, que cada um apresenta uma espécie particular de objetividade:
ali só pode acontecer uma certa ordem de eventos, não se pode ser
afetado senão de um certo modo. Como se vê, quando um etnógrafo
aceita ser afetado, isso não implica identificar-se com o ponto de
vista nativo, nem aproveitar-se da experiência de campo para
exercitar seu narcisismo. Aceitar ser afetado supõe, todavia, que se
assuma o risco de ver seu projeto de conhecimento se desfazer. Pois
se o projeto de conhecimento for onipresente, não acontece nada.
Mas se acontece alguma coisa e se o projeto de conhecimento não
se perde em meio a uma aventura, então uma etnografia é possível
(Fravret-Saada, 2005, p.160).

93
Talvez de todas as experiências por mim vivenciadas durante a trajetória de

trabalho de campo, aquela relacionada ao Quilombo dos Alpes seja a mais

emblemática no sentido da apreensão de diferentes camadas de sentido. Devido ao

meu contato durante a produção do relatório técnico da comunidade e a

continuidade após esse período, foi possível estabelecer relação com diferentes

quadros temporais do grupo, apreendendo, inclusive, conseqüências importantes

dessa assunção da identidade quilombola. Seja como for, posso dizer que o contato

com o grupo em diferentes momentos e situações permitiu-me vislumbrar diversas

construções identitárias que foram construídas nessa relação etnográfica,

colocando-me em “risco”.

Se, em momentos iniciais da pesquisa, encontrava-me em posição de relativa

segurança pelo quadro constituinte de forças, talvez o mesmo não possa ser dito

com relação a momentos posteriores da pesquisa. Meu período mais prolongado de

contato com esse grupo – que se estende até os dias atuais – talvez tenha

privilegiado a possibilidade de percorrer diferentes quadros temporais da

historicidade do grupo, algo que me dá certa noção de “profundidade” das tessituras

que compõem a identidade. Neste sentido, procuro trazer aqui diversos quadros que

buscam dialogar com essa “luta por reconhecimento”, que articula desde iniciativas

mais “organizadas” de pleitos até estratégias mais veladas, como a manutenção das

relações metafórico-religiosas que o grupo vem atualizando até os dias de hoje.

O “risco” ao qual me refiro, enquanto etnógrafo, diz respeito a estas diferentes

identidades assumidas durante o curso do trabalho de campo. Estes papéis que

foram se desenhando nestes processos de construção do trabalho de campo junto à

comunidade colocaram em perigo a minha posição cômoda de “antropólogo perito”.

Seria necessário, durante o percurso, ficar atento a certas tensões entre as


94
demandas “objetivas” do relatório técnico e o curso normal do trabalho de campo

que, apesar de baseado, em certo nível, na temporalidade do relatório técnico, não

está confinado a esta.

Meu objetivo aqui não é tentar traduzir meu contato com esse grupo no mais

clássico estilo malinowskiano de um “tornar-se o nativo”. Nem seria, ainda, o caso de

enveredar em uma modalidade de subjetivismo etnográfico. O esforço é pensar os

esquemas analíticos que colocam o antropólogo-etnógrafo frente às suas

construções que promovem in loco uma invenção da cultura (Wagner, 1981).

2.1 Mediações com a memória.

Sempre fui avisado sobre a presença de fantasmas existentes “nos matos” no

quilombo dos Alpes. Ainda no início do meu trabalho de campo nos Alpes, no ano

2007, muitas das primeiras conversas com o grupo eram abertas com os fantasmas

que lá habitam. O fato é que os fantasmas, que sempre fizeram as crianças

recuarem das brincadeiras antes do cair da noite, apresentam-se aos gritos, aos

“assovios”. Além disso, outro elemento típico aos fantasmas dos Alpes, e

coletivamente reconhecido pelo grupo, diz respeito ao barulho das correntes

produzidos pelo “andar” dos seres sobrenaturais. Esses seres sobrenaturais,

contudo, possuem uma identidade atribuída pela comunidade quilombola dos Alpes:

tratam-se dos antigos escravos que viveram na região. Algo sempre “no ar” durante

minha presença junto ao grupo diz respeito a estes escravos que, segundo a

percepção de alguns moradores, ali viveram e sofreram.

95
Inicio este tópico com essa breve narrativa no intuito de apresentar aquilo que

é, fundamentalmente, o objetivo dessa relação possível entre memória e etnicidade

no seio grupo: as noções morais derivadas de antigas situações de injustiça e

desrespeito vivenciadas pelo grupo e que acabam se transformando em um tipo de

“alavanca” no sentido da construção dos novos pleitos. Esses “ecos” do passado,

mesmo que sejam colocados, do ponto de vista da leitura do grupo, em um tempo

histórico ainda anterior à chegada da fundadora – Dona Edwirges –, funciona como

uma metáfora das relações possíveis naquele espaço. Cabe notar que na percepção

do grupo esses gritos dos antigos escravos, que sempre “rondaram” o local, não

devem ser ignorados. Trata-se de um território que esteve aguardando por novos

movimentos de reconhecimento. É neste sentido que retomo, no que tange as

relações com a memória, as premissas que pretendem permear todo este trabalho.

Certamente, como nos ensina Maurice Halbawchs, a memória atende certas funções

evocativas do presente nessa “reelaboração do passado”, através de quadros

sociais que servem como “instrumentos utilizados pela memória coletiva para

reconstruir uma imagem do passado, a qual está de acordo, em cada época, com a

mentalidade da sociedade” (Halbwachs, 1992, p. 40, tradução minha). Porém, essa

reelaboração do passado não se dá de maneira irrestrita e maleável (Appadurai,

1982). Se os sujeitos revisitam o passado via determinadas questões colocadas pelo

presente, este passado, através de suportes – o próprio território –, também mobiliza

os atos de rememoração, introduzindo um framework às ações culturais.

Posso me lembrar de inúmeras situações colocadas no âmbito da perícia

antropológica onde leituras “desconfiadas” foram produzidas sobre a memória. A

memória, resultado das articulações locais, produto de narrativas individuais e

coletivas produzidas no mais puro inventivo sabor do momento, não funcionaria

96
exatamente como um “critério de prova” da ocupação quilombola (Mas e os

documentos?). Seguindo o eixo argumentativo da presente tese, as preocupações

que se colocam ao pesquisador versam sobre as possibilidades colocadas pelo

campo etnográfico. As preocupações do pesquisador não devem – ou não deveriam

– focar na possibilidade de mero encaixe da vida nativa em estruturas categóricas

pré-dadas, sejam elas antropológicas ou de uma Instrução Normativa. Não pretendo

com isso argumentar sobre uma ingênua “postura tabula rasa” que dirigiria o

trabalho de campo do etnógrafo. Sabemos que não existe nenhuma metodologia

que não possua algum tipo de estrutura conceitual a priori. Não se trata também de

tornar o antropólogo um mero tradutor ou intérprete da vida nativa. De fato, o

trabalho etnográfico parece revelar um tipo de retroalimentação entre categorias

antropológicas e categorias nativas, formulando algo novo como resultado possível

dessa interação semântica.

Neste sentido, durante o trabalho etnográfico, dei-me conta de que relatos

orais poderiam representar simultaneamente uma série de possibilidades

interpretativas, absorvendo diferentes níveis. O relato pode funcionar enquanto

evocação de memória. Um tipo de memória evocada, claro, nesse contato com um

outro que se apresenta de forma um tanto quanto ambígua ao “nativo”, e que pode

transmutar-se ao longo do trabalho etnográfico. Se, em momentos iniciais de

pesquisa o antropólogo pode representar o próprio agente do Estado, no desvelar de

sua relação com o grupo estudado pode desenhar outras possibilidades identitárias.

Logo, o resultado dessa interação – etnógrafo e grupo pesquisado – acaba por

revelar outras sempre novas possibilidades conceituais.

Se existem narrativas que são formuladas, claro, em função das premissas

geradoras do contexto de produção do relatório técnico, reduzi-las a isto seria como


97
reduzir a vida dos grupos pesquisados a uma nota de rodapé. Como nos mostra

Mello (2008), os informantes não se apresentam como meros respondentes de

antropólogos. Se for possível minimamente reconstituir certos espaços de produção

de narrativas, poderá se observar que mesmo memórias estão diretamente

relacionadas com aspectos extremamente operacionais da vida do grupo. A

memória produzida em torno da figura de Dona Edwirges vem representar a

possibilidade de apreensão de uma lógica territorial que dialoga diretamente com

esses “ecos” das práticas de Dona Edwirges. Não se trata, portanto, de “meros”

relatos do grupo: a memória confunde-se com lógicas de apreensão territorial e

valorativas. Valores que hoje funcionam enquanto alavancas das lutas por

reconhecimento moral dirigidas pelo grupo.

Contudo, há outro elemento a considerar sobre os processos evocativos da

memória. Gostaria de pontuar o processo conflitivo dessa evocação em torno da

emblemática figura de Dona Edwirges. Meu trabalho de campo continuado com o

grupo, que transcendeu o limite temporal da produção do relatório, me levou a

conhecer outros níveis evocativos da memória do grupo. Se por um lado a

lembrança desta figura emblemática produz uma relação clara com a identidade do

grupo e gera uma relativa coesão, não é prudente esquecer o caráter processual

desta memória; refiro-me aos procedimentos utilizados pelos grupos no

“ensinamento” desta memória que, como se imagina, não é compartilhado de forma

equânime por todo o grupo. Parte da parentela de Dona Edwirges, muitos que não

fazem parte do atual pleito quilombola, questionavam a anterioridade desta figura

enquanto “primeira moradora”. Ainda, cabe evidenciar o papel de certos “guardiões

da memória” que realizam este papel de produzir um “estopim reflexivo” sobre o

passado. Foram inúmeras as vezes que presenciei as crianças perguntando aos

98
mais velhos: “Quem foi Dona Edwirges?”. Outros possuidores de imagens “mais

pálidas” do passado, vão completando suas narrativas na presença das figuras

autorizadas da memória. Portanto, gostaria de ressaltar aqui esta “forma de lembrar”

compartilhada pelo grupo, além da memória coletiva “em si”. Estas técnicas de

lembrar acabam repercutindo de diferentes maneiras nas práticas do grupo que, ao

evidenciar um saber-fazer calcado neste tempo mítico da Dona Edwirges, procura

aprender as articulações com o espaço. Logo, a memória não fornece apenas um

palco de acontecimentos do passado à espera pela lembrança; ela indica um tipo de

código que se articula com outras práticas, como o cuidado com as ervas, a

dinâmica do espaço e o domínio do território de forma mais ampla. Não procuro

argumentar aqui sobre uma substancialidade das práticas do grupo – um traço

primário. Procuro evidenciar como o ato evocativo também revela um código que

pode, além de ser apropriado diferentemente pelo grupo, revelando escalas,

fornecer um mapa de aprendizado sociocultural.

Em 2010, durante uma de minhas “subidas ao morro”, participei de uma

situação com as crianças do quilombo que me fez pensar sobre estes tipos de

relações. Durante uma das brincadeiras (às quais eu não raramente era chamado a

participar) uma criança se apresentou a mim com um “louva Deus” nas mãos,

pedindo para que eu pegasse, de forma bastante natural. Seguido a este fato, uma

criança me puxou pelo braço dizendo: “Cristian, vamos lá ver a minha bananeira?”.

Esta “naturalidade” com relação ao espaço e as formas com as quais as crianças

aprendem a lidar com a “natureza” já no espaço das brincadeiras são bastante

denotativas desta relação que aqui apresento. Em frente à bananeira, enquanto

minha jovem interlocutora me incentivava a pegar uma banana, ela diz: “Foi a Janja

que ensinou, pois ela diz que a vó [Edwirges] já fazia essas coisas”.

99
Pretendo, portanto, destacar pelo menos dois elementos desses processos

constitutivos do ato de lembrar da comunidade dos Alpes. Um deles diz respeito à

produção de uma relativa coesão do grupo, ao menos quando ajustamos as lentes

para um determinado ponto do olhar. Diz respeito também a esses juízos produzidos

acerca das situações vivenciadas no passado, produzindo percepções morais. Estas

percepções morais, por sua vez, funcionam como um tipo de alavanca das lutas por

justiça produzidas no presente. Gostaria de evidenciar este aspecto da técnica do

lembrar que reverbera pelo território como “técnicas nativas” destes saberes-fazer.

2.1.1 Dona Edwirges: a escravidão e o emblema das lutas atuais.

Fotografia 4 - Dona Edwirges (à esquerda) ao lado de sua filha Jane.

Fonte: Quilombo dos Alpes


100
Meu percurso mais longo com esta comunidade quilombola me colocou em

contato com uma certa variabilidade de consequências e possibilidades que

envolvem a imagem dessa figura emblemática que “veio da escravidão”. No início

do processo de construção do relatório antropológico a grande expectativa em torno

das lembranças de Dona Edwirges dizia respeito, fundamentalmente, a um “caráter

de prova” da ocupação negra da região. De uma forma geral poderíamos dizer que

esta expectativa se encontrava diluída num campo de atuação amplo que envolvia

agentes do INCRA, movimento social negro e equipe de pesquisa. Afinal de contas,

ao aprofundarmos as histórias da “fundadora” do quilombo dos Alpes, poderíamos

encontrar subsídios acerca da “ocupação do território” e um “prato cheio” para os

possíveis cruzamentos documentais e históricos, realizando possíveis nexos

temporais com a história da fundadora (tarefa que foi cumprida, penso eu). No

entanto, como pretendo demonstrar, a memoração em torno de Dona Edwirges está

para muito além de um simples “uso do passado” para que busque dar sentido às

lutas do presente. Uma das consequências desse “relembrar”, claro, apresenta

como consequência um “efervescimento” da memória coletiva do grupo. Mas

existem sutilezas e nuances da ação memorativa que dialogam diretamente com um

background simbólico do grupo que está para além das figurações do relatório

técnico.

As narrativas da comunidade, aliadas ao trabalho de pesquisa histórica,

levaram a trajetória de dona Edwirges para a região que compreende as cidades de

São Jerônimo, Arroio dos Ratos e Charqueadas, no Rio Grande do Sul. Esta região,

já no final do século XIX, era importante foco de produção mineradora e, portanto,

de mão-de-obra escrava. Além disso, a expansão das charqueadas para além das

estâncias de Rio Grande produziu outras unidades nas margens das lagoas dos

101
Patos e Mirim, assim como do próprio Guaíba, fato que esquentou o contingente de

escravos para a região. Os pais de Edwirges (Estevão e Ana Francisca) são

oriundos de uma granja chamada “Carola”, no município de Charqueadas.

Como demonstrado no relatório técnico, Edwirges desembarca com o marido

em algum distrito de Belém, por volta do ano de 1930. Outras irmãs de Edwirges

vieram no mesmo período para Porto Alegre, onde trabalhariam em “casas de

família”. Esta seria uma estratégia de Ana Francisca – mãe de Edwirges – no

sentido de diminuição dos “custos de subsistência de sua própria casa, mas também

de permitir que as filhas escapassem do penoso trabalho nas fazendas” (Relatório

sócio-histórico-antropológico da comunidade quilombola dos Alpes, 2008, p.49).

Dona Edwirges e seu marido, que “fugiram” de uma fazenda na qual trabalhavam

em Belém, segundo os relatos, andaram dias até chegarem ao Morro dos Alpes,

com medo de “ir pro palanque”.

O medo de “ir pro palanque” pode parecer exagerado, “afinal se


tratava de um mercado de trabalho livre. No entanto, devemos
destacar que a distância do regim, escravista era somente temporal,
seus preceitos fundamentais permaneciam presentes nas relações
sociais no pós-abolição (Relatório sócio-histórico-antropológico da
Comunidade Quilombola dos Alpes, 2008, p.48).

No entanto, como eu poderia evidenciar ao longo do trabalho de campo – que

se estendeu para além da produção do relatório técnico – a memoração em torno de

Edwirges apresenta consequências mais drásticas do ponto de vista das relações

sociais do grupo. Ela apresenta uma clara relação com um substrato moral do grupo,

que produz noções sobre o justo e o injusto, via relações metafóricas entre passado

102
e presente. As atuais situações de dificuldades quotidianas são atualizadas em

termos de um passado de lutas ainda não devidamente reconhecidas. O momento

atual de reconhecimento da comunidade pelo aparato administrativo aparece,

segundo a sugestão local, como “mais uma das lutas... que já começaram lá na Vó”

[Edwirges]. Neste sentido, mais do que um tipo de memória que apenas delinearia

coesão ao grupo social, fica-se frente a um processo dialético com a história, em

que o atual pleito – cristalizado na figura de Edwirges – aparece mais como um

resultado do que como um princípio.

Outro elemento fundamental do papel construtivo desta memória diz respeito

à sua operação fundamentalmente reflexiva. Ela se apresenta, no leque de

possibilidades simbólicas do grupo, como a possibilidade de aprender andar pelo

território, classificar as “ervas dos matos” e também sobre relações de reciprocidade

existentes no interior do grupo. Sua figura memorativa se apresenta como um tipo

de “tábua de conhecimentos”: um fato-social-total herdado que ganha uma dimensão

de patrimônio do grupo (Gonçalves, 2005). Esta herança, deve-se ressaltar, trata-se

de um objeto sempre posto à reflexão, algo que envolve embates morais e efeitos

territorializantes profundos.

Os relatos relacionados à ocupação naquele território estão, em diferentes

graus, profundamente enraizados nas histórias locais relatadas sobre Dona

Edwirges. No que cabe ao presente estudo, pretendo ressaltar que essa memória

está delineando uma das “faces” do grupo em termos simbólicos, ressaltando a sua

ocupação na terra e sistematizando um circuito de pessoas que são reconhecidas

como pertencentes à comunidade.

103
Existe um relato principal trazido por diferentes entrevistados que apresenta

Dona Edwirges como uma mulher que “subiu o morro” em busca de refúgio. Isto teria

acontecido pelo fato de seu marido ter quebrado a guampa de um boi e, devido à

perseguição de seu “senhor”, teria sido necessário encontrar abrigo em algum lugar

de difícil acesso: um espaço de refúgio. A fuga é motivada principalmente porque,

caso não a fizessem, seu marido seria levado ao “tronco” e surrado por tal “senhor”.

A “subida ao morro” por Dona Edwirges e seu marido se dá numa narrativa

que leva em consideração elementos como a “fuga do senhor”, que ocorre como

única alternativa possível de escape à tortura de seu algoz: a ida ao tronco. Mesmo

que a ocupação de Dona Edwirges na área não coincida com o período da

escravidão no Brasil, temos a percepção, por parte do grupo, de uma relação

metafórica com o mesmo que produz um sentido de grupo “refugiado”, de um grupo

“escondido” no morro. Essas narrativas, ao serem atualizadas na comunidade,

ganham um peso de emblema étnico. “É preciso continuar a história que a vó (Dona

Edwirges) começou por aqui com muito sacrifício” (Janja).

“Já era uma pessoa que veio fugida da escravidão. Deve de ser uma
escrava fugida de algum lugar... aqui no morro. Aqui bem dizer era
mato, não existia nada. O único refúgio era aqui em cima (...).
Fugida... vive só do trabalho. Eles obrigaram pessoas negras pra
vários locais... embarcaram pessoas negras. E nessa aí acho que ela
conseguiu. Ela trabalhava numa casa de coronel. E aí ela escapou e
veio pra cá. Acho que era escrava... ela tinha 127 anos... uma idade
bem avançada. Minha mãe dizia que ela olhava pro centro e achava
que era vaga-lume que tinha lá... a cidade se formando... nós
estamos dentro de um redemoinho aqui, um vulcão”.
“Quando ela veio pra cá veio já com o Tio Calo e o Tio Vilson que
eram pequeninhos. O que a mãe conta é que o marido dela quebrou

104
a guampa dum boi e por isso eles vieram. Até o medo de ser
chicoteado no palanque... castigado. Ela veio fugida e ficou... um
lugar adequado... porque aqui é um morro dá pra ver tudo pra tudo
que é lado. É dela que a gente começou os primeiros passos. Ela
criou a mãe desde pequeninha e aí a partir dai o pai casou com a
mãe, teve nós. Nós fomos criados perto dela...é uma união. A gente
ta interligado...” 20

Evocar a memória coletiva do grupo através desta figura largamente

conhecida e reconhecida na comunidade significa processar, no plano das

representações, uma continuidade entre passado e presente. Os quadros atuais da

memória possibilitam a reconstrução desse passado que teve a sua origem nessa

ancestral negra. Operar, hoje, com a imagem mental de Dona Edwirges ressalta a

possibilidade de uma inversão do estigma processado historicamente enquanto

comunidade “negra e pobre” e torna-se emblema de luta do pleito atual.

20
Entrevista realizada por Cristian Jobi Salaini com Rosângela Elias da Silva em 2008.
105
Fotografia 5 – “Local onde era a casa do Tio Vilson” – filho de Dona Edwirges. Trata-
se de um dos espaços utilizados para a coleta de ervas

Fonte: Cristian Jobi Salaini

Analiticamente, gostaria de pontuar que essa memoração em torno de

Edwirges dos Santos ocupa um papel de “memória-ação”. Esta ancestral ao grupo

se transforma em um tipo de figura moral que deve servir de modelo ao grupo. Esta

memória, desde que o atual pleito quilombola tomou curso, acabou recebendo um

tipo de velocidade incrível de “propagação” entre os mais diversos circuitos da

comunidade. A figura de Edwirges dos Santos, acionada em diferentes níveis de

refração pelo grupo, se torna um tipo de emblema moral e ponto de partida nas

atuais lutas por identidade. Seria bastante raso, contudo, afirmar que a evocação

desta memória de Edwirges se limita ao espaço do percurso das várias etapas do

pleito quilombola. Em diferentes momentos de meu contato com este grupo foi
106
possível evidenciar que esta memória, que hoje se torna um tipo de engrenagem

pelas lutas de reconhecimento social, atua em níveis nas práticas sociais do grupo,

através da reprodução de saberes-fazer específicos. Neste sentido, lembrar pode

significar “querer aprender”. Os sujeitos não possuem, claro, a mesma relação com a

memória coletiva de Dona Edwirges. Sua figura representa, contudo, uma

possibilidade estrutural de (re)memoração que faz fugir de qualquer possibilidade

meramente figurativa ou emblemática da memória apenas; trata-se, antes de tudo,

de um mecanismo possível que faz parte do cardápio simbólico do grupo. Através

das conversas informais é sempre possível verificar a constituição de elos

conectivos entre histórias de vida pessoais e uma trajetória coletiva, ancorada nesse

passado mais longo da precursora do território.

Dona Edwirges era alguém que, segundo a comunidade, detinha um amplo

conhecimento da área atualmente reivindicada pelo grupo como quilombola. Sendo

a primeira ocupante do local, foi quem desbravou os primeiros limites da região e

ensinou aos seus filhos que se tornaram ocupantes do território 21. A comunidade

reconhece todas as antigas ocupações de Dona Edwirges no território e executam

relatos detalhados sobre os motivos de tais mudanças pelo território.

De qualquer forma, ao identificar as antigas moradias ocupadas por ela, o

grupo processa um conhecimento da área existente no passado e que se atualiza no

presente. “Foi a vó que ensinou a andar por aqui”: Dona Edwirges não foi apenas

aquela que teria “desbravado” inicialmente aquele território; foi aquela que transmitiu

aos seus herdeiros, através do registro oral e das práticas locais por ela realizadas,

o conhecimento atual que a comunidade detém daquele território. Nesse sentido,

21
Muitos membros da comunidade possuem “mapas mentais” das antigas ocupações do território.
Este conhecimento teria sido passado de forma geracional, tendo em Dona Edwiges, a precursora no
que diz respeito a este empreendimento.
107
lembrar e narrar histórias a respeito de Dona Edwirges significa reconhecer, no

plano das representações e práticas diárias do grupo, o domínio que o grupo

apresenta sobre a área reconhecida como quilombola.

Fotografia 6 – Ex-morador dos Alpes mostrando “trilha das ervas”.

Fonte: Cristian Jobi Salaini

“A vó já usava mesmo a marcela, a gente tinha já a noção da


marcela que agente colhia a marcela, quando era pequeno. A gente
pegava marcela pra vender, colhia marcela que já era uma tradição
mesmo. A gente pegava, colhia e vendia nas casas. Caminhava até
o centro a pé,e a partir dali a gente trazia dinheiro pra casa, de vez
em quando comprava pão, comprava fruta e já vinha comendo.
Então, no meu entendimento as ervas medicinais é uma coisa que
faz parte do ser humano, da gente, ainda mais que de vez em

108
quando não tem dinheiro para ir numa farmácia para comprar
remédio, ou os postos que não tinha posto, antigamente, aqui em
cima, tinha que se deslocando até o posto. A mãe antigamente fazia
com o eucalipto cheiroso, ela fervia o eucalipto, isto é uma coisa que
já vem de geração também, fervia os eucaliptos e fazia aquele
bochecho botava o pano na cabeça da criança e fazia aquele vapor,
pro meu irmão que tinha problema bronquite asmática e
sinusite,então a mãe usava muito as folhas do eucalipto, era uma
coisa que era fundamental, como a gente não tinha luz naquela
época, não tinha água e já morava aqui em cima também. Então,
agente vê que ervas medicinais ajudam muito, acho que o grande
começo de tudo foi a partir das ervas medicinais, até vim a química,
até vim estes estudos para elaborar os remédios parar para as
farmácias, começou a partir das ervas. Então a gente tem um
entendimento que ervas medicinais faz parte da vida de todos.” 22

As “conversas sobre o território” – em que as ervas podem se apresentar

enquanto um assunto incontornável – apresentam um efeito territorializante, já que o

narrar/lembrar coletivamente implica em uma ação no espaço. O trabalho

etnográfico mais prolongado promoveu o contato com situações onde as crianças,

por exemplo, se apropriam de histórias do passado – “as histórias do tempo da vó”.

Estas histórias, muitas vezes, promovem um efeito de manipulação prática de ervas,

plantas e cuidados específicos com a natureza. Não se trata apenas de um

“preservar tradições”. No contato com agentes externos – como a Emater – o grupo

vem realizando um diálogo reflexivo sobre as suas memórias e práticas sociais que

realizam efeitos profundamente territorializantes. Estas criações do presente

acabam por alargar e produzir emergentes sentidos ao quilombo. Os sentidos,

sempre criativos, dialogam com essa ética espacial que se encontra nesse universo

22
Entrevista realizada com Valdir Elias por Cristian Jobi Salaini em 2009.
109
moral prévio do grupo. O “Tio Vilson”, filho de Edwirges, é conhecido como um dos

principais “propagadores” desta ética espacial:

“A nossa preocupação mais é preservar aquelas matas lá, aquele


capão é maravilhoso, só tu estando lá dentro para ti saber, quando tu
entra dentro dele tu sente é árvores antigas, é chás, é muito lindo, é
limpo embaixo dos capões, tem trilha, tem sanga de água, vertente
que sai do mato. Sim chás, tem bambus, tem arroio então tem
bastante taquareiras, tem muitos chás que tem naquela área de lá,
que não tem aqui, capões e cipós. Não tinha nada ali, ali era um
morro pelado ali, só pedras e o campo, se hoje tem árvore ali, aquela
extensão de capão foi ele que plantou, tudo, tudo, as árvores que
tem ali, eucaliptos, as taquaras, não tinha nada ali era peladinho e
tinha aquele veio d’água, tem uma vertente lá, quando ele fez a casa
dele ali tinha só uma pororoca, aí ele fez bem próxima da pororoca,
aí tu entra lá agora tu te apaixona tem pé de café, pé de limão,
goiabeira, pé de bergamota, taquareira, os eucaliptos, por isto a
gente fala assim o capão do tio Vilson, o matinho do tio Vilson, foi ele
quem construiu, ele que plantou. Por isto que a gente ama aquela
área, aquela área a gente quer mais é preservar mesmo, os capões
lá é maravilhoso, tem muita coisa lá dentro guardada, a nossa
infância, até a do Carlos Alberto também, da vó, só tu estando lá
dentro dele para tiver a magia que tem lá, é encantador! Tem que ver
as árvores que tem lá, elas cresceram de uma maneira, elas mesmos
se esculpiram sozinhas, tem uma goiabeira que tem lá no pátio da
vó, eu me encantei com a goiabeira ela parece uma figueira, tronco
dela foi crescendo, crescendo, dessa grossura e ela está quase
encostando no chão, assim umas árvores desenhadas sabe então é
este tipo de árvore que tem lá dentro da mata lá, frutas, por conta
dos passarinhos mesmo nasce pitangueira, goiabeira, ameixeira,
daquela amarelinha, laranjeira do mato, começa a caminhar tu
encontra”. 23

23
Entrevista realizada com Rosângela Elias por Cristian Jobi Salaini em 2009.
110
Fotografia 7 – Local de referência da primeira moradia de Dona Edwirges.

Fonte: Cristian Jobi Salaini

Fotografia 8 – Caminhada por espaços tradicionais da comunidade.

Fonte: Cristian Jobi Salaini

111
Dona Edwirges se apresenta enquanto portadora dos atuais nexos de

parentesco da comunidade, mas também como metáfora do quilombo: ponto no qual

se apoiam práticas efetivas da construção da identidade coletiva do grupo em torno

do território. Tem-se, então, um caso de articulação étnica que toma como ponto de

partida a crença em uma origem compartilhada. Porém, essa crença não figura em

algum tipo de “memória residual” do grupo e também não está baseada em imagens

pálidas do passado. Ao contrário, ela articula e embasa as atuais práticas dos

moradores, dando um sentido coletivo às ações; um sentido de destino

compartilhado.

“Vamos lutar contra eles porque a vó veio aqui pra cima... nos
criamos aqui. A gente sempre teve liberdade em todos os pontos...
Essas imobiliárias se dizem dono e não apresentam papel nenhum.
Nós não temos papel, mas temos a nossa história. Isso é mais
importante. Uma realidade que vivemos aqui dentro. Nossa avó pisou
aqui dentro e nós continuamos aqui. Não saímos, né. E vamos lutar
contra isso aí. É ela é o foco dessas historia aí...” 24

24
Entrevista realizada com Gumercindo Elias da Silva em 2009.
112
Fotografia 9 – Associação Quilombola Dona Edwirges.

Fonte: Cristian Jobi Salaini

Ao reconhecer este espaço cristalizado no território, através desta “mitologia

da fundação” calcada da figura de Dona Edwirges, tem-se um processo de

reconhecimento que se dá através do diálogo com estas camadas da memória.

Dona Edwirges, cristalizada no espaço, estabelece o continuum necessário às atuais

demandas políticas por reconhecimento, levando a uma desconstrução daquilo que

seria um espaço político do presente como algo separado das representações mais

particulares do grupo; de fato, o espaço sempre foi político, mesmo que em

camadas e níveis diferenciados.

O espaço do relatório técnico me colocou em contato, em um primeiro

momento, com um processo de evocação que continha um certo tom comprobatório

acerca das “origens escravas” do grupo. Este argumento, essencial ao relatório,

talvez não pudesse dar conta das intricadas redes e papéis desencadeados frente a
113
estes processos eminentemente reflexivos, morais e territorializantes atualizados

pela memória. A própria comunidade possuía interesses acerca dos “resultados” do

relatório com relação à trajetória de Edwirges dos Santos. No entanto, essas

“descobertas” sempre tiveram um impacto mais ou menos independente das formas

memorativas empregadas pelo grupo. As dinâmicas sociais, as conversas sobre o

território e os diálogos acerca das lutas morais do presente, continuaram se

desenrolado de forma independente ao fato de Edwirges ter vindo de uma

determinada “região escrava” do Rio Grande do Sul. O relatório produziu um

elemento legitimador que ecoou nas “argumentações quilombolas”, mas devemos

interpretar o seu impacto com certos limites.

Afasta-se aqui de possibilidades instrumentalistas da evocação da memória.

Não se trata de um tipo de “uso do passado” com a finalidade de produção de

justificativas para as lutas do presente. A “razão instrumental” aparece aqui

subordinada e como uma das possibilidades do espectro simbólico do grupo

(Sahlins, 2003). As lutas por direitos e acessos por recursos materiais, no presente,

dialogam fortemente com as possibilidades simbólicas do grupo, o que retira de foco

qualquer interpretação apressada sobre um apriorismo utilitarista. Os embates da

memória reverberam de maneira complexa no espaço social do grupo, e a luta atual

aparece como mais uma das possibilidades evocativas. Reduzir o papel da

memória, portanto, a um uso utilitário do passado, promove uma redução

interpretativa profunda acerca dos arranjos que colocam o “pleito” atual como

apenas um elemento que (muito importante, claro) – do cardápio simbólico do grupo.

114
Fotografia 10 – Mapa de localização do Quilombo dos Alpes.

Fonte: Relatório sócio-histórico-antropológico da Comunidade dos Alpes (2008).

2.2 Rosângela Elias, a “Janja”: liderança e mediações do reconhecimento.

Creio que algumas palavras devam ser ditas sobre a “Janja”, a atual

presidente da associação quilombola Dona Edwirges. Para quem já andou pelo

quilombo dos Alpes, torna-se, penso eu, praticamente impossível não misturar um

pouco a história daquele local com a história desta figura emblemática. Meu objetivo

aqui é, fundamentalmente, relatar a forma como algumas lideranças repercutem no

espaço do grupo, funcionando como espécie de conectores entre aspectos da

memória coletiva e da identidade dos mais antigos e dos moradores “mais novos”.

Apesar de merecida, meu relato aqui não se trata apenas de um tipo de homenagem

115
a essa emblemática figura. Gostaria de ponderar como alguns atores acabam por

constituir um papel fundamental que conecta o “velho” e o “novo”: um tipo de

mediação cultural. Neste sentido, Janja, através de suas inquietações, revelou

sempre uma lucidez incrível que produziu um tipo de simetrização entre as relações

pesquisador-pesquisado.

Em minhas visitas à comunidade quilombola dos Alpes sempre existiram

elementos que me deixaram muito empolgado. Um deles, com certeza, diz respeito

ao domínio que Janja possui do território em questão. Ela é conhecida por sua

habilidade no manuseio com pedras, sendo que já construiu uma série de

habitações com esse elemento. Os próprios irmãos de Janja costumam dizer que

eles próprios ficam perplexos com sua habilidade e conhecimento com as pedras,

algo que muitos relacionam com o fato de Janja, na religião afro-gaúcha

denominada batuque, ser filha de Xangô. Janja dificilmente “desce do morro” (como

ela mesma costuma dizer). O ato de “descer do morro” indica uma viagem para “a

cidade”, fato que para quem conhece a localização do quilombo dos Alpes não é

difícil de imaginar. Enquanto as atividades cotidianas do quilombo dos Alpes se

desenrolam normalmente, com pessoas indo e vindo de suas rotinas diárias de

trabalho “na cidade”, Janja sempre está “no morro”, lidando com suas pedras,

cuidando dos animais e mexendo com suas plantas.

Em nossas conversas, alguns temas sempre me colocaram a refletir sobre as

dinâmicas da vida local e suas derivações que apareciam sempre de forma mais

complexa do que aquelas que me pareciam necessárias à constituição de um

relatório antropológico. Eu mantenho contato com o quilombo dos Alpes até hoje e

muitas das questões e problemas colocados acabam por transcender aqueles que

dizem respeito à construção de um relatório antropológico. Uma questão importante,


116
e sempre enfatizada pela própria Janja, diz respeito à sua consciência acerca das

diferenças internas dentro do grupo quilombola. Janja, entre uma conversa e outra,

sempre destacou o fato – e a dificuldade – de construir as demandas coletivas tendo

em vista a série de demandas individuais e conflitos internos do grupo.

Em suas inquietações, Janja sempre pareceu ter uma preocupação de “ordem

sociológica” que diz respeito a uma fuga de uma “perspectiva culturalista” onde o

grupo devesse viver um tipo de realidade substancializada e homogênea. Janja

sempre faz questão de enfatizar a presença dos conflitos internos (inclusive a

necessidade de existência dos mesmos), algo que acaba por expressar “jeitos

locais” de resolução dos mesmos. Este fato me provocou um olhar desconfiado às

leituras que procuram ver as comunidades elaborando um tipo de discurso onde “o

campo jurídico acaba por ditar tendências de abordagem analítica sobre tais

comunidades” (Muller, 2006, p.10). O trabalho etnográfico sempre evidenciou o

espaço da organização da associação quilombola mais como uma tentativa de

produzir um texto intercultural do que uma construção que estivesse “arremedando”

as estruturas impostas pelos agentes externos. Neste sentido, pode-se dizer que as

indagações do grupo nem sempre são as mesmas daquelas colocadas pela

sociedade envolvente.

Esta postura sugere que a lógica burocrático-administrativa impõe certo

modelo de controle social, já que os próprios modelos associativos criados em

função das emergentes identidades quilombolas seriam um tipo de “arremedo” das

estruturas maiores. Esta perspectiva, que, em última análise toca, nas relações

constituídas entre história, memória e etnicidade, “pode redundar numa confusão

entre a dinâmica dos grupos étnicos na história e a ação histórica tratada como mera

reação – e adequação – a lógicas mais amplas. Assim, os ‘nativos’ são situados na


117
história a expensas de serem tragados pelas tremulantes marés dos fluxos

históricos” (Moura, 2008, p.40).

As demandas materiais colocadas pelo grupo, sob o olhar de um leitor

desavisado, fazem transparecer a evocação de uma identidade com fins

estritamente instrumentais. A busca por recursos financeiros, a melhoria de uma

instalação, a luta pela titulação do território podem ser entendidos, da perspectiva de

um olheiro externo, como um produto, enquanto do ponto de vista das demandas

comunitárias é entendida como um processo. Não se encontra, portanto, uma

distinção entre o material o simbólico, entre o reconhecimento e a possibilidade de

alcance de outros níveis do ponto de vista da distribuição econômica. O que está em

jogo, do ponto de vista do grupo, são as maneiras com as quais as suas noções de

justiça dialogam e negociam com os novos enquadramentos. Arruti (2005) aponta

para uma versão onde a associação apareceria enquanto um tipo de “etnia federal”:

Não seria exagero ver aí uma variante do Estado Nacional no


Mocambo, dadas as suas pretensões de instituir um ordenamento de
caráter jurídico e uma soberania territorial. Nas lutas que marcam
seu nascimento, estão tanto os separatismos quando as disputas por
emancipação política com relação a outros poderes territoriais. Tais
lutas recorrentemente apontam a presença da associação como uma
limitadora das liberdades individuais relativas ao mercado,
inicialmente de terras, mas progressivamente sobre outras formas de
mercadoria, como se estivéssemos novamente frente à oposição
entre Estado e mercado. Por isso, não é apenas anedótica a
descrição de seu território como uma área ‘federal’. A expressão
aponta, justamente, para essa singularização étnica, emancipação
política, excepcionalidade jurídica e soberania territorial (Arruti, 2005,
p. 322).

118
É claro que é preciso ficar atento para as inúmeras possibilidades de

conexões entre Estado e micropolíticas mais localizadas. Mas penso que o que o

trabalho etnográfico pode e deve evidenciar são campos de possibilidades

interpretativas sobre o mundo social. A forma de conexão política que Janja ajuda a

perceber não é a única, sem dúvida. Mas deixa a possibilidade de apreender um

espaço que apresenta um arranjo local de um enquadramento mais universal. A

Associação Quilombola dos Alpes figura um tipo de organização local que aloca as

relações de parentesco, os problemas locais e as necessidades mais imediatas do

grupo. A “vida nativa” transcorre normalmente sem que o Estado e as rotinas

administrativas tenham alterado substancialmente alguns arranjos. O que ocorre é

que, em função do novo enquadramento existente, alguns elementos da identidade

do grupo ganham uma nova velocidade e uma nova visibilidade. A historicidade do

grupo, no entanto, não se encontra presa ao curso das rotinas jurídico

administrativas.

Sem dúvida alguma, a perspectiva trazida pelo artigo 68 do ADCT – e suas

derivações infraconstitucionais – trouxeram um campo de inovações semânticas no

que diz respeito às possibilidades interpretativas acerca das comunidades

tradicionais. Mas situar a “história nativa” naquilo que o autor chama de “presentismo

da memória” (Mello, 2008) acaba por recair em uma versão onde as identidades

quilombolas estariam sendo produzidas apenas como um tipo de “reação” a um

esquema maior. No caso quilombola, ao pensar o Estado como o “elemento

gerador” das identidades coletivas, recai-se em uma armadilha:

Ao tratar o Estado como o fator constitutivo dos grupos étnicos, as


ações e configurações deles ficam subsumidas e resumidas aos

119
padrões ditados por esse ente maior. A antropologia pode acabar se
configurando como mecanismo homogeneizador, na medida em que
os ‘discursos nativos’ nada mais são do que epifenômenos de uma
ordem maior que os supera e sobrepuja (Mello, 2008, p. 37-38).

Interessa aqui essa “janela” interpretativa introduzia por este novo campo de

atuação interpretativa introduzido pelo artigo 68. Mas, do ponto de vista

interpretativo, o foco recai sobre determinadas “sensibilidades jurídicas” que sempre

estiveram presentes no campo conceitual interpretativo dos grupos em análise. As

vivências, as pequenas conversas, os juízos sobre o passado e a apreensão sobre

os sistemas mitológicos locais dialogam, de forma seletiva, com a construção social

da associação quilombola. Ainda, o território do mapa técnico nem sempre é aquele

que faz parte do universo cognitivo quilombo, repleto de mediações e fronteiras nem

sempre tão visíveis.

Ao mesmo tempo, Janja, através de seu local de liderança junto ao grupo,

coloca inquietações sobre a “manutenção da identidade”. A defasagem existente

entre o processo de reconhecimento e os sucessivos processos de titulação

territorial e alcance de políticas públicas junto ao grupo é bastante evidente. Esse

fato acaba por gerar manobras de nossa mediadora junto aos moradores do

quilombo dos Alpes. Muitos quilombolas, durante esse processo que envolve o

reconhecimento – e todas as suas etapas -, pensaram na desistência. Segundo

alguns, o ônus da assunção da identidade quilombola seria alto demais, já que os

holofotes e o receio da vizinhança e dos lindeiros só fez aumentar, ao mesmo tempo

em que a titulação ainda não ocorreu, gerando prejuízos diários no que diz respeito

ao “esquentar” dos conflitos. Foram muitos os quadros e dificuldades vivenciados

120
pelo grupo quilombola desde seu reconhecimento pela Fundação Palmares em

2005.

No final de 2008, a comunidade vivenciou a tragédia de um assassinato,

quando dois irmãos de Janja foram mortos por um antigo morador. O fato gerou

polêmica e dividiu opiniões: alguns entenderam o episódio como derivado de uma

briga de vizinhos; a comunidade, contudo, entendeu o ocorrido como resultado

direto dos conflitos territoriais decorrentes das novas configurações de disputas

territoriais esquentadas pelo contexto de emergência identitária. À época, muitos

moradores do quilombo procuraram argumentar junto à Janja sobre a possibilidade

de abandonar o pleito quilombola, já que tal demanda, até o momento, teria se

traduzido apenas em prejuízos irreparáveis ao grupo. A figura de liderança de Janja

nesse momento ecoou pelos quadros do grupo, já que a mesma argumentava sobre

a necessidade de continuidade do pleito. O argumento se apresentava de uma

maneira bastante direta, segundo nossa interlocutora: desistir significaria perder a

possibilidade de produção de justiça em outros níveis, ou, ainda, a atualização dos

quadros de reconhecimento em outros planos de representação. De toda a forma,

há situações que são lidas, segundo as lentes do grupo em questão, enquanto

imersas em contextos de desrespeito social. Para além da discussão mais direta que

envolve o assassinato ocorrido na comunidade dos Alpes, existe uma percepção de

um evento que ocorre dentro de uma temporalidade que pertence ao pleito

quilombola que acaba por processar um reconhecimento “inacabado”.

O desprezo e o desrespeito são desses fatos que se configuram


como nítidos “ferimentos morais”. E as pessoas envolvidas em
situações assim configuradas sempre poderão discernir daquilo que

121
poderia ser um simples acidente, como uma coerção produzida para
ferir, do que seria uma agressão intencionada, percebida esta última
como uma verdadeira ofensa moral e, por conseguinte, como uma
negação de reconhecimento (Cardoso de Oliveira, 2005, p. 34).

Meu objetivo ao trazer o papel desempenhado por Janja junto ao seio do

grupo quilombola tem a intenção fundamental de mostrar um subtexto da vida

cotidiana que se atualiza via relações complexas. O grupo possui conflitos que

fazem parte da própria historicidade do mesmo. Janja, através de seu local

privilegiado junto aos processos de mediações, nos dá sugestões sobre o universo

quilombola, quebrando qualquer tentativa no sentido de homogeneização e

substancialização. Isto não quer dizer que o grupo não continue constituindo os seus

processos de aprendizado que levam em conta a memória e as formas de

conhecimentos ancestrais. Janja possui um trabalho fundamental com as novas

gerações do quilombo dos Alpes. As crianças do grupo, hoje, nesse momento de

(re)apropriação, apresentam-se como prova viva desses processos de

continuidades. Logo, Janja nos desafia a entender o quilombo dos Alpes como um

espaço dotado simultaneamente de uma série de descontinuidade e continuidades,

escapando de qualquer tendência “culturalista” de apreensão da identidade. Assim,

faz-se necessário atentar para as diferentes camadas da vida social que não fiquem

presas a uma noção estatizada da identidade, mas que apreendam os contextos e

subtextos interculturais de sua dinâmica.

122
2.3 A manutenção da identidade. Criatividade e constrangimentos sociais.

Gostaria de iniciar este ponto de reflexão com a seguinte pergunta: seria

possível indivíduos ou uma determinada coletividade articularem com uma

identidade mesmo que os resultados disso sejam desvantajosos? Ainda, a

manutenção desta identidade “valeria a pena”? Meu contato com a comunidade dos

Alpes foi muito além daquele produzido durante o tempo de constituição do relatório

sócio-histórico-antropológico. As teorias contemporâneas da etnicidade parecem ter

muito a dizer sobre o processo reflexivo dos grupos étnicos. A “revolução”

proporcionada pela teoria barthiana revelou um processo de construção conceitual

que retirou do foco da análise a construção de “núcleos étnicos”, evidenciando o

papel fundamental das trocas e fluxos culturais que, em grande medida, fazem parte

das escolhas dos sujeitos em busca da identidade. Os sinais diacríticos – um dos

pontos fundamentais da reflexão sobre etnicidade – traz a possibilidade de

entendermos como determinados sinais manifestos são “escolhidos” pelos grupos

no sentido da construção da etnicidade. Assim, o aporte teórico do esquema do

antropólogo norueguês Fredrik Barth desloca o problema da etnicidade para as

fronteiras entre os grupos, desfocando de características substancializadas de

grupos étnicos enquanto traços insolúveis.

O momento de assunção da identidade quilombola, sem dúvida, faz com que

determinados sinais diacríticos fiquem mais evidentes. No calor da evocação

identitária os sinais manifestos entram nos jogos de negociação e o grupo acaba por

elencar, deixando mais evidentes, aqueles sinais que produzam certos contrastes

com relação ao entorno social. O contato continuado com um determinado grupo

123
social, porém, acaba por revelar certos problemas que vão além do “momento de

negociação” da etnicidade. Não pretendo problematizar diretamente a validade

heurística contida nas noções de sinais diacríticos ou do esquema que perfaz o

caminho das teorias da etnicidade que, inclusive, fazem parte do aparato reflexivo

da presente tese. Gostaria, contudo, baseado em minha experiência etnográfica, de

trazer outros contornos à questão que revelam esquemas intrincados da vida social

dos grupos. Se o contexto da afirmação identitária perante os órgãos públicos traz

certas inovações à vida social do grupo, ela não se dá de forma absoluta. Muitos

eventos da vida cotidiana sequer tomam conhecimento desse aspecto e transcorrem

“naturalmente”. O grupo, por outro lado, não está mais “livre” e sua condição de

pleiteante coloca novos riscos e o ônus da nova condição. Talvez esse elemento

(re)coloque o desafio de pensar uma boa relação entre a criatividade contida nos

processos de negociação identitárias, sem negar, contudo, certas continuidades que

estão contidos na ordem da vida do grupo. Neste sentido, não é difícil imaginar

situações onde a “escolha” da identidade traga desvantagens aos envolvidos.

Esta questão, certamente não passiva e de não fácil resolução, tem sido

revisitada quando o assunto diz respeito às teorias da etnicidade. O antropólogo

argentino Diego Villar, em uma contundente crítica ao excessivo papel do “ator

racional” (free choices) que estaria contigo na teoria barthiana – como em sua

discussão sobre os processos de etnicidade junto aos Pathans (Barth, 2000)

pondera que:

(...) o fato de a etnicidade ser “negociada” não a impede de poder se


voltar contra os atores, “congelando” certos diacríticos que —
embora Barth não o queira reconhecer — se sedimentam como

124
requisitos sine qua non de pertencimento grupal. Os grupos étnicos
reinventam- se, e não pretendo negar tal afirmação, mas isso não é
incompatível com a idéia de o fazerem com base em condições
transmitidas, institucionais, tradicionais, que podem ser variáveis,
mas que existem e se impõem às dinâmicas de pertencimento étnico.
O argumento do norueguês é, com isso, conduzido de volta a seu
incômodo princípio. A teoria da etnicidade não se pode basear
somente no momento “criativo” (e carismático) da constituição das
fronteiras étnicas, mas deve também contemplar, necessariamente, o
processo de “institucionalização” desses limites. Isso nos leva a um
novo problema. Os grupos dedicados a “negociar” suas estratégias
em cada interação geralmente não dispõem, todos, dos mesmos
recursos para fazê-lo: alguns são mais iguais que outros e têm mais
possibilidades de materializarem as identidades que lhes convierem
(Villar, 2004, p. 185).

