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O Debate da Identidade Nacional e os Museus Históricos, em 1920

JULIA FURIA COSTA1

A História brasileira começou a ser escrita em meados do século XIX, os


intelectuais do recém fundado Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro (IHGB)
passaram a registrar os fatos e eventos do país em livros, revistas e iconograficamente,
com destaque para a pintura histórica. Estas obras procuravam mostrar para os seus
interlocutores como estes intelectuais viam e entendia o Brasil e sua população. Neste
primeiro momento as obras iconográficas ainda não tinham um espaço de divulgação
próprio, acessível para o público. É com a proclamação da República, a partir de seu
projeto cultural que temos a fundação dos primeiros museus históricos no Brasil,
espaços voltados, principalmente, para a divulgação destas obras.
Durante o século XIX, os estudos históricos estavam em segundo plano dentro
das primeiras instituições museológicas brasileiras. Em sua maioria estas se voltavam
para a História Natural, Arqueologia e Antropologia, e tinham como finalidade
apresentar a exuberância dos trópicos (SANTOS, 1996: p. 22). Apenas no século XX a
demanda por museus históricos no Brasil ganhou visibilidade, auxiliada pelo fato de que
a proclamação da independência estava prestes a completar cem anos e não havia locais
de memória próprios para aclamar sua história.
Com a proximidade das celebrações do Centenário da Independência do Brasil
em 1922, começou no país uma articulação para a criação dos primeiros museus
dedicados especificamente à História. Naquele momento, reafirma-se a importância da
memória e do nacional no projeto republicano, com a proposta de institucionalização de
espaços onde este poderia ser afirmado e enaltecido. A idéia de se construir uma
instituição voltada para a História da nação não era uma novidade deste período; o
IHGB, por exemplo, há tempo incentivava a construção de um museu histórico
nacional. Como ressalta Elkin, a proposta do IHGB “não chegou a ser aprovada, mas
mostra que circulava entre as elites intelectuais e políticas diferentes ideias de como

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Universidade de Brasília (UnB) – Mestrado (ano de conclusão: dez./2012) em História Social, sob
orientação da Profª Dr. Diva Contijo Muniz.

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deveria ser um museu dedicado a preservar e expor a memória histórica nacional”
(1997: p. 127).
Dentre os primeiros museus históricos no Brasil destacam-se o Museu Paulista
em São Paulo, criado em 1894, e o Museu Histórico Nacional, no Rio de Janeiro, criado
em 1922. O Museu Paulista, apesar de sua inauguração em 1894, seguiu o modelo dos
demais museus brasileiros do século XIX, voltando-se para a História Natural. Apenas
com a aproximação do Centenário da Independência, em 1917 que o museu passa a ter
uma abordagem histórica, e pode então ser caracterizado como um museu histórico.
Assim, podemos considerar que seu caráter de instituição museológica histórica
somente emergiu no final da década de 1910 e inicio da década 1920.
Por ocasião das comemorações do Centenário da Independência, o Museu
Paulista e o Museu Histórico Nacional prepararam suas exposições sobre a história do
Brasil, dentro de um contexto republicano de debate intelectual e político em torno da
questão nacional. Como em todo processo de leitura, em que ocorre necessariamente
uma seleção de idéias, a criação destes museus e a natureza de suas exposições foram
influenciados pelo contexto maior do projeto político cultural republicano Com a
chegada da década 1920, passou a ter mais relevância o debate (cujos primórdios podem
ser traçados desde 1870), sobre a nacionalidade brasileira e a entrada do Brasil na
modernidade. Em suas diversas formas de expressão2, o movimento modernista
brasileiro buscou, a ruptura com o passado e a tradição lusitana, com o objetivo de
inaugurar uma cultura de vanguarda marcada por elementos caracteristicamente
brasileiros. Essa tarefa passava primeiro pela necessidade de definir o que seria o
brasileiro.
Em torno dessas duas instituições consagradas na memória nacional, o presente
estudo se constrói3, buscando historicizar a função e a relação do Museu Paulista e do
Museu Histórico Nacional com o projeto republicano de modernização do país e de

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Acostumou-se a pensar o modernismo como um movimento espaço-temporal definido: São Paulo, 1922,
mas este foi um movimento heterogêneo que pode ser datado a partir de 1870, com a geração de 1870
(formada por intelectuais como Silvio Romero, Capistrano de Abreu e Euclides da Cunha). “Ao longo
da década de 1920 surgiram manifestos, jornais e revistas em várias cidades brasileiras. (...) Temos,
então, várias vertentes e expressões do moderno que revelam ritmos distintos, concepções próprias
(...)” (VELLOSO, 2010, p. 358-359).
3 Este estudo é feito a partir de uma pesquisa de mestrado ainda em andamento, intitulada “O Centenário
da Independência no Templo das Musas - A criação de museus históricos no Brasil (1894 – 1922)”.

