Antropologia Teológica

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1 Escola Mater Ecclesiae

CURSO DE ANTROPOLOGIA TEOLÓGICA (CRIAÇÃO E PECADO)

POR CORRESPONDÊNCIA
o
Rua Benjamin constant, 23-3 anda, 20241-150 - Rio de Janeiro (RJ) Caixa Postal 1362 - 20001-970 - Rio (RJ)
Tel / Fax: (021) 242-4552
APRESENTAÇÃO
Caro(a) Cursista,
Você está recebendo um Curso dividido em quatro panes: 1)A Criação do Mundo; 2) A Criação do Homem;
3) O Pecado dos Primeiros Pais; 4) Os Anjos. Poderíamos também distribui-lo em duas panes: Criação e
Pecado, com um Apêndice sobre os Anjos. Estes vêem considerados logo após os temas anteriores, na medida
em que são criaturas inteligentes que foram afetadas pelo pecado.
A temática da Criação é, hoje em dia, trazida à tona pelas descobertas do macro e do, microcosmos. Quanto
mais o homem penetra o reino da matéria, tanto mais percebe a ordem e a harmonia que regem este mundo,
dando testemunho de uma inteligência e um Poder transcendentais. É, pois, cada vez mais necessário que a fé
se associe às ciências naturais para oferecer ao pensador uma cosmovisão completa e satisfatória.
Neste contexto o homem aparece como imagem e semelhança de Deus; tem uma tarefa a cumprir neste
mundo, procurando levar a termo a obra do Criador. Ao mesmo tempo, é dotado de aspirações que ultrapassam
o mundo visível; feito pelo, Infinito e para o Infinito, só repousa no Infinito; o mistério de Deus se espelha no
mistério do homem.
O pecado é uma das expressões da misteriosidade da pessoa humana. Chamada ao Bem absoluto, ela pode
preferir-lhe o bem relativo e limitado das criaturas, cometendo o pecado. Este não só se volta contra a glória do
Criador, mas fere também o pecador, desfigurando-o. Este fato, porém, não deve ser estudado
independentemente da obra da re-criação efetuada por Jesus Cristo, o novo Adão, e aprofundada no Curso de
cristologia da nossa Escola.
A temática do pecado se prende à primeira página da Bíblia, onde é abordada em estilo rico de imagens. Faz-
se importante levar em conta exata o significado do texto sagrado no que diz respeito tanto ao pecado quanto à
própria criação do homem.
Finalmente os Anjos se apresentam como criaturas ontologicamente mais perfeitas do que o homem; são
espíritos sem corpo, ao passo que o homem. é alma espiritual em corpo material. A devoção popular tem dado
grande ênfase à realidade dos Anjos, confundindo-os com entidades afro-brasileiras ou esotéricas. Uma
corrente oposta nega a existência dos Anjos. Verdade é que a parapsicologia explica naturalmente muitos
fenômenos outrora atribuídos a Anjos bons e aos demônios; todavia ela não pode negar a realidade e a ação dos
Anjos.
Caro(a) Cursista, o estudo dos tratados teológicos não é obra meramente acadêmica; interpela a fé e o
coração, despertando no estudioso mais intenso amor ao Deus que criou porque quis dar às criaturas racionais o
consórcio de sua vida. Bons estudos! Disponha da equipe de trabalho da sua Escola “Mater Ecclesiae”.
Domingo de Cristo-Rei, 23 de novembro de 1997
Pe. Estêvão Tavares Bettencourt OSB
BIBLIOGRAFIA
I. CRIAÇÃO, HOMEM,PECADO
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BARTHÉLÉMY, J., Visão Cristã do Homem e do Universo. Lisboa. 1962.
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Regensburg. 1983.
LADARA, L. F., Antropologia Teológica. Madri – Roma. 1983.
MARTELET, G., Libre réponse à un scandale. La faute originelle, la souffrance et la mort. Paris. 1988.
2 Escola Mater Ecclesiae
RAHNER, KARL, Teologia e Antropologia. São Paulo. 1969.
RONDET, H., Le Péché 0riginel dans la Tradition. Patristique et Théologique. Paris. 1967.
RUIZ DE LA PEÑA, JUAN L., O Dom de Deus. Antropologia Teológica. Petrópolis. 1997.
SCHEFFCZYK, LEO, Création et Providence. Paris. 1967.
VIVAR FLORES, ALBERTO, Antropologia da Libertação na América Latina. São Paulo. 1991.

II. OS ANJOS
ARCHIBALD, JOSEPH MACINTYRE. Os Anjos, Uma Realidade Admirável. Rio de Janeiro. 1983
DATTLER, FREOERICO. O Mistério de Satanás. São Paulo. 1977.
GALACHE, GABRIEL C., Os Anjos. São Paulo. 1994.
MARTINS TERRA, JOÃO EVANGELISTA. A Angelologia de Karl Rahner à luz de seus princípios
Hermenêuticos. Aparecida. 1996.
SOLIMEO, GUSTAVO ANTONIO E LUIZ SERGIO. Anjos e Demônios. São Paulo. 1994.
TAVARD, GEORGES. Les Anges. Paris. 1971.

PARTE I: CRIAÇÃO: A) FUNDAMENTAÇÃO BÍBLICA = ANTIGO TESTAMENTO


MÓDULO 1: O HEXAÉMERON (Gn 1,1.2,4a)
Várias vezes os autores do Antigo Testamento aludem à criação. Fazem-no em linguagem simples, não raro
simbolista, da qual se podem depreender alguns traços válidos para se tecer a noção de criação e correlatos na
S. Escritura. Consideremos os textos de Gn 1,1-2,4 a ; 2,1-7.18-24.1

Lição 1: Gn 1,1-2,4a . Gênero Literário


O texto de Gn 1,1-2,4a é dito o hexaémeron (ergon) ou obra dos seis dias, porque enquadra a criação do
mundo e do homem no esquema de seis dias.
Antes do mais, ao abordarmos o texto impõe-se a definição do respectivo gênero literário.
Quem considera atentamente o hexaémeron, verifica que é uma peça rica de artifícios literários:
Eis a sua arquitetura:
Criação em geral
Gn1,1s
1o dia Luz e Trevas astros 4o dia
1,3-5 1, 14-19

2o dia Águas e firmamento Peixes e voláteis 5o dia


1 ,6-8 1 ,20-23

3o dia Continente vegetação Animais terrestres 6o dia


Mares 1,9-13 HOMEM 1,24-31

Repouso 7o dia
2,1-4a
Como se vê, a criação é apresentada dentro do esquema de seis dias de trabalho e um de repouso (uma
semana). Embora sejam oito as obras realizadas (duas no 3o dia e duas no 6o dia), o autor não quis apresentar
oito dias de trabalho, mas seis, para ficar dentro do quadro de uma semana.
Os seis dias se distribuem em duas séries: três dias para a distinção das três regiões do universo
respectivamente (ares, águas, terra) e três dias para o povoamento ou a ornamentação dessas regiões (astros,
peixes e voláteis2, animais terrestres e o casal humano).
Sete são as fórmulas que compõem o hexaémeron:
a) Introdução: "E disse Deus..."
b) Ordem: "Haja luz!..."
c) Execução: "E assim se fez".
1
Supomos aqui a noção de que Gn 1-3 consta de dois relatos das origens: 1,1-2,4a e 2,4b - 3,24. O primeiro data dos séculos VI / V a .C.; é tido
como pertencente ao Código Sacerdotal (P); o segundo é mais antigo, pois data do século X a . C. e pertence ao Javista (J) ; este segundo relato tem
âmbito mais restrito do que o primeiro, mas considera a questão da origem do mal no mundo, não encarada pelo primeiro relato. Sendo de épocas e
mãos distintas, os dois textos hão de ser estudados independentemente um do outro.
2
Os peixes e os animais que voam, são colocados na mesma categoria de aquáticos, porque ou vivem nágua (peixes) ou nascem nágua (mosquitos)
ou vivem entre as águas que há à flor da terra e as águas que há acima do firmamento ou da abóbada cristalina que cerca a terra (tais como são as
aves).
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d) Descrição: "Separou Deus..."
e) Nome ou Bênção
f) Elogio: "E viu que era bom"
g) Conclusão: "E houve tarde e manhã..."
Essas fórmulas dispõem-se de maneira simétrica, como se pode ver a seguir:
1o dia: obra la - a b c f d e g =7
o
2 dia: obra 2a - a b c d - e g =6
o a
3 dia: obra 3 - a b c- e f- =5
obra 4a - a b c d - f g =6
o a
4 dia: obra 5 - a b c d- f g =6
5o dia: obra 6a - a b c - f e g =6
o a
6 dia: obra 7 - a b c d- f- =5
obra 8a - a b d e c f g =7

Note-se que na quarta e na quinta obras o número de fórmulas é proposto do mesmo modo.
Pode-se ainda observar a seguinte simetria:
OBRA FÓRMULAS FÓRMULAS OBRA
1a 7 6 5a
2a 6 6 6a
a
3 5 5 7a
a a
4 6 7 8

Observe-se ainda o uso simbólico dos números, especialmente do número 3:


Mencionam-se:
3 espécies de plantas (1 ,11s)
3 tipos de luzeiros (1 ,16)
3 funções dos astros (1 ,14-18)
o
3 tipos de viventes no 5 dia (1 ,21)
3 tipos de animais terrestres (1 ,24)
3 bênçãos (1,22.25;2,3)
2 séries de 3 dias
3 vezes a referência ao 7o dia em 3 esticos ou sentenças de 7 palavras cada uma.

Observe-se outrossim o esquema 7 dias = 6+1 dias. Mediante o número sete o autor quer indicar não só a
perfeição de todo o conjunto criado, mas ainda significa que a criatura encontra essa sua perfeição, consumação
(ou santidade) em Deus, e em Deus só. Com efeito o número 7 é atingido, no hexaémeron, pela apresentação de
seis dias das criaturas e um dia, o sétimo, de Deus. Somente quando os seis dias das criaturas se juntam ao dia
de Deus, realizam o número da perfeição; assim somente quando as criaturas voltam para Deus, repousam
consumadas; toda a história dos seres neste mundo é uma contínua tendência para o repouso em Deus.
A arquitetura do hexaémeron, simétrica como é, leva a concluir que o gênero literário dessa peça é o
didático-artístico, de caráter sapiencial. A cadência dos números tem finalidade mnemotécnica. Em última
análise, trata-se de um hino litúrgico em, seis estrofes e uma conclusão, composto para o dia de sábado a fim de
incutir o repouso sabático ou a dedicação do Sábado ao Senhor Deus. Este é proposto como o primeiro
operário, que observa o ritmo de seis dias de trabalho e um de repouso a fim de que o homem siga o exemplo
divino3. A peça portanto não tem finalidade científica; não pretende narrar a maneira como o mundo foi criado,
mas expõe conceitos sapienciais (filosófico-teológicos) e morais a respeito do mundo e do homem.

Lição 2: Os Ensinamentos do Hexaémeron


Eis o que o hexaémeron, sem dúvida, afirma:
1) A RESPEITO DE DEUS
a) Deus é Um (estrito monoteísmo). Todos os deuses que os antigos povos adoravam são apresentados como
criaturas do único Deus. Com efeito; o povo de Abraão teve sua origem na Caldéia, onde o culto dos astros
3
Não se deveria julgar que o mundo foi criado em seis dias e, por causa disto, Moisés instituiu o repouso do sétimo dia, como se lê em Ex 20, 8-11;
31,15-17; Dt 5,12. O repouso do sétimo dia é algo de natural ao ser humano, principalmente ao lavrador que se guiava pelas fases da Lua. O autor
sagrado colocou o Hexaémeron no início da Torá, com o fim de dar à lei do repouso sabático um fundamento bem persuasivo, que seria “o exemplo
divino” Sabe-se, de resto, que os antigos povos se compraziam em pensar que a Divindade no céu age à semelhança dos homens na terra.
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estava em voga. Da Caldéia transferiu-se para a terra de Canaã, onde os bosques e a vegetação eram cultuados.
Depois emigrou para o Egito, onde os animais, tidos como sagrados, eram adorados. Ora o autor do
hexaémeron mostra que todos esses deuses - astros, plantas e animais - foram criados por Deus não para serem
adorados, mas para servirem ao homem,
b) Deus é eterna. Nisto distingue-se radicalmente do mundo, que começou no tempo.
c) Deu é Todo-Poderoso. Cria mediante a sua palavra ou com um ato apenas da sua vontade, sem esforço. O
verbo bará, fez, na Bíblia, é reservado exaustivamente à atividade divina. Não se pode afirmar que o autor
israelita tinha o conceito metafísico de criar com toda a sua precisão; mas é lícito dizer que, dentro da sua
mentalidade ele possuía uma noção equivalente à de criação.
d) Deus é bom, pois tudo o que Ele cria é bom, muito bom. Se há mal neste mundo, não vem de Deus; o
relato de Gn 2,4b-3,24 se encarrega de explicar como o mal entrou no mundo. É certo que não há dualismo ou
um princípio subsistente do mal em antagonismo ao Princípio subsistente do bem
e) “Deus repousou de todo trabalho que fizera” (2, 2). Este forte antropomorfismo quer dizer que o termo
final de toda a criação está em Deus; o Senhor não criou em vista das criaturas como tais, nem por causa do
homem, mas para que o homem, elevando consigo as demais criaturas, volte a Deus, onde tudo encontra
repouso e consumação. Além do quê, a menção do repouso de Deus no sétimo dia tinha o sentido de incutir ao
homem a observância do sétimo dia
2) A respeito do mundo
a) O mundo não é eterno. Embora a Filosofia não veja inconveniente em admitir a criação desde toda a
eternidade, a S. Escritura não favorece esta concepção.
b) O mundo não se originou por si mesmo nem por acaso, mas teve um início, que Deus lhe deu.
c) As criaturas são boas e o curso do mundo provém de uma disposição divina. Não há destino que force a
história. Tem-se assim uma visão otimista do mundo e da história.

3) A respeito do homem
a) O ser humano é algo de totalmente novo entre os demais. Isto se depreende do modo como teve origem.
O autor, ao descrever a formação do homem, quebra o seu esquema: "Deus disse... e foi feito" e propõe um
monólogo de Deus, que delibera fazer uma criatura à sua imagem e semelhança4, isto é, dotada de dignidade
única no mundo. É claro que a imagem e semelhança de Deus não se acham na corporeidade do homem (Deus
não tem corpo), mas nas faculdades espirituais (inteligência e vontade) ; pelo conhecimento e o amor é que o
homem imita a Deus e consegue dominar o mundo; note-se que, depois de criado, o homem é investido de
poder sobre os animais e plantas, afim de que os domine. Em conseqüência, pode-se reproduzir a dinâmica do
hexaémeron do seguinte modo:
b) Igual dignidade convém ao homem e à mulher, pois ambos foram feitos à imagem e semelhança de Deus,
cada qual refletindo a seu modo o exemplar divino (1,26) ; também a ambos, sem distinção, é dada a ordem de
dominar sobre animais e plantas.
c) O matrimónio é algo de santo, instituído pelo próprio Deus. Este criou dois tipos humanos diferentes,
destinando-os, porém, a representar um exemplar único, a perfeição divina - o que só se pode entender se o
homem e a mulher são, por natureza, destinados a se completar mutuamente em tudo o que falta a um e outro.
O matrimônio, implicitamente instituído pela criação dos dois sexos, foi explicitamente promulgado pela
bênção divina acompanhada das palavras: "Sede fecundos e multiplicai-vos!" (1,28).
d) O trabalho é também abençoado por Deus. O homem é incentivado a continuar, a seu modo, a obra do
Criador, não como senhor absoluto do mundo, mas como representante de Deus e pontífice entre o mundo
inferior e o Senhor Deus. Pelo trabalho do homem, as criaturas infra-humanas devem ser levadas a glorificar o
Criador.
e) O sétimo dia é por Deus santificado (2,3). Santificar, na linguagem bíblica, significa reservar para Deus.
Por conseguinte, o Senhor reserva para si o sétimo dia da semana, diferenciando-o dos demais dias, que são
dedicados ao trabalho. "E abençoou-o"(2,3), ou seja, desejou-lhe e concedeu-lhe algo de bom, já que abençoar é
dar uma bênção, uma benedictio, uma boa palavra; fez o sétimo dia portador de um bem divino, evidentemente
em favor do homem, a quem o sétimo dia devia ser proposto como participação antecipada do repouso eterno
(cf. Hb 3,4-11).

4
“Imagem e semelhança” não são coisas distintas uma da outra, mas significam enfaticamente a proximidade do ser humano em relação ao Criador.
Dir-se-ia: “imagem muito semelhante”.
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PERGUNTAS
1) Qual é o gênero literário de Gn 1, 1-2,4a?
2) Que é que se chama hexaémeron ? Por que assim se chama ?
3) Que é que o hexaémeron ensina a respeito de Deus? Responda sucintamente
4) Que ensina o hexaémeron a propósito do mundo?
5) Que ensina o hexaémeron a respeito do homem?

MÓDULO 2: GÊNESIS 2,1.7 (O MUNDO E O PRIMEIRO HOMEM)


A narrativa de Gn 2,4b-3,24 é anterior à do Hexaémeron, pois data do século X a.C., ao passo que Gn 1,1-
2,4a é dos séculos VIN a.C.. Os antropomorfismos dessa peça literária (Deus Oleiro, 2,7; Cirurgião, 2,21;
Jardineiro, 2,8; Arquiteto, 2,21;-Alfaiate, 3,21) evidenciam o caráter arcaico da mesma. - Dessa secção
interessa-nos apenas o que diz respeito à origem do homem e da mulher (Gn 2,1-7.18-24), ficando a questão da
origem do mal no mundo para os Módulos 39 e 40.

Lição 1: A Chave da Interpretação


O texto de Gn 2,1-7,18-24 tem de comum com a primeira narração o fato de que também quer pôr em relevo
a dignidade do casal humano. Com efeito, observe-se como a ordem de aparecimento das criaturas em Gn 1 ,1-
2,4a como em Gn 2,4b-3,24, embora proponha duas séries diversas, obedece à mesma intenção de realçar o
homem:
A ordem do "hexaémeron" vai percorrendo a escala das criaturas, desde as mais imperfeitas (a matéria
caótica desordenada) até a mais perfeita, o homem, que o autor introduz como senhor das demais, imediato
representante de Deus no mundo visível. - Em Gn 2,4b-3,24, o hagiógrafo atinge o mesmo fim por outra via:
refere logo de início a criação do homem; em função deste é que desenvolverá as considerações que se seguem.
Menciona a produção das plantas e a dos animais, que são nitidamente caracterizados como inferiores ao
homem (as plantas devem servir de alimento ao homem, 2,18-20). Por fim, sobre este fundo descreve a
formação da mulher, a qual é assim apresentada como portadora de dignidade igual à do homem,
transcendendo, também ela, as demais criaturas visíveis; homem e mulher, em conseqüência, são destinados a
servir imediatamente a Deus, utilizando os seres inferiores.
Eis como esquematicamente se poderiam reproduzir as duas vias que exprimem a mesma tese:
Gn 1,1-2,4a:

O CASAL HUMANO
terra e animais terrestres
águas e animais aquáticos
céus e astros
Gn 2,4b-25:
HOMEM MULHER
plantas animais irracionais
Se, pois, ambas as narrativas são nitidamente traçadas com o fim de realçar a dignidade do indivíduo
humano mediante comparação com outras criaturas, conclui-se que os respectivos autores não se propunham a
questão: como, em que ordem, surgiu o mundo inferior ao homem? - Referindo-se ao mundo inferior, os
escritores falaram conforme as concepções do seu povo, sem querer proferir juízo algum sobre as mesmas;
partiam dos seus pressupostos científicos sem os discutir, pois isto não era necessário à tese antropológica a que
visavam.
Daqui se vê que, para interpretar devidamente Gn 2,4b-3,24, o exegeta deve concentrar a sua atenção sobre o
problema antropológico; mais precisamente: sobre o problema das relações do homem com Deus, o problema
religioso, pois este problema, e só este, é que prendeu diretamente a atenção do hagiógrafo; não considere os
demais enunciados do texto sacro senão enquanto significam alguma coisa para a religiosidade do homem.
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Lição 2: A Origem do Mundo
Como visto, a intenção dos autores sagrados, tanto no hexaémeron quanto em Gn 2,4b-3,24, é mostrar a
dignidade do casal humano e a superioridade do mesmo em relação às demais criaturas. Como quer que seja,
em Gn 2,4b-3,24 depreende-se algo também sobre o mundo e seu significado.
Com efeito; Gn 2 apresenta sobre o mundo uma mensagem de índole religiosa, que não contradiz à ciência,
mas versa em plano diferente do da ciência. Em poucas palavras, está dito aí que o mundo irracional e o homem
vêm de Deus e, como tais, nada de desregrado ou mau contêm; a princípio, existiam mesmo numa harmonia
que é proverbialmente dita "paradisíaca", fundada na sujeição dos seres inferiores ao homem e do homem a
Deus; se, pois, hoje há mal no mundo e no homem, ele não se deve a Deus, tem outra origem; entrou
posteriormente à obra do Criador, por ato livre do homem, dirá o c.3. É esta doutrina que a história das origens
em Gn 2 quer transmitir ao leitor.
Ainda é de notar aqui explicitamente o que já foi insinuado: Gn 2 manifesta uma fase do pensamento
religioso de Israel bem primitiva, anterior à do "hexaémeron". Deus aí produz as criaturas à semelhança de um
operário oleiro: toma a argila para modelar o corpo do homem e sopra na face do boneco plasmado para lhe dar
vida (2,7) ; é jardineiro, que planta o horto (2,8), forma os animais, condu-los à presença do homem; é
arquiteto, que constrói o corpo de Eva após haver tirado uma costela de Adão durante o sono; como cirurgião,
preenche com carne o espaço vazio (2,21); em 3,21 faz as vezes de alfaiate; além disto, o âmbito geográfico
que o autor conhece é assaz restrito. Ao contrário, o "hexaémeron" apresenta-se com caráter muito mais
filosófico e universal ista: o mundo inteiro entra em cena e é produzido pela Palavra soberana do Criador, cujos
efeitos são instantâneos. - Todavia as expressões rudimentares de Gn 2 não deixam deter um sentido muito rico
e belo ainda hoje: "Os antropormofismos dos cc.2 e 3 põem em relevo a personalidade extremamente viva de
Deus, sem derrogar aos conceitos de poder e soberania. É difícil falar de Deus; se se empregam expressões
abstratas para respeitar melhor a transcendência divina, Deus parece mais longínquo de nós, e, se se usa uma
linguagem que queira traduzir a sua presença e a sua atividade, corre-se o risco de diminuir a grandeza divina...
O autor não possuía o que chamamos hoje a cultura do espírito; era incapaz de se elevar a noções abstratas;
mas, mediante termos concretos, mostra-nos Deus familiar ao homem, muito próximo do homem e, não
obstante, Criador do homem" (Chaine, Genèse p.69).

Lição 3: A Origem do Homem


Vem ao caso o texto, muito estudado, de Gn 2,7: desta vez o Criador trabalha à semelhança de um oleiro,
que do barro forma o corpo do homem, como há de formar o dos irracionais no v.2,19 5. Todavia a produção do
homem não termina como a dos animais, com a formação do corpo: o Criador ainda sopra em suas narinas para
lhe dar vida. Ao "sopro de vida" de que é dotado o homem, corresponde nos irracionais um "hálito de vida". O
"sopro ou hálito de vida"6 significa simplesmente a vida; alguém é dito viver na medida em que respira, e o
Criador, em 2,7, comunica a vida pelas narinas porque por estas é que o homem respira (cf. Is 2,22) ; quando o
homem morre, diz-se que Deus lhe retira o sopro, em Jó 34,14s; SI 105,29s.
Pergunta-se agora: que reter das expressões de Gn 2,7?
1) A imagem do oleiro significa que, como o oleiro está para o barro, Deus está para o homem:
Oleiro Deus
Barro Homem
E como é que o oleiro está para o barro?
O oleiro tem carinho, sabedoria, providência, maestria, domínio... para com a sua argila. Assim também
Deus tem os mesmos predicados para com o homem, qualquer que tenha sido o modo de aparecimento deste. O

5
A imagem do "Deus-Oleiro" era muito propagada entre os antigos; encontra-se na literatura sumérica, entre os Assírios e Babilônios, os Egípcios,
nos autores gregos e latinos, assim como nas tradições de alguns povos ditos primitivos. Assim na epopéia babilônica de Gilgamesch conta-se que,
para criar Enkidu, a deusa Aruru “plasmou argila” Na lenda assiro-babilônica de Ea e Atar-hasis, a deusa Miami, intencionando criar sete homens e
sete mulheres, fez quatorze corpos; a deusa rematou-os, imprimindo-lhes traços de indivíduos humanos e configurando-os à sua própria imagem. No
Egito um baixo-relevo em Deir-el-Bahari e outro em Luxor apresentam o deus Cnum modelando sobre a sua roda de oleiro os corpos
respectivamente da rainha Hatshepsout e do Faraó Amenofis III; as deusas colocavam sob o nariz de tais bonecos o sinal hieroglífico da vida +, para
que a respiqassem e se tornassem seres vivos. Notícias devidas a G. Lambert, L’Encyclique "Humani Generis" et l’Ecriture Sainte, em "Nouvelle
Revue Théologique" 73 (1951) 233ss. Entre os Maoris da Nova Zelândia conta-se o seguinte episódio: Um certo deus, conhecido pelos nomes de Tu,
Tiki e Tané, tomou argila vermelha à margem de um rio, plasmou-a misturando-lhe o seu próprio sangue, e dela fez uma cópia exata da divindade;
depois de a terminar animou-a soprando-lhe na boca e nas narinas; ela então nasceu para a vida, e espirrou. O homem plasmado pelo criador Maori
parecia-se tanto com este que mereceu por ele ser chamado Tiki-Ahua, isto é, imagem de Tiki. (cf Taylor, New-Zeland 1870, 117),
6
Vêm a propósito os seguintes textos: "Farei vir o dilúvio,.. para destruir... toda carne que tem hálito de vida debaixo do céu" (Gn 6,17), "Entraram
com Noé na arca os casais, provenientes de toda carne que tem hálito de vida" (Gn 7,15). "Tudo que respira para viver, tudo que habita sobre a terra
firme, morreu" (Gn 7,22).
7 Escola Mater Ecclesiae
sopro de vida insuflado nas narinas do boneco de argila é traço coerente com a imagem do oleiro; a argila
inanimada tem que ser vivificada.
No texto hebraico nota-se um jogo de palavras muito fino: do solo ou da ‘adamah é tirado um ser chamado
‘Adam, homem. Para a mentalidade primitiva, as relações entre palavras são relações entre os seres designados;
se, pois, o homem deve viver sobre a terra (‘adamah), cultivar a terra e se tornar um dia poeira da terra (cf. 2,5.
15; 3,17.19), é lógico que se chame ‘Adam. Esta observação permite concluir que o nome do primeiro homem
não era necessariamente Adam.
2) Já que o texto sagrado não trata do aspecto científico da origem do homem, fica aberta a questão: será
compatível com a fé no Criador a teoria evolucionista?
- Quando Charles Darwin (†1882) propôs a sua teoria evolucionista, os teólogos católicos mostraram-se
contrários à mesma, pois era mecanicista ou afinalista, ateleológica; com efeito, a evolução se faria mediante a
luta pela vida (struggle for life), na qual as espécies mais fracas teriam perecido, ao passo que as mais fortes
terão sobrevivido. A Providência Divina ou a Sabedoria do Criador não eram devidamente consideradas. Com o
tempo, porém, os pensadores católicos tomaram consciência de novas e novas descobertas nos campos da
paleontologia, da arqueologia, da biologia; verificaram que se podem separar os dados da ciência da filosofia
materialista com que Charles Darwin os interpretou. Daí a nova posição assumida oficialmente pela Igreja e
formulada por Pio XII em 1950, conforme o texto da encíclica Humani Generis:
"O Magistério da Igreja não proíbe que, em conformidade com o atual estado das ciências e da teologia, seja
objeto de pesquisas e de discussões, por parte dos competentes em ambos os campos, a doutrina do
evolucionismo, enquanto ela investiga a origem do corpo humano, que proviria de matéria orgânica
preexistente (a fé católica nos obriga a professar que as almas são criadas imediatamente por Deus). Isto,
porém, deve ser feito de tal maneira que as razões das duas opiniões, isto é, da que é favorável e da que é
contrária ao evolucionismo, sejam ponderadas e julgadas com a necessária seriedade, moderação, justa medida
e contanto que todos estejam dispostos a se sujeitarem ao juízo da Igreja, à qual Cristo confiou o ofício de
interpretar autenticamente a S. Escritura e de defender os dogmas da fé. Alguns, porém, ultrapassam
temerariamente esta liberdade de discussão, procedendo como se estivesse já demonstrado com certeza plena
que o corpo humano se tenha originado de matéria orgânica preexistente, argumentando com certos indícios
encontrados até agora e com raciocínios baseados sobre tais indícios; e isto como se nas fontes da Revelação
não existisse nada que exija neste assunto a maior moderação e cautela" (Acta Apostolicae Sedis 42 - 1950,
57s).
O S. Padre João Paulo II corroborou estas idéias, como se dirá mais detidamente no Módulo 15 deste Curso.

PERGUNTAS
1) Qual a tese que o texto de Gn 2, 4b-25 quer evidenciar?
2) Que nos diz este texto a respeito da origem do mundo?
3) Que diz o mesmo texto sobre a origem do homem?
4) Que significado tem a imagem do oleiro?
5) Se a Igreja condenou o darwinismo, pode ser favorável à evolução?

MÓDULO 3: GÊNESIS 2,18-24 (A PRIMEIRA MULHER)


O livro do Gênesis, em sua narração javista, descreve a origem da primeira mulher à parte ou num episódio
próprio (2,18-24), distinto do que refere a origem do primeiro homem. Já tivemos a ocasião de notar, no
Módulo anterior, que a apresentação da origem da mulher a partir de Adão, como se a mulher se tivesse
originado de modo diferente do de Adão, tem por finalidade mostrar que a mulher compartilha a dignidade do
homem e, com este, constitui o casal chamado a reger e governar as criaturas inferiores. Por conseguinte, não
seria lícito querer deduzir do texto sagrado alguma teoria de ordem biológica ou científica relativa à origem da
mulher. Toca à ciência tratar do assunto; o estudo das ciências naturais não vê por que assinalar à mulher um
processo diferente do homem.
Examinaremos neste Módulo alguns traços característicos do texto bíblico e procuraremos formular o seu
significado.

Lição 1: Uma Análise Literária de Gn 2,18-14


Eis o texto em foco:
“Iahweh Deus disse: Não é bom que o homem esteja só. Vou fazer uma auxiliar que lhe corresponda.
Iahweh Deus modelou então, do solo, todas as feras selvagens e todas as aves do céu e as conduziu ao homem
8 Escola Mater Ecclesiae
para ver como ele as chamaria: cada qual devia levar o nome que o homem lhe desse. O homem deu nome a
todos os animais, às aves do céu e a todas as feras selvagens, mas, para o homem, não encontrou auxiliar que
lhe correspondesse. Então Iahweh Deus fez cair um torpor sobre o homem, e ele dormiu. Tomou uma de suas
costelas e fez crescer carne em seu lugar. Depois, da costela que tirara do homem, Iahweh Deus modelou uma
mulher e a trouxe ao homem. Então o homem exclamou: Esta, sim, é osso de meus ossos e carne de minha
carne! Ela será chamada mulher porque foi tirada do homem! Por isso um homem deixa seu pai e sua mãe, se
une à sua mulher e eles se tornam uma só carne.”
Como se vê, o autor sagrado começa por verificar que o varão está só e isto não é bom; precisa de alguém
semelhante a ele (v.18). Depois, para enfatizar esta solidão do homem, é narrado o desfile dos animais perante o
homem, que dá a cada um o nome respectivo; após o quê , está dito que "não se encontrou a auxiliar que lhe
correspondesse" (v.20).
Tal desfile não há de ser tomado ao pé da letra. O seu estilo pertence ao linguajar ou expressionismo dos
antigos; o nome era sempre a expressão da realidade íntima do seu portador. Por conseguinte, ao dizer que
Adão impôs o nome a cada animal e não encontrou alguém que se lhe assemelhasse, o autor sagrado quer
incutir, de maneira concreta, a singularidade do ser humano; a afirmação filosófica é assim expressa em termos
quase teatrais. Fica, pois, fundamentada a cena seguinte: o autor concebe o Criador a extrair do lado de Adão
uma costela para, com ela, formar o corpo da primeira mulher. Este gesto justifica a exclamação subseqüente
atribuída ao primeiro homem: " Esta, sim, é osso de meus ossos e carne da minha carne!" (v.23).
Tem-se aqui uma expressão proverbial dos antigos: "carne de carne e osso de ossos" significa identidade de
natureza e de dignidade. Ainda hoje há vestígios deste modo de falar, pois se diz: "minha cara metade" ou
"tenho o coração dilacerado pela partida de um ente querido". A exclamação filosófica (afirmação da paridade
de natureza do homem e da mulher) é preparada pelos antecedentes da narração; estes nada mais são do que um
artifício literário destinado a fundamentar a conclusão final. Aliás, o ritmo de Gn 2,1-7 e 18-24 tende a
professar esta verdade, que é o termo principal dos interesses do autor sagrado. Por conseguinte, o desfile, a
imposição de nomes e a conseqüente conclusão querem acentuar de modo eloqüente a igual dignidade do
homem e da mulher, assim como a transcendência de ambos sobre as demais criaturas visíveis.
Vejamos agora o significado teológico de Gn 2,18-24.

