Guadalupe Fonseca
Guadalupe Fonseca
Guadalupe Fonseca
Ligações melindrosas
Uma reflexão a respeito da sociologia aplicada ao direito
1
Discurso proferido por ocasião da abertura dos cursos da Faculdade de Direito, na década de 50.
2
Para Tobias Barreto a Sociologia como ciência de todos os fenômenos da ordem social não é possível.
“Sociedade humana não passa de frase, ou simplesmente a soma dos mil e quatrocentos milhões de
terrícolas. No sentido jurídico, moral, religioso, político e até econômico ou comercial mesmo, não tem
valor nenhum” (1966:136/7).
2
O interesse dos juristas pelas abordagens sociológicas, a partir de meados do século XIX,
se deu, aparentemente, a reboque de análises críticas da dogmática jurídica. Naquele
momento, tendências várias, umas mais arrojadas que outras, surgiram na área da
hermenêutica jurídica com o objetivo de contestar a eficácia do método da Escola da
Exegese, dominante desde a promulgação dos primeiros códigos civis. Não obstante as
diferentes referências teóricas, os movimentos renovadores da interpretação do direito –
Jurisprudência de Interesses, Livre Pesquisa Científica, Direito Livre, Jurisprudência
Sociológica - tinham em comum a convicção de que, mais importante do que as técnicas
tradicionais de interpretação e aplicação das leis, era a vida mesma, no sentido de
conjunto de valores implícitos nas relações e práticas sociais, consideradas pelos seus
defensores como as verdadeiras fontes do direito. Contra a visão conceptualista com
propósitos cognitivos apenas, redutora das peculiaridades dos fatos e ações humanas do
cotidiano; contra as técnicas de dedução do geral (fato tipo) para o particular (situação
concreta), acentuando os esquemas de padronização da realidade social, difundiu-se a
idéia da determinação do significado das expressões jurídico-normativas como critério
da decisão judicial correta e justa. A novidade maior residiu, entretanto, na idéia de
procurar o sentido das normas na interseção do direito vigente com outros planos sociais
– cultural, econômico, político, ético. A aplicação do direito positivo legislado segundo
a avaliação dos seus fins (concepção teleológica), estaria condicionado pelo conjunto de
fatores vitais representados pelos interesses, valores, usos sociais, ou como se quiser
chamar a realidade diversificada no interior da qual o direito é produzido e aplicado.
Entretanto, essas manifestações, denominadas ou autodenominadas sociológicas, não
chegaram a problematizar a teoria do direito, não se insurgiram propriamente contra a
teoria jurídica dominante, apenas propuseram bases novas para se pensar a função da
hermenêutica jurídica na sociedade crescentemente conflituada e contraditória.
esta última como disciplina didática que “objetiva introduzir uma visão sociológica na
análise do direito, despertando no aluno uma consciência crítica em relação à ordem
jurídica” (Junqueira, 1993:56).
A reflexão que aqui apresento tem por base as considerações acima, os resultados da
pesquisa sobre o ensino da Sociologia Jurídica, realizada por Eliane Junqueira e Luciano
de Oliveira4 e a minha particular experiência no ensino do direito, na pesquisa e na
extensão jurídica. Nunca lecionei a disciplina Sociologia Jurídica, contudo, ao ministrar
cursos de Introdução ao Estudo do Direito, Metodologia Jurídica, Introdução à Pesquisa
Jurídica, dentre outras, mas, principalmente, ao elaborar e executar projetos de pesquisa
sócio-jurídica, com levantamento e análise de dados empíricos, sempre me ocorreu que o
pano de fundo dessas atividades deveria ser a busca de novas bases para o conhecimento
do direito5. Mais ainda, que esses fundamentos novos precisam ser buscados nas práticas
sociais, mediante recursos metodológicos das ciências sociais. Nesse sentido portanto,
me considero integrante do rol dos “insatisfeitos com o saber jurídico dominante”
(Falcão, 1984:60) e convicta de que os caminhos da crítica passam pelas abordagens
sociológicas. Todavia, uma outra questão, a meu ver, se impõe, principalmente quando
relacionada à atividade de ensino. A questão é a seguinte: a dogmática jurídica é a teoria
do direito que existe e que precisa ser conhecida suficientemente para o exercício eficaz
de qualquer das profissões jurídicas. Teoria crítica do direito é uma força de expressão
para designar o interesse de pesquisadores juristas em descobrir e estabelecer
metodicamente critérios justificadores de uma nova teoria explicativa do direito, tarefa
necessária que exige bastante empenho e criatividade e com a qual o ensino e a pesquisa
do direito precisam estar comprometidos. Nessas condições, diria que o ensino do direito
acha-se, hoje, condicionado pela tensão entre a transmissão de um saber dogmático e a
crítica desse saber. Contudo – e este é o aspecto que desejo enfatizar neste texto - tanto
a transmissão do saber dogmático, pela via das clássicas disciplinas profissionalizantes,
quanto a sua análise crítica, realizada fundamentalmente pela pesquisa, podem e devem
ser, ambos estudos, objetos de um olhar sociológico.