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consolidação da ideia de nacionalidade, a partir do papel de ambos nas comemorações
cívicas do Centenário da Independência do Brasil. Procuraremos mostrar como estes
espaços institucionais se tornaram lugares de memória, entendidos como espaços onde a
memória social mantém-se viva na sociedade e pode ser constantemente resgatada
(NORA,1993).
Os museus históricos são definidos como instituições permanentes que
adquirem, conservam, pesquisam, transmitem e expõem testemunhos materiais dos
homens e de seu meio ambiente (SANTOS, 2006: p. 57). Os testemunhos presentes nos
museus são a marca que a sociedade (por eles representada) deixa. Através da ligação
entre o passado e o presente, cristalizada pelas exposições, os museus criam laços de
pertencimento com a sociedade. Esta é uma das razões pela qual, podemos considerar as
instituições museológicas locais de memória.
Chamados de casa da memória, os museus foram criados para que o passado não
fosse esquecido e permanecesse vivo no presente. Eles ganham, na lógica de defesa da
memória social, um lugar destacado que tornou ainda mais importante a compreensão
da relação entre a memória e a história.
Os museus, como grande parte dos lugares de memória, são patrimônios da
sociedade. Entendemos patrimônio, segundo a definição do antropólogo José
Gonçalves, ou seja, como uma alegoria. Neste sentido, os objetos, coleções,
monumentos, cidades históricas e demais estruturas que classificamos como patrimônio
podem ser pensados como espaços no qual existe um forte sentimento de perda,
transitoriedade, ao mesmo tempo em que existe um desejo permanente e insaciável pelo
resgate de um passado histórico (GONÇALVES, 1996: p. 28).
Os intelectuais do modernismo de 1920 pensavam patrimônio histórico-cultural
como um dos formadores da identidade nacional e por isto dever-se-ia associar os
patrimônios com a nacionalidade brasileira. O patrimônio histórico-cultural de uma
nação se associa à memória na preocupação em guardar os vestígios do passado no
presente, estabelecendo, assim elos com o momento originário (o de construção do
patrimônio) que se teria rompido e transformado (CHUVA, 2003).

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Observa-se uma política voltada para a construção de uma memória nacional,
com o início do governo republicano, na qual novos heróis e símbolos nacionais4 –
como, por exemplo, Tiradentes e Zumbi – foram interpelados a fim de mobilizar a
sociedade em torno de um novo regime e de legitimá-lo socialmente. Como bem explica
José Murilo de Carvalho, os heróis são “símbolos poderosos, encarnações de idéias e
aspirações, pontos de referência, fulcros de identificação coletiva. São, por isso,
instrumentos eficazes para atingir a cabeça e o coração dos cidadãos a serviço da
legitimação de regimes políticos” (2009, p. 55). A fim de se tornar o carro chefe na
construção dos novos símbolos nacionais e na legitimação do novo discurso republicano
de nacionalidade, o patrimônio histórico e cultural brasileiro, com foco principal nos
museus, passou por uma ressignificação (RANGEL & VERGARA, 2010). Os
monumentos histórico-culturais dariam materialidade à nação, desvendando a todos os
brasileiros aquilo que embora existente, encontrava-se escondido.
Junto da construção de uma nova memória social, temos a questão da identidade
nacional, que já vinha sendo discutida desde século XIX, com os intelectuais da geração
de 1870. O debate em torno desta questão buscava encontrar qual era a
imagem/representação que o país iria apresentar de sua população. Procurou-se localizar
na nacionalidade uma pedra bruta que poderia ser lapidada pelos intelectuais a fim de
revelar a identidade nacional. O projeto republicano, escrito sob influências positivistas
e cientificistas, propôs diversas reformas complexas e abrangentes em todo o
mecanismo social brasileiro. Um dos principais lemas dos republicanos foi: “somos da
América e queremos ser americanos”. O país deveria ressaltar suas características
americanas e voltar-se à América, pondo-se em contato “com todos os povos, em
solidariedade democrática com o continente de que fazemos parte” (PESSOA, 1976).
Com este objetivo o governo republicano preocupou-se em representar o Brasil como
uma nação moderna, civilizada e impulsionada pela idéia de ordem e progresso.