O antropólogo brasileiro Roberto Cardoso de Oliveira, não obstante o

reconhecimento da pertinência contida na crítica do autor supracitado, enxerga

exageros na mesma. A crítica do referido autor teria recaído em uma apreensão

demasiadamente tipológica do “ator racional” barthiano, “esquecendo-se do papel da

dimensão sentimental ou afetiva nas decisões de qualquer ator” (Cardoso de

Oliveira, 2006, p. 21). O fato relevante aqui seria a notabilidade sobre o fato que os

“atores racionais” não está livre das determinações sociais, tornando-se

completamente “solto” em seu contexto social. A crítica de Villar, neste sentido,

“pecaria” por esquecer que as determinações já estão “embutidas” na noção do ator

que “faz escolhas”.

Aos fins da presente análise, pretendo reter a noção fundamental, em uma

discussão de cunho etnográfico, sobre como os sujeitos realizam escolhas tendo

como ponto de partida um horizonte ético e moral. Como pensar as possibilidades

125
de evocação identitária “que uma pessoa pode assumir, como essa pessoa pode

manter a integridade do seu Eu? E, ainda, quais as condições de possibilidade de

ação racional – isto é, reflexiva – no mundo moral?” (Cardoso de Oliveira, 2006, p.

62).

Eu pude acompanhar diferentes momentos, nem sempre tão visíveis, que

dizem respeito ao que venho chamando aqui de “manutenção da identidade”. Cabe

notar que nem toda a parentela da matriarca Edwirges dos Santos aderiu ao

processo de reivindicação quilombola. Após a consecução do pleito, outros

moradores do Morro dos Alpes, pertencentes às redes familiares de Edwirges, Jane

(filha de Edwirges) e Janja começaram a produzir relatos desconfiados acerca da

identidade quilombola. Alguns chegaram a duvidar da veracidade de Dona Edwirges

enquanto primeira moradora da região, pois haveria uma outra “avó antiga” que

poderia tomar esse papel de primeira moradora.

Certos conflitos ficaram aquecidos com demais moradores vizinhos do Morro

dos Alpes. Ainda no início da pesquisa, quando de uma medição do território por um

topógrafo do INCRA, este foi recebido por uma moradora do Morro, não quilombola,

com uma arma de fogo na mão que o ameaçava caso este “invadisse” suas terras.

Uma série de conflitos foi se acirrando com os próprios moradores do bairro que, a

cada política pública trazida ao bairro, fazia questão de dizer que o “grupo da Janja”

não possuía mais “direitos” compartilhados com o restante do bairro, já que agora

estes eram quilombolas.

Existe uma história recorrentemente narrada pela comunidade e que tem

relação com a “instalação da luz” na comunidade dos Alpes. Segundo os relatos, a

chegada da luz no quilombo foi de extrema dificuldade, já que a vila ao lado, que

126
conta com a Associação dos Alpes, teria “excluído” o quilombo desta ação. Este

caso teria relação direta com o fato do quilombo não ser mais reconhecido como

parte do aglomerado populacional que o envolve. Assim, a chegada deste “direito”

foi comprometida pelo reconhecimento, por parte da associação citada, de uma

diferença com relação à comunidade em questão.

“Agora mesmo essa questão da luz aí, a gente sofreu bah! Uma
discriminação, assim, horrível. Sentimo na pele né. O tempo toda a
gente tá brigando ali (...). E daí veio a luz carente, e nós não ia ser
contemplado. Simplesmente eles fizeram a reunião tudo articulado aí
entre eles, ali, moradores do beco e deixaram nós de fora. Daí veio o
quilombo (...) Daí eles acharam que nós tinha que ser dividido.
Tinham que separar nós mesmo, né. Se a gente quiser alguma coisa,
a gente pedia pro pessoal que tava acompanhado nós ali de
quilombo. ´Quer leite do posto?´ - ´O pessoal do quilombo que se
vire. Vai buscar, também. Tem que ter recurso, lá” 25

Este episódio citado pela comunidade faz parte de um conjunto de processos

de autonomização que, segundo os próprios relatos, evidenciam um movimento no

sentido da diferenciação que se acentuou, principalmente, após o “reconhecimento

do quilombo”. Situações semelhantes ocorreram recentemente com relação ao posto

de saúde local.

Vale ressaltar que as diferenças entre a Associação dos Alpes e a

“Associação Quilombola Dona Edwirges” se processa no cotidiano das ações que

toma como referência esses dois agentes. As “brigas” em torno dos apoios

institucionais e dos recursos públicos da localidade de forma mais ampla fazem

25
Entrevista realizada por Cristian Jobi Salaini com Rosângela Elias da Silva em 2009.
127
parte desse quadro. As “fofocas” também fazem parte dos processos de

“rebaixamento de status” de um grupo em relação ao outro: trata-se também de uma

importante estratégia de diferenciação de grupos sociais.

Entretanto, durante o trabalho de campo e através da apreensão das

entrevistas realizadas, nota-se que a comunidade já era notavelmente tida como

diferenciada do “restante do morro”. O “Cantão”, forma como a comunidade negra

dos Alpes é reconhecida por muitos moradores locais, evidencia isso: um grupo que,

mesmo incorporado aos esquemas de vida local, sempre foi diferenciado, seja por

sua posição geográfica mais “isolada”, seja pelos seus modos de vida particulares.

Os moradores da comunidade negra dos Alpes demonstram que muitos de

seus parentes estão distribuídos pelo “morro” de forma mais ampla. No entanto,

explicam que não fazem, necessariamente, parte do quilombo. Nesse sentido, “ser

parente” não se apresenta como condição única de pertença à comunidade. É

preciso estar imiscuído nas teias de solidariedade que perfazem o cotidiano da

comunidade: é necessário ter “resistido ali dentro”.

Durante o ano de 2009 houve uma aferição de medidas do território

apresentado no relatório técnico produzido em relação a esta comunidade

quilombola. Isto fez com que um topógrafo do INCRA circulasse pelo território em

um processo de “reconhecimento” do espaço. Neste ínterim, Janja me acionou em

uma ligação telefônica perplexa com o fato de que, segundo o seu entendimento do

processo que se desenvolvia, e que se basearia na interpretação do topógrafo

responsável pelo processo, a “pedreira do Xangô” deveria ficar fora do território final

a ser demarcado. Este fato gerou desconfortos por parte da comunidade, já que

historicamente acabou perdendo uma boa parcela dos espaços freqüentados pela

128
comunidade para o seminário vizinho ao quilombo. Conseqüência disso foi minha

presença e da geógrafa Lucimar dos Santos junto à 12ª superintendência do INCRA

do RS (enquanto antropólogo da equipe de pesquisa do relatório), com o objetivo de

produzir uma justificativa sobre a pertinência de inclusão daquele espaço na

demarcação final do território que, é claro, encontra-se em uma área complicada e

sujeita a litígio. Este tipo de situação abre espaço para a reflexão acerca da

interculturalidade existente entre os saberes locais e o universo jurídico. Como

produzir um espaço intercultural em face à expressão oral de grupos quando elas

são desautorizadas? Como promover uma “credibilização” destes saberes (Chagas,

2005)? Quando analisa essas relações tendo como foco a comunidade quilombola

de Morro Alto do RS:

Em enfoques como esses os saberes comunitários são alçados à


condição de contribuir nesse movimento interpretativo, inclusive
quando esses estudos são trazidos à cena judicial. Neste sentido, as
lideranças das comunidades enxergam essa nova modalidade de
tradução como expressão de um rearranjo nesse campo de forças
entre saberes e interpretações “críveis”. Os conhecimentos que estão
dessa maneira sendo visibilizados não se reduzem unicamente a ser
instrumento de “prova jurídica”, mas representam a possibilidade de
garantir uma “fala histórica” que adentra a institucionalidade oficial
com a potencialidade de corresponder, inclusive, às suas
expectativas de que haja uma “reescrita da história” (Chagas, 2005,
p.305).

É neste sentido que se fica frente a um processo de dialética do

reconhecimento. Em determinados casos os grupos não procuram um tipo de

“reconhecimento direto”. Mas, ao entrarem no jogo dialético que perfaz o caminho do

129
reconhecimento, aceitam a possibilidade de encontro com o mundo jurídico-

administrativo enquanto um horizonte de possibilidades.

Ainda em 2009, houve uma negociação entre INCRA e comunidade

quilombola sobre o formato final da área quilombola. O território quilombola

inicialmente, na forma de apreendida pelo grupo, incorporaria a Estrada dos Alpes

(que hoje em dia acaba por “dividir” o espaço em dois). Claramente, na forma de

percepção do espaço dirigida pelos quilombolas, tal estrada, construída de forma

posterior à investida de Dona Edwirges no morro, faria parte do território. Em

negociação com agentes responsáveis dos Projetos Especiais do INCRA, a estrada

ficou de fora da área a ser delimitadas, a fim de evitar maiores problemas do ponto

de vista fundiário e de possíveis futuras indenizações aos moradores não

quilombolas. A negociação, contudo, processa um recorte ainda maior que aquele já

instaurado no relatório técnico. Cabe dizer que, mesmo durante o processo de

confecção do relatório antropológico, os quilombolas mostravam a necessidade de

se retirar do mapa determinados espaços a fim de “arranjar menos problemas”.

Neste sentido, deve-se dizer que o território quilombola apresentado ao final do

curso de um relatório antropológico é sempre resultado de uma estabilização. Uma

estabilização que se dá pela tensão existente entre um “território do vivido” e um

“território do possível”. Apesar de os processos nas comunidades quilombolas não

se conduzirem sempre da mesma maneira, é possível dizer que, durante o processo

de construção de um relatório técnico, há um processo “reflexivo quilombola” que

conduz aos riscos, possibilidades e “noções de justo e injusto” na percepção do

mapa a ser definido aos operadores administrativos. Vale ressaltar que a

perspectiva territorial do grupo, em termos simbólicos, extrapola em muito aquela

apresentada no relatório técnico destinado ao INCRA. As “defesas” em torno da

130
mata nativa da área vão muito além da área negociada e que foi levada a cabo no

corpo do relatório técnico.

Fotografia 11 – Mapa final da Comunidade Quilombola dos Alpes.

Fonte: Relatório sócio-histórico-antropológico da Comunidade dos Alpes.

Em diferentes momentos do trabalho etnográfico, foi possível evidenciar um

tipo de “argumentação quilombola”. Esta argumentação diz respeito aos rumos

futuros, às políticas públicas com as quais o grupo pretende articular, aos novos

arranjos comunitários e, inclusive, a possibilidades de uma desistência do pleito –

em função de um sentimento extremamente oneroso, em certas situações, acerca

dos custos da assunção da identidade.

131
Essa “argumentação quilombola” deve ser evidenciada, a fim de fugir de

qualquer perspectiva congeladora ou totalizadora no que diz respeito à coesão

social do grupo quilombola. O grupo constantemente negocia com a sua tradição,

“argumentando” sobre as suas possibilidades futuras. Discordâncias sobre o

encaminhamento de questões práticas no seio do grupo não significam falta de

coesão social. Significa que os atores apresentam relações diferenciadas com os

recursos materiais e simbólicos da comunidade, promovendo interpretações

diferenciadas sobre os eventos. Durante meu trabalho de campo nos Alpes, foi

possível encontrar pessoas contrárias à atual demanda quilombola. Vale ressaltar,

contudo, a existência de uma certa “comunidade de argumentação quilombola”,

onde há um plano possível para a discussão. As discordâncias não implicam

necessariamente que os sujeitos não estejam mais conectados em algum nível,

significa, antes de tudo, a existência de um dissenso dentro de um consenso inicial.

Negociar regras, aspirações e projetos futuros também faz parte de um código

compartilhado.

Em diferentes momentos assisti os moradores da comunidade dos Alpes em

defesa à mata nativa do Morro dos Alpes. As queimadas e a destruição extensa área

de vegetação nativa (que realmente é bastante abundante nesta parte da cidade de

Porto Alegre) sempre fizeram parte das pautas de discussão do grupo quilombola. O

que chama a atenção, nestes casos, é que as “defesas” não eram necessariamente

dirigidas a espaços que estão colocados dentro das definições do mapa técnico do

quilombo. Este elemento nos faz retomar a idéia de que as relações compostas na

vida cotidiana dos moradores caminham para muito além do espaço ou das

objetificações produzidas pelas interferências do poder público.

132
Algo deve ser dito quanto às vigílias que, como pude evidenciar, são

acionadas sempre que a comunidade entende enfrentar uma situação de perigo.

São realizadas pela comunidade quando esta se encontra em risco de ser “invadida”

por pretensos proprietários de faixas do território atualmente ocupado pelo quilombo.

Logo no início do trabalho na comunidade, tive a oportunidade de presenciar

momentos de tensão no que diz respeito a esse aspecto. Em local fortemente

representativo da memória local do grupo – a “Casa de Pedra” – foram colocadas

placas que indicavam que aquele espaço pertencia a um particular. Em outros

momentos, topógrafos foram flagrados no local coletando dados sobre o espaço

físico do quilombo.

Fotografia 12 – Placas colocadas em local tradicional da comunidade por uma


empresa particular ainda no início do trabalho de campo em 2007.

Fonte: Cristian Jobi Salaini


133
Estes fatos geram constrangimentos à comunidade que, não certa da

natureza das “misteriosas” visitas, fica receosa de circular pelos tradicionais espaços

que lhe são de costume. Assim, os locais que são nitidamente reconhecidos pelo

grupo como sendo “do quilombo” têm o seu acesso reduzido em função de uma

sensação – não raramente encontrada na comunidade – iminente de defesa do

território tradicionalmente ocupado e gerido pela comunidade quilombola.

Porém, cabe notar que a atitude tomada pela comunidade negra, frente à

possibilidade de ter seu território “invadido”, acaba por evidenciar o caráter coletivo

das ações que são recorrentemente encontradas no espaço aqui apresentado até o

momento. Recentemente, o grupo constituiu uma “frente” com o objetivo de construir

uma cerca que delimite o acesso de “automóveis estranhos” no espaço do quilombo,

fato que ocorre freqüentemente quando pretensos proprietários reivindicam porções

do território quilombola.

As pessoas dividiram tarefas diversas tendo em vista este fim, recrutando

sujeitos com as habilidades necessárias para tal empreendimento. Muitos dos

“construtores” em questão alternaram suas atividades de trabalho diário na cidade

com a esta ação específica no espaço do território quilombola. Porém, esta ação

não se resume apenas ao desenvolvimento de tal cerca. Existe também uma “vigília”

processada quase que diariamente com o intuito de resguardar as fronteiras de

acesso do quilombo. Estas vigílias, freqüentemente realizadas à noite, ocorrem

através de grupos que se revezam sistematicamente.

134
Fotografia 13 - Trabalho coletivo da comunidade na construção da cerca.

Fonte: Cristian Jobi Salaini

Minha trajetória junto a este grupo social durante estes anos aponta para

certos “ônus” da identidade e os riscos de sua manutenção. Em diferentes

momentos da trajetória do grupo vivenciei Janja negando a entrada de novas

políticas públicas ao grupo, sob o argumento de que “nem sempre a visibilidade traz

coisas boas”. Segundo ela, ficava claro que a visibilidade teria um preço alto, onde

os conflitos construídos com os “antigos amigos da vizinhança”, com a especulação

imobiliária e com a morosidade das fases dos processos administrativos traziam

algumas conseqüências desastrosas e desarticulações ao grupo.

135
O que fica evidente, nesta relação entre a comunidade quilombola, o aparato

estatal e os demais grupos envolvidos, é a constituição de certas relações ambíguas

do ponto de vista da identidade. Por um lado, essa abertura ao agente figurado pelo

Estado trouxe uma série de conseqüências do ponto de vista das construções

identitárias, evidenciado processos de negociação e visibilidades identitárias. Por

outro lado, essas construções atuam em certo nível da apreensão identitária, não

relevando que, em outras camadas, o grupo continua articulando com suas

“tradições” e com a sua historicidade, com a diferença que agora tem novos desafios

e enlaces identitários que se desenvolvem.

Os agentes públicos acabam criando uma relação latente com a comunidade

quilombola, já que, em certo sentido, não mais é possível pensá-la fora desse novo

contexto de produção semântica. Essa latência, contudo, não apresenta uma

comunicação tão imediata com outras camadas da vida cotidiana.

2.4 Territorialidade mítico religiosa. Nominações criativas.

O objetivo nesta seção é discutir a maneira criativa com a qual o grupo vem

(re)nominando o seu território no longo percurso de embates que se desenvolve

junto à comunidade. Durante meu contato de pesquisa com os Alpes, que teve início

no ano de 2007, pude evidenciar diferentes possibilidades nominativas a mesmos

espaços físicos. Alguns espaços são simultaneamente locais das antigas e novas

brincadeiras e também espaços de conotação religiosa. Certos locais apresentam-

se, de forma concomitante, como espaço de sociabilidade e espaço do religioso.

Esta dimensão territorial articulada pelo grupo foi apreendida ao longo de um

136
percurso de pesquisa, algo que coloca o percurso do relatório técnico enquanto um

processo reflexivo por parte dos próprios quilombolas. Reflexivo, pois não se trata de

desencravarmos “nominações prontas” ao território como se estivessem apenas à

espera do pesquisador. O espaço do relatório ativa um tipo de atitude reflexiva do

grupo que promove um diálogo criativo entre as categorias “antigas” e “novas”

compartilhadas pelo grupo, demonstrando um processo dinâmico e processual do

entendimento do território. Neste sentido, o elemento religioso funciona como um

tipo de extensão metafórica no entendimento do território quilombola. Não se trata

de buscarmos o entendimento destes espaços apenas do ponto de vista de sua

toponímia, mas do elemento reflexivo que coloca os sujeitos frente a processos

reinterpretativos acerca de seu território. A nominação religiosa, aqui, atua como

uma metáfora territorial. Metáfora que se encontra em constante processo de

aprendizado pelos integrantes do quilombo dos Alpes.

É preciso dizer que não foram poucas minhas caminhadas pelo território do

grupo social hoje conhecido como “Quilombo dos Alpes”. Porém, apesar das

categorias que “saltam aos olhos” a todo o momento, e que expressam seus

espaços vividos e ancestrais, não posso dizer que elas tenham sido imediatamente

apreendidas por mim. Realmente precisei de certo tempo até concretizar, do ponto

de vista analítico, que as categorias articuladas por este grupo social são

profundamente enraizadas pelo mesmo e fazem parte dos esquemas explicativos do

grupo, dando sentido a um espaço dotado de uma historicidade específica. Se, num

primeiro momento, as categorias religiosas por mim apreendidas em campo

pareciam um tanto quanto “comuns” e corriqueiras a um morador porto-alegrense

relativamente informado sobre a religiosidade afro-gaúcha, logo vi que se tratava de

muito mais que isso. As categorias em questão não informavam estritamente um

137
pertencimento religioso, seja este individual ou coletivo. Elas informam, antes de

tudo, uma forma de interpretação do espaço que está profundamente relacionada

com a história do grupo. O grupo, profundamente conhecedor das categorias

naturais e do seu espaço físico, encontra as relações metafóricas de adequação no

espaço mítico afro-religioso.

A territorialidade dos Alpes é construída através de diferentes elementos de

pertenças étnicas, sociais e culturais. Entre eles, o elemento religioso, pela

associação que realiza com a vida comunitária do grupo, atua como conector entre o

passado e o presente de práticas já consolidadas pela comunidade. Pretende-se

argumentar aqui sobre algumas relações entre a religiosidade do grupo e seu

conhecimento daquele espaço. Os elementos simbólico-religiosos do grupo, ao

serem acionados, nos revelam uma conexão indissociável entre prática religiosa e

conhecimento do território.

O principal terreiro na comunidade é o terreiro do Pai Milton de Oxum, e

muitos descendentes de Dona Edwirges são filhos-de-santo desse representante

religioso central ao grupo; é ele quem “atende” à comunidade. A casa do Pai Milton

cultua a nação jejé com Ijexá26, conhecida por operar com o cruzamento entre “duas

nações”, e caracterizando-se por ser um “batuque de Linha Cruzada” –

denominação freqüentemente utilizada no Rio Grande do Sul para esta modalidade

de terreiro. Na Casa de Pai Milton são cultuados os 12 orixás (e suas variações)27,

os Caboclos (Pretos Velhos e demais “espíritos das matas”) e ainda há um espaço

26
“Para o Rio Grande do Sul desceram os negros da Costa da Guiné ou Nigéria, com suas Nações:
Jeje, Ijexá, Oyó e Nagô. Como a escolha de ficar juntos ou não não pertencia aos negros, estes eram
misturados nos navios, havendo assim uma união de Nações, destacando-se suas peculiaridades.
Nascendo assim outras nações: Jeje-Ijexá, Jeje-Oyó, Jeje-Nagô, e assim por diante”
http://www.xapana.com.br/apresentacao.htm, 16/11/07, 16h39min.
27
Os 12 Orixás são: Bará, Ogum, Iansã, Xangô, Odé, Otim, Ossanha, Obá, Xapanã, Oxum, Iemanjá
e Oxalá e eles variam se aliando a outros, por exemplo Ossaim de Xapanã.
138
reservado aos Exu e Pomba-Gira. Cada uma dessas entidades tem “um lugar onde”

e, segundo ele, a definição do lugar depende, também, “do que tu quer”.

Assim, a prática religiosa está vigorosamente vinculada com o “saber circular

no morro” e com conhecimentos classificatórios específicos que fazem parte do

cotidiano do grupo: as especificidades do morro.

“(...) todo mundo conhece... Já sabe onde tem que ir... esse aqui é no
mato assim, esse aqui é dentro d’água, esse aqui é ali naquele
cruzeiro de mato, e assim eles vão indo lá. Não precisa ta junto
deles, eles já sabem, não precisa ta sempre junto. Eu só faço aqui,
monto aqui, quando dá pra mim ir eu vou, mas quando não dá que
tem muito serviço eu digo: isso é em tal lugar (...) agente precisa de
cruzeiro de mato, e tem certos serviços que tem que ser específicos
daquele lugar, senão não dá efeito”. 28

Fotografia 14 – Objetos religiosos na casa de Maitê.

Fonte: Cristian Jobi Salaini

28
Entrevista realizada por Cristian Jobi Salaini com Pai Milton em 2007.
139
As “oferendas religiosas” são colocadas em locais específicos do morro que

apresentam nexos com a cosmologia referência da comunidade. No plano das

representações do grupo ocorre uma fusão entre o elemento religioso e espaços que

perfazem o cotidiano e a memória coletiva do grupo. Na prática, não há uma

separação nítida desses aspectos da vida comunitária. Ocorre, de fato, um

cruzamento entre o espaço vivido-lembrado e o espaço cosmológico-religioso.

O que se pretende demonstrar aqui é a presença de uma territorialidade

religiosa que encontra nexos seletivos com a dimensão étnica em jogo. A construção

de etnicidade do quilombo dos Alpes se faz através de elementos que são

construídos em sua história local e que preservam a relação com os seus espaços

naturais no morro via categorias religiosas:

A religiosidade afro-brasileira insiste, num primeiro momento, em não


artificializar a forma do que é demasiadamente grandioso para as
mãos humanas. São formas naturais que no encontro com
determinados momentos mitológicos irão ganhar uma presença
divina. Uma rocha qualquer não representa um princípio divino
qualquer. A forma de um olho pode indicar a presença de um certo
orixá numa rocha recolhida do lugar apropriado (a beira de um rio,
normalmente): orumilaia, o senhor da visão e conseqüentemente da
adivinhação. Um brilho dourado na rocha pode ser indício de uma
Oxum, a dona do ouro. Existe um jogo de formas regido por um
sistema mitológico que deve ser confirmado pelo jogo divinatório.
Pode-se dizer que as forças naturais que os orixás representam se
cristalizam em determinados momentos, se singularizam em certos
elementos, especiais por suas peculiaridades “naturais” que vão ao
encontro de momentos mitológicos (Anjos, 1993, p.135).

140
Esses lugares próprios à oferenda – que mudam dependendo da entidade

religiosa em questão - coincidem com pontos de convivência e memória da

comunidade. A pedreira, local tradicionalmente utilizado para as brincadeiras e

“escaladas”, é o receptáculo das oferendas de Xangô. Nos dias de hoje, com relação

à pedreira, há um “cuidado” dos morados em não arriscarem-se para muito perto

das fronteiras do seminário. Ali existe um perigo real em função da existência de

seguranças com seus “cães treinados”. A pedreira, onde muitos dos antigos

moradores negros da região trabalharam durante as décadas de 70, e também

espaço de brincadeiras e “escaladas”, está hoje sob o domínio do seminário lindeiro

à comunidade. A pedreira de Xangô acessa uma camada de memória onde os

quilombolas eram “livres” para circular no morro. Hoje tida com um espaço que

possui acesso relativamente restrito aos quilombolas, antes era local privilegiado de

circulação e atividades lúdicas. Durante o processo de pesquisa pude evidenciar,

dependendo do interlocutor e do momento no qual a etnografia se encontrava,

diferentes nominações ao espaço. Interessante foi perceber que ao longo do

processo cada vez mais pessoas foram aprendendo que se tratava de um

importante espaço religioso relacionado a uma divindade do panteão afro-religioso

brasileiro. Muito recentemente, durante o ano de 2011, durante diversas situações,

crianças dos Alpes me convidaram a visitar os arredores do espaço por eles já

nominado “pedreira do Xangô”. Interessante notar que muitos moradores não são

exatamente iniciados da religião afro-brasileira (neste caso o batuque) enquanto

“filhos de santo”. A iniciação em termos litúrgicos se dá apenas de forma relativa,


29
com muitas pessoas da comunidade sendo apenas “filhos encostados” . No

29
Categoria para aqueles que frequentam a casa de religião, mas não passam por todas as fases
iniciatórias.
141
entanto, o domínio e entendimento de determinadas categorias realça a relação que

os quilombolas vão constituindo com o espaço, dotando-o de uma ética própria.

Em outros momentos, o local preferencial das brincadeiras infantis era a

Lagoa da Oxum. Em situação específica, durante 2011, ao indagá-los sobre a Lagoa

da Oxum, foi-me explicado que se tratava de um “espaço dos antigos”. Espaço dos

antigos, nesse caso, tem relação direta com os espaços lúdicos frequentados no

passado, quando a configuração urbana apresentava outros contornos e os

condomínios e casas não faziam parte do panorama do grupo. O que procuro

evidenciar neste momento é que não estamos lidando com um tipo de “fixidez

étnico-territorial”. O que ocorre de fato é um tipo de aprendizado acerca das formas

de nominações territoriais que se desenvolvem ao longo da historicidade do grupo.

A gruta dos Pretos Velhos, que foi construída cima de pedra plana, localizada

próxima às atuais moradias, foi local preferencial das brincadeiras de criança de

muitos dos atuais moradores da comunidade negra dos Alpes. Muitos espaços do

morro são compreendidos pela apreensão de categorias afro-religiosas, criando

interditos e restrições que conferem especificidades ao espaço estudado: as

crianças sabem que “não pode ir lá incomoda os Vô [Pretos Velhos]” 30.

30
Fala de uma das netas da Dona Jane, filha de criação de Dona Edwirges.
142
Fotografia 15 – Locais onde as entidades “comem”.

Fonte: Cristian Jobi Salaini

Esta dimensão de nominação territorial do quilombo dos Alpes apresenta uma

dimensão diferencial com relação ao seu entorno. No entanto, cabe evidenciar, há

um processo dinâmico e interpretativo dos próprios sujeitos em relação ao seu

espaço – são os próprios quilombolas apresentando o seu território enquanto

espaço reflexivo e sujeito a (re)leituras. Essas releituras, claro, não são livres de

constrangimentos sociais. Dialogam com elementos consensuais colocados pelo

grupo. O fato é que nem todos os moradores necessariamente interpretam tais

locais enquanto eminentemente religiosos. Para muitos, estes espaços evocam o

espaço do lúdico e das brincadeiras do passado. Ainda, no caso da pedreira, temos

a interpretação corrente de um local do “perigo” (os “cachorros brabos”) em função

de hoje se encontrar nos domínios do seminário jesuíta vizinho à comunidade. No

entanto, trata-se de um background possível de interpretação sempre colocado às

possibilidades de avaliação dos moradores: a nominação afro-religiosa apresenta-se

como uma possibilidade.

143
Vale ressaltar que – como já foi colocado em tópico anterior – a pedreira de

Xangô, durante os processos iniciais de demarcação da área, foi colocada em

dúvida pelos operadores, algo que rapidamente foi contestado pelos quilombolas

dos Alpes.

No desenrolar argumentativo do relatório técnico, o elemento religioso pode

se tornar uma ferramenta de grande importância na demonstração do elemento

diferencial – dos sinais diacríticos elencados. Mas vale ressaltar essa técnica

classificatória do grupo que faz com que o operador religioso se apresente como

uma forma dinâmica de reavaliação constante do território quilombola.

Fotografia 16 – Janja na Pedreira do Xangô.

Fonte: Cristian Jobi Salaini


144
Fotografia 17 – Janja realizando rascunho do território junto aos seu irmão Guinho.

Fonte: Cristian Jobi Salaini

O ato de representar o território via categorias religiosas confere ao Morro dos

Alpes um local de destaque no que diz respeito às práticas que envolvem o

elemento territorial-religioso:

Não tem mais muito lugar de mata fechada, água pura, para largar as
obrigações. O pessoal me liga e diz: Milton tu é privilegiado. Aí, volta
e meia acho coisa largada por aqui, mas é só olhar que já sei de
quem é. Não me importo, mas não gosto quando não avisam, tem os
mais chegados que ligam: Milton vou aí largar umas coisinhas. Eu
31
digo: vem né”

31
Entrevista realizada por Cristian Jobi Salaini com Pai Milton. Esse privilégio reflete um problema
que vem sendo discutido pelo Município de Porto Alegre: a dificuldade que as “casas de religião”
enfrentam para encontrar lugares adequados para suas práticas. Assim, a comunidade pode também
145
No passado, o Morro dos Alpes apresentou-se enquanto espaço de “fuga” e

espaço de “refúgio”, conforme atesta a memória coletiva do grupo. Sua localização

geográfica representou, para os primeiros moradores do local, uma possibilidade de

vida em isolamento dos “perigos” externos. Hoje, o Morro dos Alpes releva-se como

espaço privilegiado para a consecução de práticas afro-brasileiras, devido ao

panteão de elementos naturais conectivos de uma cosmologia específica. Porém,

como relatado na fala acima, há uma diferença entre o que vem “de dentro” e o que

“vem de fora” nesse tipo de prática – “quando alguém de fora coloca alguma coisa

aqui a gente vai logo ver se é coisa ruim” (Janja).

Neste sentido, temos um território amplamente reconhecido pelo seu

potencial afro-religioso, inclusive, pelos “de fora” da comunidade. Todavia, são nas

práticas conduzidas pela comunidade que a religiosidade se consolida naquele

espaço: seja através das atividades oriundas do seio do próprio grupo, seja pelas

ações de salvaguarda de seu território - nem todos são “habilitados” a depositar

suas oferendas naquele espaço - o elemento religioso fornece um código de

pertença fundamental àquele território, um delimitador.

Há, sobretudo, um dinamismo na reprodução do signo religioso no centro da

comunidade. O argumento central diz respeito à construção de um território religioso

que está fortemente conectado com a vida geral do grupo. Cabe notar a constante

(re)significação do símbolo religioso que realiza movimentos concêntricos e

excêntricos na vida da comunidade. A religiosidade evoca o saber sobre um território

de nem sempre fácil acesso – os moradores indicam a necessidade de cuidado ao

trafegar por locais distantes do “centro da comunidade”, de suas moradias atuais. Ao

ser apontada como um lugar de resistência dessa cosmologia na cidade que, com a urbanização,
cada vez mais perde espaços para a efetivação de sua prática religiosa.

146
mesmo tempo, essa religiosidade é trazida a este centro, revelando a importância

que ela ocupa na construção identitária do grupo. Exemplo disso é a construção de

uma “grutinha dos Pretos Velhos” em local muito próximo à atual sede da

associação quilombola:

“Perguntei para Pai Milton, e aquele pretos lá na grutinha como é a


história deles? – Ah, aqueles pretos foram achados aí na mata, lá
perto do laguinho. Eles quiseram vir pra cá, escolheram o morro. Por
afinidade, eles são seres do mato e foram escravos né.” 32

Alguns anos atrás, duas estátuas de dois “Pretos Velhos” foram encontradas

em meio ao território (mato). Esta situação se transformou em condição mais que

suficiente para o entendimento de que a religiosidade se encontra fundida ao

espaço, provocando uma série de conexões entre os espaços naturais e categorias

religiosas que promovem um processo reflexivo, por parte dos quilombolas, sobre

uma “ontologia da ocupação” quilombola.

Entende-se a afro-religiosidade enquanto sinal diacrítico da comunidade, o

que leva aos seguintes elementos:

A cosmologia religiosa dos Alpes atua como código articulador da pertença do

grupo. Porém, ela não atua de forma isolada. É através da metáfora do território que

ela proporciona um elemento distintivo.

32
Entrevista realizada por Cristian Jobi Salaini com Rosângela Elias da Silva em 2008.
147
Fotografia 18 – Gruta dos Pretos Velhos.

Fonte: Cristian Jobi Salaini

Fotografia 19 – Exterior da Gruta dos Pretos Velhos.

Fonte: Cristian Jobi Salaini

148
Os espaços de pertencimento tradicionais da comunidade são “confundidos”

com os espaços religiosos. Como colocado anteriormente, ocorre na prática uma

sobreposição desses elementos. O signo afro-religioso, quando em ação, promove

um “saber circular” pelo território, destacando limites simbólico-territoriais: trata-se de

um código comunicativo sobre o espaço.

Através da religiosidade há também o processamento da diferença entre os

“de dentro” e os “de fora” da comunidade. Mesmo que o espaço natural do Morro

dos Alpes seja reconhecido como privilegiado à prática religiosa, são os “de dentro”

que preservam os limites desse território.

A intenção aqui, ao destacar o elemento simbólico-religioso, não foi realizar

um tipo de conexão óbvia entre as identidades do grupo em questão e a identidade

religiosa em busca de algum tipo de “essência” de origem. O objetivo também não

foi trazer algo da “natureza” do grupo, mostrando uma natureza a priori dos

moradores daquele espaço. Ao contrário, o foco recaiu em uma das possibilidades

do campo interpretativo daquele território que realiza conexões efetivas e muito

práticas com o mesmo.

Se a historicidade dessa comunidade elencou a religiosidade como um código

possível das representações espaciais, é porque ela informa o grupo (e também nos

informa) sobre a sua vivência naquele território. Se, como é possível evidenciar,

existe um espaço natural preservado – uma vasta área de mata nativa – no Morro

dos Alpes, isto não é fruto do acaso. É resultado de uma cosmologia específica que

conferiu sentido àquele território.

O território comporta uma ambigüidade. Apesar de fazer parte das linhas

mentais coletivas dos grupos que ali articulam, do ponto de vista de um "leitor

149
desavisado" ele pode não aparecer, num primeiro momento, como um desenho pré-

definido. Ele não é um mapa geográfico, mesmo que, do ponto de vista da operação

técnica que articula o território, ele acabe sendo. Se há um "recorte" realizado nesse

território que não raramente aparece como um elemento difuso aos agentes

envolvidos (antropólogos, técnicos do INCRA, etc.), é porque as necessidades e

modelos administrativos assim se impõem. Nesse sentido, é bem verdade que

aquele território que aparece nas linhas finais de um relatório sócio-histórico-

antropológico já é (ou deveria ser) o resultado dos processos de evocação da

memória coletiva do grupo somado às demandas atuais do mesmo, que realizam

cálculos de risco que impactam diretamente em seus cotidianos. Talvez, ir além

daquilo que é "justo" implicaria num prejuízo que atua de forma concomitante nos

planos moral e prático do grupo. Do ponto de vista moral, e pode-se demonstrar isso

do ponto de vista etnográfico, não se deve pleitear nada além daquilo a que se tem

direito. Do ponto de vista prático, as escolhas implicam no tamanho dos embates

que a comunidade deverá sustentar junto aos seus vizinhos e aos seus lindeiros.

Isto significa que o grupo, de forma mais ou menos direta, continua se relacionando

com parcelas do território que ficaram “fora do mapa do relatório”.

Tem-se, portanto, um território que é acionado pela memória, e esse

elemento acaba levando à apreensão de um território que fala uma linguagem

própria, que não é necessariamente aquela que conhecemos enquanto técnica. Há,

sem dúvida, uma técnica em manejar os territórios ditos tradicionais, e o esforço

sempre foi e vem sendo aquele de criar algum tipo de canal entre essas "linguagens

nativas" e aquelas oriundas dos planos institucionais. O que ocorre, do ponto de

vista da memória do grupo, é que um território de outrora acaba sendo descortinado

num tipo de gramática que não é aquele que os operadores, ou nós, os "possuidores

150
de bens", conhecemos. Existe uma forma que emerge, muitas vezes de maneira

bastante fragmentada, e que não dialoga com os modelos de pensar a propriedade

individual. Não quero dizer com isso que não haja pessoas, dentro de um território

tradicional, que articulem com "modelos modernos de propriedade". Isso seria

exotismo. Tanto que existem hoje, do ponto de vista administrativo, estratégias que

procuram sanar os problemas oriundos da presença de quilombolas com títulos

individuais dentro de um território em processo de definição. O que nos interessa

aqui é entender que, de uma forma mais ou menos independente das pessoas que

nele habitam, o território comporta uma gramática e uma seqüência significativa que

lhe dão uma relativa autonomia, fazendo com que ele, de certa maneira, "fale por si".

O território é mediador e mediado pela atual reflexão do processo de pleito da

comunidade quilombola.

Essa dimensão expressiva do território pode ser captada de diferentes

maneiras. Creio não ser de difícil aceitação a hipótese de que, em função dos

recalcamentos históricos imputados aos grupos tradicionais, estratégias de

sobrevivência social foram desenvolvidas pelos mesmos. Alijados dos processos

hegemônicos, e sem o domínio do "mundo dos papéis", não é difícil imaginar uma

outra lógica de sobrevivência simbólica, que leve em conta elementos de suas

ancestralidades e de suas particularidades históricas. Por este motivo é que

precisamos estar atentos às categorias que emergem dessa territorialidade e que

transbordam os próprios movimentos de "efervescência política e identitária" típicos

aos processos de evocação de uma "identidade quilombola". A etnografia produz a

atmosfera necessária ao entendimento dessas camadas históricas produzidas pela

assunção quilombola.

151
A etnografia oferece as ferramentas que levam a esse processo de

"escavação" do território, demonstrando que há algo contigo no espaço que traduz

um conjunto de particularidades históricas. Essa escavação, porém, não pode ser

entendida como propriedade da incursão etnográfica. É algo conduzido através de

peças substanciais, que são concatenadas pelo grupo histórico ao longo de um

processo mais longo, pois, como dito anteriormente, a priori, o território não é um

objeto conclusivo. Ele toma a proporção de um "objeto" na medida em que sofre as

pressões da objetividade técnica, necessárias ao desenvolvimento dos trabalhos de

operação administrativa que ocorrerão no território.

152
3 RINCÃO DOS NEGROS. RECONSTITUINDO AS FRATURAS.

O trabalho de campo no Rincão dos Negros teve início em meados de 2007,

estendendo-se por 2008 e pequena porção do ano de 2009 33. Como dito

anteriormente, o desenvolvimento da etnografia no Rincão dos Negros enfrentou

certa dificuldade, já que a comunidade se encontrava relativamente desarticulada

em torno do pleito que se desenvolvia. Esta dificuldade, colocada mais num quadro

político, ainda apresentava conseqüências no que concerne ao conhecimento da

comunidade sobre o que de fato se desenrolava naquele momento com relação ao

pleito quilombola. As lideranças procuravam34 dar velocidade às atividades políticas

e informativas com relação ao pleito, mas o processo, ainda bastante incipiente,

parecia apresentar como uma das dificuldades o fato de existirem “poucos negros”

no Rincão dos Negros. Alguns “núcleos” isolados de moradores forneciam pontos

àquilo que, no passado, já fez parte de uma constelação bem maior.

Do ponto de vista analítico, porém, a etnografia pode revelar um grupo social

fortemente constituído através de tramas e níveis nem sempre facilmente acessíveis

a um “leitor desavisado”. Jacinta Souza, a senhora de escravos que deixou terras

para uma quantia razoável de escravos da região35, constitui-se em um mito

fundacional que acaba por realizar uma “ponte” entre a memória e história dos

descendestes dos escravos da região, figurando na imagem da “boa senhora” de

escravos. Leituras mais atentas sobre a mitologia local colocam, todavia, imagens
33
A equipe de pesquisa foi formada, além de mim, pela antropóloga Mariana Balen Fernandes e pelo
historiador Alejandro Gimeno. O trabalho ocorreu através de uma parceria entre o INCRA do RS e o
LABORS (Laboratório de Observação Social da UFRGS) sob a coordenação do sociólogo Ivaldo
Gehlen.
34
Durante nossa permanência em campo a presidência da Associação Quilombola estava nas mãos
do quilombola Adair dos Santos.
35
Detalhes sobre o testamento de Jacinta e sobre sua doação ver em “Relatório sócio-histórico-
antropológico do Rincão dos Negros (INCRA, 2008).
153
mais subversivas do passado negro da região. Figura não facilmente acessível pela

memória local, o antigo líder negro Mantoca percorre o caminho de uma memória

mais traumática constituída pelo grupo e que se encontra em camadas mais

profundas da memória do Rincão dos Negros. Não deixa de constituir, contudo, um

nível que demonstra uma comunidade que compartilha fortemente de laços

societários e, mais que isso, de juízos morais sobre antigas situações vivenciadas.

Em certo sentido, antagonizando com a figura de Jacinta, Mantoca produz a figura

de um herói negro que, à medida que o pleito foi se tonificando, emergiu a outras

camadas históricas do grupo, saindo um pouco da marginalidade narrativa do grupo.

Estas relações entre as figuras mitológicas nos dirigem para a própria construção da

territorialidade quilombola, como também para as imagens possíveis de serem

construídas quando em contato com um “outro” (o agente do Estado, o antropólogo,

etc.).

Considerando a dimensão dinâmica da memória, entendida aqui mais como

uma “ferramenta” ou um “saber-fazer” do grupo do que como um dado, torna-se

importante trazer a figura dos “multiplicadores da memória”. Estes multiplicadores,

como seu Joci dos Santos, ocupam um papel fundamental nas operações

necessárias entre o passado e o presente, o velho e novo. Dialogando com os

protagonistas quilombolas, fornecem um tipo de engrenagem que esquenta as

operações de diálogo entre a memória do grupo (que está para muito além dos fins

políticos do presente) e os quadros da atual demanda quilombola.

Os “mapas mentais coletivos”, como chamarei aqui a capacidade de

percepção de um território pelo grupo quilombola, não são totalmente contíguos às

atuais configurações espaciais. Tem-se um território quilombola que é desenhado

pela complexidade representacional de seus agentes: sua configuração mitológica,


154
as antigas redes de parentesco e os “pontos antigos” acessíveis apenas pela

expertise quilombola. Isto nos leva à compreensão de um território muito mais

complexo do que aquele normalmente apreensível pelos operadores responsáveis

pelo recorte de excedente de significados em um mapa. O mapa, claro, dialoga com

a vida nativa. Mas seria um erro de cálculo grosseiro comparar a complexidade

territorial articulada neste jogo entre o passado e o presente com a redução

estrutural de um mapa. O mapa do relatório técnico constitui-se, por diferentes

razões, em um recorte geometricamente aproximado da vida simbólica.

Fotografia 20 – Mapa de localização do Rincão dos Negros.

Fonte: Relatório sócio-histórico-antropológico da Comunidade do Rincão dos Negros.

155
3.1 Mantoca e o “fora-da-lei”. A memória subversiva.

“Mas era a mesma coisa que o Zumbi, né. Foi


morto por que”

Seu Francisco dos Santos

Parte-se aqui da premissa de que a narrativa mítica funde-se com a própria

história de grupos e sociedades humanas. Não se está, portanto, remetendo ao mito

como elemento que se confunde com o irreal ou como camada a ser descortinada

rumo ao “núcleo duro” do grupo. Trata-se, ao contrário, de elemento fortemente

emaranhado com as histórias e práticas locais, ajustando de maneira mais precisa

os limites daquilo que entendemos como “Rincão dos Negros”. Neste sentido, não

há uma oposição entre uma “verdade da história” e uma “verdade do mito”. A

apreensão do mito gira em torno de uma “pluralidade de mundos da verdade”

(Veyne, 1983).

O que está em jogo é a captação desta dimensão criativa existente entre

história e cultura. A mitologia local, ao ser acionada em seus elementos históricos,

coloca o esquema simbólico do grupo em risco, reordenando os seus significados.

Existe, portanto, um processo de “revisão” que se dá dinamicamente. As metáforas

e analogias são corolárias disso e não atuam apenas nos planos das

representações, mas produzem uma série de reajustes “práticos” na ordenação

simbólica do grupo. Os personagens do passado, neste sentido, não são apenas

rememorados; eles têm o poder de evocar uma força restituidora do passado e

renovadora dos eventos futuros, informando aos praticantes em curso na ação

histórica certos códigos fundamentais de ação. Porém, deve-se ter em mente, essa
156
revisão e a dinâmica entre cultura e história não se dão sem “amarras”. Sahlins

(2003) sugere que o domínio da criação e renovação semântica comporta certos

limites estruturais:

As improvisações (reavaliações funcionais) dependem das


possibilidades dadas de significação, mesmo porque, de outro modo,
seriam ininteligíveis e incomunicáveis. Daí o empírico não ser apenas
conhecido como tal, mas enquanto uma significação culturalmente
relevante, e o antigo sistema é projetado adiante sob novas formas.
Segue-se daí que ordens culturais diversas tenham modos próprios
de produção histórica. (Sahlins, 2003, p.11)

Portanto, temos um jogo complexo de adequações e ressemantizações do

grupo para com ele mesmo (passado e presente) e, ao mesmo tempo, um jogo de

adequações neste contato intercultural com os agentes e categorias que se

aproximam da comunidade. Faz-se necessário ter em vista esta complexidade de

encontros que fazem parte do ato evocativo, sob pena de perder o emaranhado

interpretativo que compõe o discurso mitológico do grupo.

No caso do Rincão, fica claro que o ato de narrar personagens associa-se

com a própria forma de ocupação daquele território. Mais que isso, trata-se também

da atualização, no plano das representações, do processo de mudanças dos limites

físicos daquele espaço através dos sucessivos movimentos no sentido da

desapropriação dos negros que ali residiram. Muitas histórias particulares de

moradores e ex-moradores negros apresentam a relação com a desapropriação e/ou

com a resistência em torno de seus espaços ocupados.

157
Algo que chama a atenção, na forma como a narrativa do Mantoca foi por

mim acessada, durante o trabalho de campo, diz respeito ao fato de não se tratar de

uma história acessível de forma fácil ou direta. Trata-se de uma história que me

chegou, num primeiro momento, através de fragmentos e “aos pedaços”. Com esses

fragmentos era possível chegar a uma ou outra pessoa e perguntar sobre o

conhecido Mantoca. Porém, o questionamento era muito freqüentemente respondido

com um “Mas o senhor já sabe dessa história? Foi um assassinato que ocorreu por

aqui”. A reticência na forma de narrar o ocorrido revelou uma memória coletiva a ser

descortinada, algo que não estava, pelo menos num primeiro momento, no panteão

das narrativas mais visitadas pelo grupo. Constituía-se, no momento do trabalho de

campo, enquanto uma história velada, algo que parecia revelar um elemento

traumático ao grupo. De toda forma, Mantoca, e seu entorno narrativo, comportam

uma dimensão histórica fundamental ao grupo que não pode ser negada. Ela revela

algo. Lida-se com uma espécie de operador totêmico que revela relações da

comunidade com o Estado e com outros contextos históricos mais localizados.

O que cabe notar aqui é que muitas dessas histórias apresentam uma relação

metonímica com a história de Mantoca: contar a estória de Mantoca é uma das

formais mais gerais, apresentadas pelo grupo, de narrar suas próprias vidas assim

como a ocupação negra do Rincão dos Negros.

Todos sabem onde fica a “encruzilhada do Mantoca”. Esse se apresenta

como capital da memória coletiva do grupo. Mesmo que algumas pessoas contem

essa história, num primeiro momento, de forma um pouco “desconfiada”, fica muito

claro como ela aglutina um modo de interpretar as relações entre negros e “não-

negros” na localidade.