Lição 2: A Mensagem Teológica


Através de sua linguagem figurada, o texto sagrado é portador de mensagem muito válida, que se pode
resumir nos seguintes pontos:
1) a mulher possui a mesma natureza e dignidade que o homem, sendo ambos senhores de toda a criação
visível. É o que inculca, no seu estilo fino e eloqüente, o prelúdio anteposto à formação de Eva (vv.19s), assim
como a exclamação de Adão ao ver a mulher: "Desta vez esta é osso de meus ossos e carne de minha carne.
Será chamada mulher (=ischschah), pois foi tomada do homem (isch)" (v.23)7. De resto, é conhecida a estima
que os antigos Orientais tributavam à origem de uma pessoa; a linhagem ou ascendência de família era, para
eles, título de maior honra do que os méritos pessoais: daí a grande voga das genealogias: 8 a prole era
considerada herdeira de toda a glória dos seus ascendentes. Ora esta concepção pode ter ditado Gn 2,21s: à luz
destas idéias, é claro que a mulher, oriunda do corpo mesmo de Adão, possui dignidade igual à do homem.
A igual dignidade de homem e mulher, após dezenove séculos de Cristianismo, já não é verdade
controvertida. Todavia muito necessário era que a Escritura a inculcasse, pois a tendência geral entre os antigos
era deprimir a posição da mulher em relação ao homem: os semitas reduziam o papel da mulher à procriação.
Entre os gregos, Hesíodo afirmava que a mulher fora uma dádiva perniciosa para o homem, e o sábio Platão
ensinava que quem vivesse dignamente nesta terra, se reencarnaria num corpo de homem, ao passo que o
indigno voltaria ao mundo num corpo de mulher e, depois, num corpo de animal irracional; considerava, pois, a
mulher como ser intermediário entre o homem e o bruto. Maomé colocava no paraíso o seu cavalo, .o seu
camelo e o seu gato, nenhuma, porém, de suas mulheres;
2) homem e mulher são destinados a se completar mutuamente, sob o ponto-de-vista tanto físico como
psíquico. Por sua vida, realizando conjuntamente "uma só carne" (v.24), homem e mulher imitam de modo
pleno as perfeições divinas que o Criador quis fazer resplandecer na espécie humana.

7
A derivação etimológica de ischschah (=mulher em hebraico) a partir de isch (=homem) é discutida pelos filólogos. Há quem admita, há quem
negue, uma raiz comum para as duas palavras. Como quer que seja, ao hagiógrafo interessava apenas propor a derivação popular baseada na
assonância dos termos (paronomásia); com isto já inculcava suficientemente a afinidade vigente entre homem e mulher.
8
Os árabes traçam a árvore genealógica até mesmo dos seus cavalos; o mais humilde dos nômades orientais, ainda hoje, costuma saber com
segurança os nomes dos seus antenatos através de diversos séculos; uma biografia de guerreiro, artista ou sábio, no Oriente, abre-se invariavelmente
com uma longa genealogia.
9 Escola Mater Ecclesiae
Ademais, a descrição da origem da mulher a partir do corpo de Adão servia (e serve) para dar, de forma bem
viva, a explicação profunda do atrativo sexual. Este era considerado pelos semitas como um mistério
incompreensível9. Ora o autor do Gênesis explica o enigma como sendo uma instituição do Criador: o amor
conjugal tende a consumar o tipo do homem, a desdobrar toda a perfeição de que é capaz a espécie humana,
mas que o indivíduo humano por si só não pode atingir10;
3) o texto sagrado insinua também a Magna Carta do matrimônio. Esta impõe monogamia, indissolubilidade
do vínculo, primazia dos deveres conjugais sobre o afeto filial dos cônjuges a seus pais: "Desta vez esta é osso
de meus ossos ... É por isto que o homem abandonará pai e mãe, e aderirá à sua esposa, e tornar-se-ão os dois
uma só carne" (vv.23s). Cristo citou e sancionou definitivamente este ensinamento de Gênesis (cf. Mt 19, 3-9),
e S. Paulo ainda o quis inculcar apelando também para Gn 2,24 (cf. Ef 5,30-32);
4) a procedência de Eva a partir do corpo de Adão no início do mundo era prenúncio de uma atuação do
plano de Deus ainda mais estupenda, que se devia dar na plenitude dos tempos. - De fato, o Filho de Deus,
assumindo a carne humana, quis aparecer na terra qual segundo Adão, novo pai do gênero humano, que
transmite uma vida mais elevada que a do primeiro Adão (cf. l Cor15,45-49). E, essa vida, o novo Adão a
comunica por sua Igreja, a qual, por conseguinte, lhe faz as vezes de esposa, segunda Eva, mãe de todos os
homens regenerados, como Eva é a mãe de todos os homens gerados por linhagem carnal 11. Ora, conforme
muitos Padres, a Igreja Esposa de Cristo teve origem quando o lado de Jesus adormecido (=morto) sobre a cruz
foi transpassado pela lança, deixando jorrar sangue e água; estes dois elementos sempre foram tidos como
figuras dos dois sacramentos principais, a Eucaristia e o Batismo, que constituem a Igreja, os cristãos. E este
quadro, de que fala o Evangelho de São João 19,33s, é pelos Padres posto em conexão com a cena do Gênesis
que narra a procedência de Eva a partir do lado de Adão.
A união de Cristo com a Igreja, conforme a Escritura, encontra um reflexo na união matrimonial desde que
ela foi instituída no início da história.

PERGUNTAS
1) O texto de Gn 2,18-24 incute alguma teoria científica?
2) Como entender o desfile dos animais e a imposição de nomes em Gn 2, 19s.?
3) Qual o significado teológico de Gn 2, 18-24?

MÓDULO 4: LIVROS PROFÉTICOS E LIVROS SAPIENCIAIS


Além de Gn 1-2, encontram-se, no Antigo Testamento, alusões à criação, todas muito sóbrias e geralmente
redigidas em função de uma mensagem existencial para o povo de Israel. Distinguiremos livros proféticos,
livros sapienciais e o 2o dos Macabeus.

Lição 1: Livros Proféticos


1. O Dêutero-Isaías
A principal secção que vem ao caso, é a de Is 40-55 ou o chamado "Dêutero-Isaías". Estes capítulos foram
escritos durante o exílio de Israel na Babilônia (587-538 a.C.), com a intenção de, reerguer os ânimos do povo
abatido porque entregue ao domínio estrangeiro. Com efeito; os deportados, levados para longe da Terra
Prometida, perguntavam a si mesmos se tal situação não equivalia a um abandono da parte de Deus, que lhes
dera o país de Canaã e nele os havia protegido até a deportação. O Profeta responde-lhes que não devem pensar
assim; Deus concebeu um único plano de salvação, que se vai exercendo desde o começo do mundo; Aquele
que fez o céu e a terra soberanamente e deu aos elementos as suas leis, é o mesmo que chamou Israel e lhe
prometeu a bênção messiânica; esse Senhor é o Deus de todos os povos; continua a reger a história, de modo
que nada acontece fora do seu plano providencial. Para corroborar esta certeza em seus 1eito res, o Profeta (que
é também um grande teólogo do Antigo Testamento) se compraz em lembrar como Deus criou o mundo: Ele o

9
CL Pr 30, 18s; Ct 8, 6s.
10
Foi justamente por perceberem a unidade que esposo e esposa constituem, que antigos povos, fora de Israel, professavam ter sido a mulher
formada de uma metade do homem. Assim os Hindus, numa lenda cosmogônica do Rig-Veda; os Babilônios, numa narrativa de Berosso tirada dos
documentos sumero-acádicos; uma cosmogonia fenícia conservada em grego sob o nome de “Sanchoniaton”.
11
É São Paulo mesmo quem apresenta essa união de Cristo com a Igreja como união matrimonial, da qual é tipo a sociedade conjugal de homem e
mulher indivíduos, e, em particular a dos primeiros pais, Adão e Eva: "Maridos, amai vossas esposas como Cristo amou a Igreja e se entregou por ela
a fim de santificá-la... É assim que os maridos devem amar suas esposas, como seus próprios corpos... Ninguém jamais odiou sua própria carne, mas
nutre-a e a cerca de cuidados, como Cristo faz para com a Igreja, pois que somos membros de seu corpo. É por isto que o homem abandonará pai e
mãe para aderir à sua esposa, e de dois tornar-se-á uma só carne. Este mistério é grande; quero dizer em vista de Cristo e da Igreja" ( Ef 5,25s. 28-
33).
10 Escola Mater Ecclesiae
fez com sua palavra todo-poderosa, vencendo o caos inicial, como o Primeiro e o Último, anterior a todas as
coisas - o que faz nítido eco a Gn 1,1-2,4a. E o que se depreende, em especial, das seguintes passagens:
"Quem pôde medir as águas do mar na cavidade de sua mão?
Quem conseguiu avaliar a extensão dos céus a palmos,
medir o pó da terra com o alqueire
e pesar os montes na balança
e os outeiros nos seus pratos?
Quem dirigiu o espírito do Senhor
ou, como conselheiro, o instruiu?...
As ilhas pesam tanto quanto um grão de areia...
Todas as nações são como nada diante dele...
Ele está entronizado sobre o círculo da terra,
cujos habitantes são como gafanhotos;
ele estende os céus como uma tela,
abre-os como uma tenda que sirva de habitação...
Elevai os olhos para o alto e vede:
Quem criou estes astros?
É Ele que faz sair o seu exército
em número certo e fixo;
a todos chama pelo seu nome.
Tal é o seu vigor tão grande a sua força
que nenhum deles deixa de se apresentar".
(Is 40, 12s. 15. 17.22.26)
O Senhor, disto isto, indaga: "Por que dizes tu, Jacó, porque indagas, Israel: O meu caminho está oculto ao
Senhor, o meu direito passa despercebido a Deus? Pois não sabes?
Acaso não ouviste? O Senhor é um Deus eterno, criador das regiões mais remotas da terra. Ele não se cansa
nem se fadiga, a sua inteligência é insondável" (Is 40, 27s).
Vários outros textos de [saías reproduzem as mesmas idéias; assim Is 41,4; 42,5-9; 43,5-7; 44,24-28; 45,5-
8.11-13.18-25; 48,12s; 51 ,9s; 51 ,13-15.
Vê-se que o autor sagrado recorda o passado para suscitar a esperança num futuro melhor; o poder de Deus
revelado na criação e em acontecimentos posteriores é penhor de novas façanhas em prol do povo de Israel; a
sabedoria e a bondade do Senhor não estão esgotadas, mas tendem a se manifestar ulteriormente. Assim a
doutrina da criação é encaixada na doutrina da Providência Divina, que há de cumprir o que prometeu e levar a
termo a sua obra.
Tanto em Is como em Gn 1s o autor sagrado não tem em vista a fenomenologia ou o aspecto cientifico da
criação, mas deseja propor uma meditação religiosa, que sirva para reestruturar a fé e a coragem do povo de
Deus.

1.2. Jeremias
Jeremias deixou-nos uma obra de várias facetas, entre as quais veemente censura das práticas idolátricas; ao
propô-la, o autor se refere ao Deus de Israel, que não tem igual, pois foi Ele quem deu início ao universo.
Tenha-se em vista Jr lo,11-13.15:
"Os deuses que não criaram o céu e a terra desaparecerão da terra e de debaixo dos céus. Ele fez a terra por
sua potência, por sua sabedoria estabeleceu o mundo e por sua inteligência estendeu os céus. Quando Ele faz
ressoar o trovão, há um bramido de águas no céu; ele faz subir as nuvens do extremo da terra, produz os raios
para a chuva e faz sair o vento de seus depósitos... Ele é que formou o universo”
Os mesmos dizeres ocorrem em Jr 5, 22-24; 14,21s; 27,5s; 31,35s; 32,17-25; 33,25s; 51,15-19.

1.3. Amos
O profeta Amós, em meio às repreensões que dirige ao povo de Israel, apresenta três doxologias, que louvam
o Criador, exaltando o poder de Deus e incitando os leitores a temer o Senhor. Eis o que se lê em Am 5,8s:
"Ele que faz as Plêiades e o Orion,
que transforma as trevas em manhã,
que escurece o dia em noite,
que convoca as águas do mar
11 Escola Mater Ecclesiae
e as despeja sobre a face da terra,
Javé é seu nome!"
E em Am 9,6:
“Aquele que constrói nos céus suas altas moradas,
e funda na terra a sua abóbada;
aquele que chama as águas mar
e as derrama sobre a face da terra,
Javé é seu nome!”
Os livros proféticos repetem dizeres semelhantes, visando sempre a incutir o poder e a grandeza de Deus
afim de restaurar os ânimos do povo eleito. Ver ainda Br 3,32. Passemos a outra categoria de escritos.

Lição 2: Os Livros Sapienciais


2.1. O Livro de Jó
Entre todos, destaca-se o livro de Já, cujo tema central é o sofrimento do homem justo. O autor sagrado, em
estilo de diálogo entre Jó e seus amigos, discorre sobre os eventuais porquês de tão misteriosa situação. A obra
termina sem resposta elucidativa. Todavia nos capítulos finais (cc. 38-42) o Senhor Deus aparece, interpelado
por Jó, e aponta as diversas obras do Criador, a fim de lembrar a Jó que existe uma Providência Divina sábia,
cujos desígnios são impenetráveis; o homem é pequeno demais para sondá-la e para argüir a Deus. Repensando
no universo que o cerca, o homem - no caso, Jó - deve tomar consciência de que Deus não se engana, mas seu
comportamento fica muito além do alcance da razão humana. Na enumeração das obras do Criador em Jó,
podem-se perceber os ecos de Gn 1 e Is 40-45. Tenham-se em vista algumas passagens mais significativas:
Jó 38,5-7: "Onde estavas quando lancei os fundamentos da terra? Dize-mo, se é que sabes tanto. Quem lhe
fixou as dimensões? - se o sabes - ou quem estendeu sobre ela a régua? Onde se encaixam suas bases, ou quem
assentou sua pedra angular entre as aclamações dos astros da manhã e o aplauso de todos os filhos de Deus?"
Neste texto a terra é fundamentada à semelhança de um edifício entre as aclamações dos anjos numa liturgia
celeste.
Jó 38,8-11: “Quem fechou com portas o mar quando irrompeu jorrando do seio materno; quando lhe dei
nuvens como vestidos e espessas névoas como cueiros; quando lhe impus os limites e lhe firmei porta e
ferrolho, e disse: 'Até aqui chegarás e não passarás; aqui se quebrará a soberba de tuas ondas ?”’
Jó 38,22s: "Entraste nos depósitos de neve? Visitaste os reservatórios do granizo, que reservo para ó tempo
da calamidade, para os dias de guerra e de batalha?"
Jó 38,31-33: "Podes atar os laços das Plêiades ou desatar as cordas de Orion? Podes fazer sair a seu tempo a
Coroa ou guiar a Ursa com seus filhos? Conheces as leis dos céus, determinas o seu mapa na terra?"
Jó 39,26-30: "É por tua sabedoria que o falcão levanta vôo e estende suas asas em direção ao Sul? Acaso é
sob a tua ordem que a águia reencontra o vôo e constrói seu ninho nas alturas? Habita nos rochedos e lá
pernoita, o penhasco é seu baluarte. De lá espia sua presa, que de longe os seus olhos descobrem. Seus filhotes
sorvem o sangue; onde houver um cadáver lá está."
Ver ainda 38,12.39;40,15-32 (Beemot, o hipopótamo, e Leviatã, o crocodilo). O autor sagrado, recorrendo a
nomes da mitologia, quer incutir a vitória do Criador sobre todas as forças brutas - terrestres e marinhas - que o
homem não consegue dominar.
As interrogações formuladas nos textos atrás citados vêm a ser desafio à inteligência do homem, que para
elas não tem resposta. Reconheça, pois, a criatura quão pequena ela é e quão incapaz de julgar a maneira como
o Criador leva a termo a sua obra através da história.

2.2. O Livro dos Provérbios


Este livro refere-se à criação do mundo para incutir a sabedoria de Deus no governo da história, ou seja, para
recomendar a Providência Divina. Retoma os traços habituais dos escritos já aqui analisados, acrescentando-
lhes a imagem da sabedoria personificada, que aparece como primeira criatura de Deus e assistente do mesmo
na obra da criação: Em Pr 8,22-31 diz a Sabedoria:
“O Senhor me criou, primícias de sua obra, de seus feitos mais antigos. Desde a eternidade fui estabelecida,
desde o princípio, antes da origem da terra. Quando os abismos não existiam, eu fui gerada, quando não
existiam os mananciais das águas. Antes que as montanhas fossem implantadas, antes das colinas, eu fui
gerada; ele ainda não havia feito a terra e a erva, nem os primeiros elementos do mundo. Quando firmava os
céus, lá eu estava, quando traçava a abóbada sobre a face do abismo; quando condensava as nuvens do alto,
12 Escola Mater Ecclesiae
quando se enchiam as fontes do abismo... Eu estava junto dele como mestre-de-obras, eu era o seu encanto
todos os dias... e me alegrava com os homens”
A pujança e a beleza da obra criada vêm a ser esteio da confiança na Providência Divina.

2.3. O Livro da Sabedoria


Refere-se à criação nos termos clássicos (cf. Sb 9,1.9). Encontram-se, porém, aí dois tópicos novos:
O texto de Sb 11,24-26 menciona o amor que Deus tem às suas criaturas: "Tu amas tudo o que criaste, não te
aborreces com coisa alguma do que fizeste; se alguma coisa tivesses odiado, não a terias feito. E como poderia
subsistir alguma coisa, se não a tivesses querido? Como conservaria sua existência, se não a tivesses chamado?
Mas a todos perdoas, porque são teus, Senhor, amigo da vida!"
Em Sb 13,5 há alusão ao espelho das criaturas: "A grandeza e a beleza das criaturas fazem, por analogia,
contemplar seu autor".
Em 11,17 está dito que Deus criou o mundo a partir de matéria informe. A expressão é inspirada pelo
Timeu (51 A) de Platão; não pretende ser definição dogmática; faz eco possivelmente a Gn 1,1, onde Deus
aparece a organizar o mundo a partir da matéria caótica.
2.4. O Eclesiástico
Este escrito evoca a criação para suscitar o louvor de Deus. A secção de 16,24-17,14 faz ressoar traços de
Gn 1-2, sempre no intuito de enfatizar as maravilhas da obra criadora e provocar a exaltação do Criador. Ver
outrossim Eclo 24, 5-12 e 43, 23-33. O texto de Eclo 18,1 em tradução latina ("Deus creavit omn ia simul -
Deus criou todas as coisas simultaneamente") foi interpretado por S. Agostinho no sentido de que Deus tudo
criou no mesmo instante, sendo que algumas criaturas de maneira acabada, ao passo que outras sob forma de
razões seminais ou sementes que se desenvolveriam aos poucos. - Tal teoria não fez escola.

2.5. Os Salmos
Os Salmos apresentam alusões à obra criadora de Deus inseridas em orações de ação de graças ou de súplica
como também em cantos de louvor. Dentre estes destaca-se o Sl 104, que é quase um paralelo de Gn 1, pois
evoca sucessivamente a produção da luz (v.2), a separação dos continentes e das águas (vv. 5 e 6), a origem dos
vegetais (vv. 13-18), a dos astros (vv. 19-23) a dos animais irracionais (vv. 25-30)... e termina numa expressão
de complacência nas maravilhas da criação e do Criador (vv. 31-35).
Sejam citados ainda SI 89,6-19; 74,12-17; 33,6-10; 8, 2-10; 95,1-5;19.1-7...

Lição 3: O 2o Livro dos Macabeus


Sob a pressão dos sírios, que querem impor aos judeus costumes pagãos, os sete irmãos macabeus dispõem-
se a morrer mártires. Antes de entregarem a vida, sua mãe os exorta à coragem, dizendo a um deles: § "Eu te
suplico, meu filho: contempla o céu e a terra e observa tudo o que neles existe. Reconhece que não foi de coisas
existentes que Deus os fez, e que também o gênero humano surgiu da mesma forma. Não temas esse carrasco.
Ao contrário, tornando-te digno dos teus irmãos, aceita a morte a fim de que eu torne a receber-te com eles na
Misericórdia" (2Mc 7, 27-29).
Tem-se aqui explicitada a noção de criação a partir do nada, já insinuada em textos anteriores do Antigo
Testamento; o 2Mc data do sec. II a.C. Verdade é que não se pode atribuir ao pensador judeu antigo a clareza
de conceitos que a Metafísica posterior concebeu. Como quer que seja, o texto bíblico assim se distancia das
concepções de Platão, cujo Demiurgo fabricou o mundo a partir de matéria preexistente.

PERGUNTAS
1) Como o Dêutero-Isaías (Is 40-55) vê a criação? Porque a menciona?
2) O livro de Jó trata do sofrimento. Por que se refere à criação?
3) Que é que o livro dos Provérbios acrescenta de novo aos livros anteriores quando trata da criação?
4) Diga o que de novo se encontra no livro da Sabedoria ao encarar este mundo?
5) Que há de importante no 2Mc?
PARTE I: CRIAÇÃO: B) história do Dogma
13 Escola Mater Ecclesiae
MÓDULO 5: OS TEXTOS PAULINOS E JOANEUS
O Novo Testamento supõe a doutrina do Antigo Testamento relativa à criação e a completa, pois lhe
acrescenta um visão cristológica: toda a história do mundo e do homem, desde as suas origens, tende ao
Messias; é em Jesus Cristo que ela se consuma. Podem-se deduzir dos escritos paulinos e joaneus algumas
teses, que vão, a seguir, enunciadas.

Lição 1: Escritos Paulinos


Três grandes proposições se depreendem dos textos paul inos.
1) O mundo visível, feito por Deus, atesta a sabedoria e a glória do Criador.
Em Listra, São Paulo, opondo-se aos deuses, anuncia o único Deus, Criador de todas as coisas, que pode ser
reconhecido através do testemunho das próprias criaturas:
"Nós vos anunciamos a Boa-Nova da conversão para o Deus vivo, deixando de lado todas essas coisas vãs.
Foi Ele que fez o céu, a terra, o mar e tudo o que neles existe. Ele permitiu, nas gerações passadas, que todas as
nações seguissem seus próprios caminhos. No entanto, não deixou de dar testemunho de si mesmo fazendo o
bem, do céu enviando-nos chuvas e estações frutíferas, saciando de alimento e alegria os vossos corações" (At
14, 15-17).
Algo de semelhante se encontra no discurso de São Paulo aos atenienses:
"De um só Ele fez toda a estirpe humana para habitar sobre toda a face da terra, fixando os tempos
anteriormente determinados e os limites do seu habitat. Tudo isto para que procurassem a divindade e, mesmo
se às apalpadelas, se esforçassem por encontrá-la, embora não esteja longe de cada um de nós. " (At 17, 26-28).
A referência a "um só" é vaga, podendo ser entendida tanto no sentido de "um só casal" como no de "um só
princípio, uma só família."
Ainda a mesma doutrina volta, sempre no intuito de dizer que também os pagãos, embora não gozassem da
revelação do Antigo Testamento, não foram abandonados por Deus, que se lhes manifestou pela criação:
"Sua (de Deus) realidade invisível, seu eterno poder e sua divindade, tornaram-se inteligíveis desde a criação
do mundo, através das criaturas, de sorte que não têm desculpa" (Rm 1 ,20).
2) Deus fez o mundo com soberania, sem conselho, ficando afastado todo tipo de cosmogonia pagã:
"Ó abismo da riqueza, da sabedoria e da ciência de Deus! Como são insondáveis seus juízos e impenetráveis
seus caminhos! Quem, com efeito, conheceu o pensamento do Senhor? Ou quem se tornou seu conselheiro? Ou
quem primeiro lhe fez o dom para receber em troca? Porque tudo é dele, por Ele e para Ele. A Ele a glória pelos
séculos! Amém" (Rm 11, 33-36).
Deus cria porque quer que as criaturas tiradas do nada gozem da felicidade de existir e de exprimir a
grandeza e sabedoria do Criador.
3) À doutrina do Antigo Testamento sobrevém um elemento novo: o Cristocentrismo:
"Ele é a imagem do Deus invisível, o Primogênito de toda criatura, porque nele foram criadas todas as coisas
nos céus e na terra, as visíveis e as invisíveis: Tronos, Soberanias, Principados, Autoridades, tudo foi criado por
Ele e para Ele. Ele é antes de tudo e tudo nele subsiste" ( Cl 1, l5s).
São Paulo menciona aqui o primado de Jesus Cristo, Deus feito homem, e não apenas o de Deus invisível; é
o primogênito de toda criatura no sentido de "anterior a toda criatura", pois desde toda a eternidade foi, pelo
Pai, concebido como o grande referencial em função do qual foram criados os anjos, os homens e o mundo
inferior. Ele é a razão de ser e o ponto de convergência de todo o mundo criado.
A obra da criação se prolonga na Redenção, que é uma "re-criação" após o pecado. Por isto Jesus Cristo é
também "o Primogênito dos mortos" ou o primeiro Ressuscitado. Como tal, é fonte de vida nova para todos os
homens, feito Cabeça da Igreja (Cl 1 ,18-20).
A obra da Redenção vai-se exercendo através dos séculos, de modo que só no fim dos tempos estará
consumada. Tal consumação é indicada pela expressão "céus novos e terra nova"(Ap 21,1), cujo sentido é um
tanto obscuro.
Outros textos de São Paulo referem brevemente o papel de Cristo como eixo central de toda a obra criadora e
de todo o plano do Pai; ver Ef 1, 3-14.

Lição 2: O Evangelho segundo S. João


No quarto Evangelho destaca-se uma passagem atinente à criação que merece atenção: Jo 1 , 3-5.
14 Escola Mater Ecclesiae
Antes do mais, impõe-se uma questão crítica: como pontuar o texto desses versículos? Sabemos que os
antigos não costumavam usar pontuação; os primeiros manuscritos gregos da Bíblia pontuados datam do século
V.
Na verdade, há duas maneiras de entender Jo 1, 3-5:
1) A primeira, mais comum, lê:
3
"Por Ele (o Verbo) tudo foi feito E sem Ele nada foi feito do que foi feito.
4
Nele estava a vida E a vida era a luz dos homens.
5
E a luz brilha nas trevas E as trevas não a venceram."
2) A segunda, usual sem exceção até o século IV, reza:
3
“Por Ele ( o Verbo) tudo foi feito E sem Ele nada foi feito.
4
O que foi feito, nele é vida E a vida é a luz dos homens.
5
E a luz brilha nas trevas E as trevas não a venceram”.

A segunda versão merece preferência não só porque é a mais antiga, 12 mas também porque observa melhor a
cadência dos dizeres. No versículo 3 o paralelismo é perfeito se lemos: "Tudo foi feito por Ele ( o Verbo) e sem
Ele nada foi feito"; não há necessidade do pleonasmo "do que foi feito. "
Os versículos 4 e 5 se configuram então muito bem com frases do mesmo tamanho:
"O que foi feito, nele é vida13
E a vida é a luz dos homens, E a luz brilha nas trevas E as trevas não a venceram".
Vejamos agora como entender estes versículos.
O versículo 3, apresentando a mediação do Verbo na criação do mundo, tem em vista a causalidade
exemplar: no Verbo de Deus estavam os arquétipos ou os exemplares das diversas criaturas. Sem essa
exemplaridade do Verbo nada veio a existir.
O versículo 4 acrescenta que nesse Verbo os seres criados têm a sua fonte de vida; a vida de todas as
criaturas tem sua origem no Verbo de Deus; as criaturas são ditas "vida" porque elas recebem do Verbo toda a
sua vida; participam da vida daquele que é a Vida por excelência.
Essa vida brilha no caminho dos homens e os ilumina. As trevas não a puderam vencer ou extinguir. Trata-se
do conflito entre a morte do pecado e a vida de Deus; aquele não pôde, nem jamais poderá, vencer a esta.
Assim o Evangelho segundo São João toca de leve na criação para apontar o papel de causa exemplar e fonte
de vida que nela coube ao Verbo de Deus.
Em suma, o Novo Testamento considera a criação quase exclusivamente em função da Redenção realizada
por Cristo na Cruz e na Ressurreição. Daí haver pouca coisa a depreender de tal texto para completar o nosso
percurso bíblico.

PERGUNTAS
1) Que sentido São Paulo atribui à criação do mundo quando fala aos pagãos?
2) Que sentido São Paulo atribui à criação do mundo quando escreve a cristãos?
3) Que há de interessante no Prólogo de João (1, 1-18) no tocante à criação?

A TRADIÇÃO CRISTÃ
A Tradição Cristã faz eco às páginas bíblicas. Eis um texto da "Carta a Diogneto", documento de um cristão
anônimo do século III: exalta o papel do Filho ou do Verbo na criação e na re-criação do mundo.
"Foi o próprio Deus invisível, verdadeiramente Senhor e Criador de tudo, que do alto dos céus colocou entre
os homens a Verdade, o Logos santo e incompreensível, e o inseriu firmemente nos seus corações. Não, como
pode alguém conjectuar enviando aos homens algum ministro, anjo ou príncipe, algum daqueles que governam
as coisas terrenas ou dos que têm a seu cargo o cuidado das coisas celestes, e sim mandando o próprio Artífice e
Autor de tudo, aquele por meio de quem criou as coisas e encerrou o mar nos seus limites; a cujos mistérios os
elementos obedecem fielmente; aquele de quem o sol recebeu a medida a seguir; aquele a quem a lua obedece
brilhando durante a noite, e os astros como a lua; no qual todas as coisas foram distribuídas, especificadas e

12
Essa versão mais antiga foi substituída pela outra a partir do século IV por causa do arianismo. Com efeito, Ario, querendo demonstrar que o
Verbo é criatura, apelava para Jo 1, onde ele lia: "O que foi feito nele, era vida. " Ora, para tirar o argumento a Ario, os ortodoxos puseram-se a ler:
"Sem Ele (o Verbo) nada foi feito do que foi feito. Nele estava a vida... "
13
E não "o que foi feito nele era vida"
15 Escola Mater Ecclesiae
subordinadas: o céu e o que nele existe, a terra e o que ela contém, o mar e o que nele se encontra, o fogo, o ar o
abismo, o que está nas alturas, nas profundezas e no espaço intermediário. Foi a esse que Deus enviou.
Mas, pergunto, tê-lo-á mandado para exercer tirania e incutir terror como alguém poderia pensar? De modo
algum. Mandou-o com demência e mansidão. Foi um Rei enviando seu filho Rei, Deus enviando Deus;
mandou-o como homem aos homens. Mandou-o num ato de Salvador agindo pela persuasão, não pela
violência. Enviou-o como quem chama, não como quem persegue, como quem ama, não como quem condena.
Enviá-lo-á futuramente para julgara quem então enfrentará a sua segunda vida...
Realmente, o Senhor é o autor de tudo. Deus, que fez todas as coisas e as dispôs em ordem, não só amou os
homens, mas foi paciente para com eles. Ele sempre foi, é e será benigno e bom, sem ira e veraz. Só ele é bom.
E, tendo concebido um grande e inefável desígnio, só a seu Filho o comunicou. Enquanto mantinha em mistério
e conservava em segredo o seu sábio plano, parecia descuidar-se e desinteressar-se de nós. Quando, porém, o
revelou pelo seu Filho amado e fez aparecerem as coisas que estavam preparadas desde o princípio, no-las
apresentou todas de uma só vez, quer na participação dos seus benefícios, quer na contemplação e inteligência
das mesmas. Quem de nós esperou jamais tais coisas?".

MÓDULO 6: OS SÉCULOS II-IV


Tendo percorrido a fundamentação bíblica do dogma da criação, passamos à história do mesmo, afim de
analisar o desabrochamento do depósito revelado no decorrer dos séculos. Uma primeira etapa será a dos
séculos II-IV , quando se deu o encontro inicial da fé cristã com a filosofia grega.