4
Sobre o assunto ver: MORAES, R. A abolição da escravidão: história, memória e usos do passado na
construção de símbolos e heróis no maio de 1888. In. SOIHET, Rachel et. al. (org.). Mitos, projetos e
práticas políticas:memória e historiografia. Rio de Janeiro: Ed. Civilização Brasileira, 2009 ;
MATTOS, H. O heróis negro no ensino de história do Brasil: representações e usos das figuras de
Zumbi e Henrique Dias nos compêndios didáticos brasileiros. In. ABREU, M. et al. (org.) Cultura
Política e Leituras do Passado: historiografia e ensino de história. Rio de Janeiro: Civilização
Brasileira, 2007. ; CARVALHO, José Murilo de. A Formação das Almas. 4. ed. São Paulo: Cia das
Letras, 1990.

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Investindo no futuro e na modernidade, os intelectuais procuraram apresentar um
produto genuinamente nacional, ou seja, o brasileiro.
Os intelectuais oitocentistas buscavam compreender as diversas nuances
existente na identidade nacional. “O brasileiro aparece reconhecido na figura do
indígena, do africano, do europeu e do mestiço” (VELLOSO, 2010, p. 356), mas sempre
pensando o europeu como uma raça superior aos brasileiro. No século XX, com
abolição da escravidão e proclamação da República o cenário social mudou, e com ele o
pensamento dos intelectuais. Eles continuavam reconhecendo na figura do brasileiro
mestiço a imagem do Brasil, mas agora ela dialogava com a imagem do europeu. Uma
das principais características do modernismo de 1920 foi a “comunicação entre
diferentes segmentos sociais, que redunda em férteis trocas culturais” (VELLOSO,
2010: p. 363). A vida cultural voltada para a Europa passou a coexistir com as tradições
indígenas e negras.
O modernismo, como já apresentado, não foi um movimento uniforme em todo
o país. No Rio de Janeiro, cidade sede do Museu Histórico Nacional, o movimento se
caracterizou pela utilização da linguagem humorística como uma das suas formas de
comunicação. Monica Velloso, pesquisadora do movimento, explica que foi através
“dos escritos satíricos e das caricaturas, o grupo buscou mostrar as mudanças que
estavam ocorrendo nos tempos modernos” (2010, p. 360). Este grupo carioca do
movimento modernista pertencia a chamada família boemia, participando ativamente
dos movimentos políticos, das lutas abolicionistas e da instauração do Regime
Republicano. Os modernistas cariocas buscavam mostrar através de suas caricaturas, de
seus poemas e de suas obras de arte a rotina da capital do país, contrastando o
oficialismo da vida voltada para a Europa e as manifestações populares e tradicionais,
marcadas, sobretudo pela cultura afro-descendente.
Serão estas características do modernismo carioca que poderão ser vista refletida
na exposição inaugural do Museu Histórico Nacional. O principal objetivo da
instituição era fazer um resgate da memória nacional, identificando a nação com uma
imagem moderna e progressista. Afinal esta instituição nasceu nos seios da Exposição
Internacional do Centenário da Independência, evento que buscava mostrar ao mundo
um Brasil moderno em marcha ao progresso. O museu podia ser situado “em uma linha
nacionalista e militarista típica dos museus europeus da década de 20” (SANTOS, 2006,

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p. 34). Era, assim, valorizada uma história política dos grandes heróis e das grandes
batalhas. Sua justificativa para essa história repleta de heróis e figuras emblemáticas, é
que a mesma fazia parte das “lembranças da vida e dos feitos dos nossos avôs”
(SANTOS, 2006: p. 35).
A nova casa Brasil [nome pelo qual o MHN era conhecido na época de
sua fundação], parece desempenhar a função de reconciliar uma sociedade
que deve aprender a ser moderna com um passado que em suas coleções
apresentava, não como atraso, mas como memória de tradições. Tradições
e progressos, vistos com referências comuns a todos os agentes sociais,
conformavam assim a nação (NEVES, 1995: p. 23).