158
Mantoca fazia parte de uma das inúmeras antigas famílias negras que

ocupavam aquele território, como fica claro na genealogia apreendida nesse

trabalho. Isso traz a possibilidade de entender o Rincão dos Negros como um

território mitificado pela presença negra na região: o antigo morador, pertencente a

uma das principais famílias da região, torna-se emblema atual de reconhecimento

negro naquele espaço.

“Ah não! Isso é falado! Isso todo mundo sabe. Isso todo mundo sabe!
Isso todo mundo sabe, não é só eu que sei! Isso não é só eu que sei!
Isso todo mundo sabe, isso é falado! Essa morenada tudo que
moravam, que aí saíram daí, moram aí e mora no Esteio. Moram no
Esteio, moram em Porto Alegre e moravam tudo lá e moram em Vera
Cruz, sabe, tudo contavam essa história. Eu ouvi falar nessa história.
Por isso que eu digo que essa Dona Sinhá, né, isso era parente do
falecido Mantoca. É, isso aí é falado. Isso aí ta abafado! O Mantoca,
esse [a história], era o Quincho e a Dona Sinhá. Isso eram os donos!
Isso todo mundo sabe. Mas por que que mataram ele? Ué, porque
que mataram...[baixa a voz]. E o terraredo era dos dois véio?! Ué, os
Panta [ voz baixa, risos] Os Panta. Sabia que tinha os Panta...Tudo
aí. Tudo parente por essas bandas da faixa de Cachoeira. Tem uns
Quincho daquela igreja ali, da igreja grande aquela. É os Quincho o
dono daquela igreja. Morava, mais isso já foi tudo caído,
desmanchado. Foi tudo caído, tudo desmanchado. Até os morenos
que moravam ali também. Foi ficando e aí foram desmanchando
aquilo e aquilo foi caindo. Todo aquele rincão ali era tudo aquele
rincão, aquela igreja ali era um casaredo só. Até a estrada de
Cachoeira era um casaredo só! Tudo sabe! Não é só... Tem miles,
milhão e milhão de gente, tudo sabe de quem era essas terras!
Ããhhh... Quem eram os donos dessa terra se não era a falecida
Sinhá e esse veio aí. Diz, diz que juntou assim sessenta homi! Ué,
mas ué... Mas eles podem contar por aí!!! Porque abrem a boca pra
contar? Porque eles não contam? Até a Santa sabe! Juntou sessenta
homi, diz que... Eu era criança e ouvi dizer: sessenta homi pra matar
159
o falecido Mantoca a tiro no mais! Uma bala...Era canhão e aquelas
coisas de quartel, que esses Panta tinham! Mas sessenta homi pra
matar um só, heim?! (...) Todo mundo sabe! Só eu que sou [era na
época] criança, mas eu tenho meio uma lembrança que eu vi contar
até o dia que diz que saiu aquele tiroteeeiooo, meus Deus! Era uma
guerra! Sessenta homi! Todo mundo sabe aí, todo mundo sabe:
sessenta homi. Sessenta homi pra matar um só”. 36

Fotografia 21 – Dona Ema em frente à árvore onde está enterrado seu pai,
no Rincão dos Negros.

Fonte: Cristian Jobi Salaini

36
Entrevista realizada por Cristian Jobi Salaini e Mariana Balen Fernandes com Ema em 2008.
160
Segundo os relatos, Mantoca seria um dos principais responsáveis pelo

“cuidado” com os limites e fronteiras das terras negras. Isto porque essas fronteiras

estariam se tornando cada vez mais móveis, devido à interferência gerada pelos

“outros” que “possuíam as cercas”. As histórias normalmente trazem que, quando

essas cercas propunham esses “novos limites”, lá estava Mantoca a desfazer com a

ação: ele arrancava as cercas.

“Mataram o Mantoca lá... por causa das terras... esses dois negros
que mais batalhavam por causa das terras... era dois irmãos... o
Mantoca eles mataram. Muitos de cavalo atacaram ele lá embaixo na
encruzilhada...os negros que tocavam! Minha mãe era sobrinha do
Mantoca....minha mãe é Prudêncio e meu pai é David, mas nós
assinamos só David.” 37

“Ali, as famílias foram saindo e foram saindo, porque inclusive


aquelas pessoas () que foi tudo roubado do negro e o (), quando
era guri, quando era guri eu... Não assisti, porque eu... Eu me
lembro, né, que mataram, justamente aquele negro... Pra não tomar
as terras que faziam frente, né, então foi por um morto, porque o
Maneco foi obrigado sair dali, né, pra não morrer ali, porque os
brancos tinham dinheiro, tinham arma, como de fato mataram o
falecido Mantoca ali, porque ele, inclusive, enfrentou a... Enfrentou...
Mas era a mesma coisa que o Zumbi, né. Foi morto por que Então
não tinha condições, era do tempo que agarravam o negro e
matavam e atiravam lá num banhado, enterravam lá e ficava por isso
mesmo, porque o branco era branco, tinha dinheiro, os negros, pobre
dos negros... E o negro, justamente, quando foram libertados... Foi
libertado o que (...) tinha as terras da minha avó, um pedaço de
terra da minha avó, elas foram roubadas. Foram roubadas,

37
Entrevista realizada por Cristian Jobi Salaini e Mariana Balen Fernandes com Joci Davi em 2008.

161
tamparam, no final agarraram e consumiram com os papéis, tocaram
fogo no cartório, eles consumiram com tudo, o terreno da minha
38
avó...”

Os informantes contam que, durante a década de 50, sessenta homens

formados por agrupamentos constituídos pelos novos pretensos proprietários de

terras da região reuniram-se com o objetivo de eliminar Mantoca. Esses sessenta

homens, que estariam todos armados, desferiram uma série de disparos com o fim

de exterminá-lo. Porém, Mantoca, que não morrera facilmente – foram necessários

muitos disparos – teria conseguido, já em seus momentos finais, desferir um último

golpe de faca no rosto de um dos líderes da ação assassina. Tudo isso teria

acontecido no local emblemático para a comunidade conhecido como “encruzilhada

do Mantoca”.

“Isso foi logo adiante daquela encruzilhada de estrada que tem ali...
nessa época eu era pequeno, mas eu me lembro de quando falecido
meu pai foi e disse vocês são crianças vocês não podem ir lá... não
podia ir lá porque o dia que mataram o homem... mas dali em diante
a gente foi gravando tudo que o pai falava a respeito do Mantoca...
dai depois a gente foi crescendo, mas ficou com aquela gravação
como existia até pouco tempo o homem que acabou de matar o
Mantoca que era o Lico Brum que morreu... quando o homem tava
caído no chão ele chegou em cima... o homem caiu com o facão na
mão ele foi e disse “ Ah desgraçado”. Chegou em cima pra acabar de
matar... ele ainda tava ainda movimentado com a ânsia da morte ele
levantou o facão e pegou bem na testa desse Lico Brum e ficou com
um caroço na testa dele assim que ate agora os últimos momentos

38
Entrevista realizada por Cristian Jobi Salaini e Mariana Balen Fernandes com Francisco dos Santos
em 2008.

162
que ele morreu ele tava com um sinal na testa do facão que pegou
na testa (...) ele chegou ainda se aproximou pra terminar de matar e
com a ânsia da morte ele levantou o facão e deixou marcado...ele
era bom de briga mas eles pra se adonar das terras então eles
queriam era terminar mesma coisa o Maneco Prudêncio era pai do
batista então os Panta fechavam... queriam se adonar das terra aí o
Maneco Prudêncio cortava a cerca se ele não podia corta de dia ele
cortava de noite e ae pro fim eles se juntaram um grupamento muito
grande pra termina com ele e ele teve de se vestir de mulher e fugir
pra porto alegre ...pra escapar (...) Ele não podia aparecer ele vinha
39
de noite que as terra tavam fechada... ele cortava o arame!”

“Surgiu que tinham matado ele... lá na varge [“vargem suja”]... isso já


é assunto de antigo... do meu pai... minha mãe... então... e ali na
igreja... ali na igreja então tinha um capão um figuerão que eles
faziam, festejavam a comemoração da morte do tio Mantoca... tipo
Maneco Prudêncio que é o pai do Tio Batista ele saiu de lá vestido
de mulher que queriam mata o nego veio. Aquele pessoal ali a maior
parte deles... eles eu não sei... queriam acabar com a negrada de lá..
40
.e dali o tio Maneco Prudêncio veio embora pra cá...”

Na seqüência do assassinato de Mantoca, Maneco Prudêncio teria fugido da

comunidade com vestes femininas. A fuga foi incentivada pela iminência de um

segundo ataque ao irmão de Mantoca, Maneco Prudêncio, outra figura

reconhecidamente emblemática da comunidade.

39
Entrevista realizada por Cristian Jobi Salaini e Mariana Balen Fernandes com Adão em 2008.
40
Entrevista realizada por Cristian Jobi Salaini e Mariana Balen Fernandes com Miguel Souza em
2008.

163
“Ele teve que sair vestido de mulher queriam matar ele como
mataram o Mantoca... o coitado do veio e desceu na Vargem e os
cavaleiros vieram pra matar o tio Maneco Prudêncio... e ae a veia
deu o vestido dela pra ele vestir... senão eles tinham matado. (...)
Daí tinham matado ele também e a gente ia ficar sem terra!” 41

Como anteriormente mencionado, não interessa nesse texto “desvendar a

verdade” por trás do mito. Nesse momento, ele apresenta-se como elemento capaz

de nos ajudar a desvendar algumas características simbólicas e territoriais da

comunidade.

Trata-se de uma história reconhecida pelos que vivem ou viveram no Rincão

dos Negros que é freqüentemente contada e recontada, apontando para uma

comunidade de sentido, uma comunidade moral. Mesmo que conhecida por outros

que não apenas os negros da região, ao ser contada por eles, ela dimensiona o

caráter étnico em questão, já que o fato que envolve Mantoca teria ocorrido entre

“brancos” e “negros”.

A imagem do Mantoca aponta para a noção de resistência negra na

localidade e para contextos vividos atualmente na região – “Temos que continuar

fazendo como o Mantoca”. Assim, lida-se com uma “mitopráxis” (Sahlins, 1990), já

que não se está frente a uma história que ocupa um lugar “frio” da memória coletiva

do grupo. Pelo contrário, lida-se com uma memória coletiva que ajuda fortemente a

construir os laços de solidariedade étnica dos negros do Rincão.

A encruzilhada do Mantoca encontra-se contida na história da comunidade de

forma mais ampla. Esse “espaço sagrado” do grupo traz à luz elementos que dizem

41
Entrevista realizada por Cristian Jobi Salaini e Mariana Balen Fernandes com Santa em 2008.

164
respeito aos antigos e atuais vínculos dos negros com aquele território. A

encruzilhada, isoladamente, talvez não evidenciasse muito. Porém, ao trafegar com

membros da comunidade, fica claro como todos os novos e antigos locais estão

conectados, sendo a encruzilhada um ponto de convergência de representações que

atua de forma destacada: trata-se de um dos “corações” do território – assim como a

capela e alguns outros.

A narrativa da morte do Mantoca está firmada na própria lógica das relações

entre os negros e “não-negros” da localidade. Uma lógica baseada em práticas

históricas de deslocamento do território negro da localidade, já que esses não

tinham condições de consolidar suas posições de pertencentes “oficiais” daquele

território. A ação doadora de Jacinta Souza não foi, de forma óbvia, suficiente para

consolidar a posição negra perante os novos ocupantes que, detentores do poder

simbólico e físico, impunham suas práticas.

Nesse sentido, há uma forma de lembrar/viver que se articula na memória do

grupo e que se consolida através da ação dinâmica de elementos simbólico-

territoriais. Se esses marcos ainda povoam o imaginário e a memória de atuais e

antigos moradores do Rincão, é porque sobreviveram ao processo que pretendia

extingui-los. A lógica de permanência desses elementos se dá pela continua

releitura dos aspectos tidos como fundamentais ao grupo.

3.2 A legitimidade nativa construída no contexto do relatório.

Pretendo trazer aqui o contexto de entrevista realizada com o Sr. Batista

Prudêncio, na cidade de Vera Cruz, vizinha a Rio Pardo. Nesse dia, acompanhou-
165
me na viagem a Vera Cruz seu Adair e sua irmã, Dona Santa. Tive de realizar

algumas negociações com Dona Santa no sentido de viabilizar a visita a Batista

Prudêncio, já que Dona Santa estava preocupada com o comparecimento em um

baile local. Como será mostrado, o baile faz parte de minhas incursões etnográficas

pelo Rincão dos Negros.

Chegando a Vera Cruz, na residência de Batista Prudêncio, conduzido por

Dona Santa e Adair, tive uma recepção, em um primeiro momento, não muito

calorosa. A filha de Batista Prudêncio atendeu à porta e disse que o pai dela não

tinha condições de nos receber, pois não estava muito bem de saúde,

principalmente depois de um acidente sofrido. Desconfiada, disse que poderia tentar

produzir uma conversa entre a equipe de pesquisa e o seu Prudêncio. Seu

Prudêncio chega até nós. Falamos que ele nos foi indicado por moradores do

Rincão dos Negros, e que todos relacionavam sua pessoa à figura de Mantoca, seu

pai, e grande figura emblemática das antigas terras.

Prudêncio, de forma emocionada, desvelou uma narrativa sobre as antigas

terras, falando das “perdas para os brancos”. Falou da história de seu tio, apontando

o mesmo para um antigo “defensor” das terras do Rincão dos Negros. Sua filha, ao

ouvir as histórias do pai, revelou que nossa chegada tinha lhe mostrado algo: que as

histórias, que sempre ouvira do pai, eram de fato verdadeiras! Ela narrou que

sempre pensou que as histórias contadas pelo pai, sobre as antigas terras do

Rincão, eram algum tipo de invencionice, e que nossa presença por lá acabava de

produzir um tipo de consolidação dos fatos narrados pelo pai. Dona Santa, tentando

reforçar seu reconhecimento do que estava a se desenrolar no momento, encorajou-

me a perguntá-lo sobre Ema, moradora do Rincão dos Negros. Algo que respondeu

166
com um: “Sim! Essa mulher nada como um peixe!”. Dona Santa me olha, procurando

dar a entender, através de gestos, que os dois haviam sido antigos namorados.

Conforme problematizam Thomson, Frisch & Hamilton (2006), existem

dilemas éticos e políticos no que diz respeito à “produção” de histórias orais pelos

pesquisadores. Existe uma relação de ajuste entre memória e subjetividade que

pode provocar fragmentações e questionamentos com relação à identidade do

sujeito. Retomar eventos pretéritos apresenta, enquanto possibilidade, um

enveredamento para questões que podem ser mais interessantes para o

pesquisador do que para o pesquisado. O desvelar de temas traumáticos ou que

envolvem/envolveram situações dramáticas coloca questões de ordem ética aos

pesquisadores. O trabalho de (re)construção da memória deveria trabalhar muito

mais no sentido da consolidação de um projeto ativo sobre os fins dessa “vivificação”

da memória do que na produção de um tipo de catálogo de entrevistas. De toda

forma, em muitos casos, conforme pondera Thomson, o próprio fato de “ser

entrevistado” pode servir como fonte de legitimidade a determinado indivíduo

perante seu grupo social.

O fato que se coloca durante um processo de “construção pericial” está para

muito além da formatação escrita apresentada aos operadores. As operações que

criam redes através de indivíduos que, por certo período de tempo estiveram

afastados, nos demonstram uma dinâmica que nem sempre é mostrada no campo

dos relatos técnicos. Sem dúvida alguma, para muito além do objetivo operacional

para o qual os relatórios são destinados, eles são “bons para pensar” lógicas de

constituição do reconhecimento que extravasam os limites do mesmo.

167
Fotografia 22 - Batista Prudêncio, filho de Maneco Prudêncio. Antigo morador do
Rincão dos Negros, hoje reside em Vera Cruz/RS.

Fonte: Cristian Jobi Salaini.

Fotografia 23 – A “encruzilhada do Mantoca”.

Fonte: Cristian Jobi Salaini.


168
A fuga do risco de uma “perspectiva culturalista” na escrita antropológica deve

ser parte das questões contemporâneas relativas à produção pericial antropológica.

O antropólogo, em sua condição de especialista da cultura, precisa evidenciar esse

Outro, nem sempre auto-evidente às categorias jurídico-administrativas. Nesse

processo, certos enquadramentos técnicos são respeitados e, não raramente, o

grupo acaba efetuando um caminho de “chapamento etnográfico”. Não se trata,

aqui, de produzir uma dicotomia entre “trabalhos acadêmicos” e “trabalhos periciais”

que, conforme aponta O’Dwyer (2005), apresenta o ponto comum de apoio no

trabalho de campo etnográfico. Porém, vale ressaltar as próprias estratégias

narrativas de construção desse outro. Se no campo acadêmico antropológico esse

“retrato” do outro faz parte das discussões mais trabalhadas da disciplina, nem

sempre poderíamos dizer o mesmo acerca das produções periciais. Há sempre o

risco da escrita etnográfica do relatório técnico ficar presa a um tipo de apriorismo da

instrução normativa. O dever ético-etnográfica é o constante tensionamento desta

relação, para que o trabalho pericial não tenda a ser desenhado como um

arrolamento de “características quilombolas”.

3.3 Seu Joci e os “históricos”. A memória reflexiva.

O Sr. Joci David, falecido, foi um morador bastante requisitado durante a

pesquisa no Rincão dos Negros. Sempre que iniciava o processo de entrevista com

alguém do Rincão dos Negros, principalmente entre os mais antigos, a fala era

sempre a mesma: “vocês precisam falar com aquele homem lá (o seu Joci)!”. Seu

Joci ocupava um papel fundamental no ambiente do Rincão dos Negros, pois, como

169
gostava de se definir, era um tipo de estudioso local – algo que contava com o

respaldo reconhecimento do grupo. Certas vezes, em reuniões junto à associação

quilombola do Rincão dos Negros, produzia calorosas argumentações sobre como a

sua localidade de origem deveria ser chamada. Conforme costumava argumentar –

algo que ficou muito presentes em nossos contatos com o mesmo – o local deveria

se chamar “Rincão dos Negros, Rincão dos Souza”. O sobrenome Souza, do qual

ele não abria mão de maneira alguma, referia-se a Jacinta Souza, a senhora que

deixou enquanto herdeiros seus antigos escravos. Seu Joci, convicto da “ação

libertadora” envolvida no ato, reivindicava que a memória de Jacinta estivesse

“encravada” no nome da comunidade: “Estas terras foram doadas pela Jacinta

Souza para os seus escravos, e ela mandou que ali eles fizessem uma cruz e depois

uma capelinha para a Nossa Senhora da Conceição da Bela Cruz”.

Eu diria que poderíamos entender a figura emblemática de Joci David,

principalmente no desenrolar dos processos oriundos do reconhecimento enquanto

comunidade quilombola, como um “multiplicador da memória”. Sempre com a

documentação testamentária deixada por Jacinta em mãos, Joci, no cotidiano da

comunidade, realizava um papel de “estopim” da memória, auxiliando no desenrolar

dos fatos que tomavam Jacinta Souza como ponto inicial.

Tivemos uma curiosa conversa informal com Joci, frente ao seu próprio

túmulo. Passando em frente ao cemitério da comunidade tive ciência que lá estava

seu Joci, construindo seu próprio túmulo. O fato me fez parar e iniciar uma conversa

com o mesmo que, convictamente, repetia que sua tarefa tinha relação com a

certeza que ele gostaria de ter de que seria sepultado junto às terras dos Souza, de

Jacinta Souza. Seu Joci, que em diferentes conversas, de forma repetida, sempre

reafirmou a necessidade de dar um caráter de “prova” àquelas terras através dos


170
“históricos”, parecia querer realizar um ato de materialização da memória; a certeza

de permanência na terra dos negros, nas terras de Jacinta.

Os “históricos”, sempre freqüentes nas falas de Joci, reapareceram quando,

neste mesmo encontro frente ao túmulo, ele aponta possibilidades sobre a forma

como o relatório técnico com vistas ao reconhecimento territorial do grupo deveria

ser construído: “tem duas maneiras de comprovarmos isso daqui: através dos

históricos da Jacinta Souza e através dos grupos de negros que moram ainda aqui”.

Pensando junto com Appadurai (1982), tem-se que a memória, ao dialogar com

passado, não usufrui de uma plasticidade sem limites. Os “históricos”, retrabalhados

pela memória local, não são imunes a um processo de construção de

verossimilhança. Não me apóio aqui, claro, na idéia de que o documento de Jacinta

forneceria um tipo de “verdade histórica” a ser trabalhada no presente. Funciona,

contudo, enquanto um suporte que dialoga com outros textos da memória cultural do

grupo, evidenciando que o trabalho da memória não dialoga com quadros temporais

de uma forma absolutamente inventada. Se o ato de rememoração “organiza”

quadros do passado, o inverso também é verdadeiro: o passado também possui a

capacidade de mobilizar os sujeitos nos processos de construção da memória

coletiva.

171
Fotografia 24 – Túmulo de Seu Joci David.

Fonte: Cristian Jobi Salaini

“Comemoração do Treze de Maio que era o dia da Abolição da


Escravatura. Sempre eles tinham um terço uma coisa, sempre faziam
um movimento lá. Esses feriados, eles fazem lá. E aí foi, fui ficando
lá e com aquilo depois quando fui, antenando alguma coisa...
sabendo mais ou menos que é que era os direitos... Até como esse
negócio de história nem sabia o que era! Falava em conservação,
queria conservar o nome, mas nem sabia. Diziam: “Mas isso é
histórico.” E eu fui aprendendo: era o histórico dali, era o nome dali
que eu vinha tentando, não botavam direito: Nós temos que
conservar o histórico daqui, o nome dali... O nome: Rincão da Souza,
172
porque a dona da terra chamava Jacinta Souza, e Rincão dos
Negros porque depois que ela deu as terras pros negros ficou um
rincão só de negros né. Então, o histórico eu vim debatendo que
tinha que ser Rincão da Souza e Rincão dos Negros. Rincão dos
Negros agora aí... eu fui tentando... começaram a dizer que eu dizia,
como é que dizem... não me lembrar do passado porque coisa do
passado não fala mais! Não, não, temos que conservar. Aí comecei,
no dia da festa de maio, aí eu comecei, conforme os véio falavam,
nesse dia do Treze de Maio a gente devia apresentar muita coisa
daquele tempo da escravatura, daquelas coisas assim. Eu comecei,
né, a apresentar alguma coisa aí alguns começaram a dar contra.” 42

Fotografia 25 - Joci David dos Santos em sua residência, no Rincão dos Negros.

Fonte: Cristian Jobi Salaini

42
Entrevista realizada por Cristian Jobi Salaini, Mariana Balen Fernandes e Alejandro Gimenez com
Seu Joci David em 2007.
173
Importante dizer que ascender à História faz parte dos reconhecimentos

morais desenvolvidos pelo grupo. Seu Joci, que nos ensinava a estratégia mais

adequada de argumentação do relatório antropológico, estava ciente deste

elemento. Não bastaria apenas a imersão, por parte do pesquisador, nas histórias

locais que fazem parte das trajetórias mais íntimas da comunidade; seria necessário

algo mais. Este processo de revisitação do passado, o momento então vivenciado

pelo grupo, deveria desembocar em um elemento de via dupla: ao mesmo tempo em

que a conjuntura de produção do relatório viria a fortalecer o processo de busca do

grupo atrás de suas memórias (um bom momento para os mais jovens se

apropriarem das memórias do Rincão dos Negros), essas mesmas memórias –

conforme sempre frisado por Joci – deveriam reverter em planos mais altos de

reconhecimento, e por isso mesmo Jacinta Souza não deveria ser esquecida, já que

se constituía na prova mais perene da constituição do grupo quilombola: Rincão dos

Negros, Rincão dos Souza.

3.4 Jacinta Souza e a “boa sinhá”. A memória aglutinadora.

...é Jacinta ou Princesa Isabel É Princesa


Isabel eu acho, né Eu faço confusão da D.
Jacinta com a Princesa...43

Dona Geralci

A figura de Jacinta Souza é elemento no qual toda a comunidade apóia-se ao

relatar fatos e acontecimentos de um passado distante. Ela aparece como eixo das

43
Frase dita por Dona Geralci.
174
narrativas que versam sobre a ocupação negra naquela terra, promovendo nexos

entre a história da escravidão e a atual situação do “Rincão dos Negros” frente às

pressões históricas no sentido da desagregação da comunidade negra no território.

Jacinta Souza é lembrada como aquela que processou uma doação das

terras aos seus escravos e, portanto, motivo da descendência negra encontrada

hoje na região. Ao ser trazida pela narrativa do grupo de forma ampla, torna-se o

motivo central em torno do pleito que traz a possibilidade de reconhecimento

definitivo do Rincão dos Negros enquanto comunidade quilombola. Jacinta Souza

apresenta-se como o mito fundador desse grupo: seu mito de origem.

Sua figura também demonstra a idéia de autenticidade ao território herdado

(existência de escravos e testamento) bem como de uma personagem que deu aos

negros a “liberdade”. De certa forma, representa a “boa sinhá” vinculando os

descendentes dos escravos a uma certa “dependência do senhor”. A atual situação

das famílias quilombolas remete a esta crença de que a doação das terras é um

sinal significativo de “bondade do branco” e merecimento dos negros pelo trabalho

escravo.

Maurice Halbawchs trata a memória coletiva como construída a partir de

quadros sociais compartilhados. Estes quadros atuam enquanto pontos de

referência evocadores de um passado construído em função dos problemas

existentes no presente. Os quadros sociais são “instrumentos utilizados pela

memória coletiva para reconstruir uma imagem do passado, a qual está de acordo,

em cada época, com a mentalidade da sociedade” (Halbwachs, 1992, p. 40,

tradução minha).

175
Decorre disto que mesmo o depoimento individual é capaz de localizar os

grupos de referência deste indivíduo. Assim, evidencia-se uma relação entre grupo e

memória coletiva, já que esta última só existe em função daquilo que é capaz de

manter-se vivo na consciência de determinado grupo e do indivíduo que a atesta.

Nesta direção, pode-se dizer que a existência de grupos está diretamente

relacionada com a manutenção da memória coletiva do grupo social. Faz-se

necessário, contudo, ressaltar essa natureza eminentemente ambígua da maneira

acerca das “formas de lembrar” no Rincão dos Negros. Encontramos, dependendo

do elemento em jogo, imagens fraturadas do passado, onde a memória prevê um

esforço de reconstituição do passado. No caso das memórias relacionadas à Jacinta

Souza – a sinhá – temos um forte elemento que define um aspecto de coesão do

grupo. Neste sentido, trabalha-se aqui no registro de pelo menos dois níveis de

apreensão mitológica do grupo, um que deve ser demonstrado e que dialoga

diretamente com o “universo branco” e outro, que dialoga mais diretamente com

uma “memória negra” recalcada – o Mantoca.

A comunidade quilombola do Rincão dos Negros, através da imagem de

Jacinta Souza, processa continuamente o seu sentimento de origem em relação

àquele território. Assim, Jacinta Souza persiste enquanto elemento da “história viva”

da comunidade. Ela não ocupa um lugar longínquo, localizado apenas ligeiramente

nas memórias/narrativas das pessoas relacionadas àquele espaço. Ela apresenta-se

como elo conector de elementos presentes nas vidas cotidianas das pessoas do

Rincão: não há, na prática, uma separação categórica em entre o “pensar” e o

“viver” a história de Jacinta Souza. A conseqüência disso é uma comunidade que

persiste enquanto coletividade negra, e essa figura do passado apresentam-se como

um “amálgama” das atuais relações existente enquanto origem e fundamento.

176
Porém, o que antes foi motivo de “merecimento” para os escravos, expresso

por meio de doação de terras por Jacinta Souza, hoje se torna causa de conflito

entre quilombolas e não quilombolas, tendo em vista a perda e significativa

diminuição das terras doadas aos negros.

De fato, os negros que ocupam hoje o território, estão dispersos ou situados

nas “beiradas” de um território muito mais amplo que reside tanto na memória do

grupo como no inventário deixado por Jacinta Souza – a responsável pela doação

de terras herdadas pelos escravos, em 1869.

Joci: Que eu logo que me criei eu comecei... me criei acompanhando


os véio, né, lá na igreja trabalhando. Eu, no negócio de acompanhar
eles lá, então sempre eu ouvi eles falar alguma coisa mais ou
menos... Então, o principal ponto que eu fiquei muito apegado foi
sobre a conservação dos histórico que eles falavam, falavam e eu
sempre ficava com muita vontade de [??] Até que ficou meio
decaído, devagar, às vezes uns não se importam aquela coisa. Então
o principal ponto é que eles sempre diziam, que o começo daquilo ali
foi o seguinte: a dona daquilo ali, daquela terra, chamava Jacinta
Souza. E ela tinha então um grupo de escravos, de negro, negros
escravos que aí ela tinha um grupo de negros escravos e tinha um
galpão que chamavam naquele tempo a senzala né?

Mariana: Senzala ãrrã. Ela era branca ou morena?

Joci: Acho que teria que ser branca. Geralmente sinhá, sinhô,
senhor, sinhá ou senhores eram brancos né. Então eu acho, teria
que ser branco né. Então ela tinha, os véio diziam que ela tinha uma
senzala, essa ali na frente... na época, nessa época não tinha igreja,
não tinha nada. Era campo, só! Tinha a terra, que era a terra dela e
a... o galpão lá, a senzala que era onde paravam os negros escravos
lá. Então, como sempre os véio contavam, como contavam...

177
existiam muito senhor ruim. Mas porque eles diziam, essa eu acho
que não era ruim, a Jacinta Souza. Aí ela tinha o galpão lá com eles
e tinha santo. Então, todos os feriados ela pegava os escravos dela e
vinha ali, onde é a igreja hoje, mas naquele tempo não tinha igreja,
era campo só, só campo. Ela pegava e trazia eles pra rezar. Então,
eu acho, já pra mim assim, que essa já não era uma sinhá ruim, né.
Porque, pelo menos, quanto a gente ouvia falar que muito senhor
matavam e davam. Tinha o tal de tronco, pelourinhos, que davam no
negro pra executar e muitas outras coisas que judiavam.

Mariana: Aqui mesmo?

Joci: Olha aqui acho que tinha algum, pelo que dizem, mas a gente já
fala no geral né. E então, ela quando... como é aquele negócio que
eles tinham...? Que ela tinha o santo e trazia eles no feriado pra
rezar, todo feriado ela trazia pra rezar ali. Ela rezava, ta tudo bem.
Quando chegou na época que, depois a Princesa Isabel deu a
liberdade, ela pegou a terra e os santos que ela tinha lá, dizem os
mais velhos, os antigos diziam, que entregou praqueles escravos que
eram dela, entregou a terra que é a terra do Rincão esse. Então
entregou a terra e os santos pra eles, pros negros, os escravos dela
né. Aí, depois que ela entregou a terra pra eles, eles dispensaram,
mas tudo... Mas naquela época ganharam a terra, mas dinheiro eles
não tinham, não tinham condições, tudo difícil. Mas se lembraram
assim daquele local, daquele lugar ali que era campo: “Vamos fazer
uma igrejinha aqui”. Só que não tinham dinheiro, né, mas
começaram a fazer a igrejinha, pau-a-pique. Vocês sabem o que é
pau-a-pique?

Mariana: Sim.

Joci: Pau-a-pique, campim, pedacinho de... coisinha assim né. Então


foi assim que eles começaram a fundar a igrejinha devagarinho.
Levaram não sei quanto tempo lidando daquele jeito, na boa
vontade, atando cipozinhos, coisa daqui e dali né. Tá, com o tempo
as coisas foram melhorando, não sei como. Quando começaram a

178
melhorar, foram melhorando e tudo, então aquilo a terra era deles,
tudo deles. Aí, quando... mais ou menos, um certo tempo que as
coisas melhoraram um pouco, que aí eles começaram melhorar a
igrejinha, aí que os brancos ali fundaram aquela outra igreja. Que
aquela igrejinha pequenininha, a Imaculada Conceição da Bela Cruz,
aquela é a mãe da outra.

Mariana: E naquele tempo ali, que construíram a igreja, foram os


negros que construíram? E só tinha negros ali Seu Joci?

44
Joci: Só tinha negros. Quando, no início, só tinha negros.

“Os véio diziam que ela [Jacinta Souza] tinha a Senzala... onde
paravam os escravos lá... todos os feriados ela pegava os escravos
dela e trazia pra rezar... não era uma sinhá ruim né... a gente ouvia
falar que muito senhor matava... judiava... aí então ela trazia eles pra
rezar ali... quando a Princesa Isabel deu a liberdade... ela pegou os
santos ali e entregou pros escravos... que era a terra do Rincão...
entregou a terra e os santos pros escravos... daí eles começaram a
fazer a igrejinha... pau-a-pique... foi assim que eles começaram... a
terra era deles... quando depois melhoraram um pouco...melhoraram
a igrejinha... os brancos fundaram a outra igreja... a igreja Nossa
Senhora Conceição da Bela-Cruz é a mãe da outra!” 45

“Porque ali era deles! Pois aquilo ali eram as terras da Jacinta Souza
que deixou aquelas terras tudo que vai até do lado Passo da Areia...
depois do Passo do Pai Pedro... que mora a Eloa... era do pai dele
era avô dele... quer dizer que aquilo ali é fora... mas lá pra trás
praqueles campo onde tem aquelas casa dos Panta tudo era terra
dos negro... doado pela Jacinta Souza... tanto é que pra ver aquela
cruz que tem lá dentro... era a cruz que a Jacinta Souza essa rezava
pros escravos... depois não sei se era um galpão o que era que ela

44
Entrevista realizada por Mariana Balen Fernandes com Seu Joci David em 2008.
45
Entrevista realizada por Mariana Balen Fernandes com Seu Joci David em 2008.
179
se reunia pra rezar pros escravos... e aquela cruz continuou naquele
lugar e depois construíram aquela capela que continua lá até hoje...
tu vê qtos anos! De certo uns 200 anos!” 46

Mesmo que a lembrança do inventário seja fundamental para o grupo, cabe

notar que a memória de Jacinta Souza “transborda” os limites que estariam contidos

em tal documento. Trazê-la à tona, significa, no plano das representações do grupo,

evocar um conhecimento da terra e de práticas freqüentemente compartilhadas pelo

grupo. As festas, os saberes, os locais ocupados e a idéia de uma ascendência

comum sempre apresentam, de forma direta ou indireta, algum tipo de relação com

essa figura emblemática do Rincão dos Negros.

Há o reconhecimento, por parte de atuais e ex-moradores do Rincão de uma

ascendência que apresenta relação com essa figura emblemática. Mesmo que, no

plano da memória do grupo, nem sempre seja possível resgatar isso com exatidão,

há a certeza de uma anterioridade da ocupação negra naquela localidade em função

da doação realizada por Jacinta Souza:

“... devido aos meus avós... na época da abolição diz que ela doou
pros negros... Souzas... era Jacinta Souza e nós assinamos Souza
por causa disso né... por causa do meu vô... bisavô... por isso nós
assinamos Souza...” 47

“Pois é. É essa aí que eu sei. Que aí que foi doada... e aí a maioria,


quase todos foram embora, aquele que não morreram, né... é Jacinta

46
Entrevista realizada por Cristian Jobi Salaini, Mariana Balen Fernandes e Alejandro Gimenez com
Jardelina Souza, filha de ex-moradores do Rincão dos Negros, em 2007.
47
Entrevista realizada por Cristian Jobi Salaini, Mariana Balen Fernandes e Alejandro Gimenez com
Miguel Souza, ex-morador do Rincão dos Negros, em 2007.
180
ou Princesa Isabel É Princesa Isabel eu acho, né Eu faço confusão
da D. Jacinta com a Princesa...” 48

“Que diz que doou aquelas... Que doou aquele lugar ali da igreja, foi
essa Jacinta Souza que doou pra fazer igreja, ela mesma fez essa
igreja e ia rezar ali... Que ia rezar com os escravos dela ali. E ali ao
redor da igreja tem os meus cunhados que moram ali, também agora
eu perdi o meu marido, o meu marido, as terras dele era ali, aí eu
fiquei com um bocadinho de terra ali perto da igreja...” 49

Meu objetivo aqui é demonstrar como a figura de Jacinta Souza apresenta

relação direta com o imaginário local da comunidade negra, sejam eles ainda

moradores ou não do Rincão dos Negros. Podem-se elencar aqui alguns aspectos

que colocam essa figura num local fundamental no que diz respeito ao

reconhecimento das pessoas do Rincão enquanto grupo pertencente de uma

territorialidade específica. Ao cruzar os aspectos documentais do grupo com sua

oralidade, fica claro que Jacinta Souza era a antiga proprietária das terras e, sua

subseqüente doação aos seus escravos, construiu um quadro favorável à

construção de um “território negro” na localidade estudada. Jacinta é conhecida –

juntamente com seus escravos – como propulsora das práticas locais religiosas. Sua

antiga moradia é apontada, por grande parte dos entrevistados, como localizada nas

proximidades da atual “igreja dos pretos” – nas proximidades de uma árvore de

“umbu”.

48
Entrevista realizada por Cristian Jobi Salaini, Mariana Balen Fernandes e Alejandro Gimenez com
Dona Geralci, ex-moradora do Rincão dos Negros, em 2007.
49
Entrevista realizada por Cristian Jobi Salaini, Mariana Balen Fernandes e Alejandro Gimenez com
Claides David, que reside próximo ao Rincão dos Negros, em 2007.
181
Sua figura é representada muitas vezes através da imagem metafórica de

Princesa Isabel. Isso remete à idéia do “bom senhor” que ajudou os escravos.

Certamente Jacinta apresenta-se como “mito de origem” da comunidade criando

uma comunidade de sentido em seu redor. As pessoas relacionam a ela sua origem

naquele local. Assim como Jacinta Souza, Mantoca povoa o imaginário social do

grupo estudado. Porém, se Jacinta aparece como mito de origem de um território

negro que remete à escravidão, o último evoca a própria noção de um território de

resistência negra vivo na memória e nas práticas atualmente protagonizadas pelo

grupo.

Existe um inventário e testamento deixados por Jacinta Souza aos seus

escravos. Porém, vale ressaltar aqui que a presença de tal documentação atua, no

seio da comunidade, como um propulsor de outros elementos presentes na “história

viva” do grupo. Como dito anteriormente, a memória de Jacinta Souza “transborda”

os limites de tais documentos, promovendo uma relação dialética entre história e

memória.

182
Fotografia 26 – Sr. Adair David (presidente da associação no momento em que o
relatório foi produzido) junto à árvore próxima à provável moradia de Jacinta Souza.

Fonte: Cristian Salaini.

Fotografia 27 – Adair dos Santos, presidente da associação quilombola.

Fonte: Cristian Jobi Salaini


183
3.5 Etnografia e camadas mitológicas

Estive em contato, portanto, com a construção de diferentes figuras e de

diferentes jogos de espelhos. Mantoca, na sua figura de “fora-da-lei”, foi relegado a

um tipo de patrimônio mais particular de acesso mais dificultado. Este sujeito fora-

da-lei, sem sobra de dúvida, apesar de ocupar um local menos acessível das

narrativas quilombolas, faz parte das estratégias simbólicas mais subversivas de

sobrevivência local. A etnografia, em seu movimento de aprofundamento no sentido

de categorias não imediatas, possibilita o entendimento dessas autoimagens do

grupo que são criadas e dependentes dos fluxos históricos.

Jacinta Souza, a doadora e a “boa mãe” dos escravos, joga o pesquisador na

condição de um “outro”, que pelo menos até certa medida da pesquisa, coincide com

a figura do Estado. O elemento mais emblemático de reconhecimento acessível ao

cabedal do grupo é a figura da doadora e seu respectivo documento de doação que,

para muitos moradores do Rincão, possuía valor jurídico atual. Visualiza-se certas

camadas de construção de reconhecimento por parte do grupo. Neste sentido, há

um esquema de construção identitária que, dotado de complexidade, sobrevive de

forma relativamente autônoma das relações com o Estado e das relações com o

“senhor”. Isto não significa reduzir o papel destes outros personagens – o Estado e o

“senhor” – das possibilidades simbólicas do grupo. Significa, ao contrário, acentuar

as relações e soluções criativas que o grupo produziu no sentido de sua

sobrevivência simbólica no tempo e no espaço, desafiando qualquer tentativa

classificatória fácil vinda “de cima”. A “evidência material” do quilombo cede lugar a

construções locais que se tornam fundamentais nos esquemas de resistência local:

184
Se porventura houver uma escavação para identificar quilombo,
nesse contexto, ela resultará quando muito na reconstituição dos
alicerces da casa-grande, o que poderá parecer contraditório e
extremamente paradoxal para os operadores do direito. (...) A
observação etnográfica aqui permite romper com o positivismo da
definição jurídica e chama a atenção para os instrumentos
epistemológicos tão odiados pelos empiristas e positivistas. É com
base nesses instrumentos que se pode reinterpretar criticamente o
conceito e asseverar que a situação de quilombo existe onde há uma
produção autônoma que não passa pelo grande proprietário ou pelo
senhor de escravos como mediador efetivo, embora simbolicamente
tal mediação possa ser estrategicamente mantida numa
reapropriação do mito do “bom senhor”, tal como se detecta hoje em
certas condições de aforamento (Almeida, 2002, p. 60-61).

Do ponto de vista da presente análise, não valeria qualificar, hierarquizando,

essas narrativas produzidas no seio do grupo (Jacinta e Mantoca). No entanto, as

estruturas de reconhecimento não se dão de maneiras lineares. Existem escalas que

se retroalimentam. O sujeito à margem, o Mantoca, ascendeu à condição mitológica

por seus feitos de manutenção dos limites da “aldeia dos negros”, lutando contra as

injustiças colocadas pelos antigos brancos que avançavam sobre suas terras. Uma

metáfora da resistência real do grupo que se perpetuou naquele espaço não

obstante todas as adversidades. Jacinta, atualizada nas representações do grupo,

funciona como elo com o passado escravocrata e como a “prova real” da identidade

do grupo que almeja planos mais altos de representação frente a esse estranho que

passa a fazer parte da história do grupo, o Estado.

185
3.6 Dançando no Rincão dos Negros. Reconhecimento local.

Dona Santa gostava muito de bailes locais. Os finais de semana, sem

exceção, pareciam ser organizados em função das atividades festivas locais, e os

bailes ocupavam o centro das atenções. No que tange ao trabalho durante a

confecção do relatório antropológico, cabe mencionar que Dona Santa (e seus

familiares) promovia sempre uma grande insistência no fato de participarmos - a

equipe de pesquisa - de bailes locais durante o trabalho de campo. O fato é que

durante o processo sempre surgiam duvidas da equipe nesse sentido, já que os

esforços deveriam ser dirigidos no sentido de contemplar os elementos demandados

pelo relatório técnico. Afinal, o que poderia existir de tão importante em um baile

local que estava fugindo às nossas vistas?

Apesar de algumas "fugas" da equipe de pesquisa à participação dos bailes

locais, foi chegado o momento da participação, já que Dona Santa fazia realmente

muita questão de nossa introdução nesse tipo de atividade típica dos finais de

semanas. O fato é que a participação em bailes locais, como poderíamos perceber

durante o desenrolar das situações, não ocorreu de forma tão ingênua ou fortuita

como poderíamos imaginar. Conforme palavras da própria Dona Santa, nossa

participação nos bailes locais foi boa, pois "puderam ver os brancos dançando com

os negros, e que existiam brancos que não eram racistas". O baile, momento

relativamente emblemático da vida local, vem demonstrar algo que perfaz os

elementos da vida cotidiana dos moradores do Rincão dos Negros. Apesar da não

existência de uma corda que separasse brancos e negros nos bailes 50, ficava clara a

50
Cabe notar que em muitas localidades do Rio Grande do Sul, até meados dos anos 60 (em
algumas localidades esse prazo foi mais longo), existiam bailes separados por uma corda. O objetivo
186
separação na hora da dança, na hora da escolha dos pares. Já na chegada ao local

ficava muito claro o fato de que os "morenos" estavam chegando à festa dos

alemães.

Estava frente, a partir da iniciativa de Dona Santa de nos levar ao baile local,

a um tipo de elaboração de uma “micro-justiça”, mostrada aos participantes da

festividade, que tinha relação com uma possibilidade muito pouco freqüente naquele

espaço: brancos dançando livremente com negros. Dona Santa, através de sua

insistência sobre nossa participação no baile, procurava elaborar um tipo de

microrreconhecimento local, onde uma senhora negra dançava com “os brancos

estudados de fora”.

Encontrei, para além das operações que envolvem o relatório técnico, a

evidência de um papel que nos foi colocado e que atuava diretamente nas relações

mais corriqueiras da vida local. O “ser visto com alguém de fora” e, mais que isso,

“branco”, significava uma “pincelada” de reconhecimento por parte de um “outro”

que, conforma narrava Santa, havia lhe proporcionado situações de desrespeito

social.

O contexto da produção de um relatório técnico, por si só resultado de outros

processos já coletivizados de busca por reconhecimento social (demandas coletivas

pelo reconhecimento do território quilombola por parte dos agentes estatais) já

produzia reflexos do ponto de vista da atualização de subjetividades. Não significa

dizer, claro, que a presença da equipe junto à Dona Santa alterou o esquema das

estruturas sociais locais. O que está em jogo é a apreensão de pequenas

possibilidades que demonstram maneiras pelas quais a demanda coletiva pode

era a divisão do baile entre brancos e negros. Todos poderiam frequentar o mesmo “salão”, no
entanto, não era permitida a dança entre brancos e negros.
187
refletir em parcelas do grupo quilombola e, mais que isso, refletir de forma

diferenciada ao longo do grupo. Trata-se de um processo de negociação e

“interpretação nativa” acerca da própria demanda coletiva quilombola. Se for

verdade que o sentimento de desrespeito e injustiça pode reverberar em planos

políticos mais altos de representação, talvez o inverso seja correto: os esquemas já

compartilhados intersubjetivamente acerca das lutas por reconhecimento

reverberam, em maior ou menos escala, no campo das subjetividades.

Fotografia 28 - Dona Santa (à direita) e Didi demonstrando uma reza do “Quicumbi”.

Fonte: Cristian Jobi Salaini

188
Este caso é apenas exemplar de outros espaços e situações que, assim como

o baile, são entendidos como desrespeitosos pelo grupo. O boteco local, a igreja e

as outras relações cotidianas demonstravam um complexo de relações entre

brancos e negros que, apesar das transformações ocorridas nas ultimas décadas,

parecia se realocar de diferentes maneiras. Se hoje os negros podem freqüentar as

igrejas dos brancos e vice-versa, outros códigos mais ou menos velados de conduta

racial e etiquetas sociais são elaborados no seio do grupo. E possível a convivência

entre brancos e negros desde que certas regras sejam estabelecidas e respeitadas.

Todavia, devido ao reconhecimento enquanto quilombolas, certas relações sociais

são rearranjadas criando, de forma mais ou menos explicita, mudanças relativas na

relação entre brancos e negros na localidade.

3.7 “Tudo faceiros nas terras dos pretos!” Arquivos mentais coletivos.

Todos os anos, no dia 8 de dezembro, ocorre no Rincão dos Negros a Festa

de Nossa Senhora da Conceição da Bela Cruz. A festa encontra enquanto local o

espaço que hoje é ocupado pelas duas igrejas da região: A “igreja dos pretos” (ou

dos escravos) e a “igreja dos brancos”. Até meados da década de 60 havia uma

divisão fisicamente definida entra as duas igrejas através de uma cerca. Hoje o local

funciona como um ponto de encontro das festas da comunidade e, principalmente,

enquanto espaço de sociabilidade e (re)memoração dos “tempos antigos” (Santos,

2001). Ex-moradores da região, que lá não mais residem, retornam, revitalizando

uma relação simbólica com o território que já não existe fisicamente. Em um

encontro com um ex-morador do Rincão dos Negros - Miguel Souza - (hoje residente

189
na cidade de Viamão/RS), escuto uma narrativa sobre um dos encontros festivos

produzidos no Rincão dos Negros, em função da festa de Nossa Senhora da

Conceição da Bela Cruz. Trata-se da história de um morador que “se perdeu” no

mato e lá acabou morrendo. Algo que, segundo Miguel, tratou-se de uma “busca por

justiça”:

“Miguel: até agora em dezembro... não sei se foi falado, a gente


esteve na festa agora... dezembro e um que era um rapaz filho de
lá... tio Orico... esse Orico foi com nós e o ano passado ele foi
conosco e de repente ele sumiu, nós estávamos todos ali do lado do
pavilhão... pros fundo... então nos tava tudo ali como é de costume...
churrasco. E nesse dia ele tava ele, a esposa dele e o pessoal daqui
todo. De repente ele levantou dali e foi em direção ao banheiro, né...
pro lado da figueira da Jacinta Souza... foi praquela parte de lá... isso
era mais ou menos pela volta de uma e meia... duas horas da tarde,
por ali. E quando foi ali por umas quatro hora a comadre começou a
se preocupar com a demora dele, né... com a demora dele... o Orico
não veio... o Orico não veio... o Orico sumiu e começamos a procurar
por ali... aqueles matos ali (...) e procura dali e procura dali e nada...
e veio a noite e nada de achar o homem. As terras do pai dele ali da
igreja fica mais ou menos um quilômetro... um quilômetro meio pra
frente pro lado do Rio (...)
Daí o resultado: não sei... parece que ele andou falando com uma
pessoa lá que ele não ia voltar pra Porto Alegre... que ele iria ficar
em uns parentes dele... mas o único parente que ele tem lá é uma
sobrinha q mora em Rio Pardo. Acho que ele foi pra sobrinha dele...
mas ficamos admirados que não avisou nada.. .chegamos na
sobrinha dele e nada! “Não... o tio não veio”. Fazer o que...
comunicamos a polícia... a polícia ajudou a procurar lá por aqueles
matos... gravatais... mas nada... foram achar quinta-feira... acharam
ele morto... justamente quase nas divisa das terra do pai dele. Acho
que ele queria ficar lá mesmo... ele já tinha planejado isso aí
justamente foi morrer lá....