Lição 1: Pano de Fundo - o Gnosticismo


Como se compreende, os pensadores cristãos dos primeiros séculos procuraram colocar a filosofia grega e
serviço de um entendimento mais profundo da verdade revelada. É certo que nas escolas filosóficas antigas os
Padres da Igreja não encontravam a noção de criação como produção de algo a partir do nada. Esta noção é
realmente difícil ao pensamento humano, já que falta, por completo, ao homem a experiência de criação
propriamente dita. O Demiurgo de Platão († 347 a.C.) terá plasmado o mundo a partir de matéria preexistente .
Aristóteles († 332 a.C.), ao falar da geração do ser humano, diz que a alma entra "pela porta" (thýrathen) - o
que é expressão metafórica e indistinta.
Os sistemas filosóficos posteriores professaram o panteísmo ou o dualismo: a Divindade se identificaria com
tudo e todos (estóicos) ou ela estaria em contraste com o mundo material (neoplatonismo).
Nos séculos II e III expandiu-se o chamado "gnosticismo". Este fundia, numa síntese mal ajustada,
concepções orientais e gregas com noções religiosas do judaísmo. Este sincretismo tomou várias facetas que se
propagaram pelo Ocidente europeu e ameaçaram seriamente a pureza da fé cristã. Uma nota básica dessa
cosmovisão era o dualismo ou uma forte antítese entre o espírito (bom) e a matéria (má). Deste princípio
seguiam-se algumas conclusões: - o mundo material, sendo mau, não foi criado por um Deus bom, mas resulta
de uma queda ocorrida no mundo dos espíritos;
- neste mundo encontra-se o homem, que é uma centelha divina encarcerada, por castigo, na matéria;
- para libertar essa centelha divina, que é propriamente o homem, veio a este mundo (a partir do pléroma,
plenitude, ou do mundo dos espíritos) um Salvador. Este, porém, não assumiu uma corporeidade verdadeira,
mas apenas uma aparência de corpo, que não encobriu a claridade do seu verdadeiro ser espiritual;
- a salvação do homem ou o retorno ao pléroma se faz pela revelação, a cada indivíduo humano, da sua
origem e da sua autêntica natureza: é este conhecimento (gnose) que proporciona ao homem a possibilidade da
salvação. Poucos são aqueles que têm consciência desta sua trajetória ou queda do mundo superior para o
cárcere da matéria;
- entre o pléroma e o mundo material existem intermediários chamados eôns (aiones em grego) ; são
emanações que partem de um Ser Divino e se vão deteriorando ou degradando na medida em que se aproximam
da matéria, que é essencialmente antidivina. Dessas emanações é que resulta o mundo material;
- disto tudo se segue que, se o Novo Testamento cristão conhece um Deus Bom , Salvador dos homens, não
pode ser o Deus do Antigo Testamento, Criador da matéria e justiceiro terrível. Tal é principalmente a posição
de um certo Marcião, o gnóstico que mais se voltou para as Escrituras Sagradas.
A este conjunto de idéias tiveram que se opor os escritores cristãos dos primeiros séculos, entre os quais se
salientou Santo Ireneu de Lião na Gália († 202).
16 Escola Mater Ecclesiae
Lição 2: A Recapitulação segundo S. Ireneu
Santo Ireneu escreveu cinco livros Adversus Haereses (Contra as Heresias), tornando-se assim o campeão
da ortodoxia cristã contra o que ele chamava a pseudo-gnose. Para tanto, utilizou o conceito de recapitulação
(anakephalaíosis) apresentado por São Paulo em Ef 1,9s:
"O Pai deu-nos a conhecer o mistério da sua vontade, conforme decisão prévia que lhe aprouve tomar para
levar o tempo à sua plenitude: a de em Cristo encabeçar (anakephalaiósasthai) todas as coisas, as que estão nos
céus e as que estão na terra".
Com estas palavras São Paulo quer dizer que o Pai houve por bem reunir em Cristo, e sob a autoridade deste,
a humanidade e as demais criaturas, que o pecado deteriorou e corrompeu; encabeçando a todos e a tudo, o
Cristo reconduz as criaturas ao Pai : o mundo visível (na terra) e o mundo invisível (no céu, os anjos) se
encontram assim sob a hegemonia de Cristo. – Santo Ireneu desenvolve tal concepção, que ele sintetiza dizendo
que o Filho de Deus se fez homem "para tornar filhos de Deus os filhos dos homens":
"O Verbo se manifestou, quando o Verbo de Deus se fez homem assemelhando-se ao homem e
assemelhando o homem a si, para que o homem, em virtude de sua semelhança com o Filho, se torne caro ao
Pai. Outrora o homem, por certo, era dito criado à imagem de Deus, mas isto não era manifestado, porque o
Verbo, à cuja imagem o homem fora criado, permanecia ainda invisível. Por isto o homem facilmente esqueceu
a semelhança " (Contra as Heresias V 16,2).
Ireneu concebe o Cristianismo como uma história progressiva ou como uma educação do homem pelo seu
Criador. Este o quer levar, apesar da queda dos primeiros pais e das quedas subseqüentes, até a partilha da
filiação divina que o Filho de Deus, feito carne da nossa carne, veio oferecer-nos. Por conseguinte, há no
desígnio do Criador uma continuidade sem ruptura, que, mediante a obra redentora e apesar dos
desfalecimentos humanos, chega ao termo que o Pai tinha em vista desde o início dos tempos. Com outras
palavras: o Deus Salvador é o próprio Deus Criador; o pecado e a pedagogia divina que o pecado exigiu no
Antigo Testamento, não estão fora nem alheios ao plano salvífico e benevolente do Pai:
"O Senhor e os Apóstolos anunciavam um único Pai que fez a Lei, mandou os Profetas, criou todas as
coisas... Todo homem é sua criatura, por mais que ignore o seu Deus. A todos comunica a existência Aquele
que faz surgir o seu sol sobre os maus e os bons e dá a sua chuva aos justos e aos iníquos (Mt 5,45)" (CH IV
36, 6)
Descontinuidade existe, sim, entre a vida eterna de Deus, que é Pai, Filho e Espírito Santo, uno em sua
Trindade, e a vida do mundo. Este não tem origem em emanações de Deus, mas num ato gratuito do Criador,
que o tirou do nada. Todavia essa descontinuidade não implica dualismo ou antítese entre Criador e criatura,
pois o homem foi feito à imagem e semelhança de Deus e, por Cristo Salvador, deve tornar-se membro do
Corpo de Cristo e templo do Espírito. Aliás, este termo final da história é esboçado no início da mesma, pois o
Pai nos criou por obra do Filho e do Espírito, que são como que as duas mãos do Pai:
"Deus será glorificado na sua criatura, feita em conformidade e segundo o modelo do seu próprio Filho, pois
pelas mãos do Pai, isto é, por meio do Filho e do Espírito, o homem (e não uma parte do homem) se torna
semelhante a Deus" (Contra as Heresias V6, 1). Santo Ireneu reconhece o pecado dos primeiros pais, levados
pelo Maligno à desobediência; o homem assim escapou, por certo tempo, das mãos divinas. Mas a obra de
recuperação começou a se exercer já nos séculos pré-cristãos, pois o Filho vinha a este mundo feito Palavra e
acostumava-se assim a viver com os filhos dos homens, neste exílio onde eles se tinham desgarrado. E, quando
a Virgem Maria disse o seu Sim à encarnação do Verbo (como nova Eva, que resgatava o papel da primeira
Eva)14, foi o Espírito que se acostumou a viver não somente com os filhos dos homens, mas nos filhos dos
homens:
"Deus prometeu derramar o Espírito, nos últimos tempos, sobre os seus servos e as suas servas para que
pudessem profetizar (Jl 3, 1s; At 2,16). Eis por que o Espírito desceu também sobre o Filho de Deus feito Filho
do Homem, acostumando-se, com Ele, a morar nos homens, a repousar nos homens e a conviver com a obra de
Deus, realizando nos homens a vontade do Pai e renovando-os segundo a novidade de Cristo" (Contra as
Heresias III 17, 1).
A íntima correlação existente entre Deus e o homem é expressa por Santo Ireneu de modo enfático nos
seguintes termos:
“A glória de Deus é que o homem viva, mas, para o homem, viver é ver a Deus” (CH IV 20, 7).

14
"O nó da desobediência de Eva foi desatado pela obediência de Maria; aquilo que a virgem Eva atou com a sua incredulidade, Maria o desatou
com a sua fé" (Contra as Heresias III 22, 4).
17 Escola Mater Ecclesiae
Em réplica ao falso espiritualismo gnóstico, que repudiava a matéria, a vida do homem, para Ireneu , é a do
homem todo, corpo e alma,... e do homem situado neste mundo feito por Deus. Conseqüentemente, o efeito do
pecado é a morte - não somente a morte corporal, mas também a morte espiritual.
Ainda combatendo o falso espiritualismo, Ireneu afirma a verdadeira encarnação do Verbo; rejeita assim
todo tipo de docetismo, segundo o qual o Filho de Deus terá assumido um corpo aparente. A fé cristã afirma
que, por mais molesta que seja a carne com suas paixões, Deus Filho se dignou assumi-la sem chegar ao
pecado, porque o homem consta de carne e espírito:
"Como poderia Ele ser crucificado e como poderia ter jorrado do seu lado transpassado sangue e água, se Ele
não tivesse verdadeira carne ou se fosse apenas um homem aparente? Que corpo teriam sepultado os seus
amigos e que teria sido ressuscitado dentre os mortos?" (CH IV 33,2).
"(Tal discípulo) julgará aqueles que dizem ter sido Cristo um homem aparente apenas. Como pretendem
discutir se o seu Mestre não foi mais do que aparência ? Ou como podem obter certeza da parte de quem foi
apenas uma aparência e não uma realidade? Como podem obter verdadeira salvação se aquele em quem dizem
acreditar se manifestou de modo meramente aparente?" (CH IV 33,5).

Lição 3: O Milenarismo de Santo Ireneu


O relativo otimismo de 1ren eu no tocante ao mundo material explica que ele tenha professado o
milenarismo. Este vinha a ser uma teoria, esboçada por escritores judaicos, segundo a qual no fim dos tempos
Satanás será acorrentado, Cristo voltará, os justos (somente os justos) ressuscitarão e reinarão com Cristo sobre
a terra durante mil anos. Haverá então paz e bonança neste mundo; após o quê ressuscitarão os demais homens
e haverá o juízo final. Era neste sentido que Papias (sec. II) e São Justino († 165) interpretavam Ap 20,1-8.
Ireneu compartilha este modo de ver, quando escreve:
“A predita bênção (Gn 27,27-29) se refere certamente à época em que reinarão os justos ressuscitados dentre
os mortos, quando as criaturas, libertadas e renovadas, produzirão copioso alimento em virtude do orvalho do
céu e da fertilidade da terra. Isto pode ser confirmado pelo fato de que os cristãos, que conheceram
pessoalmente João (apóstolo), lembravam ter ouvido dele as palavras do Senhor relativas àquele tempo:’ Dias
virão nos quais brotarão videiras de dez mil ramos cada uma,- cada ramo, por sua vez, terá dez mil ramos e
cada ramo terá dez mil pequenos ramos; cada pequeno ramo dará dez mil cachos; cada cacho terá dez mil
bagos, e cada bago espremido dará vinte e cinco medidas de vinho. E, quando um dos santos colher um cacho,
outro cacho exclamará: 'Eu sou um cacho melhor; toma-me e, por causa de mim, bendize o Senhor’ - Do
mesmo modo um grão de trigo produzirá dez mil espigas e cada espiga terá dez mil grãos, e cada grão dará
vinte e cinco libras de farinha pura. Também os outros frutos, sementes e ervas conhecerão igual fartura. Todos
os animais gozarão dos frutos da terra, serão pacíficos e plenamente sujeitos ao homem'.
Tais coisas são testemunhadas também por Papias, discípulo de João, amigo de Policarpo, homem da
primeira geração, no quadro dos seus cinco livros, e acrescenta: 'Tais predições merecem a fé daqueles que
vêem'. Judas, porém, o traidor que não acreditava, perguntou: 'Como é que o Senhor cumprirá as promessas de
tanta fartura ?'Respondeu-lhe o Senhor: 'Hão de vê-lo aqueles que então estiverem em vida"'(CH V 33,3s).
As palavras atribuídas a Jesus nesta longa secção de Santo Ireneu são o que se chama àgrapha, isto é,
dizeres não escritos nos Evangelhos canônicos. É lícito duvidar de sua autenticidade. As obras de Papias citadas
por Ireneu perderam-se.
O milenarismo ficou em voga entre os escritores cristãos até Santo Agostinho (†430), que deu interpretação
diversa ao texto de Ap 20,1-8. Ver nosso Curso de Escatologia, Módulo 33.

Lição 4: Observação final


A noção de criação não foi fácil a cristãos impregnados de mentalidade platônica ou neoplatônica. Tal foi o
caso de Orígenes de Alexandria (†250). Este escritor viveu numa época em que muitos pontos da Teologia
ainda deviam ser elucidados; a Igreja não se tinha manifestado oficialmente a respeito. Orígenes tentou então
explicar a origem do mundo material recorrendo ao esquema neoplatônico revestido de Cristianismo:
A princípio só existiam seres espirituais, todos iguais entre si, dedicados à contemplação do Logos de Deus.
Enfastiaram-se, porém, com exceção de um só (que devia posteriormente tornar-se a alma de Cristo). Em
conseqüência, foram punidos por Deus, que os obrigou a assumir um corpo material, mais ou menos pesado, de
acordo com a gravidade de sua culpa.
Os menos culpados tornaram-se seres humanos, ao passo que os mais culpados são os anjos maus ou
demônios. Os homens poderão recuperar-se, pois em seu socorro veio a este mundo o Verbo feito carne unido à
18 Escola Mater Ecclesiae
única criatura espiritual que não caiu no pecado; o Salvador se fez guia dos homens, apontando-lhes o caminho
pelo qual poderão libertar-se do corpo mortal e ser integrados no mundo dos espíritos puros. Cf. De Principiis
2,6,3;2,9,6...
Verdade é que Orígenes propôs tais idéias a título de mera hipótese. Todavia vários de seus discípulos, entre
os quais Evágrio Pontico (†399), as tiveram como teses, das quais não duvidavam.
Outros escritores, no século IV principalmente, estudando o mistério da SS. Trindade, viram na segunda
Pessoa a Sabedoria de Deus Pai; nesta estariam contidas todas as idéias exemplares segundo as quais foram
criados o mundo e os homens. Os exemplares dos anjos estariam incluídos nesse conjunto de arquétipos; sendo
espíritos sem corpo, terão sido criados antes dos seres materiais. Eis uma reminiscência do esquema
neoplatônico, que dá preeminência ao espírito sobre a matéria, seguindo aliás a reta escala dos valores.

PERGUNTAS
1) Exponha sumariamente o esquema de pensamento gnóstico.
2) Como Santo Ireneu combateu as heresias?
3) Pode apontar alguma influência do neoplatonismo na literatura cristã antiga?

MÓDULO 7: DO SÉCULO V AO SÉCULO IX

LIÇÃO 1: O Pensamento de S. Agostinho


A filosofia grega, da qual Santo Agostinho foi herdeiro, preocupa-se com o problema: como, a partir do Uno
(Mônada) inicial, se derivaram múltiplos seres? Como, a partir do ser que não pode não ser, se originou o ser
que não era, veio a ser e tornará a não ser? Nenhum pensador não cristão chegou ao conceito de criação; Platão
(t 347 a.C.), por exemplo, no Timeu admitia a figura do Demiurgo, que produz o mundo visível manipulando a
matéria preexistente, amorfa, chamada chóra.

1.1. O Conceito de Criação


Santo Agostinho († 430), inspirado pela mensagem bíblica, propugnou com muita clareza a noção de
criação, ou seja, produção a partir do nada; Deus tudo produziu sem matéria preexistente. Agostinho ilustra sua
afirmação, dizendo que uma realidade pode proceder de outra segundo três modalidades:
a) por geração, segundo a qual o filho deriva da substância dos genitores;
b) por fabricação, segundo a qual o artesão se serve de algo preexistente fora do próprio fabricante;
c) por criação ou a partir do nada absoluto, ou seja, não a partir da substância própria do Criador nem a
partir de alguma substância extrínseca.
O homem pode gerar filhos, fabricar artefatos, mas não pode criar, porque é um ser finito, em cujas
limitações não cabe doar o ser como ser, mas apenas doar ou produzir esta ou aquela modalidade de ser. Na sua
obra A Cidade de Deus, Agostinho explícita nitidamente o conceito de Deus Criador:
“Assim, nós não apenas não chamamos os agricultores criadores de um fruto qualquer (...), mas também não
chamamos de criadora nem mesmo a terra, embora ela pareça a mãe fecunda de todas as coisas (... ) E não
devemos nem mesmo chamar a mãe de criadora de seus próprios filhos(... ). Apenas Deus é criador de tais
criaturas, diversamente concretizadas em sua geração. Somente Deus, a potência oculta que penetra em cada
coisa com sua presença, faz ser tudo aquilo que é de qualquer modo, porque, se ele não o fizesse, não haveria
nem isto nem aquilo,- aliás, nem poderia ser. Por isso, se dizemos que as cidades de Roma e Alexandria não
tiveram por fundadores os pedreiros e arquitetos que lhes deram a forma externa, mas sim Rômulo e Alexandre,
por cuja vontade, conselho e ordem foram construídas, com muito mais razão devemos afirmar que só Deus é
criador das naturezas, já que ele não faz nada senão com a matéria que ele mesmo criou e não tem por artífices
senão aqueles que ele próprio criou. E, no momento em que ele, por assim dizer retirasse das coisas a sua
virtude criadora, elas deixariam de ser assim como não existiam antes que existissem. Mas digo 'antes' na
eternidade, não no tempo”.

1.2. O Tempo
O final do texto acima aborda um particular importante da temática: ao criar o mundo a partir do nada, Deus
deu origem, juntamente com o mundo, ao tempo. Sim; o tempo é a medida do movimento das coisas corpóreas,
e as coisas corpóreas só começaram a existir por um ato do Criador. Antes das coisas corpóreas ou do mundo,
19 Escola Mater Ecclesiae
não havia tempo, não havia nem "antes" nem "depois", mas só havia o eterno, ... o eterno que é um instante
sempre presente, sem distinção de passado e futuro.

1.3. As idéias ou Arquétipos em Deus


Na filosofia de Platão, o Demiurgo fabricou os seres visíveis considerando as idéias exemplares de cada
ser,... idéias que, conforme o filósofo, subsistiriam num mundo superior, só acessível à mente humana. Esta
concepção de idéias exemplares foi assumida e modificada pelos discípulos de Platão: o pensador judeu Filon
de Alexandria († 44 d.C.), por exemplo, admitia essas idéias não como algo subsistente em si, mas como
expressões da sabedoria divina contidas na mente de Deus; como todo artífice, Deus tem em sua mente a idéia
exemplar de cada ser que Ele tira do nada. Santo Agostinho o expõe em sua obra Questões sobre as idéias:
"Quem é que, sendo religioso e formado na verdadeira religião, mesmo que ainda não possa intuir as ldéias,
ousaria negar a sua existência? Ao contrário, afirmará que tudo aquilo que existe, isto é, todas as coisas que têm
seu gênero determinado por uma natureza própria para poderem existir foram criadas por Deus. E por obra sua
vive tudo aquilo que tem vida, toda a conservação do universo, a própria ordem com a qual as coisas mutáveis
seguem o seu curso temporal em uma determinada medida, tudo isso está contido e é governado pelas leis do
Altíssimo. Ora, uma vez que isso está estabelecido e admitido, quem ousaria dizer que Deus criou todas as
coisas irracionalmente? E, como isso não pode ser dito nem crido, conclui-se então que toda coisa foi criada
segundo a razão. Mas seria absurdo pensar que o homem foi criado segundo a mesma razão ou idéia do cavalo.
Portanto, cada coisa foi criada segundo uma razão ou idéia própria. E onde se deve pensar que estejam essas
razões ou ldéias senão na mente do Criador? Com efeito, Deus não podia olhar para algo fora de si para, com
base nesse modelo, criar aquilo que criava: seria um sacrilégio pensá-lo. Ora, se essas razões de todas as coisas
criadas ou por criar estão contidas na mente divina, se na mente divina não pode haver nada que não seja eterno
e imutável e se essas razões fundamentais das coisas são aquilo que Platão chamava de idéias, então não apenas
as ldéias existem, mas também são a verdadeira realidade, porque são eternas e imutáveis e porque tudo aquilo
que existe é pela participação nelas que existe, qualquer que seja o seu modo de ser”.
Como se pode perceber, S. Agostinho usa uma linguagem de fundo platônico para exprimir uma doutrina
genuinamente cristã.

1.4. As Razões Seminais


Santo Agostinho lia em Eclo 18,1: "Deus creavit omnia simul" - o que se podia traduzir por "Deus criou tudo
simultaneamente"15. Para ilustrar esta afirmação, o S. Doutor afirmava que Deus criou todas as coisas
simultaneamente, sim, mas nem todas de forma rematada; terão sido produzidas apenas as "razões seminais" ou
os gérmens ou sementes de muitas criaturas, que, ao longo do tempo, se vão desenvolvendo e aparecem
finalmente em toda a sua pujança; dentro da matéria criada Deus terá colocado as sementes de muitos seres, que
só com o decorrer do tempo se tornam visíveis aos nossos olhos.
Já os estóicos pré-cristãos falavam de razões seminais (logoi spermatikoí), mas em sentido diverso daquilo
que Agostinho tem em vista. O pensamento do mestre cristão se encontra com clareza em seu Comentário
Literal ao Gênesis, como também na obra De Trinitate, donde são extraídas as seguintes passagens:
"É preciso(...) ter presente que, nos vários elementos do nosso mundo, estão ocultas 'sementes' misteriosas de
todas as coisas que nascem material e visivelmente. Com efeito, uma coisa são as sementes dos vegetais e
animais visíveis aos nossos olhos e outra coisa são as sementes misteriosas com que, por ordem do Criador, a
água produziu os primeiros peixes e os primeiros voláteis e a terra os seus primeiros brotos e os primeiros
animais segundo a sua espécie"
"Assim, uma coisa é construir e governar a criação do centro e do cume do centre das causas - coisa própria
e exclusiva do único Criador Deus - e outra coisa é intervir de fora, segundo as forças e os meios por ele
distribuídos, para trazer à luz, neste ou naquele momento, desta ou daquela maneira, aquilo que já está criado.
Sem dúvida, todas as coisas que nós vemos já foram criadas originária e fundamentalmente em uma espécie de
trama dos elementos, mas é preciso a ocasião favorável para que venham à luz. E, assim como as mães ficam
grávidas de sua prole, da mesma forma o mundo inteiro está grávido das causas dos seres que nascem, causas
que são criadas no mundo por aquela Essência suprema sem a qual nada nasce e nada morre, nada começa e
nada acaba".

15
Ver Módulo 4, Lição 2 deste Curso.
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Santo Agostinho exerceu grande influência no pensamento latino dos séculos seguintes; através dele,
algumas concepções platônicas foram transmitidas à Idade Média, na medida em que eram compatíveis com a
fé cristã.
Vejamos como a idéia de criação se desenvolve em autores posteriores.

Lição 2: João Escoto Eriúgena


Este autor do século IX tem dois nomes característicos: Escoto quer dizer irlandês (Irlanda era a Scotia
Maior); Eriúgena significa oriundo da Eire ou da Irlanda.
Deve ter nascido em 810. Foi chamado para a França por Carlos o Calvo por volta de 847 para dirigir a
escola palatina ou a escola do palácio do rei. Escreveu obras originais e traduziu outras do grego para o latim.
Após a morte de Carlos o Calvo em 877, não mais se fala dele, de modo que se julga tenha morrido poucos
anos depois na França.
A sua obra principal é o De Divisione Naturae em cinco livros redigidos sob a forma de diálogo, em que
distingue quatro tipos de natureza: a) a natureza que não é criada e cria; b) a natureza que é criada e cria; c) a
natureza que é criada e não cria; d) a natureza que não é criada e não cria. Examinemos sucessivamente estas
modalidades:
a) Natureza não criada, que cria. Tal é Deus, incriado e Criador de todas as coisas. Perfeitíssimo, Deus
está acima de todos os conceitos que dele se possam formar: é supra-bondade, supra-potência, supra-vida...
b) Natureza que é criada e cria: São os exemplares ou arquétipos de todas as criaturas contidas no Logos
ou na Sabedoria de Deus. Tudo que foi criado, imita seu respectivo exemplar. Vistas desta maneira, as criaturas
são eternas, como eternos são os seus arquétipos: "Tudo aquilo que está nele, permanece sempre e é vida
eterna". As criaturas, postas no espaço e no tempo, são inferiores, menos perfeitas e verdadeiras do que os
respectivos modelos ou arquétipos, pois são sujeitas à mutabilidade e caducidade.
Escoto Erúgena afirma que os arquétipos não são apenas causas exemplares, mas são também causas
eficientes criadoras por ação do Espírito Santo; Este faz sair dos eternos exemplares as coisas irracionais e os
indivíduos humanos; Ele é a "causa da divisão, multiplicação e distribuição de todas as causas em efeitos
gerais, especiais e próprios, segundo a natureza e segundo a graça." - Esta proposição tem uma nota de
panteísmo, pois não professa a criação propriamente dita, mas uma certa evolução da substância divina que se
exprime nas criaturas e à qual as criaturas devem retornar no fim dos tempos.
c) Natureza que é criada e não cria. É o mundo criado no espaço e no tempo, que não cria outras coisas. O
mundo é tido como a manifestação ou teofania de Deus. O ápice do mundo visível é o homem, chamado a
resumir o mundo e reconduzi-lo a Deus; com efeito, o homem participa tanto do mundo material como do
espiritual. A parte principal do homem é a alma, da qual o corpo é instrumento,... instrumento desfigurado e
tornado mortal pelo pecado original, deverá vencer a morte mediante a ressurreição. Tem sabor platônico a
sentença "O corpo é nosso, mas não é nós".
d) Natureza que não é criada e não cria. É Deus como termo final de toda a história das criaturas. Todas
voltarão à amizade com o Criador, pois o inferno não será algo de definitivo. O tempo intermediário entre a
origem e o retorno das criaturas é caracterizado pelo trabalho do homem para reconduzir tudo a Deus, imitando
o Filho de Deus feito homem, que, pela sua encarnação, recapitulou em si o universo e mostrou o caminho de
retorno ao Pai.
O retorno se dará em quatro etapas: a dissolução do corpo nos quatro elementos básicos (água, terra, fogo,
ar), a ressurreição do corpo glorioso, a dissolução do homem corpóreo no espírito e nos arquétipos primordiais;
por fim, a natureza humana se moverá em Deus como o ar na luz. Então Deus será tudo em cada coisa, e não
haverá nada além de Deus. Isto não implicará dissolução das individualidades, mas a conservação das mesmas
da forma mais elevada possível; como o ar não perde sua identidade quando penetrado pela luz e o ferro não
deixa de ser ferro quando se funde ao fogo, do mesmo modo todas as criaturas serão assimiladas por Deus sem
perder a sua individualidade. Numa frase: " Em si mesmo incompreensível, Deus será, de algum modo,
compreendido na criatura, e esta, por milagre inefável, se converterá em Deus."
Como se vê, João Escoto Eriúgena professou doutrinas muito ousadas, que não foram (nem podiam ser)
sustentadas pelos autores posteriores. Não obstante, ele se destaca como alguém que procurou fazer uma síntese
do pensamento cristão: é uma síntese ainda muito marcada pelo pensamento platônico e neoplatônico, na qual a
fé e a filosofia nem sempre se coordenam harmoniosamente. - Outros ensaios posteriores haveriam de ser mais
felizes.
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PERGUNTAS
1) Como Santo Agostinho conceitua a criação?
2) Que função atribui ele às idéias exemplares ?
3) Que são as razões seminais, conforme Santo Agostinho?
4) Procure sintetizar o pensamento de João Escoto Eriúgena.
5) Como avaliar tal modo de pensar? Que influências sofreu?

MÓDULO 8: IDADE MÉDIA E IDADE MODERNA

Lição 1: Averróis - a Eternidade do Mundo


Após João Escoto Eriúgena (sec. IX nada de importante há que registrar na história do dogma da criação até
o século XII, quando foi levantada a questão da eternidade do mundo.
Esta temática começou a ser discutida no âmbito dos filósofos árabes que se dedicaram à tradução e ao
comentário das obras do filósofo grego Aristóteles († 322 a.C.). Sejam mencionados Avicena († 1037) e
Averróis († 1198).
Avicena era um pensador persa muçulmano, o primeiro que apresentou aos filósofos latinos medievais a
filosofia de Aristóteles sistematicamente entendida. Aristóteles era, pelos cristãos, pouco estimado, pois parecia
ser o fomento de heresias; desde Santo Agostinho, os autores cristãos recorriam de preferência a Platão († 347
a.C.), para ilustrar as verdades da fé. - O Aristóteles que Avicena apresentou aos cristãos, não causou espécie
nem resistência da parte destes, pois foi interpretado segundo teses do neoplatonismo e da religião islâmica
(que é monoteísta e, em certos pontos, se aproxima do Cristianismo).
Mais revolucionária seria a obra de Averróis, muçulmano nascido em Córdoba (Espanha) no ano de 1126.
Foi jurista, médico e, principalmente, um grande comentador de Aristóteles, que ele estimava como mestre
insuperável: "A doutrina de Aristóteles coincide com a suprema verdade", escrevia Averróis.
Interpretando Aristóteles sem mescla de outros sistemas filosóficos, Averróis professou a eternidade do
mundo, visto que este é movido pelo primeiro motor, que é eterno. Ensinou também a unicidade do intelecto
humano . Se o intelecto fosse individual, seria incapaz de atingir verdades universais e não conseguiria elaborar
um sistema de saber coerente. Por conseguinte, o intelecto é único para toda a humanidade, não mesclado com
a matéria.
Tal maneira de entender Aristóteles suscitou calorosa reação da parte dos pensadores cristãos, de modo que a
Universidade de Paris condenou a Metafísica e outras obras naturales (de Filosofia da Natureza) de Aristóteles.
Também a filosofia judaica, representada por Moisés Maimônides (1135-1204), repeliu, ao menos em parte,
o pensamento de Averróis: o mundo não é eterno, pois nenhum argumento o prova; ademais a Bíblia propõe a
criação do mundo. O mundo também não é necessário, pois, ao afirmá-lo, estaríamos negando a liberdade de
Deus.
Santo Tomás de Aquino († 1274) poria o termo final às falsas interpretações de Aristóteles, desenvolvendo
um sistema que, utilizando quanto haja de válido no pensador grego, representaria autenticamente a filosofia
cristã. O pensamento de Santo Tomás voltará a ser mencionado na explanação sistemática ou no Módulo 11 do
nosso Tratado.
Passemos agora aos séculos XVI / XVII.

Lição 2: Copérnico e Galileu - heliocentrismo


Estes dois cientistas revolucionaram a astronomia e a cosmologia, repercutindo na própria teologia de sua
época.
Nicolau Copérnico (1473-1543) aventou, por primeiro, a hipótese de que a Terra não ocupa o centro do
universo, mas, ao contrário, gira em torno do sol. Esta teoria implicava que o homem não habita o lugar central
do cosmos, mas vive num planeta subsidiário; a própria Encarnação do Verbo não se terá dado no centro do
universo. Para os pensadores cristãos da época, isto era um tanto desconcertante. Verdade é que as novas idéias
propostas por Copérnico não tiveram a repercussão que podiam ter. Todavia prepararam o caminho para a tese
de Galileu Galilei, que, no século seguinte, provocou grande celeuma.
Galileu Galilei (1564-1642) aderiu, já antes de 1597, à tese heliocêntrica de Copérnico. Em 1610 publicou a
obra Sidereus Nuntius, que lhe foi ocasionando dificuldades; estas só aumentaram após as quatro Cartas
Copernicanas, escritas entre 1613 e 1615. Acusado de heresia, porque contrariava o geocentrismo (que a
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Escritura Sagrada parecia defender), foi processado em Roma em 1616; donde resultou a proibição de propor,
por palavras ou por escrito, o heliocentrismo. - Galileu, porém, continuou a defender suas idéias sob o papado
de Urbano VIII, que , como Cardeal, lhe havia sido favorável. Escreveu o Diálogo sobre os dois máximos
Sistemas do Mundo, o que lhe valeu novo processo e a condenação em 1633. O sábio morreu na paz de Deus e
no seio da Igreja em 1642.
O choque entre Galileu e as autoridades da Igreja era devido à interpretação de certos textos bíblicos, que
parecem favorecer o geocentrismo: assim o Eclesiastes afirma que "a Terra permanece para sempre (no seu
lugar)" e que "o Sol se levanta, o Sol se deita, apressando-se a voltar ao seu lugar' (1,4s); em Josué lo,12s lê-se
que Josué mandou "parar o Sol". Na base desses textos, não só pensadores católicos, mas também pregadores
protestantes se opuseram à terra heliocêntrica.
Num de seus Discursos Proferidos à Mesa, Lutero, como parece, afirmou (1539): 'As pessoas deram
ouvidos a um astrólogo de dois vinténs, que procurou demonstrar que é a Terra que gira, e não os céus e o
firmamento, o Sol e a Lua... Esse insensato pretende subverter toda a ciência astronômica. Mas a Sagrada
Escritura nos diz que Josué ordenou ao Sol - e não à Terra - que se detivesse ".
Calvino, no seu Comentário ao Gênesis, cita o versículo inicial do Salmo 93, que diz: "Sim, o mundo está
firme, jamais tremerá", e pergunta: "Quem terá a ousadia de antepor a autoridade de Copérnico à do Espírito
Santo?"
Melanchton, discípulo de Lutero, escrevia por sua vez:
"Os olhos nos testemunham que os céus efetuam uma revolução ao longo de vinte e quatro horas. Mas certos
homens, por amor às novidades ou então para dar provas de genialidade, estabeleceram que a Terra se move e
afirmam que tanto a oitava esfera como o Sol não giram... Pois bem; é uma falta de honestidade e de dignidade
sustentar publicamente tais conceitos. E o exemplo é perigoso. É tarefa de toda mente sã aceitara verdade como
ela foi revelada por Deus e a ela submeter-se"
Galileu respondia aos seus opositores:
"Os autores das Sagradas Escrituras não pretenderam ensinar-nos a constituição e os movimentos dos céus e
das estrelas, com suas figuras, grandezas e distâncias..."
"Se os escritores sagrados houvessem pensado em persuadir o povo das disposições e dos movimentos dos
corpos celestes e se, conseqüentemente, nós devêssemos ainda ter essa informação das Sagradas Escrituras,
então, ao meu ver eles não teriam tratado tão pouco do assunto; quase nada disseram em comparação com as
infinitas e admiráveis conclusões contidas e demonstradas em tal ciência".
Galileu esboçava assim um princípio de exegese que havia de se tornar comumente aceito pela Igreja, mas
que na sua época parecia tão revolucionário que dificilmente encontrou acolhida. Doutro lado, os argumentos
heliocêntricos de Galileu ainda eram um tanto frágeis, e, por isto, insuficientes para vencer a resistência de uma
exegese multissecular. O S. Padre João Paulo II em 31/10/1992 reconheceu as razões de Galileu e a falha do
Santo Ofício, que, aliás, não compromete a infalibilidade da Igreja (Já que esta só se exerce em questões de fé e
de Moral, e não no setor das ciências naturais).

Lição 3: Leibniz - o melhor mundo possível


Gottfried Wilhelm Leibniz nasceu em 1646 em Lípsia (Alemanha) e faleceu em 1716. Foi cientista e
filósofo, que muito se preocupou com a organização deste mundo material, professando teorias próprias, como
a das mônadas, a da harmonia preestabelecida e - o que mais nos interessa - a tese de que este mundo é o
melhor possível. Vejamos como propõe tal doutrina.
Duas questões se levantam no pensamento de Leibniz: 1) Por que existe algo em vez do nada? e 2) Por que o
que existe é assim e não diferente?
À primeira questão o filósofo responde que a existência deste mundo, composto de criaturas contingentes,
não pode ser devida a uma causa contingente, pois toda causa contingente (que não tem em si mesma a razão de
sua existência) exige uma causa ulterior que a explique, até se chegar à Causa Absoluta e Necessária, que é
Deus. Este é a última e suprema razão de tudo o que existe. À segunda pergunta responde Leibniz apelando
para a perfeição de Deus. O Criador podia criar mundos diversos; se criou o que nós conhecemos, Ele o fez
porque era e é o melhor mundo possível. São palavras do filósofo:
"Da perfeição suprema de Deus segue-se que, produzindo o universo, Ele escolheu o melhor plano possível,
no qual há a maior variedade unida à máxima ordem, na qual o terreno, o lugar e o tempo são os mais bem
preparados, no qual o efeito é obtido com os meios mais simples e as criaturas têm a maior potência,
conhecimento, felicidade e bondade que o universo podia permitir. Com efeito; como todos os seres possíveis
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almejam a existência no intelecto de Deus, o resultado de todas essas pretensões deve ser o mais perfeito
mundo concreto possível. Sem isto, não se poderia explicar por que as coisas são assim e não diferentes."
A posição de Leibniz suscitou objeções por parte dos pensadores cristãos. Assim, por exemplo, indaga-se:
Deus foi livre para escolher o mundo que conhecemos, ou tinha necessariamente que escolher este nosso
mundo, tido como o melhor possível? - Leibniz responde que não se trata de necessidade metafísica em Deus,
pois isto redundaria em negar a liberdade de Deus, mas, sim, de necessidade moral: Deus podia escolher
outros tipos de mundo, mas não o quis, porque eram inferiores ao nosso mundo. Este, que realiza a máxima
perfeição possível, é que devia ser o objeto digno da escolha divina.
Restava a Leibniz explicar a existência dos males neste melhor mundo possível. Ele o faz distinguindo, na
sua Teodicéia16, três tipos de mal;
- o mal metafísico, que coincide com a finitude ou as limitações das criaturas 17. Este tipo de mal é inerente a
toda criatura, e só não existe em Deus, que é infinitamente perfeito;
- o mal físico. Este tem seu papel providencial no mundo: ou é pena devida ao pecado, ou é meio para se
atingir uma final idade positiva: "A pena serve para a correção e o exemplo. Freqüentemente o mal serve para
se apreciar melhor o bem e, algumas vezes, contribui para maior perfeição daquele que o padeça, como o grão
que é semeado se sujeita a uma espécie de deterioração para germinar; esta é uma bela comparação, da qual o
próprio Jesus Cristo se serviu";
- o mal moral, que é o pecado, decorrente do abuso da liberdade do homem. Apesar de haver neste mundo o
pecado desencadeado pelo primeiro Adão, o mundo atual ainda é o melhor ,se comparado com outros tipos de
mundo possíveis;
Tal é o otimismo leibniziano, objeto de vivas discussões e polêmicas durante o século XVIII. Na verdade, o
conceito de o melhor mundo possível é ilógico, pois, sendo o mundo composto de criaturas finitas em suas
perfeições, sempre será possível acrescentar um pouco mais de perfeição a este mundo e nunca se atingirá a
perfeição em grau superlativo ou a perfeição que não possa ser aumentada ou intensificada. Nicolas
Malebranche (1638-1715) também afirmava que Deus, sendo perfeito, só pode ter criado o melhor mundo
possível. Ver a propósito ainda Módulo 11 , Lição 4.
Prossigamos a história.