Para tornar a exposição mais organizada, o argumento será desenvolvido em duas partes.
A primeira, reflete sobre a dogmática jurídica, não no que se refere a sua dinâmica
interna, mas no que concerne a sua função social, principalmente em países como o
Brasil, com disparidades sociais acentuadas, situação esta que contribui para diversificar
os conflitos e problematizar a solução dos mesmos. A segunda parte, aborda a pesquisa
aqui denominada de sócio-jurídico-crítica, com o propósito de questionar a possibilidade
de trabalhar dados empíricos (práticas sociais) confrontando-as com o direito
institucionalizado (teorias, leis, jurisprudência) para efeito de, nessa ida e volta das
práticas para a teoria e desta outra vez para as práticas, identificar elementos sociais
novos que permitam repensar as bases do direito, em termos teóricos e práticos.
4
Oliveira, Que (e para quê) sociologia ?; Junqueira, Geléia geral: a sociologia jurídica nas faculdades de
direito, Cadernos do IDES, Série Pesquisa, no.8, maio de 2000.
5
Ver a esse respeito a Introdução Geral do Direito , vol. II de Luis Alberto Warat, que trata da
epistemologia jurídica da modernidade, como, também, o capítulo 2 – Para uma concepção pós-moderna
do direito em Crítica da Razão Indolente de Boaventura de Souza Santos. Não se trata tanto de concordar
ou não com as propostas desses autores, quanto de analisar as razões que apresentam para a necessidade de
se tentar hoje redefinições do direito, em face de circunstâncias novas.
4
Na verdade, a chamada ciência dogmática do direito não existiu sempre, pois foi
conseqüência da realidade de uma época8. Há algumas décadas essa ciência é
considerada “em crise” em face de exigências sociais, políticas e econômicas emergentes,
afetando, não apenas a capacidade explicativa e normativa das categorias e institutos
jurídicos, que se tornam insuficientes como padrões compreensivos dos fatos, mas
atingindo, até mesmo, os próprios fundamentos de validade dos conceitos e teorias
jurídicas. A crise repercute negativamente na prática da argumentação e decisão dos
conflitos do cotidiano. As tentativas de renovação da dogmática jurídica têm surgido no
âmbito da Filosofia do Direito que reagiu contra a visão tecnicista predominante.
Surgiram, também, como já foi dito, no campo da hermenêutica jurídica, com ênfase nos
aspectos sociológicos e culturais dos litígios que chegam aos tribunais. Atualmente, a
crítica aponta a extrema complexidade e especialização do sistema jurídico, que
evidencia a necessidade da dogmática interagir com outros setores do conhecimento9.
Diria que o enfoque dos estudos dogmáticos precisa mudar. Em lugar de privilegiar os
dados históricos com a intenção de justificar as construções jurídicas do presente e de
reduzir o estudo ao aspecto sistemático do direito, no sentido de dirigir a sua aplicação
6
Ver Roberto Lyra Filho, Para um direito sem dogmas (1980) e O que é direito (1983) e também Michel
Miaille, Uma introdução crítica ao direito (1979), nomes representativos da visão crítica do direito na
década de 70.
7
Ver O Conceito de Direito de H. Hart, e O Império de Direito de R. Dworkin, no que se refere à tentativa
de ambos autores , mas principalmente do segundo, de superar o positivismo jurídico dogmático por meio
da reflexão sociológica.
8
Ver Ferraz Junior em Introdução ao Estudo do Direito (1988), no que se refere ao histórico do
desenvolvimento da dogmática jurídica no século XIX.
9
Exemplifico essa situação com o fato detectado por pesquisa sobre o comportamento da Justiça Federal
em face das ações judiciais sobre a privatização de estatais, que realizei com José Ribas Vieira em 1994.
Verificou-se a dificuldade dos juizes para proferir decisão diante de argumentações envolvendo
conhecimentos técnicos da área da economia, e também, sem condições (ou disposição ?) para avaliar as
conseqüências sociais do seu julgamento.