190
Cristian: Como é que morreu, será?

Miguel: Acho q a ideia dele era morrer justamente... ficar lá com os


pais dele... morreram todos lá... porque tinha um irmão dele que
justamente no dia da festa tava fazendo dois meses que o irmão dele
tinha morrido... então tinha morrido um irmão dele tava fazendo dois
meses no dia da festa e ele foi e não voltou também.... acho que ele
já estava destinado pra isso. 51

A narrativa de Seu Miguel Souza é exemplar daquilo que se pretende

demonstrar aqui: a existência de “mapas mentais” acerca do território que

sobrevivem e se “reinventam” não obstante as pressões históricas que apresentam

hoje um Rincão dos Negros povoado de forma rarefeita, quando pensamos nas

gerações de descendência dos escravos da doadora Jacinta Souza. A vontade de

retorno ao espaço, sempre presente, articula-se com esse território ainda vivo na

memória; o território vive, mas não é mais vivido como nos “tempos antigos”.

Mesmo que as paisagens e os espaços tenham se transmutado em relação

ao passado, cabe notar que há uma forma de lembrar que respeita a apreensão de

pequenos vestígios, de pequenos “rastros” do passado. Uma antiga árvore, uma

antiga tapera ou os restos de uma antiga construção, podem funcionar enquanto

fundamento evocativo da memória do grupo. Assim, retoma-se a idéia, defendida até

o momento, que coloca o território – e a territorialidade – nem sempre como um

dado automaticamente visível ao viajante desavisado. Existem mapas que se

colocam sobre outros mapas.

51
Entrevista realizada por Cristian Jobi Salaini com Miguel Souza em 2007.
191
Normalmente, os mapas do presente acabam por criar uma imagem parcial

de uma territorialidade implícita que sobrevive, de forma latente, podendo ser

atualizada via outros esquemas evocativos. Não raramente, esse momento eclode

com uma força mais notável por ocasião de um pleito por reconhecimento territorial.

Porém, as relações entre os sujeitos e os seus espaços já eram estabelecidos de

antemão, e o papel do pesquisador e dos demais agentes no momento do pleito

funciona como um acelerador desses elementos contidos na memória e na mitologia

do grupo. As formas de nominação do espaço, apesar de não encontrarem mais

respaldo direto nas mediações do presente, representam um espaço que se

encontra vivo através do ato narrativo e, acabam por desenhar os contornos dos

mapas mentais do grupo.

Dona Ema narra a presença de sua família na comunidade como inscrita num

circuito de relações que foram mais amplas no passado – “Isso aqui era tudo terra

de moreno!”. Dona Ema processa a oposição, no plano representacional, entre uma

antiga ocupação, densificada pela presença negra na região, e a atual: uma pálida

imagem do passado, quando comparada aos “tempos antigos”.

“Isto aí pra cima, da encruzilhada ali, dessa encruzilhada, sem ser


essa aqui que entraram pra cá, a outra. Pra lá daquela outra
encruzilhada, pra lá, isso era assim [cheio] de casa, ó! Quando nós
se criamo, era assim... era atupetadinho de casa! Uma casa por riba
das outras! Aí foram indo o pessoal, foram indo tudo pra Porto
Alegre, né... Outros morreram né... Outros foram morrendo e assim
foram. Era muita casa pra lá! É, maaaa! Tudo uma morenada só!
Era tudo uma morenada só! E se ia pro, lá pras banda dos clube dos
Panta. Já ouviram falar do clube, na faixa de Cachoeira lá? É, lá pras
bandas de Cachoeira, aquilo tudo diz que era morenada. Eu que
conhecia, porque era criança, me criei aqui né... sabia né. Bah, mas
192
tinha barbaridade! Olha, só numa casa só chegava ter oito, nove,
dez. Dez família numa casa só! Nossa! Era tudo uma vizinhança,
vizinho, isso era tudo vizinho! Dizer que o falecido meu pai fazia baile
duas noites! Dormiam só de dia!” 52

O irmão de Dona Ema, seu Adão, traz sua vivência naquele espaço ainda

hoje vivido por sua irmã. Narra também um passado que indica a densa povoação

negra naquele território e destaca a relação entre a presença das “taquareiras” e as

ocupações negras da região. Porém, aponta também para a lógica do êxodo das

famílias negras daquele espaço:

“É... porque isso ali acima da nossa casa... isso ali era minado de
gente morena que isso vinha de lá de cima tem os marcos em cada
taquarera que tem era um morador que morava ali... entao vinha até
aqui perto da casa da tia Ema pro outro lado da cerca tinha
morador... eu me lembro de que tinha as veinha com 90... 100 ano
que andavam carcudinha com bastãozinho(...) pro fim eles foram
apertando sabe.. apertando a negrada e a negrada tiveram que
respingar porque ficaram muito apertado né ali... teve gente que
compraram e aí não tinha dinheiro pra pagar... e aí o cara ia lá e
tirava um pedaço de terra dele... Isso mesmo... mais ou menos isso
aí. Eu me lembro de gente que morava no Rincão que teve que
entregar as terras em divida de mercadoria de alimento pra comer...
não tinha cerca... às vezes era gravatal não tinha condições de fazer
uma cerca de arame e aí como os branco tinham condição de fazer
53
foram fechando... fazendo cerca de alambrado...”

52
Entrevista realizada por Cristian Jobi Salaini e Mariana Balen Fernandes com Ema em 2007.
53
Entrevista realizada por Cristian Jobi Salaini e Mariana Balen Fernandes com Adão em 2007.

193
Dona Santa, 65 anos, relata a antiguidade de ocupação no espaço que hoje

divide com a família de seu irmão, o “Daíde”. Mostra os lugares em que o avô

Prachedes e a parentela em geral residiram no passado através de marcos físicos

existentes ainda hoje no espaço de seu núcleo familiar. Assim como nos casos

anteriores, há, no circuito desse grupamento, atividades específicas destinadas à

sobrevivência do grupo.

“Tinha bastante gente preta aqui. Aqui pra baixo era só gente
morena... a gente do falecido pai... tio Afonso, tio Prudêncio, tio
Estevão, tio Roma... tudo gente do falecido pai porque aí a Jacinta
Souza deu pros escravo... pros moreno que era os preto né... aqui
pra baixo era só casa e casa de moreno... e aí os branco foram
tomando as terra dos preto. Essa terra aqui na minha frente que vai
até ali embaixo no açude... que era nosso açude (...) Rincão dos
Crioulo mesmo que chamavam... e no fim ta só eu e Daíde aqui...
morando aqui (...) a cerca era tudo aberto aqui... a gente passava
aqui e ia buscar lenha... quantas carga de lenha... e depois eu
pegava os bois e ia buscar... tinha bastante mato mas é que antes do
Alvino Panta compro isso aí eles devastaram quase tudo. Eles
tomavam as terras das pessoas... eles compravam um hectare da
pessoa e iam fechando tudo.” 54

54
Entrevista realizada por Cristian Jobi Salaini e Mariana Balen Fernandes com Santa em 2007.

194
Fotografia 29 – Casa ocupada por Didi.

Fonte: Cristian Jobi Salaini.

Fotografia 30 – Marcos de memória apontado por atuais moradores (lugares de


moradias dos “antigos”).

Fonte: Cristian Jobi Salaini


195
Dona Santa também processa, em sua narrativa, um corte representacional

entre os “tempos antigos” e a atual ocupação negra. Narra um tempo onde as “terra

dos moreno” eram vastas, apontando, de forma bastante precisa, as antigas

ocupações negras e marcos físicos importantes da região. Ao assistir uma

colheitadeira de seu atual vizinho passando rente aos limites de sua moradia, Dona

Santa comenta, de forma perplexa: “Tudo facero na terra dos preto!”. A atual

ocupação física da família de Dona Santa responde, hoje, a uma pequena porção do

que foi o território antigamente utilizado por sua família.

Seu irmão, Daíde, 68 anos, também demonstra com precisão os limites das

terras ocupadas anteriormente pela sua família. Contudo, cabe notar como a

narrativa de Daíde corrobora, mais uma vez, a idéia de que seu circuito familiar

estava completamente imiscuído nas teias de solidariedade processadas pelo

“Rincão dos Negros”. A família, dessa forma, concretiza o seu sentido pleno quando

englobada por seu núcleo negro de referência. Daíde narra também outras famílias

e outros episódios relacionados ao seu circuito de vivências – “Onde tem uma

taquarera, tinha um negro...”.

“Cada taquarera é uma casa... era uma casa. Quando caia uma
parede já tinha uma casa pra fazer... lá na Percília... pai da Percília...
uma taquarera... os antigos. Era uma vila de casa de negrada. Ali
morava o Felisbino... o falecido tio Artur... o falecido Odalino e do
outro lado morava o falecido tio Congo... o Machado... o Dorvalino
Machado... é tio dos irmãos da igreja” 55

55
Entrevista realizada por Cristian Jobi Salaini, com Daíde dos Santos em 2008.
196
Cabe notar que durante a construção do relatório técnico uma das estratégias

metodológicas adotadas para a construção do “mapa quilombola” foi o

georreferenciamento destes espaços onde existiam as taquareiras. O que ocorria é

que durante o processo de georreferenciamento sempre acabava por ser produzido

um processo de memoração do território em torno dos antigos eventos e dos antigos

moradores negros – “Aqui era a casa do Seu Congo!”. O ato de encontrar uma

taquareira e a óbvia pergunta seguinte sobre quem ali morava no passado acabava

por evocar narrativas e processos acerca do Rincão dos Negros, revelando um

sentido não facilmente acessível a um “não iniciado” ao território. Minha dúvida,

instaurada no início do processo de campo, ia se esvaziando. Se havia uma

comunidade “fraturada” do ponto de vista espacial, com moradores quilombolas

colocados em pontos bastante esparsos do território, tínhamos um dia-a-dia muito

concreto com relação ao espaço. Mesmo que a maioria dos moradores tenham ido

embora face às pressões históricas, os moradores que ali permanecem ainda vivem

um espaço de outrora. Para estes, que circulam pelo território cotidianamente, é

impossível não dotar qualquer ponto aparentemente irrelevante de significado (uma

“casa comum” pela qual passávamos em frente, por exemplo).

É claro que esta dispersão do grupo apresentou certas conseqüências do

ponto de vista político. A existência de uma relativa dispersão do grupo em relação

ao pleito quilombola resultava em uma discussão rarefeita acerca do mapa final a

ser apresentado no relatório. O grupo não se encontrava fortemente aglutinado em

torno de uma discussão precisa sobre os limites e as possibilidades da área a ser

proposta ao INCRA o que resultava num discurso ainda bastante frágil, por parte dos

quilombolas, acerca do processo que vivenciavam. Porém, este fato de longe

encontrava fundamento nas profundas camadas históricas e de memória que eram

197
apresentadas pelo grupo quilombola. Se, por um lado, a relativa fragmentação acima

citada poderia derivar em uma fragilidade do grupo frente a outros grupos em litígio

no processo, do ponto de vista analítico cada vez mais ia se constituindo um grupo

fortemente recheado simbólico-territorialmente pelos “mapas mentais” do espaço.

Tínhamos, em verdade, um desenho relativamente constituído do mapa quilombola

em função destas apreensões “nativas”.

Um primo de seu Daíde e de Dona Santa, ex-morador desse mesmo “núcleo”,

apresenta uma narrativa no mesmo sentido. Novamente aparecem elementos que

remontam a relação entre marcos físicos e antigos laços societários desenvolvidos

pela comunidade no passado e que se reproduzem no presente, através do “idioma”

dos esquemas de parentesco e afinidade étnica. As famílias negras, localizadas com

precisão pelos entrevistados, eram englobadas pelo pertencimento ao seu

referencial mais abrangente: o Rincão dos Negros.

“(...) a casa do meu vô era cercada de taquara... taquarera... já na


casa do Daíde... tem taquarera! Na casa da Santa... tem taquarera!
Então logo pra baixo da casa da Santa era a casa do meu pai... tem
taquarera! Sabe por quê? Não é so lá não... devido ao vento... se
você ir na Cruz Alta que não fica mto longe dali deve ser um
quilombo também só que ainda não ta movimentado porque... na
época de guri... la era uma aldeia de negros também... como ali no
Rincão era uma aldeia de negros... ali quando eu saí de lá, só por
parte do falecido Prachedes que era meu vô, ali devia ter uma base
de quase 30 casas por ali... Tudo negro! Tudo Negro! Era uma
aldeia... tudo negro... e dali só existe o Daide e a Santa... Por parte
de pai... Prachedes [citando o avô]... e a vó... Antônia... e por parte
da mãe era Marcolino e a Joaquina... Morou todo o pessoal... como
eu falei ali no Rincão era uma aldeia! Era um grupamento
remanescente quilombiano... era tudo ali... e se contar as taquarera
que tem lá vcs vão aproximar as trinta casa só naquele miolinho do
Daide... ali na entrada do corredor do Daide... aquele corredor não
198
era ali... era antes de chegar no cemitério... no cemitério do Rincão...
era uma entrada que ia sair em frente à casa do meu vô
56
Prachedes...”

Fotografia 31 – Seu Daíde mostrando antigas ocupações negras da região.

Fonte: Cristian Jobi Salaini.

56
Entrevista realizada por Cristian Jobi Salaini e Mariana Balen Fernandes com Miguel Souza em
2007.

199
Fotografia 32 - Seu Daíde “imitando” a forma de cavalgar de uma importante figura
ancestral do Rincão dos Negros: a tia Dominga.

Fonte: Cristian Jobi Salaini.

“Só os irmãos do falecido pai eram uns 13... foram tomando desde lá
de cima... e os outros lá pra cima era só casa... de uma certa altura...
dali da igreja Santo Antonio até lá em cima era só casa de negro! Só
negrada! (...) Ficou o falecido pai que ficou agüentando (...) não tinha
arame... não tinha cerca... só preto! Tudo acostumado junto...
quando eles vieram... que foram fazendo as casas... tudo
acostumado junto... foram casando e fazendo as casinhas e faziam
em conjunto... fazia uma casa primeiro e depois juntava pra fazer
outra... um pixurú!” 57

Temos, segundo o que foi acima demonstrado, um modelo de ocupação

étnica que se articula com elementos do universo simbólico do grupo e de sua

57
Entrevista realizada por Cristian Jobi Salaini e Mariana Balen Fernandes com Daíde em 2007.

200
memória coletiva: Os atuais espaços familiares do Rincão dos Negros atuam como

espaços coletivos de subsistência e resistência coletiva do grupo. Os mecanismos

estão relacionados, claramente, à sobrevivência física do grupo naquele espaço.

Porém, essa sobrevivência física respeita os laços constituídos pela história,

memória coletiva, laços de afinidade étnica e parentesco do grupo. De fato, não há

uma separação categórica entre reprodução física e o universo simbólico do grupo.

Um é resultado do outro e vice-versa.

A atual narrativa da ocupação encontra-se diretamente relacionada à

“narrativa da expropriação”. Evidencia-se o processamento de um tempo passado

relacionado à densa ocupação negra na região em oposição ao tempo atual, o

tempo da fragmentação de um território anteriormente contínuo: ”antes tínhamos as

taquareras, depois foram vindo as cercas... antes tinha os gravatal, só depois vieram

as cercas”.

Mesmo que os grupamentos estejam, hoje, situados de forma esparsa pelo

território, suas relações propõem interligações muito precisas do ponto de vista da

memória coletiva. Além do elemento religioso que, como visto anteriormente,

conecta atuais e antigos moradores do Rincão, eles se ligam a esse território pela

percepção da origem comum e pelo reconhecimento de que aquele espaço pertence

aos negros e aos “morenos”. Não obstante as pressões históricas no sentido de

desarticulação física e simbólica do grupo, encontra-se no Rincão dos Negros, pela

evidência etnográfica, um grupo que persiste e reproduz-se simbolicamente. O relato

dos moradores – e destacadamente dos ex-moradores do Rincão – indica a

persistência de mapas mentais do território: todos sabem onde os “morenos

residiram” assim como todos são capazes de apontar os marcos memoriais que

“desenham” a territorialidade negra.


201
4 RINCÃO DOS CAIXÕES. RECONHECIMENTO EM MÚLTIPLOS NÍVEIS.

Fotografia 32 – Junto ao Rio dos Caixões.

Fonte: Cristian Jobi Salaini

Neste momento, procurarei realizar uma reflexão sobre o processo que

abrange o trabalho de campo realizado por mim na comunidade quilombola do

Rincão dos Caixões, localizada na cidade de Jacuizinho no Rio Grande do Sul 58.

Comunidade de difícil acesso, o Rincão dos Caixões se localiza em área limítrofe

entre os municípios de Jacuizinho e Tunas.

58
Este trabalho foi coordenado por mim, na condição de antropólogo. A equipe de pesquisa foi
constituída por Vinicius Pereira de Oliveira (historiador), Luiz Fontoura (geógrafo), Maria do Carmo
Aguillar (bolsista de história), Tatiana Rodrigues (bolsista de ciências sociais) e Nanashara Sanches
(bolsista de geografia). O relatório técnico foi realizado através de parceria realizada entre INCRA e
LABORS (Laboratório de Observação Social da UFRGS) sob a coordenação do professor José
Carlos dos Anjos.
202
Fotografia 33 – Localização da cidade de Jacuizinho.

Fonte: Zarth (1997).

A sua localização geográfica, como demonstrada no relatório sócio-histórico-

antropológico, tem relação direta com os fluxos migratórios ocorridos no pós-

abolição, quando determinadas comunidades negras acabam produzindo

desterritorializações e territorializações que constroem laços societários de

dependência com a sociedade local. Esses negros “de fundo de fazenda” acabam se

203
constituindo em um tipo de mão-de-obra barata aos sucessivos proprietários que se

instalam na região59. O trabalho de campo, realizado de forma mais intensa entre os

anos de 2008 e 2009 (existiram retornos realizados por mim à comunidade nos anos

seguintes), pôde apreender detalhes do processo de elaboração do pleito

quilombola que acabou por se constituir no quilombo do Rincão dos Caixões.

Meu argumento nesta seção gravitará em torno de alguns níveis

interpretativos que apresentam relação direta com as maneiras do grupo articular

com a sua memória, identidade e noções de justiça. Se o reconhecimento social que

hoje se instaura na rotina dos Caixões é possível, é porque na verdade ele se

constituiu como um “resultado” de microprocessos que de alguma maneira sempre

colocaram a comunidade em uma situação diferencial com relação ao seu entorno

através das categorias sociais existentes para determinado contexto – ora eles são a

“negrada”, ora são os “mariacos”. O que o contexto atual apresenta de singular é a

presencialidade desta “gramática quilombola” que coloca o grupo frente a este

diálogo (sempre incompleto, diga-se de passagem) entre as categorias do grupo e

aquelas novas colocadas pelos agentes.

Com relação a este ponto, devo (re)apresentar aqui o problema colocado pela

memória. Creio ser necessário pontuar essas dimensões praticamente

complementares da memória do grupo. Imagino ser possível a demonstração

etnográfica de que, ao mesmo tempo em que certos elementos acabam sendo

“aquecidos” pelas contingências do presente, temos um espectro de possibilidades

que vão muito além disto – apesar de dialogar, claro, com as possibilidades

evocativas do presente. Assim, a memória deixa de ser apenas uma característica

59
Detalhes consultar o “Relatório sócio-histórico-antropológico da comunidade do Rincão dos
Caixões” (INCRA, 2009).
204
que evoca a permanência de um grupo social no tempo para também se apresentar

enquanto técnica de manutenção territorial. A memória, ao tomar forma no presente,

ocupa um papel fundamental de poder em meio às demandas; ela se transpõe na

forma de argumentos do grupo com relação à sua identidade: a palavra tem poder

social.

Se o território não se apresenta mais concretamente ao grupo como nos

“tempos antigos”, ele se apresenta, mesmo que parcialmente, através da gerência

relativamente escassa do espaço. O especialista do território – o quilombola –

apresenta esta “habilidade” de visualização de um território portador de diferenças

mesmo em meio às novas configurações colocadas pelo agronegócio. Temos,

portanto, um território que não faz apenas parte de um apanhado de lembranças do

passado do grupo. Ele ainda faz parte da prática, de um modo de “estar no mundo”.

Portanto, o território apresenta, muitas vezes, esta condição aparentemente

ambígua: se do ponto de vista dos agentes e operadores envolvidos estamos a

resgatar algo do passado (me refiro aos contingentes territoriais não mais

diretamente acessíveis), do ponto de vista quilombola o território simplesmente “está

lá”.

4.1 Os micro processos de reconhecimento.

O objetivo, nesta seção, é demonstrar como a atual demanda da comunidade

quilombola está intensamente ligada à historicidade desse grupo social. A

comunidade quilombola do Rincão dos Caixões sempre resistiu naquele espaço.

Resistiu porque, ao ser colocada à prova pelos sucessivos “modelos externos” de

205
motivação de uso do solo – o “boom” da soja, por exemplo –, sempre encontrou

formas de gestão de seus elementos culturais e étnicos. Argumenta-se que o grupo,

em sua história, compartilhou com o seu entorno aquilo que chamaremos aqui de

microprocessos de reconhecimento da diferença. Ressalta-se esse aspecto para

tentar evidenciar os elementos que possibilitaram e eclosão do atual pleito fundiário

quilombola. Nesse sentido, pretende-se demonstrar como o atual pleito é apenas o

resultado final de um desencadear histórico. Essa comunidade, ao desenvolver uma

historicidade e uma especificidade frente ao seu entorno, promove as condições

necessárias e possíveis da reivindicação quilombola.

Já na década de 1960, como será explorado com mais detalhes adiante,

Régis Fiúza, ao conceder uma porção de terras a Erocilda dos Santos, o faz pelo

reconhecimento da existência de uma diferença marcada pela cor da pele. Conforme

o próprio relato de Dona Erocilda, Fiúza, no ato de doação, declara que daria aquela

terra para que ela pudesse criar os seus “negrinhos”. Em entrevista realizada com o

próprio Régis Fiúza, esse elemento é confirmado. Há um reconhecimento da

diferença por Fiúza no momento da emblemática doação. Ele narra que havia uma

mulher (Dona Erocilda) chorando à beira do rio (Caixões) e, como ela vinha de outra

fazenda, na qual havia inclusive levado uma surra, ele ofereceu as terras para que

ela pudesse se consolidar em um espaço. Esse elemento é fundamental, já que

Dona Erocilda, oriunda de outra comunidade negra – “o Sítio” de Arroio do Tigre/RS

– vinha num processo de deslocamento em busca de trabalho pela região. Poder-se-

ia dizer que nesse momento já se tem um marcante elemento no que diz respeito ao

reconhecimento da diferença: Fiúza, então proprietário de uma porção de terras da

região onde hoje residem as famílias quilombolas, reconhece, em Erocilda dos

Santos, alguém “diferente”.

206
Como se verá em outro momento, a comunidade se estabelece, quando da

venda das terras a João Carlos Kremer por Fiúza, através de relações de trabalho

com o entorno. Sua permanência naquele espaço, principalmente durante a

consolidação dos dois proprietários seguintes da localidade – Kremer e Vendrúsculo

– obedeceu/obedece à lógica da utilização do trabalho sistemático nas lavouras de

soja desses proprietários. Estabelecem-se relações verticalizadas de trabalho, onde

a existência de uma comunidade diferenciada – a “negrada”, os “mariaco”

(sobrenome do primeiro marido de Dona Erocilda) – informa uma lógica particular de

apropriação de mão-de-obra.

Cabe notar que o grupo social de uma forma geral, e Dona Erocilda de uma

forma muito intensa, são reconhecidos pelo entorno de uma forma bem ampla. A

rede social de indicados pela comunidade quilombola, durante o processo de

pesquisa, levou a pessoas residentes na cidade de Jacuizinho, Tunas, Soledade,

entre outras. A “negrada”, ou os “mariaco”, denominações utilizadas por muitas

pessoas para designar a comunidade do Rincão dos Caixões, conduz a um princípio

de distinção histórica vivida pelo grupo em suas cinco décadas de existência

naquela região.

Dona Erocilda dos Santos, conhecida por muitos como “Tia Fia”, é lembrada

por muitos como parteira, tendo realizado, inclusive, o parto de muitas pessoas da

região que não pertencem, necessariamente, ao grupo social negro no qual ela

ocupa a figura de matriarca.

“Erocilda: Ih! Quantos...


Cristian: Chegava a vir gente procurar a senhora, D. Erocilda, tem...

207
Erocilda: Tá lá ó, a mãe dela mandou me buscar aqui pra mim ir
fazer um parto dela lá na Tabajara, né, lá na Tabajara...
Querli (filha): A minha mãe também, né, a senhora foi lá, tanta gente.
Sebastião (marido de uma neta): Mas não só quilombolas, no caso,
né.
Cristian: Sim, sim, isso que eu queria perguntar...
Sebastião: Tem gente aqui pertinho que... a mulher do S. Nenê, aqui,
o parto... A senhora também fez do piá, né?
Erocilda: Ham, ham. Da mulher do finado Sírio, umas quantas.” 60

Tem-se que desde muito cedo a ocupação negra efetuada pela comunidade

que hoje encabeça o presente pleito por reconhecimento étnico-fundiário

representou um espaço de diferença frente à sociedade local. Essa diferença é ora

acionada via reconhecimento de uma distintividade que está dada pelo fenótipo – a

“negrada” –, ora pela noção de que a comunidade é detentora de saberes especiais,

como a técnica empregada no parto ou o conhecimento sistematizado de ervas

utilizadas para diferentes fins. Tem-se, portanto, claras fronteiras que promovem o

reconhecimento de grupos diferentes em situações de contato cultural.

Porém, essa clara distinção realizada pelo entorno sempre atuou, sobretudo,

como elemento chave da justificação para a constituição de relações desiguais no

mundo do trabalho. Ao mesmo tempo em que um determinado saber reproduzido

pelos “mariacos” poderia ser interpretado de forma positiva, a designação étnica do

grupo sempre lhe colocou em condições desfavoráveis junto ao mercado de trabalho

local, sendo-lhes conferido, durante muito tempo, o papel de trabalhadores

informais.

60
Entrevista realizada com Sebastião Cardoso e Erocilda dos Santos em 19/04/2008, por Cristian
Jobi Salaini e Vinicius Pereira de Oliveira.
208
A comunidade narra que antes do pleito quilombola os proprietários de terras

vizinhos chegavam de carro para buscar as mulheres para limparem as suas casas

e para fazer comida para a “peonada”. Os homens também trabalhavam

sistematicamente nas lavouras de soja vizinhas. Após o caminhar do pleito

quilombola, esse quadro de relações de trabalho foi alterado drasticamente, sendo

que tanto os homens do grupo quanto as mulheres possuem acesso dificultado ao

mundo do trabalho do entorno. Poucos homens da comunidade, hoje em dia,

trabalham no maquinário destinado ao plantio e colheita de soja dos atuais

proprietários.

Em 2004, o programa RS Rural61 chega à comunidade, que então toma

contato com o programa específico destinado às comunidades quilombolas. O

programa visou ao incremento de aspectos estruturais da comunidade, como a

construção de moradias e a fixação de uma caixa-d’água (que ainda estava

colocada em meio ao plantio de soja do proprietário). O olho-d’água,

tradicionalmente utilizado pela comunidade, teve seu acesso interrompido pelo

plantio da soja.

61
Detalhes ver Rubert (2005).
209
Fotografia 34 – Vista panorâmica da Comunidade do Rincão dos Caixões em 2008.

Fonte: Cristian Jobi Salaini

210
Fotografia 35 - Termo de Ajuste de Conduta (TAC) referente à área provisória da
comunidade quilombola do Rincão dos Caixões.

Fonte: Cristian Jobi Salaini

211
Deve-se evidenciar que o contato com o RS Rural faz parte de um outro

microprocesso de reconhecimento da diferença desse grupo da região. Ao ser

procurado por técnicos da EMATER da cidade de Jacuizinho/RS, devido ao

programa conter essa política específica para grupos quilombolas, o grupo precisa

articular o seu modo de vida particular com as demandas “de fora”. Mas o que

importa ressaltar aqui é que os agentes da EMATER sabiam da existência de uma

comunidade etnicamente diferenciada naquela local. Os “mariacos”, os “morenos”,

os “negros” do local são procurados para falarem sobre suas histórias da região.

“Na verdade essa parte pertencia ao Salto do Jacuí, né, então há


seis anos e meio que a gente tá aqui em sete anos de
emancipação... oito anos de emancipação, quem nos comunicou, na
verdade, e disse, “olha, vão fazer”, foi o pessoal do Salto do Jacuí,
né, eles nos disseram realmente, “olha, lá existe também”, que a
gente conhecia essa do Sítio, né, essa parte dali, então aí eles nos
disseram, “olha, vão lá que é certo”, então aí a gente começou a
trabalhar lá (...). O que a gente foi fazer na verdade, o primeiro
contato é vê se realmente eles se entendiam como negros, né, que
não adianta tu fazer todo um trabalho e tu não ter o reconhecimento
deles, mesmo como comunidade, né, quilombola, como negra, então
foi isso que a gente foi fazer, bem discretamente ainda, pra não
precisar sair corrido de lá, né. Então a gente foi, conversamos,
ficamos mais de hora lá conversando e batendo papo e puxa aqui,
puxa ali, conta um causo e aí a gente saiu de lá consciente que isso
era realmente, então aí, a partir daí, a gente vai trabalhando.” 62

62
Entrevista realizada com Márcio Alves, técnico da EMATER de Jacuizinho, em 2008, por Cristian
Jobi Salaini e Vinicius Pereira de Oliveira.

212
Fica claro, nesse sentido, esse reconhecimento de uma comunidade

portadora de um modo de existência particular. Em visita à EMATER da cidade do

Salto do Jacuí (Jacuizinho emancipou-se dessa cidade há aproximadamente oito

anos), a técnica Tânia Treviso informou conhecer de longa data a comunidade dos

“mariacos”. Também relatou sobre a relação de parentesco existente entre o

quilombo do Rincão dos Caixões e o quilombo Júlio Borges, do Salto do Jacuí.

Poder-se-ia marcar como emblemático, dentro do quadro de demanda do

grupo, a questão ambiental que, em certo sentido, atuou como “estopim” do atual

processo. A comunidade, “espremida” pelo avanço contínuo da soja, realizou uma

denúncia à Secretaria de Direitos Humanos do Estado do Rio Grande do Sul (equipe

do Deputado Dionilso Marcon). Esse ato acabou por desencadear uma série de

ações na comunidade, entre elas, o conhecimento pela Procuradoria Federal de

Cruz Alta – responsável pela região em questão – da situação vivenciada pelo

grupo.

Em função da ação realizada pela Procuradoria de Cruz Alta – principalmente

na figura do Procurador Fredi Everton Wagner – diferentes órgãos foram oficiados

com o objetivo de apurar possíveis irregularidades ambientais existentes naquele

espaço, em função do uso extensivo da soja. A conclusão das perícias realizadas

pelo IBAMA e FEPAM (processo administrativo 1.29.016.000014/2006-84) mostra

uma situação de irregularidade no que diz respeito ao uso de agrotóxicos que

afetavam de forma incisiva a comunidade quilombola assim como os recursos

naturais da região (o rio encontra-se, atualmente, em processo de assoreamento

decorrente do desmatamento e da agricultura industrial da soja).

213
O importante a ressaltar nesse momento inicial de reflexão sobre a

constituição política e espacial da comunidade diz respeito ao acordo efetuado entre

os representantes da comunidade quilombola e o atual proprietário, Idalino

Vendrúsculo, decorrente de documento oficiado pelo Procurador da República Fredi

Everton Wagner. A intenção do encontro realizado entre representantes quilombolas

e Idalino Vendrúsculo seria a constituição de um Termo de Ajuste de Conduta (TAC)

que pudesse levar a cabo as ações periciais desenvolvidas pelos órgãos acima

citados (IBAMA e FEPAM). No início das negociações, foi sugerida, por parte do

Procurador, tendo como base o laudo pericial realizado pelo IBAMA, a constituição

de uma distância de 500 metros, a partir da residência da Dona Erolcilda, para o

plantio da soja. Ocorre que Idalino, que no momento era representado pelo

advogado Alex Marquese (OAB/RS 49.289), discorda de tal “raio” e, no final das

negociações, a distância limitada a partir da residência de Dona Erocilda fica em 350

metros. Segundo relato efetuado pelo próprio Procurador Fredi Everton Wagner, em

entrevista realizada comigo e com o historiador Vinicius P. de Oliveira 63, a

negociação realizada teria como objetivo a não judicialização do processo e o

conseqüente desenvolvimento do processo administrativo que culmina com o RTDI

conduzido pelo INCRA.

O objetivo central da presente análise, como já observado neste capítulo, é

demonstrar que o atual processo é resultado de outros tantos processos de

reconhecimento da diferença. O atual pleito eclode em meio a essa condição de

extrema insegurança da comunidade diante do avanço do plantio de soja. Porém,

vale ressaltar, o quilombo Rincão dos Caixões sempre viveu, em sua história, um

63
Entrevista realizada no dia 28/06/2008, e que contou com a presença de integrantes da equipe
técnica do presente relatório (Cristian Jobi Salaini e Vinicius Pereira de Oliveira) e responsáveis pelo
“Projetos Especiais do INCRA” (Ana Paula Comin de Carvalho e Rui Tapliaglera).
214
processo de definição de seu espaço que contou com esses elementos externos de

reconhecimento da diferença. É evidente esse caráter etnicamente vivido pela

comunidade e que marca essa diferença entre um “nós” e um “eles”, sejam eles

reconhecidos como a “negrada dos Mariacos”, os “morenos” ou como quilombolas

do Rincão dos Caixões. Logo, depreende-se que o pleito quilombola que aqui se

configura ocorre em condições bastante raras. Neste sentido, o problema ambiental

desencadeou a possibilidade de reconstituição de determinados pontos de esquema

do reconhecimento. Ocorreu um tipo de afinidade entre situações, elementos

aparentemente dispersos e apoios locais e extra-locais que possibilitaram a

evocação identitária.

É preciso viver coletivamente e vencer esses microtribunais que procuram

provar a todo o instante a veracidade do pleito. No caso do quilombo do Rincão dos

Caixões, encontra-se esse elemento de forma bastante evidente em sua resistência

pela permanência no local, que sempre contou com sua condição de diferença

marcada pela condição étnica e que hoje é vivida através de processos e dinâmicas

da etnicidade.

4.2 Régis Fiúza: mitologia de fundação do território.

O trabalho de campo antropológico sempre incorpora peculiaridades. A

direção do trabalho nem sempre encontra um destino certo, e é preciso estar

preparado para os imponderáveis que se apresentam pelo percurso, a fim de seguir

aquilo que talvez seja mesmo a própria característica do trabalho de campo: o aceite

215
de desafios e o “colocar-se em risco”. Pretendo narrar aqui meu encontro com Régis

Fiúza – o doador de terras do Rincão dos Caixões.

Momento simultaneamente emblemático e revelador durante minha estada

junto à comunidade quilombola do Rincão dos Caixões diz respeito ao encontro de

Dona Erocilda – líder e matriarca do grupo - e do antigo doador das terras em

questão, o Sr. Régis Fiúza. Régis Fiúza, desde as primeiras narrativas

contempladas, aparece enquanto uma figura importante por ter estabelecido um tipo

de mito de fundação daquele território. Mais do que isso, do ponto de vista das

representações mais gerais do grupo, Fiúza se apresenta como o próprio emblema

da “época farta” do grupo onde os matos eram abundantes, em oposição a quadros

posteriores, onde novos proprietários se apropriam do espaço, trazendo os “tempos

da soja”.

Durante o início da pesquisa de campo junto ao Rincão dos Caixões, havia

uma preocupação bastante evidente, por parte de Dona Erocilda, de apresentar algo

que pudesse se constituir enquanto um caráter de prova da ocupação e existência

de seu grupo naquela região. Em certa ocasião, ainda nos momentos iniciais do

trabalho de campo, Dona Erocilda levou a equipe a uma conversa com um antigo

morador local que, de forma não muito convincente e desconfiada, nos disse não

saber de nada sobre a história de Erocilda na região. Depois de muita insistência por

parte de nossa protagonista quilombola, o morador admitiu “não poder falar disso”.

Apesar do insucesso da conversa com o morador local escolhido pela Dona Erocilda

não possuir o impacto sobre o relatório que ela poderia imaginar, acabou causando

em outro sentido um certo desconforto ou até mesmo um “abalo psicológico” em

nossa informante. Afinal, um morador local, que seguidamente aparecia em seus

relatos, como a possibilidade de um “relato objetivo” sobre sua existência naquele


216
local, negara a possibilidade de reconhecimento frente aos pesquisadores; a

possibilidade de um inter-reconhecimento local lhe fora negada.

Dona Erocilda, que sempre quis que a equipe fosse ao encontro de Régis

Fiúza – o “lendário” doador de terras – acabou produzindo algumas dúvidas em

relação a tal possibilidade. Afinal, havia muitos anos que não produzia nenhum tipo

de contato com Fiúza e, depois do acima relatado, ficava a dúvida instaurada acerca

da relevância de tal encontro. Com o número de telefone de Régis Fiúza em mãos

(conseguido através de um primo deste residente na cidade de Tunas, cidade

vizinha a Pinheiro Machado) realizei um contato telefônico. O contato telefônico,

muito bem sucedido, foi finalizado com uma despedida e com a emanação de um

“até logo, muito asé”. Este fato nos criou bastante surpresa e curiosidade, tendo em

vista que, após o insucesso do contato travado com o informante anterior, tínhamos

agora algo que nos indicava uma produtiva conversa: um asé64.

Fomos ao encontro com Régis Fiúza, residente na cidade de Soledade, no

estado do Rio Grande do Sul. Neste encontro, Régis Fiúza e Erocilda, visivelmente

emocionados, colocaram-se a relatar o momento emblemático no qual se

conhecerem e no qual Fiúza doou parcela de suas posses à Erocilda. Talvez, do

ponto de vista da construção do relatório técnico, haveria muitas possibilidades

argumentativas acerca da atual área ocupada pelos quilombolas do Rincão dos

Caixões. É claro que, do ponto de vista metodológico, muitos caminhos poderiam

ser seguidos no sentido da apreensão das relações do grupo com aquele espaço e

também da constituição do Rincão dos Caixões enquanto um grupo fortemente

consolidado em bases constituídas através de seu conhecimento do território, redes

de parentesco, modelos particulares de ocupação do espaço. Mas o encontro com

64
Asé, na lingua yorubá, atua como um equivalente de “força” ou energia.
217
Fiúza apresentaria consequências de um tipo de relação que estaria para muito

além de minhas aspirações enquanto produtor de um relatório técnico da

comunidade quilombola.

O encontro de Erocilda e Régis provocou repercussões importantes do ponto

de vista local. O mito fundacional, que já percorria a memória e o imaginário do

grupo, agora encontrava um ponto de apoio importante, produzindo uma expansão

da legitimidade em outras camadas do grupo quilombola. Além disso, conforme

relatos de quilombolas e também de pequenos eventos locais com os quais tive

contato, a história ganhou perspectiva também em outros contornos das relações

locais. Régis Fiúza, antigo conhecido das relações locais, havia, através do presente

encontro, demonstrado que esse “negócio de quilombo era sério mesmo”. A

comunidade alçava então um novo passo do reconhecimento social: o entorno viria

a produzir, mesmo que ainda de forma muito hesitante, uma reelaboração de seus

códigos de reconhecimento social com relação ao Rincão dos Caixões. Erocilda, por

outra via, podia sentir a legitimidade moral de sua trajetória social que em outro

momento lhe fora negada.

O encontro com Régis Fiúza promove uma reconstrução mitológica em torno

da fundação do território. A fundação do território do Rincão dos Caixões, conforme

apontada durante o trabalho de campo pelos quilombolas, foi realizada através do

ato de doação fruto de um encontro emblemático, no passado, entre Régis Fiúza e

Erocilda dos Santos. No entanto, a produção de um encontro entre os dois, no “aqui

e agora”, promoveu um “aquecimento” da ordem cultural do grupo. A memória do

evento – o encontro – antes relativamente fragmentada no seio do grupo e articulada

apenas pelas pessoas “guardiães da memória”, torna-se um elemento comunalizado

e sujeito a interpretações e ajustes, entrando na “boca do povo”. Não se trata,


218
portanto, de uma memória criada apenas com a finalidade de suprir as necessidades

do presente. Trata-se de uma memória subterrânea (Pollak, 1989) que alça novas

dimensões da comunidade através da ação da história: a cultura é reordenada pela

história. Neste sentido, mais que um ato de rememoração do passado, o encontro

realizado entre Erocilda e Régis Fiúza, promove um “estopim” que reverbera por

certas formas sociais do grupo; “dar-se conta do passado”, promove uma ação que

tem a condição de colocar em risco as formas estruturais do grupo promovendo

novas relações com o “ser quilombola”: temos um jogo entre estruturas

performativas e prescritivas, onde o “novo” encarrega-se, de forma simultânea, da

consolidação das estruturas culturais e também da criação de certas áreas de

instabilidade simbólica:

No caso havaiano, acontecimentos circunstanciais são


frequentemente assinalados e valorizados por suas diferenças, pelo
seu afastamento em relação aos arranjos existentes, podendo as
pessoas então agir sobre esses arranjos para reconstruir suas
condições sociais. Enquanto a sociedade assim se organiza, ela
conhece a si mesma como a forma institucional dos acontecimentos
históricos. Em um modelo prescritivo, no entanto, nada é novo ou,
pelo menos, os acontecimentos são valorizados por sua similaridade
com o sistema constituído (Sahlins, p.13).

O encontro realizado entre estes dois protagonistas, “no presente”, realizou,

em um primeiro nível, uma consolidação da figura mítica ocupada por Fiúza nas

representações do grupo: as histórias contadas pelos guardiões da memória – os

mais velhos – agora poderiam em certo sentido serem “confirmadas”, consolidando

um aspecto de coesão social derivado da construção desta memória. Ao mesmo

219
tempo, o encontro também efetivou um tipo de “aquecimento” deste processo de

reconstrução do passado junto a outras escalas da vida social do grupo. Os mais

jovens possuíam um “elemento material” no qual seriam apoiadas as antigas

memórias de fundação do território, evidenciando a movimentação em torno de

novos processos de questionamento do passado. Talvez agora fizesse mais sentido,

do ponto de vista de outros integrantes da comunidade quilombola, revisitar as

antigas histórias de Dona Erocilda. Instaurava-se a produção de uma “busca pela

identidade” que antes, alocada de forma majoritária no passado, encontrava um

marco emblemático no próprio presente. O espaço de construção do relatório

técnico teria, em certo sentido, propiciado um lócus de revisões do passado e de

construção de legitimidades.

Fotografia 36 - O doador Régis Fiúza e Dona Erocilda dos Santos em encontro


com a equipe de pesquisa, em Soledade, 2008.

Fonte: Cristian Jobi Salaini

220
A figura de Fiúza sempre apareceu nas narrativas de Dona Erocilda e da

comunidade em geral como responsável pela doação de parcela de suas terras à

Dona Erocilda, para que esta pudesse criar os seus “negrinhos”. Esta narrativa

evoca um momento emblemático da vida da comunidade, conformando um tipo de

mito de fundação, um mito de origem. Esta narrativa compartilhada pela

comunidade, por si só, já revela um modelo de apropriação simbólica do espaço; um

modelo de apropriação que encontra naquele evento do passado – a doação – o

principal ponto de apoio. Como já citado anteriormente, essa narrativa evoca um

tempo em que Dona Erocilda “rolava por aí” e trabalhava como “escrava”, referindo-

se ao passado de trabalho nas fazendas da região:

“Régis Fiúza: Não só esse pedacinho... Isso aí foi, que eu conheci a


senhora que vinha numa dificuldade muito grande vivia chorando e
‘atravessando Caixão’, que tinha sido tocada por um fazendeiro, que
lhe tocou a terra, né. Foi assim? Eu que tava no meu canto. Aí eu
fiquei muito emocionado com aquela tragédia, que tava vendo a
senhora e os filhos, eu disse assim pra mim, “olha, que tal se vocês
tivessem um pedaço de terra ali pra vocês cultivarem e que pudesse
viver?”, eu não admito essas coisas aí, as pessoas tarem sofrendo
por terra e coisa, “eu tenho um pedaço, eu vou lhe dar, ali em baixo”
e lhe deu e mostrei pra senhora onde que era e a senhora, eles
foram, “podem morar lá que eu Régis Fiúza que estou lhe dando isso
aqui e ninguém vai lhe mexer com a senhora, quando eu vou lhe
fazer mais tarde uma escritura que a senhora vai ficar lá”, e tal,
passou o tempo, eu casei, na frente eu vendi pro João Carlos
Kremer, pros Kremer, que ficaram de me deixar aquela parte que eu
disse pra eles. Essa parte é doada a essa senhora e seu esposo, a
famílias deles, que eles tenham um pedaço que possam se sustentar
dessa terra e eles disseram, “ó, pode ficar descansado que assim
será feito”, e eu vendo daqui pra cá e vendi o campo pra ele, né, e
esperei até hoje, a data de hoje, que a senhora tivesse bem
221
colocada, porque eu até queria ir lá visitá-los pra mim ver como ficou
essa doação que eu tinha feito pra vocês. E que eu dei...” 65

O que interessa aqui, ao trazer essa situação etnográfica de encontro entre

Erocilda e Régis Fiúza, é afirmar/reafirmar pelo menos dois pontos: 1) A trajetória de

Dona Erocilda apresenta-se como um caso típico da estrutura possível do pós-

abolição. Ela vem de outra comunidade negra que, atualmente, encontra-se em

processo de reconhecimento enquanto comunidade quilombola: a linha Fão/Sítio na

cidade de Arroio do Tigre. Porém, o processo de expropriação dessa comunidade

obriga sua entrada no circuito de trabalho local nas fazendas da região, até sua

chegada ao atual local, perfazendo assim movimentos de desterritorializações e

territorializações; 2) Os “tempos do Fiúza” distanciam-se de quadros posteriores de

evocação de memória (que apresentam relação com os proprietários posteriores)

não apenas por sua distância temporal. Há uma distância que é reconhecida na

colocação de uma oposição entre os “tempos do mato” e os “tempos da soja”. Neste

sentido, a conversa com Régis Fiúza não veio apenas afirmar uma doação de terras.

Veio também marcar a noção do processo de mudança da comunidade com relação

aos espaços, em função das sucessivas relações processadas com o seu entorno.

4.3 Territorialidade, mito e corporalidade quilombola.

Régis Fiúza é afro-religioso, filho-de-santo de Mãe Araci, que por sua vez é

referida como filha carnal de uma africana que viveu em Porto Alegre. Vincula-se à

65
Entrevista realizada por Cristian Jobi Salaini e Vinicius Pereira de Oliveira com Régis Fiúza em
2008.
222
nação Oyó, uma das vertentes da religiosidade de matriz africana que no Rio

Grande do Sul é denominada, desde o século XIX, como Batuque. Ele narra sua

trajetória pessoal como profundamente relacionada ao universo afro-religioso, sendo

que, já aos nove anos de idade, teria “recebido” uma entidade religiosa. O objetivo,

nesse momento, é demonstrar como existe uma base cosmológica diferenciada na

“fundação” da territorialidade negra em questão. Não se trata de enveredar

estritamente por traços óbvios e visíveis de uma religiosidade que estaria expressa

em Dona Erocilda e seus descendentes. A idéia é visualizar uma forma

territorializante que se funda em valores e visões de mundo diferenciadas de seu

entorno, e que encontra na religiosidade um universo de significação fértil a esse

empreendimento.

O Sr. Fiúza, aos 16 anos de idade, concede uma parte de sua propriedade à

Dona Erocilda, como visto anteriormente. É importante ressaltar que essa parcela

doada constitui uma quantidade relativamente grande quando comparada ao total de

terras que estava sob sua posse. Durante o encontro etnográfico realizado, e que

contou com a presença de equipe de pesquisa, Régis Fiúza e Dona Erocilda,

ocorreu a “construção” de um mapa da doação realizada. Esse mapa foi construído

através de um tipo de “ajuste” entre as memórias de Fiúza e Erocilda. Esse fato é

muito importante do ponto de vista da pesquisa, já que não ficou nenhum “registro

oficial” da doação realizada.

A área demarcada com a cor preta foi assinalada por Régis Fiúza como

sendo a totalidade de sua propriedade. Já o segmento demarcado em vermelho

corresponde ao que foi doado por ele a Dona Erocilda dos Santos.