Lição 4: Panteísmo, Idealismo, Positivismo


No século XVll1, Baruch Spinoza (1632-1677) professou uma concepção filosófica não cristã, que perdurou
até o século XIX. Não foi assumida por teólogos católicos, mas tornou-se um sistema diante do qual a teologia
católica teve que tomar posição. Trata-se do monismo panteísta. Para Spinoza, Deus é a única substância
existente: "Tudo o que existe, existe em Deus". "Tudo o que acontece, acontece unicamente pelas leis da
natureza infinita de Deus e decorre da necessidade de sua essência". O mundo é a conseqüência necessária de
Deus. Este pode ser chamado natura naturans e o mundo natura naturata. Natura naturans é a causa, ao
passo que a natura naturata é o efeito daquela causa, efeito , porém, que não está fora da causa; o objeto é
imanente à causa e vice-versa, com base no princípio de que "tudo está em Deus".
Immanuel Kant (1724-1804), filósofo alemão, afirmava que o Deus Criador não pode ser atingido pela
razão teórica, mas julgava que a razão prática o postula como fundamento da ordem moral. Os seus
continuadores Johann Gottlieb Fichte (1762-1814), Friedrich Wilhelm Joseph Schilling (1775-1854) e
Georg Wilhelm Friedrich Hegel (1770-1831) desenvolveram o idealismo de Kant e chegaram a nova forma
de panteísmo. Eis um espécimen destas idéias extraído das obras de Fichte:
"Não há absolutamente nenhum ser e nenhuma vida fora da vida mediata divina. Esse ser é encerrado e
obscurecido de vários modos na consciência, com base em leis próprias, indestrutíveis e fundadas na essência
da própria consciência. Mas, liberto desses invólucros e modificado somente pela forma do infinito, reaparece
na vida e nas ações do homem dedicado a Deus. Nessas ações, não é o homem que age, e sim o próprio Deus,
no seu ser íntimo e originário e em sua essência, que age no homem e realiza a sua obra por meio dele".
Augusto Comte (1798-1875) é o fundador do positivismo, que rejeita a Teologia e a Metafísica, para se ater
às ciências experimentais. Portanto não fala de criação do mundo. Todavia fundou a "religião da humanidade",
com sua trindade: a Humanidade é o Grande Ser; o espaço é o Grande Ambiente e a terra o Grande Fetiche.

16
O nome Teodicéia vem do grego théos (= Deus) e dike (=justiça). Significa justificar Deus ou ressaltar a bondade, a santidade e a onipotência de
Deus frente aos males que afligem este mundo. A expressão foi criada por Leibniz em 1710 para designar o seu tratado de otimismo a respeito deste
mundo.
17
Dizemos que as limitações das criaturas não são necessariamente um mal. Assim o fato de que a pedra não tem olhos não é um mal; o fato de que
o homem não tem asas, não é um mal. O mal é sempre a ausência ou a carência de um bem devido, pertencente à natureza de tal ou tal criatura;
assim a falta de olhos no homem, a falta de asas no pássaro.
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O positivismo exerceu influência no cultivo das ciências naturais nos séculos XIX e XX: muitos dos seus
autores se têm revelado indiferentes às questões metafísicas e religiosas. O fascínio das descobertas científicas
levou vários cientistas a crer que poderiam dispensar a noção de Deus. A evolução da matéria, a multiplicação
das espécies de viventes pareciam explicáveis pelas virtualidades mesmas da matéria. Todavia este
cientificismo cede hoje a posições diversas. Com efeito; o próprio progresso das ciências induz os estudiosos
mais a mais a reconhecer a existência de um Ser Supremo, responsável pela ordem e a beleza do universo
(macrocosmos e microcosmos).
Aliás, a reação ao cientificismo teve um expoente notável fora do Catolicismo na pessoa do pensador judeu
Henri Bergson (1859-1941), que defendeu a tese da evolução criadora: a vida, segundo Bergson, é evolução
criadora, é criação, livre e imprevisível, de formas contínuas, que se diversificam como os feixes de um leque.
Enquanto as escolas não católicas dos séculos XIX e XX se afirmavam nos termos acima, a Teologia
Católica recebeu novo impulso da parte do Papa Leão XIII, que promoveu a renovação da Escolástica e do
Tomismo; o século XX foi um período de volta às fontes bíblicas e patrísticas, onde os estudiosos encontraram
fecunda inspiração para aprofundadas pesquisas.

PERGUNTAS
1) Como via Averróis a duração do mundo?
2) Como julgara condenação de Galileu por parte do S. Ofício?
3) Pode-se conceber "o melhor mundo possível?"
4) Como se apresentou o panteísmo dos séculos XVII - XIX?
5) Em que consiste o positivismo filosófico?

MÓDULO 9: TEILHARD DE CHARDIN - O FENÓMENO HU'ÍÍÉ


Completando nosso estudo de história do dogma da criação, consideramos um autor que em meados do
século XX suscitou grande interesse, mas atualmente está relegado ao quase-esquecimento. Trata-se do Pe.
Pierre Teilhard de Chardin S.J. (1881-1955). Dada a importância que teve, segue-se o seu pensamento
acompanhado de comentários.

Lição 1: Teilhard - biografia e pensamento


1.1 Biografia
Pedro Teilhard de Chardin nasceu em 1881 em Orcine (França). Entrou na Companhia de Jesus, onde foi
ordenado sacerdote. Manifestando sempre grande pendão para as ciências naturais, dedicou-se à Mineralogia, à
Geologia e ao estudo dos fósseis, em vista do quê viajou pelo Egito e a Inglaterra entre 1901 e 1912. De 1912 a
1923 entregou-se em Paris a pesquisas de Zoologia e Paleontologia. A mor parte dos seus trinta anos
subseqüentes, o Pe. Teilhard a passou no Extremo-Oriente, principalmente na China, tendo sido de 1929 a 1937
o Diretor das buscas que levaram à descoberta do famoso fóssil Sinantropo em Choukoutien, perto de Pequim;
foi este o mais vultoso título de glória na carreira de Teilhard de Chardin.
Dotado de reconhecida competência, o sábio sacerdote foi sucessivamente nomeado Presidente da Secção de
Geologia do Instituto Católico de Paris, Conselheiro do Serviço Nacional de Geologia da China, Diretor do
Laboratório de Geologia aplicada ao Homem e da Escola Prática "des Hautes-Études" de Paris, Diretor do
Instituto de França a título de acadêmico cientista. Terminou repentinamente sua carreira terrestre em Nova
Iorque aos 10 de abril de 1955.
O Pe. Teilhard de Chardin foi Religioso fiel à sua vocação; teve um espírito profundamente sacerdotal, como
atestam as suas notas íntimas. Contudo o seu nome de cientista e pensador é controvertido, dada a índole muito
pessoal de seu espírito, que, fazendo uso de particular dom de perspicácia, sempre procurou visões grandiosas e
horizontes largos; neste afã chegou por vezes a perder o contato com ensinamentos comprovados, arvorando
teorias de certo modo inovadoras. Tal trabalho valeu ao sábio Religioso a admiração de muitos, a quem
Teilhard de Chardin apareceu como autêntico elo entre a Ciência e a Fé, ao passo que outros o têm na conta de
suspeito. Fato digno de nota, nessa controvérsia, é que Chardin nunca mandou imprimir seus escritos, mas
apenas os distribuiu mimeografados - o que é possível indício da consciência que terá tido, de ainda não haver
chegado (mesmo nos seus últimos dias) à plena maturidade de suas reflexões.
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O livro mais famoso do cientista foi publicado por uma dupla comissão de seus amigos da Europa e da
América, após a morte de Teilhard de Chardin, com o título "Le Phénomène Humain", Paris, Ed. du Seuil
1955.A maior parte da obra foi escrita em Pequim de 1938 a1940; as últimas páginas, porém, trazem a data de
28 de outubro de 1948 em Roma. Pergunta-se se o Padre teria publicado o livro tal como hoje se acha. Há quem
diga que não e que Chardin, guardando-o inédito durante oito anos, se aprestava a completá-lo, mitigando
algumas de suas afirmações mais avançadas. O fato é que a obra fez sucesso extraordinário, atingindo em
poucos meses a venda de vinte mil exemplares. O seu estilo se desdobra por vezes belo e grandioso, dilatando a
visão do leitor; tem algo de poético ou de "profético"; a leitura, porém, não é sempre fácil, pois o autor emprega
vocabulário muito pessoal, criando seus neologismos ("cerebralização, cefalização, hominização, grãos de
consciência ou de pensamento").

1.2. O Pensamento de Teilhard


Qual seria, pois, o sistema de Teilhard de Chardin? O escritor parte de um princípio básico: a evolução é um
fato universal, ao qual nenhum ser criado escapa; ela tem início na matéria corpuscular, atinge o homem e passa
além...
Aqui seria importante observar que a doutrina católica não se opõe ao evolucionismo, contanto que este
admita duas ações de Deus criadoras: a primeira, para produzir a matéria inicial, em estado talvez caótico,
dotada, porém, das leis de sua evolução futura; a segunda se terá dado quando a matéria, desenvolvendo-se
paulatinamente, atingiu o grau de complexidade de um corpo humano; terá sido então que o Criador tirou do
nada e infundiu à matéria a alma humana, espiritual; esta não se origina por evolução, mas por direta criação de
Deus. Feitas estas duas ressalvas, a fé cristã nada tem que objetar ao evolucionismo.
Ora o Pe. de Chardin, pressupondo dois elementos fundamentais ( a matéria corpuscular e a energia), foi
acompanhando a ascensão dos mesmos na escala dos seres, ascensão que, conforme Chardin, se faz mediante a
tomada de estruturas cada vez mais complexas. O autor dá a essa evolução os nomes de "cefalização" e
"cerebralização", pois, na verdade, quanto mais complexos são o sistema nervoso e o cérebro de um ser vivo,
tanto mais perfeito e elevado ele é na escala dos viventes. Tal terminologia pressupõe que não há hiato entre os
seres inanimados e os animados, mas que a matéria anorgânica já contém em gérmen a vida (Chardin diria
mesmo: contém a consciência), a qual, para se manifestar, só espera que seu sujeito adquira estrutura mais rica
e complexa: "Na superfície há fibras e gânglios; na profundidade há a consciência" (Phénomène, pág.159). É,
pois, o agrupamento de elementos cada vez mais numerosos e organizados que produz a passagem do átomo ao
estado de molécula inanimada, de célula viva, de cérebro do irracional e de cérebro humano. Surgem assim
sucessivamente a Geosfera, a Biosfera e a Antroposfera, grau de evolução, este último, em que ora nos
achamos. Eis, porém, que neste ponto o Pe. Teilhard ousa propor uma visão profética do futuro: a evolução
continuará, pois também os cérebros humanos tendem a se coordenar entre si "n uma coletividade harmonizada
de consciências equivalente a uma espécie de Super-consciência. A Terra não somente se recobrirá de miríades
de grãos de pensamento, mas também se envolverá num só grande envoltório pensante, até não formar
funcionalmente senão um só vasto Grão de Pensamento, na escala sideral. A pluralidade das reflexões
individuais se agrupará e se reforçará no ato de uma só Reflexão unânime" (Phénomène, pág.179).
Chegaremos assim, à Noosfera ou à esfera do Espírito.
Por conseguinte, o universo procede de um ponto de partida único, o qual se ramifica em diversos raios de
seres; estes, porém, à semelhança dos meridianos de uma esfera, tendem para um ponto supremo de
convergência, que Chardin chama "o ponto Ômega, o Polo do Universo"; nesse ponto se encontra Deus, centro
universal de unificação, no qual cada espírito repousa. Este Centro Supremo é , e conserva-se, distinto dos
indivíduos humanos que para ele confluem, não lhes absorvendo a personalidade. Ao contrário, quanto mais
cada consciência individual se coaduna com as demais no ponto Ômega, tanto mais também encontra a si
mesma com a sua face própria, passando por uma espécie de super-personalização. Com esta observação, quer
o autor diferenciar-se de qualquer tipo de pensamento panteísta, que afirme o culto de um Grande Todo no qual
os indivíduos se perderão como uma gota de água no oceano. - Não seria fácil dizer o que exatamente entendia
o Pe. Teilhard de Chardin nessa sua visão profética.

Lição 2: Que dizer?


Não tendo a intenção de fazer uma crítica exaustiva das idéias de Teilhard, aqui tentaremos apenas
manifestar algumas lacunas do pensamento de Teilhard, passando das mais gerais às particulares.
26 Escola Mater Ecclesiae
2.1. Ambigüidade
Teilhard emprega um modo de falar muito pessoal, em que são freqüentes os neologismos. Eis como o
comenta J. Piveteau, Professor da Sorbona de Paris:
"Na noosfera o imenso esforço de cerebralização, que começou quando a terra era juvenil, vai consumar-se
em demanda da organização coletiva ou socialização. Não há dúvida, nesta última parte de sua obra o Pe.
Teilhard de Chardin parece cumprir a tarefa de um filósofo mais que a de um homem de ciência; muitos dos
que admiraram o paleontologista na sua interpretação do mundo dos viventes, terão dificuldades para seguir o
autor nas suas descrições do porvir" (Prefácio à obra de Teilhard de Chardin, Le groupe zoologique humain).
Para concluir a sua síntese, o autor menciona também a Encarnação do Verbo no movimento geral da
evolução: para atrair a humanidade à divinização, Deus imergiu parcialmente nas coisas deste mundo , tomando
a chefia da evolução humana. É em função de Cristo, o Verbo Encarnado, que tudo e todos se desenvolvem; é
em Cristo que a evolução encontra acabamento perfeito, de modo que o fenômeno humano é também o
fenômeno cristão (título este dado ao epílogo do livro "Le Phénomène humain"). Todavia à intervenção de
Cristo no mundo, conforme Chardin, parece tocar apenas o papel de animar com novo impulso a ascensão das
consciências; o autor não fala da missão de Redentor, Restaurador, que coube a Jesus pelo derramamento de
seu sangue (embora não a tenha negado em absoluto).
Eis, compendiosamente exposta, a concepção evolucionista do Pe. Teilhard de Chardin; muitas vezes torna-
se difícil perceber o que o autor quer dizer. Para superar tal obstáculo, foi confeccionado um dicionário em que
os termos peculiares de Chardin são explanados.
Os comentadores do jesuíta francês, ao expor o pensamento teilhardiano, são freqüentemente obrigados a
fazer distinções e subdistinções a fim de transmitir sem erros ou equívocos o que o mestre tencionava propor.
Nem sempre, porém, conseguem exprimir-se com clareza; algumas vezes parecem dizer e não dizer ao mesmo
tempo, ou propõem idéias sob forma interrogativa. O próprio Teilhard, por natureza, não era um espírito
filosófico, cioso de precisão; era muito mais tendente a traçar grandes linhas, deixando a seus ouvintes ou
leitores a tarefa de burilar, colorir ou mesmo cortar arestas.
Há ainda outro fator que, em certos casos, torna árdua a compreensão do pensamento teilhardiano. Com
efeito, o autor, no decorrer dos anos, parece ter hesitado em suas afirmações, pendendo ora para uma, ora para
outra solução diante do mesmo problema. Tem-se dito - e com muita probabilidade - que nem no fim da vida
chegou à plenitude de evolução das suas idéias;
Teilhard não publicou, como tais, as obras que, após a sua morte, foram editadas por seus discípulos; tais
obras são, em parte, coletâneas de artigos, apostilas ou cartas do autor. Tem-se a impressão de que, ao morrer,
Teilhard ainda estava tentando esboçar uma grande visão científico-religiosa.
Tais circunstâncias explicam que, não raro, se possam interpretar de maneiras diversas ou até contraditórias
as sentenças do mestre: há quem lhe queira atribuir panteísmo, monismo, materialismo, enquanto outros o
consideram um dos mais genuínos autores de mística cristã em nosso século.
Um dos espécimens mais flagrantes da ambigüidade teilhardiana é talvez a seguinte frase:

"COSMOGÊNESE => BIOGÊNESE => NOOGÊNESE => CRISTOGÊNESE" (sentença escrita por
Teilhard em seu "Diário", três dias antes de sua morte).
Seria Cristo um produto do cosmos ou da matéria inanimada? Haveria paralelismo entre o aparecimento da
vida (biogênese) e o aparecimento de Cristo (Cristogênese) na história? - Certamente não é isto o que o
Religioso (sempre fiel à sua fé cristã) quis dizer. Contudo não se pode negar o perigo de mal-entendidos nessa
passagem.
Os vocábulos "cefalização, cerebralização, enervamento", vocábulos-chaves dos escritos de Teilhard,
prestam-se igualmente a não pouca confusão.

2.2. Otimismo Exagerado


Teilhard acentua tão fortemente a ascensão ordenada das criaturas para Deus que os males e as desordens
neste mundo parecem ter importância secundária. Principalmente o mal moral ou o pecado não é
suficientemente levado em conta. Dir-se-ia que o autor o assemelha a um erro de máquina; seria algo de
necessário ou subentendido na história do gênero humano... Com efeito, Teilhard observa que na natureza a
plena evolução de uma estirpe (vegetal ou animal) só se dá mediante a involução e a ruína de muitas outras;
paralelamente, sugere ele, para que o gênero humano chegue à consumação em Cristo, é "quase normal" que, na
caminhada ascensional dos homens, se registrem numerosas falhas físicas e morais.
27 Escola Mater Ecclesiae
Segundo Teilhard, o gênero humano se aproxima cada vez mais de uma era de completa socialização,
cooperação e unidade entre os povos e os indivíduos... Ora não se vê como tal concepção corresponda à visão
cristã da história. Na verdade, a Sagrada Escritura ensina que, no início dos tempos, houve uma culpa, a qual
desagregou os homens, tornando-os sujeitos a lutas de consciência e fazendo que as nações se digladiem
mutuamente. Cristo veio remir os homens assim subjugados ao pecado, chamando-os para um só Reino, Reino
de caridade sobrenatural. Este Reino, porém, que já começou sua ação neste mundo, não trará a plenitude de
harmonia e entendimento entre os homens senão depois de atravessar duros conflitos e perseguições no fim dos
tempos; quanto mais se aproxima a consumação da história, tanto mais claramente se delineiam as duas
facções, a dos bons e a dos maus respectivamente, ou a Cidade de Deus e a Cidade do Diabo; na consumação
dos séculos o dualismo e as discórdias chegarão ao auge, sendo então o Anticristo (indivíduo ou coletividade) o
grande promotor da luta fratricida.
Perguntar-se-ia ainda: que lugar ocupa na síntese de Teilhard a ascese, ou seja, o dever que ao homem
incumbe, de se purificar de suas más tendências, de vencer a natureza (ou o velho homem, segundo São Paulo),
afim de poder atingir a perfeição e a união com Deus? Que significado têm os mandamentos de Deus e a lei
moral no teilhardismo?
Não será que este sistema identifica de certo modo os deveres da consciência com a necessidade que as
peças de uma máquina têm de se engrenar nas leis de funcionamento dessa máquina? Teilhard, por certo, não
queria negar a ascese, que todos os sábios e místicos (cristãos e não-cristãos) tanto exaltam; mas as suas
premissas tendem a desvirtuar tal prática. O cristão não é dualista nem pessimista em relação à matéria, mas
conhece por sua fé o grande desastre dos primeiros pais.
Muito provavelmente Teilhard foi levado a empalidecer o alcance do pecado neste mundo, por efeito da sua
intenção apologética. O jesuíta francês desejava tornar o Cristianismo muito acessível ao pensamento dos não-
cristãos; estes, como se sabe, não aceitam facilmente a noção do "pecado-culpa moral do homem frente a
Deus"; em conseqüência, pecado e ascese são exageradamente silenciados no teilhardismo.
Pode-se dizer ulteriormente que o otimismo de Teilhard é portador de certo

2.3. Naturalismo
As explanações do cientista francês deixam assaz longe as grandes verdades do Cristianismo (elevação do
homem à ordem sobrenatural, pecado, Redenção, graça de Deus...), a ponto que tais verdades parecem
dispensáveis a quem procure esboçar uma visão da realidade que nos cerca. Tem-se assim a impressão de que a
história se pode explicar satisfatoriamente sem se levar em conta a Revelação sobrenatural. Nas páginas de
Teilhard, é verdade, não falta a menção de Cristo; contudo o Cristo aí referido está tão fundido com o cosmos
que o seu papel transcendente vem a ser obnubilado. O autor parece pregar um belo messianismo, mas... sem
Messias pessoal; julgar-se-ia que tudo neste mundo corre e correrá bem, desde que se observem as leis da
natureza. A obra de Cristo parece destinada a beneficiar principalmente a ordem de coisas temporal e social;
fica assim um tanto apagada a finalidade primária do Redentor, finalidade que é transfigurar o mundo e o
homem mediante a morte e a ressurreição (produção da nova criatura de que fala S. Paulo em 2 Cor 5,17; Rm
6,4).

2.4. Três Pontos Ulteriores


Feitas estas observações de índole geral, convém ainda salientar alguns pontos de doutrina que, de modo
particular, se ressentem de ambigüidade na síntese de Teilhard:
a) a distinção entre matéria e espírito. A linha ascensional das criaturas é tão homogênea na visão do
cientista francês que o espírito aí não parece ser mais do que eflorescência da matéria ou a matéria em seu grau
máximo de perfeição. Teilhard fala de psiquismo e consciência rudimentar existentes na matéria inanimada.
Ora, já que a consciência é propriedade do espírito, facilmente daí se concluiria que as criaturas materiais
inanimadas não se distinguem dos seres racionais senão por diverso grau de complexidade ou "cerebralização,
cefalização, enervamento" (expressões de Teilhard) ; não haveria, pois, distinção essencial entre matéria e
espírito. Para evitar tal conclusão, os discípulos de Teilhard recorrem a distinções sutis, que, com toda a
probabilidade, correspondem ao pensamento do mestre, mas não são evidentes ao leitor desprevenido.
b) O conceito de criação parece identificar-se com o de emanação. Segundo certas afirmações de Teilhard,
Deus teria dado origem ao mundo por necessidade, Deus emergiria da matéria em evolução.
Tenha-se em vista o texto ambíguo, extraído de uma carta a Léontine Zanta:
"O que vai dominando meus interesses e minhas preocupações interiores, já se sabe, é o esforço para
estabelecer em mim e difundir em torno de mim , uma religião nova (chamemo-la um melhor Cristianismo, se
28 Escola Mater Ecclesiae
você quiser) em que o Deus pessoal deixa de ser o grande proprietário neolítico de outrora para tornar-se a alma
do Mundo a que o nosso estádio religioso e cultural aspira"
É certo que estas palavras podem ser entendidas em sentido metafórico (e assim as terá concebido o Pe.
Teilhard). Contudo não há advertência, no texto do pensador francês, que leve o leitor a interpretar
figuradamente tais dizeres de Chardin. Ora, tomadas ao pé da letra, as mesmas palavras sugerem concepções
profundamente confusas ou mesmo errôneas.
c) A noosfera, ou seja, a fase futura da história do gênero humano é explicada por Chardin em termos
obscuros, termos que a fantasia, mais do que a lógica, consegue de certo modo apreender. Trata-se de uma
visão profética assaz arbitrária, como se depreende do seguinte texto:
"Este crescimento de interioridade mental..., na medida em que ele aumenta simultaneamente e
inevitavelmente o raio de ação e o poder de penetração de cada elemento humano para com todos os outros, tem
por efeito direto de sobrecomprimir sobre si a Noosfera,- esta sobrecompreensão desencadeia automaticamente
uma sobreorganização - fomenta ela mesma uma sobreconscientização - seguida por sua vez de uma
sobrecompreensão - e assim por diante... O sistema se intensifica indefinidamente sobre si mesmo" (Groupe
Zoologique, 133).
Não será necessário descer a mais pormenores para se formular uma conclusão sobre o assunto: o
pensamento de Teilhard de Chardin está ultrapassado. Teve o mérito de procurar fazer o elo entre a ciência e a
fé, valendo-se do conceito moderno de evolução. Todavia a síntese de Teilhard apresenta lacunas que, aos olhos
da fé católica, são importantes e que justificam o atual silêncio sobre Teilhard de Chardin.

PERGUNTAS
1) Quem foi Teilhard de Chardin?
2) Como concebeu a evolução do mundo?
3) Como se pode avaliar a sua teoria?

MÓDULO 10: DECLARAÇÕES DA IGREJA

Lição 1: Os Símbolos de Fé
A palavra símbolo vem do grego syn-bállo, verbo que significa "jogar junto" ou "reunir, compendiar".
Desde os primeiros tempos houve na Igreja símbolos ou compêndios (sínteses) da fé cristã. Sejam
mencionados:
O Símbolo dos Apóstolos, que erroneamente é atribuído aos Apóstolos e deve datar do começo do século
III, professa: "Creio em Deus Pai Todo-Poderoso". A referência à Onipotência é certamente devida à criação.
Esta é obra das três Pessoas Divinas ou de Deus em sua unidade, mas a teologia apropriou-a ao Pai, por ser Este
o Princípio não principiado, como ensina o tratado da Santíssima Trindade.
O Símbolo de Nicéia I (325), tendo em vista o dualismo gnóstico (que julgava o espírito bom e a matéria
má), proclamou: "... Pai Onipotente, Criador do céu e da terra, das coisas visíveis e invisíveis". Por "coisas
visíveis" entenda-se a matéria e por "invisíveis" o espírito; donde se segue que umas e outras têm o mesmo
princípio; não há dois deuses (um bom e outro mau). - Até a Alta Idade Média o pensamento humano foi
tentado a atribuir o mal no mundo a um princípio próprio mau (na verdade, o mal não é algo subsistente em si,
como se dirá pouco adiante.
O Símbolo de Constantinopla I (381) repetiu a fórmula do anterior.

Lição 2: As Declarações Conciliares


O dualismo foi assumindo diversas modalidades. No século VI os discípulos de Orígenes de Alexandria
(†250) inspiravam-se em concepções platônicas e estóicas e afirmavam que os acontecimentos deste mundo são
regidos exclusivamente por leis internas do mundo, de modo que não há lugar aí para a livre atividade criadora
de Deus. Tal teoria foi condenada por um sínodo regional 18 de Constantinopla presidido pelo Patriarca Menas e
confirmado pelo Papa Vigílio em 543; afirmava:

18
Distinguem-se Concílios regionais (que reúnem os Bispos de uma região apenas) e Concílios gerais, universais ou ecumênicos (que congregam os
Bispos do mundo inteiro).
29 Escola Mater Ecclesiae
"Quem afirma ou crê que o poder de Deus é limitado..., seja anátema" (Denzinger-Schönmetzer ou DS,
Enquirídio no 411).
O Concílio universal de Constantinopla II (553) apropriou a criação a cada uma das Pessoas Divinas,
declarando:
"Um é Deus Pai, de quem são todas as coisas; um é o Senhor Jesus Cristo, por quem são todas as coisas;
um é o Espírito Santo, em quem são todas as coisas" (DS 421).
Em 561 o Concílio regional de Braga (Portugal) condenou outra modalidade de dualismo devida a um certo
Prisciliano (385), que defendia ser o diabo o Criador da matéria e o princípio do mal. A alma humana teria
natureza divina; existia antes do corpo (diziam) e terá sido encarcerada na matéria em castigo de pecados
anteriores . Na ocasião a Igreja teve a oportunidade de repelir toda depreciação da matéria, principalmente do
corpo humano, e afirmar que tudo o que existe é ontologicamente bom19, pois procede do único Criador; ver DS
455-464.
Na Idade Média a partir de 11 80, os cátaros ou albigenses renovaram o erro dualista ou maniqueu.
Afirmavam que a matéria é má e foi criada por Satanás; conseqüentemente Cristo não teve um corpo real, mas
aparente; daí a rejeição das instituições que neste mundo favorecem a matéria, inclusive o matrimônio. Em
réplica, uma Profissão de Fé datada de 1208 afirmava:
"Cremos de todo coração e professamos com a boca que o Pai, o Filho e o Espírito Santo, o único Deus é o
Criador o formador o diretor e promotor de todas as coisas corporais e espirituais, visíveis e invisíveis. Cremos
que o Antigo e o Novo Testamento têm um mesmo e único autor Deus, que, permanecendo na Trindade de sua
vida, tudo criou do nada" (DS 790).
Pouco depois, o Concílio do Latrão IV (1215) reafirmou as mesmas verdades: "Deus é o único princípio de
tudo, o Criador do visível e do invisível, de todo ser espiritual e corpóreo. Por sua virtude onipotente, no
começo dos tempos criou do nada ambos os reinos, o espiritual e o corporal, o afundo dos anjos e o terrestre e
finalmente o dos homens; estes, de certo modo, pertencem aos dois níveis da realidade, sendo constituídos de
corpo e espírito. O diabo e os demônios foram criados bons por sua própria natureza, e foi por si mesmos que se
tornaram maus. Quanto ao homem, ele pecou por instigação do diabo" (DS 800).
Em 1274 o Concílio de Lião II se pronunciou do mesmo modo; ver DS 851.
No século seguinte, em 1311, o Concílio de Viena (França), o 15 o Concílio Geral, tendo em vista ainda o
dualismo, afirmou que a união de corpo e alma não é contrária à natureza das coisas, e que a alma se une ao
corpo como a forma se une à matéria (no sentido aristotélico-tomista).
"Com a aprovação do Santo Concílio, rejeitamos, como errônea e oposta à fé católica, toda doutrina ou toda
tese que afirme que a substância da alma racional e intelectiva não é realmente, e por si mesma, a forma do
corpo humano, ou o põe em dúvida. Para que todos conheçam a verdade da fé pura e para fechar a porta a todo
erro, definimos que quem ouse afirmar, defender ou sustentar obstinadamente que a alma racional ou intelectiva
não é por si mesma e essencialmente a forma do corpo, seja considerado herege" (DS 902).
Em 1442 o Concílio Geral de Florença tratou também da criação:
"A Igreja crê, professa e proclama que o único Deus verdadeiro, Pai, Filho e Espírito Santo, é o Criador de
todas as coisas visíveis e invisíveis. Quando quis, em sua bondade produziu todas as criaturas, tanto as
espirituais quanto as materiais. Estas são boas, porquanto criadas pelo Supremo Bem, porém sujeitas à
mudança, pois foram criadas a partir do nada. A Igreja ensina que o mal não tem natureza alguma, pois toda
natureza, enquanto natureza, é boa. Além disto, a Igreja condena a doutrina insensata dos maniqueus, que
afirmavam haver dois primeiros princípios, um das coisas visíveis e outro das coisas invisíveis, e que sustentam
que o Deus do Novo Testamento não é o Deus do Antigo Testamento" (DS 1333).
Neste texto retorna a noção de que o mal não é uma realidade positiva ou, como se diz aí, é uma natureza.
Tudo o que é , é bom, na medida do que é; é mau se a esse bem (a esse ser) falta algo que lhe é devido. Assim a
cegueira é um mal, porque supõe um bem (um ser humano) ao qual faltam os olhos (o bem) que lhe são
devidos; a cegueira não é um mal numa pedra, porque a pedra não foi feita para ter olhos.
O Concílio do Latrão V em 1513, o 18 o Concílio Geral ou ecumênico, afirma que cada ser humano tem sua
alma própria, imortal, em oposição à tese de uma alma coletiva:
"De acordo com este Santo Concílio, condenamos e reprovamos todos aqueles que afirmam que a alma
intelectiva é mortal ou única em todos os homens, assim como todos aqueles que têm dúvidas a tal respeito. Na
verdade, não somente a alma é a forma do corpo humano, por si mesma e essencialmente, como diz o cânon do
nosso predecessor o Papa Clemente V de feliz memória, no Concílio de Viena, mas a alma também é imortal, e

19
Ontologicamente, isto é, na medida em que é, supõe-se que o mal não seja algo positivo, mas carência de um bem devido. Moralmente bom ou
mau são qualidades que afetam não o ser mas o comportamento humano.
30 Escola Mater Ecclesiae
pode haver muitas almas, como de fato as há e deve haver dada a multidão dos corpos que recebem, por
infusão, uma alma humana" (DS 1440).
No século passado, o Concílio do Vaticano I em 1870, tendo em conta o materialismo e o panteísmo do
século XIX, declarou:
"A Santa Igreja Católica Apostólica Romana crê e afirma que existe um só Deus, verdadeiro e vivo, Criador
e Senhor do céu e da terra, Todo-Poderoso, eterno, imenso, incompreensível, infinito em inteligência, vontade e
em toda perfeição, que, sendo uma substância espiritual única e singular rigorosamente simples e inalterável,
deve ser tido como realmente e essencialmente distinto do mundo, sumamente bem-aventurado em si mesmo e
por si mesmo, indizivelmente elevado acima de tudo o que, fora dele, existe ou se pode conceber" (DS 3001).
" O único Deus verdadeiro, com sua bondade e onipotência - não para aumentar sua bem-aventurança nem
para adquirir perfeição, mas para manifestar a perfeição que Ele possui, concedendo seus bens às criaturas, -
por um decreto libérrimo de sua vontade, criou a partir do nada, no princípio dos tempos, uma e outra criatura -
a espiritual e a corporal, isto é, o mundo dos anjos e o da terra, e, finalmente, os homens, que de certo modo
pertencem a esses dois níveis da realidade, sendo compostos de alma e corpo "(DS 3002).
"Tudo o que Ele estabeleceu, Deus o guarda e o governa por sua Providência, 'desenvolvendo seu vigor de
um extremo ao outro do mundo e governando tudo com suavidade'(Sb 8, 1), pois tudo é desnudo e descoberto
aos seus olhos (cf Hb 4, 13), até mesmo aquilo que decorre da livre atividade das criaturas" (DS 3003).
Os cânones que se seguem a esta declaração, retomam a doutrina em proposições sintéticas:
"Se alguém negar a existência do único Deus verdadeiro, Criador e Senhor das coisas visíveis e invisíveis,
seja aná tema"
"Quem não se envergonha de afirmar que, fora da matéria, nada existe, seja anátema"
"Quem disser que a substância ou a essência de Deus e a de todas as coisas, é uma e a mesma, seja anátema"
"Quem disser que tanto as coisas corporais quanto os espíritos finitos ou, pelo menos, estes emanaram da
substância divina, ou que a essência divina, por sua revelação ou evolução, se converte na realidade de todas as
coisas, ou finalmente que Deus é o universal e indeterminado e por sua autodeterminação dá origem à
totalidade das coisas, suas classes, espécies e essências individuais, seja anátema"
"Quem não professar que o mundo e todas as coisas, com toda a sua substância, foram criados por Deus a
partir do nada ou quem disser que Deus não criou por vontade livre e sem necessidade, mas tão
necessariamente quanto ama a si mesmo, ou quem negar que o mundo foi criado para a glória de Deus, seja
anátema "(DS 3021-3025).
Estes textos assinalam não somente o fato da criação, mas também o motivo e a final idade da criação. Vê-se
que se opõem nitidamente às formas de materialismo (não haveria senão matéria) e panteísmo (Deus e o
mundo, ao menos o mundo espiritual, seriam uma só realidade a se expandi r por emanação) do século XIX.