O Museu Histórico Nacional procurou não se afastar do dilema em torno da


identidade nacional e organizou uma exposição que, apesar de seu cunho militarista,
tratava da nacionalidade brasileira e da unificação do país durante a monarquia. Pode-se
entender a inauguração do MHN sob a perspectiva de representar um país voltado para
o futuro e modernidade, mas que ao mesmo tempo não desejava perder seus vínculos
com o passado e a tradição.

Do outro lado do eixo Rio-São Paulo, os intelectuais paulistas partiram em


expedições pelo Brasil a fim de conhecer o verdadeiro brasileiro. O movimento
modernista paulista se caracteriza por um distanciamento e releitura dos padrões
europeus, que reinavam no meio cultural até aquele momento, e uma tentativa de
definição e síntese do nacional. Como bem explica a pesquisadora Monica Velloso a
integração com o moderno era difícil e ambígua, havia dúvidas em relação a como

unir tradição e modernidade? Regional e universal? Popular ou


erudito? Mais ainda: como elaborar um pensar próprio que não fosse
uma mera caricatura e imitação do moderno europeu? Essas são as
questões com as quais se defrontam os modernistas num primeiro
momento da sua reflexão (2010: p. 373).

O que se procurou fazer neste primeiro momento pelos modernistas paulistas foi
uma releitura do acervo de tradições e valores europeus, mas agora com um novo olhar
no qual o nacional era valorizado. Importante frisarmos que o mesmo o movimento
modernista não foi homogêneo. Existiam distintas visões sobre o nacionalismo entre os
grupos, mas todos tinham um ponto em comum: todos concordavam em relação a
necessidade de atualizar a cultura brasileira, torná-la moderna, e definir o que era o
nacionalismo brasileiro.

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Tornar a cultura brasileira moderna e definir o nacional foram as principais
temáticas do Museu Paulista nos primeiros anos como um museu de caráter histórico. O
museu foi estruturado de forma de a identidade paulista passasse a sintetizar a
identidade nacional5, com foco na imagem do bandeirante. O progresso, a modernidade
e o futuro podiam ser percebidos na exposição, da mesma forma que a tradição, a
memória e o passado. Como explica o historiador Hartog a “ideia de progresso vem se
somar aquela história concebida como processo, como auto-compreensão do tempo”
(HARTOG, 2006: p. 16).
Percebe-se então, que não existe um consenso sobre a ideia de identidade
nacional. Cada grupo de intelectuais, segundo suas influências entendia a nacionalidade
sob um aspecto. Qual eram as representações hegemônicas dos museus históricos recém
fundados no Rio de Janeiro e São Paulo, acerca da identidade nacional no contexto das
comemorações do Centenário da Independência. Representação é aqui entendida
segundo a definição de Roger Chartier. Ele explica, que as representações inserem-se
“em um campo de concorrências e de competições cujos desafios se enunciam em
termos de poder e de dominação”; em outras palavras, são formadas verdadeiras “lutas
de representações” (1990: p. 17). Estas lutas geram inúmeras “apropriações” possíveis
de representações, de acordo com os interesses sociais, com as imposições e resistências
políticas, com as motivações e necessidades que se confrontam no mundo humano.
Para tal, devemos entender a ideia de poder no projeto republicano. Como que as
diferentes concepções da memória, de símbolos, de patrimônio e de identidade nacional
se fizeram representar hegemonicamente dentro das instituições museológicas. O poder
não esta localizado no Estado, nem nas instituições, mas é algo que funciona, que
atravessa o tecido social, vertical e horizontalmente. Foucault explica que em uma

5
No inicio do século XX a elite paulista passou a ter uma influência cultural de alcance nacional. Esta
influência se deu principalmente à riqueza que o café trouxe para o estado e que transformou a forma
de pensar da classe dominante, que passou a procurar suportes que simbolizassem a ascensão do
estado no cenário nacional. “O surto cafeeiro não serviu apenas para trazer novos confortos materiais
para a região, mas também contribuiu para a construção de uma elite que acreditava estar apta para
governar o estado e todo o país” (ELIAS, 1997: p.109). Além do aumento de influência da elite
paulista, a imigração e o crescimento demográfico foram essenciais para a mudança do cenário da
cidade de São Paulo, que perdeu os ares coloniais que marcavam seu passado, e começou a se
urbanizar. O governo queria que a cidade se apresentasse esteticamente como um pólo econômico de
importância nacional. A nova mentalidade das elites econômicas e políticas influenciaria também os
intelectuais, que passaram a defender uma nova política cultural para o Estado. Foi neste cenário
político e econômico que o Museu Paulista foi criado.