223
Figura 37 - Imagem aérea com indicações feitas por Régis Fiúza à equipe de pesquisa
sobre a área doada.

Fonte: Cristian Jobi Salaini

A questão proposta à reflexão tem como pano de fundo o fato da comunidade

quilombola ter sofrido seu processo de expropriação quando da saída do Sr. Fiúza

daquela região. Fiúza dedicava-se a modelos de pecuária extensiva, ao contrário

dos proprietários seguintes que tem no plantio de soja o foco da cultura agrícola.

Com base nisso, pode-se questionar os motivos de tal doação realizada por Régis

Fiúza (uma porção generosa de suas terras).

A argumentação, até o momento, diz que a trajetória de Dona Erocilda trata-

se de um caso típico do período pós-abolição. Surrada em uma fazenda das


224
redondezas, é encontrada à beira do Rio dos Caixões por Régis Fiúza que a acolhe

e, mais que isso, fornece algumas condições para a sua continuidade naquele

espaço. Assim, gostaria de desfocar da figura em si do Sr. Fiúza – iniciado na afro-

religiosidade desde os nove anos de idade – e redirecionar o olhar para uma forma

específica que cria um universo para a continuidade naquele espaço. Fiúza, além de

doador de terras, passa a atuar como um “conector de mundos”; conexão essa

realizada entre uma visão que integra sociedade e natureza com aquela trazida pela

tradição de Dona Erocilda, que evoca, indubitavelmente, uma lógica de

gerenciamento dos recursos naturais que está inscrita no modus vivendi do grupo:

“Que eu tinha uma consciência, eu sempre fui muito religioso, eu


sempre... Jesus e sempre orei pra ele. Sabe que hoje eu to com 64
anos... Porque eu acredito na justiça divina e eu sei que ela existe,
então foi isso aí o que me levou é que todo o ser humano tivesse um
pouquinho de Cristo, de Jesus, Deus, no seu coração, qualquer outra
pessoa faria da mesma forma que eu fiz, olharia pra ela e diria, “essa
irmã está precisando dessa terra”, e isso não vai me fazer falta, eu
não vou levar... Deus vai ajudar ela e me ajuda também. Então com
não ia me fazer falta, como nunca me fez... Mas o homem com a sua
ganância destrói os mananciais pra plantar soja, então ele espreme
os banhados, seca as cabaceiras e todas as nascentes de rios e
tampam pra plantar com soja. E o que acontece com isso? Poluem,
depois, com os seus agrotóxicos. Por quanto tempo o ser humano
vai poluir a terra, vai poluir o ar? E o resgate para os seus filhos mais
tarde, como vai ser feito? O que ele vai ganhar, qual é... O que ele
semeou pro filho dele colher? O que ele tá plantando? Porque eu
acredito na lei do retorno, que se chama, aquilo que tu faz, que tu
planta, tu colhe, né. Então o ser humano deve ter... Pra ter o nome
de ser humano ele tem que ter uma coisa crítica dentro dele, ser
crítico, elevado, que possa sentir a situação do outro, botar-se no
lugar, será que eu... Se fosse pra mim, se eu fosse ele e ele eu, que

225
maravilha seria se ele abrisse a mão pra mim e me doasse aquilo
que agora estou precisando, é tão pouco, mas pra ele é tão grande,
tão compensador, uma vitória tão bela, que seria assim, uma coisa
exuberante pra pessoa, né, se sentir, perante Deus o Criador. Eu sou
de Religião Afro, Olorum, que digo assim, ficaria muito contente com
isso aí, que eu quero que essas pessoas que tão lá que abram a
mão disso aí, em nome de Deus, em nome de Olorum, que eles
façam isso pra essa Sra. Eles não vão levar nada, né, por que
querem? Deixem as pessoas com a sua parte, que possam tirar da
terra o seu sustento, o seu pão de cada dia... Hoje em dia tudo é tão
difícil, a gente vive batalhando, nós não vivemos, nós sobrevivemos
no mundo que temos aí, desse jeito aí, nós todos deveríamos ser
irmãos, de todas as crenças, a melhor religião é aquela que faz
alguma coisa para a humanidade, aquela religião que me fazer... A
pessoa feliz e que faz alguma coisa pras pessoas, então essa é a
melhor religião, esses seres humanos podem contar que são felizes,
que daí tão passando a felicidade, harmonia para um todo, né, isso
aí é muito importante pra mim, por exemplo, assim, que sou da
religião Afro, que cultuo, faço de tudo pra participar, o que tiver em
mim, né, pra fazer isso aí...” 66

Tem-se, portanto, no encontro realizado por Dona Erocilda e Régis Fiúza,

mais do que uma relação entre indivíduos. O que ocorre, de fato, são afinidades

seletivas entre visões de mundo não-concorrentes. O que argumento aqui é sobre

um território que se constitui, entre outros elementos, sobre bases cosmológicas

afro-religiosas. Não se trata de encontrar “evidências óbvias” de uma pretensa

materialidade religiosa: pais-de-santo, terreiros, etc. Trato de uma forma de ver o

mundo baseada em uma cosmologia que não dissocia a cultura da natureza,

apresentando, nesse sentido, esquemas de reprodução do espaço físico quilombola.

66
Entrevista realizada por Cristian Salaini e Vinícius Oliveira com Régis Fiúza e Erocilda dos Santos
na cidade de Soledade em 2008.
226
Tem-se, contudo, uma instauração – um “estopim” – do território que é inaugurado

através de uma ética que relaciona corpo e território:

Na história dos africanos e seus descendentes espalhados pelo


mundo através da chamada Diáspora Negra o mito tornou-se um
saber encarnado no corpo. Não apenas o acúmulo de conhecimentos
técnico-sociais, mas toda uma gama de sabedoria cultural que
encontra no corpo seu manancial e, enquanto tal, são fonte e
fundamento da cosmovisão recriada no Brasil. O corpo, portanto, é
um mito encarnado e, em contrapartida, o mito é um corpo (coletivo)
em movimento. Parte-se do corpo como fonte e condição do
conhecimento porque não pode haver filosofia sem um corpo. E
filosofar desde o corpo é inverter a perspectiva hegemônica da
filosofia, isto é, ao invés de um cérebro que centraliza todo
conhecimento e processa todas as sensações, temos milhões de
cérebros distribuídos por todo o corpo e cada qual faz sua própria
revolução perceptiva e cognitiva e, em conjunto, compõe a filosofia
do corpo (Oliveira, 2007, p.214).

Configura-se uma situação que ocorre sob circunstâncias bastante raras. Se

Dona Erocilda pôde fixar-se naquele espaço, após uma trajetória pessoal e familiar

de desterritorializações e territorializações, foi porque se construiu uma conjuntura

muito específica nesse sentido. Sua forma de viver, fortemente baseada nos

esquemas da tradição por ela herdados, somada a essa “ética do encontro” com

Régis Fiúza, criaram as condições necessárias à constituição de um território dotado

de uma especificidade espacial e temporal. No presente, o encontro entre os dois

proporcionou um “esquentar” das estruturas semânticas e memórias do grupo,

promovendo uma reflexão sobre as identidades e os elementos constituintes de um

horizonte moral prévio.

227
4.4 O transitar pelo espaço e a evocação da memória.

Pretende-se, neste tópico, demonstrar como os moradores negros do Rincão

dos Caixões possuem domínio sobre o território em questão. A presente

argumentação toma como ponto de partida situações de contato etnográfico em que

o “andar” pelo espaço funcionou como princípio evocador da memória, revelando

sentidos de apropriação do espaço. O ponto que norteia a escrita, nesse momento,

é a apreensão de uma memória espacializada; uma memória coletiva que aponta

para a consolidação de um grupo social que se reconhece pela percepção de seus

espaços de referência.

O argumento nesta parte gira em torno da possibilidade de reconhecer um

elemento relativo às técnicas de saber-fazer no seio do grupo. Trata-se de

reconhecer, no Rincão dos Caixões um território que atua em diferentes camadas

evocativas. Se por um lado, temos um território mediado pelo plano da memória,

pela atualização de antigos espaços não mais freqüentados pelo grupo, temos

também um espaço fortemente constituído pelo domínio da “herança” de saberes-

fazer que façam parte do circuito do grupo. Não argumento aqui sobre a existência

de um dado territorial primordial acerca do grupo. O que está em jogo é o

reconhecimento de uma força territorializante que, claro, vem alçando outros níveis

com o processo de reconhecimento quilombola. No entanto, a relação é complexa, e

obedece algo mais parecido com uma relação dialética de saberes do que como um

território “apenas lembrado”. O ato memorativo, que alça vôos maiores e de longo

alcance sobre o território quilombola, também possui um elemento importante de

transmissão de saberes no seio do próprio grupo.

228
Como visto anteriormente, Dona Erocilda e seus descendentes conviveram,

em sua história, com a sucessão de proprietários que foram comprando as terras

que hoje circundam a comunidade. O grupo sempre estabeleceu relações de

trabalho com os proprietários em questão; desde a chegada de Dona Erocilda até os

dias atuais, a comunidade sempre serviu enquanto mão-de-obra especializada às

modalidades de uso da terra que constituíram e constituem aquele espaço.

Vale ressaltar aqui o “sistema duplo” pelo qual as pessoas do Rincão

articulam com o mundo do trabalho. Ao mesmo tempo em que trabalham nas

lavouras de soja de seus patrões desde muito jovens, produzem um modelo de uso

da terra que age de modo paralelo àquele. Alternam, diariamente, jornadas de

trabalho na agricultura mecanizada das lavouras com o cultivo destinado à

subsistência que é regido por esquemas comunitários de uso do solo.

Recentemente, com a expansão do território quilombola que contou com a ação do

Ministério Público Federal, o espaço de cultivo da comunidade aumentou e, em

conseqüência, menos pessoas trabalham enquanto empregadas de Idalino

Vendrúsculo nas lavouras de soja67.

A relação existente entre a comunidade quilombola e seu entorno sempre

expressou sistemas de resistência no território que, de forma muita clara, tem

alcançado visibilidade juntos às instituições públicas locais, regionais e nacionais

especialmente nos últimos quatro anos. Isso ocorre como resultado de duas forças

que se encontram: a um lado, temos um processo de acirramento das

desigualdades sociais existentes na região que acabaram por “sufocar” a

67
Como será mostrado adiante, os laços de parentesco e afinidade mantém outras famílias, não mais
residentes no Rincão, ligadas ao grupo de origem. Porém, apesar deste primeiro aumento do espaço
realizado, muitas famílias negras continuam trabalhando para o entorno reproduzindo modelos de
exclusão social da região. O trabalho em pedreiras, por exemplo, constitui-se como caminho de
muitos moradores negros do Rincão dos Caixões.
229
comunidade, desencadeando as condições possíveis do atual pleito por definição

territorial. De outro lado, os “laços afetivos” e os esquemas simbólicos relacionados

ao uso, trabalho e memória do espaço nunca permitiu um êxodo generalizado do

território. São os laços sociais de pertença que definem o território negro do Rincão

dos Caixões, e não o inverso.

Porém, antes da atualização das relações institucionais que hoje atravessam

a comunidade quilombola, o grupo sempre promoveu formas de “sobrevivência” com

relação aos vizinhos que se fundaram, de forma principal, nas relações de trabalho

que construíram aquele espaço. João Kremer comprou as terras de Régis Fiúza – o

“doador” do pedaço de terras à Dona Erocilda. Já na época de Kremer os moradores

do Rincão dos Caixões estabeleciam relações de permanência/trabalho com esse

proprietário. Almeri, filha de Erocilda dos Santos, lembra quando trabalhou na casa

de João Kremer enquanto caseira. Quando Kremer vendeu suas terras e partiu para

o Piauí, seu filho o acompanhou. Caminhando pelo espaço, Almeri mostra sua

antiga moradia junto à família Kremer:

“Almeri: Daí casei e eles me deram pra mim morar lá.


Cristian: Eles quem?
Almeri: O João Carlos, que era dele a terra.
Cristian: O Kremer?
Almeri: Ham, ham. E depois daí tinha uma irmã dele que morava ali,
daí ela foi embora pro Salto, daí ela disse pro (?), “deixa morar na
minha casa ali”, pra cuidar a casa, daí eu fui morar lá, depois voltei
pra ali.
Cristian: Tá. Então o João Kremer, quando tu foi... Tu morou sozinha
com o teu marido?
Almeri: Sim.
Cristian: Mas quando tu foi morar com a irmã, né, do João Kremer...

230
Almeri: É.
Cristian: Daí era pra cuidar da casa?
Almeri: É.
Cristian: Ficava meio de caseira?
Almeri: Ham, ham. Ficava de caseira. Depois morei lá naqueles
eucaliptos na terra do João Carlos, faz oito anos que eu saí de lá, daí
fui morar lá, daí vim pra ali morar com a mãe.
Cristian: Então tu morou em três lugares aqui nessa...
Almeri: Ham, ham. Aqueles eucaliptos todos lá fui eu que plantei...
Cristian: Tá, mas oito anos atrás não era mais o João Kremer, já era
do...
Almeri: Não! Aquela já é outra área, do lado de lá.
Cristian: Ah!
Almeri: Era do João Carlos, ali onde eu falei pra ti que era a granja...
Cristian: Mas quanto tempo faz que ele foi pro Piauí?
Almeri: Faz oito anos.
Cristian: Ah, daí tu saiu dali exatamente quando ele foi embora, foi
isso?
Almeri: Foi. Daí eu saí de lá e fui morar ali de novo.
Querli: Ela tem um filho dela que mora lá com ele.
Almeri: Hum, hum.
Querli: Desde pequeno.
Almeri: Foi pra trabalhar lá com eles...
Querli: Desde os 12 anos.” 68

Durante o processo de pesquisa, a comunidade referiu inúmeras vezes o fato

de Idalino Vendrúsculo – o atual proprietário – “ceder” espaços para a comunidade

plantar aipim, feijão, mandioca. Alimentos destinados à reprodução do grupo. O

grupo ressalta que, no passado, os “cantos”, os “perais” (barrancos), eram

“emprestados” para a comunidade plantar. Hoje, em função da visibilidade local em

68
Entrevista realizada por Cristian Jobi Salaini com Almeri e Querli em 2008.
231
torno do pleito quilombola, o grupo aponta que “negro” não pode mais plantar lá de

jeito nenhum.

Fotografia 38 – Seu Etuíno observando a alternância entre campos de soja e áreas de


mata no Rincão dos Caixões.

Fonte: Cristian Jobi Salaini

232
Fotografia 39 – Equipe de pesquisa analisando o território juntamente com a
comunidade quilombola.

Fonte: Cristian Jobi Salaini

Este é, sobretudo, um elemento fundamental da memória do grupo. O fato de

ser-lhes concedidos espaços de cultivo nos quais a agricultura mecanizada não

alcançava, traduz, nos termos da memória, a percepção de uma diferença impressa

na terra. Isto porque, se o proprietário lhes cedia os “barrancos” para o cultivo da

subsistência, os outros espaços – aqueles relacionados ao cultivo extensivo da soja

– também eram trabalhados pela mão-de-obra do grupo em questão. Nesse sentido,

tanto as “bordas” – consideradas terras de segunda mão – quanto o “recheio” das

terras sempre foram transitados pelas pessoas da comunidade, via regime de

trabalho. “Nós sempre fomos os escravos daqui!”.

O grupo processa, em relação aos seus espaços de reconhecimento,

evocações que obedecem suas relações históricas com os proprietários locais. Os

“tempos do Fiúza”, os “tempos do Kremer” e os “tempos do Idalino” evocam espaços

233
que alternam memórias de um território que é, ao mesmo tempo, lúdico e sofrido. A

experiência geracional da comunidade naquele espaço sobrepõe espaços de

reconhecimento que evocam sentidos de pertença. Querli se lembra das

brincadeiras que compartilhava com os seus irmãos junto a um olho d´água que hoje

se encontra das terras de Vendrúsculo, em meio à soja. Narra que enquanto sua

mãe – Erocilda – trabalhava na lavoura, as brincadeiras no olho d´água faziam parte

do “roteiro” da jornada de trabalho.

“Querli: Ah, nós brincava, nós éramos criança e nós brincava tudo
aqui assim ó, a mãe trabalhava ali e nós ficávamos aqui.
Gino: Nunca secava aí.
Querli: Nunca secava. Olha lá o olho d’água até entupido...
Acabaram com o olho d’água, que judiaria! A gente ficava nervosa
quando começa olhar isso aí, dá uns nervos na gente... Nós fazia
acampamento, fazia almoço aqui, fazia um foguinho, fazia almoço
pra nós trabalhar, pegava água daqui... Secou!
Gino: Tá terminando...
Etuíno: Mas ali entupiu.
Qquerli: Entupiu tudo.
Cristian: Querli, mas me fala de novo, o que vocês vinham fazer aqui
quando eram gurizada?
Querli: Já que a mãe trabalhava aqui, aí nós vinha e ficava perto do
olho d’água e fazia fogo, fazia almoço, vinham da lavoura e ficavam
aqui na sombra... Na beira do olho d’água, né, era aqui assim e aqui
nós ficava o dia inteiro brincando e eles na lavoura, daí de tardezinha
nós íamos pra casa, no outro dia de novo pra cá.
Cristian: O que eram as brincadeiras?
Querli: Trepava nas árvores, brincando, casinha de pedrinha, né, era
o que...
Cristian: Fazia tempo que vocês não vinham aqui?
Querli: Ah! Eu faz uns quantos anos...

234
Almeri: Depois que eles plantaram soja aqui, nós sempre vinha
buscar mandioca... E depois que eles plantaram soja, daí eles
proibiram passar, com soja, não era pra vim, aí nós nem as
mandiocas nós viemos buscar mais...” 69

Fotografia 40 – Seu Gino mostrando o antigo olho d’água utilizado pela Comunidade
Quilombola, seco em função da lavoura mecanizada da soja.

Fonte: Cristian Jobi Salaini

Vale retomar ainda um recorte realizado pela memória do grupo. Os “tempos

do Fiúza” atuam em oposição tanto aos “tempos do Kremer” como aos “tempos do

Idalino”. Enquanto a relação vivida com o Sr. Fiúza evoca a lembrança dos “tempos

do mato”, a relação com os proprietários posteriores pertencem a um quadro de

memória que fala dos “tempos da soja”. Ainda, pode-se dizer que os “tempos do

69
Entrevista realizada por Cristian Jobi Salaini com Almeri e Querli em 2008.
235
Fiúza” evocam, do ponto de vista da memória coletiva do grupo, uma parte da

história da comunidade onde as relações sociais entre o grupo e tal proprietário se

davam de forma harmônica. Os quadros posteriores, ao contrário, evocam tempos

de sofrimento vivenciados pela comunidade.

“Cristian: Na época do Idalino todo mundo plantando soja...no


Kremer também...
Gino: Direto...
Cristian: E na época do Fiúza?
Gino: Fiuza era campo... campo e mato... ele tinha um pouco de
gado... nunca incomodou nós... ele só fez o bem pra nós! Agora os
70
outros...”

O caminhar, o transitar pelo espaço revela um sentido. Durante o trabalho de

campo, ficou muito claro como a comunidade revela um profundo conhecimento

daquele espaço. A “rota” evidenciada pelo grupo quilombola nas diversas

caminhadas realizadas revelou uma série de categorias culturais compartilhadas. O

“caminho das ervas” mostra uma forma de percepção daquele território que não está

obviamente visível a um “visitante desavisado”. A paisagem, hoje

predominantemente configurada pela soja, deixa poucas pistas de um espaço que

foi, no passado, desenhado pelo “campo” e pelo “mato”. O conhecimento das ervas,

portanto, leva a um tipo de saber extremamente territorializado. Pode-se afirmar que,

esse espaço hoje reconhecido como “da soja”, porta sinais que fazem parte do

patrimônio cultural e simbólico da comunidade quilombola em questão.

70
Entrevista realizada por Cristian Jobi Salaini com Gino em 2008.
236
“Cristian: Mas o que é, o que é?
Almeri: A begônia.
Cristian: Begônia? E o que mais que tu... Heim Almeri, tu pegou ali o
negócio que era... O urtigão, tu falou?
Almeri: Urtigão.
Querli Esse aqui ó, que é o urtigão.
Cristian: O que é esse aqui? Heim Almeri, mas esse remédio, o
urtigão, é pra bexiga?
Almeri: É. Arranca a raiz e cozinha ele, daí tu cozinha, ferve e toma
por água, pra bexiga.
Cristian: Como é que prepara, ferve tu falou?
Almeri: É.
Gino: Ferve e toma por água, fria.
Almeri: Põe na geladeira e toma por água.
Cristian: E quem que ensinou pra vocês isso aí?
Gino Isso aí é antigo, do tempo do meu pai. Pai e avô.
Cristian: Mas tem outras ervas que eles ensinavam?
Almeri: Tem! Tem essa...
Gino: Tem a tal de babosa... De tudo um pouco...
Cristian: Mas então me dêem os exemplos aí?
Almeri: Malva, trançagem, tem esse outro...
Licindo: Pra tomar, esse é pro estômago, tem pra úlcera... Essas
coisas assim é a primeira coisa, lá em casa deve ter um pezinho, não
tá bem...
Gino: A mãe entende, lá, a mãe tem o... Aquele, sei lá...
Almeri: Alcachofra.
Gino: Tem um pé lá.
Licindo: Mas aqui também é que nós vivia, aqui era área que nós
vivia.” 71

71
Entrevista realizada por Cristian Jobi Salaini com Almeri dos Santos e Licindo dos Santos no ano
de 2008.
237
Fotografia 41 – Comunidade quilombola em caminhada pelo território acompanhada
pela equipe de pesquisa.

Fonte: Cristian Jobi Salaini

Grande parte do conhecimento territorial do grupo quilombola evidencia-se

aqui pela apreensão do detalhe físico. Aquela paisagem que, do ponto de vista de

um “leitor desavisado”, poderia ser interpretada apenas como uma paisagem da soja

ou de outras possibilidades ali existentes de agricultura mecanizada é retida por

outro tipo de olhar segundo a perspectiva quilombola. A memória coletiva do grupo

retém esse detalhe como conhecimento compartilhado por sua tradição, evocando

uma identidade que conforma um grupo fortemente consolidado no espaço. Maurice

Halbawchs trata a memória coletiva como construída a partir de quadros sociais

compartilhados. Estes quadros atuam enquanto pontos de referência evocadores de

um passado construído em função dos problemas existentes no presente. Os

238
quadros sociais são “instrumentos utilizados pela memória coletiva para reconstruir

uma imagem do passado, a qual está de acordo, em cada época, com a

mentalidade da sociedade” (Halbwachs, 1992, p.40, tradução minha).

Mas vale ressaltar, mais uma vez, que se trata aqui de uma memória

espacializada. Do ponto de vista metodológico, importante à construção da presente

reflexão antropológica, cabe notar que esse sentido de pertença se dá, em grande

medida, através do transitar pelo espaço:

Nous pouvons maintenant répondre à l'objection présentée plus haut:


comment la durée de l'espace serait-elle la condition de notre
mémoire puisqu'elle ne nous est garantie que par notre mémoire elle
même ? En réalité, ce qui dure ou ce que paraît durer c'est le rapport
entre une certaine figure ou disposition matérielle, la forme ou le
dessin du groupe ou de son activité projetée dans l'espace et la
pensée ou les représentations essentielles de la société : c'est
l'attitude du groupe telle qu'elle résulte de ses rapports avec les
choses. On ne peut donc pas dire que, si nous sommes assurés que
l'espace subsiste, c'est parce que le groupe a mis sur lui sa marque,
l'a construit à son image et parce qu'il s'en souvient. Car le groupe
lui-même ne dure et ne se souvient que dans la mesure où il s'appuie
sur cette figure stable de l'espace et qu'il y a en quelque sorte attaché
ses souvenirs. Mais on ne peut pas dire non plus que si le groupe est
assuré qu'il dure, s'il a en ce sens une mémoire, c'est parce qu'il se
confond avec l'espace par toute une partie de lui-même, c'est parce
que la matière et les lieux durent d'eux-mêmes. Car l'image de
l'espace ne dure que dans la mesure où le groupe fixe sur elle son
attention et l'assimile à sa pensée. (Halbwachs, 1997, p. 236)

239
Fotografia 42 - Comunidade quilombola em caminhada pelo território acompanhada
da equipe de pesquisa.

Fonte: Cristian Jobi Salaini.

Venho tentando demonstrar até o momento como a comunidade quilombola

Rincão dos Caixões se inscreve num território. A premissa na qual me debruço aqui

diz respeito a um modo singular de vida que articula, via sistemas simbólicos

particulares, esquemas de apreensão da natureza. Assim, na história daquele

território, ao longo dos períodos sucessórios que permearam o seu percurso, foi a

comunidade quilombola, em sua forma territorializante, que promoveu – dentro dos

limites possíveis – a gerência ambiental mais adequada dos recursos.

Uma possível inquietante questão que poderíamos realizar com relação a tal

comunidade quilombola seria: como foi possível, não obstante os processos de

redução do território da comunidade ocorridos pela expansão da produção da soja, a


240
manutenção de saberes tradicionais? Seria possível falar de um espaço dotado de

uma especificidade ambiental – no Rincão dos Caixões – distinto daquele

configurado pela paisagem da soja?

Gonçalves (2005) propõe um alargamento conceitual da categoria patrimônio

que privilegie uma relação de aproximação da mesma com o conceito antropológico

de cultura. Na forma proposta pelo autor, o patrimônio cultural atua como extensão

dos universos simbólicos próprios dos sujeitos e grupos, tendo a dimensão de um

“fato social total”, nos termos do antropólogo francês Marcel Mauss. Assim, o

patrimônio, enquanto categoria analítica, adota um potencial heurístico no

entendimento de determinados aspectos da cultura. Sem negar o aspecto do

patrimônio que está diretamente relacionado com a construção moderna do Estado-

Nação – sobre a qual estou debruçado até o momento – o autor atenta para o fato

de que esta categoria estar “presente no mundo clássico, na Idade Média e na

modernidade ocidental apenas impõe os contornos semânticos específicos que ela

veio a assumir” (Gonçalves, 2005, p. 17).

No que diz respeito ao objeto de estudo, faz-se necessário, tendo em vista a

reflexão acadêmica, a problematização da categoria “patrimônio”, admitindo assim,

como nos propõe o autor, o “reconhecimento da natureza necessariamente ambígua

e precária dos objetos que simultaneamente representam e constituem” (Gonçalves,

2005, p. 32). Desta forma, abre-se a possibilidade de minimizar os riscos de

objetificação dos patrimônios. Segundo o autor, assumindo a ambigüidade da

categoria, o patrimônio:

...pode ser entendido como a expressão de uma nação ou de um


grupo social, algo portanto herdado, por outro, ele pode ser
241
reconhecido como um trabalho consciente, deliberado e constante de
reconstrução. (...) Os patrimônios podem assim exercer uma
mediação entre os aspectos da cultura classificados como ‘herdados’
por uma determinada coletividade humana e aqueles considerados
como ‘adquiridos’ ou ‘reconstruídos’, resultantes do permanente
esforço no sentido do auto-aperfeiçoamento individual e coletivo
(Gonçalves, 2005, p. 28).

Mesmo antes da confecção do Termo de Ajuste de Conduta (TAC) firmado

entre a comunidade do Rincão dos Caixões e o proprietário Idalino Vendrúsculo, a

comunidade mantinha, num espaço obviamente muito pequeno, uma singularidade

que dialoga diretamente com sua tradição e com os saberes locais. As moradias,

então “espremidas” pelo avanço implacável da soja, configuravam-se num esquema

coletivo de apropriação do pequeno espaço que era possível, mantendo um circuito

de trocas internas pelo grupo. Muitas ervas, encontradas no passado da

comunidade, no arredor anteriormente dotado de uma outra configuração

paisagística – o “mato” – acabaram por ser reproduzidas em espaços muitos

menores, nos próprios “rodados” das casas. As pequenas moradias, configuradas

pela não utilização de cercas, continham – e ainda contêm – como elemento que

constitui suas “bordas” o cultivo de ervas e pequenas hortas que fazem parte do

patrimônio cultural da comunidade quilombola.

“Vinícius: Ela falava alguma coisa da mãe dela, a sua avó, contava
alguma história desses mais antigos da família?
Erocilda: Da minha avó?
Vinícius: Isso.
Erocilda: Ela falava, era gente... As “bugra velha”, eram bugres, eram
bugres do “gomo da taquara”.

242
Cristian: Bugre do gomo?
Erocilda: Da taquara. (Risada).
Cristian: Como é que é isso aí, me explica isso aí, como é que é isso
aí, o bugre do...
Erocilda: Pois é, o que eu quero dizer, não é, que a minha avó, a
mãe da minha mãe, a minha avó foi criada... A maioria, nos tempos
dos matos. O senhor ouviu falar na tal (?) de morcego? Pois é, eles
catavam isso pra comer, eram bugres mesmo... O meu avô, que é o
pai da minha mãe, o compadre não conheceu... Você não conheceu,
mas a tua mãe conheceu, a tua mãe conheceu o meu avô, um bugre,
um bugre legítimo mesmo, esse aí veio, eu tava aí, morou aí no sítio,
trouxe a família pra aí e ficou ali, que é o meu avô.” 72

Fotografia 43 – Dona Erocilda relatando sobre ervas e chás medicinais.

Fonte: Cristian Jobi Salaini

72
Entrevista realizada por Cristian Jobi Salaini e Vinícius Oliveira em 2008.
243
Fotografia 44 – Almeri colhendo ervas medicinais no território do quilombo.

Fonte: Cristian Jobi Salaini

Fotografia 45 – Almeri e Gino colhendo ervas nas matas do quilombo.

Fonte: Cristian Jobi Salaini


244
As diferentes ervas que, conforme apontado de forma muito precisa pela

memória do grupo, eram encontradas num circuito territorial amplamente

reconhecido pela comunidade quilombola, são realocadas em novos espaços pelo

rearranjo provocado pela expansão agroindustrial. Porém, gostaria de destacar que,

mesmo com a abrupta redução do espaço físico antes freqüentado pela

comunidade, houve a reconstrução simbólica de um “microcosmo” da reprodução

dos saberes. Isto aponta de sobremaneira para duas forças existentes no ambiente

sócio cultural do Rincão dos Caixões; uma externa ao grupo, que procura o

desarticular pela criação de dificuldades históricas de acesso a bens simbólicos e à

economia local. Outra, ao contrário, que produz um movimento de resistência

cultural mesmo em situações evidentemente desfavoráveis.

É exatamente ali onde poderíamos esperar uma completa dissolução desse

grupo social pelas condições extremamente desfavoráveis que encontramos as

condições necessárias de reprodução de uma tradição cultural calcada em bases

étnicas que, por sua vez, elencaram os elementos possíveis e necessários para o

atual pleito pelo reconhecimento territorial.

Fica evidente, ao adentrar nos esquemas particulares de vida social dos

membros da comunidade quilombola Rincão dos Caixões, que há uma continuidade

entre cultura e natureza, segundo seus modelos de pensar e agir. Os antigos

espaços compartilhados pelo grupo expressam a própria possibilidade de

construção identitária. Não há, portanto, como separar esses polos – cultura e

natureza – nessa forma de interpretação do mundo conduzida por este grupo social.

Seja através de sua relação histórica com o rio, com os “matos antigos”, com os

capões ou com as trilhas de ervas, vislumbra-se ali uma conduta corporal e uma

245
forma de se inscrever no espaço que não têm como ser compreendidas se não levar

em consideração essa particularidade do grupo.

Todavia, como já mencionado anteriormente, o “drama” da comunidade

consiste exatamente nesse movimento de resistência que procurar encadear essa

memória, esse modo particular de existência, com as mudanças produzidas no

espaço pelo avanço brutal da agricultura mecanizada. Isto provoca recortes de

memória que acentuam um tipo de fragmentação da lembrança coletiva espacial do

território. A forma de interpretação do território acaba sempre antagonizando,

segundo a perspectiva quilombola, um espaço-tempo de fartura natural versus um

espaço-tempo de escassez. Em entrevista conjunta com dois quilombolas do Rincão

dos Caixões:

“Cristian: A Querli tava me contando da outra vez, os lugares que


brincavam, isso aqui tudo... O que faziam, as brincadeiras quando
eram pequenos?
Gino: Olha, na época quando nós podia brincar ainda, brincava no
meio do mato aí...
Querli: Trepar nas árvores, tirar pinhão...
Gino: É, tirar pinhão...
Querli: Tinha pinheiros aqui, mas nós éramos macacos nos
pinheiros...
Gino: Catar pinhão em baixo, que aí as gralhas... Conhece gralha,
né? As que tinham lá derrubavam, aí nós ia buscar...
Querli: (...) Isso aí tudo nós... Mas credo! Não precisava nem almoço,
nós íamos pro mato comer gabiroba e pitanga...
Gino: Aí tinha pinheiro, aqui ó, bem na frente aqui, tudo era mato,
com certeza vocês já tiveram ali olhando, né, os tocos que
empurraram...
Cristian: Tinha bastante mato, pinheiro? E agora, como a gurizada
vai brincar, como é que é?

246
Querli: Não acham um pé de pitanga...
Gino: Eles comem bergamota porque nós temos os pés aí, né, nós
plantamos a pocam, que nem diz lá no Mato Grosso, lá não é
bergamota, é pocam, então daí... A gente plantou na época (...).” 73

Outra mudança física fortemente relatada pelo grupo é aquela produzida em

relação ao Rio dos Caixões. Desde a chegada de Dona Erocilda na região, o rio é

um ponto de referência fundamental de pertença geográfica da comunidade

quilombola. Inclusive moradores locais dos arredores reconhecem os “mariaco”

como aqueles que estão “lá no fundão perto do rio”. Porém, essa mudança na

configuração do rio é evidente e processada pela memória do grupo:

“Querli: (...) Mas credo, era bem bom no tempo que de gurizada.
Luiz: E o peixe ainda tem?
Querli: Olha, tem um pouco...
Gino: Mas tá pouco, pouco. De uns anos pra cá nesses rios não dão
como davam antes, não é muita coisa, né, a parte, se tu quer comer
um peixe mesmo, é nos açudes, né, que os caras cuidam, né, hoje
ainda eu dei uma sarrafadas lá e ainda trouxe umas carpezinha aí.
C: Então mudou isso?
Gino: Antigamente...
Querli: Naquele tempo que eu vejo, parece que era mais fundo...
Agora como ali ó, essas curvas, aquelas lavouras largaram...
Gino: Antigamente largavam tudo lá dentro, ia tudo pros rios, foi
terminando... Agora já não, agora já nem existe entulho, fazem o
plantio direto...

73
Entrevista com Gino e Querli (filhos de Erocilda dos Santos) realizada por Cristian Salaini e Luiz
Fontoura em 2008.

247
Querli: (...) Tinha aqueles montam de pedra que sai dessas lavouras,
né... Aí modificou tudo um poço aí que chegava sair água azul, agora
74
tá entupido, agora não é mais igual era antes.”

Minha tentativa, desde o início, ruma no sentido da demonstração da

existência de um modelo territorial quilombola fortemente baseado na gestão dos

recursos naturais da região. São inúmeras as narrativas que colocam frente aos

“tempos que existiam ervas”, “os tempos do mato”, e assim por diante. Isto

demonstra um tipo de agência que relaciona humanos e não-humanos dentro dessa

perspectiva territorial. O que cabe aqui é ressaltar que essa devastação produzida

de forma exógena à comunidade quilombola provoca efeitos do ponto de vista de

suas identidades sociais e coletivas. Dos Anjos (2008) fala de situação correlata em

sua experiência de trabalho de campo junto à comunidade quilombola de São Miguel

e Martiminianos, situada no interior do Rio Grande do Sul:

A devastação provocada pelos venenos enseja por sua vez uma


transfiguração não somente no espaço, mas igualmente na própria
memória-referência. A transformação agressiva do meio natural
acarreta o “não reconhecimento” daquele local. Ressalva-se,
contudo, que o irreconhecível está encravado no processo
desajustado pelo qual o ambiente foi submetido, ocasionando um
descompasso entre o tempo de vida dos antepassados e o tempo
presente. Logo, a adulteração do ambiente de vida gera diversas
rupturas nos vínculos biográficos da comunidade. Por esse motivo, a
agricultura pouco agressiva do campesinato negro de Martimianos
assume marcas qualitativas (Deleuze, 1997), sendo incompatível

74
Entrevista com Gino e Querli (filhos de Erocilda dos Santos) realizada por Cristian Salaini e Luiz
Fontoura em 2008.

248
com a exasperação dos solos, já que a destruição do ambiente é
capaz de interferir na própria memória do grupo (Borba, 2008).

Vale lembrar aqui que o atual pleito em torno da regularização fundiária do

grupo quilombola tem início através de uma denúncia, realizada pela comunidade

quilombola, à Secretaria de Direitos Humanos da Assembléia Legislativa do Estado

do Rio Grande do Sul. Esta denúncia ocorreu em função da existência de

irregularidades ambientais bastante severas à continuidade da vida social do grupo.

Porém, a agressividade processada pelos proprietários, no que diz respeito aos

recursos naturais da região, não é atual. Ela vem tomando corpo ao longo da história

de cinco décadas desse grupo social negro aqui em questão. Se essa denúncia vem

a ocorrer nesse momento específico da história da comunidade quilombola é porque

essa tensão entre “forças externas” e “modelos particulares” tornou-se

absolutamente insustentável, ameaçando de sobremaneira a própria existência

física da comunidade quilombola.

249
Fotografia 46 – Margens do Rio dos Caixões, próximo ao quilombo.

Fonte: Cristian Jobi Salaini

Fotografia 47 – Margens do Rio dos Caixões, próximo ao quilombo.

Fonte: Cristian Jobi Salaini

250
4.5 Dona Erocilda: do passado negro ao pleito atual.

Na primeira visita à comunidade do Rincão dos Caixões, ainda em meados de

2008, encontrei uma senhora bastante atenta ao que os visitantes apresentavam

naquele momento. Em uma reunião inicial, composta por pesquisadores e por

membros do IACOREQ75, algumas idéias mais gerais foram colocadas acerca do

trabalho que ali se desenrolaria. Finda a reunião, aquela senhora de olhar

desconfiado, que aparecia na reunião na condição de ouvinte, me interpelou. Ela

dizia: “Tu achas que eu não sei que tu estavas gravando esta conversa? Tu estava

era gravando tudo que eu sei!”. O interpelo me pegou um pouco de surpresa, já que

parecia haver algo mais em sua questão do que a simples inquietação do uso de um

gravador que, em verdade, nem estava ligado durante a reunião. Parecia-me que a

pergunta escondia algo que foi me sendo revelado durante meu contato com essa

emblemática figura e liderança do Rincão dos Caixões, a Dona Erocilda. Durante o

andar do trabalho de campo, Dona Erocilda, extremamente observadora e pouco

falante na reunião, foi se apresentando enquanto uma excelente narradora. E a

pergunta inicial, baseada num tipo de desconfiança pela possibilidade do gravador

ligado, transformou-se naquilo que a própria Erocilda costumava me dizer: “Tem

coisas que só falamos para amigos, certo?”.

Esta minha apresentação inicial tenciona servir de metáfora às constituições e

enquadramentos que se dão durante o trabalho de campo. Ao chegar à comunidade

quilombola eu e meus colegas representávamos a própria figura do Estado através

de um certo papel interventor. Digo isto porque no curso do trabalho de campo esta

noção acerca do papel dos agentes públicos ficava bastante clara, já que o grupo ia
75
Instituto para Assessoria de Comunidades Quilombolas do Rio Grande do Sul.
251
se transformando em algo de diferentes instâncias do poder público. Meu contato

com esta comunidade quilombola do Rincão dos Caixões representa um pouco

destes “jogos de espelhos” que representam o trabalho de campo. Se, num primeiro

momento, a minha figura parece ter construído uma relação clara calcada na figura

de um “agente” do Estado, o que se produziu, ao longo do trabalho de campo, foram

outros jogos de espelhos que transladaram entre a figura do pesquisador até

aquelas que se apóiam em laços afetivos que, sem dúvida alguma, fazem parte das

relações construídas durante o trabalho de campo.

O papel que Erocilda Santos ocupa nos esquemas de pertença da

comunidade leva à aproximação do próprio grupo de forma mais ampla, pois, no

caso do Rincão dos Caixões, não haveria como desenrolar uma etnografia – uma

aproximação com os sistemas simbólicos do grupo – sem o “aval” dessa figura

emblemática.

Fotografia 48 – Dona Erocilda dos Santos em sua casa no Rincão dos Caixões.

Fonte: Cristian Jobi Salaini


252
Sem dúvida, a convivência com Dona Erocilda, indica vários elementos da

historicidade do grupo, seja por sua fala, seja pelo modelo normativo que sua

presença matriarcal imprime àquele espaço. De fato, sua história confunde-se com a

história do grupo negro em questão: pode-se dizer que Dona Erocilda age como a

metáfora viva do território do Rincão dos Caixões. As narrativas sobre o grupo

tomam, invariavelmente, a imagem dela como referência que conecta o passado e o

presente. Dona Erocilda narra sua primeira fixação no território como resultado de

uma doação realizada pelo antigo proprietário, Régis Fiúza, como foi dito

anteriormente: “Tu sempre foi escrava... fica com essa terra pra criar os teus

negrinhos” (Dona Erocilda dos Santos):

“Erocilda: O Régio me deu aqui, tudo era mato aí, ele me...
Cristian: E a senhora veio vindo?
Erocilda: É, daí ele me deu pra fazer um barraquinho e ficar aí com
as crianças, aí quando fazia uma semana que eu tava aqui, ele
disse, “tu vai criar os teus filhos e o que tu produzir tu cria aí, não sai
a caminhar mais, trabalhar de graça pros outros”, porque ele sabia, o
pai dele, a mãe dele, moravam em Jacuizinho, a tia dele, os tios, o
Vequinho tá morando até hoje ali, que o Veco é tio do Régio e daí,
“tu fica aí, os negrinhos que tu aumentar, tu cria aí”, ele disse pra
mim, mas aí eu disse pra ele assim, “mas o que tu quer dizer assim,
aumentar, eu não sou porca, viu!”, eu disse brincando com ele, né,
mas ele disse, “mas vai aumentar, vai aumentar”, muito, daí eu fiquei
aqui, aí fiz um barraquinho e ele disse, “tu faz aí que eu vou te
mandar uma semente de lá”, ele já tava morando em Soledade e
76
mora lá ainda, ele tem a casa dele em Soledade.”

76
Entrevista realizada por Cristian Jobi Salaini e Vinícius Pereira de Oliveira com Erocilda dos Santos
em 2008.
253
Ao mesmo tempo, essas narrativas repercutem no lugar de liderança

destinado a ela no interior do espaço77. Ela ocupa um forte papel na escolha sobre

quem pode e quem não pode residir na comunidade, quando de um casamento com

alguém de fora, por exemplo. Há, nesse sentido, “regras” de afinidade que regem a

pertença ao grupo e, de forma bastante evidente, Dona Erocilda representa um

canal aglutinador da execução dessas regras. Sua residência e arredores atuam

como um ponto preferencial dos encontros da comunidade, um centro de decisões

para o qual convergem as pessoas nas diferentes atividades do grupo.

Quando começam as movimentações em torno do reconhecimento do grupo


78
enquanto “remanescentes de quilombo” , Dona Erocilda aponta Sebastião

Cardoso, marido de sua neta Andréa dos Santos Cardoso, como responsável pela

interlocução com os agentes externos à comunidade que se interpuseram durante o

percurso de reconhecimento. Dona Erocilda justifica sua escolha no fato de nenhum

de seus filhos saberem ler ou escrever, apontando para a dificuldade de lidar com o

“mundo dos papéis”. Sabedora da necessidade da criação de um elo entre o

quilombo e o universo que emerge em função do pleito atual, realiza tal escolha com

o objetivo de promover um acesso ao “mundo dos letrados” pelo mundo dos “não

letrados”.

77
Como visto anteriormente, a negociação destinada ao aumento do espaço agriculturável da
comunidade, que contou com a presença da Procuradoria da República de Cruz Alta, Quilombo do
Rincão dos Caixões e o atual proprietário das terras que divisam com a comunidade, tomou a casa
de Dona Erocilda como “ponto zero” da nova marcação. Dona Erocilda, figura central à comunidade
em questão, foi reconhecida pelos “agentes externos”.
78
Como visto em outra seção, o relatório sócio-histórico-antropológico em questão, realizado na
condução do processo admistrativo 54220.001415/2006-39 da 11ª Superintendência do INCRA, é
resultado de um percurso mais longo do reconhecimento político da comunidade que vem sendo
realizado por “agentes externos” de diferentes instâncias.
254
O que interessa aqui, nesse momento, é resgatar o potencial que a trajetória

de Dona Erocilda – e suas repercussões na memória coletiva e nas práticas do

grupo – produzem no atual “quadro de lutas” no qual o grupo quilombola se insere.

Ao narrar sua chegada no “Rincão dos Caixões”, Dona Erocilda sempre

aponta para o fato de ter “rolado muito por aí”, de ter sempre trabalhado “pros

outros” como “escrava”. Como já referido, quando de sua chegada ao Rincão dos

Caixões, com o seu primeiro marido, ela conheceu Régis Fiúza, o então proprietário

do conjunto de terras nos quais se encontra atualmente o grupo negro. Narra que, já

residente “pro lado de lá do rio”, onde construí sua primeira moradia – “era tudo

mato”, recebe uma doação do dono das terras:

“Erocilda: Vim rodando e vim vindo, que daí que eu me encontrei


aqui e aqui eu fiquei, mas eu fiquei não... Não absolutamente, né, eu
entrei aqui com concessão dos donos e fui ficando, ele disse, “tu fica
aí e quando nascer o negrinho tu cria aí, nasce outro tu cria aí”, ele
dizia pra mim, “e vai ficando aí”, daí quando ele vendeu pro João
Carlos, daí eu vim pra cá e o João Carlos já morava, tinha a
propriedade dele, né, tinha a mãe dele e daí eu trabalhava lá pra
eles, quando eu não tava em casa trabalhando em volta da casa, a
plantar alguma coisa, eu ia trabalhar lá pra pegar alguma coisa pra
trazer pros filhos comerem, eu tinha a menina pequena e eu tinha
uma criadinha pra cuidar pequena, fui ficando e foi nascendo negro
aí e eu fui criando e to aqui. (Risada). Vocês vão dizer assim, “que
velha louca aquela, estúpida!”. 79

É muito importante ressaltar uma categoria que recorrentemente aparece nas

falas de Dona Erocilda, ao narrar sua própria trajetória pessoal, a categoria

“escravo” vem a integrar diferentes temporalidades por ela vividas naquele território.

79
Entrevista realizada por Cristian Jobi Salaini e Vinícius Pereira de Oliveira com Erocilda dos Santos
em 2008.
255
O “ser escravo”, que ela utiliza como condição explicativa desde a sua chegada ao

local, evidenciando uma condição de se “estar rolando por aí” é atualizada para

explicar situações posteriores de sua vivência pessoal na região.