Lição 3: A Encíclica "Humani Generis"


Deve-se registrar ainda o pronunciamento do Papa Pio XII em sua encíclica Humani Generis (1950) frente
ao evolucionismo; ver Módulo 16, Lição 2 deste Curso.

PERGUNTAS
1) Que é um Símbolo da Fé?
2) Qual a principal heresia que as declarações conciliares combateram até o século XIV?
3) O mal é algo de positivo?
4) Que é panteísmo?
5) Em síntese, quais são as proposições que se deduzem dos ensinamentos conciliares?
PARTE I: CRIAÇÃO: c) Aprofundamento

MÓDULO 11: CRIAÇÃO - NOÇÃO E CORRELATOS


Damos agora início ao aprofundamento sistemático da temática da criação.

Lição 1: Que é criação?


A criação é o ato de tirar do nada um ser ou de produzir um ser segundo toda a sua substância. Para
compreendê-lo bem, voltemo-nos para a causalidade no plano da Física.
31 Escola Mater Ecclesiae
Quando, por exemplo, acendemos um fogareiro para esquentar água, provocamos o exercício de uma
causalidade que tem sua matéria (substância) preexistente; o efeito dessa causalidade será apenas uma
qualidade (o calor) ou um acidente (uma forma acidental). Quando movemos um pincel para pintar uma parede,
não vamos produzir uma substância nova, ainda não existente, mas apenas uma qual idade nova (a cor, forma
acidental) de uma substância preexistente.
Pois bem. Quando há criação, a causalidade é mais profunda e universal; e o seu efeito é o ser, segundo toda
a sua substância e todos os seus aspectos. Criar é produzir o ser enquanto ser, e não enquanto tal ou tal ser
(enquanto é quente ou colorido...). Por isto dizemos que a criação é causalidade no plano metafísico, visando ao
ser como tal e não a formas substanciais ou acidentais de ser.
Criação se distingue de transformação, pelo fato de que na trans-formação há apenas mudança de forma,
ficando sempre o mesmo substrato ou a matéria prima 20. Por isto também se diz que criar é produzir a partir de
nada, sendo que o nada não deve ser concebido como matéria preexistente, e sim como não-ser no sentido
rigoroso da expressão.
Criar é próprio de Deus só, pois somente o Ser Absoluto pode produzir o ser como ser. Toda criatura, por ser
limitada, só pode produzir aspectos do ser, ou seja, formas substanciais ou acidentais, que sobrevêm à matéria
prima; por conseguinte, nenhuma criatura pode criar. Nem pode servir ao Criador como causa instrumental,
pois toda causa instrumental modifica e limita a ação da causa principal; ora o ato de criar não comporta
limitação, visto que atinge o ser como ser ou em toda a sua amplidão.
A criação é ato livre. Isto é conseqüência necessária da natureza mesma de Deus. Se Deus é o Ser perfeito,
não pode estar sujeito à necessidade de produzir alguma criatura, pois isto suporia que estivesse dominado por
uma força exterior a Ele ou por um determinismo interno; ora tais hipóteses são incompatíveis com a noção do
Ser perfeito. Notemos que o sol necessariamente ilumina e esquenta. Deus, porém, não cria necessariamente.
Nem Deus precisava de criar para obter a sua glória, pois Deus é sumamente perfeito e feliz, mesmo sem as
criaturas.
Fica, pois, excluído o emanatismo, professado pelo hinduísmo e por correntes modernas de pensamento.
Segundo tal doutrina, o mundo proviria de uma fonte suprema e perfeitíssima
mediante emissão de ondas ou fragmentos. Essa fonte seria a Divindade; o mundo seria a expansão da
Divindade. Este sistema toma também o nome de panteísmo (pan = tudo; theós = Deus); tudo seria Deus. Esta
concepção peca por falta de lógica, pois Deus, por definição, é o Absoluto, o imutável, o Perfeito, ao passo que
o mundo é relativo, mutável e imperfeito.

Lição 2: Conservação das criaturas


A permanência dos seres contingentes21 na existência não se explica adequadamente pelo fato apenas de que
a existência lhes foi dada por um ato criador. A todo momento, tais seres e o universo inteiro dependem da
Causa Primeira; esta dependência, que não é senão a continuação do ato criador, chama-se conservação. Por
conseguinte, a atividade criadora de Deus não cessa de penetrar até a raiz mesma das criaturas para mantê-las
na existência.
Isto se compreende bem a partir de situações análogas. Imaginemos um ser luminoso (o ar, por exemplo),
que não tem em si mesmo a fonte da luz. Ele só pode permanecer iluminado pela influência contínua de uma
fonte de luz. Assim todo ser existente que não tenha em si mesmo a razão de ser da sua existência, só pode
continuar a existir (ou durar) pela influência contínua (ou conservadora) daquele único ser que tem a existência
por si mesmo e que é fonte universal: Deus, a Existência subsistente.
Se, no caso enunciado, for interceptada a fonte de luz, o ar se tornará tenebroso; paralelamente, se Deus
suspender a sua ação conservadora das criaturas, todas recairão no nada
Na verdade, a conservação exercida por Deus não é senão o próprio ato de criar prolongado. Entre criação e
conservação há uma distinção de razão; criação implica um início e uma referência ao nada prévio; conservação
carece de tal implicação.
Visto que a conservação supõe um sujeito preexistente, ela pode ser compartilhada pelas criaturas, à guisa
de instrumentos de Deus. Assim, por exemplo, só Deus é o Criador da Luz; mas a conservação da luz, no ar,
pode ser devida também a causas instrumentais ( o sol, o gerador de eletricidade...).

20
Recordamos que matéria prima em Filosofia não significa o mesmo que no comércio ou na indústria. Entende-se, em Filosofia, a matéria prima
como sendo potência, pura potência, para receber determinada forma. Assim quando produzimos, com dois átomos de hidrogênio e um de oxigênio,
uma molécula d’água, as formas do hidrogênio e do oxigênio são substituídas por outra forma, que faz que hidrogênio e oxigênio não funcionem
mais como tais, mas como água; a matéria prima de cada elemento perdeu as formas de hidrogênio e oxigênio para receber a da água. Houve
transformação e não criação.
21
Contingente é o ser que existe, mas poderia não existir; não existe necessariamente.
32 Escola Mater Ecclesiae
Lição 3: Eternidade do Mundo?
A idéia de criação, em sentido lato, não está necessariamente ligada à de início ou começo. Ao contrário, ela
faz abstração completa da noção de princípio temporal. Significa apenas a absoluta dependência do mundo, até
o fundo do ser, em relação a Deus.
Daí a pergunta: pode-se conceber a criação desde toda a eternidade ou sem começo? Respondemos: a
eternidade do mundo, se bem entendida, não é algo impossível, mas também não se impõe com clareza e
evidência; é uma hipótese aceitável, mas não demonstrável.
Como então conceber o mundo eterno?
Não se trataria de eternidade no sentido de Deus, pois esta é a duração de um ser absolutamente imutável.
Ora o universo é mutável, e essencialmente mutável. Por conseguinte a eternidade do mundo seria a duração de
seres contingentes e variáveis, capazes de desaparecer, mas que, na realidade, não teriam nem começo nem fim.
As mudanças verificadas nas criaturas estariam sujeitas à medida do tempo, embora o conjunto dessas
mudanças não pudesse ser encerrado em um número determinado de anos ou séculos. Notemos ainda que, em
tal caso, a noção de criação perderia seu sentido estrito, pois lhe faltaria a referência a um início e ao nada
prévio; ter-se-ia, porém, criação no sentido lato, implicando total dependência do mundo em relação a Deus; a
existência do mundo seria sempre dependente de Deus. Como se vê, a noção de criação desde toda a eternidade
é um tanto manca, pois de certo modo derroga ao pleno conceito tanto de criação como de eternidade. A
maioria dos filósofos pagãos admitia a eternidade do universo, geralmente movidos por tendências panteístas;
concebiam o mundo como uma teofania (manifestação de Deus) necessária à perfeição suprema. Na época
moderna o judeu Baruch Spinoza († 1677) professou essa doutrina, identificando Deus com a natureza.
A questão da eternidade do mundo, que a Filosofia deixa aberta, é elucidada pela fé cristã. A S. Escritura diz
que "no começo Deus fez o céu e a terra" (Gn 1,1), insinuando um começo para o mundo 22- proposição esta que
a Tradição explicitou repetidamente; tenhamos em vista a afirmação do Concílio do Latrão (1215):
"No início dos tempos Deus criou do nada as criaturas espirituais como as corporais, os anjos e o mundo.
Deus criou o homem, constituído de corpo e espírito".
De resto, embora a noção de criação esteja ao alcance da razão humana e , por isto, seja uma verdade
filosófica, pode-se dizer que a Filosofia não chegou por si só a conceber tal idéia ou a produção de algo a partir
do nada. Nem Platão († 347 a.C.) nem Aristóteles († 322 a.C.) explicitaram tal noção, embora se tenham
aproximado da mesma. O judaísmo mesmo, embora tenha professado o monoteísmo estrito, não parece ter
chegado à clareza sobre o assunto nos seus escritos mais antigos; todavia no século I a.C. o texto de 2
Macabeus 7,28 professava a criação a partir" do nada. Foi principal mente na base do Novo Testamento que a
idéia de criação se tornou lúcida a filósofos e teólogos.

Lição 4: Ulteriores Questões


Aprofundaremos a temática, considerando algumas questões que são levantadas a respeito de criação.

1) Do nada, nada se tira. Esta objeção impugna a noção mesma de criação como sendo algo de absurdo.
- Respondemos apelando para o exato sentido da noção de criação. Esta, no sentido próprio da palavra,
ultrapassa o alcance da nossa inteligência, pois se trata de uma atividade que é exclusiva de Deus, ... atividade
que exige um poder infinito. Isto, porém, não implica que a idéia de criação seja absurda. Ao contrário, ela é
inteligível por si mesma, pois atribui a Deus a onipotência que pertence lógica e necessariamente ao Ser
infinitamente perfeito. Mais: a noção de criação é uma exigência decorrente do exame da realidade contingente
e mutável que nos cerca; a existência de tal realidade supõe um ser absolutamente perfeito que seja a causa
explicativa ou a razão suficiente deste mundo. Negar a criação equivale a fazer do absurdo a lei universal.
Quanto à expressão "a partir do nada", reconhecemos que o nada não é uma causa nem é matéria que dê
origem a alguma coisa. Mas a noção de criação não supõe que o ser venha do nada, mas afirma que vem após o
nada. Na realidade, vem de Deus e de seu poder infinito. Deus não fez o mundo do nada, como se fosse matéria
preexistente, mas Ele o fez por seu poder absoluto.
2) Quanto à eternidade do mundo (hipótese que a fé cristã não aceita), objeta-se:
Toda causa deve preceder o seu efeito. Ora um mundo que fosse coetemo com Deus, já não seria uma
criatura.
Os defensores da eternidade do mundo respondem que a causa deve preceder o seu efeito, sim, mas não
necessariamente na linha do tempo ( a precedência temporal é exigida quando se trata de causas físicas, não da

22
Ver também Pr 8, 22-26; Eclo 24, 8s; Sl 90,2.
33 Escola Mater Ecclesiae
causa criadora que é metafísica); a precedência da causa, neste último caso, deve estar na linha da perfeição; ora
Deus é e será sempre mais perfeito do que o mundo.
Se o mundo é eterno, a criação vem a ser inútil, pois a existência do mundo já não precisa de ser
explicada.
- A objeção supõe errônea noção de criação, dizem os defensores da eternidade do mundo, pois
indevidamente associa criação a um começo no tempo. - É preciso, pois, lembrar que a hipótese da eternidade
do mundo não suprime a necessidade da criação, porque esta, em sentido lato, não inclui a noção de começar
após o nada, mas apenas o conceito de dependência em relação a Deus ou ao Criador; com outras palavras...
inclui apenas a tese de que o mundo é contingente ou não tem em si mesmo a razão de sua existência. - Por
conseguinte, se o mundo fosse eterno (coisa que de fato ele não é), não seria menos dependente de Deus
eternamente; seria criado por Deus em todo o seu ser...; e isto em cada momento de sua duração, e em cada um
dos seres singulares que o compõem.
3) Que fazia Deus antes da criação?
Esta pergunta carece de sentido, porque supõe estar Deus sujeito ao ritmo do tempo, ou às categorias do
antes e depois. Na verdade, isto não se dá. Desde toda a eternidade, Deus decretou que do nada sairiam tais e
tais criaturas ( a matéria primitiva inicial) e elas se desenvolveriam de tais e tais modos; decretou também que
sucessivamente sairiam do nada os seres espirituais necessários para vivificar os corpos humanos. Tal decreto
não é um acidente em Deus, mas identifica-se com a própria essência divina muito simples e muito ativa.
Produzir o mundo é, para Deus, querer o mundo com uma decisão e uma escolha eficazes. O começo do mundo
não implica mudança em Deus. Podemos dizer: o mundo começou a existir há bilhões de anos, mas não
podemos dizer : após bilhões de anos Deus criou o mundo.

4) Deus terá feito o melhor mundo possível? - Não parece...


- Respondemos que o conceito de "o melhor mundo possível" (no grau superlativo) é absurdo. Com efeito; o
mundo é um conjunto de seres finitos ou limitados, de modo que a qualquer grau de perfeição de seus
elementos se pode sempre acrescentar mais perfeição. Por mais densa e rica que seja a perfeição de uma
criatura, é sempre finita e, por isto, é sempre suscetível de aumento, sem poder chegar a um ponto máximo,
superlativo, não ultrapassável. É concebível, sim, um mundo comparativamente melhor do que o nosso, nunca,
porém, o mundo cuja perfeição não pudesse ser acrescida. Tal mundo seria infinitamente perfeito ou seria um
outro Deus (o que é impossível). O mundo atual criado por Deus é um mundo bom, no qual Deus permite que
as criaturas cometam suas falhas; mas "nunca o permitiria, se não soubesse tirar dos erros mesmos das criaturas
bens ainda maiores" (Santo Agostinho). Ver Módulo 8, Lição 3.

PERGUNTAS
1) Que se entende por criação? Como se distingue de transformação?
2) Que é o emanatismo?... E o panteísmo?
3) Que vem a ser conservação das criaturas?
4) O mundo pode ser eterno ? Aliás, que se entenderia por "criação desde toda a eternidade"?
5) O mundo é realmente eterno?
6) "Do nada nada se tira. Portanto é absurdo o conceito de criação". Analise a proposição.
7) Que fazia Deus antes de criar?
8) O nosso mundo poderia ser melhor? Poderia ser o melhor mundo possível?

MÓDULO 12: CRIAÇÃO - REFLEXÕES


Proporemos neste Módulo algumas reflexões que contribuirão para aprofundar a noção de criação explanada
no Módulo anterior.

Lição 1: A Criatura diante do Criador


A Revelação Divina não tem por objetivo apenas descrever etapas ou fornecer noções relativas à origem do
mundo. Ela tem em vista também dizer-nos quais as relações existentes entre a criatura e o Criador. Com efeito;
o universo é uma manifestação de Deus e de sua Sabedoria; por conseguinte o tratado teológico da criação fala
indiretamente do próprio Deus.
34 Escola Mater Ecclesiae
Observemos a analogia: para compreender um homem que trabalha em artesanato, não bastam
conhecimentos técnicos, mas requer-se certo senso artístico e até mesmo o senso do "humano". Paralelamente
compreender o significado da criação como Revelação de Deus requer afinidade com Deus ou o senso
religioso. A reflexão teológica sobre a criação só pode ocorrer em espírito de fé ou de acolhida do Deus velado
e revelado. Não basta raciocinar sobre as origens do mundo; é preciso compreender o Artesão, ... o Artesão que
produz seus artefatos não porque precise deles, mas porque lhes quer bem e os chama ao consórcio de sua bem-
aventurança. Esse querer bem ou esse amor de Deus, exercendo-se na obra da criação, não tem similar, e diz à
criatura que ela é o termo de incomparável amor.
O fato da criação é inseparável do fato da Re-criação ou da Redenção. O Verbo se fez criatura por causa de
nós; o Criador se tornou um de nós. Deus amou de tal modo a obra criada que Ele chegou a assumir a condição
da criatura, morrer e ressuscitar para recriá-la.
Desde o início da história, o Criador tinha em vista a vinda do Verbo aos homens na plenitude dos tempos;
Deus não é como o arquiteto que vai retocando e adaptando seu plano a novas e imprevistas situações; o
desígnio eterno de Deus ao qual o universo deve a sua existência, comportava o propósito de ver a humanidade
e o mundo infra-humano recapitulados em Cristo Jesus; cf. Ef 1,9s.
É de notar ainda que o amor de Deus às criaturas é amor primeiro, que não supõe valores prévios, mas que
cria os valores de suas criaturas,... à diferença do amor humano, que é atraído pelos valores dos seres amados.
A criatura goza do privilégio de ser amada gratuitamente pelo Amor Supremo.

Lição 2: Dependência Total


O Criador e a criatura não se relacionam entre si como dois seres justapostos ou como dois amigos, nem
como esposo e esposa. A presença do Criador à criatura é muito mais íntima, porque é a presença da causa ao
seu efeito; a causa e o efeito estão em contato mútuo não apenas por suas superfícies respectivas, mas a causa
penetra seu efeito até as raízes do que ela produz. E notemos que a causalidade exercida pelo Senhor Deus é
diferente da que exercem as criaturas, pois o Criador dá tudo - desde o ser - à criatura, ao passo que as causas
criadas dão apenas o ser tal ou tal outro. Deus não dá apenas um modo de ser, mas o próprio ser, atingindo a
criatura em tudo o que ela é.
Mais: essa presença íntima do Criador à criatura não é uma presença estática, mas é atuante,...
continuamente atuante, pois Deus, conservando a criatura na existência, está continuamente criando essa
criatura.
Por conseguinte, ser criado é ser não por si, mas por outrem. É não bastar a si mesmo. É estar, no mais
íntimo de si, numa condição de radical indigência ou de dependência total. É estar na presença de Deus como
quem não é ou não se explica por si, como quem não se pode erguer, reivindicando qualquer tipo de autonomia
frente ao Criador, à diferença do que se dá entre filhos e pais. O mundo só tem realidade na medida em que ele
é pensado e querido por Deus. O universo tem em Deus sua causa exemplar, sua causa final e sua causa
eficiente.
Esta total dependência da criatura em relação ao Criador significa que o homem não deva ceder à tentação de
se fechar em sua imanência e solidão. Três grandes insuficiências caracterizam o homem:
- insuficiência metafísica. Toda a realidade do homem é penetrada por Deus, de modo que o homem precisa
de Deus para existir e para agir; Deus nos conserva, dá o poder agir e governa por sua providência 23. Donde
resulta a necessidade de oração da parte do homem para agradecer ao Criador e pedir-lhe os auxílios
necessários;
- insuficiência psicológica. O homem não basta a si mesmo; é pequeno demais para satisfazer aos seus
inatos anseios de infinito. Com outras palavras: o ser humano não encontra em si mesmo paz, felicidade,
plenitude de vida, resposta às suas aspirações mais legítimas;
- insuficiência moral. O homem não pode viver para si só, não pode ser o referencial absoluto de seus atos.
Quem tenta assim viver, entra em conflito com a própria estrutura do ser humano.

Lição 3: O por quê e o para quê da criação


Se o mundo depende totalmente de Deus, pergunta-se: como depende? Como o raio depende do sol (por
emanação)? Ou como um artefato depende do artesão? Deus poderia existir sem o mundo? Nossa existência é
gratuita? Ou é necessária?

23
Aliás, não somente ao homem Deus está presente conservando-lhe a existência; Ele está presente também a toda criatura, mesmo irracional, numa
permanente ação criadora; sem esta, qualquer criatura recairia no nada, do qual foi tirada.
35 Escola Mater Ecclesiae
Respondemos, afastando todo tipo de emanação (que redunda em panteísmo). Valha-nos a imagem do
artesão,... artesão, porém, que é totalmente livre ao produzir seus artefatos. A razão desta liberdade consiste em
que Deus é transcendente ou paira acima de qualquer categoria compulsória. Deus, sendo a bondade infinita, só
pode ser movido pela sua própria bondade ou pelo seu amor. Ele não depende de motivo ou finalidade alguma
que não seja Deus mesmo. Conseqüentemente devemos dizer que Deus não criou o homem por causa do
homem, mas, sim, por causa de Deus, pois, se Deus criasse por causa de algo fora de Deus, dependeria desse
algo; esse algo estaria condicionando as normas do comportamento de Deus - o que é impossível. Podemos,
porém, explicitar um pouco mais porque Deus quis livremente criar:
Reza um princípio neoplatônico que o bem é difusivo de si. Ora Deus é o Sumo Bem. Donde resulta que
Deus é sumamente difusivo ou comunicativo de si.
Ou ainda: Deus é o Amor Infinito. Ora o Amor Infinito não pode não se doar a outros. Por conseguinte é
impossível que Deus queira ficar só...
Estas duas fórmulas são legítimas, contanto que se guarde sempre a consciência da transcendência ou
soberania de Deus, a qual não pode ser enquadrada dentro de algum raciocínio que a limite ou constranja.
Estendendo nossas considerações, afirmamos que a finalidade da criação é a glória de Deus. Participando da
bondade e das perfeições do Criador, as criaturas proclamam esses predicados e dão glória ao Criador. Não há
antítese entre glorificação do Criador e auto-realização da criatura; tudo que esta possa ter de belo, nobre e
perfeito vem-lhe do Criador e, desta forma, apregoa a grandeza e perfeição do próprio Deus. Também todo
artefato, quanto mais belo é, tanto mais exalta a arte do artesão. Escreve Santo Ireneu : "A glória de Deus é o
homem vivo".
As criaturas não são minimizadas pelo fato de serem destinadas à glória de Deus. Glorificar a Deus, para
elas, é conhecer e amar a Deus, é unir-se à Verdade Infinita e à Bondade Infinita. Com outras palavras: os seres
humanos não são instrumentos da glória de Deus, mas, de certo modo, coincidem com o objetivo da criação,
visto que se tornam imagens vivas e lúcidas de Deus em Cristo Jesus.
Também é de notar que Deus não precisa da glorificação que as criaturas lhe dão. Promovem apenas a glória
externa de Deus,... glória externa que é a manifestação da glória interna ou da santidade de Deus, que é
permanente. A S. Escritura insiste nessa vocação do homem (que é também a honra do homem) para dar glória
a Deus:
Ef 1,14: "Deus adquiriu para si um povo para o louvor da sua glória".
Fl 2, 15s: ".. para vos tomardes irrepreensíveis e puros, filhos de Deus, sem defeito, no meio de uma geração
má e perversa, no seio da qual brilhais como astros no mundo, mensageiros da Palavra de vida".
Mt 5,16: "Brilhe a vossa luz diante dos homens, para que, vendo as vossas boas obras, glorifiquem vosso Pai
que está nos céus"
Ver ainda Jo12,24; 15,8; 17,10; 2Cor 3,18; Cl 1,1o-12; 2Ts1,12; 1Pd 4,14.

Lição 4: Atividade do Criador e atividade das criaturas


O mundo sustentado por Deus em sua existência não é um mundo inerte. Deus criou muitos seres em
potência ou em suas virtualidades apenas. Estas devem ser desenvolvidas. Por isto, juntamente com o ser, Deus
comunica a capacidade de agir; é graças ao concurso divino24 que as criaturas se realizam plenamente. Jamais
uma criatura pode agir independentemente desse concurso, que não tira, mas ao contrário mobiliza a liberdade
do homem. Ao dar seu concurso, Deus quer o bem (mas não o impõe), e permite o mal (devido ao abuso do
livre arbítrio do homem). Ulteriores considerações a respeito ocorrem no tratado da Graça.
O mal não é um ser positivo, mas uma carência, carência da ordem devida ou do encaminhamento à
finalidade devida. Se é uma carência, o mal não tem causa direta; só pode ter causa indireta, ou seja, uma causa
que seja capaz de agir lacunosamente ou deficientemente. Tal não é Deus, mas é a criatura. Por conseguinte,
Deus não é o autor do mal; este se deve à limitação da criatura, que pode agir sem a coerência devida. Pode-se
ilustrar esta verdade mediante imagens: um ótimo pianista, trabalhando com um piano desafinado, só pode
produzir melodias de baixa qualidade não por imperfeição do pianista, mas por deficiência do piano; um atleta
que tenha uma lesão na perna, andará mal, não por falta de habilidade, mas por deficiência da perna. Deus, no
caso, faz as vezes do pianista e do atleta, a criatura faz as vezes do piano e da perna lesada. De resto, o
problema do mal no mundo será explicitamente considerado no Módulo 30 deste Curso.
Sustentando e dando seu concurso às criaturas, Deus as encaminha conforme seu plano de salvação, que é
santo. A ação de Deus no mundo e junto aos homens, sábia e amorosa, chama-se Providência Divina, da qual

24
Concurso é a palavra técnica que significa a intervenção de Deus em virtude da qual a criatura age.
36 Escola Mater Ecclesiae
falam as Escrituras em Dn 2,20-22; Mt 6,25-34 e no Apocalipse. Não há casual idade no plano de Deus.
Também não há forças diabólicas nem poderes superiores capazes de entravar o plano de Deus.

Lição 5: A SS. Trindade e a Criação


A S. Escritura atribui a cada Pessoa da SS. Trindade um papel na história da salvação: assim o Pai é
apresentado como o Criador, o Filho como o Re-criador ou Redentor, e o Espírito Santo como o Santificador.
Este modo de falar no tocante ao Pai e ao Espírito Santo chama-se "apropriação"; faz-se própria a uma Pessoa
Divina a ação comum às três Pessoas Divinas. A criação é obra comum ao Pai, ao Filho e ao Espírito Santo,
mas é apropriada ao Pai porque Este é o "Princípio sem Princípio", o Alfa e o Ômega. Apenas a Encarnação e a
Redenção são obra própria de Deus Filho, pois quem assumiu a natureza humana no seio de Maria Virgem foi
tão somente a segunda Pessoa da Santíssima Trindade. Ver nosso Curso de Cristologia, Módulos 22, 23 e 24.
Criação e Encarnação se associam entre si, no sentido de que Jesus Cristo vem manifestar plenamente
Aquele que fez o céu e a terra. O Criador do mundo é Aquele que São João, iluminado pelo Evangelho, diz ser
Amor (cf. l Jo 4,8.16;3,16). É amor que não procura seus interesses nem vantagens e que torna o Criador
particularmente diferente de qualquer operário ou artesão: este precisa de agir para ser ele mesmo e, após
começar a agir, não pode deixar de estar procurando um interesse seu. Deus, ao contrário é totalmente livre e
desinteressado de si ao criar.

PERGUNTAS
1) Quem estuda o tratado da criação, pode descobrir melhor a face de Deus? Por quê ?
2) Exponha em que consiste a dependência da criatura frente ao Criador.
3) Porque e para que Deus quis criar?
4) Que é que se chama concurso de Deus em Teologia?
5) A criação é obra própria do Pai?

MÓDULO 13: “A CRIAÇÃO NÃO É UM MITO


As relações entre a ciência e a fé nem sempre foram claramente entendidas, principalmente nos séculos XIX
e XX. Todavia o progresso mesmo da ciência levou a rever o mal-entendido e as aparentes antíteses, de modo
que hoje a fé tem nas descobertas científicas um ponto de apoio muito sólido e eloqüente. Várias publicações
têm-se esforçado por demonstrá-lo, entre as quais o livro de Domenico E. Ravalico: "A Criação não é um Mito"
(Ed. Paulinas 1977). Esta obra, editada há vinte ou mais anos, poderia ser hoje em dia reeditada com o
acréscimo de novos dados que confirmam os dizeres do autor. Neste Módulo apresentaremos as linhas
fundamentais de tal livro, linhas que têm seu valor perene.
Lição 1: O Problema
Escrevendo na década de 1970, o autor se referia aos pronunciamentos dos cientistas russos, que julgavam
estar dando o golpe final à Religião. E narra o seguinte (pp, 11-13):
"O progresso da Ciência liquidará definitivamente a fé religiosa".
Existe em Moscou um instituto para o ateísmo, que integra a Academia das Ciências. Elabora toda a intensa
propaganda contra a religião, imposta pelo governo, e prepara os programas para as escolas a fim de apresentar
aos jovens uma visão exclusivamente materialista do mundo. Essa propaganda atinge as crianças desde o curso
primário.
"As descobertas científicas entram pela porta, enquanto a fé religiosa sai pela janela". É o que afirmam os
incansáveis propagandistas do ateísmo na sua revista popular de grande tiragem Nauka i religija (Ciência e
religião). "O mundo de hoje é o de Galileu, de Newton, de Pavlov e de Einstein. É um mundo de progresso, de
hipóteses e de proposições arrojadas, destinadas à tradução em termos experimentais. A Ciência está em
desenvolvimento continuo. Ajudou o homem a estender seu domínio além de todos os limites da natureza. A
religião, pelo contrário, é somente obscurantismo; é a droga da opressão social".
"Com o auxílio da Ciência o homem inventou o microscópio, o telêmetro, o rádio, a televisão, o radar e os
cérebros eletrônicos. Conseguiu também utilizar a energia do núcleo atômico e viajar pelo cosmo em
astronave".
"Podemos estar certos de que tudo isso nada mais é do que uma etapa do progresso.
37 Escola Mater Ecclesiae
Outras descobertas estão à espera da Ciência futura, as quais desvendarão vastos e fascinantes horizontes.
Planificando essas novas descobertas, o homem conseguirá orientar suas atividades em termos puramente
lógicos de vantagem material; ele se apodera não somente das chaves do presente, pela primeira vez, mas
também das do futuro".
"A vitória da Ciência materialista sobre o misticismo delimitará o mundo exterior das impressões subjetivas,
demonstrará que o homem é uma longa evolução dos seres vivos na Terra".
"A Ciência é produzida pelo intelecto do homem, ao passo que a religião é fruto da fantasia, da ignorância e
do medo. As doutrinas religiosas são ingênuas e fantásticas; contradizem a Ciência e a razão. A Ciência
materialista é Deus, não o velho Deus da Bíblia, mas um Deus novo, que surgiu pelo poder do gênio humano,
um Deus feito à semelhança do homem, criado pelo homem".
"Não temos receio de afirmar que restam ainda muitos enigmas por resolver e que são muitas as
interrogações à espera de uma resposta certa; mas estamos absolutamente convencidos de que o progresso da
Ciência tudo esclarecerá, tudo explicará com causas materiais; dará uma interpretação fisicista a todos os
fenômenos naturais ainda envolvidos em mistérios, tornando definitiva e incontestável a vitória do materialismo
ateu ".