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sociedade “existem relações múltiplas de poder que atravessam, caracterizam e
constituem o corpo social e que estas relações de poder não podem se dissociar, se
estabelecer nem funcionar sem uma produção, uma acumulação, uma circulação e um
funcionamento do discurso” (1984: p. 179). O poder atua estabelecendo verdades,
controlando os significados, as expressões dos sujeitos na história e na memória social.
As duas instituições estudadas como pudemos perceber, foram muito importante
no processo de construção do nacional. Além de serem locais aonde a identidade
nacional podia ser concretizada, através de suas exposições os museus históricos tornam
se um local privilegiado no processo de construção de uma memória social, como já foi
dito anteriormente. Desta forma para se tornarem um local no qual a memória social e a
identidade nacional podem ser resgatados pela população, os museus históricos tem de
se tornar um lugar de memória, conforme a definição do historiador Pierre Nora.
Para esse autor, a memória é viva, está sempre em constante evolução, aberta à
dialética da lembrança, do esquecimento e do inconsciente. A história, por outro lado,
possui vocação universal, já que constitui uma reconstrução do passado, que pertence a
todos e a ninguém. A partir dessa relação antagônica, na qual a memória é abandonada
em favor da História que surgem os lugares de memória. Nora define lugar de memória,
a partir do reconhecimento de três características primordiais: material, funcional e
simbólica. Segundo o historiador, são lugares “com efeito, nos três sentidos da palavra,
material, funcional e simbólico, simultaneamente, somente em graus diversos” (NORA,
1993: p. 21). Percebe-se então que, segundo a definição de Nora, podemos classificar os
museus históricos como lugares de memória, já que estes são instituições não apenas
materiais e funcionais, mas que também se revestem de uma aura simbólica.
Os lugares de memória são criados por não mais haver uma memória
espontânea. Para que o passado continue vivo, faz-se então necessária a criação de
espaços de manutenção da memória, como por exemplo, arquivos, aniversários,
celebrações, monumentos, etc. (NORA, 1993: p. 13). Para esse autor, uma “sociedade
que vivesse integralmente sob o signo da história não conheceria (...) lugares onde
ancorar sua memória” (1993: p. 9). Assim, os lugares de memória são locais onde o
passado é cauterizado no presente, onde a memória, que não mais existe na sociedade,
pode ser lembrada.

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Com perspectiva semelhante à de Nora, Maurice Halbwachs defende que os
locais/espaços desempenham um papel na memória coletiva das pessoas, ao permitir
que lembranças sejam por elas recordadas. Os locais carregam um simbolismo, um
sentimento de pertencimento para os grupos sociais, e por tal razão recebem a marca do
grupo, e vice-versa. A memória coletiva ocorre quando se evoca um fato que teve lugar
na vida de um grupo e que ainda pode ser recordado do ponto de vista deste
(HALBWACHS, 2008). Os locais carregam um simbolismo, um sentimento de
pertencimento para os grupos sociais, por tal razão entendemos que, o local recebe a
marca do grupo, e vice-versa.
As três ideias aqui trabalhadas, lugar de memória, memória e identidade
nacional estão correlacionados. Michel Pollack explica que a memória é um sentimento
constitutivo da identidade. A memória é um fenômeno construído social e
individualmente, e pode-se dizer também “que há uma ligação fenomenológica muito
estreita entre a memória e o sentimento de identidade” (POLLACK, 1992: p. 204). Os
vestígios da memória permitem que uma pessoa ou grupo tenham o sentimento de
pertencimento a um todo. Estes vestígios vão desde uma lembrança pessoal até
memórias públicas (memória de uma guerra, por exemplo), que geralmente se utilizam
de lugares de apoio da memória. Estes são os Lugares de Memória, que no nosso caso
são os museus históricos.

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