Do ponto de vista analítico, este elemento é extremamente importante, pois

ele repercute de forma mais generalizada na maneira como as demais pessoas da

comunidade acabam interpretando as situações locais. O “trabalhar por um quilo de

banha” – expressão freqüentemente trazida pela comunidade quilombola –

apresenta-se como a própria metáfora que expressa as relações historicamente

vivenciadas pelo grupo:

“Erocilda: Mas ele disse, ele disse pra mim, “eu vou te de dar um
pedacinho pra ti deixar de ser escrava, trabalhar de graça, bem dizer,
pros outros”. Escrava, que eles queriam dizer, sabe o que era? Se eu
plantasse aí um saco de feijão na terra do (Bolonho?) ali, né,
plantava em “sucia” [“sociedade”], se colhia cinco sacos, eu tinha
saco e meio só, o resto era do dono da terra, né, e trabalhava assim,
por isso que ele dizia que a gente é escravo, que vivia só... Saía dali
ia pra outro, saía dali pra outro, né, até que eu cheguei aqui e aqui eu
“despalanquei”... O senhor vê, a gente plantar uma lavoura aí, de
“sucia”, não íamos longe. E assim aconteceu pra mim... E nunca a
gente arrumava nada, nada mais do que uma comidinha, pra ter pra
comer e às vezes passava fome ainda, às vezes passava fome.” 80

O que cabe ressaltar aqui é o fato dessa visão retrospectiva do passado,

organizada por Dona Erocilda, remeter a uma série de juízos sobre o presente. “Ser

escravo” não faz parte de um tipo de memória recalcada pelo grupo, uma memória

dificilmente alcançável pelo pesquisador. Ao contrário, a condição de “escravo” é

80
Entrevista realizada por Cristian Jobi Salaini e Vinícius Pereira de Oliveira com Erocilda dos Santos
em 2008.
256
algo que se reproduz pelas condições vividas pelas gerações sucessórias de Dona

Erocilda:

“Cristian: E tu lembras alguma história que talvez a D. Erocilda ou as


pessoas lá Sítio falavam da época da escravidão?
Gino: Não. Daquela época ali nós era tudo pequeno, às vezes
contavam, Deus o livre... O meu pai, a mãe contava, no tempo que
eles moravam lá ele trabalhavam... Bom, um quilo de banha por dia,
trabalhar de cedo até escurecer por causa de um quilo de banha,
isso aí é pior que escravidão, não tem, né... Daí eles moravam lá na
época, daí eles vieram pra cá, aí dava pra ganhar um pouquinho
mais, nós nos mudamos, nos mandamos de lá, bastante assim, por
exemplo, a crioulada, era uma região só de crioulo e cada um tinha
um pedacinho de terra, daí os “piranhas” entraram, né, foram
tomando e davam umas coisinhas pra um, uns troquinhos...
Tomaram... É esse cara que tá (?) também lá, o Libinho lá...
Cristian: Lá no Sítio?
Gino: Ham, ham. O Libinho esse... Ele tem terra na frente da casa da
minha irmã que mora na frente ali... O cara tomou terra, tomou tudo
dos miseráveis... E ainda além de pegar ele pegava e fechava as
terras e fazia fechar pra eles, fazia fazer cerca pra eles ainda, sabe...
Gino: Não, eu não vou dizer que na época ali, emprego era mais
difícil, né, que nem a nossa raça, eu já digo a nossa raça, no caso,
era mais difícil, que era o tempo, bem dizer, dos escravos que
trabalhavam. O meu pai, eu me lembro que trabalhava um dia pro um
quilo de banha, um quilo de banha... Um quilo de banha, o que dá
um quilo de banha aí pro... Pros outros, pra tratar 5, 6 pra pagar.” 81

Pode-se dizer que a trajetória social de Erocilda dos Santos funciona como

um canal de entendimento de categorias-chave da comunidade quilombola. Sua

81
Entrevista realizada por Cristian Jobi Salaini e Vinícius Pereira de Oliveira com Erocilda dos Santos
e seu filho Gino em 2008.
257
figura de destaque é produto e produtora de um modo particular de existência e

reprodução de conhecimentos compartilhados pelo grupo. Pode-se dizer que há

arranjos calcados no modelo da família extensa que toma Erocilda dos Santos como

um “nó” e canal aglutinador. Ainda, sua trajetória particular expressa elementos de

um quadro mais geral encontrado no pós-abolição: a sucessiva imposição social de

territorializações e desterritorializações de grupos negros nesse momento da

história. Ou seja, a impossibilidade de concretização da liberdade. Daí sua

percepção de ter sido sempre “escrava” – algo que se reproduz pelo grupo de forma

ampla.

O que permite sua fixação naquele espaço é resultado de uma série de

cruzamentos históricos locais. O encontro com tal doador apresenta-se como

elemento dotado de uma especificidade histórico-cultural fundamental para a

consecução da trajetória de Dona Erocilda nos termos em que ela se deu. Ainda,

sua vinda de outra comunidade negra – que hoje também desenvolve pleito por

reconhecimento étnico-fundiário, a comunidade do Sítio/Linha Fão – deve ser

ressaltada. Erocilda, no encontro com sua comunidade do Sítio/Linha Fão, realiza

novos ajustes entre o pleito atual e o seu “passado escravo”. Ela faz questão de

produzir este encontro com as pessoas da comunidade do Sítio, a fim de “aprender

mais sobre os escravos”.

258
Fotografia 49 – Comunidade Quilombola do Sítio. Edoilde Xavier da Silva (Dona Funé),
Oralina Fernandes da Silva (Dona Pretinha) e Erocilda dos Santos.
Arroio do Tigre, em 2008.

Fonte: Cristian Jobi Salaini

O que ocorre nesse longo percurso que levou Erocilda dos Santos do Sítio ao

Rincão dos Caixões releva muito mais que um simples deslocamento físico. Fala-se

aqui do transplante de um modelo de vivência tradicional de um local para outro.

Nesse sentido, o que deve estar em mente, por parte do leitor, é o aspecto de

resistência cultural contido nessa trajetória. Ela carrega consigo parte da força que

explicita uma forma de se colocar num espaço que se distingue de seu entorno.

259
4.6 “Carambola” ou quilombola? As categorias em diálogo intercultural.

Dona Erocilda e outros integrantes do Rincão dos Caixões, no início da

pesquisa, falavam muito da nova condição dos “carambolas” – “Nós somos todos

carambolas agora!” (em alusão a quilombolas) – adotada pelo seu grupo social. Este

termo mesmo, “carambola”, ouvido em tantas outras situações de campo, já foi

motivo de repressão por ouvintes mais especializados. Afinal, “carambola” poderia

ser interpretado como o próprio atestado da ignorância do grupo social face ao pleito

em curso. O trabalho de campo, porém, acaba por demonstrar uma via mais longa

onde o grupo social produz uma relação de “conversação” com as categorias por ele

apreendidas. Não se trata apenas de “vestir a roupa” das categorias jurídicas e

administrativas (neste caso assumir de uma vez por todas uma “identidade

quilombola” seria bastante razoável).

O que ocorre é um processo de negociação contínua com a categoria, onde

os sujeitos interpelados pela nova condição precisam refletir acerca de suas

condições existenciais que façam sentido ao pleito atual. Não se trata de uma

invenção irrestrita, e sim de um diálogo seletivo. Ora, toda seleção implica em

perdas relativas. A identidade do grupo – sua “cultura” – acaba por viver como por

entre “dois mundos”. Um de sua cultura “para fora” e outro de sua cultura “para

dentro”. De uma “cultura” mais ou menos demonstrável àqueles que os interpelam.

Cabe notar que não se trata de um “mundo” mais verdadeiro que o outro; o que está

em jogo são mundos que se comunicam no sentido de uma possível estabilização

comunicativa.

260
Bensa mostra como durante o século XIX os missionários e viajantes que

passavam pelo povo Kanak, da Nova Caledônia, não poderiam imaginar que um dia

este grupo social poderia alçar o status de pertencente à “cultura”. Mas foi preciso o

declínio do imperialismo francês, através da implantação de instituições culturais

específicas (órgãos ministeriais e escritórios), para que ocorresse o advento da

“cultura kanak”, enquanto resultado de projetos republicanos com a intenção de

promover a “cultura melanésia”. O que ocorre, conforme argumenta o autor, é um

tipo de cálculo nacionalista acerca dos ganhos que o governo francês poderia

contabilizar em função desta “propaganda” da cultura Kanak enquanto elemento

distintivo da cultura nacional.

Deste modo, o debate sobre o lugar da cultura kanak no futuro da


Nova Caledônia somente pôde ser levantado, por ambos os lados,
em termos de uma redundância ou de uma distinção entre o cultural
e o político, quando o domínio da cultura já estava constituído em
entidade institucional, distinta da vida comum das populações. Uma
tal dissociação está completamente carregada de conseqüências
para aqueles que se considera encarnarem naturalmente esta
cultura, ou seja, os próprios Kanak. Com efeito, como se pode viver
sem tensões a ruptura entre a continuidade da vida social habitual e
a transformação em espetáculo, aos olhos de todos, das formas
(esculturas, danças, livros e arquitetura) consideradas capazes de
representá-la? (Bensa, 2001. p. 76).

O centro da argumentação de Bensa (2001) gira em torno das iniciativas de

um Centro Cultural Tjibaou e dos recortes e tensões existentes entre uma “cultura

para si” – dos próprios Kanak – e dessa cultura “para fora” que resulta do processo

de descolonização da Nova Caledônia. Esta tensão, apresentada pelo autor, revela-

261
se oriunda das distintas apropriações da “cultura”. Existem níveis de apreensão

desta “cultura” que trabalham com um arcabouço de elementos diferenciados,

dependendo do interlocutor em questão.

O processo reflexivo que envolve a seleção de elementos a serem

negociados para fins de demonstração neste novo mundo dos pleitos promove um

certo percurso entre o “ser carambola” e o “ser quilombola”. Neste sentido, a

existência de registros diferenciados acaba sendo demonstrativa de uma defasagem

categórica entre o campo intelectual e os setores do Estado, movimentos sociais e

agentes locais. Se, por um lado, a reflexão acadêmica procura ampliar os sentidos

desta “cultura quilombola” em uma tentativa de não reificação de categorias, por

outro, os agentes acabam por se apropriarem destas mesmas categorias – “cultura”

e “historia” – enquanto elementos concretizadores das lutas por reconhecimento.

Esta apropriação, contudo, é consciente da necessidade de constituição de um

processo de verossimilhança neste processo de “conversão” das categorias, sem o

qual se incorre no risco acusatório da falsidade identitária.

Logo, a adesão do grupo às categorias “vindas de cima” se dá sempre de

maneira problemática. Não se trata nem de uma aceitação prévia dos conteúdos

formais e nem de uma rejeição dos mesmos. O que está em jogo é um tipo de

relação dialética que tende a encontrar algum tipo de estabilização categórica no

horizonte das dinâmicas conceituais do próprio grupo quilombola.

262
4.7 Memória e noções de justiça. Mapas e territorialidades.

Argumenta-se, nesse momento, sobre a existência de noções de justiça que

caminham, dialeticamente, para uma certa estabilização do mapa quilombola

apresentado no relatório técnico. O mapa quilombola acaba sendo uma “versão

simplificada” dos complexos arranjos territoriais compostos pelo grupo, devido à

própria interpretação, por parte do grupo, dos limites possíveis e justos do pleito

territorial. O mapa, em sua versão geométrica, acaba aparecendo enquanto o

resultado de recortes e ajustes que levam em consideração noções de justiça “do

passado” e limites sobre o justo “no presente”.

A memória demarca um espaço que, hoje, não pode ser mais trafegado pela

comunidade quilombola devido à ação arrebatadora dos sistemas de propriedade ali

constituídos. Este fato, porém, não desconstitui a natureza primeira da ocupação

quilombola naquele espaço. Aliás, pode-se afirmar que é a própria ação social desse

grupo coletivo que constitui aquele espaço; temos ali uma territorialidade negra

sobrevivendo à chegada de outros grupos sociais e não o inverso. Mas o que

importa ressaltar aqui, de forma bastante intensa, é a conexão direta entre este

espaço vivido e a constituição do atual pleito do quilombo em ação, onde o próprio

mapa é resultado de uma dialética nas noções de justiça que compõe o horizonte de

experiências morais do grupo.

263
Fotografia 50 – Discussão acerca dos limites da área quilombola.

Fonte: Vinícius Pereira de Oliveira.

O atual contexto de demanda que toma o universo possível na atual

legislação brasileira sobre o assunto (art. 68 da Constituição Federal, Decreto

Presidencial 4.887 e Instrução Normativa 20) dialoga com passados de lutas

travados pela comunidade e seu entorno por um estilo de vida e por uma forma de

resistência de sua tradição cultural. O resultado disso é uma interpretação, por parte

do grupo, que evidencia o atual processo como uma luta por direitos. Isso revela o

papel ocupado pela comunidade nas relações de trabalho local. Ao mesmo tempo

em que evidencia o papel da reprodução de seu modo de vida local, o grupo retoma

essa identidade para reivindicar uma realocação nas relações que sempre
264
colocaram o grupo numa situação de desvantagem e de exploração da força de

trabalho. Encontra-se, portanto, uma noção de justiça que dialoga com o histórico de

vida do grupo:

“Licindo: Esse aqui é o milhinho do (?) que eu plantei.


Querli: Uma dor no coração do velho, do Darlei, desse pedaço de
terra, de dá esse pedacinho de terra, porque aqui tirava inteira, né,
era tudo soja.
Cristian: Como é que é Licindo?
Licindo: Não é dá, aqui é direito que a mãe tem, né.
Cristian: É um direito que a tua mãe tem?
Licindo: Mas claro que é. Tu não acha que eu to certo também?
Cristian: Eu acho.
Licindo: É um direito que a mãe tem, não é que ele vai dá.
Almeri: Até hoje (?) que a mãe trabalhou pra essa gente miserável,
chegava em casa dava comida pros filhos.
Licindo: Imagina, coitada da velha sustentar 17 filhos.” 82

Como já mencionado anteriormente no corpo desse texto, lida-se com uma

modalidade de convivência da comunidade negra com os sucessivos proprietários

que fazem e fizeram parte das relações históricas da comunidade. Muitas vezes, a

concessão de um pedaço de terras, por parte dos proprietários, destinadas à

gerência interna do grupo, pode significar uma estratégia de manutenção das

fronteiras territoriais dos “proprietários oficiais”. Uma leitura das relações

paternalistas envolvidas coloca esse fato no registro do “favor” e da “benevolência”.

Porém, do ponto de vista dos atores sociais aqui envolvidos no pleito fundiário – a

82
Entrevista com Almeri e Licindo, enquanto este último realizava a colheita do milho em 2008.
265
comunidade quilombola do Rincão dos Caixões – esta conjuntura privilegia a própria

possibilidade de manutenção dos laços societários comuns ao grupo.

Mesmo que de forma reduzida, o cultivo de uma pequena horta ou mesmo a

possibilidade de plantio em espaços onde a “máquina não alcança” possibilita, em

meio a relações verticalizadas de emprego da mão-de-obra local, um tipo de

sobrevivência simbólica que age nos meandros desse próprio sistema excludente.

Esse espaço conjuntural vivenciado hoje pela comunidade quilombola encontra

correlatos nas narrativas históricas resgatadas pelas reflexões de uma nova

historiografia social da escravidão e do pós-abolição.

Essa noção de direito processada pela comunidade comporta, porém, os

próprios limites da demanda quilombola. Não se trata apenas de uma busca por

direitos, mas também de compor um quadro de limites dessa mesma demanda. O

processo reflexivo, no interior do grupo, procura resolver em que sentido o mapa

apresentado no relatório final deve ou não ser “recortado”.

Mas afinal, o que seria, hoje, esse território quilombola? Baseado em quais

elementos é possível a construção desse mapa que procura expressar o histórico

desse grupo? E, um elemento chave dessa construção: Quais são os limites dessa

territorialidade quilombola a serem expressos no relatório?

Neste sentido, deve-se dizer que o mapa da área quilombola expressa no

relatório técnico foi o resultado de uma sucessiva luta por estabilizações de sentido.

Antigos espaços, constituintes da historicidade do grupo, não são elencados como

pontos do mapa. O grupo resolve deixá-los de fora, pois entende que “não seria

justo”, já que acarretaria na intervenção de domínios do espaço que interferiria

negativamente em certos padrões da vida local.

266
A tradição do grupo se expressa naquele espaço físico e mais que isso: ela

apresenta-se como a própria definidora daquele espaço. Ainda, a memória coletiva

do grupo apresenta uma coletividade fortemente “amarrada” em torno daquele

território. A localização de espaços de memória delineia essa territorialidade

quilombola. Deve-se, porém, ressaltar um elemento muito evidente ao trabalho de

campo realizado em tal comunidade. Trata-se de suas noções de justiça que

marcam fortemente a atual demanda por direitos étnico-territoriais em que as noções

de justiça vêm a compor de forma bastante intensa os próprios limites dessa

territorialidade quilombola que se expressa no presente. Isto quer dizer que o grupo

articula este diálogo com sua história com aquilo que – nas próprias palavras

quilombolas – entende-se como o que é “necessário para viver”.

Fotografia 51 – Seu Gino colhendo os produtos de seu trabalho no


Rincão dos Caixões.

Fonte: Cristian Jobi Salaini.


267
Não pretendo lidar aqui com uma noção de necessidade como algo oposto a

outros elementos que estariam contidos no âmbito da cultura ou na memória do

grupo. De fato, essa noção de necessidade está completamente imiscuída aos

modelos simbólicos compartilhados pelo grupo e que abarcam formas de saber-

fazer e gerência do território e dos recursos naturais. O “necessário para viver”

funciona como um ponto de encontro entre a rica trajetória social deste grupo e

aquilo que o grupo entende como sendo possível como substrato da atual demanda

territorial.

O que se procura evidenciar é o fato do grupo tomar a memória coletiva e o

seu modus vivendi enquanto elementos fundantes de seu território, e dali retirar os

elementos de uma “forma de pensar” que acaba por apontar limites para seu

território. Poder-se-ia dizer que o território quilombola estabiliza-se nesse jogo

dialético entre passado e futuro, entre memória e pleito coletivo. O resultado disso

traduz-se em noções de justiça que dialogam com a atual demanda.

268
5 O TRABALHO DE CAMPO EM SERGIPE. AMPLIANDO DIÁLOGOS.

Minha inserção em campo em Sergipe se deu através de uma parceria


83
realizada entre INCRA do Estado do Sergipe e empresa PROAGI . A finalidade de

tal parceria era a realização de relatórios técnicos em comunidades quilombolas no

estado do Sergipe, e o trabalho de campo foi realizado durante os anos de 2009 e

201184.

Creio que a experiência etnográfica em comunidades quilombolas no Estado

do Sergipe veio a alargar o escopo de minhas experiências anteriores. Não se trata

de uma comparação entre campos etnográficos. Trata-se da construção de lentes

com um alcance mais profundo ao novo universo de pesquisa: as etnografias

colocam-se a conversar. Se no quilombo dos Alpes e no Rincão dos Caixões já

havia me deparado com as complexas formas de (re)construção territorial através

dos saberes-fazer destes grupos, encontro situações que apresentavam desafios

semelhantes nos quilombos sergipanos. Ainda, o contexto colocado pela Instrução

Normativa de número 57 – e as possíveis leituras acerca do mesmo – colocavam

desafios ao complexo espectro que ia se desenhando durante o trabalho de campo.

O diálogo com o espectro mitológico do grupo e as formas complexas que

acabam por desenhar um território nem sempre de “bordas” e limites muito claros

levaram a discutir certas narrativas subversivas inteligentemente “criptografadas” por

alguns grupos. A presença do elemento sobrenatural nestas comunidades, longe de

83
Neste trabalho no estado do Sergipe contei com equipe constituída pelo antropólogo Aderval da
Costa, pela antropóloga Mariana Balen Fernandes e pelo historiador Vinicius Pereira de Oliveira.
84
Obra emblemática que explora a questão quilombola em Sergipe é o livro “Mocambo: Antropologia
e História do processo de formação quilombola”. O livro fala sobre a complexidade do processo de
etnogênese da comunidade quilombola conhecida como “Mocambo”, apontando para as relações
entre história e memória e as teias identitárias no processo de gênese quilombola que, de forma
bastante intensa, dialogam com uma “identidade indígena”.
269
ser interpretada como um elemento constituinte do aparato museológico do grupo,

transforma-se na própria chave de entendimento de um espaço territorial

diferenciado. A presença das caiporas e dos negros d’água – espíritos da natureza –

leva ao entendimento de algo que pertence, no plano temporal do grupo, ao passado

e ao presente simultaneamente. Certas diferenças qualitativas entre o passado e o

futuro, no entanto, são alçadas no plano dos juízos morais realizados pelos grupos.

Um território mediado pelo domínio do fantástico coloca o observador frente aos

diferentes níveis narrativos e semânticos na análise da territorialidade quilombola.

O Pontal da Barra, quilombo de Sergipe, foi trazido à análise por alargar

determinados elementos acerca da construção e da dinâmica da memória

quilombola. O trabalho de campo no Pontal da Barra, imerso em um contexto de

desconfiança acerca da legitimidade do pleito quilombola, coloca em evidência a

dificuldade de uma identidade que se encontra em pleno processo de diálogos

semânticos. Diálogos que, como destacado até o momento no corpo desta análise,

possuem limites quanto à sua plasticidade, pois dependem dos frameworks

disponíveis no espectro simbólico do próprio grupo.

As “fraturas” encontradas no trabalho de campo no Pontal, apresentadas na

forma de uma memória coletiva aparentemente descontínua, revelaram as formas

veladas de enlace da memória. As tensões entre o dito e o não dito revelam uma

forma disjuntiva de acesso à memória, mas que está profundamente enraizada nas

possibilidades simbólicas desenvolvidas pelo grupo. O silêncio, comumente

associado à ausência, constitui-se em importante ferramenta de manutenção

identitária. O “dizível” se concretiza na medida em que o grupo alça novas

possibilidades de construção identitária que, do ponto de vista narrativo, resultam

270
em noções e juízos acerca de situações do passado e do presente vivenciados pelo

grupo.

Fotografia 51 – Comunidades quilombolas do Sergipe.

Fonte: Relatório sócio-histórico-antropológico da comunidade do Pontal da Barra.

5.1 Narrativas subversivas e a mitologia do sobrenatural.

O trabalho de construção dos relatórios de campo em Sergipe foi realizado

tendo como parâmetro a Instrução Normativa de número 57. O artigo 10 da IN traz,

entre outras coisas, a fundamentação do RTID (Relatório Técnico de Identificação e

Delimitação) baseado em “elementos objetivos” no que diz respeito às informações


271
antropológicas e etnográficas. A atmosfera geral de construção do RTID

apresentava preocupações, claro, sobre o tamanho das áreas quilombolas, sobre

cadeias dominiais e a necessidade de verificar possíveis “não-quilombolas” dentro

da área dos grupos sociais. O “clima” de construção de um relatório se dá, muitas

vezes, sob essas percepções mais ou menos veladas acerca da “objetividade” dos

dados do relatório – “Narrativas, por si só, comprovariam algo?”. A operação

administrativa precisa efetuar um recorte da vida quilombola que seja tangível aos

processos de classificação de controle.

No entanto, ao entrar em contato com três comunidades quilombolas do

Sergipe – Ladeiras, Caraíbas e Forte –, encontrei um elemento que, ao longo da

pesquisa, se apresentaria como incontornável: a forte presença de encantados,

imagens sobrenaturais e figuras mitológicas “povoando”o território. Seria este tipo de

“dado” um “elemento objetivo”? À medida que o tempo do trabalho de campo ia

transcorrendo, certas imagens do passado iam aparecendo através de um

hibridismo de elementos, entre eles, essas figuras fantásticas.

Estas imagens, que pareciam estar esperando o momento de “libertação”,

falavam sobre situações do passado relativas ao território, noções de justiça e sobre

uma forma intensamente enraizada nas práticas territoriais, pois o sobrenatural,

mesmo que mais escasso nos dias atuais, está “por aí, assoviando entre uma casa e

outra”. As caiporas – “protetoras da natureza”– e o negro d’água – uma criatura do

“mundo inferior” que “vive” numa lagoa que leva seu nome – estão ainda vivos no

território, “à espreita”. Borges (2008), em “O Livro dos Seres Imaginários”, faz um

compêndio mitológico de figuras e entes fantásticos fruto do imaginário humano.

Existe uma imagem, contida em seus “animais do espelho” que fala sobre a relação

entre o “mundo dos espelhos” e o “mundo dos homens”:


272
Os dois reinos, o especular e o humano, viviam em paz; entrava-se e
saía-se pelos espelhos. Uma noite o povo do espelho invadiu a
Terra. Sua força era grande, mas ao cabo de sangrentas batalhas as
artes mágicas do Imperador Amarelo prevaleceram. Ele repeliu os
invasores, encarcerou-os nos espelhos e lhes impôs a tarefa de
repetir, como numa espécie de sonho, todos os atos dos homens.
Privou-os de sua força e de seu aspecto e reduziu-os a meros
reflexos servis. Um dia, contudo, eles se livrarão dessa letargia
mágica. O primeiro a despertar será o Peixe. No fundo do espelho
perceberemos uma linha muito tênue, e a cor dessa linha será uma
cor que não se parece com nenhuma outra. Depois, irão despertando
as outras formas (Borges, 2008, p. 26-27).

Esta narrativa fantástica produzida por Borges me inspira a refletir sobre estes

seres das “profundezas” ou do “mundo interior” que foram sendo “despertados”

durante a construção do relatório antropológico. Estas outras formas de vida, que se

negam a serem capturadas, apontam, hoje, para uma perspectiva sobre os

territórios repletos de significação e juízos de valor sobre a condição quilombola.

Pretendo neste capítulo demonstrar a relação entre leituras míticas e

territoriais de três comunidades do estado do Sergipe: Ladeiras (localizada no

município de Japoatã, Caraíbas (localizada no município de Canhoba) e Forte

(localizada no município de Cumbe). Estas três comunidades apresentaram formas

muito semelhantes no que diz respeito ao seu contato com o sobrenatural e sua

dimensão territorial expressiva. O objetivo é trazer à tona uma forma subversiva de

localização no espaço, de produção de juízos morais que não dialogam

imediatamente com um “desenho acabado” do mapa quilombola. Esta linguagem

mitológica e sobrenatural desenha uma territorialidade quilombola altamente

reflexiva e dinâmica, desafiando a produção de um recorte apressado do território

273
quilombola. Esta mitologia do sobrenatural que aqui segue é expressa pela presença

dos “encantados”, objeto de estudos antropológicos e de historiadores que

produziram significados distintos para as práticas, muitas vezes através de um viés

folclorista. O objetivo, contudo é entender o dinamismo destas práticas que

produzem mais do que uma relação meramente associativa com o território. Neste

encontro entre os “vivos” e o sobrenatural, encontra-se a produção de um território

que sobrevive, não obstante as atuais configurações físicas e espaciais compostas

pelas novas fazendas e pelo agronegócio da região. Neste sentido, a tentativa é a

fuga de qualquer leitura de tom folclorista, apontando para os potenciais criativos

desta iminente ação quilombola.

Os olhares diversos colocados sobre o tema das práticas religiosas nativas e

da “pajelança”, por exemplo, têm sido tema de diferentes disciplinas, como folclore,

literatura, história e antropologia. O olhar conceitual proposto sobre o tema é

fundamental, pois acaba por precipitar diferentes possibilidades explicativas.

Dependendo do olhar proposto, pode-se lançar novas interpretações sobre “antigos


85
documentos” e falas nativas. É nessa perspectiva que Figueiredo (1996) procura

mostrar como os encantados (o foco neste momento) e as pajelanças no contexto

afro-amazônico de uma maneira geral dependiam de uma importante rede

protagonizada por intelectuais que definiam as leituras possíveis para as práticas

“fantásticas” da Amazônia dos finais do século XIX até metade do século XX. O

autor demonstra como diferentes pensadores contribuíram para leituras mais ou

menos folclorizadas do fenômeno. Autores como Eduardo Galvão e Oneyda

85
Há discussão correlata acerca da participação dos intelectuais, políticos e demais agentes na
construção de legitimidades religiosas e políticas em “Vovó Nagô e Papai Branco: Usos e Abusos da
África no Brasil” (Dantas, 1988).
274
Alvarenga, entre outros, fazem parte desta teia construída entre intelectuais, pajés e

feiticeiros.

Mas a atuação dos pajés e, por extensão, da pajelança, que deveria aparecer

em segundo plano em relação ao papel da intelectualidade construtora do tema,

assume um outro local. Como demonstra o autor, a variedade de fontes e os

diferentes ângulos de análise demonstraram uma relação complexa na formulação

do “objeto pajelança” das práticas amazônicas. Ao “confrontar” documentos da

época, como boletins de ocorrência policial, o historiador demonstra como os

próprios pajés acabavam por se apropriar das “leituras científicas” da época,

contribuindo, estrategicamente, na moldagem das leituras sobre a pajelança e sobre

os “encantados”.

Os intelectuais visitavam os pajés e sobre eles escreviam crônicas nos

jornais. Por seu turno, a polícia muitas vezes chegava aos pajés e feiticeiros a partir

dos comentários saídos das redações das gazetas. Ampliando a teia, muitos

médicos interessados em etnologia e literatos apaixonados pelo folclore punham-se

a analisar o mesmo problema emitindo suas opiniões, lavrados sob o selo da

ciência. E os pajés? Em vez de um papel secundário, apropriavam-se muitas vezes

dos instrumentos de combate da intelectualidade, reelaborando significados e

respondendo às críticas dos homens de letra e de ciência (Figueiredo, 1996, p.357)

As leituras de viés cientificista privilegiavam uma visão folclorista sobre a

prática xamã.. A riqueza do trabalho do historiador consistiu em “resgatar” figuras

intelectuais que atuaram firmemente na construção do sobrenatural, do ponto de

vista acadêmico, nas relações existentes nas práticas amazônicas. Como o autor

demonstra, até a década de 50, grande parte destes autores estavam

275
desconhecidos, sendo que a pedra fundacional deste tipo de estudo estaria remetida

à obra do antropólogo Eduardo Galvão, “Santos e Visagens: um estudo da vida

religiosa de Itá”, publicado em 1955 – o “mito de origem” dos estudos em questão.

Como Figueiredo (1996) demonstra, o autor (Galvão) dá um primeiro passo

importante no entendimento das transformações ocorridas nas práticas

sobrenaturais amazônicas e, apesar de seu enfoque culturalista 86, amplia o

conhecimento do fenômeno através de perspectiva metodológica fundamentalmente

sincrônica, algo que contribuiu em muito para a fuga de leituras de fundo folclorista

(Figueiredo, 1996). Os “encantados” aqui tomam corpo no sentido de proporcionar

um elemento mais profundo acerca da territorialidade dos grupos:

Os encantados, ao contrário dos santos, são seres humanos que não


morreram, mas se “encantaram”. Essa crença tem certamente
origem européia, estando ligada às concepções de príncipes ou
princesas encantadas que ainda sobrevivem nas histórias infantis de
todo o mundo ocidental. Mas foi influenciada por concepções de
origem indígena, de lugares situados “no fundo”, ou abaixo da
superfície terrestre, e provavelmente também por concepções de
entidades de origem africana, como os orixás, seres que não se
confundem com os espíritos dos mortos (Maués, 2005, p.262).

A importância do mito enquanto categoria analítica reside no fato dele

comportar camadas históricas. Interessa esta multiplicidade de verdades

asseguradas pela leitura mítica, que para além de uma oposição simples em relação

à história, revela diferentes possibilidades de leituras históricas (Veyne, 1983). Se é

verdade que um documento "tipo escritura" assegura direitos de um proprietário em

86
Eduardo Galvão foi orientando do antropólogo americano Charles Wagley, outro estudioso do
fenômeno.
276
relação a um determinado imóvel, é também verdadeiro o fato que aponta o mito, no

caso das comunidades, como um canal expressor de modelos de relação com o

espaço: a territorialidade. O mito revela camadas e dialoga com a memória. Ao

mesmo tempo em que a memória coletiva aponta para certos consensos do grupo e,

em conseqüência, para uma comunidade de sentido, ela também se constrói através

de outras camadas e mediações que revelam uma natureza fragmentada e

descontínua da memória.

Logo, a dimensão mitológica existentes num território revela uma certa

imanência vivida pelos grupos que nem sempre está imediatamente acessível ao

"leitor desavisado". Não se trata de reduzir a territorialidade apenas à dimensão dos

fatos míticos. Trata-se, sobretudo, de atentar para uma "escritura mítica" que acaba

por instaurar uma "ética espacial" que já "estava lá" (retirando qualquer tendência

metafísica deste argumento, claro). Mas, alinhando meu pensamento com a

dissertação do Marcelo Moura, digo que a memória não está atendendo apenas a

fins políticos do momento. Os "nativos" não são meros respondentes de

antropólogos. Eles desenvolvem as narrativas através de percepções muito

particulares. O que está em jogo aqui é um processo de retroalimentação entre o

background de possibilidades simbólicas do grupo e processos de memoração. Este

“lembrar atual”, que ocupa a temporalidade do relatório técnico, apenas aloca um

outro jogo de escala da lembrança quilombola: uma das engrenagens do jogo

memorativo.

Se o mito possui camadas, então ele é bom pra entender as coisas, pois

revela diferentes níveis do problema que fornecem certas “chaves de entrada” para

a história. Essa existência mitológica acaba apresentando um "mapa quilombola"

277
que muito transcende as expectativas apresentadas pelo mapa do relatório técnico

destinado à operação administrativa.

Neste sentido, compreendo essa relação mitológica no presente como

corolária da noção apresentada por Gonçalves (2001) como cosmologia-ação. O

autor pontua os alcances e limites do conceito de cosmologia enquanto potencial

explicativo. Aponta para o fato de, ao ter aparecido como um tipo de substituto para

“sociedade”, “cultura” ou “organização social”, transformou-se numa espécie de

“superconceito” que perdeu relativa capacidade explicativa ao abranger fenômenos

muito heterogêneos. Neste sentido, o autor procura definir, de forma clara, o sentido

que emprega ao conceito de cosmologia como “o conjunto de princípios, conceitos e

categorias que orientam os pirahã na interpretação modelar de seu universo”

(Gonçalves, 2001, p.24). É neste sentido que o autor entende a cosmologia

enquanto dotada de ação sobre o mundo social:

A ação pressupõe reação, possibilita ligar e religar coisas e seres,


aprofundando, a partir do momento em que entra em operação, a
diferença. Para uma interpretação da sociedade Pirahã, essa
definição de ação é operacional porque cria um novo plano, ao
estabelecer uma ponte entre o “pensamento” e a “ação”, entre o
“metafísico” e o “sociológico”. Nesse plano, a ação revela a
importância do ato (no discurso do xamã, em um sonho, na
construção das relações sociais ou na interação com os demais
seres e elementos do Cosmos) na constituição da cosmologia
(Gonçalves, 2001, p.32).

Os "nativos" não estão apenas respondendo às demandas do relatório

técnico. Neste sentido, algo deve ser dito acerca da leitura dos dados míticos

278
quando incorporada à apreensão metodológica. Ginzburg (1990) evidencia como o

paradigma indiciário, metodologicamente, acaba por traduzir certos elementos do

micro, da ordem do simbólico, em esquemas que estão fora daqueles perfeitamente

perceptíveis. Ginzburg demonstra como o pintor Giovanni Morelli utiliza-se do

método indiciário no sentido de distinguir obras falsas das originais. Ele demonstra

também como a possibilidade calcada em certos detalhes da obra, a forma de

“pintar uma orelha”, por exemplo, pode revelar certas vocações pictóricas que estão

para além dos esquemas conceituais colocados pelo contexto artístico de

determinado período histórico. A utilização de determinado elemento pictórico

dialoga com certos paradigmas mais amplos que fazem que o “detalhe”, ou a

apreciação da relação de um conjunto de detalhes, levem a espaços contextuais

mais amplos. Bensa (1998) mostra como esse elemento é transmitido para a micro-

historia, fazendo com que elementos aparentemente anedóticos revelem realidades

mais profundas que seriam impossíveis de serem alcançadas de outra maneira:

“Alcançar esse objetivo implica fornecer-se os meios documentais e metodológicos

de vincular um acontecimento histórico singular a sistemas mais abrangentes de

dados e significações” (Bensa, 1998, p.43).

Neste sentido, o revisitar dos elementos colocados no arcabouço mitológico

dos grupos traz um pouco mais que imagens “anedóticas”. Ao mesmo tempo em que

indica certas “narrativas subversivas” sobre as relações de poder colocadas no

modelo escravocrata – e suas conseqüências no tempo e no espaço –, indica,

durante o trabalho de campo, a construção de contextos mais amplos e o desvelar

de uma relação dinâmica entre mito e história. As narrativas fantásticas, ao longo do

trabalho de campo, quando colocadas ao curso do exame preciso, também levam à

reconstituição de contextos mais amplos das atuações históricas constituídas pelos

279
grupos. Os fragmentos, pequenos pedaços mitológicos, os “restos” da casa grande

onde os fantasmas ainda habitam, essas narrativas todas, acabam por revelar, em

seus interstícios, alguns dados estruturais de uma “história de longa duração”. Os

antigos senhores, os antigos engenhos, os nomes dos antigos escravos fazem-se

aparecer em meio ao percurso narrativo do fantástico.

Meu intento aqui, claro, não é recair numa leitura que coloca o mitológico

enquanto suporte para a chegada ao ponto final de uma “realidade histórica”.

Interessa-me evidenciar o fato comunicativo que faz a vida mitológica colocar luz

sobre a história e vice-versa: “Não lemos a memória como ‘texto’, mas como

perspectiva da qual é possível dextextualizar os documentos escritos, tomando-os

como ‘falas’ passíveis da análise antropológica” (Arruti, 2006).

Sempre chamou a atenção, durante o trabalho de campo, a maneira viva com

a qual a sobrenatural caipora aparecia no relato dos moradores de Caraíbas.

Normalmente, quando esse tema aparecia nas conversas informais, ou, quando

perguntados de forma direta sobre a existência da caipora, instaurava-se um clima

de jocosidade e certa desconfiança, sempre seguido de algumas risadas. As risadas

pareciam transparecer uma desconfiança ou vergonha por parte do sujeito

interpelado (“Afinal, porque que diabos este pesquisador quer saber dessas

maluquices da caipora?”). Sempre que procurava alguém mais velho com a intenção

de tocar no assunto, algum jovem da comunidade acompanhava, tentando “traduzir”

os objetivos de minhas perguntas malucas. De forma muito freqüente, depois de um

tempo de conversa, as risadas cediam espaço a um tipo de seriedade (o que não

quer dizer que as pessoas não continuassem narrando os eventos vividos com a

caipora de maneira divertida). Esta “corporalidade”, produzida no ato narrativo, leva

um pouco além as funções lingüísticas colocadas no ato de interlocução. Os gestos


280
jocosos, os pequenos sorrisos, as risadas veladas e até mesmo os silêncios não

deveriam ser levados em consideração apenas como um artefato “artístico

etnográfico” a ser levado em conta pelo analista. Eles revelam sentidos que nem

sempre são imediatos ao “leitor desavisado”. Do ponto de vista metodológico,

destaca-se esta posição do etnógrafo na reconstituição de certas camadas de

sentido sem deixar de lado os espaços contextuais de produção da fala. Bensa

(1998) coloca essas “ginásticas” do ato da fala, que ensinam um pouco mais sobre

as relações entre mito e narrativa:

É possível então mostrar, por exemplo, que as narrativas que os


antropólogos se comprazeram em chamar de “mitos”, muito aquém
das meditações transculturais que podem inspirar, participam de
maneira inteiramente pragmática de uma micro-história social
conhecida pelo narrador e por seus ouvintes. Esse “saber
compartilhado” é incessantemente solicitado no interior da narrativa
por um rico sistema de alusões, de piscadelas de olhos e de
subentendidos que aquele que é estranho “às falas da tribo” não
consegue entender. O sentido não é perceptível do exterior; ele só se
mostra ao observador se este último é capaz de situar as narrativas
no campo das interlocuções que a precedem e a seguem. Os efeitos
lúdicos e táticos, as construções circunstanciais, o recurso à citação
e à alusão disfarçada, sob a cobertura de uma sucessão de imagens
aparentemente fantasistas, remetem a um saber implícito, a uma
moral e a uma história comuns. A arte retórica liga a forma ao fundo,
a natureza da narrativa ao seu contexto de enunciação e à
identidade do narrador. O tipo de enunciado escolhido, sua fatura,
suas figuras e os nomes próprios que ele exibe são largamente
dominados pela conjuntura (Bensa, 1998, p. 52).

281
Fotografia 52 – “Seu Luis” narrando as histórias da Caipora.

Fonte: Cristian Jobi Salaini.

O território de Ladeiras, do ponto de vista da apreensão antropológica, foi

reconhecido através da ação de circular pelo território. Detentores da memória

coletiva do grupo levaram os pesquisadores a muitos dos locais – aqueles possíveis

de entrada sem nenhum tipo de notificação –, possibilitando, assim, do ponto de

vista metodológico e conceitual, uma conexão entre antigos espaços e a memória

coletiva revelada pelo grupo.

282
Fotografia 53 – Trilha para a Gruta de Santa Bárbara.

Fonte: Cristian Jobi Salaini

Fotografia 54 – Tanque nas imediações da Fazenda Santa Bárbara.

Fonte: Cristian Jobi Salaini

283
Fotografia 55 – Gruta Santa Bárbara.

Fonte: Cristian Jobi Salaini

O ato de caminhar pelo espaço revela um sentido que está contido tanto na

memória como na vivência diária dos quilombolas de Ladeiras. Do ponto de vista da

memória, posso citar, de forma breve, alguns locais que fazem parte do elenco

territorial da comunidade quilombola de Ladeiras: o antigo lago, o antigo engenho e

a “solta” são alguns desses locais. Há, porém, uma forma de visualização desse

território, por parte dos quilombolas, que não necessariamente coincide com as

formas mais atuais de apreensão desse espaço, principalmente no que diz respeito

à configuração apresentada pelas fazendas locais. Podemos dizer que há uma

apreensão do território que é ativada por camadas, já que os modelos anteriormente

compartilhados pelo grupo no passado existem do ponto de vista da memória,

porém, foram como que “recalcados” pela expansão do agronegócio local. É o caso

da solta. Espaço tradicionalmente utilizado pela comunidade na constituição de

pequenas roças domésticas, assim como de coleta de frutas locais, foi sendo

“apagado” pela falta de permissão por parte dos proprietários mais atuais. Através
284
da sucessão dominial das terras denominadas por “solta”, houve uma decrescente

possibilidade de acesso àquele espaço, desde um momento quando ela era

totalmente ocupada pelo grupo, até um momento em que esta possibilidade tornou-

se completamente vetada. Pode-se dizer, de forma bastante exata, que a solta

constitui-se num dos principais núcleos do quilombo de Ladeiras, devido ao seu uso

tradicional e pelo significado coletivamente compartilhado que possui nesta

comunidade. A solta, na forma como é denominada pelo grupo, pertence, hoje, à

propriedade da Fazenda Santa Bárbara.

Não obstante esta pressão histórica, o grupo “sobrevive” através de canais

extremamente expressivos. Pode-se dizer que a antiga lagoa, o antigo engenho e o

local onde ficava o tronco destinado ao castigo dos escravos pertencem a um

mesmo núcleo territorial em Ladeiras. O lago é povoado pela figura mítica do “negro

d’água”. O negro d’água, conforme revelam inúmeras narrativas dos quilombolas de

Ladeiras, pode se apresentar de diferentes formas; meio homem, meio peixe, ou até

mesmo através da representação de uma criança. Seja como for, o lago apresenta-

se como um local de forte densidade histórica ao grupo, funcionando como um dos

“corações” do território quilombola. O mesmo pode ser dito em relação ao antigo

tronco e ao antigo engenho. Esta parte do território quilombola sempre foi utilizada

para a caça, no passado, devido à forte densidade de matas, como também à coleta

de frutas tipicamente locais.

O negro d’água tem aparição freqüente numa lagoa que leva o seu nome: “a

lagoa do negro d’água”. Esta lagoa localiza-se nas proximidades de uma antiga casa

grande existente no entorno da comunidade quilombola, assim como nas

proximidades de um antigo tronco destinado aos castigos empregados aos antigos

escravos que ali habitavam. O negro d’água, segundo as narrativas locais, acaba
285
envolvendo e levando para o fundo das águas aqueles sujeitos que se aventuram de

forma desmedida pela lagoa.

O negro d’água possui uma capacidade de transmutar-se em figuras. Para

alguns, ele aparece na figura de “meio homem-meio peixe”. Para outros, ele chama

na forma infantil – pode ser uma criança ou duas crianças. Outras narrativas dizem

que o negro d’água pode aparecer em uma forma feminina que, segundo alguns,

trata-se de uma mulher negra, de corpo escultural e cabelos compridos. Fica-se

frente a um elemento sobrenatural dotado de uma ambiguidade:

Essa ambiguidade dos encantados surge a partir do fato de que se


trata de entidades que não são pensadas como espíritos, mas como
seres humanos de carne e osso, com poderes excepcionais, pois são
“invisíveis”, podem se manifestar sob forma humana ou animal e
ainda se incorporam em pessoas comuns – apesar de manterem,
durante a incorporação, sua condição de seres humanos (Maués,
2006, p. 266).

Esta plasticidade do negro d’água, contudo, sempre me remeteu a estas

metáforas acerca das relações entre a história e memória. O “neguinho d’água” não

pode ser capturado pelo jogo civilizacional (Chagas, 2005) transformando uma das

mais poderosas linguagens de resistência do grupo quilombola. O negro d’água não

foi capturado pelo tempo, ela dialoga de forma incansável com as novas formas

sociais com as quais o grupo vem articulando, produzindo, simultaneamente, um

jogo de inovação e permanência sobre o qual as pressões externas não puderam

atuar eficazmente.

286
A imagem do negro d’água – e a lagoa – atua como uma dimensão

expressiva do território (um tipo de coração do mapa quilombola) que acaba sempre

por evocar imagens e narrativas da escravidão; um ponto de origem que toma como

elemento central as situações do passado vivenciadas pelo grupo naquele espaço

ou em outros. Conforme Chagas (2005):

Por exemplo, durante o período em que estive fazendo campo foram


muitas as situações sociais, no sentido de tomar a narração como
um evento social, em que pude ouvir histórias, como a do “neguinho
d’água” ou, mais tarde, o “nego que matou o senhor”, de tal modo a
dimensioná-la como expressão oral de uma sensibilidade jurídica do
grupo, de seus sentimentos de justiça que remontam sua relação
com a história da escravidão, e que os une sob uma cosmovisão
compartilhada – uma memória coletiva social – que toma expressão
independentemente das diversas situações jurídicas em que se
encontram as terras, das segmentações que marcam os grupos
domésticos, ramos familiares e parentagens, bem como do uso de
um discurso normativo de âmbito comunitário que não atém a
privilegiar unicamente a relação com a esfera legal estatal (Chagas,
2005, p. 121).

287
Fotografia 56 – Quilombolas de Ladeiras procurando vestígios de
uma antiga “casa grande”.

Fonte: Cristian Jobi Salaini

Fotografia 57 – Quilombolas de Ladeiras junto ao local de antiga “casa grande”.

Fonte: Cristian Jobi Salaini

288
O negro d’água se transmuta em um “encantado” de sentido muito peculiar. A

lagoa da qual faz parte e sua localização privilegiadamente colocada ao lado das

“antigas ruínas” e dos troncos servem como a mola da comunicação produzida pela

memória coletiva do grupo. (Re)visitar estes espaços, porém, implica em mais do

que um ato de memoração. Implica, antes de tudo, em uma atualização sobre a

percepção de uma correlação de forças que se estende ao presente: os negros não

foram simplesmente “rendidos” ou capturados. A apropriação sistemática destes

espaços mitológicos carrega uma densidade histórica que revela aquele que

persistiu no tempo apesar das contundentes reconfigurações políticas e econômicas

do espaço. O negro d’água, figura mitológica comum àqueles que conhecem as

“margens do São Francisco”, transforma-se, na “boca quilombola”, em mais que

memória: evidencia a própria ação social do grupo perante o espaço: implica numa

leitura mitológica sobre a qual se evidencia uma “captura incompleta”, pois, não

obstante a passagem do tempo, o grupo continua a produzir sentido, mesmo que de

maneira subversiva e relativamente velada.

Durante as discussões que envolviam o “mapa final” da comunidade

quilombola, muitos questionamentos e discordâncias foram apresentados em

relação aos espaços a serem “reivindicados” na área a ser apresentada ao INCRA.

As relações de trabalho locais, as relações de vizinhança e solidariedades com os

não quilombolas, além de certo “receio” com relação aos desdobramentos do

processo faziam parte do esquema de negociações. No entanto, vale ressaltar, para

além das discussões negociativas sobre a configuração final do mapa quilombola –

objeto de polêmicas durante o processo de construção do relatório técnico –, a

equipe de pesquisa cada vez mais se deparava com camadas profundas de sentido

calcadas na memória e na mitologia subversiva do grupo. As noções de justiça do

289
presente realizam um processo seletivo com o passado. Antigos espaços, como o

“antigo tronco”, são lembrados através de noções que evocam a possibilidade de

justiça no presente. Todavia, não se trata de uma “conversa” unilinear com o

passado. Não significa que os antigos espaços, portadores de sentidos profundos,

devam necessariamente ser incorporados no pleito atual, pois, segundo a lógica

argumentativa do grupo, “não seria justo”. Neste sentido, a perspectiva do justo é

algo negociado com o passado e que envolve um diálogo criativo com as imagens e

ressonâncias do passado, muito presentes na perspectiva simbólica do grupo.

Na comunidade quilombola de Caraíbas, de maneira bastante similar, têm-se

canais expressivos da territorialidade do grupo que se encontram, hoje,

extremamente vivos em seu modus vivendi. Deve-se ter em mente que, apesar do

acesso dificultado aos antigos territórios, ocasionado pela pressão maciça dos novos

mecanismos de plantio agrícola empregados pelo entorno, o grupo vive em seu

território através da atualização de seus marcos memoriais e temporais. Mesmo que

não seja única, a memória coletiva do grupo quilombola apresenta-se enquanto

canal preferencial de acesso aos processos relativos à etnicidade do grupo. Do

ponto de vista analítico e conceitual, entende-se que o acesso à memória coletiva

conduz à visualização de um território dotado de diferentes camadas; estas,

contudo, ao emergirem ao grupo através de suas categorias próprias de

pertencimento ao local, revelam, simultaneamente, o processo de perda territorial ao

qual o grupo foi e é submetido.