Lição 2: A Resposta em Tese


Logo no Prefácio do livro (pp.5-9) observa o autor:
"É possível reconhecer cientificamente, hoje, que a Criação não é um mito? Pode-se afirmar, com toda
certeza, com base em fenômenos naturais evidentes, que o materialismo marxista, negador da Criação, é falso?
Demonstram-no, de maneira brilhante, novas, imensas e insuspeitadas realidades naturais, descobertas pela
Ciência nestes últimos vinte anos, as quais estão desvendando, diante de nossos olhos, um panorama
absolutamente novo, inteiramente inimaginável, capaz de envolver o Universo desde o átomo até à galáxia, e o
Reino da vida desde a molécula até ao organismo humano. É um panorama imprevisto e imprevisível,
surpreendente e inquietante a um só tempo. Sucede hoje o que se verificou no passado: a humanidade encontra-
se diante de uma curva ao longo de seu caminho; é uma curva que atemoriza, pois não permite ver qual será a
meta. Há três séculos, a invenção do telescópio escancarou o Universo aos olhos dos homens, surpresos e
atemorizados. Emergiram dos abismos dos espaços siderais miríades de estrelas e galáxias. A Ciência
encontrou-se perante o imensamente grande. Alguns decênios mais tarde, porém, foi inventado o microscópio.
Desta vez foi o vasto mundo dos micróbios, das bactérias, das células vivas que se desvendou aos olhos dos
homens. A Ciência encontrou-se perante o imensamente pequeno.
Agora somos nós, homens de hoje, os surpresos e consternados; somos nós que devemos aceitar novas
realidades naturais 'incríveis', aparentemente absurdas até. A invenção do super-microscópio eletrônico
escancarou aos nossos olhos uma terceira imensidão. Na sua tela fluorescente podemos verificar o que sejam
realmente as células vivas e os microorganismos em geral. Esse formidável aparelho demonstrou que nossos
prestigiosos aparelhos e nossas máquinas mais sofisticadas nada mais são do que brinquedos infantis,
comparados com uma célula microscópica ou com uma bactéria. O submergível atômico ou a astronave são
bem pouca coisa comparados com um vermículo ou com um mosquito...
Vista através do microscópio eletrônico, uma folha já não é uma folha; é alguma coisa que não tem
absolutamente nada de comum com a folha; é uma extraordinária metrópole produtiva, imensa, na qual reinam
soberanas a organização e a cibernética. Não parece verdadeiro, não parece sequer imaginável, não parece uma
aquisição científica. Não foi fácil aceitar, ontem, a idéia da esfericidade da Terra; não é fácil, pensar, hoje,
numa folha cheia de automatismos, de computadores e de redes cibernéticas.
Diz-nos a Ciência que o corpo humano adulto compõe-se de um conjunto ordenado de 60 trilhões de células
vivas. São especializadas de forma a constituírem os seus diversos órgãos. É bom repeti-lo, entretanto: são 60
trilhões. Pois bem, o que é uma daquelas células, uma só?
Vê-se claramente, e sem sombra alguma de dúvida, na tela fluorescente do super-microscópio eletrônico. É
inteiramente semelhante a uma prodigiosa fábrica ultramoderna, imaginável, não, porém, projetável,
inteiramente automatizada, portanto, em condições de funcionar sem nenhuma intervenção exterior, e, além
disso, capaz de controlar toda a própria atividade, ou seja, dirigir-se. Seu diâmetro é de apenas um centésimo de
milímetro, em média, e não obstante possui numerosas máquinas, muitos dispositivos, seções de produção,
cadeias de montagem e centrais energéticas.
Não é tudo. Essa fábrica tão fabulosamente complicada não poderia funcionar nem existir, não seria sequer
imaginável sem um centro diretor, capaz de coordenar toda a atividade e de fornecer toda as indicações
necessárias. A célula possui, portanto, o próprio centro diretor no seu núcleo. Esse centro está cheio de
computadores adequadamente programados. A programação é gravada em fitas apropriadas. É o que também se
38 Escola Mater Ecclesiae
verifica em nossas fábricas, nossos bancos, nossos laboratórios científicos. Os computadores alcançaram hoje a
fase adulta, podem guiar uma sonda espacial ou dirigir uma siderúrgica.
Nós, homens, porém, conseguimos finalmente compreender o que é uma célula viva somente porque na
década de 1920 descobrimos que os elétrons podiam ser utilizados também sem fio condutor. Passamos assim
das aplicações da eletricidade às aplicações eletrônicas. Hoje podemos compreender que a célula é exatamente
automatizada e cibernética, somente porque, com os transistores, conseguimos projetar e construir os
elaboradores eletrônicos, os computadores, com os quais nos foi possível iniciar a automação e a cibernética.
Sem a eletrônica , sem os transistores, sem os circuitos lógicos e os circuitos integrados, sem o super-
microscópio eletrônico encontrar-nos-íamos ainda hoje na situação humilhante de ter pela cabeça os mitos
inventados no século passado, quando a célula parecia um grânulo de mucilagem25.
Diante dessas novas e grandiosas descobertas, a Ciência da década de 70 afirma que todo ser vivo realiza o
próprio projeto. Primeiro existe o projeto, vem a seguir a programação gravada em fita DNA e por fim há o ser
vivo. Ninguém pode inserir-se no Reino da vida por iniciativa própria, no sentido em que ninguém pode gerar-
se por si próprio, ou ser gerado por uma força mágica qualquer da matéria, como se acreditava em outros
tempos. Todos os seres vivos devem derivar de seu projeto, ser 'construídos' de acordo com a gravação de suas
fitas DNA, antecipadamente programadas.
Uma vez provado que a propriedade fundamental de todos os seres vivos, sem exclusão de nenhum, é a de
serem dotados de um projeto, a Ciência chegou à seguinte conclusão: os átomos são projetados, as moléculas
são projetadas, as proteínas são projetadas, os seres vivos são projetados, mas todos esses projetos menores
integram um projeto de conjunto, total, o qual abrange também o Sistema Solar e todo o Universo.
O átomo de hidrogênio é projetado de maneira a fazer brilhar o nosso Sol e de fornecer, ao mesmo tempo,
energia a todo ser vivo a fim de que possa 'funcionar', ser realmente vivo. É projetado de maneira a fazer brilhar
todo o Universo e a fazer 'funcionar' todo ser vivo na terra. E talvez também em outros lugares.
É um 'milagre', uma visão na qual o olho se perde atônito e a alma experimenta o tremor da emoção. É a
Criação que surge em toda sua majestade no horizonte da consciência humana. Pela primeira vez".

Lição 3: A Fita DNA


Descendo agora às minúcias do corpo humano, escreve Ravalico:
"A Ciência descobriu que o corpo humano é programado e, portanto, gravado em código, em fita. Descobriu
que cada um de nós se autoconstruiu no seio materno de acordo com a programação gravada nessa fita.
Mais: a Ciência descobriu que nosso corpo vive hoje de acordo com a programação fixada nessa fita.
Que significa isso?
Significa que sem um projeto inicial, concebido antes do aparecimento do homem na terra e sem sua
programação e gravação em fita adequada, ser-nos-ia impossível existir.
Se ouvimos a voz de um cantor e os sons de uma orquestra, isso é possível graças à gravação no disco. O
cantor não está presente, mas o que ouvimos é sua voz; também a orquestra não está presente, mas ouvimo-la
igualmente.
A Ciência descobriu, nas décadas de 50 e 60, o 'disco' e a 'gravação da vida'. Quatorze Prêmios Nobel já
foram entregues aos principais artífices dessa nova e surpreendente aquisição do conhecimento humano.
É uma descoberta imensa, inteiramente inesperada, de importância enorme. É, quiçá, a maior de todos os
tempos. Os cientistas são unânimes em afirmar que não pode existir no
Universo alguma coisa de mais maravilhoso. Não conseguem imaginar algo que possa superar esse prodígio
da Natureza..." (p. 14).
A programação em fita
"Aquela fita, capaz de converter a matéria inerte numa imensa gama de seres vivos, é indicada com a sigla
internacional DNA.
Existe uma única fita DNA para todos os seres vivos, e a gravação é efetuada da mesma maneira para todos,
quer se trate de um líquen ou de um carvalho, de um vermículo ou de uma baleia azul.
Gravamos em disco ou fita qualquer voz ou som, seja um trá-lá-lá infantil, seja uma grandiosa sinfonia
musical. Sucede igual mente para a gravação da vida, de toda forma de vida, passada ou presente. Os
dinossauros autoconstruiram-se, 'funcionaram', viveram com base na mesma gravação da fita DNA que deu
origem aos homens de hoje. Variou apenas a programação.
Atualmente, a classificação dos seres vivos abrange cerca de um milhão de espécies animais e 350.000
espécies vegetais. Existe um projeto e uma programação para cada um deles.

25
Mucilagem é a designação comum a compostos viscosos produzidos por plantas (N.d.R.).
39 Escola Mater Ecclesiae
Varia a programação, mas a gravação é a mesma para todos, protistas, plantas, animais e homens,
Foi com essa programação gravada naquela fita biológica que teve início a vida na Terra, e foi com essa
programação que ela se difundiu no tempo, até aos nossos dias.
A fita DNA é imensamente fina. Não é visível ao microscópio. Foi possível vê-la indiretamente, mediante
uma técnica nova, extremamente sofisticada, que permite ver as sombras dos átomos mediante a difração dos
raios X. Sua espessura é de apenas dois milionésimos de milímetro, igual a dez átomos. Somos incapazes de
imaginar.
É também imensamente comprida; contrariamente não poderia conter a enorme gravação necessária para
fornecer todas as indicações técnicas e as informações indispensáveis para construir um ser vivo, complicado
como é. A fita de um micróbio é, em média, mil vezes mais comprida do que o próprio micróbio. Pode caber no
micróbio, espiralada e enrolada, unicamente por ser imensamente fina.
A Ciência descobriu que na fita DNA achava-se gravada a programação completa de todo ser vivo. Contém
todas as indicações técnicas para que o ser vivo possa antes autoconstruir-se e depois, 'funcionar', ou seja, viver.
De quem derivaria esse projeto, essa programação, essa gravação em fita biogenética?
Evidentemente, apenas de Alguém que está acima da matéria e da energia, acima da própria vida e da
natureza, além do tempo e do espaço.
Somente de Deus Criador.

Uma galáxia para cada homem


Que itinerários científicos foram percorridos para chegar à descoberta, na Natureza, de uma realidade tão
imensa, tão majestosa?
As páginas seguintes desejam ser apenas uma narração episódica dessa aventura do conhecimento humano.
A primeira grande descoberta foi a seguinte: os seres vivos são formados de células como a matéria o é de
átomos. Sem átomos não existe matéria, sem células não existe ser vivo. Os menores seres vivos, as bactérias e
os micróbios, são constituídos de uma só célula. O corpo humano é constituído de um número imenso de
milhões de células.
Essa descoberta pode ser recuada ao ano 1675, quando Marcelo Malpighi, fundador da ciência da vida,
perscrutando com um dos primeiros microscópios, conseguiu ver a estrutura íntima das plantas. Percebeu que
são constituídas de número enorme de partículas fundamentais, às quais chamou utrículos. Sua descoberta
antecipara-se demasiado aos tempos, e foi logo esquecida.
Em 1938, o naturalista alemão, Mathias Schleiden, perscrutando as plantas com microscópio aperfeiçoado,
percebeu nitidamente sua estrutura celular; redescobriu os 'átomos da vida'. Seu amigo Theodor Schwann,
zoólogo, pesquisou também os organismos animais e descobriu que eles são constituídos de conglomerados de
células.
Toda célula deriva de outra célula; jamais uma célula se forma espontaneamente; a vida deriva sempre da
vida. Nosso corpo teve inicio de uma única célula-ovo, menor do que o pingo do i. A autoconstrução de nosso
organismo foi o resultado de uma subdivisão contínua de células. A primeira dividiu-se em duas; essas duas,
em quatro e assim por diante. Quando viemos à luz, nosso corpo recém-nascido era constituído de 2.300 bilhões
de células vivas, todas derivadas daquela primeira célula.
Cada um desses miríades possuía seu próprio centro diretor, com a programação de todo nosso corpo
gravada em 46 fitas DNA, acondicionadas em igual número de continentes, os cromossomos, unidos aos pares,
metade de origem materna e outra metade de procedência paterna...
No homem adulto, essas células são, segundo cálculos oficiais, não inferiores a 60 trilhões. É alguma coisa
de imenso que toda a programação da autoconstrução e do funcionamento do ser humano exista nas fitas DNA
contidas em cada um daqueles miríades ilimitados de células, uma por uma. Cada qual possui o próprio centro
diretor, que tudo dirige, coordena e verifica. As fitas DNA estão contidas naquele centro.
Quarenta e seis fitas DNA multiplicadas por 60 trilhões, para cada homem..." (pp.16"19). Estes dados, aos
quais muitos e muitos outros se poderiam acrescentar, comprovam que o mundo inanimado e, de modo
especial, os viventes (entre os quais sobressai o homem), supõem uma Inteligência que concebeu os prodígios
do macro e do microcosmos e lhes deu (e continua dando) existência.
Este Módulo ilustrativo do conceito de criação não tem perguntas anexas.

MÓDULO 14: EVOLUÇÃO - SIM OU NÃO?


Ao abordar Gn 1-2, vimos que o texto sagrado não tenciona ensinar a fenomenologia da origem do mundo e
do homem, ou seja, não entra no setor das ciências naturais; cf. Módulos 1, 2, 3 deste Curso. Resta então aberta
a questão: Será compatível a teoria da evolução com os dados da fé? - É o que vamos estudar nos três Módulos
40 Escola Mater Ecclesiae
subseqüentes, considerando respectivamente o evolucionismo em si, a origem da vida, a origem do homem à
luz da ciência e da Teologia.

Lição 1: A Tese Evolucionista


A investigação sempre mais ampla e minuciosa do mundo inanimado e das espécies vivas suscitou, no
século passado, a atenção dos estudiosos para o fenômeno da evolução. Baseavam-se no fato de que os minerais
passam de simples a complexos; numerosos fósseis parecem ser os antepassados rudimentares da flora ou da
fauna de nossos tempos; algumas espécies viventes desapareceram, mas terão dado início a espécies hoje
sobreviventes... Em conseqüência, no século passado formulou-se a teoria evolucionista, segundo a qual as
espécies atuais, vegetais e animais, provêm, por evolução, de um pequeno número de troncos primitivos ou
mesmo de um único núcleo inicial.

Eis três representantes famosos desta teoria:


1) Jean-Baptiste Lamarck, professor do Museu de História Natural de Paris, foi em 1809 o primeiro
pensador que formulou sistematicamente a hipótese evolucionista. A seu ver, os fatores (causas) de evolução
seriam três: o meio, a hereditariedade e o tempo. Com efeito; as variações do meio (clima, alimentação, tem
peratura...) provocariam transformações diversas nos corpos viventes. Também as exigências da vida em
determinado ambiente teriam suscitado aos poucos a formação de órgãos destinados a responder a tais
exigências; "a função cria o órgão", segundo Lamarck. Essas transformações se terão transmitido por
hereditariedade e se terão fixado na espécie. Como exemplo, é citado o caso da girafa: precisando de alimentar-
se dos frutos ou dos rebentos de árvores elevadas, terá desenvolvido um pescoço cada vez mais alongado.
2) Charles Darwin, em 1859, publicou o livro "A Origem das Espécies", que fez escola. Em vez de admitir
a ação do meio, propôs como fator de evolução a concorrência vital ou a luta pela vida. Todo ser vivo estaria
em luta constante contra o meio e contra as espécies concorrentes; tal luta produziria uma seleção natural, pois
os indivíduos mais fracos sucumbem na luta e sobrevivem apenas os mais fortes e mais aptos. Assim o esforço
para superar obstáculos terá produzido diferenciações entre os indivíduos. As diferenças úteis se foram
avolumando com o uso e se terão transmitido por hereditariedade.
3) De Vries, naturalista holandês, propôs outra modalidade de evolucionismo. Em vez de admitir pequenas
variações contínuas, como fizeram Lamarck e Darwin, propôs mudanças bruscas e de grande amplitude, que
terão ocorrido na fase embrionária de alguns indivíduos, em virtude de influências desconhecidas e
imprevisíveis. Concebeu assim o mutacionismo, segundo o qual não se podem encontrar formas intermediárias
entre o tipo antigo e o tipo novo; o novo aparece repentinamente, como o parecem insinuar ainda hoje
fenômenos observados na vida de certos animais e plantas. O mutacionismo assim era uma das dificuldades
encontradas pelos lamarckianos e os darwininistas, pois estes nem sempre podem apontar o elo ou as formas
intermediárias entre os indivíduos primitivos e os mais evoluídos.
Perguntamos agora:

Lição 2: Que Dizer?


Distingamos o fato mesmo da evolução e as modalidades da evolução:

2.1. O fato da evolução


Parece evidente a realidade de uma evolução, ao menos dentro dos limites de gêneros e espécies. Sem
pretender definir algo, citamos exemplos freqüentemente apontados: a nadadeira dianteira de uma baleia, a asa
de um morcego, a pata dianteira de um cavalo, o braço de um homem têm estruturas muito semelhantes entre si,
estruturas ditas paralelas ou homólogas. A embriologia comparada contorna as grandes diferenças encontradas
entre indivíduos adultos; estes podem apresentar fases embriológicas idênticas... Daí a conclusão, que, apesar
de tudo, ainda é obscura e um tanto hipotética:
Haveria na origem das espécies e dos gêneros viventes atuais um pequeno número de troncos que, por
diferenciações sucessivas, teriam pouco a pouco dado origem à multiplicidade atual. - Há quem queira reduzir
esses troncos iniciais a um único tronco ou tipo... ; tal hipótese é gratuita, pois ultrapassa o que permitem
afirmar os fatos conhecidos e seguramente estabelecidos.

2.2. As modalidades da evolução


1) As teorias de Lamarck e Darwin estão hoje praticamente abandonadas. Com efeito; as transformações não
se devem ter dado em graus insensíveis, como pensavam esses dois cientistas, pois, enquanto o órgão está em
formação paulatina, não serve à sobrevivência do indivíduo; a função não cria o órgão, mas, ao contrário,
41 Escola Mater Ecclesiae
supõe-no. O meio não exerce a influência suposta por Lamarck; além disto, a hereditariedade não parece
transmitir caracteres individuais adquiridos, mas apenas simples disposições. Ademais a luta pela vida admitida
por Darwin redunda em mecanismo cego, que não condiz com a finalidade que parece presidir a todo o
processo evolucionista.
2) O mutacionismo é mais condizente com os fatos conhecidos. Consta de mudanças ocorrentes no ser vivo
em virtude de modificação imprevisível do genótipo. Em outros termos, são mudanças repentinas do número e
da posição dos corpúsculos (genes e cromossomos) que no embrião correspondem a certos caracteres do futuro
corpo do vivente: coloração do pelo ou da pele, formato de olhos, tamanho do nariz, forma das asas, direção da
cauda, estatura, fecundidade, vitalidade, etc.
Essas mudanças
a) produzem-se de uma geração para outra de maneira brusca, apresentando-se desde o seu primeiro
aparecimento em toda a sua amplidão, em sua configuração definitiva; b) dão-se em um ou poucos indivíduos
postos em meio a milhares de outros irmãos nas mesmas condições de vida; por isto não podem ser atribuídas
exclusivamente à influência do ambiente sobre o genótipo (analisando os diversos casos, conta-se um mutante
entre cem ou também entre dez mil indivíduos);
c) atingem os órgãos mais diversos, sendo algumas nocivas a ponto de acarretar a morte precoce do
indivíduo mutante; há, pois, mutações que suprimem olhos, asas de um inseto e cauda de mamífero; a quanto
sabe, não chegam a produzir a formação de órgão novo; d) causam modificações hereditárias e duradouras
(observação muito importante!), sendo típico o seguinte exemplo: num grupo de camundongos cinzentos,
admita-se que apareça um mutante de pelo branco ("albino"); este, cruzando-se com um dos seus irmãos de
pelo cinzento, terá filhotes todos cinzentos; por sua vez, estes híbridos, cruzando-se entre si, darão origem a
nova geração assim constituída: 1/4 de animais de pelo cinzento puro; 2/4 de pelo cinzento mesclado; 1/4 de
pelo branco puro. Se de então por diante estes indivíduos brancos só entrarem em cópula com brancos, o caráter
mudado, ou seja, o colorido alvo do pelo se tornará constante através das subseqüentes gerações.
As causas que induzem mutações, não foram até hoje plenamente elucidadas. As modificações bruscas não
se devem exclusivamente a estímulos extrínsecos ao indivíduo, como foi atrás observado; já que se verificam
diversamente nas mesmas circunstâncias de vida de uma população, devem até certo grau provir de um
princípio intrínseco ao sujeito mutante. Doutro lado, porém, não são independentes do âmbito em que se acha o
vivente, pois têm sido provocadas artificialmente em laboratório, mediante a aplicação de raios de ondas curtas
(raios X e Y).26

Lição 3: O Acaso
Imaginemos agora o recurso ao acaso para explicar a origem e os fenômenos do universo.
3,1. Que é o acaso?
Por "acaso" entender-se-ia a ausência de leis e de ordens previstas por uma inteligência. Imagine-se, por
exemplo, um dedal em que haja bilhões e bilhões de átomos: girariam e agitar-se-iam sem lei nem regra, em
total anarquia. Sabe-se também que os glóbulos vermelhos, aos milhões, circulam nos vasos sangüíneos. Por
conseguinte, não se pode crer que o mundo atual seja uma combinação, entre as inúmeras combinações
possíveis que podiam casualmente proceder do caos inicial? A nebulosa primitiva podia permanecer no caos
perene... Todavia a agitação cega de seus elementos deu origem ao nosso universo.
Em resposta, pode-se observar o seguinte: O acaso é o cruzamento contingente, isto é, não necessário, nem
previsto, de duas causas independentes uma da outra, das quais cada uma age em vista de um fim determinado.
Assim, por exemplo, dois amigos se encontram por acaso numa cidade para onde cada um, sem saber do outro,
fora a negócios. Vê-se , pois, que o acaso supõe sempre duas ou mais causas que agem com ordem e finalidade.
26
Famosas se tornaram as experiências de Th. H. Morgan, que se dedicou ao estudo da Drosophila melanogaster a pequena mosca do vinagre. Este
inseto se presta particularmente a investigações por ser sobremodo fecundo; uma só fêmea pode ter de uma só vez entre 300 e 500 descendentes, os
quais se desenvolvem dentro de doze dias, à temperatura de 24 o. após algumas gerações, ou seja, dentro de dois ou três meses, obtêm-se assim
centenas de milhares de indivíduos, que constituem átimo campo de observação. O citado cientista em 1910 submeteu fêmeas da Drosophila a raios
X no momento interessante, conseguindo os seguintes resultados: dentro de um primeiro grupo, Morgan obteve uma mosca de asas chanfradas, que
deu início à raça beaded; na segunda geração desta raça, apareceu um indivíduo que tinha asas curtas demais, alargadas, com nervuras anormais,
mutante este que originou a raça de asas rudimentares. Na sétima geração da linhagem beaded observou-se um filhote que tinha as asas mal
acabadas como se houvessem cortado as suas extremidades; tornou-se o ponto de partida da raça de asas truncadas. Outro mutante tinha as asas bem
configuradas, mas reduzidas em todos os sentidos, dando princípio à raça miniatura. - Na linhagem rudimentar vieram à luz mutantes com as asas
encurvadas para cima ou para baixo, com os olhos bar etc. Apareceram aos poucos indivíduos de olhos negros, olhos reniformes , olhos rugosos,
olhos brancos, olhos castanhos, olhos róseos... Müller e nmofeeff-Ressowsky associaram-se aos trabalhos de Morgan na América e na Europa,
ocasionando a formação de 400 raças de Drosophila melanogaster, diferenciadas imprevisivelmente e das mais diversas maneiras possíveis: pelas
asas, pelas nervuras, pela cor do corpo, pela forma do abdómen, pela forma e a cor dos olhos, pelo tipo de pelo, etc. (donde D. virilis, D. simulans,
D. willistoni, D, obscura, D,funebris, D,busckii, D,immigrans...). Conhecem-se numerosas mutações também entre os vertebrados: peixes, aves e
mamíferos (cão, gato, roedores, cavalo, vaca, etc. ).
42 Escola Mater Ecclesiae
Os fenômenos ditos casuais só são casuais para quem ignora as causas que os produziram; por isto o acaso
propriamente não existe como sujeito real.
De resto, a reflexão e o bom senso recusam a hipótese de que este mundo tenha sido produzido por acaso.
Com efeito; imagine-se que alguém coloque em uma sacola os tipos de imprensa que se empregam na
composição de um jornal ; agite o todo na esperança de que tais tipos se disporão entre si de modo a dar o texto
da edição do jornal do dia seguinte. Tal esperança, embora não fosse absurda por completo, seria tão
improvável que deveria ser tida como irrisória.
Considere-se a vida. A proteína é o elemento básico de todos os organismos vivos. Para facilitar os cálculos,
admita-se que uma molécula de proteína tenha 2.000 átomos, de duas espécies apenas, com peso molecular de
20.000 e 0,9 de assimetria (a realidade é muito mais complexa). A probabilidade de se formar por acaso uma
molécula de proteína seria de 2,02 x 10-321, ou seja, um número decimal com 320 zeros depois da vírgula
(0,000...202). Supondo-se um total de 500 trilhões de lances por segundo num volume de matéria igual ao
globo terrestre, o tempo necessário para se obter uma molécula de proteína, segundo o cálculo das
probabilidades, seria de 10243 bilhões de anos. Ora a idade da terra, a partir do seu resfriamento, não passa de 2x
109 anos, ou seja, dois bilhões de anos apenas.
Admita-se, porém, que a molécula de proteína foi a que se formou por acaso em primeiro lugar, sem esperar
tantos bilhões de séculos. Admita-se até que a mesma combinação se efetuou duas vezes consecutivas. Crer,
porém, que se tenha dado ainda outra vez equivale a crer num milagre. Mais: admitir que em tempo
extremamente curto o mesmo fenômeno se tenha dado bilhões de vezes equivale a negar a aplicação do cálculo
das probabilidades a esse problema.
É preciso observar outrossim que, para formar uma célula viva, são necessários milhares de moléculas. Num
ser vivo há bilhões de células; e a paleontologia ensina que bilhões de seres vivos apareceram sobre a terra num
período de tempo extremamente curto. É impossível, portanto, apelar para o cálculo das probabilidades a fim de
explicar pelo puro acaso a existência da vida sobre a terra.
Por isto, dizia Voltaire († 1778), não sem sarcasmo: "Encham um saco de pó; lamcem-no numa pipa.
Agitem com força durante muito tempo, e hão de ver sair lá de dentro quadros, violinos, jarras de flores e
coelhos!"
Vitor Hugo († 1885), o grande poeta francês, definia o acaso como "um prato feito pelos espertalhões para
que comam os tolos".
Muito diverso é o depoimento de Einstein, que servirá de conclusão às considerações destas páginas:
"Uma profunda fé na racionalidade do edifício do mundo e um ardente desejo de apreender o reflexo da
razão revelada neste mundo deviam animar Keppler e Newton no seu longo e solitário estudo... Somente quem
consagrou a sua vida a objetivos análogos, pode ter noção clara do que sustentaram esses homens; eles
tiveram força para, entre mil insucessos, permanecer com os olhos fixos no objetivo que haviam escolhido...
Um contemporâneo disse, e não sem razão, que, em nossa época tão imbuída de materialismo, os verdadeiros
sábios são apenas aqueles que são profundamente religiosos... O sábio é penetrado do senso de causalidade
dos acontecimentos... A sua religiosidade consiste na atônita surpresa diante da harmonia das leis da
natureza, na qual aparece uma razão tão superior que, em comparação com ela, as mais engenhosas formas
do pensamento humano, com as suas diretrizes, parecem apenas um pálido reflexo... Não há dúvida, tal
sentimento é bastante semelhante ao que, em todos os tempos, animou as produções dos grandes espíritos
religiosos" (Comment je vois le monde. Ed.Flammarion, p.21).

PERGUNTAS
1) Pode-se aceitar a evolução para explicar a origem do mundo? Em que sentido seria aceitável?
2) Como julgar o darwinismo?
3) Que é o mutacionismo? É apto a explicar a realidade do nosso mundo?
4) Que é o acaso?
5) O acaso explica a realidade do nosso mundo ?

MÓDULO 15: ORIGEM DA VIDA


Lição 1: Como apareceu a Vida ?
No Módulo anterior, estudamos a hipótese da evolução da matéria do universo. Vimos que há fundamento
empírico para se admitir a evolução, ao menos dentro dos limites de gêneros e espécies. Essa evolução,
acrescentamos, não é mecanicista nem casual, mas parece visar a um modelo final; supõe, no qérmen que se
desenvolve, uma tendência inata a atingir tal modelo ou tal fim (télos, em grego). E, por isto, chamada
43 Escola Mater Ecclesiae
"evolução teleológica" ou "finalista". Supõe que o Criador, ao dar origem à matéria primitiva, lhe tenha dado
também as leis de sua evolução, de modo que os tipos mais rudes se foram aperfeiçoando segundo uma
intenção ou um plano preconcebido pelo Criador.
Restam-nos agora duas questões relacionadas com a temática abordada: 1) A vida pode ter tido origem por
evolução ou requer um ato criador de Deus? 2) O homem pode ter sido o fruto de evolução?
A primeira destas questões será considerada no presente Módulo, ficando a segunda para o Módulo seguinte.

1.1. Teorias
Assinalamos duas hipóteses propostas para explicar a origem da vida na Terra.
a) Geração espontânea: Os animais teriam origem na matéria putrefeita, diziam alguns antigos, pois vemos
que na madeira em decomposição, por exemplo, aparecem vermes; admitiam que tal surto de vida era
provocado pela ação dos corpos celestes (outrora considerados corpos vivos). - Esta teoria foi refutada pelas
experiências de Pasteur († 1895) : este sábio mostrou que em ambiente totalmente esterilizado não aparecem
vermes dentro da matéria putrefeita; estes se devem a micróbios e bactérias existentes no ar.
b) Panspermia: A vida teria chegado à Terra a partir de aerólitos ou sob forma de poeira cósmica vinda dos
espaços celestes. - Tais teorias carecem de fundamento científico, pois se derivam da imaginação. Além do
mais, não dispensam o recurso à criação e à Providência de Deus.

1.2. A sentença correta


Ao falar da origem da vida, não podemos esquecer que existem três graus de vida:
- a vegetativa: própria do vivente que se alimenta, cresce e se multiplica por geração e se restaura quando
lesado, mas não tem conhecimento nenhum. Tal é o caso das plantas;
- a sensitiva: é a dos viventes que, além das funções vegetativas, possuem conhecimento. Todavia só
conhecem objetos materiais, determinados por quantidade, extensão, cor, sabor..., notas que caem sob os
sentidos. Tais são os animais irracionais;
- a intelectiva: é a do vivente cujo conhecimento penetra além dos objetos sensíveis; abstrai das notas
concretas que caracterizam Pedro, Maria..., esta casa, esta árvore..., e apreende os caracteres essenciais, aquilo
que se verifica indistintamente em todos os homens, em todas as casas, em todas as árvores...
Ciente disto, a Teologia não pretende reconstruir os fenômenos que levaram ao surto do primeiro vivente na
terra (isto é tarefa dos cientistas), mas propõe alguns princípios derivados dos conceitos de vida e graus de vida.
Partimos do princípio de que vir-a-ser, ser e agir estão em mútua correlação. Para saber como se originou tal
indivíduo, devo saber o que ele é, e, para saber o que ele é, devo saber como ele age.
Com efeito; para saber como uma fruta teve origem, devo primeiramente saber que fruta é essa ou de que
fruta se trata; e, para saber de que se trata, devo saber os efeitos dessa fruta (produz sabor doce, amargo, ácido?
É sadia? É venenosa? É de clima quente? Ou de clima temperado?). Donde:
VIR-A-SER ← SER ← AGIR
VIR-A-SER → SER → AGIR
Ora a vida vegetativa e a sensitiva são de índole meramente material; as suas reações não ultrapassam os
limites da matéria. Por conseguinte, estes dois tipos d vida podem ter tido origem na matéria em evolução.
Reações físico-químicas podem ter provocado o surto de vida num protozoário no fundo dos mares. A matéria
inerte pode ter trazido em si desde a sua origem (desde que criada) a potencialidade para se tornar viva (com
vida vegetativa ou sensitiva), nas condições propicias para tanto. Esta afirmação não está comprovada, mas
nada envolve de impossível aos olhos da razão, visto que os viventes irracionais nada têm que vá além dos
limites da matéria.
A vida intelectiva ou do homem é de índole espiritual ou transcendental. Portanto não pode originar-se da
matéria em evolução. Já que o espírito não é matéria sutil (mas é um ser incorpóreo, dotado de inteligência e
vontade)27, a matéria não pode produzir o espírito, pois nada pode dar o que não tem.
Disto se segue que o princípio vital (a alma) do homem tem sempre origem direta num ato criador de Deus.
A alma humana é individual, criada por Deus para cada concepto no seio materno, desde o primeiro homem até
nossos dias.
27
A título de esclarecimento, notamos que há três modalidades de espírito:
ESPÍRITO não criado: Deus
(ser incorpóreo, dotado para viver sem corpo: ANJO
de intelecto e vontade) criado
para aperfeiçoar-se no corpo: ALMA HUMANA

A espiritualidade da alma humana é estudada nos Módulos 27 e 28 deste Curso.


44 Escola Mater Ecclesiae

1.3. Comentando...
1) A sentença proposta não se opõe ao evolucionismo.
Com efeito; admitamos a evolução da matéria desde o grau inanimado até o grau do vivente irracional mais
aperfeiçoado... Quando o corpo do primata, posto em evolução, estava suficientemente organizado e
diversificado em suas funções para poder ser sede da vida intelectiva ou humana, o Criador criou e infundiu
uma alma humana nesse corpo; doravante, o primata passou a ser homem 100%, embora com feições corpóreas
grosseiras.
2) Diga-se algo de semelhante em relação a todo e qualquer ser humano que nasça através dos séculos:
quando ocorre a conceição no seio materno, o Criador cria e infunde uma alma própria ao concepto que assim
se forma. Este então passa a ter sua personalidade própria, distinta da personalidade da sua genitora.
3) Já que o principio vital ou a alma é algo de indivisível (é 100% principio vital de animal irracional ou é
100% principio vital humano), não há animal que seja 80% macaco e 20% homem, ou 50% macaco e 50%
homem; mas todo primata ou é 100% macaco ou 100% homem, embora possa ter traços corpóreos muito
semelhantes aos do macaco (pode ter uma configuração corpórea de transição entre o macaco e o homem).
4) Por conseguinte, não se vê objeção, por parte da fé cristã, a que y homem pretenda produzir em
laboratório um vivente vegetativo ou um sensitivo (cão, macaco) 28. Todavia é preciso recusar a hipótese de se
produzir em laboratório a vida humana ou intelectiva, visto que esta não é o produto de reações físico-químicas,
mas, sim, de um ato criador de Deus.
5) Em síntese, podemos assim conceber as origens do mundo, da vida e do homem, em hipótese simplificada
ou atendendo apenas às exigências mínimas da Teologia:
ATO CRIADOR EVOLUÇÃO ATO CRIADOR
↓ ↓ ↓ ↓ ↓
MATÉRIA PRIMITIVA MINERAIS VEGETAIS AN. IRRACIONAIS ALMA HUMANA
INFUNDIDA
NA MATÉRIA QUANDO
DEVIDAMENTE ORGANIZADA
6) Há pensadores que, analisando as funções próprias da vida vegetativa, julgam que esta não se pode
explicar por reações físico-químicas da matéria inanimada. A vida vegetativa, por mais simples que seja, não
poderia estar incluída na potencialidade da matéria inerte. Admitem, por isto, um ato criador de Deus para
produzir a vida vegetativa mesma, desde os seus inícios. Esta tese é aceitável, mas não se impõe rigorosamente
à razão, pois a vida vegetativa e a sensitiva não transcendem o setor da matéria; são de índole meramente
material.
O que acabamos de expor, tornar-se-á ainda mais claro a seguir.