5
instituições jurídicas. Mas essa ruptura não resolve o problema, pelo contrário confunde
ainda mais. Para que serve um saber sociológico do direito, um ramo especial da
sociologia, que apenas descreve uma matriz normativa que muito pouco ou nada tem a
ver com as transformações conceptuais a que são submetidas pela ciência dogmática do
direito? Quem sabe a sociologia do direito não tenha interessado os sociólogos (Oliveira,
2000:04; Junqueira, 1995:11) porque estes não conseguem ver vínculos relevantes das
suas análises com os estudos dogmáticos, tal como se estivessem diante de um objeto
completamente diferente daquele que os juristas trabalham. E, de fato, são objetos
distintos (o direito sob forma de comportamento espontâneo e o direito sob forma de
conceitos), mas não necessariamente divorciados. Por outro lado, a sensação de
“estranhamento” a que se refere Luciano de Oliveira (Oliveira, 2000:08) quando leciona
Sociologia para alunos de direito ou o “constrangimento” relatado por Eliane Junqueira
(Junqueira, 1999a:35), em iguais circunstâncias, ilustram bem a distância entre a reflexão
sociológica e a argumentação jurídica, a ponto dos autores se perguntarem: qual a
utilidade do conhecimento sociológico para os bacharéis em direito ?
A partir dessas ponderações, minha proposta para a inserção da Sociologia nos cursos
de direito considera que, não obstante se deva conservar no currículo a Sociologia
Jurídica como disciplina específica e autônoma, é necessário algo mais. É preciso que as
abordagens sociológicas atravessem o estudo profissionalizante do direito, na perspectiva
que vem sendo denominada de transdisciplinar. Receio que, se essa estratégia não vier a
10
Pesquisa sobre Cultura jurídica e eficácia normativa realizada na OAB/RJ em convênio com a
Faculdade de Direito da UFF, com apoio do CNPq, detectou coincidências e disparidades entre os sentidos
que os operadores do direito atribuem às normas jurídicas e os sentidos atribuídos às mesmas normas e aos
princípios por pessoas sem nenhum conhecimento especifico sobre o direito.
7
II
A segunda parte desta reflexão diz respeito à pesquisa jurídica. Estou segura de que
qualquer avanço no sentido da identificação das deficiências da teoria jurídica
relativamente a realidades novas, depende de conhecimento dessa realidade através de
investigação empírica. As críticas que têm a dogmática jurídica como alvo são, na maior
parte das vezes, procedentes, contudo, seriam mais incisivas e convincentes se
respaldadas em dados concretos e na sua análise.
A pesquisa empírica não tem tradição no campo do direito, devendo aqui serem
ressalvadas as investigações desse tipo que vem sendo realizadas há aproximadamente
vinte anos por juristas quase sempre com outra formação na área das ciências sociais 11.A
pesquisa bibliográfica, jurisprudencial e legislativa, praticada por profissionais do
direito, não possui potencial renovador maior, porque permanece no círculo do saber
constituído, ou quando faz observações críticas estas muitas vezes estão pautadas em
críticas já feitas por autores estrangeiros, não necessariamente ou não comprovadamente
coincidentes com a realidade brasileira. Há que se levar em conta a dificuldade da
pesquisa empírica no direito. Começa pelo fato do direito não ter sido, pelo menos no
Brasil, objeto de estudos sociológicos continuados. Na verdade, a Sociologia do Direito
nunca ocupou um espaço significativo como especialização da sociologia. Nos últimos
anos, os sociólogos vêm demonstrando alguma curiosidade relativamente à estrutura e
funcionamento de instituições jurídico-politicas, especialmente o Poder Judiciário, sem
questionar, contudo, a racionalidade própria dos atores, especialmente juizes, no que diz
respeito ao exercício da função principal: julgar, ou a racionalidade que atravessa a
argumentação jurídica que os advogados experientes manejam com habilidade. Entendo
que o ideal seria, mas acho que algo utópico, a realizaçã
11
Eliane Junqueira vem promovendo o resgate dessa produção, publicada na Série Memória dos
Cadernos do IDES.