Podemos dizer que, do ponto de vista da memória coletiva, o grupo produz

uma fronteira nítida entre os “tempos do mato” e os “tempos atuais”. Os tempos do

mato são traduzidos como um tempo de relativa estabilidade do grupo no que diz

respeito ao acesso aos bens naturais, às roças produzidas coletivamente e aos


290
antigos locais de lazer. O grupo aponta, contudo, através de sua memória coletiva,

a consciência do processo que acarretou em suas perdas territoriais. Foram as

estratégias de compras e vendas de terras, e seus decorrentes mecanismos de

exclusão que, em grande medida, desarticularam os antigos territórios das famílias

negras ali residentes, como a “família Piloto” e a “Família Sertão”. O senhor Manoel

Luis dos Santos exemplifica em sua narrativa:

“Foi vendendo porque não tinha [os negros], né. Precisava de


dinheiro para comer ou para comprar qualquer coisa... aí tinha que
vender. Naquele tempo, quem tinha, vamos supor: o senhor tinha
trezentas tarefas de terra, eu tinha quinhentas; quem encostava o
seu, o senhor tinha trezentas, quem encostava o eu, não, o senhor é
mais esperto do que eu! Eu comprava: “rapaz, quer me vender cinco
tarefas de terra?”. Vende; você tava precisando do dinheiro. Eu lhe
comprava aquelas cinco, mas quando eu for cercar, eu cercava dez!
Tá entendendo como é?! Porque o senhor era mais esperto que eu!
Eu tinha quinhentas tarefas de terra e o senhor tinha trezentos. Aí o
senhor se apertava e “rapaz, me compra cinco tarefa de terra, que eu
tô apertado?”. Aí eu “compro”, aí ja fechava negócio e já marcava
cinco tarefa de terra, mas na hora de fechar a terra, eu fechava com
dez!!! Eu pagava cinco e pegava mais cinco sua! E assim o barco foi
andando, e assim o barco tá afundado aqui, reaver as terras para se
trabalhar (...) Não... Olhe, nossa família [referindo-se à família Piloto],
nós todos... a família dela mesmo aí... da família dela, quem mais
tinha terra era a família dela. Mas quando os troncos se acabou, ela
só ficou com os fundos de casa, [só lataria]. Da família dela como da
família de Nézia, ela sendo mais velha, Nézia sendo das mais novas,
né... mas é tudo uma família só. É a família que tinha mais terras
aqui dentro das Caraíbas era eles. Mas, repare, hoje o que é que
eles têm?! Não foi eles que venderam. Quem vendeu foi os pais
deles, pra trás, o avôs. Porque acabaram com a terra e eles ficaram
em nada aí. (...) E tudo de boca. Nada de papel. Agora, porque eles
fizeram isso em cima dos pobres, aí eles mesmos fizeram o
291
documento! Eles tudo hoje têm! Não tem um desses fazendeiros aí
que não tenha o documento dessas terras! Todos eles tem! Agora,
foi feito por eles mesmos, mas depois. Porque eles compraram de
boca! Enquanto eles compravam cinco tarefa, cercava dez. E ia fazer
documento?! Eles são sabido! Ia fazer documento?! Agora, depois
que eles pegaram e encheram o cachimbo de carracheira aí foi fazer
a escritura pra dizer que era deles! E eles não tava, hoje tão certo.”
87

Contudo, cabe destacar que, apesar do processo de expropriação sofrido pela

comunidade quilombola, existe um território que ainda é vivido pelo grupo: se isso,

muitas vezes, não ocorre do ponto de vista do acesso físico ao espaço, ocorre

através das operações no campo da memória, que acabam por revelar um território

submerso – e latente – pelas configurações contemporâneas da região. Há um

elemento que aparece de forma bastante intensa nas narrativas do grupo: o mito e

sua dimensão expressiva territorial. Cabe notar a operação, realizada no seio do

grupo quilombola, que aloca no campo da memória essa dimensão mitológica com

vistas a estabelecer as "origens" do grupo: um tipo de ontologia que funciona como

base de operações criativas em face às articulações políticas do presente. Além

disso, essa mitologia atualizada pelo grupo dialoga com definições de um espaço

físico que vai tomando forma pela força narrativa. Portanto, aos fins que se dirigem o

argumento dessa tese, é importante ressaltar que não interessa a "realidade dos

mitos", como se existisse algo a ser descortinado por detrás de determinadas

narrativas fantásticas. O que interessa, contudo, é a conexão que tais mitos

apresentam com a "realidade histórica", na forma como foi e é vivenciada pelos

agentes que evocam o atual pleito quilombola. Portanto, não cabe aos antropólogos

87
Entrevista realizada por Cristian Salaini e Mariana Balen Fernandes com Manoel Luis dos Santos,
em 2010.
292
ocupar o papel de "censores", e sim a tarefa de seguir os passos propostos pela

memória do grupo.

Entende-se aqui, portanto, o mito enquanto uma dimensão expressiva da

territorialidade do grupo. O mito traduz-se enquanto metáfora possível que agrupa

diferentes camadas históricas, servindo como um tipo de visualizador de fronteiras

simbólico-territoriais do grupo em questão. A apreensão da dimensão mítica do

grupo remete a uma série de eventos pretéritos que ajudam a entender a lógica de

ocupação do grupo. Eles também expressam noções de perigo existentes nas

fronteiras territoriais. Certos contornos sobre o vínculo do grupo com uma dimensão

cosmológica expressiva de seu contato com a natureza, de uma maneira bastante

intensa, fazem parte do arsenal interpretativo do grupo sobre sua vivência no

espaço.

Veja-se o caso do mito da Caipora. A figura da Caipora é conhecida do

cabedal folclórico brasileiro. Segundo narrativa recorrente, ela é um tipo de

“encantado”, uma força sobrenatural que, não raramente, confunde os caçadores

mais desavisados. É possível “sentir” que a Caipora está presente através de seus

longos assobios que indicam a necessidade de certo cuidado ao adentrar na mata.

Ela tem o poder de confundir o caçador, fazendo-o perder a noção de referência

geográfica, “invertendo” o norte e o sul, o leste e o oeste, o que, não fosse a atuação

da Caipora, seria algo completamente comum e corriqueiro ao caçador acostumado

com o espaço.

Fora do caso desses encantados mais famosos, como se dá o


processo de encantamento? Como disse antes, os encantados são
pessoas que, ao contrário dos santos, não morreram, mas se

293
encantaram. Neste processo não interfere nenhum mérito moral,
como no caso dos santos, que são freqüentemente pensados como
pessoas que praticaram o bem enquanto eram vivas. As pessoas se
encantam porque são atraídas por outros encantados para o
“encante”, seu local de morada. O encante se encontra “no fundo”,
normalmente no dos rios e lagos, em cidades subterrâneas ou sub-
aquáticas. Para que alguém seja levado para o fundo, por um
encantado, é preciso que este “se agrade” da pessoa, por alguma
razão. É comum a idéia de que, se alguém for levado por algum
encantado para visitar o encante, deve evitar comer as coisas que
lhe são oferecidas, caso contrário se encantará, não podendo mais
viver no mundo da superfície, como os demais seres humanos. Há
também a idéia de que os grandes pajés são levados pelos
encantados para o fundo, onde aprendem sua arte; mas, neste caso,
eles retornam à superfície, como xamãs, para poder praticar a
pajelança. É muito forte, na região do Salgado, a idéia dessas
entidades como encantados ou bichos do fundo. Mas não está
ausente a referência constante aos “encantados da mata”, que são
apenas dois: a Anhanga e a Curupira. Trata-se, neste caso, de seres
perigosos, que podem provocar mau-olhado nas pessoas, ou
“mundiálas”, isto é, fazê-las perder-se na mata. Isto acontece com os
caçadores que cometem “abusos”, sobretudo os que têm o costume
de caçar persistentemente um só tipo de caça. (Maués, 2006, p.264).

Parece ser auto-evidente o fato de esse mito dialogar com perspectivas sobre

a natureza, servindo como uma espécie de tabu e limite àquele que se embrenha na

mata. O que interessa aqui, todavia, é referenciar o espaço que esse mito ocupa, no

quilombo de Caraíbas, enquanto veículo da identidade. O mito, contudo, faz parte de

um universo imaginário muito maior que faz parte dessa forma de “ser” e “estar” no

mundo. Portanto, isolá-lo não faz parte da estratégia última de análise. O que

importa notar é que, no caso em questão, o mito da Caipora realiza uma operação

que engloba um tempo pretérito e um tempo presente. Mesmo que a Caipora não

294
seja mais tão facilmente encontrada nos dias de hoje – em função da menor

densificação das matas, segundo os relatos locais – basta “dar umas voltas por aí no

mato para encontrá-la”.

Essa forma “fantástica” encontrada em Caraíbas de narrar os fatos

importantes da vida social deixa transparecer um território quilombola que está ali

latente, não obstante as pressões externas no sentido de sua desarticulação.

Mesmo que o território físico esteja hoje limitado, em função da sucessiva perda

territorial e das reconfigurações espaciais derivadas dos processos e avanços dos

proprietários maiores, a narrativa mítica ajuda a acessar esse território que se

corporifica nos espaços através da ação mítica. Os “tempos do mato” e o “cuidado”

com a natureza:

“Não, mas aí só mata [o caçador] assim se ela quiser! A caça, tanto


um veado como outra coisa... qualquer caça... até o próprio
passarinhozinho que tá fazendo... Se ela permitir, você mata até o
nambu (...) É um passarinhozinho... bem assim, né... Eu já dei até
oito tiros no nambu e não acertava... Eu via o chumbo bater nas
penas dela, que as penas delas fazia..e ia-se embora! E não foi só...
Aqui várias pessoas já atiraram no nambu desse jeito! Porque se ela
tiver com uma caça, não tem cachorro que pegue, nem tem chumbo
que mate, nada assegura aquela caça. Você pode ficar areado umas
duas horas pra dentro do mato, sem saber o caminho de casa (...)
Um homem (...) nessa estrada aí que vocês vieram. E nesses
tempos o mato era grande, não tinha aquelas capineiras, tinha os
mato, né... Já era rodagem... Agora, rodagem só passava bem carro
baixo. Caminhão não passava. Eu ia caçar e meu pai dizia que dia
de sexta-feira não era dia de caçar, mas eu era... pra caçar dia de
sexta... e nunca me dei mal. Nesse dia ela [a Caipora] mostrou-me
pra eu não caçar, mas eu teimei e cacei. Me dei mal. Cacei até com
um defunto! Eu cacei até junto com um defunto nessa noite! Esse

295
defunto desse cara era meu amigo de caçada. Aí ele morreu... uns
três ou quatro anos, eu fui caçar... o caçador conhece. Aí eu fui
caçar... na chegada do mato, esse cara apareceu. Esse cara, o
cachorro dele tava correndo para um tatu. (...) Quando cheguei lá na
frente... bem ali, eu tava sentado na beira da estrada e o cachorro do
meu parceiro que já tinha morrido há seis anos atrás me assustou...
eu não conhecei a fala, né... era daquele parceiro meu que tinha
caçado junto comigo e já tinha morrido há seis anos. Arrancou o tatu
e depois passou com aquele jeitinho por mim... aí me lembrei dele. E
era ele.” 88

Durante o processo de discussão do mapa quilombola de Caraíbas uma das

principais relações semânticas produzidas, ao (re)conhecer o território, diz respeito

aos espaços potencialmente “habitados” pela caipora. De forma independente à

entrada de um espaço específico no desenho final do mapa – fruto das discussões

políticas do presente – o “mapa mental”, aquele que age de forma relativamente

“livre” das aspirações do momento, aponta o sobrenatural como um lócus possível

de apreensão territorial.

88
Entrevista realizada com Seu Luis na comunidade de Caraíbas, localizada na cidade de
Canhoba/SE.
296
Fotografia 58 – Quilombolas de Caraíbas discutindo o território.

Fonte: Cristian Jobi Salaini.

Sem dúvida alguma, o ato de reconhecer esse mito confere ao seu narrador a

capacidade de pertencimento a uma comunidade de sentido fortemente delineada

pela memória coletiva. O ato narrativo conforma uma identidade coletiva a seus

narradores. Em Caraíbas, mesmo aqueles que nunca se defrontaram “de forma

direta” com a Caipora, ou seja, nunca foram ludibriados por ela durante um ato de

caça, conhecem e sabem da possibilidade de encontro com a mesma em

circunstâncias específicas. Meu intuito aqui, nesse olhar firmado ao campo

mitológico do grupo, encontra fundamento no sentido do reencontro da escrita do

grupo que não está baseada num aparato documental. Logo, esse encontro com o

297
fantástico, coloca o pesquisador frente a frente com essa historicidade do grupo que

atualiza, nos dias de hoje, via mito, os seus esquemas de pertencimentos territoriais.

Ainda, vale notar que o espaço mítico conta também sobre as transformações

do espaço. Os lugares antigamente habitados pela Caipora são, nos dias de hoje,

exatamente aqueles que cederam lugar ao plantio da soja e da pecuária extensiva.

Nesses lugares torna-se difícil encontrar a Caipora, já que o mato e a natureza não

mais lhe fornecessem o “habitat”.

A caipora articula com uma temporalidade que dialoga, simultaneamente, com

um passado e um presente do grupo. As peripécias da caipora, segundo os relatos

quilombolas, levam a uma dimensão expressiva que narra tempos passados de

domínio territorial por parte do grupo. Fica evidente, através da apreensão dos

relatos, que a caipora, outrora, articulava-se integralmente com os limites físicos,

simbólicos e territoriais do grupo. Se hoje ela é encontrada na forma narrativa, é

porque o encontro com o sobrenatural ficou escasso. Escasso, entretanto, não

significa inexistente. As traquinagens e as mal-criadagens da caipora continuam em

um espaço que, do ponto de vista quilombola, encontra-se fragmentado. Vez por

outra, conforme relatam os moradores de Caraíba, a Caipora assovia por entre as

casas, ou, ainda, algum jovem caçador é surpreendido pelo desnorteio trazido pela

caipora. Em certa ocasião, pude participar de um momento onde um jovem caçador

da comunidade encontrava-se “tonto”, saindo da mata, depois de um momento de

caça. Ao ser perguntado o motivo de sua situação, a resposta foi imediata: “a

caipora me confundiu”.

A caipora, claro, nunca aparece “do nada” durante as conversas com as

pessoas da comunidade. A imagem da caipora surge muito comumente em meio

298
aos assuntos que versam sobre o território, sobre as antigas matas e sobre as

antigas conformações do espaço. O inverso também é verdadeiro. “Caipora” pode

ser uma chave de memória para o início de narrativas que tomam como espaço

conjuntural imagens do passado territorial e, sem dúvida, antigas situações de

violência e situações de desrespeito vividas pelo grupo. O fato de as narrativas

evidenciarem que essa figura sobrenatural, apesar de não muito aparecer nos dias

de hoje, ainda “estar por aí”, funciona como uma metáfora dos diálogos existentes

entre história e memória. Se a caipora foi desaparecendo de forma concomitante

com o desaparecimento das matas e, mais, que isso, se esse espaço temporal

coincide com o momento em que os “brancos começaram a passar os negros para

trás”, tem-se um espaço que coloca em juízo as antigas situações vivenciadas,

revelando apreciações morais acerca das antigas situações de injustiça. Ao mesmo

tempo, a permanência da caipora, dessa criatura que pode ainda estar assoviando

em um “pequeno capão” ou ainda por entre casas dos moradores, revela essa

noção de continuidade que vem apresentar as noções mais implícitas de resistência

elaboradas no grupo. Seguindo o eixo da argumentação da presente tese, que versa

sobre essa possibilidade de apreender “diferentes camadas” dessas construções da

justiça e de reconhecimento, encontra-se aqui um terreno fértil para pensar essas

relações. Não se está frente apenas ao reconhecimento efetuado pelos espaços

públicos em relação aos grupos. São encarados processos de reconhecimento que

se dão nessas mobilizações entre sujeitos e territórios e entre territórios e sujeitos.

Se os sujeitos mobilizam o sobrenatural através desta memória-ação, o inverso

também é verdadeiro. Os sujeitos são mobilizados por esta base simbólica

incontornável ao grupo.

299
A caipora, assim como o negro d’água, está sujeita a transmutações. Na

comunidade quilombola do Forte (Cumbe/SE) ela também pode ser entendida como

“a” saci Muitos narradores fazem questão de frisar que não há uma relação com o

saci reconhecido pelo cabedal folclórico brasileiro e, enquanto diferença principal,

temos uma figura feminina protagonizando a imagem da saci – ou da caipora.

Também, conforme o relato de alguns, “a” saci tem duas pernas e não uma,

distanciando-se assim da imagem mais universalmente aceita do “saci”. Estas

transmutações da caipora, evocadas pela memória local, levam ao entendimento de

uma relação visceral desta com o meio territorial. O território, do ponto de vista

quilombola, precisa ser mediado. Não é possível alçar à sua dimensão

iminentemente dinâmica sem se dar conta das camadas que encobrem o

sobrenatural. Interessante notar que existem diferentes percepções e versões

acerca da caipora, que estão depositadas em sua “forma física”, por exemplo. Esta

possibilidade transitiva da caipora, contudo, apresenta uma relação simbiótica com o

espaço, também sujeito a mudanças físicas e espaciais que ocorreram de forma

alheia à vontade do grupo. A mudança representacional na imagem do sobrenatural,

porém, informa novas relações com o mesmo espaço de outrora, não obstante as

limitações impostas pelas novas condições de acesso aos antigos espaços.

Este elemento abre, portanto, a possibilidade de entendermos um aspecto

que está colocado na linguagem mais subversiva do grupo. Esta ligação ainda

importante com esse elemento sobrenatural do passado, mesmo que de forma

velada, demonstra um laço com o território que não foi possível de ser “apagado”. As

noções de justiça expressas pelo grupo através de sua interpretação territorial

aparecem de uma forma relativamente criptografada pela linguagem do

sobrenatural.

300
Nas discussões finais acerca do formato da área quilombola, algo muito

recorrente durante as falas dos moradores era o posicionamento no mapa dos locais

onde havia mais caipora – “Aqui tinha caipora!”. Em meio ao apontamento de atuais

proprietários e, por conseguinte, antigos espaços elencados pelo grupo enquanto

pertencentes aos antigos, os quilombolas sempre evidenciavam, em meio à

nomenclatura dos nomes próprios, a existência do elemento sobrenatural. Neste

sentido, ao rememorar o território, o grupo parece trabalhar em contato com dois

registros: aquele mais recente no plano temporal, que evidencia a lógica das

expropriações territoriais e das mudanças físicas no espaço, e aquele que informa

uma mensagem criptografada do território quilombola a ser entendido como que nas

“entrelinhas”; e que toma como centro narrativo o elemento do sobrenatural e sua

mediação com o território.

Fotografia 59 – Quilombolas do Forte discutindo sobre o mapa da área.

Fonte: Cristian Jobi Salaini

301
“Maria: Sei que aqui a lenda do saci pererê ainda permanece. A
lenda do saci pererê permanece é porque sempre, infelizmente com
certeza hoje... mas tinha aqui na comunidade aqui, mais adiante lá,
partes mais de mata, e gente ouve ele assoviando e mexendo por
cima da casa, quebra prato, panela, você volta, chega dentro de casa
e tá tudo no mesmo lugar.
Cristian: É mesmo?
Maria: verdade verdadeira.
Cristian: mas por que será que ele faz isso?
Maria: Perversidade, né? Ela contava muito, muitas vezes ela
contava muito essa história do Saci-Pererê, e permanece, até hoje
permanece. Tinha um rapaz que mora no fundo da minha casa que
ela assoviava, tinha um assovio bem forte ela, se onde ele tiver ele
fica, ele não vai pra casa, ele tem medo, porque ela já bateu nele,
pegou ele, deu um coro em muitas pessoas aqui da comunidade, na
roça, ela engana e bate, o saci pererê.
Vinicius: pega as pessoas?
Aderval: É ela ou ele?
Maria: ou ele, ou ela, porque ele se transforma em duas coisas, tanto
nele quanto nela.
Aderval: Sério? Como?
Zuleide: me perdi, não teve jeito.
Aderval: Ficou confundida?
Zuleide: me confundia todo. Outro dia eu quase não cheguei lá.
Aderval: Mas então não é só daqui?
Maria: Ele já enganou na saída de casa, ele engana ela já na saída
daqui.
Cristian: Ah... foi na saída daqui já?
Zuleide: Quando eu cheguei lá, não sabia mais pra onde eu ia. E
onde estava. Só via coqueiro e mato.
Aderval: Ficou perdida lá?
Zuleide: o dia todo.
Aderval: vocês tratam mais o saci pererê como ela ou como ele?
Maria: Mais como ela. Porque teve uma senhora aqui, que faleceu há
pouco tempo, que ela tava na roça e outro senhor, aqui da
comunidade também, tava na roça, ela trabalhando, e ela o saci

302
pererê bateu nela, bateu, bateu, e ela gritava que era outro homem,
ela tava no corpo de outra pessoa. Ele não estava aqui na
comunidade, ele estava trabalhando lá em...
Cristian: mas será que o saci pererê aparece mais na roça ou mais
em...
Maria: na roça, ele só aparece mais a noite assim
Cristian: E na roça?
Maria: nas roças. No mato engana os caçador, ainda tem bastante
caçador aqui, engana o caçador e os cachorros.” 89

Caso curioso, vivenciado durante o trabalho de campo no Forte, foi o de um

senhor que tinha um “namoro com a caipora”, algo que, conforme ele narra,

provocou o ciúme de sua esposa. Seu Genilson narra que em diversas ocasiões a

caipora surgia, em meio à madrugada, assoviando de cima de seu telhado. Seu

Genilson chama esse chamado da Caipora de um “namoro” e, quando isso

acontece, ele sabe que é necessário ir para a mata para acender um charuto para

“acalmá-la”. Seu Genilson remete esse tipo de relação ao fato de não poder se

distanciar da mata e conta que, algumas vezes por ano, sai de sua casa e dorme

algumas noites no meio do mato, pois tem uma relação muito forte com a caipora.

Seu Genilson é conhecido na comunidade pelos seus poderes de cura e pelos seus

conhecimentos acerca do funcionamento dos seres sobrenaturais que habitam o

território.

“Genilson: ai também se um dia o cara fracassar ai pode apanhar no


mato
Cristian: fracassar em que sentido?
Genilson: se não cumpriu...

89
Entrevista realizada em 2010 por Cristian Salaini, Aderval da Costa e Vinicius P. de Oliveira na
comunidade do Forte. Participaram desta entrevista Maria e Zuleide.
303
Maria: a determinada regra que ela exige
Cristian: e como é que você sabe o que ela exige?
Genilson: ela exige, a gente leva fumo leva comida, se a pessoa
levar uma comida apimentada ou com alho ela não encosta... senão
você é perseguido, você se perde no lugar mais aberto do mundo
parece coisa de cinema viu, você se perde no lugar mais limpo mais
aberto que existir que existir não tem lanterna, não tem nada, você
não acha saída pra canto nenhum do mundo, ai você vai recorre a
ela tira a camisa avessa a camisa joga no chão e vira três vezes por
cima da camisa se chama cambalhota, né... ai ela abre o caminho
novamente no mesmo lugar que você se encontrava sem saída ai
ilumina o seu caminho sai você se arrepende, né... e tem que se
humilhar a ela a noite você acerta, eu canso de ver aqui ela assoviar
a minha mulher chega a ter ciúmes elas vem chamar aqui na porta
de noite ela chega e assovia aqui na porta vem encima da casa
90
mesmo aquela noite eu tinha que ir.”

É Porque no caso das caiporas e seres fantásticos, temos um encontro de

“vozes subversivas” com os atuais enquadramentos possíveis. Uma cosmologia da

ação, pensando nos termos de Gonçalves (2001).

Estas imagens subversivas, de domínio de um espaço restrito das narrativas

mais “escondidas” do grupo, acabam por aflorar em outros campos sociais em

momentos específicos. Essas narrativas que sobrevivem no seio do grupo, mas

guardadas como um elemento “não muito sério” (ou, pelo menos, presumidamente

não sério a um “leitor externo”) e outrora tidas como imagens pálidas acabam por

traduzir um novo confronto no plano das representações territoriais.

É por isso que se tem, muitas vezes, o mapa final do relatório técnico

enquanto uma “dobra” – para utilizar o termo de Ramos (2009). Os conflitos, as

90
Entrevista realizado por Cristian Salaini, Aderval da Costa e Vinicius de Oliveira com seu Genilson
Gonçalves da comunidade do Forte, localizada em Cumbe/SE.
304
negociações, o processo agonístico de produção de um relatório que acaba por

dialogar com as imagens vivas da comunidade acaba ganhando uma estabilização e

um corte de sentido – o mapa. Neste sentido, o mapa acaba se tornando uma

versão pasteurizada do território que, nos processos consecutivos de negociação

entre agentes públicos e comunidade quilombola, precisa de um estado final, uma

forma geométrica. As discussões contidas no interior dos grupos quilombolas não

deixam, contudo, de avaliar a sobre a possibilidade de recortes do mapa que

atendam às “necessidades” do presente.

O sobrenatural não está mais vivo hoje do que antes. O que ocorre é que as

lógicas coletivas encontraram mecanismos de manter o sobrenatural num local de

acesso limitado. Estas narrativas mitológicas não se apresentam apenas como um

“truque” que os vivos apresentam aos mortos:

Então, o mito não pode ser meramente um conjunto de truques que


os vivos aplicam aos mortos, como pensava Malinowski [antropólogo
funcionalista]: uma "carta magna" que justifica os arranjos práticos do
presente por meio de sua projeção ideológica do passado. O maori,
como diz Johansen, "revive a história". Incidentes míticos constituem
situações arquetípicas. As experiências dos protagonistas míticos
celebrados são reexperienciadas pelos vivos em circunstâncias
análogas. Mais ainda, os vivos se transformam em heróis míticos
(Sahlins, 2008. p. 38).

Se os pleitos atuais comportam uma série de dimensões e momentos

políticos, cabe também atentar para certas "cosmopolíticas" que não foquem

necessariamente para o momento do "fervor étnico": a territorialidade está para além

305
do ordenamento técnico jurídico, apesar de servir como elemento fundamental dos

pleitos atuais.

Este espaço, apesar de ocupar uma camada mais “profunda” da vida social

do grupo ainda assim acaba sendo desenhado por um tipo de narrativa-ação

perpetrada pelo grupo. Os agentes sobrenaturais, “escondidos” em função das

estratégicas de sobrevivência social e física elaboradas pelos grupos, entram hoje

em um espaço de negociação com os demais agentes preocupados na definição de

um espaço. Neste sentido, há um esquema onde não apenas os sujeitos acionam o

sobrenatural, mas o sobrenatural, como à espera de uma evocação, acaba por

mobilizar a ação coletiva dos grupos quilombolas.

5.2 Quilombo do Pontal da Barra: Contexto inicial de pesquisa.

A comunidade quilombola Pontal da Barra pode ser caracterizada, num

primeiro momento, pelos fortes atravessamentos identitários, étnicos e históricos aos

quais está sujeita. Situada no município de Barra dos Coqueiros, nas proximidades

da cidade de Aracaju (Sergipe), esta comunidade possui uma série de problemas de

ordem estrutural (saúde, alimentação, saneamento, ausência de rede elétrica, etc.)

e, através do atual pleito quilombola, procura alcançar o olhar dos setores públicos

por seu caráter etnicamente marcado. Grande parte das famílias reside às margens

do rio Japaratuba, onde vivem, através de suas práticas de pesca artesanal, em

situação de extrema precariedade e vulnerabilidade social.

O Pontal apresenta hoje um alto grau de conflito fundiário frente às ameaças

de uma empresa hoteleira que almeja construir um resort no local hoje ocupado pela
306
comunidade. Isto faz com que os atuais ocupantes do território ampliem em

velocidade suas reivindicações com relação ao processo de delimitação e

demarcação de seu território. Sem dúvida, a construção de tal resort não se trata da

única ameaça sofrida pelo grupo em seu período de ocupação no local. Além disto,

há conflito de sobreposição da área quilombola com unidade de conservação

ambiental - IBAMA.

O contexto geral, pouco favorável, apresenta uma “bateria de testes” sobre a

identidade quilombola. O fato das apreensões externas interpretarem o a

comunidade como um “grupo do MST” ou um “grupo de pescadores”, apresenta

certas modulações e possibilidades de evocações identitárias, com as quais o grupo

quilombola vem dialogando intensamente através deste contexto.

Meu objetivo aqui é problematizar a construção de um relatório técnico

quando imerso em um contexto de extrema “desconfiança da identidade” por parte

de diferentes domínios extralocais à comunidade. As evocações da memória,

sempre envolvidas em um “clima de medo”, desafiam o pesquisador a estabelecer

alguns nexos e montar certos “quebra-cabeças” da identidade. A “pouca

continuidade histórica” e “falta de contrastividade cultural” (O´Dwyer, 2010), como

apontada por muitos, nos leva a um constante processo de “argumentação sobre a

identidade”. Por outro lado, como pretendo discutir, essa mesma apreensão

apresenta ao grupo uma possibilidade criativa de discussão acerca de suas próprias

categorias de pertencimento. Se é necessário um “discurso para fora”, no que tange

a produção de legitimidades, outros processos evocativos são desenhados no

interior do grupo, alavancando um potencial (re)conhecimento e criação de novos

elos do ponto de vista da memória, da identidade e de um “reconhecimento de si”. O

“discurso para fora”, neste sentido, não se apresenta como falso. Ele se apresenta
307
como uma das possibilidades narrativas do grupo que vai se construindo de maneira

mais complexa nos “fóruns da comunidade”

Pretendo demonstrar como as memórias, muitas vezes, não se convertem em

falas. O silêncio deve ser entendido enquanto uma prática que pode se converter no

narrado ao longo de um percurso mais longo de “redescobertas”. Procurarei

evidenciar o potencial eminentemente criativo do “ser quilombola”, que, ao dialogar

de forma tensional com aos olhares externos, produz “imagens possíveis de si”, em

jogos identitários que lembram imagens refletidas em espelhos (Novaes, 1983). Ao

longo do trabalho etnográfico foi possível apreender um alargamento semântico do

“ser quilombola”, que negocia constantemente com as possibilidades e

constrangimentos sociais internos e externos ao grupo. Entre tensões sobre o “dito”

e o “não-dito” e constrangimentos sobre a assunção da identidade constrói-se uma

luta por reconhecimento no interior do quilombo do Pontal da Barra.

Fotografia 60 – Retrato de “Seu Piroca”.

Fonte: Lucia, ex-esposa.


308
5.2.1 Entre o “dito” e o “não-dito”. As desconfianças da identidade.

O trabalho de campo no Estado do Sergipe revelou uma série de elementos

que enriqueceram a minha trajetória enquanto pesquisador. Os diferenciados

contextos de trabalho de campo, quando imersos em uma “perícia”, colocam

questões que vão além, claro, dos problemas típicos à reflexão antropológica. Está-

se sempre às voltas com esquemas argumentativos, pressões de diferentes setores

(administrativos, movimentos sociais) e, como não poderia ser diferente, o

antropólogo acaba por ser interpelado na condição da produção de um dado

concreto e um aval objetivo sobre o grupo em questão. Isto acaba gerando um

campo repleto de perplexidades onde o discurso do antropólogo ecoa com

diferentes pesos pelo espaço social. Por um lado, a “fala” do antropólogo possui um

relativo poder no papel das definições, já que é esperada dele uma objetificação da

cultura que permita preencher os requisitos constituintes das técnicas

administrativas – a instrução normativa.

Por outro lado, em outros contextos de disputa, o discurso antropológico

acaba se encontrando em uma relativa desvantagem, pois se trata de um discurso

onde se faz necessário “explicar-se demais”. Uma etnografia, que se caracteriza

pela densidade e pela apreensão de diferentes camadas dos grupos pesquisados,

acaba saindo com certa desvantagem na corrida das definições, já que definições

mais comunalizadas acerca da noção de quilombo circulam mais livremente pelo

espaço social. Versões acerca da “cultura quilombola”, mesmo que em defasagem

com o atual cabedal analítico antropológico, possuem um valor operacional no

campo das definições.

309
A comunidade do Pontal da Barra, localizada na cidade de Pirambu (SE),

revelou um caso emblemático para pensar certos limites e possibilidades conceituais

e éticas do trabalho de campo. Digo isto porque no caso do Pontal da Barra as

“desconfianças” acerca da idoneidade do pleito quilombola apresentaram-se sempre

enquanto um subtexto do trabalho de campo. Estava frente a um grupo pesquisado

repleto de “não-ditos” e silenciamentos. Ao contrário de outros grupos, inclusive

discutidos no corpo desta tese, onde a memória aparece enquanto um dado mais

sensível e “auto-evidente” em suas formas evocativas, estava frente a um grupo

repleto de silenciamentos.

Os questionamentos, oriundos tanto de setores administrativos e técnicos,

como de outros elementos do entorno do Pontal da Barra sempre produziam a

pergunta: Mas seria o Pontal realmente um quilombo? As respostas, sempre mais

ou menos prontas, e vindas no calor de alguma interpelação, giravam em torno da

legislação vigente que versa sobre o tema, como a OIT 169.

Ainda, a resposta sempre contém elementos que procuram contextualizar o

papel do relatório e do antropólogo nesse jogo de definições, onde o relatório não

encontra em seu quadro interpretativo a postura de um “detector cultural”: o

pesquisador aqui não toma um papel de “censor” capaz de detectar “características

quilombolas”. O antropólogo, envolvido com as premissas éticas básicas de sua

comunidade de sentido acadêmica, não tem qualquer poder na definição das

identidades a priori. Existem, porém, outras relações éticas que se dão na própria

lógica do contato com os grupos pesquisados, e que tomam forma durante o

desenvolver da atuação etnográfica. No caso do Pontal da Barra, lida-se com um

grupo que em função de seus “acidentes históricos” acabou por produzir uma lógica

310
do “não-dito” e do silenciamento. Neste sentido, o trabalho de pesquisa acaba por

incorporar a característica de um encaixe das peças de um quebra-cabeças.

É claro que esse clima de desconfiança não se apresenta enquanto uma

característica do quadro contextual do Pontal da Barra apenas. Em outras

experiências de campo por mim vivenciadas este elemento sempre se apresentou

através de formas bastante violentas ou mais veladas. No caso do quilombo urbano

da Família Silva, no Rio Grande do Sul, esta questão acompanhou toda a produção

do laudo pericial e momentos seguintes.

Cabe notar que parcelas do movimento negro argumentavam sobre uma

origem da Família Silva calcada na antiga Colônia Africana de Porto Alegre. O laudo

pericial, entretanto, mostrou outros laços históricos do grupo resultantes de fluxos

migratórios típicos do pós-abolição. Neste caso específico havia, do ponto de vista

representacional, interpretações extremas que colocavam os Silva ou como

herdeiros de um antigo contingente africano de Porto Alegre, ou, como apontavam

muitos críticos, como uma vila “comum” de Porto Alegre não dotada de qualquer

especificidade. Não haveria, neste último sentido, nenhum sinal evidente que

colocasse a família Silva na condição de pleiteantes quilombolas, pois lhes faltariam

“traços evidentes” de uma origem africana ou escrava. Este tipo de preocupação fica

bastante evidente no texto que constituiu o corpo da contestação ao laudo

antropológico da Família Silva:

A área particular ocupada NÃO FOI UTILIZADA NO PASSADO


COMO LOCAL, EM QUE NEGROS LUTARAM CONTRA A
ESCRAVIDÃO, seja na concepção de quilombo travada do Brasil
Colonial, como quilombo-ruptura, para onde os negros fugiam das
submissões, dos arbítrios de seus donos, seja como quilombo-
311
abolicionista, em que os negros e simpatizantes das idéias
abolicionistas se reuniam para defendê-las e, até mesmo, no
mirabolante conceito ressignificado pelo laudo. Em todos eles
quando se tutela constitucionalmente “os quilombos”, que se
preservas a história desse país, portanto, as comunidades ao
pleitearem o seu reconhecimento como remanescentes de
quilombolas, devem necessariamente guardar vínculos com o
passado, com a luta travada contra a escravidão. Nesse ponto,
sequer os integrantes da família possuem memória do seu passado,
a qual tem a função de ser preservada não para eles
individualmente, mas para a sociedade brasileira, como um todo, a
fim de que a identidade desse povo, que contribuiu para o processo
civilizatório seja mantida (Contestação ao laudo da família Silva, p.
26-27, grifos do autor).

A Procuradoria da República do Estado do Sergipe envia um ofício com o

objetivo de averiguação de eventual irregularidade em convênio referente ao Projeto

Quilombos Urbanos, no município de Barra dos Coqueiros. A Câmara Municipal

responde:

Por desconhecermos a existência de algum grupo remanescentes de


quilombos aqui no município ficamos intrigados com a existência da
palavra “quilombos” no título do mencionado projeto. Em vista disso,
apresentamos o requerimento n. 39/2007, de 26 de junho de 2007,
(DOC 05), onde solicitamos informações sobre o Projeto Quilombos
Urbanos. Tal requerimento foi rejeitado pelos votos da bancada
situacionista, na sessão realizada naquela mesma data. Vale
destacar que, durante o processo de discussão do citado
requerimento, o vereador Haroldo Batista ocupou a tribuna e indagou
a seus pares se estes tinham conhecimento da existência de alguma
comunidade remanescente de quilombo no município de Barra dos
Coqueiros. A resposta foi o SILÊNCIO, estando presentes os nove

312
vereadores que compõem a Câmara Municipal. (...)
Lamentavelmente, entendemos que todas as evidências apontam no
sentido de que não exista nenhuma comunidade remanescente de
quilombo em nosso município. Aliás, dadas as suas características
físicas: área de apenas 91 Km2, terreno baixo e plano, comprido e
estreito – próximo ao continente, circundado por oceanos e rios–
onde trafegavam embarcações; imaginamos a Ilha de Santa Luzia
como um dos locais mais improváveis para o estabelecimento de
escravos fugidos. 91

No caso do quilombo do Pontal, às situações historicamente vivenciadas pelo

grupo, que incluem deslocamentos forçados e apreciações externas que sempre

colocaram a mesma no campo do “selvagem”, soma-se a atual situação de pleito

que se desenvolve no “clima de desconfiança”. Em função disto, o grupo acaba

rearranjando, através de seu atual quadro histórico, uma política de controle do ato

memorativo. Encontra-se, no caso do Pontal da Barra, um tipo de ação da memória

que procura controlar o jogo lembrar-esquecer (processo de seleção de eventos). Os

sucessivos processos de expropriações, o “medo de falar” e as estratégias sociais

de sobrevivência coletiva impunham ao grupo uma forma de lembrar-se dos fatos

que não se apresenta como auto-evidente. Os atos de violência simbólica

impingidos ao grupo levam a essas descontinuidades da memória que apresentam a

um leitor desavisado uma certa cortina entre as questões do pesquisador e a

memória do grupo quilombola. Não se deve, portanto, esperar um acesso repentino

e imediato às “histórias da escravidão” e às “histórias do cativeiro”. Esta memória,

aparentemente repleta de lacunas, só pode ser acessada pelo ajuste mais detalhado

e minucioso da lente antropológica a partir das histórias de vida narradas, vistas

91
Este documento me foi cedido por Robério Manoel da Silva, atual presidente da associação
quilombola.
313
enquanto locais em que a trajetória da comunidade se manifesta e se atualiza em

contextos diversos. A relação com os processos da escravidão, apesar de

relativamente difusos do ponto de vista da memória coletiva, revela uma relação de

continuidade com referência aos juízos morais realizados sobre os tempos

pretéritos. A relação, porém, entre as histórias do cativeiro e a identidade do grupo

não se dá de uma maneira sincronizada. As “histórias de escravos”, mesmo que

muito lentamente, começam a emergir. Porém, a forma de nominativa sempre se dá

como algo “muito distante”, pertencente ao domínio do passado. Seria necessário

acompanhar o desvelar do trabalho de campo para que outras conexões fossem

realizadas.

Histórias sobre os “tempos do cativeiro” encontram um relativo

respaldo no Pontal da Barra. Mas, ao contrário de outros mitos de origem

encontrados em outras comunidades (casos descritos na presente tese), em que a

relação com um “passado escravo” se dá de uma maneira mais ou menos precisa,

há, no caso do Pontal, um processo “em andamento”. Isto não significa que não

exista aqui um tipo de relação possível: trata-se de uma relação memorativa ainda

condicionada a um jogo de escolhas que tem como base a avaliação sistemática dos

interlocutores e dos riscos envolvidos na relação. Ela se encontra num certo

horizonte de possibilidades interpretativas do grupo, mas, não raramente, esta

modalidade de relação com o passado aparece como sendo algo de “fora da

comunidade”. Os juízos de ordem moral sobre os “tempos do cativeiro” são

presentes. Mas a conexão com a identidade do grupo aparece, pelos menos durante

certo tempo da pesquisa, silenciada ou de uma forma bastante difusa.

314
“Wilson: Não, não posso falar dos escravos não, quem passou por
escravidão foi minha avó.
Mariana: Como assim?
Wilson. Eu era bem pequenininho e minha bisavó chamava Gini, a
mãe da minha vó, e a minha avó chamava Maria de Gini. A minha
bisavó dizia “Roliço meu fio vá me comprar um pedacinho de pão pra
sua vozinha”. E aí eu ia pequeno, chegava lá e dizia, minha avó quer
um pedaço de pão. Ele dizia cadê o dinheiro? Ela me dava uma
moedinha desse tamanho que eu não sabia quanto é que era, que eu
não sabia mesmo, chegava lá ele me dava um pedacinho assim. A
minha bisavó morreu com 154 anos.
Wilson: Nunca teve um dente podre na boca, e a minha vó mesmo
morreu com 146.
Mariana: E o que elas contavam dessa época?
Wilson. Ela dizia que acabo o tempo do cativeiro, os nego arrastando
carroças pra gradiar as terra pra lá e pra cá, os cachorros amarrados
de lingüiça, entendeu, arrastando aquela parreras de lingüiças no
tempo do cativeiro.
Mariana. E onde eram esses cativeiros?
Wilson. Lá em Maruim, lá em Maruím, sim senhora. (...) É aqui
92
depois de Rosário.”

Com o tempo, através de pequenos fragmentos e imagens cifradas, o grupo

realiza a conexão de “Seu Piroca” com a área local conhecida como Porto Grande.

Este elemento auxiliou fortemente na argumentação do relatório técnico, já que

Porto Grande traduz-se, no passado, conforme foi demonstrado no relatório técnico,

enquanto um importante entreposto situado às margens do Rio Japaratuba (rio no

qual a comunidade ainda hoje realiza atividades pesqueiras). Este rio tinha um papel

estratégico no transporte de mercadorias e pessoas e sua dinâmica se relacionava

com uma área bem mais ampla que envolvia Aracaju, Maruim e Laranjeiras. Esta

92
Entrevista realizada por Cristian Jobi Salaini e Mariana Balen Fernandes com Wilson de Andrade
em 2010.
315
área articulada pelo Porto Grande foi, durante o século XIX, alvo do estabelecimento

da monocultura da cana-de-açúcar de diversos engenhos que povoavam a região.

Foi necessária uma quantia relativamente grande do trabalho de campo para

que outras relações conectivas fossem realizadas. Isto não quer dizer que a

memória não produza um aspecto determinante da coesão do grupo. O que está em

jogo aqui é uma tensão sempre avaliativa entre a lembrança e o “dizível”, e esta

possibilidade de conexão é dada pelo próprio esquema simbólico do grupo que

apresenta, incorporado em seu cabedal de escolhas, a possibilidade conjuntural da

fala.

Pensando com Pollak (1986), o que se tem é um processo baseado em certo

tipo de “memória recalcada” pelo grupo. Todavia, como já foi apontado por Arruti

(1985), isto não se traduz num tipo de “esquecimento coletivo”. Isto quer dizer que

foi adotado, por parte do grupo, uma maneira mais “defensiva” de acesso à memória

que faz bastante sentido quando visualizadas as lógicas próprias de sobrevivência

culturais, assim como suas estratégias.

Ao privilegiar a análise dos excluídos, dos marginalizados e das


minorias, a história oral ressaltou a importância de memórias
subterrâneas que, como parte das culturas minoritárias e dominadas,
se opõem à “Memória Oficial”, no caso a memória nacional. Num
primeiro momento, essa abordagem faz da empatia com os grupos
dominados estudados uma regra metodológica e reabilita a periferia
e a marginalidade. Ao contrário de Maurice Halbwachs, ela acentua o
caráter destruidor, uniformizador e opressor da memória coletiva
nacional. Por outro lado, essas memórias subterrâneas que
prosseguem seu trabalho de subversão no silêncio e de maneira
quase imperceptível afloram em momentos de crise em sobressaltos
bruscos e exacerbados. A memória entra em disputa. Os objetos de
316
pesquisa são escolhidos de preferência onde existe conflito e
competição entre memórias concorrentes (Pollak, 1989, p.4).

Contudo, não obstante esse “ethos do silenciamento” (Arruti, 1985)

encontrado na comunidade quilombola do Pontal da Barra, não se pode deixar de

evidenciar o caráter evocativo da memória coletiva do grupo:

Os registros memoriais podem estar indisponíveis imediatamente,


podem ser interditados por certos tabus, ou, ainda, podem estar
associados a uma determinada forma de se relacionar com o
passado em que a transmissão das informações, não é um valor, é
um risco (Arruti, 2005, p. 212).

Não se trata de um processo unívoco de “resgate histórico” da memória, e sim

de um jogo que se dá no atual embate político existente que atua como uma espécie

de “estopim” do ato de (re)memoração. O intuito é evidenciar a existência de elos

conectivos entre as memórias dos participantes do grupo que se moldam através da

construção dos limites do que pode ser falado ou, ainda de maneira mais radical,

daquilo que pode ou deve ser lembrado. Porém, deve-se destacar que esse jogo

encontra alguns parâmetros relativamente incontornáveis. Apesar da existência de

certos elementos conjunturais do processo memorativo, há, no território, uma base

relativamente segura do processo evocativo da memória. O ato de lembrar-se de

seu mito fundador, o “Seu Piroca”, revela um processo de construção subversivo da

memória que, ao mesmo tempo em que garante certa fixidez ao grupo em termos

simbólicos, não garante que “toda a história seja contada”. O “Seu Piroca”, um

sujeito de “poucas palavras” – exemplar da própria lógica do grupo na forma de lidar

317
com as palavras – como costumam narrar muitos moradores do Pontal, aparece

enquanto o grande aglutinador daquele espaço. Interessante notar como ao longo

do trabalho etnográfico ele começa a aparecer, de maneira quase criptografada em

meio às narrativas (normalmente conversas informais), como alguém do “tempo dos

escravos” ou do “tempo dos cativeiros”. Não obstante este elemento contingencial

das narrativas, a relação com o território e com o “Seu Piroca” apresenta-se de

forma incontornável, através da apreensão do território.

Se o território é mais evidentemente suporte e matéria da memória,


respondendo aos interesses sociais e políticos da recordação, ele
também acaba por operar como um condicionante sociocultural dos
modos de lembrar, um meio de convencionalização da memória, isto
é, de modelagem que a situação evocada sofre nos contextos das
idéias e valores que a evocam. Nesse, e em outros casos, portanto,
os modos de produção e transmissão da memória social surgem
indissociados de outros aspectos sociais, nos quais estariam
embutidos (Arruti, 2005, p.238).

Encontra-se, nas lembranças das pessoas do Pontal da Barra, a figura de

“Seu Piroca” como o sujeito fundador de tal comunidade. Segundo os relatos, “Seu

Piroca” chegou às margens do Pirambú, onde construiu sua moradia e desenvolveu

atividades relacionadas à pesca e ao extrativismo. Ainda, segundo o narrado pelos

moradores do Pontal da Barra, “Seu Piroca” tratava-se de um sujeito um tanto

quanto “fechado” e “sisudo”. Ele era “fechado” mas “ajudou muita gente”, “ajudava a

todos que pediam seu auxílio”.

De qualquer forma, “Seu Piroca”, através de sua figura fundadora do Pontal

da Barra, aparece como o pioneiro de um conjunto de práticas que se estendem no


318
tempo da comunidade e que se relacionam diretamente com os esquemas do que

chamarei aqui de “rede de auxílio mútuos”. As pessoas mais antigas relatam, ainda

hoje, a forma como chegaram à comunidade e foram recepcionadas por “Seu

Piroca”: era preciso pedir a ele permissão para a construção de uma moradia e para

estabelecer-se no local. A figura de “Seu Piroca” faz parte, portanto, do mito de

fundação da comunidade. Esse mito, contudo, ecoa no tempo, promovendo modelos

de sociabilidade que até hoje são utilizados pelo grupo, reproduzindo modelos

coletivos de solidariedade e permanência naquele espaço.