Lição 2: Um pouco de história


Observa-se que até o fim do século XVII os pensadores cristãos sempre distinguiram o universo em dois
grandes reinos: o dos seres espirituais, que compreende Deus, os anjos e a alma humana; o dos seres
materiais, que abrange todas as substâncias extensas, desde o corpo humano até o elemento químico mais sutil.
Entre esses dois reinos, julgava-se haver um hiato intransponível de modo que se admitia especial intervenção
do Criador para explicar a origem de um ser espiritual. Ao contrário, a vida vegetativa e a sensitiva pareciam
ser um produto de geração espontânea da matéria.
Aconteceu, porém, que as ciências modernas, desde Descartes († 1650), Newton († 1727), Laplace († 1828),
foram devassando os segredos da matéria inanimada, descobrindo as leis que a regem e explicando seus
movimentos. Em conseqüência, os físicos apelavam menos para a intervenção contínua de Deus no mundo;
alguns racionalistas afirmavam mesmo não ser mais necessário admitir a existência de Deus após os recentes
progressos da ciência.
Perplexos, os autores cristãos reagiram contra essa "laicização" das ciências naturais e o escândalo que ela
provocava. Mas, em vez de o fazer mostrando em que sentido Deus age no mundo sem intervir diretamente em
cada fenômeno, voltaram sua atenção para outro setor da natureza que lhes parecia ser um mistério do qual só
Deus daria contas: o dos seres vivos. As funções da vida e a sua enigmática origem lhes pareciam dar
irrefutável testemunho da contínua intervenção de Deus neste mundo. Portanto, por motivo apologético,
passaram a repartir o universo em reino da matéria inanimada e reino da vida, estabelecendo um hiato
intransponível entre não viventes e viventes.
28
Tal hipótese é, nas condições atuais do nosso saber, totalmente inviável, pois supõe operações de ciência de ficção (fantaciência) e não algo de
verossímil.
45 Escola Mater Ecclesiae
Conseqüência desta nova distinção é que a categoria dos seres vivos, por incluir o homem, passou a gozar de
todo o prestigio que se deve ao ser humano. Os irracionais, as plantas, os protozoários, por serem viventes,
passaram a ser iluminados pela luz nobilíssima do ser humano. Todos esses viventes foram tidos como
integrantes de um reino que era preciso defender em bloco contra os ataques do laicismo e do ateísmo. Os
princípios religiosos e morais mais elevados pareceram a muitos autores indissoluvelmente associados às
concepções que tinham a respeito do vivente mais modesto.
Eis como, em esquema, se poderiam reproduzir as duas concepções:
Concepção tradicional Concepção apologética recente
ESPÍRITO: Sempre vivo VIDA: setor cujos elementos (desde o
no grau intelectivo protozoário até os viventes superiores)
são mais ou menos assimilados ao
homem, portador da imagem de Deus.
sensitiva
animada
vegetativa MATÉRIA INANIMADA- setor laicizado
MATERIA
inanimada

Como se vê, a tese que admite abismo intransponível entre o ser inanimado e o animado, tardia e contingente
como é, pode ceder lugar à antiga e tradicional concepção. Neste caso, não haveria dificuldade em admitir
(dado que as ciências naturais o insinuassem) a transição da matéria inanimada para os graus da vida vegetativa
e senstiva (não, porém, para o da vida intelectiva, que supõe um princípio vital espiritual).
Enquanto não se souber precisamente definir em que consistem a vida e as funções vitais, fica a critério de
cada estudioso optar ou pela tese que afirma a absoluta transcendência da vida em relação ao inanimado, ou
também optar pela sentença que ensina ser a vida vegetativa e sensitiva o produto de um funcionamento mais
complexo e perfeito da matéria orgânica, coloidal.

PERGUNTAS
1) Que é "evolução teleológica (finalista)"?
2 Quantos tipos de princípio vital existem? Caracterize-os bem.
3) Poderia dizer como, na mais simples das hipóteses, se conciliam criação e evolução?
4) A matéria viva pode provir da matéria inanimada?
5) Exponha as duas concepções possíveis relativas a matéria, espírito, matéria inanimada e a matéria
animada.

MÓDULO 16: ORIGEM DO HOMEM E EVOLUÇÃO


Resta agora considerar a teoria que afirma a origem do homem por evolução. A questão é freqüentemente
mal colocada, pois se pergunta se o homem vem do macaco - o que suscita animosidade e discussões.
Estudaremos serenamente o assunto, propondo, logo de início, uma distinção fundamental.

Lição 1: Homem: Composto de Corpo e Alma


Não se pode responder adequadamente à pergunta acima se não se observa a distinção entre os dois
componentes do ser humano, que são o corpo e a alma. Na verdade, o homem não é um bloco monolítico, mas
a unidade do homem provém de que os seus dois componentes (corpo material e alma espiritual) se unem entre
si como matéria e forma no sentido aristotélico-tomista. A alma é o principio vital que vivifica a matéria, e faz
que o cálcio, o ferro, o magnésio, o potássio e os demais elementos químico do organismo humano funcionem
não isoladamente, mas como integrantes de um conjunto harmonioso e unitário, que se chama "o ser humano".
Visto que o corpo é matéria e a alma é espírito, cada qual destes dois componentes tem sua origem própria.

1.1. Origem da Alma Humana


Sendo espiritual, a alma humana não provém da matéria em evolução, pois o espírito não é éter nem gás,
nem energia elétrica mas é um ser totalmente incorpóreo (não redutível a números ou não "matematizável"),
lotado de inteligência e vontade. Por conseguinte, a alma humana é criada diritariente por àius e infundida ao
óvulo fecundado pelo espermatozóide, dando assim origem a um embrião ou um novo ser humano. Até nossos
dias a alma humana é criada diretamente por Deus todas as vezes que se dá a fecundação de um óvulo.
46 Escola Mater Ecclesiae

1.2. Origem do Corpo Humano


Se o corpo humano é matéria, nada impede que se admita a origem do mesmo a partir da matéria viva
preexistente. Assim falando, o teólogo não professa necessariamente o evolucionismo ou o fato da evolução,
mas professa a legitimidade ou racionalidade (a possibilidade lógica) da evolução da matéria viva. Toca à
ciência, mediante suas pesquisas paleontológicas, precisar a resposta, afirmando ou não o fato e, eventualmente,
as modalidades da evolução.
Dado, porém, que o corpo humano venha da matéria viva preexistente, não se pode dizer que vem ou
procede do macaco tal como hoje o conhecemos (orangutango, chimpanzé, gorila), pois este tipo de viventes
está de tal modo especializado que não evolui mais 29. O corpo humano viria então de um tronco mais primitivo
dito "o primata", do qual teriam procedido os macacos mais aperfeiçoados e o corpo organizado, apto a ser sede
da vida humana. A este corpo organizado o Criador terá infundido a alma humana, especialmente criada para
tal corpo, dando assim origem a um vivente especificamente diverso dos macacos, pois dotado de alma
( princípio vital) espiritual, à diferença dos macacos, cujo princípio vital (alma vegetativa e sensitiva) é
material; não há, pois, o salto da vida do macaco para a vida do ser humano; o princípio vital do primata terá
desaparecido quando Deus lhe terá infundido a alma humana. Desta maneira há de ser entendida a expressão "o
homem é primo do macaco", não descendente do macaco; note-se bem, aliás, que não se trata do homem como
tal, mas apenas do corpo humano, sendo ainda que tal corpo animado por uma alma espiritual pertence a uma
categoria de viventes muito superior à dos macacos.

Lição 2: O Pensamento da Igreja


A doutrina atrás exposta está contida nos ensinamentos da Igreja. A propósito pronunciou-se o Papa Pio XII
em sua encíclica Humani Generis datada de 12/08/50:
"O Magistério da Igreja não proíbe que, em conformidade com o atual estado das ciências e da teologia,
seja objeto de pesquisas e de discussões, por parte dos competentes em ambos os campos, a doutrina do
evolucionismo, enquanto ela investiga a origem do corpo humano, que proviria de matéria orgânica
preexistente(a fé católica nos obriga a professar que as almas são criadas imediatamente por Deus). Isto,
porém, deve ser feito de tal maneira que as razões das duas opiniões, isto é, da que é favorável e da que é
contrária ao evolucionismo, sejam ponderadas e julgadas com a necessária seriedade, moderação, justa
medida e contanto que todos estejam dispostos a se sujeitarem ao juízo da Igreja, à qual Cristo confiou o ofício
de interpretar autenticamente a S. Escritura e de defender os dogmas da fé. Alguns, porém, ultrapassam
temerariamente esta liberdade de discussão, procedendo como se estivesse já demonstrado com certeza plena
que o corpo humano se tenha originado de matéria orgânica preexistente, argumentando com certos indícios
encontrados até agora e com raciocínios baseados sobre tais indícios; e isto como se nas fontes da Revelação
não existisse nada que exija neste assunto a maior moderação e cautela."
O S. Padre João Paulo 11 em mensagem dirigida à Pontifícia Academia das Ciências, datada de 22/10/1996,
escrevia:
"Pio Xll sublinhou este ponto essencial: se o corpo humano tem a sua origem da matéria viva que lhe
preexiste, a alma espiritual é imediatamente criada por Deus ('animam enim a Deo immediate creari catholica
fides nos retinere iubet', Enc. 'Humani generis', AAS 42 [1950], pág. 575).
Como conseqüência, as teorias da evolução que, em função das filosofias que as inspiram, consideram o
espírito como emergente das forças da matéria viva ou como um simples epifenômeno desta matéria, são
incompatíveis com a verdade sobre o homem. Elas são, por outro lado, incapazes de fundar a dignidade da
pessoa.
Com o homem, encontramo-nos então diante duma diferença de ordem ontológica, diante dum salto
ontológico, poder-se-ia dizer. Mas supor uma tal descontinuidade ontológica, não é ir ao encontro desta
continuidade física que parece ser como o fio condutor das pesquisas sobre a evolução, e isto a partir do plano
da física e da química? A consideração do método utilizado nas diversas ordens do saber permite harmonizar
dois pontos de vista, que pareceriam inconciliáveis. As ciências da observação descrevem e medem, de modo
cada vez mais preciso, as múltiplas manifestações da vida e inscrevem-nas na linha do tempo. O momento da
passagem para o espiritual não é objeto duma observação deste tipo, que não pode nem sequer manifestam a
nível experimental, uma série de sinais muito preciosos da especificidade do ser humano. Mas a experiência do
saber metafísico, da consciência de si e da sua reflexividade, a da consciência moral, a da liberdade, ou ainda a
29
A evolução não é um processo indefinido; ela chega ao seu clímax; após o quê, declina. É o que se dá, por exemplo, com os chifres dos animais
irracionais: até certo ponto, são instrumento valioso de defesa; quando porém, excedem determinadas dimensões, tornam-se trambolho mortífero.
Algo de semelhante ocorre com a cauda: até certo tamanho é útil; ultrapassadas essas dimensões, vem a ser um peso morto.
47 Escola Mater Ecclesiae
experiência estética e religiosa, são da competência da análise e da reflexão filosófica, ainda que a teologia
esclareça o seu sentido último segundo os desígnios do Criador".
Como se vê, o Papa João Paulo II retoma e abona a posição de Pio XII, levando-a um pouco mais adiante,
pois afirma que "a teoria da evolução é mais do que uma hipótese"; visto o grande número de dados empíricos
(fósseis, testemunhos da Genética e da Biologia), o Papa admite a grande probabilidade da evolução. Esta
atitude de João Paulo II (que, como se vê, não canonizou nem dogmatizou a evolução) causou espécie ao
grande público; pelo quê exige elucidação:
1) ao se pronunciar de tal maneira, João Paulo II não falou como Mestre da fé nem tencionou formular um
dogma, mas, como estudioso e em seu nome pessoal, diz aceitar a verossimilhança da teoria evolucionista. Se
algum fiel católico não concorda com tal teoria, não está ferindo o Credo; tenha a liberdade de pensar como
queira;
2) a Igreja combateu o evolucionismo proposto por Charles Darwin de modo que, ao aceitar hoje a teoria da
evolução, parece cair em contradição... - A contradição é apenas aparente: a Igreja opôs-se ao darwinismo por
ser uma doutrina mecanicista, ateleológica; afirma a evolução na base da "luta pela vida (struggle for life)": as
espécies mais fortes terão subsistido nesse embate, ao passo que as mais fracas terão perecido. Ora tal teoria
contrariava os dados da fé; esta admite um Deus Criador Providente, que concebeu o universo e o ser humano
segundo a sua sabedoria ou segundo modelos e metas a realizar. Com o decorrer do tempo, porém, o primeiro
impacto causado pelo darwinismo foi-se amainando... ; os teólogos abriram os olhos para os dados cada vez
mais evidentes da evolução e perceberam que poderiam distinguir entre os elementos empíricos e a
interpretação filosófica materialista que Darwin lhes dava; assumiram os resultados da paleontologia, e os
interpretaram em chave finalista, ou seja, à luz da Providência Divina, que tem seu plano a respeito do mundo e
do homem; se a evolução ocorreu (diga-o a ciência, definindo tanto o fato quanto as modalidades do mesmo),
ocorreu segundo intenções predefinidas pelo Criador, e não ao acaso nem por efeito da força bruta. O que a
Igreja rejeitou, e rejeita, no darwinismo, é a sua perspectiva materialista, que dispensa a Sabedoria Divina. A
evolução torna-se assim aceitável... aceitável na proporção dos argumentos concretos, de ordem experimental,
que a possam fundamentar. Dizemos aceitável (podendo ser aceita), e não "definida como dogma de fé".
O que a Igreja propõe como absolutamente certo no tocante à origem do mundo e do homem, são dois
pontos básicos:
a) Criação da matéria inicial, em sua forma primitiva, como os cientistas a concebem ao falar do big bang
ou de teorias semelhantes. A matéria não é eterna, mas criada por Deus. - Este lhe poderá ter dado as leis da sua
evolução, que a foram organizando ou complexificando através dos reinos mineral, vegetal e animal irracional.
b) Quando a matéria atingiu o grau de evolução correspondente ao do organismo humano, o Senhor Deus
terá criado a alma espiritual para esse organismo, dando origem ao ser humano.
A concepção católica, portanto, inspirada pela sã razão e pela fé, exige dois atos criadores de Deus: o
primeiro para dar origem à matéria primitiva, donde terá procedido a evolução; e o segundo, para dar origem ao
espírito, ou seja, às almas30 dos primeiros seres humano se dos seus descendentes.
Levanta-se, porém, uma dúvida:

Lição 3: E a Palavra da Bíblia?


Em Gn 2,7 está dito que Deus formou o corpo do homem a partir do barro - o que parece excluir o conceito
de evolução.
A propósito, porém, deve-se observar o que já foi dito no módulo 2 deste Curso e vai, a seguir, em parte
reproduzido:
1) a S. Escritura não foi redigida para ensinar ao homem ciências naturais. Ela tem em vista expor ao homem
o sentido e o valor das criaturas que as ciências exploram e descrevem. Esta verdade tornou-se evidente em
conseqüência do caso Galileu (séc. XVII), de modo que nenhum exegeta a põe em dúvida nos nossos dias.
2) A imagem do Deus - Oleiro era muito freqüente na antiguidade pré-cristã, visto que, para um povo
primitivo, o oleiro é um "pequeno Deus". Com efeito; a população depende dele para obter seus jarros, pratos e
tigelas: ademais trabalha com agilidade e presteza que o tornam figura venerável. É o que atesta o exegeta G.
Lambert, no artigo L'Encyclique "Humani Generis" et l'Ecriture Sainte, em Nouvelle Revue Théologique
73 (1951) 234:

30
A alma humana é espírito ou espiritual. Todavia devemos notar que o conceito de espírito é mais amplo do que o de alma. Espírito é, sim, um ser
incorpóreo dotado de inteligência e vontade. Ora Deus é espírito não criado. O anjo é espírito criado para existir sem corpo. A alma humana é
espírito criado para se aperfeiçoar no corpo.
48 Escola Mater Ecclesiae
"Não se pode perder de vista a importância da cerâmica nas civilizações antigas e primitivas e quanto a
profissão do oleiro estava espalhada. Para o homem que então procurava explicação para a sua origem própria,
a hipótese do Oleiro Divino era algo de óbvio, como parece...
Numa viagem às terras bíblicas, o autor destas linhas visitou um oleiro de Naplous. Em homenagem aos seus
visitantes, o velho artesão fabricou sucessivamente, em um nada de tempo, uma lamparina com três bocas, um
gracioso jarro de quinze centímetros de altura, um pote para o leite, um jarro grande e dilatado, de
aproximadamente cinqüenta centímetros de altura. Não tinha instrumento a não ser seus olhos, o polegar e o
dedo indicador; não tinha compasso a não ser os seus olhos. Sobre o seu torno, que ele impulsionava com o pé,
todos estes objetos surgiam de repente entre os seus dedos criadores, a seu bel-prazer e segundo a sua fantasia.
Com maravilhosa facilidade e surpreendente rapidez. Então foi-nos dado compreender porque nas Escrituras o
oleiro e sua obra servem de imagem da obra do Criador. Tal imagem evoca perfeitamente a soberana liberdade
de Deus, seu maravilhoso poder criador seu domínio absoluto sobre a obra de suas mãos, a total dependência da
criatura que somos nós frente ao nosso Criador assim como a bondade e a misericórdia de Deus para com a
nossa fragilidade.
O tema antigo e popular do Deus - oleiro poderá parecer infantil e simplório tão somente àqueles que não se
derem ao trabalho de procurar conhecer a mentalidade segundo a qual tal explicação nos é proposta pelo Divino
Autor das Escrituras".
Eis alguns exemplos de quanto era propagada a imagem do Deus-oleiro na antigüidade, especialmente entre
os assírios e babilônios, os egípcios, os autores gregos e latinos, assim como nas tradições de alguns povos ditos
primitivos:
Assim na epopéia babilônica de Gilgamesch conta-se que, para criar Enkidu, a deusa Aruru "plasmou
argila". Na lenda assiro-babilônica de Ea e Atar-hasis, a deusa Miami, intencionando criar sete homens e sete
mulheres, fez quatorze blocos de argila, dos quais suas auxiliares plasmaram quatorze corpos; a deusa rematou-
os, imprimindo-lhes traços de indivíduos humanos e configurando-os à sua própria imagem.
No Egito um baixo-relevo em Deir-el-Bahari e outro em Luxor apresentam o deus Cnum modelando sobre a
sua roda de oleiro os corpos respectivamente da rainha Hatshepsout e do Faraó Amenofis III; as deusas
colocavam sob o nariz de tais bonecos o sinal hieroglífico da vida, para que a respirassem e se tornassem seres
vivos.
Entre os Maoris da Nova Zelândia conta-se o seguinte episódio:
Um certo deus, conhecido pelos nomes de Tu, Tiki e Tané, tomou argila vermelha à margem de um rio,
plasmou-a misturando-lhe o seu próprio sangue, e dela fez uma cópia exata da divindade; depois de a terminar,
animou-a soprando-lhe na boca e nas narinas; ela então nasceu para a vida, e espirrou. O homem plasmado pelo
criador Maori parecia-se tanto com este que mereceu por ele ser chamado Tiki-Ahua, isto é, imagem de Tiki.
Quando o escritor sagrado em Gn 2,7 recorre à imagem do Oleiro, não quer significar senão que há uma
analogia entre o oleiro e Deus no modo de tratar seu artefato: como o oleiro é sábio, providente, carinhoso,
soberano...em relação ao barro, assim Deus é (infinitamente mais) sábio, providente, carinhoso, soberano em
relação ao homem, independentemente do modo como tenham vindo à existência o homem e a mulher.
Assim se verifica que o texto bíblico não faz obstáculo às concepções modernas à origem do ser humano.

PERGUNTAS
1) Qual é a distinção fundamental que se deve observar para resolver a questão da origem do ser humano ?
2) Em que sentido se pode falar da origem do ser humano por evolução?
3) Que diz a Igreja a respeito?
4) A condenação do darwinismo não é a condenação do evolucionismo?
5) O texto bíblico exclui a evolução?

MÓDULO 17: MONOGENISMO OU POLIGENISMO?


Uma questão ligada à origem do primeiro homem e da primeira mulher é a de saber se Adão e Eva eram dois
indivíduos apenas (no caso, tem-se o monogenismo) ou se representavam o gênero humano todo com a plural
idade de indivíduos existentes em sua origem (no caso tem-se o poligenismo). É o que vamos estudar neste
Módulo.

Lição 1: O Problema
Muitos dos autores que admitem a evolução das espécies, julgam que a passagem de uma espécie a outra,
superior, se faz geralmente em ramos ou populações ("par buissonnements", em tufos), e não em um casal
49 Escola Mater Ecclesiae
apenas; a evolução nesses ramos pode-se realizar convergentemente, tendo por termo uma estirpe única,. com
caracteres mais ou menos uniformes. Tal teria sido o caso do gênero humano atual; dizem-no produto da
evolução convergente de vários troncos independentes uns dos outros. - Esta teoria é conhecida pelo nome de
"polifiletismo".31
Em oposição está o "monofiletismo", que afirma ser o gênero humano oriundo de um ramo apenas.
Ulteriormente, dentro do monofiletismo, duas hipóteses se defrontam: o monogenismo e o poligenismo. Este
último pretende que muitos casais do mesmo ramo deram origem à humanidade atual. O monogenismo, ao
contrário, defende que todos os homens descendem de um único casal. O monogenismo, portanto, supõe
sempre monofiletismo; o monofiletismo, porém, não implica necessariamente monogenismo. O que assim se
pode esquematizar:

POLIFILETISMO: muitos troncos (populações) e, conseqüentemente, muitos casais


originários.
MONOFILETISMO: um tronco(população) originário
POLIGENISMO: muitos casais do mesmo tronco, originários
MONOGENISMO: um casal do único tronco, originário.
Ao passo que as diversas sentenças têm seus defensores entre os autores modernos, a tradição cristã sempre
afirmou o monogenismo, ou seja, a doutrina de que todo o gênero humano descende de Adão e Eva. Em
conseqüência, porém, das descobertas e teorias dos cientistas, tem-se perguntado, entre os católicos, se tal
posição é dogma ou, ao contrário, se não poderia ser sujeita a reforma, admitindo a Igreja um certo poligenismo
ou até um polifiletismo, como recentemente reconheceu possível um certo evolucionismo.

Lição 2: O Magistério da Igreja


Em 1950, na encíclica "Humani Generis" o S. Padre Pio XII fez o primeiro pronunciamento explícito do
Magistério da Igreja a respeito do poligenismo. Disse então:
"Quanto... ao poligenismo, os filhos da Igreja de modo nenhum gozam da mesma liberdade 32, pois os fiéis
não podem abraçar uma opinião cujos fautores ensinam que depois de Adão existiram na terra verdadeiros
homens que não tenham tido origem, por via de geração natural, do mesmo Adão, progenitor de todos os
homens, ou então que Adão representa um conjunto de muitos progenitores. Ora não se vê de modo algum
como estas afirmações se possam conciliar com o que as fontes da Revelação e os atos do Magistério da Igreja
nos ensinam acerca do pecado original, que provém do pecado verdadeiramente cometido individualmente
porAdão e que, transmitido a todos por geração, é inerente a cada um como próprio" l'Acta Apostolicae
Sedis"32 [1950] 576).
As palavras do Pontífice parecem ter sido cautelosamente ponderadas, afim de não proferir condenação
formal sobre o poligenismo. S. Santidade não afirmou que o poligenismo não se pode conciliar com a fé cristã,
mas quis apenas dizer que a teologia em sua época (1950) não via como conciliar poligenismo e fé cristã ("não
se vê ... como...conciliar"). Asseveram os comentadores da encíclica "Humani Generis" que Pio Xll muito
intencionalmente assim se exprime a fim de não fechar o caminho a posteriores declarações do magistério da
Igreja mais favoráveis ao poligenismo.Cf. G. Vanderbroek-L. Renwart, L'Encyclique 'Humani Generis' et les
sciences naturelles, em Nouvelle Revue Théologique 73 (1951) 337-351; L. Scheffczyk, Adams Suendenfall
em Won und Wahrheit 20 (1965) 762.
As palavras de Pio Xl1 foram entendidas por certos teólogos como estimulo para ulteriores pesquisas sobre o
assunto. Em nossos dias, há bons mestres da teologia católica33 que asseveram o seguinte:
O pecado original constitui uma doutrina de fé. Todavia não se diga o mesmo do monogenismo. Este vem a
ser uma teoria ou hipótese do setor das ciências naturais, não da religião. O monogenismo poderia ser um "fato
dogmático", se o pecado original só se pudesse explicar dentro de uma visão monogenista da pré-história; então
dir-se-ia que a fé exige o monogenismo.
Tal, porém, não é o caso. Hoje em dia teólogos de valor afirmam e demonstram que a doutrina do pecado
original pode subsistir perfeitamente dentro de uma perspectiva poligenista, isto é, na hipótese de que o gênero
humano atual descenda de muitos casais. - Dada esta hipótese, dever-se-ia, para explicar o pecado original,
asseverar uma das duas seguintes sentenças:
31
Em grego, poly = muito; phylon= tronco, ramo.
32
Pio Xll refere-se à liberdade concedida para se aceitar o evolucionismo do corpo humano. Ver Módulo 14 deste Curso.
33
Entre outros, merece ser nomeado Karl Rahner no artigo "Péché originel et évolution" da revista "Concilium'[ 26 de junho de 1967, pág. 60. Diz
Rahner textualmente: "No estado atual da teologia e das ciências, não se pode provar com certeza que o poligenismo é inconciliável com a doutrina
ortodoxa concernente ao pecado original". Vejam-se outrossim M. Crusafont, B. Melendez E. Aguirre, na obra coletiva "La Evolución'[ tomo 258 da
"Biblioteca de Autores Cristianos".
50 Escola Mater Ecclesiae
1) Todos os indivíduos do primitivo berço do gênero humano pecaram, cada qual do seu modo. O caso
relatado pelo livro do Gênesis seria apenas um caso típico, um arquétipo, que se teria reproduzido
analogamente tantas vezes quantos fossem os casais originários. - Estes muitos pecados iniciais teriam dado
origem a muitas estirpes de homens portadores da natureza humana sem a graça; ter-se-ia então exatamente o
que a Teologia chama pelo nome de pecado original.
O próprio nome Adão, que ocorre em Gn 2,3, pode ser entendido como substantivo comum, pois em
hebraico significa "homem". Tal substantivo pode muito bem, à luz da lingüística, designar o gênero humano
(com tantos indivíduos quantos de fato tinha nos seus inícios). Não é necessário, segundo a filologia, entender
Adão como nome próprio designativo de um só homem. - Observe-se, aliás, que a raiz àdam supõe a língua
hebraica em que foi redigido Gn 2-3, língua que por certo os primeiros homens não falavam.
2) Caso não se aceite que todos os homens do berço primitivo da humanidade tenham pecado, dir-se-á, sem
ofender a fé, que apenas um deles pecou. Deus, porém, houve por bem constitui-lo cabeça jurídica de todos os
seus semelhantes, de modo que a sorte acarretada portal indivíduo sobre si mesmo se tornou a sorte de todos os
seus contemporâneos. Em conseqüência, todos transmitiram a seus pósteros a natureza humana destituída da
graça.
Esta outra explicação poligenista do pecado original é plausível. Qualquer das duas hipóteses propostas é
aceitável.
Não haveria, porém, objeção a fazer ao poligenismo da parte da Sagrada Escritura do Novo Testamento?
O texto de Rm 5, 12-20 é freqüentemente evocado para corroborar a tese de que Adão em Gn 2-3 significa
um só homem:
"Foi por um só homem que o pecado entrou no mundo e pelo pecado a morte, a qual atingiu todos os
homens, visto que todos pecaram... Se, pela culpa de um só, a morte reinou por obra de um só homem, com
muito mais razão aqueles que recebem com abundância a graça hão de reinar por obra do único homem Jesus
Cristo. Assim, pois, como, pela culpa de um só, houve para todos os homens a condenação, assim, pela justiça
de um só, há para todos os homens a justificação, que dá a vida. Com efeito, assim como pela desobediência de
um só homem todos os outros foram constituídos pecadores, da mesma forma pela obediência de um só homem
todos os demais serão constituídos justos" (Rm 5, 12. 17-19).
A exegese moderna julga que São Paulo, nesta passagem, se refere ao texto do Antigo Testamento
simplesmente para incutir a solidariedade de todos os homens tanto no pecado como na Redenção, sem querer,
com isto, dirimir a questão atual de "poligenismo ou monogenismo". - Ao propor esta sentença, os estudiosos
católicos não têm sido censurados pelo magistério da Igreja.
Quanto ao Concílio de Trento, que, ao definir o pecado original, apelou para Rm 5, 12-20, julgam bons
teólogos (entre os quais K. Rahner, art. cit.) que apenas teve em mira o pecado original, e não o monogenismo.
Até hoje o magistério da Igreja não se pronunciou oficialmente sobre o poligenismo. O Catecismo da Igreja
Católica não faz menção do mesmo; ver n o 360. Há um discurso de Paulo VI proferido em 11/07/1966 a uma
Comissão de Teólogos, que chama a atenção para o perigo de precipitação em tal setor de estudos. Eis o que
diz:
"Convictos de que a doutrina do pecado original, tanto no que diz respeito à sua existência e universalidade,
como no que concentre ao seu caráter de verdadeiro pecado, mesmo nos descendentes de Adão, e às suas tristes
conseqüências para a alma e o corpo, é uma verdade revelada por Deus em diversas passagens dos livros do
Antigo e do Novo Testamento, principalmente nos textos que muito bem conheceis, de Gênesis 3, 1-20 e da
epístola dos Romanos 5, 12-19, tende grande cuidado, ao aprofundar e precisar o sentido dos textos bíblicos,
em permanecer fiéis às normas infalíveis que emanam da "analogia fidei" das declarações e definições dos
Concílios acima citados e dos documentos oriundos da Sé Apostólica. Assim estareis certos de respeitar 'o que
a Igreja Católica, esparsa em todo o universo, sempre compreendeu', isto é, o modo de sentir da Igreja
universal, docente e discente, que foi considerado 'regula fidei' pelos Padres do segundo Concílio de Cartago, o
primeiro Concílio que, contra os Pelagianos, tratou do pecado original.
É, pois, evidente que julgareis incompatíveis com a sã doutrina católica as explicações do pecado original
propostas por certos autores modernos. Estes, partindo de um pressuposto jamais provado, o poligenismo,
negam, de maneira mais ou menos clara, que o pecado que acarretou tantos males para o gênero humano, tenha
sido, antes do mais, a desobediência de Adão, 'o primeiro homem', figura do homem vindouro (cf. Gaudium et
Spes n9 13 e 22), desobediência cometida no início da história. Por conseguinte, essas explicações estão em
desacordo com os ensinamentos da Sagrada Escritura, da Tradição e do Magistério da Igreja, segundo os quais
o pecado do primeiro homem é transmitido a todos os seus descendentes não por via de imitação, mas de
propagação, inest unicuique proprium, e é (tal pecado) a morte da alma, ou seja, uma privação, e não mera
ausência, de santidade e de justiça, mesmo nas crianças recém-nascidas.
51 Escola Mater Ecclesiae
Igualmente vos parecerá inaceitável a teoria da evolução na medida em que não se concilie francamente com
a criação imediata por Deus de todas as almas humanas e de cada uma delas, nem respeite a importância
capital, para as sortes da humanidade, da desobediência de Adão, o primeiro pai de todo o gênero humano.
Essa desobediência não deve ser considerada como se não tivesse feito Adão perder a santidade e a justiça
nas quais fora constituído. Eis, caros Filhos, as reflexões e exortações que julgamos oportuno confiar a vós no
início do vosso Simpósio. Na luz do Salvador universal, prometido aos nossos primeiros pais como reconforto e
esperança logo após a queda, perscrutareis o abismo da malícia humana aberto pelo pecado original, que teve
em Jesus Cristo o seu Reparador triunfante, pois "onde o delito abundou, a graça foi dada em superabundância
por Jesus Cristo Nosso Senhor" (Rm 5,20-21)".
Logo no inicio do seu pronunciamento, recordava o Pontífice:
"O mistério do pecado original está intimamente associado ao mistério do Verbo Encarnado, Salvador do
gênero humano, à Sua Paixão, à Sua Morte, à Sua gloriosa Ressurreição e, por conseguinte, também à
mensagem de salvação confiada à Igreja Católica. Em verdade, a que finalidade pode tender a ação pastoral da
Igreja se não à Redenção da natureza humana, que, por Deus Todo-Poderoso admiravelmente criada em Adão e
em Adão miseramente decaída, foi por Deus misericordioso, pela graça do único Mediador Jesus Cristo, ainda
mais admiravelmente recriada e regenerada para a vida divina?"
O principal motivo da atitude reservada do magistério eclesiástico é a prudência que o assunto exige. Muitos
dos pensadores que abraçam o poligenismo, vêm a negar, direta ou indiretamente, o dogma do pecado original ;
uma hipótese da ciência parece ser argumento para destruir uma verdade da fé...,
Em verdade, o poligenismo não se impõe necessariamente nem à ciência nem à fé. Nenhum estudioso pode
demonstrar por dados empíricos quantos indivíduos houve no principio da estirpe humana, nem está em
condições de reconstituir as primeiras fases da pré-história; é possível mesmo que nunca a ciência chegue a
tanto. Em qualquer hipótese (monogenista ou poligenista), a Igreja sabe que o dogma do pecado original
subsiste incólume.
Vê-se, pois, que a questão "poligenismo ou monogenismo?" não é decisiva para o ensinamento católico. Será
sempre necessário distinguir entre a doutrina religiosa do pecado original e as teorias científicas concernentes
ao berço da humanidade primitiva.

Lição 3: Noções Complementares


3.1. Pré-adamitas
A título de complemento, pode-se dizer que a Escritura Sagrada não exclui a existência de verdadeiros
homens anteriores a Adão ou pré-adamitas ; ter-se-ão extinto com o aparecimento de Adão sobre a terra, de
sorte que todos os homens hoje existentes são filhos de Adão. A respeito dos pré-adamitas, pode-se admiti r que
se tenham originado de vários casais (poligenismo) ; a fé nada ensina a tal propósito.
Visto que a Bíblia não nos indica a época em que viveu Adão, não há dificuldade em atribuir tal ou tal fóssil
a estirpes anteriores a Adão ou pré-adamíticas. - Isto seja dito aqui unicamente para tranqüilizar os espíritos que
julguem absolutamente dever admitir o poligenismo: não se incompatibilizam com a fé cristã, desde que se
coloquem no plano dos pré-adamitas. Apenas lembraríamos que convém sermos sóbrios neste terreno, que
facilmente escapa ao domínio dos dados positivos, favorecendo as divagações da fantasia.