8
Luciano de Oliveira (2000: 11) cita uma pesquisa junto a integrantes de tribunais do juri
na cidade do Recife, para concluir sobre a contribuição que muitas vezes a sociologia
pode dar ao operador do direito (no caso, saber como reagem homens e mulheres diante
da atitude do réu do julgamento) no sentido de torná-lo mais competente no exercício do
sua profissão. Mas afirma, a seguir, que não é esse o tipo de competência que se espera
da inclusão da sociologia nos currículos dos cursos de direito. Certamente não é. A
sociologia jurídica desempenharia um papel bem medíocre caso fosse entendida apenas
como auxiliar da ciência do direito em sentido estrito: sociologia como fonte de
informações para os operadores se conduzirem com eficiência (em benefício de quem ?),
para a política legislativa alcançar um nível satisfatório (para quem ?) de eficácia, para
fortalecer (em função de que ?) o auto-conhecimento dos juizes. A sociologia aplicada
ao direito precisa, sim, ser utilizada como ferramenta posta a serviço do questionamento
e das propostas de mudança na teoria jurídica, nas técnicas procedimentais de
encaminhamento e solução de conflitos, na estrutura, composição e funcionamento dos
órgãos públicos decididores, notadamente, o Poder Judiciário. Certa vez, em conversa
com um sociólogo bastante conhecido e conceituado expus essa idéia e ele disse apenas
“mas isso é muito complicado”. Concordo, e me dei por satisfeita por ele não ter dito
“isso é impossível”.
A pesquisa jurídica com o perfil exposto precisa envolver o alunado, para se tornar
integrante do aprendizado. A experiência que tenho com bolsistas de iniciação científica
é decididamente positiva. Nunca houve um caso de desligamento da pesquisa por
desinteresse. O aproveitamento em termos de competência para contextualizar o jurídico
positivado, para discernir o jurídico dito “não oficial”, para avaliar resultados de
interpretação jurídica, dentre outras habilidades, mas principalmente para perceber o
compromisso do operador do direito em face das suas próprias argumentações e decisões
tem sido bastante positivo. Na sua atuação prática, os bacharéis que tiveram a
oportunidade de participar desse tipo de estudo, são mais “antenados”, digamos assim,
para o que ocorre a sua volta, e mais éticos no sentido da avaliação do seu papel social.
9
Contudo, participar de pesquisa nas faculdades de direito – seja ela de que tipo for –
ainda é um privilégio, dado o número exíguo, para não dizer ridículo, de bolsas
oferecidas pelas agências públicas (CNPq, FAPERJ) para alunos de graduação 12. Não é o
lugar aqui para discutir esse problema, mas vale registrar que esse é um fator inibidor da
pesquisa nos cursos de graduação em direito, não diferente, afinal, do que ocorre em
outras áreas do ensino superior. As estratégias que tenho adotado, visando proporcionar
aos demais alunos alguma inserção na execução dos projetos de pesquisa que coordeno,
é convidá-los a participar de algumas das suas etapas (aplicação de questionários,
levantamento de bibliografia, por exemplo) e socializar os resultados parciais e finais da
pesquisa por meio de colóquios ou eventos similares, permitindo a intervenção oral ou
escrita de todos. Essa participação tem sido computada como atividade complementar.
Dito isto deixo aqui algumas sugestões para o debate em torno, não propriamente do
conteúdo de uma disciplina específica com o nome de Sociologia Jurídica, mas de
estratégias de combinação das perspectivas jurídicas e sociológicas nos espaços das
disciplinas profissionalizantes e da pesquisa sócio-jurídica.
12
Na UFF, o programa PIBIC não libera mais de duas bolsas, por ano, para projetos de pesquisa cujo
coordenador possua o título de doutor. O pedido de auxílio diretamente ao CNPq, para os projetos ditos
integrados, ultimamente não tem sido contemplados com mais de duas ou três bolsas.
10
4. ênfase nos direitos coletivos e interesses difusos, pelas mesmas razões mencionadas
no item anterior e, também, pelo fato da emergência do coletivo representar um
elemento de notável importância para uma reflexão sobre as bases da legitimidade
do direito contemporâneo.
BIBLIOGRAFIA CONSULTADA
FERRAZ JR. Tércio Sampaio, Introdução ao Estudo do Direito, São Paulo :Editora
Atlas, 1988
JUNQUEIRA, Eliane, Geléia Geral: A sociologia jurídica nas faculdades de direito, Rio
de Janeiro: Cadernos do IDES, Série Pesquisa no.8, 2000.
OLIVEIRA, Luciano de, Que (e para quê) Sociologia ?Rio de Janeiro: Cadernos do
IDES, Série Pesquisa, no.8, 2000.
LYRA FILHO, Roberto, Para um Direito sem Dogmas, Porto Alegre: Sérgio Antonio
Fabris Editor, 1980.
BARRETO, Tobias, Estudos de Filosofia, tomo II, Rio de Janeiro: Instituto Nacional do
Livro, MEC, 1966.