“Me ajudava tudo que eu precisava de comida, ele passava oito dia
no mar meu marido, né, ele cá me ajudava. (...) Porque o que ele
arrumava acho que ele... Vamos supor, se você tem um pão aqui se
tá comendo aí chega um com fome... você não vai dividi seu pão não
com aquele? (...) Eu mesmo divido porque eu sei o que eu já passei,
né, eu divido.(...) Ajudava, qualquer um ele ajudava, me ajudou
bastante também. E quando eu cheguei dai só tinha ele e a mulé
dele, ele não tinha nenhum filho ainda, aí o Airton perguntou se nós
podia fazer uma casa ali e ele disse que podia que ali, ele disse
assim que aqui é da Marinha, bem assim aqui é da Marinha. Aí, meu
marido fez uma barraquinha de palha pequenininha, aí nós ficou. Aí
depois foi chegando a cumadre Rosa, depois chego a Gildete e muita
gente. Já existia ele.” 93

É preciso entender o mito de fundação enquanto portador de camadas de

história. O esquema interpretativo desafiador colocado pelo Pontal da Barra leva a

pensar não apenas a memória, mas a própria estrutura dos jogos memorativos. “Seu

Piroca”, principalmente através de conversas informais e sem o uso de gravador,

93
Entrevista realizada por Cristian Jobi Salaini e Mariana Balen Fernandes com Maria das Graças
Santos em 2010.
319
transparece como alguém “negro” e que certamente tem uma “origem no tempo dos

escravos”. O mito fundador, que normalmente aparece nas “narrativas formais” como

o grande propiciador da atual solidariedade encontrada no grupo, parece revelar

outras relações com o passado. Mesmo que isso ocorra de maneira bastante tímida,

histórias sobre a escravidão e derivadas situações de violência, que antes

apareciam em um horizonte muito longínquo nas narrativas do grupo, encontram

novas conexões e possibilidades. Certas “faíscas” narrativas foram se conformando,

ao longo do contato com a comunidade, de forma mais ou menos esparsa –

“Converse com a Dona Maria Louca! Ela já contou para a gente histórias dessas pra

gente!”. Dona Maria, sempre muito calada (nunca foi gravada uma entrevista com

ela) foi revelando, durante o processo, alguns elementos bastante esparsos sobre a

“história negra” da região, relatando inclusive algumas memórias sobre antigos

engenhos da região. Passei a me dar conta durante o processo etnográfico que não

se tratava de uma questão de evocação da memória. Estávamos frente a possíveis

disjunções entre a memória e o “dizível”.

Histórias, antes completamente veladas, alçam outros níveis de

representação e possibilidades. O ato memorativo encontra outros limites através de

um alargamento relativo das técnicas de memoração que foram “esquentadas” pelo

contexto provocado pelo relatório técnico. Lida-se, no Pontal, com o fato deste

grupo social realocar os sentidos do lembrar, convertendo, de forma seletiva, o

silêncio em ação.

No quilombo do Pontal da Barra o que existe é um coletivo que vem se

repensando enquanto grupo social. Os estoques étnicos que hoje compõem o Pontal

da Barra se encontram num processo de repensar o passado, incorporando-o à

atual demanda. Os processos de silenciamentos perpetrados no passado encontram


320
algumas possibilidades de libertação quando e memória retoma o diálogo com a

atual condição do grupo reivindicadora do pleito. Esta aparente “falta de

contrastividade cultural” (O’Dwyer, 2010) do quilombo do Pontal da Barra aponta,

por outro lado, no interior do grupo, para um processo de reestabelecimento de

nexos com o passado, encontrando os pontos comuns e as conexões possíveis. De

fato, cabe evidenciar, o trabalho de campo entrou em contato com uma série de

narrativas e situações que, apesar de oriundas de diferentes pontos evocativos,

encontravam sempre amarras e pontos em comum. As situações migratórias

vivenciadas pela maioria dos moradores, as antigas e novas situações de

desrespeito, e o “dar-se conta” de certos elementos diferenciais com relação à

sociedade envolvente, fizeram elementos aparentemente tão fragmentados

encontrarem um sentido comum.

Podemos dizer que, ao contrário de outros grupos relativamente já

consolidados em um espaço físico, o Pontal da Barra passa por um processo de

construção de consolidação de territorialidades, memórias e experiências. Estamos

frente a um grupo que se encontra na luta por definições étnicas e culturais, estado

este que pode revelar, a um leitor desavisado, a impressão de um grupo fragilmente

constituído e sem “raízes históricas”.

5.2.2 O quilombo “em aberto”. Sentidos possíveis no espaço do relatório

técnico.

Procurarei problematizar o jogo semântico das categorias empregadas que

envolvem o “ser quilombo” no Pontal da Barra. Pretendo remeter ao complexo jogo

321
identitário que se constrói através de um jogo de espelhos desenhado pelos “olhares

externos”, mas também pelas “hipóteses” produzidas sobre o “olhar do outro”.

São exatamente essas imagens refletidas a partir do outro que


permitem alterações, tanto na minha autoimagem como na minha
conduta, e este termo deve ser aqui tomado em seu sentido literal,
alter/ações – as ações que assumem função do outro (Novaes, 1983,
p.108).

As noções sobre o “ser quilombo” foram se alargando durante o processo do

trabalho de campo, indicando o complexo jogo semântico resultado das interações

sociais. Neste percurso de produção sobre um “discurso de si” encontra-se uma

série de rupturas e continuidades com o passado que remetem aos sentidos em

disputa no pleito.

Durante os primeiros momentos do trabalho de campo junto à comunidade do

Pontal da barra sempre aparecia, mas conversas informais, uma versão sobre a

percepção do grupo acerca da identidade quilombola. As assertivas, normalmente

produzidas em um tom simultâneo de indagação e afirmação, remetiam esta tão

recente “coisa de quilombo” ao fato de se enxergarem enquanto um grupo que “está

sempre reunido” e, desde sempre, “vive em solidariedade, desde os tempos do Seu

Piroca”. Algumas pessoas chegavam a produzir uma relação metafórica entre a

situação atual do Pontal da Barra e os antigos quilombos, relatando que eles vivem

numa “junção como nesses quilombos antigos por aí”. O fato do Pontal da Barra ser

um espaço que vai “recebendo quem precisa” também faz parte da retórica do “ser

quilombola”. O “viver todos meio juntos, meio como bicho”, aponta para a forte

conexão com os laços de solidariedade social do grupo, como pude evidenciar


322
durante o trabalho de campo. O foco, contudo, é demonstrar como certas categorias

foram se atualizando e tomando novos pesos durante o trabalho de campo.

Como dito anteriormente, o Pontal da Barra, antes conhecido com a “Ilha dos

Ratos”, era conhecido pelo entorno como um local de “pobres”, “marginais” e

“prostitutas”. O “quilombo” para o grupo era visto como um aglomerado de pessoas

pobres que deveriam ficar juntas através de suas redes de auxílio mútuo. Duas

categorias apareciam derivadas do “ser pobre”, e provocariam um forte papel

evocativo nos esquemas identitários do grupo: o “ser caboclo” e o “preto/negro”.

Esta última fortemente trabalhada em função das necessárias demonstrações “para

fora”, para as quais o quilombo seria invariavelmente uma coisa de negro/escravo.

O “ser caboclo” sempre foi algo muito recorrente nas narrativas. Apesar do

sempre presente problema dos silenciamentos perpetrados no grupo, certos

narradores preferenciais sempre ressaltavam o fato de terem uma origem “cabocla”:

“Mariana: Seus pais eram daonde?


Gildete: Não, a família pelos troncos velhos da minha família é
cabloco, tem índio de Alagoas, de Alagoas, no Bonito. Ainda tem
local onde tem as panelas antigas dos índios de, desse povo. Vixê,
nem gosto de fala que me arrepia. (...) mais índios. Que é tudo, é uns
tipos de um índios, assim, barbeado. Gente moreno, gente branco,
gente dos olhos azuis, gente dos olhos verdes, castanhos (...)
Robério: Tem a pele morena
GIldete: É, tem pele morena. É sobrinha do meu avô e é sobrinha do
meu tio e da minha mãe. É a família assim tudo misturada, né.
Cristian: Cabloco são esses assim, dona Gildete?
Gildete: É, é, esses aí são caboclos.
Cristian: Heim, dona Gildete, mas me explica então direitinho o que
que são os tronco velho.

323
Gildete: Troncos velhos... é as famílias antigas. Aí vai reformando,
né. Vão os velhos, vão chegando os outros mais novos, vão
chegando os outros, vão chegando outros, aí vai morrendo aqueles,
sabe? Aí vai se reformando. Outra família, daquela família morre os
mais velhos, vai outra família e aí onde vai começando.
Cristian: A senhora vem dos troncos velhos lá desses que a senhora
fala, lá de Alagoas.
Gildete: Não, tronco velho mesmo é das famílias velhas, antigas, que
foi formando família. Por exemplo, meu pai já é filho natural do
Bonito, a minha vó, mãe de meu pai, é do Bonito, dos olhos azuis.
Bom, essa menina, minha neta, Fernanda, é do mesmo jeito que
minha vó. Esse pessoal tudinho é do Bonito.
Mariana: Onde é?
Gildete: Em Alagoas, perto do Pontal do Peba, no sul de Alagoas.” 94

Oliveira Filho (1998) demonstra como se constrói um objeto que toma como

tema os “índios do nordeste”. O autor problematiza – através da introdução de uma

análise contrastiva da identidade étnica – o argumento das agências classificatórias

que versava sobre o “problema da mistura” e da pouca contrastividade cultural do

índio nordestino. Para fins presentes, pretendo reter o papel destas categorias – já

cristalizadas nos espaços institucionais – no processo que constrói os jogos de

tendências evocativas do grupo. Esse “ser caboclo”, articulado pelas referências

identitárias do grupo, no entanto, entra numa espécie de rota de colisão com a

apreensão externa sobre a necessidade de uma evidência do tempo dos escravos.

Este discurso externo era moldado por setores do campo administrativo e inclusive

pela rede política local da cidade de Barra dos Coqueiros, que dizia nunca ter visto

uma comunidade descendente de escravos na região.

94
Entrevista realizada por Cristian Jobi Salaini e Mariana Balen Fernandes com Robério e Gildete em
2010.
324
No Pontal da Barra, o “ser caboclo” é não raramente visitado pela

comunidade enquanto um argumento de origem, nunca se constituindo, pelo menos

nos momentos mais iniciais do pleito, enquanto um “problema”. Mais que isso, o “ser

caboclo” sempre se traduziu na possibilidade conectiva, do ponto de vista da

memória, com outras localidades do percurso do grupo no próprio estado do

Sergipe, em Alagoas (em Alagoas a localidade sempre referenciada foi Palmeira dos

Índios) e em Pernambuco. Este elemento, na “fala nativa”, atualiza certas

representações sobre práticas do grupo como “coisa de índio”.

Porém, o problema emergente de uma identidade negra e/ou escrava

realizava um movimento, no seio da comunidade, de “atualização das origens”. Este

elemento realizou uma dinâmica no grupo que lançou mão da atuação de novos

protagonistas. As “origens negras” de “Seu Piroca” tomavam uma importância sem

igual. Outras “origens negras” da comunidade começaram ser submetidas a um

processo de escavação da memória. Havia um “estopim” que buscava um tipo de

argumentação sobre essa face do “ser quilombola”. É claro que essa relação com os

protagonistas não se dava de maneira simples. Os silenciamentos, como antes

trabalhado, geravam certos problemas de acessibilidade por parte do grupo de

pesquisa. Alguns canais, no entanto, eram abertos em função de certos porta-vozes

da comunidade, como o presidente da associação quilombola, Robério. Não se

tratava, claro, apenas de produzir um argumento consistente ao relatório técnico.

Tratava-se da produção de um argumento consistente com relação ao entorno e aos

demais agentes. Era necessário encontrar os antigos engenhos e reconstituir

genealogias.

Este “ser quilombola” ia ganhando sentidos mais amplos e complexos ao

longo da produção do relatório técnico. Não se trata de uma simples “busca por
325
identidade”, mas de dar conta da possibilidade, do ponto de vista quilombola, de

uma reflexão sobre a identidade. Esta identidade quilombola deveria alargar certos

sentidos e produzir um tipo de guarda-chuva categórico sobre possibilidades

encontradas no grupo. Não se trata, portanto, de uma invenção. O processo aqui

narrado tem a ver com um processo de colocar em destaque certas possibilidades

simbólicas que circulam no universo do grupo, ampliando-as. A questão que estava

em jogo era dupla e eminentemente criativa: ao mesmo tempo em que se produzia

uma retória da identidade quilombola, tendo em vista as apreensões externas – ou

as expectativas em torno disto – havia um processo criativo quanto às

rememorações e atuações de camadas de sentido no seio do grupo. Era como se

fossem se produzindo dois discursos. Um que precisava dividir certas misturas,

clareando uma distintividade cultural, e outro que acabava por complexificar

possibilidades narrativas, histórias e conexões. Novos problemas, oriundos das

categorias classificatórias, vão emergindo ao longo do processo.

Tais brechas abertas nos discursos instituídos permitem-nos colocar


em suspenso a evidência desse recorte que se institucionalizou na
dualidade étnico/racial, obrigando-nos a reconhecer que as
diferentes instâncias de poder (estatais, religiosas, empresariais,
privadas...), assim como as populações submetidas ou rebeladas
contra elas, tenderam a ser bastante flexíveis no uso das
classificações que os cientistas sociais e/ou a militância política mais
tarde cristalizariam como realidades não discutidas e sobre as quais
construiriam verdadeiros castelos interpretativos e conceituais. Os
exemplos que evocamos têm o valor de nos chamar a atenção para
o antigo (mas sempre atualizado) problema de enfrentar a
documentação histórica ou os discursos no campo etnográfico sob a
ilusão de que as mesmas palavras correspondem às mesmas coisas.
Assim que nos apropriarmos rigorosamente dessas flutuações
326
semânticas, que dermos inteligibilidade às suas sucessivas formas
de variação, avançando na desnaturalização das categorias sociais,
nos desobrigaremos também da estrita obediência aos ditames
fundados sobre elas (Arruti, 1997, p. 19).

Este argumento de origem acaba por entrar num processo de “reciclagem”

com outras categorias, como a de quilombo. “Seu Piroca”, entre outros, como “Maria

Louca”, são entendidos pela comunidade como originários dos “tempos do cativeiro”.

Como citado anteriormente, inclusive, a região da qual o Pontal da Barra hoje faz

parte funcionou durante o século XIX como um importante entreposto marítimo que

se relacionava com a cultura local da cana-de-açúcar. O argumento de “origem

negra”, neste sentido, fica resguardado pela certeza desta origem do “tempo dos

escravos”. De qualquer maneira, o fato de caboclo, conforme o próprio grupo

evidencia, ser a mistura de índios com negros também processa esta possibilidade

conectiva com a identidade quilombola. O fato de “Seu Piroca” produzir a fundação

de uma lógica de acolhimento no local é vista por muitos como resultado do auxílio

mútuo entre os “pobres”. A categoria “pobre”, neste caso, abarca aqueles que

poderiam de alguma maneira ser classificados como “não brancos” ou “brancos

empobrecidos”.

Do ponto de vista do território, foram se estabelecendo conexões com este

diálogo negro-indígena que hoje fazem parte do Pontal da Barra. Durante o trabalho

de pesquisa, grande parte das desconfianças com relação à identidade quilombola

do grupo diziam respeito à esta “mistura” que pareceria descaracterizar o “elemento

negro”. Do ponto de vista interno ao grupo, o quilombo passava a ser uma categoria

posta à reflexão. Neste sentido, o fato de agora o grupo possuir um elemento

reconhecidamente diferencial com relação ao seu entorno social produziu um


327
processo reflexivo que procurava conectar as trajetórias individuais e familiares ao

pleito coletivo, de maneira coerente.

Não se tem, novamente, um processo irrestrito de construção das memórias

locais. As noções de injustiça sofridas, interiorizadas de maneira mais ou menos

particular pelos núcleos familiares, encontram conexões em círculos maiores do

grupo, demonstrando nexos e trajetórias semelhantes. Os sujeitos são ao mesmo

tempo mobilizados e mobilizadores das novas categorias que lhes são

apresentadas; é preciso saber o que há de negro no “ser caboclo” e o que há de

caboclo no “ser negro”.

Estas categorias, que possuem um caráter instituído pelas diferentes

instâncias classificatórias (Arruti, 1997; Oliveira Filho, 1998), vão sendo colocadas à

prova e ficando cada vez mais inebriadas quando olhadas sob a lente do discurso

local quilombola. Se o passado escravo faz parte do campo de argumentação

quilombola, isso não significa que ele seja uniformemente compartilhado por todo o

campo social do Pontal da Barra. Faz parte de um código que também deve ser

aprendido e revisitado por todos. Ao mesmo tempo, o “passado indígena” e

“caboclo” são colocados à revisão, promovendo pontes semânticas pelo grupo.

Desvenda-se a “porção negra” do Pontal ao mesmo tempo em que as conexões com

o passado caboclo/indígena são processadas, mesmo que, do ponto de vista da

“identidade para fora”, o elemento negro/escravo ganhe em evidência.

O “ser pobre” e “marginal” acaba funcionando, em certa medida, enquanto

alavanca das lutas por reconhecimento moral devido ao sentimento de desrespeito

social incorporado pelo grupo. O “ser quilombola” funciona enquanto essa vocação

328
aglutinadora do grupo que processa uma relação de conversação entre as diferentes

categorias dispostas, que são postas à revisão.

O fato é que, como venho tentando demonstrar, este diálogo apresenta

conseqüências de ordem bastante prática na história do grupo. O elemento mais

evidente diz respeito ao efeito territorializante que esse processo produz. Se desde o

“tempo do Seu Piroca” o território foi se constituindo por essa lógica do espaço de

acolhimento, hoje, pela ação mais evidente das categorias estatais, o grupo se vê

“esquentado” pela necessidade de encontrar novos nexos e possibilidades

interpretativas à sua própria história. O grupo, que antes apenas vivia a sua história,

agora é colocado frente ao jogo de produção de narrativas que tem como

fundamento a argumentação sobre o seu próprio passado. A própria palavra, neste

sentido, tem um poder. A memória coletiva ganha um valor operatório argumentativo

neste jogo de inter-relações entre outras instâncias que são dispostas neste campo.

O trabalho etnográfico na comunidade quilombola do Pontal da Barra vem

revelar um espaço de acolhimento. Esta característica pode ser encontrada desde

os “tempos do Seu Piroca” (revelada pela memória coletiva do grupo) e se atualiza

hoje nos mecanismos locais de inclusão e exclusão do grupo. Mesmo que o espaço

seja mediado por uma lógica de acolhimento, cabe relevar que existem códigos

próprios de inclusão, o que confere a esse grupo social características bastante

peculiares. Cabe notar que o grupo que existe hoje é resultado de processos

históricos mais amplos que contaram com a lógica de fluxos migratórios de

diferentes locais não só do estado do Sergipe. Porém, foi exatamente essa

complexidade na constituição migratória do grupo que lhe concede, nos dias atuais,

uma relativa estabilidade enquanto grupo com um passado comum e com uma

noção de futuro compartilhado. Neste sentido, o “ser negro” e o “ser caboclo”


329
acabam sendo abarcados, hoje, pela categoria englobante “quilombola”, que

tenciona um elo aglutinador e um espaço reflexivo das identidades sociais.

Os sentidos sobre o ser “quilombo” vão se ampliando nos processos de

redefinições. Em função desta operação com relação ao olhar externo, o grupo

articula novos elementos que ganham em profundidade. Um espaço de

solidariedade e acolhimento, um quilombo caboclo e um quilombo escravo se

apresentam enquanto algumas das possibilidades criativas deste processo.

Se os quilombolas, por vezes, também aprendem a liturgia social dos

estereótipos ou das expectativas da identidade, apresentando certos domínios de

suas vidas sociais como mais “culturalizáveis”, é também verdadeiro que essas

categorias acionam um universo semântico – via memória – que evoca outras

questões da vida social do grupo. Este jogo tensional entre o “ser quilombola” e as

presunções colocadas pelos olhares externos, constroem um jogo memorativo que

vai “preenchendo” lacunas da memória coletiva do grupo.

330
Fotografia 61 – Dona Gildete no trabalho com o camarão.

Fonte: Cristian Jobi Salaini

Fotografia 62 – Equipe de pesquisa.

Fonte Cristian Jobi Salaini


331
5.2.3 O reconhecimento como ato moral.

Como se traduz, hoje, a demanda territorial enquanto “remanescentes de

quilombo” aos atuais integrantes do quilombo do Pontal da Barra? Certamente não

se trata de uma pergunta com resposta inequívoca. Porém, está claro que o grupo

se auto-define e é definido como portador de um diferencial com relação ao seu

entorno. Uma das formas que pode ser utilizada, na visualização dessa

particularidade histórica do grupo, reside nas categorias com as quais o mesmo tem

sido reconhecido pelo entorno e que, de uma forma inversa, acabam sendo

acionadas com a intenção de alavancar o reconhecimento quilombola. Conforme

muitos moradores do Pontal da Barra narraram, a comunidade, “desde sempre”, é

reconhecida como um local repleto de “marginais, maconheiros, vagabundos” e uma

série de características pejorativas. Conforme conta Robério Manoel da Silva – atua

líder e presidente da associação quilombola – muitas pessoas alertaram para não se

mudar para um local tão repleto de pessoas da “pior qualidade”, constituindo-se,

inclusive, enquanto perigosas à sociedade local. Robério conta que em diversos

momentos acabou entrando em algumas discussões locais, já que não via refletido

em sua experiência junto ao grupo aquela série de características pejorativas que

lhes eram imputadas. Logo, na opinião de Robério, o Pontal da Barra constitui-se

num quilombo, até os dias de hoje, exatamente por isso: porque, não obstante sua

condição de marginalidade com relação ao entorno, conseguiu sobreviver naquele

local, alimentado modelos próprios de convivência social e também de inclusão e

exclusão de “novos membros” do quilombo.

332
O grupo é alavancado, em grande medida, pela necessidade de

reconhecimento moral, por um tipo de eclodir de uma historicidade que se traduz, de

forma contemporânea, num pleito político. Todavia, o atual pleito não se apresenta

como um simples ato com fins instrumentais do momento do “fervor político”. É

preciso visualizar, através dos processos de consolidação da vida comunitária e de

sua memória coletiva, um eco que vem de longe – dos “tempos de Seu Piroca” e

que aparece hoje como uma necessidade de reconhecimento de cunho moral

(Honneth, 2003).

Portanto, de acordo com o campo semântico contemporâneo no que diz

respeito ao “quilombo”, pode-se dizer que essa representação de um “grupo

marginal” conjuga-se com a noção de resistência cultural, indicando alguns dos

contornos que perfazem o Pontal da Barra. Esse ponto é notável: se as

interpretações subjetivas do grupo dialogam com as categorias históricas que

sempre serviram como referência na produção de interpretações sobre o grupo,

cabe dizer que as mesmas também produzem certa objetificação do espaço, mesmo

que essas fronteiras não sejam nitidamente claras. O que importa, ao presente

argumento, é reter a idéia de que o Pontal da Barra sempre se constitui enquanto

grupo dotado de determinados diferenciais com relação ao seu entorno, e que esses

diferencias também indicam algumas formas de “resposta” do grupo com relação à

sociedade envolvente. Portanto, a atual demanda quilombola não deve ser

entendida enquanto resultado único dos fluxos políticos vividos pela comunidade

hoje. O que ocorre é que as narrativas que incorporam as memórias e noções de

justiça encontram o ponto de ajuste concreto para a efetivação da demanda. Assim,

o pleito apresenta-se enquanto resultado de um processo:

333
“Robério: Olha, antigamente o pessoal, os negros quando se reuniam
em comunidades afastadas era com medo da chibata e viva corrida.
Hoje é o que a mesma coisa que antigamente, tanto que vocês estão
aqui. Vocês correram de lá da fome, da miséria, de tudo que vocês
estavam passando. Chegaram aqui encontraram um lugar bom de
vocês morarem e também isso origina um quilombo. Também é a
mesma coisa que acontecia antigamente. Eu digo: Bom já que é
assim, vocês estão fazendo façam pra depois não dá problema pra
ninguém. Esse tempo eu também não estava muito interessado na
coisa não. Foi, quando fui por acaso eu tava em casa ai disse: Oi
senhor Roberio, ta aqui reconhecido como Comunidade Quilombola.
Fui chamado lá no INCRA (...) fizemos já varias reuniões e ai
também já fui incentivando a outras pessoas de outras comunidades,
venham aqui, dá palestra diz como foi, diz como é. Vieram de outras
comunidades e falando sobre o que é e o que não é ser quilombolas,
quando o pessoal na atribuição a primeira pergunta que faz é: Faz
parte do quilombo? Participo, ai a pessoa se auto-declara, né. Ai foi
quando começou, graças a Deus. Na minha, não só na concepção,
em tudo os aspectos dessa comunidade, porque a comunidade daqui
da Barra dos Coqueiros a mais perseguida é essa. Existe
perseguição tanto política como também... Discriminação total, que
aqui nós somos discriminados de tudo que é jeito. Tanto agora, em
aqui a política da Barra dos Coqueiros pra você ter uma idéia, desde
que eu cheguei aqui tinha projeto pra botar energia, botar água e
hoje nós ver é isso. A energia passar e nenhuma casa dessa tem
energia. Aqui o solo é ótimo pra exploração da água, mas nenhuma
casa tem água encanada. O saneamento básico todo o projeto, todo
o dinheiro pra fazer os projetos aqui, o dinheiro se some e nunca
acontece nenhum projeto aqui. Então eu vejo que a discriminação
aqui é até demais, muito discriminada. Se o senhor chegar ali em
Pirambu ou então na Barrra dos Coqueiros e dizer: ói tive na Ilha do
Rato... Ai já vão começar a dizer... se o senhor fizer uma pesquisa
aqui em Pirambu mesmo, agora não que o pessoal já ta bem ligado,
mas antigamente aqui, aqui era olhado como se fosse uns bicho do
mato. Essa não era gente de cultura nenhuma, a discriminação aqui
sempre foi pesada. Então a gente vê o que acontecia antes com os

334
outros povos, como o povo da floresta quilombola mesmo. Até hoje
mesmo não existe uma comunidade quilombola que ninguém goste,
há discriminação em cima disso. Mas ai a gente tem fé em Deus que
a gente... antes que saia alguma decisão ai da justiça que não seja
boa e nem favorável pra gente (...) Discriminação e também que aqui
ninguém 0dá o menor valor, sem prestigio, sem nada. Aqui o pessoal
vê como se fosse um lugar de pobre, miserável... que quando sai da
miséria fica ali mesmo e acabou. (...) Não só de agora como quando
eu cheguei aqui, eu tinha uma coroa que tomava conta de mim
quando minha mãe ia trabalhar, ai o nome dela era Mirim. Ela disse:
Meu filho você vai ficar morando onde? Eu disse: Olha, eu to lá na
Ilha do Rato. Ela disse: Meu filho, saia dali que ali só tem ladrão,
vagabundo, maconheiro, ali não mora quem preste no. Então eu vou
morar ali até eu morrer. Porque é nesse povo que eu vou ficar. Mas
quando eu chegava pra cá eu via que o povo era diferente, você
julgar, e ta lá com o pessoal... mas quem mora aqui já vê que as
coisas são diferentes, que as coisas não são como as pessoas
pensam. E a mesma coisa essa discriminação, não é de agora é de
muito tempo, desde que quando nós chegamos aqui. Você ta
morando onde? Lá em Pirambu. Em qual local? Na Ilha do Rato. Vixe
Maria, rapaz você é doido ta morando ali. Era a fama que tem nessa
região todinha essa Ilha do Rato. Que aqui só tem o que não presta.
Isso daí já tem não é de agora, já é de muito tempo mesmo. Desde
os primeiros moradores até agora...
Cristian: Desde os primeiros, o senhor diz Seu Piroca naquela
época? Será que naquela época já tinha?
Robério: Já tinha
Cristian: Mas lá no inicio já. Como é que chamava na época de Seu
Piroca como é que diziam daqui?
Robério: A mesma coisa, e até hoje ainda impera, maconheiro,
ladrão, criminoso, as mulheres elas são safadas, são tudo umas
putas, o adjetivo melhor que eles arranjam dão tudo pra aqui. Ai tem
muita gente que já é de Pirambu que vem praqui curtir ai já conhece
ai diz: Olha o que falam daqui é... é isso que a pessoa pra ver tem
que primeiro ir... pro senhor ter uma ideia dois vereadores e o

335
prefeito atual daqui disse que aqui só morava vigarista, um grupo de
vigarista, a discriminação não vem de fora , vem daqui perto.” 95

Do ponto de vista das representações atuais do grupo acerca de seu

relativamente novo pleito enquanto quilombola, tem-se uma apreensão que leva a

pensar as relações com o Estado de uma forma contingencial. Categorias como

“marginais”, “maconheiros”, ou “vigaristas” fazem parte do aparato classificatório

externo que sempre existiu à revelia das categorias produzidas pelo próprio grupo.

Portanto, há aqui uma articulação que é construída localmente e que encontra um

local de escuta em alguns canais administrativos consolidados

contemporaneamente a este tipo de diálogo. O grupo, que articulou formas de

resistência e sobrevivências sociais de forma relativamente autônoma com relação

ao Estado, demonstra que suas demandas vão para além do resultado de um

projeto centralizado.

A própria polêmica em torno de ser um produto coetâneo das


políticas neoliberais ou um corolário do planejamento centralizado
mostra-se distante e não passa por essas situações designadas
como quilombo, porque elas já estavam fora dessa órbita de
decisões bem antes do advento da polêmica, e o reconhecimento
formal é mais um resultado de mobilizações organizadas pelos
próprios agentes sociais em jogo. Neste sentido, também não são
fruto da recente categoria “excluídos”, porquanto desde o século
XVIII já estão definidas juridicamente como “marginais” e de “fora” da
civilização. Tal classificação é uma questão de estruturas de poder,
não é questão de intrínseca a esses grupos sociais (Almeida, 2002,
p.78).

95
Entrevista realizada com Robério da Silva (presidente da associação quilombola) em 2010 por
Cristian Jobi Salaini e Vinicius Pereira de Oliveira.
336
Logo, o atual pleito consolida-se muito mais como um resultado do que como

um princípio. O atual ordenamento jurídico apenas encontra reflexo numa

historicidade que já se encontrava diacriticamente diferenciada com relação ao seu

campo social e ao seu entorno. Neste sentido, há a construção do quilombo

enquanto uma experiência social. Para além dos enquadramentos possíveis

gerativos das novas demandas que dialogam com os quadros administrativos,

acontece, em primeiro lugar, uma busca por reconhecimento social. Este “estopim

do reconhecimento”, que ganha poder através da atual situação vivenciada pelo

grupo perante os agentes públicos, revela um quadro de “bateria de testes” dirigido

ao grupo quilombola.

Se o reconhecimento externo – por parte do aparato público – abre a

possibilidade de um encontro relativo com a positivação de certas categorias

excludentes já reconhecidas da historicidade do grupo, há, por outro lado, o ônus da

prova da capacidade coletiva do mesmo. A nova condição quilombola, ao alçar um

dos níveis de reconhecimento moral, apresenta um quadro de visibilidade por parte

do grupo que diz respeito à prova de gerência de suas capacidades associativas. A

visibilidade do reconhecimento, entendida aqui como positiva do ponto de vista do

Estado, acaba por gerar novas dificuldades do ponto de vista local. O grupo antes

visto pelo entorno como um “espaço do perigo” precisa agora suprir a necessidade

local por uma justificativa da identidade. O que é medido, em nível local, não é

apenas a capacidade do grupo em “ser um quilombo”. O que está em jogo são

relações nem sempre visíveis ao contexto extra-local e que colocam dificuldades

eminentes à reprodução do grupo: a busca por trabalho, a participação em antigos

espaços de sociabilidade da região e a própria apreensão externa local que passa a

enxergar o Pontal da Barra como um espaço dotado de uma unidade autônoma.

337
Ocorre um tipo de reificação de um espaço, multiplicando e ampliando a

característica já diferencial com relação ao seu entorno.

Apesar de central neste momento da vida social do Pontal da Barra, pode-se

dizer que o esquema estatal não abrange o complexo de relações locais que

perfazem o circuito do Pontal da Barra. As lutas por reconhecimento, em função das

situações de desrespeito vivenciadas, encontram-se, hoje, alocadas em diferentes

níveis de apreensões e escalas sociais.

338
CONSIDERAÇÕES FINAIS

O objetivo desta tese foi lidar com as atualizações processadas pelos

esquemas de reconhecimento quilombola. Foram utilizadas diferentes “janelas” e

enquadramentos no intuito de demonstrar como é possível visualizar elementos que

acabam por constituir diferentes escalas da construção do reconhecimento. A idéia é

que o processo de reconhecimento social, por definição político, sempre foi e é

articulado pelo grupo.

Há uma tensão de saberes. O Estado, em seu movimento definidor de

categorias, possui um papel fundamental de estabelecimento de critérios sobre o

“ser quilombo”. As Instruções Normativas que procuram estabelecer alguns critérios

objetivos acerca da natureza das comunidades quilombolas são centrais nesse

quesito. Isto fica bastante claro com a construção da última Instrução Normativa que

procurou definir critérios mais “objetivos” de definição da identidade quilombola. Por

outro lado, o saber antropológico, através de sua característica eminentemente

teórico-empírica, acaba por promover uma defasagem entre a complexidade das

realidades concretas e aquelas que seriam possíveis pelas categorias, a priori,

definidoras.

Quando o antropólogo, em sua condição de especialista, é chamado à

produção de um relatório técnico, fica-se frente a um processo de classificação de

um grupo supostamente diferenciado em categorias específicas: um quilombo. Parte

do drama do especialista parece consistir no fato de que ao tratar com um grupo

dotado de características singulares, este deve lançar mão de um aparato

argumentativo que sustente tal premissa. Afinal, encara-se acesso de recursos

339
através do aparato diferencial da identidade. Ao mesmo tempo, as realidades

empíricas são múltiplas e dotadas de complexidade, algo que faz com que a

premissa de uma “alteridade radical” fique borrada. Como toda etnografia é capaz de

demonstrar, lida-se com jogos de tensões diferenciais, e não necessariamente com

uma alteridade radical, sob pena de uma “recaída etnocêntrica”.

Não se trata de um mero encaixe da vida nativa às categorias de

enquadramento que são dadas a priori. Tampouco se deve esperar encontrar uma

simples situação de aprendizado, por parte dos quilombolas, das características

colocadas pelas categorias antropológicas e estatais. A aceitação desta instabilidade

conceitual, deste risco mesmo dado pelo contato dos mundos, é o que baliza os

processos de pesquisa junto às comunidades quilombolas. Essa “jurisprudência

quilombola” se dá mais pelo acúmulo de experiências e processos do que pelo

catalogamento de “traços quilombolas”. Tentar resolver o problema a priori pode

incorrer num risco de folclorização. Os jogos são complexos e dependem de

diferentes forças. O trabalho do antropólogo, porém, deve estar resguardado a um

papel que leve a apreensão destas tensões diferenciais até as últimas

consequências.

Procurou-se problematizar nesta tese os profundos sentidos desencadeados

pela ação dos setores públicos quando em contato com grupos sociais que se

autoatribuem enquanto “remanescentes de quilombo”. A demonstração procurou

versar sobre um “excedente” de significados e uma “complexidade” nativa nem

sempre apreensível pelos operadores estatais. Focou-se no fato de que produções

simbólicas da memória não necessariamente “respondem” apenas ao momento do

desencadeamento de uma política pública de reconhecimento.

340
O reconhecimento acaba respondendo a outros níveis de apreensão do

universo quilombola, em que os sujeitos buscam outras justiças que não

necessariamente estão orientadas por perspectivas multiculturalistas que tendem a

estabilizar unidades sociais como forma de estabelecer previsibilidade na

interlocução com alteridades. Não se trata, contudo, de minimizar os efeitos

profundamente positivos acarretados pelo artigo 68 dos Atos das Disposições

Constitucionais Transitórias da Constituição Federal. O próprio espaço de produção

do relatório técnico se constituiu enquanto uma “janela” que procurou alcançar

outros horizontes. O objetivo da presente tese foi procurar ampliar e alargar os

significados imanentes deste diálogo, atentando nuances do processo.

Desta forma, temos um espaço largamente atualizado pelas variações

semânticas apresentadas no trabalho de campo, que nem sempre afetam, na

mesma medida, as categorias do espaço institucional. Apesar da contaminação dos

setores públicos pela linguagem antropológica, há sempre uma defasagem

conceitual entre os casos concretos e o primeiro. Este excedente da “linguagem”

nativa não é apreensível pelos recortes realizados no processo de definição

quilombola enquanto um “povo” dotado de particularidades com relação ao seu

entorno.

Procurou-se levar adiante esta discussão apreendendo sentidos múltiplos

para os reconhecimentos sociais, para as diferentes possibilidades de construção

das memórias dos grupos sociais e para as mediações com as territorialidades.

Ressaltou-se também o papel de “porta-vozes” das comunidades que funcionam

como amplificadores e canalizadores simbólicos dos grupos. O elemento central da

tese focou no alcance de camadas do reconhecimento que vão além de um diálogo

unilinear entre Estado e comunidades quilombolas, evidenciando o potencial


341
altamente criativo deste embate. Ao focar sobre as diferentes possibilidades

configurativas desta relação, construiu-se um universo empírico baseado na

“reavaliação” de certas situações vivenciadas em perícia, apontando para a

variabilidade como um lócus privilegiado para a produção da análise. Nesta linha,

buscou-se evidenciar situações e possibilidades que, apesar de em certos

momentos terem sido produzidas no espaço do relatório técnico, em outro sentido,

estavam para além dele.

Ao colocar a minha própria trajetória de pesquisa como “produtor de relatórios

técnicos na análise”, procurei explicitar algumas nuances do processo de construção

etnográfica, em que certos papéis são negociados no próprio curso do trabalho de

pesquisa, transcendendo em muito um papel único de “antropólogo em situação”

pericial. Desta forma, procurei demonstrar que, apesar das características

específicas de um contexto pericial, o antropólogo deve – ou deveria – seguir até as

últimas consequências as premissas fundamentais de um trabalho de natureza

etnográfica sob risco de sofrer um “achatamento” e uma pasteurização do “outro”.

Isto significa poder problematizar as contradições, conflitos e o terreno não

raramente irregular do trabalho de campo.

Em decorrência da experiência junto ao quilombo dos Alpes, em Porto Alegre,

trabalhou-se com uma memória coletiva que denuncia uma tensão entre a coesão e

fragmentação. Ao mesmo tempo em que a memória atualiza certas funções

aglutinadoras que definem o quilombo enquanto um grupo social, existem dinâmicas

que trabalham através do tensionamento e da discordância sobre certos eventos.

Nesta relação com o atual enquadramento identitário do pleito fundiário, o grupo

sofre o “risco” de ter que dialogar e reinterpretar o seu passado. Esta

reinterpretação, como se procurou demonstrar, apresenta limites que estão


342
colocados no próprio horizonte cognitivo e moral prévio do grupo (Honneth, 2003).

Neste sentido, para além do espaço do pleito quilombola, apresentam-se situações

que versam sobre a robustez da “manutenção da identidade” que desafia uma

perspectiva da identidade calcada em uma interpretação de cunho instrumentalista.

As motivações do grupo estão para além da busca de recursos e dividendos

materiais alcançáveis em função do pleito fundiário e têm, paradoxalmente, o próprio

pleito como canal central de diálogo com o Estado.

Neste sentido, a identidade quilombola não se constrói apenas em situações

de conflitos sociais – apesar de ganhar velocidade e intensidade muito importantes

nestes momentos. Existem elementos que são resultantes de outras possibilidades

históricas vivenciadas pelo grupo e/ou pelo contato com outros grupos sociais. Isto

resulta na idéia de uma “consciência de si” que se constrói, portanto, de maneira

complexa, desafiando uma apreensão única da etnicidade como resultado dos

apelos políticos do momento.

Na experiência relativa ao trabalho no Rincão dos Negros, na cidade de Rio

Pardo, apreendeu-se a construção de um território “simbolicamente denso”, apesar

de geograficamente esparso. O objetivo foi evidenciar como o grupo construiu

arranjos que promovem a sobrevivência de suas relações com o espaço não

obstante as pressões sociais que desarticularam o espaço social de interações mais

cotidianas. A leitura mitológica forneceu um ponto de partida para o entendimento

das densidades e particularidades históricas do grupo, que apresenta formas

diferenciadas de diálogo com o passado: ora pela figura do “bom senhor, ora pela

figura do “quilombola indomável”. Leituras, diga-se de passagem, apenas acessíveis

no curso do trabalho etnográfico, através do aprofundamento das lentes e olhares.

Portanto, é o diálogo que provoca a “troca de lentes” do antropólogo.


343
As noções territoriais, no Rincão dos Negros, foram construídas através de

um diálogo criativo entre o testamento de Jacinta Souza e situações práticas que

têm como referência antigos espaços e situações vivenciados pela comunidade

negra. Este processo inventivo é sempre realizado com base em uma base

consensual, onde a “invenção” da cultura aparece em uma extensão metafórica

possível (Wagner, 1983). A tradução da vivência nativa ao relatório técnico, através

de seu produto final – o mapa – não pode dar conta do excesso de significados que

é veiculado pelas memórias, vivências e sensos de justiça perpetrados pelo grupo:

os “mapas mentais” operam com relações que estão para além do mapa técnico e

de seus pontos georreferenciados. Ainda, foi trabalhada a idéia que coloca o espaço

de produção do relatório enquanto um “espaço do prestígio”. Em função da arena de

interlocutores privilegiada pelo momento da perícia, certas versões locais são

“confirmadas”, multiplicando os potenciais evocativos da memória. Se é verdade que

a memória possui um potencial produtor de coesão social, não deve-se negar a

dinâmica embativa e fragmentada da mesma (Pollak, 1989; 1992; 200).

Os planos do reconhecimento possíveis na mediação com um “outro” são

múltiplos. Neste sentido, alinhando-se com a perspectiva da teoria do

reconhecimento, visualiza-se um intrincando sistema no que diz respeito ao

reconhecimento social, e que articula como amor, a estima e o Estado (Honneth,

2003). No contexto de produção do relatório do Rincão dos Caixões, foi ressaltada a

presença de micro processos do reconhecimento social. Se é verdade que hoje o

grupo busca reconhecimento em planos mais altos de representação – o Estado –,

também é verdadeiro o fato de que o reconhecimento almejado não se dá apenas

nas esferas extra-locais. Aqui também se lidou com a idéia de um território como

patrimônio do grupo quilombola que desafia uma leitura de propriedade restrita à

344
modalidade cartorial do “tipo escritura”. As relações específicas produzidas com um

espaço físico dominado pelo plantio da soja “escondem” um tipo de territorialidade

que, com o atual pleito, alcançou outras dimensões. Os caminhos tomados pela

memória não são simples. As possibilidades são múltiplas e o “transitar” pelo espaço

acaba desencadeando um complexo processo de memorações e produções de

juízo. Porém, procurou-se demonstrar como estas dimensões alcançadas são

resultantes de um fluxo dialógico com um background simbólico do grupo. Nesta

direção, a distância semântica existente entre um “ser carambola” e um “ser

quilombola” é repleta de mediações e criações possíveis no espectro de

possibilidades interpretativas do grupo, não obedecendo, novamente, aos fluxos do

momento. As conexões possíveis deste processo estão dadas pela elasticidade do

background do grupo. A fluidez das nomeações alarga-se no fluxo dialógico.

Em meu trabalho de campo no estado do Sergipe pude alargar elementos

importantes das experiências etnográficas anteriores, através de novos desafios.

Portanto, se a tese não se pretende comparativa, em todo o caso ela usufruiu dos

contrastes para repensar situações. No caso do Pontal da Barra, o “clima” de

desconfiança oriundo de diferentes setores ajudou a ampliar uma aparente “lógica

do esquecimento” no interior do grupo. Seria necessário um esforço no quebra-

cabeça da memória para conectar pontos distantes e aparentemente incoerentes da

memória. Este grupo, em situação de extrema desvantagem social, acaba por

produzir novos diálogos criativos com a história, promovendo novos sentidos e

conexões categóricas no próprio curso da ação do pleito. Foi objetivo aqui apontar

também para os limites “inventivos” desta memória, que dialogam fortemente com

aspirações morais e lutas por “justiça”. Ainda, os sentidos produzidos sobre o “ser

quilombola” tomam o formato de um jogo complexo, em que um diálogo se dá entre

345
certas continuidades no seio do próprio grupo e uma atitude social que presume os

possíveis olhares externos. Os sentidos identitários neste sentido são múltiplos, não

versando apenas sobre um “eu” versus um “outro”, mas também sobre jogos

criativos que produzem hipóteses sobre olhares e sobre possibilidades conectivas

com o passado.

A “linguagem do sobrenatural” no caso de três comunidades quilombolas do

estado do Sergipe (Ladeiras, Caraíbas e Forte) foi apresentada em sua

potencialidade “subversiva”, uma capacidade de apropriar novos sentidos, que

dialoga com dimensões morais e territoriais dos grupos. Trata-se de um código de

inscrição no espaço. Os negros d’águas e as caiporas se atualizam através de

relações mitológicas que não atuam apenas no plano de uma memória, são

provocadores de uma ação ativa sobre o território que desenha um “mapa

quilombola” que nem sempre coincide com o “mapa técnico”. À medida que o

percurso de pesquisa em comunidades quilombolas se apresentava por caminhos

criativos, as discussões nas arenas técnicas, administrativas e legais pareciam estar

cada vez mais às voltas com a objetividade dos procedimentos.

A presente reflexão lidou com as atualizações processadas pelos esquemas

de reconhecimento quilombola. Procurou-se delinear processos de reconhecimento

social que são por definição políticos, independente da escala ou do enquadramento

impostos ao olhar. A idéia foi, contudo, demonstrar uma relação de retroalimentação

entre as diferentes camadas desse pertencimento. Os “ecos” do passado, que falam

de antigas situações de injustiça e de condições de desrespeito perpetradas no

passado, não têm menor importância analítica do que os atuais esquemas de

eclosão política que obedecem ao cruzamento dos agentes estatais, administrativos,

dos movimentos sociais e dos grupos quilombolas.


346
Os esquemas de reconhecimento se (re)atualizam através do diálogo com os

enquadramentos possíveis, produzindo processos identitários que respeitam um tipo

de “jogo de espelhos” e novas possibilidades reflexivas. Não se trata de reduzir toda

a questão identitária à clássica oposição, de certa forma consagrada na

antropologia, de um “nós” opondo-se a um “eles”. O desafio é a construção de

quadros onde os sujeitos não estão apenas se construindo em relação a um outro,

mas admitir a própria possibilidade de um “nós-imaginativo” em relação a um “eles-

imaginativo”, onde tanto os “nativos” estão em movimento como os demais agentes

estão em movimento. Trata-se, portanto, de uma apreensão em que todas as pontas

do sistema estão “em risco”.

Nesse sentido, o antropólogo não está apenas às voltas com a possibilidade

de apreensão das categorias nativas de justiça. Encara a possibilidade de apreender

como as categorias de justiça são (re)desenhadas em um diálogo criativo com o

mundo social que se apresenta. Diálogo, claro, que não se dá de maneira livre, já

que o poder classificatório das categorias sempre está em jogo; isso não retira,

porém, o elemento inovador que diz respeito à criatividade simbólica dos grupos em

questão.

Finalmente, entendo que um dos desafios postos aos antropólogos seja a

“reinvenção” da etnografia em um espaço político onde se possa contar a “história

quilombola” sem temer a acusação culturalista, onde o grupo estudado seja apenas

um “povo” ou uma “cultura”, plotado em um mapa esquadrinhado em sua

substancialidade. Levar a diferença até as últimas consequências significa rearranjar

as relações para que o “outro” possa ser enxergado em sua complexidade, através

de suas contradições e de elementos aparentemente irrelevantes ou inúteis à

“cartilha do reconhecimento” e das Instruções Normativas.


347
Sabe-se que os mecanismos de definição e controle colocados pelas lógicas

estatais e administrativas impõem constrangimentos e limitações ao trabalho do

antropólogo. As leituras e discussões apresentadas nas Instruções Normativas do

INCRA através de definições estranhas à disciplina – como aquela relativa à “área

ocupada” da comunidade – colocam problemas conceituais no que tange as

categorias a serem apreendidas pelos antropólogos no ofício do fazer etnográfico.

No entanto, a integridade da natureza etnográfica pode ser preservada neste tipo de

arena. O fazer ético da disciplina passa indubitavelmente por essas formas de

apreender o outro que buscam a fuga das categorias totalizadoras – o “bom” ou o

“mau” selvagem contemporâneo. Portanto, a abordagem etnográfica deve continuar

– e ampliar – as possibilidades de alcançar este “outro” em suas complexidades e

contradições, e através de suas práticas e narrativas subversivas, não obstante a

pressão dos operadores no sentido da definição e da delimitação de um mapa final

quilombola. Não se trata de recair em um empirismo ingênuo, em que a pura

“observação de casos” daria conta do processo de interpretação social. A idéia é

aceitar o “risco” de ser contaminado pelas teorias nativas, borrando categorias a

priori. Tentativas de meros encaixes da vida nativa nas categorias “de cima”

apresentam mais do que uma simples redução conceitual, traduzindo-se em

problemas de ordem ética para o trabalho do antropólogo, apresentando sempre o

“fantasma da folclorização”.

348
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Relatórios Técnicos

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/SE

Relatório sócio-histórico-antropológico da Comunidade Quilombola de Caraíbas – Canhoba


/SE

Relatório sócio-histórico-antropológico da Comunidade Quilombola do Forte –Cumbe /SE

Relatório sócio-histórico-antropológico da Comunidade Quilombola do Rincão dos Caixões –


Jacuizinho/RS

Relatório sócio-histórico-antropológico da Comunidade Quilombola Rincão dos Negros – Rio


Pardo/RS

Relatório sócio-histórico-antropológico da Comunidade Quilombola dos Alpes – Porto


Alegre/RS

Relatório sócio-histórico-antropológico da Comunidade Quilombola da Mormaça –


Sertão/RS

362

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