3.2. Aspecto Físico dos Primeiros Homens


Quanto ao aspecto físico de Adão, não há dificuldade em conciliá-lo com os dados da ciência. A tradição
judaico-cristã sempre julgou que o primeiro pai era dotado de harmonia ou beleza física correspondente às
riquezas sobrenaturais de sua alma; terá perdido esse encanto após o pecado, gerando então uma estirpe
caracterizada por traços somáticos primitivos e cultura rudimentar; tal é, sim, a linhagem de que nos falam os
fósseis. - Contudo não há necessidade de admitir que Adão tenha sido fisicamente mais belo e culturalmente
mais evoluído do que os demais homens da pré-história; pode-se muito bem conceber que os dotes de alma que
ele possuía, não se espelhavam sobre o seu corpo; a manifestação desses dons estava condicionada à
perseverança de Adão no estado de inocência. O primeiro pai, porém, não perseverou; por isto, não se terá
diferenciado, no plano meramente natural, dos demais homens pré-históricos.
Não se deve acentuar exageradamente a perfeição do estado primitivo da humanidade dito "de justiça
original". Terá sido um estado digno de todo apreço, mas do ponto de vista religioso e moral apenas, não sob o
aspecto da civilização ou da cultura. Os primeiros homens de que fala o
Gênesis, podem muito bem ter tido a configuração rudimentar ou grosseira de que dão indícios os fósseis da
pré-história; não é necessário que hajam vivido de modo diferente daquele que conjeturam as ciências naturais.
Mesmo as idéias religiosas de Adão poderão ter sido puras, sim, mas sob a forma de intuições concretas
52 Escola Mater Ecclesiae
semelhantes às dos povos primitivos e das crianças; não se tratava de altos conhecimentos teológicos. - Vê-se,
pois, que as clássicas descrições do "paraíso terrestre" não devem em absoluto ser identificadas com a doutrina
da fé.
3.3. Realidade Histórica dos Primeiros Pais
É falso dizer que Adão e Eva nunca existiram ou que são mero artifício literário. São tão reais quanto o
gênero humano é real. O texto sagrado nos diz que Deus tratou com o homem nas suas origens..., com o homem
real e não com um ser fictício. E a história referente aos primeiros pais é história real, embora narrada em
linguagem figurada ( serpente, árvores, fruta...).

PERGUNTAS
1) Que são polifiletismo, monofiletismo, poligenismo, monogenismo?
2) Qual a posição da Igreja frente ao poligenismo?
3) Explique as razões da posição da Igreja.
4) Quem são os pré-adamitas?
5) Os primeiros pais eram belos? Foram realidade histórica?

MÓDULO 18: CONCEITUAÇÃO DE RAÇA HUMANA


Dado que os homens provêm todos de um só berço, levanta-se a pergunta: Como se explicam as raças
humanas? Como entender que haja tipos tão diferentes em suas características físicas, psíquicas, culturais...?
A estas perguntas responderemos em dois Módulos, abordando, neste, o conceito de raça como entendido
atualmente pela ciência, e, no seguinte, as causas da diversificação os tipos humanos.

Lição 1: Raça - Conceito Vacilante


É costume dizer que há quatro grandes raças: a branca, a amarela, a negra e a "pele vermelha". Hoje em dia,
porém, não se hesita em reconhecer que existem indivíduos amarelos de tez branca (na Coréia) assim como
indivíduos de raça negra cuja tez embranquece quando mudam de clima (assim certos aborígenes da Austrália).
Há alguns decênios, ensinava-se não raro que a raça branca se caracteriza por seus cabelos castanhos ou
louros, seus olhos azuis e seu nariz retilíneo, ao passo que a raça negra seria marcada por cabelos em carapinha,
nariz "achatado" e lábios espessos. Em nossos dias, contudo, dá-se muita atenção ao fato de que na Suécia e na
Noruega existem numerosos brancos de cabeleira encarapinhada e olhos negros; também se sabe que há
habitantes da Núbia (África) cuja tez é negra como o ébano, mas o cabelo é liso e o nariz retilíneo.
É por isto que os antropólogos mais recentes não concordam entre si quando procuram delimitar as raças
humanas. Chegam mesmo a mudar de sentença no decorrer de sua vida. Aliás, foi o que se deu já no século
passado com o famoso cientista Haeckel, que em 1873 contava doze raças e em 1879 admitia trinta e quatro;
em nossos dias os mais ponderados dos estudiosos não hesitam em reconhecer a existência de centenas de
grupos raciais entre os cinco e mais bilhões de habitantes da terra.
Em conseqüência , define-se hoje em dia um tipo racial pela presença, ora mais, ora menos acentuada, de
traços que em outros tipos raciais também se encontram, variando apenas a proporção em que se acham
disseminados em cada tipo. Os antropólogos desistem de assinalar confins de raças, pois, na verdade, não há
nítidos limites entre elas, mas, antes, matizes, que formam uma escala gradativa quase imperceptível. Os tipos
humanos estão profundamente mesclados uns com os outros.
Assim a noção de pureza racial, tão acariciada por certas ideologias, tem sido ultimamente considerada
como um quase-mito (isto é, um ideal que propriamente não existe senão na fantasia de quem o apregoa).
Quase-mito, sim, e não realidade, porque desde os tempos pré-históricos as migrações e, por conseguinte, os
cruzamentos entre os seres humanos e os tipos raciais não cessam de se verificar sobre a face da terra: são
motivados pelas circunstâncias do ambiente em que se possa encontrar uma população (modificações de clima,
inundações, fome, carestia de víveres ) ou também pelo espontâneo desejo que todo ser humano possui, de
variar..., de ganhar novos espaços vitais, de conquistar um teor de vida mais confortável... Principalmente na
Europa Ocidental, península na qual se acumularam as mais variadas tribos de emigrantes, a população é mista,
de maneira que se torna impossível identificar "tal população" com determinada raça. As chamadas "raças"
podem e devem ser subdivididas em "sub-raças" ou "raças secundárias" numerosas. É mesmo necessário
reconhecer que os tipos raciais têm existência transitória: nascem, crescem, modificam-se e desaparecem; os
mesmos fatores que as criam, também as destroem.
Asseveram, aliás, alguns estudiosos que a própria tendência a definir e exaltar as raças constitui, de certo
modo, um dos traços característicos de certos grupos raciais (é, portanto, algo de relativo ou algo que depende
de determinada mentalidade). Com efeito, verifica-se que em todas as épocas da história as populações nórdicas
53 Escola Mater Ecclesiae
foram mais inclinadas a distinguir raças do que as populações meridionais; na Índia, por exemplo, o sistema de
castas (que é uma espécie de racismo) foi introduzido' por invasores que vinham do Setentrião.
O que acaba de ser dito, é confirmado e explicitado por um documento da UNESCO.

Lição 2: Fala a Unesco


1. A UNESCO ("Organização das Nações Unidas para a Escola, a Ciência e a Cultura"), tendo em vista não
somente a eliminação de conflitos raciais e o bem-estar social, mas também o progresso da ciência, constituiu
uma comissão internacional de antropólogos e geneticistas, afim de estudarem a noção de raça. Os resultados
dos trabalhos desse grupo, cuja competência é internacionalmente reconhecida, foram em 1951 condensados na
"Declaração Comum sobre a Raça e as Diferenças Raciais", documento de especial valor, pois parece exprimir
o pensamento do gênero humano como tal, na hora presente, em que a política e o partidarismo tendem a
sufocar a ciência.
Vão transcritas abaixo as principais proposições dessa Declaração:
"1. Os cientistas reconhecem geralmente que todos os homens atuais pertencem à mesma espécie e
procedem do mesmo tronco... No sentido antropológico, o termo "raça" só poderá ser aplicado aos grupos
humanos que se distingam por traços físicos nitidamente caracterizados e essencialmente transmissíveis.
2. As diferenças físicas entre os grupos humanos são devidas: umas, a variedades de constituição
hereditária; outras, a variedades de ambiente; a maioria, à ação simultânea desses diversos fatores.
3. Os grupos nacionais, religiosos, geográficos, lingüísticos e culturais não coincidem necessariamente com
os grupos raciais; não se pode demonstrar que os aspectos culturais de tal grupo dependem, de algum modo, dos
caracteres raciais desse mesmo grupo.
4. As raças humanas têm sido diferentemente classificadas pelos antropólogos. Geralmente estes concordam
em dividir a mor parte da espécie humana ao menos em três grandes grupos; tal classificação não se baseia
apenas sobre um traço físico, mas sobre vários.
5. Não se tem prova alguma da existência de raças ditas puras... É consentâneo julgar que o processo de
hibridação humana se vem desencadeando desde época indeterminada, mas certamente assaz remota".
O parágrafo 9 da Declaração ainda resume de certo modo os diversos tópicos do documento. Ei-lo:
"Julgamos útil expor de modo formal o que foi cientificamente estabelecido a respeito das diferenças entre
indivíduos e entre grupos humanos:
a) Os únicos caracteres sobre os quais os antropólogos até agora puderam realmente fundar classificações
raciais, são caracteres anatômicos e fisiológicos.
b) No estado atual da ciência nada justifica a tese de que os grupos humanos divergem entre si por aptidões
inatas de índole intelectual ou afetiva.
c) Certas diferenças biológicas podem sertão grandes entre indivíduos da mesma raça quanto entre uma raça
e outra; podem mesmo ser maiores entre indivíduos do primeiro caso.
d) Já foram observadas transformações sociais consideráveis que de modo nenhum coincidem com
transformações raciais. Os estudos históricos e sociológicos corroboram a opinião segundo a qual as diferenças
genéticas não intervêm na determinação das diferenças sociais e culturais existentes entre os grupos humanos.
e) Não há provas de que o cruzamento das raças tenha efeitos nocivos do ponto de vista biológico. Os
resultados, bons ou maus, que o cruzamento produza, explicam-se igualmente bem pelo recurso a fatores
sociais".
De tão importante Declaração interessa-nos realçar aqui os três seguintes tópicos:
1) Todos os homens atualmente existentes no mundo pertencem à mesma estirpe; originam-se de um
só tronco.
Esta proposição faz, de certo modo, eco remoto ao ensinamento da Escritura Sagrada, segundo a qual todos
os homens atualmente existentes descendem de um só principio.
A ciência, por si mesma, ilustra uma das afirmações mais importantes da fé cristã.
2) Os valores da cultura, da ética e da Religião não estão necessariamente ligados a determinados
caracteres raciais. Por conseguinte, é vão admitir raças fadadas a ser sempre culturalmente inferiores ou raças
incapazes de produzir grandes heróis, grandes sábios ou grandes santos.
3) O conceito de raça é um conceito oscilante; depende da associação de características várias em certo grau
de intensidade. Por conseguinte, não há fundamento objetivo para estabelecer rígida discriminação racial, ou
para se atribuírem aos homens direitos e deveres diferentes, pelo pretexto de pertencerem a raças diversas.
As diferenças biológicas existentes entre um negro e um branco, entre um branco e um amarelo, entre um
negro e um amarelo não são mais marcantes do que as diferenças existentes entre um branco de Paris e um
branco do Cáucaso. Os homens, do ponto de vista morfológico e fisiológico, pouco diferem uns dos outros.
54 Escola Mater Ecclesiae
Pode-se afirmar que há igualdade biológica absoluta entre as raças humanas" ( Paul Delost, em Cahiers
d'Études biologiques no 4, pág.31).
Digno de nota também é o seguinte testemunho de outro antropólogo moderno:
"O estudo das reações serológicas do sangue acaba de confirmar que todas as populações atuais são
mestiças, cem vezes mestiças, e que nenhuma delas pertence por inteiro a um só grupo" (J. Millot, Biologie des
races humaines. Paris 1952).

PERGUNTAS
1) Como se define uma raça humana?
2) A pluralidade de raças exige pluralidade de troncos iniciais do gênero humano?
3) Existem raças inferiores e raças superiores?

MÓDULO 19: ORIGEM DAS RAÇAS HUMANAS


Em nosso Módulo anterior, vimos que o conceito de raça não tem a rigidez que se lhe atribuía antigamente;
os etnólogos julgam mesmo que não existe raça humana pura; há apenas, em cada tipo humano, predominância
de caracteres raciais.
Em conseqüência, a questão "como se explica a formação das raças humanas?" coincide com esta outra:
"Como se explica em determinadas estirpes humanas a predominância mais ou menos constante de certos traços
raciais?"
A resposta a esta questão é complexa, pois a diferenciação racial supõe a ação e a reação de elementos
múltiplos, que podem ser assim discriminados:
Fator interno: um potencial genético hereditário, ou seja, um cabedal de tendências a atingir
determinado tipo racial. É o genótipo.
FATORES
Fator externo: o ambiente, com suas influências de clima, alimentação, regime de vida social, etc.

FATOR INTERMEDIÁRIO (interno): as glândulas endócrinas e os hormônios.


Voltemos agora nossa atenção para cada um dos elementos assim referidos.

Lição 1: Fatores principais


1.1. Fator interno: o genótipo
1. "O que herdamos de nossos pais, não são caracteres rematados, como uma elevada estatura, cabelos
negros ou louros, lisos ou crespos, olhos azuis ou castanhos; são, antes, partículas químicas, cuja natureza não
nos é conhecida com precisão. São, numa palavra, os genes" (J. Frézal, Génétique et Médecine. - Le Médecin
de France no 11 7, novembre 1955).
Os genes... Procuremos focalizá-los de mais perto.
Em 1865, o frade agostiniano G. Mendel descobriu que a transmissão dos traços morfológicos ou somáticos
de pais a filhos se faz pela transmissão de corpúsculos elementares, de mínimas dimensões, hoje comumente
chamados "genes". Cada gene é responsável por determinada característica do organismo vivo; assim existem
os genes que produzem a coloração dos olhos (azul, castanha, negra), os que regem a forma dos cabelos (lisos,
ondulados ou crespos), os que causam o tipo de olhos (em amêndoa ou não), o tipo de nariz (achatado ou
aquilino), o comprimento das pernas, dos braços, etc. "Os genes acarretam e definem a totalidade ou a quase-
totalidade das características hereditárias dos indivíduos" (J. Frézal, ob. cit.).
2. Pergunta-se então: como se transmitem os genes?
- Tenha-se em mente o seguinte: o núcleo de toda célu la viva é composto de uma substância especial, dita
"cromatina", a qual se dispõe em longos filamentos denominados "cromossomos". Sobre os cromossomos,
acham-se colocados em linhas regulares, uns ao lado dos outros, os corpúsculos que chamamos "genes". O
número de cromossomos de uma célula viva varia de uma espécie vivente para outra; é constante, porém, em
todos os indivíduos da mesma espécie e em todas as células do mesmo indivíduo. As células sexuais do ser
humano (o espermatozóide do homem e o óvulo da mulher) contêm cada qual 23 cromossomos; o ovo
fecundado, portanto, apresenta 46 cromossomos. O número de genes (corpúsculos alinhados sobre os
cromossomos) é naturalmente muito mais elevado; no tipo humano, chega a 13 milhões; a existência de
tamanha quantidade de genes já insinua quão amplas são as possibilidades de variações morfológicas (variações
que constituem as raças) dentro do tipo humano.
55 Escola Mater Ecclesiae
3. A combinação dos cromossomos e genes entre si tem algo de estável ou de sempre igual; na verdade,
milhares de genes se transmitem sempre da mesma forma desde as origens do gênero humano. É o que explica
a perpetuação da espécie humana, com as suas notas essenciais.
Ao lado, porém, dessa estabilidade, nota-se uma certa flutuação na combinação dos genes e,
conseqüentemente, na transmissão de características acidentais (pigmentação da pele, estatura, forma dos
cabelos, etc.), que vêm a ser as variantes raciais.
Observe-se, aliás, que, mesmo sem constituir variantes raciais, pequenas oscilações se registram até entre
irmãos, filhos dos mesmos genitores: no momento da fecundação do óvulo por parte do esperma, dão-se
combinações cada vez novas, de tal modo que não há dois indivíduos morfologicamente iguais, a não ser os
gêmeos monozigóticos (provenientes de um só óvulo partido em dois ou três).
Os fatores que motivam tais flutuações, ainda não são de todo claros aos estudiosos; sabe-se que o ambiente
tem alguma influência sobre o fenômeno, como se verá adiante; além disto, porém, outras causas devem
intervir, pois se registram mudanças morfológicas de uma geração a outra totalmente imprevistas e
inexplicáveis.
Essas mudanças bruscas ocorrentes nos genes (ou no genótipo) são chamadas, em nomendatura científica,
"mutações"; os genes novos e imprevistos são ditos "alelos"; tendem a se perpetuar ou a se tornar estáveis
dentro da linhagem do indivíduo mutante.
A grande importância das mutações para explicar a origem das raças é reconhecida pelos cientistas
modernos:
"Se os genes ficassem sempre idênticos, os homens, que saíssem todos dos mesmos ancestrais, teriam todos
conservado os mesmos caracteres hereditários através de centenas de milhares de gerações" (L. C. Dunn, Race
et Biologie, ed. Unesco, Paris 1951).
Como exemplo de mutação ainda hoje nitidamente observável, pode-se citar famoso caso ocorrido em uma
família norueguesa... Seus membros tinham naturalmente cabelos ondulados. Um belo dia, porém, nasceu no
seio dessa família uma criança de cabelos crespos (encarapinhados); entre os seus ascendentes, jamais alguém
tivera tal tipo de cabelos!... Ora dentre os pósteros desse indivíduo "mutante" alguns herdaram de maneira
estável a nova característica , de sorte que existe atualmente certo número de noruegueses portadores de um
tipo de cabelos que nada tem de norueguês!...
O tipo humano que os genitores transmitem à sua prole por meio dos genes, está sujeito a sofrer as
influências do ambiente de vida em que o indivíduo é colocado. "O que se transmite por herança biológica, é
um conjunto de possibilidades que permitem ao ser humano reagir deste ou daquele modo às influências do
ambiente... O tipo humano... é o produto da ação simultânea de fatores hereditários e do ambiente" (L.C. Dunn,
ob. cit).
Sendo assim, muito importa agora considerar a função que o ambiente possa desempenhar na configuração
do tipo humano.

1.2 Fator externo: o ambiente


A criança, ao nascer, herda de seus genitores um patrimônio biológico assaz rico e, por isto mesmo, capaz de
tomar traços concretos variáveis em escala bem matizada, de acordo com as condições de clima, alimentação,
trabalho, regime econômico de que o novo ser humano venha a depender.
Os biólogos puderam verificar que certos genes realizam a sua função, qualquer que seja o âmbito em que o
ser humano se desenvolva; tais são, por exemplo, os genes responsáveis pela cor dos olhos e o tipo sangüíneo
do indivíduo. Outros, ao contrário, vacilam segundo os agentes externos; assim; os genes responsáveis pela
pigmentação da pele.
A seguinte experiência, entre outras, justifica tal afirmação: Observem-se duas crianças, irmão e irmã... O
primeiro tem por sua constituição genética, desde o nascimento, tez clara e olhos azuis; a menina, ao contrário,
possui pele morena e olhos negros.
Suponha-se que em tenra idade a menina tenha de ser, por muito tempo, recolhida em hospital ou levada
para regiões em que o sol pouco se mostre; entrementes seu irmão é exposto diariamente à ação de um sol
causticante. Em conseqüência, registrar-se-á que a tez da menina se empalidecerá, ao passo que a do menino se
obscurecerá; o mesmo, porém, não se dará com a cor dos olhos das crianças, que permanecerá sempre a mesma.
Desta observação se conclui que as diferenças de tez da pele dependem si multaneamente dos genes (fator
interno) e da ação do sol (fator externo) ; os genes não condicionam sempre de maneira direta as diferenças de
cor da pele entre os indivíduos; o que eles certamente determinam, é o modo como o organismo reage a tal ou
tal influência do ambiente.
56 Escola Mater Ecclesiae
Quanto à cor dos olhos, parece essencialmente determinada pelos genes antes do nascimento do indivíduo.
No atual estado da ciência, não se conhece mudança alguma de ambiente capaz de modificar a cor dos olhos.
Voltemos agora a nossa atenção para alguns dos principais fatores do ambiente relacionados com a
configuração das raças humanas.

a) A seleção natural
É fato óbvio que os seres humanos são obrigados a viver em ambientes assaz diversos; as reações dos
indivíduos a esses diversos ambientes não são sempre as mesmas; há pessoas cujo potencial genético se adapta
bem, como há aquelas que menos bem, e aquelas que de modo nenhum se adaptam. Registram-se, portanto,
casos em que o patrimônio biológico de alguém não se pode plenamente exprimir no âmbito em que está
colocado. É este fato que explica as grandes migrações de grupos humanos de uma região para outra, assim
como o desaparecimento de raças.
Estudos efetuados em animais e vegetais deram a ver que a proporção de indivíduos dotados da configuração
genética mais vantajosa para viver em determinado ambiente tende a se aumentar de geração em geração, ao
passo que os indivíduos menos adaptados tendem a se extinguir. É este fenômeno que se chama seleção natural.
Atribui-se-1he grande peso na formação das raças hu manas (é certo, porém, que a seleção natural não age ao
acaso ou mecanicamente; é sempre contrabalançada por uma aspiração espontânea da natureza a manter o seu
tipo próprio ou as suas notas essenciais).
Entre os homens, a seleção natural contribuiu para que se associasse o nome de determinado continente com
o de determinada constituição racial. Assim os negros, por seus caracteres genéticos, são muito mais adaptados
às condições de vida equatorial da África do que os brancos: a pigmentação da sua pele, seu sistema de
transpiração e seu metabolismo em geral, sua fecundidade, as modalidades do desenvolvimento das suas
crianças são fatores bem acomodados às condições climatéricas em que vivem.

b) As migrações e os cruzamentos
"O homem sempre foi um grande emigrante" (J. Millot, Biologie des races humaines.
Paris 1952). Ora, emigrando, uma tribo humana se sujeita não somente a sofrer influências climatéricas
novas, mas também a encontrar outras tribos, pertencentes quiçá a diversa raça. Desses encontros por vezes
originam-se conflitos e batalhas; geralmente, porém, resultam uniões conjugais. É o que explica não haver em
nossos dias raças puras, mas tipos raciais provenientes do cruzamento de outros tipos e tendentes a produzir,
por sua vez, novos tipos (mestiçagens).
Podem-se apontar exemplos contemporâneos de raças novas em formação: tais são as que se devem à união
de europeus e negros na África do Sul e nos Estados Unidos da América; as que redundam dos casamentos de
indígenas com os imigrantes europeus ou chineses nas ilhas Hawai.

c) O isolamento geográfico e social


Acontece que cada tipo racial está naturalmente associado a determinado ambiente geográfico, ao qual a
população se adaptou a fim de sobreviver. Às vezes, esse ambiente é bem restrito e isolado de outros ambientes
(por oferecer condições de vida muito difíceis ou raras) ; em conseqüência, os homens que habitam tais
ambientes se vêem obrigados a casamentos dentro da respectiva população apenas - o que contribui
naturalmente para mais e mais acentuar as características raciais.
Assim verifica-se que pequenas aldeias, por muito próximas que sejam umas das outras, apresentam por
vezes tipos raciais assaz diversificados. É o que se dá em lugarejos da França, por exemplo (no sul do Maciço
Central, nas Cevenas e na Montanha Negra), onde se encontram pequenas comunidades que conservam o tipo
celta quase integralmente como era nos tempos das legiões de César. Sobre esses grupos restritos e fechados,
porém, pesa o perigo da degenerescência; com efeito, os casamentos produzindo-se sempre entre famílias muito
afins umas às outras, a prole facilmente herda genes recessivos, o que dá lugar à formação de indivíduos física
ou psiquicamente depauperados, tais como os famosos "idiotas de aldeia" dos Pirineus e dos Alpes.
Semelhante efeito ao do isolamento geográfico é o do isolamento social. Acontece que certas convenções
sociais prescrevem, não se façam casamentos fora de determinada população. Além disto, a própria natureza
impele freqüentemente o jovem e a jovem a escolher a sua comparte entre as pessoas que falam a mesma
língua, pertencem à mesma categoria social, professam as mesmas idéias, etc. Essas tendências vão acentuando
distâncias ou mesmo criando barreiras entre os homens; as populações que se deixam assim murar, constituem
raças em embrião. Verdade é que a vida moderna, com seu cosmopolitismo, concorre para mais e mais derrubar
tais barreiras.
57 Escola Mater Ecclesiae
Eis, em poucas linhas, os principais fenômenos pelos quais se exerce a influência do ambiente sobre a
constituição genética ou hereditária das respectivas populações. Deve-se agora acrescentar ulterior observação:
os fatores externos não agem diretamente sobre o patrimônio genético ou sobre os genes do indivíduo, mas,
sim, indiretamente. Em termos mais precisos: a ação consiste principalmente em modificar o metabolismo ou
o funcionamento de glândulas e hormônios do organismo; estes é que influenciam imediatamente a formação
das características somáticas da pessoa.
Donde se vê que, entre o potencial biológico, interno, de cada indivíduo e o ambiente externo, se situa, na
configuração das raças, um elemento intermediário, que são os hormônios. Consideremos, pois, sumariamente o
que a ciência ensina a respeito deste terceiro fator.

Lição 2: Fator Intermediário - Os Hormônios


No início do século XX, os estudiosos começaram a perceber a considerável importância que, no
desenvolvimento do organismo humano, compete a certas glândulas, ditas endócrinas (em grego, endo significa
dentro; krino, segregar; donde endócrino é o que segrega dentro ou para dentro. As glândulas endócrinas são
assim chamadas porque segregam ou derramam o seu produto dentro do organismo mesmo, ou seja, nos vasos
sangüíneos).
As secreções de tais glândulas são chamados hormônios, substâncias químicas elaboradas em quantidade
mínima, ou seja, da ordem do gama (1/100 de mg). Derramando-se diretamente no sangue, os hormônios
presidem a numerosos metabolismos (processos de assimilação e eliminação) do organismo; são necessários
para conservar em atividade certos tecidos; regem a função reprodutora; enfim norteiam o comportamento ou a
capacidade de reação dos órgãos que estão em contato imediato com o mundo externo; são eles, portanto, que
respondem pela maior ou menor resistência aos influxos do ambiente. Cada hormônio desempenha função bem
determinada, de tal modo que a extração da respectiva glândula ou qualquer alteração da mesma provoca atrofia
e perturbações dos órgãos e tecidos dependentes.
2. Eis a lista das principais glândulas endócrinas e das suas funções:
1) A tiróide, situada na base da nuca, produz os hormônios ditos tiroidianos (por exemplo, a tiroxina), que
são compostos iodados; rege os metabolismos celulares e desempenha papel notável no crescimento do
indivíduo.
2) O pâncreas endócrino produz a insulina, hormônio importante para o aproveitamento do açúcar no
organismo.
3) As glândulas supra-renais, elaboradoras de numerosos hormônios, responsáveis por várias funções.
Distinguem-se:
A glândula medular, que segrega a adrenalina, importante na regulação do sistema cortical;
A glândula cortical ou o córtice supra-renal, que, mediante os hormônios conicosteroides, rege os
diversos metabolismos e toma parte na defesa do organismo contra todas as agressões infecciosas.
4) As glândulas sexuais ou gônadas. Distinguem-se a glândula intersticial, que segrega o hormônio
masculino ou andrógeno; o ovário, produtor dos hormônios femininos: os estrógenos, que estimulam os
órgãos genitais femininos, e a progesterona ou luteina, indispensável ao desenvolvimento normal da gestação.
5) A hipófise glandular, hoje em dia tida como glândula que controla e domina as funções de todas as
demais glândulas endócrinas. Situada na base do cérebro, segrega vários hormônios denominados
"estimulinas" e encarregados de ativar as outras glândulas do organismo. Segrega também o hormônio
somatotrópico, do qual depende o desenvolvimento do organismo em geral (formação do esqueleto, do crânio,
dos órgãos internos, do tipo de estatura, etc). A eliminação ou as perturbações da hipófise acarretam atrofia ou
desequilíbrio das restantes glândulas endócrinas, as quais se tornam incapazes de elaborar seus hormônios, com
detrimento geral para a saúde do indivíduo.
Pesquisas muito recentes deram a ver que a hipófise glandular, por sua vez, depende dos núcleos do
hipotálamo, que parecem segregar substâncias destinadas à produção das estimulinas hipofisiárias.
3. Com o progresso dos estudos, mais e mais se verifica a importância dos hormônios no funcionamento do
organismo. Para que este seja sadio, supõe o equilíbrio hormonal, equilíbrio que se baseia em dosagens de
máxima precisão e de valor quase infinitesimal: deve haver, com efeito, proporção e harmonia entre os diversos
hormônios dentro do sangue; além disto, harmonia entre o funcionamento de cada hormônio e o da glândula
que o segrega. Enfim pode acontecer que os hormônios se associem em sua atividade, dando lugar ao que se
chama "a sinergia (colaboração) hormonial". Basta uma tênue avaria no sistema endócrino para ocasionar
perturbações de vastíssimo alcance nas características anatômicas e fisiológicas do indivíduo.
E essas tênues avarias podem ser ocasionadas por fatores múltiplos:
58 Escola Mater Ecclesiae
a) fatores que intervêm no desenvolvimento do feto durante a gestação: doenças infecciosas da gestante,
carências ou irregularidades de nutrição, perturbações hormoniais e outras que se possam registrar no
organismo materno. Isso tudo vai repercutir no funcionamento das glândulas endócrinas do feto e, por
conseguinte, no próprio tipo somático desse indivíduo;
b) fatores que intervêm no desenvolvimento da criança e na evolução do adulto: doenças infecciosas,
tumores... Mais e mais se verifica o grande papel que podem desempenhar as avitaminoses ou carências
alimentares, assim como os fatores climatéricos (luz, calor, temperatura...).
Para que uma glândula endócrina funcione normalmente, supõe-se o funcionamento normal de vários outros
agentes: assim a hipófise é estimulada pela luz, mas as suas estimulinas não serão devidamente segregadas se a
pessoa não receber alimentação suficientemente rica em vitaminas e se não estiver colocada em ambiente de
calor mais ou menos constante...
Estes poucos traços de fisiologia (que não pretendem ser uma exposição sistemática do assunto) foram aqui
citados apenas a fim de evidenciar quão múltiplos e complexos são os elementos que concorrem para
diversificar os tipos humanos; os mínimos fenômenos podem produzir extraordinárias mudanças na
configuração do indivíduo, dando lugar a estirpes, raças e sub-raças extremamente variegadas.

PERGUNTAS
1) Que é o genótipo? Qual a sua importância ?
2) Que é que se chama "mutação" em Genética?
3) Qual a influência do ambiente na formação do tipo humano ? Dê três exemplos.
4) Qual o papel dos hormônios na configuração do ser humano?
5) Em conclusão, qual o conceito de raça mais condizente com a ciência moderna ?

PARTE II: O HOMEM: A) FUNDAMENTAÇÃO BÍBLICA

MÓDULO 20: O HOMEM - IDENTIDADE E DESTINO


Vimos nos Módulos 1, 2 e 3 como entender os relatos de Gn 2-3 referentes à criação do homem e da mulher.
Deixamos agora os aspectos da criação para considerar o ser humano como tal, à luz da Teologia, começando
pela fundamentação bíblica.

Lição 1: Que é o Homem no Antigo Testamento?

1.1. Observação Preliminar


O pensamento israelita não era dado a elevadas especulações filosóficas, de modo que o Antigo Testamento
nos descreve principalmente a condição religiosa do homem. Sintetizando-a, podemos dizer que ela consta de
um contraste:
1) De um lado, o homem é tido como sopro, fumaça, sombra, erva que logo murcha:
"Toda carne é erva, e toda a sua graça é como a flor do campo. Seca-se a erva, e murcha a flor quando o
vento do Senhor sopra sobre elas...Mas a palavra do nosso Deus fica para sempre" (Is 40, 6-8).
"Meus dias são como a sombra que se expande, e eu vou secando como a relva "(SI 102, 12).
"Vê: um palmo são os dias que me deste; minha duração é um nada frente a ti. Todo homem que se levanta,
é apenas um sopro" (SI 39, 6). Ver SI 49, 13.21;90. 5s; 102, 12; 103, 15s; Jó 4, 19; 14,2...
2) De outro lado, Deus quer mostrar sua sabedoria e seu poder na criatura frágil, mesmo sujeita ao pecado;
cf. o salmo 8, que apresenta o contraste entre a pequenez do homem e a grandeza dos dons de Deus à criatura:
"Tu o fizeste pouco menos do que um Deus, coroando-o de glória e beleza. Para que domine as obras de tuas
mãos, sob seus pés tudo colocaste" (vv. 6s). É de notar também Eclo 16,24-17,14: o homem, tão agraciado, é
levado à aliança com Deus.

1.2. Os designativos do homem


A mentalidade israelita era sempre voltada para o concreto, visível. Por isto, ao falar do homem, os judeus
mais antigos não distinguiam corpo material e alma espiritual, mas tinham o ser humano como algo de
monolítico, que apresentava diversos aspectos. Esses diversos aspectos davam origem a diversas designações
do ser humano; três vocábulos eram assim utilizados: nefesh, basar e ruach.

1.2.1. Nefesh, o Homem Carente


59 Escola Mater Ecclesiae
Nefesh designa originariamente a garganta do homem e, conseqüentemente, a respiração. Assim põe em
relevo o aspecto do homem necessitado; é o homem que não chegou à vida por si mesmo nem pode conservar a
vida por si só; num anseio espontâneo, ele procura a vida, atitude esta simbolizada pela garganta, órgão que
absorve os alimentos e recebe o ar da respiração. Põe-se em relevo assim a fragilidade e a vulnerabilidade do
homem.
A palavra hebraica nefesh ocorre 755 vezes no Antigo Testamento; em 600 casos o texto grego do Antigo
Testamento a traduz por psyché = alma, o que significa a vida do homem (cf. Dt 24,6; Ex 21,23s; 1Rs 20,39;
Lv 24,17s) ou o próprio homem (cf. Gn 2,7; Lv 17,10.15;22,4; 23,30...).
Já que nefesh lembra fragilidade e vulnerabilidade, tal vocábulo é raramente (21 vezes apenas sobre 755
ocorrências) aplicado a Javé; quando isto se dá, significa o amor de Javé (Jr 32,41; 1Sm 2,35) ou o próprio ser
vivo de Javé (cf. Jr 51,14; Am 6,8...).

1.2.1. Basar, o Homem Efêmero


O substantivo basar designa a carne, o corpo (frágil). Ocorre 273 vezes no Antigo Testamento, sendo que
104 vezes se refere a animais infra-humanos. Nunca se aplica a Deus.
Aplicado ao homem, o vocábulo basar designa o corpo humano, a carne humana; cf. Nm 8,7; Jó 4,15; Lv
13,2-4; 19,28. Põe em relevo a caducidade e a fraqueza do ser humano; cf. SI 56,5; Jr 15,5.7; 2Cr 32,8; Is 40,6;
SI 65,3s. Assim basar lembra tanto a fragilidade física do ser humano como a sua pecaminosidade ou
incapacidade de cumprir coerentemente a vontade de Deus (cf. Ez 23,20. 26).

1.2.2. Ruach, o Homem Forte


Ruach pode significar o vento ou uma força da natureza (113 casos sobre 389 ocorrências), como também
pode designar o espírito do homem, o afeto e a força de vontade do ser humano. Põe em foco o que há de mais
nobre e digno no homem.
Com o significado de vento, brisa aparece tal vocábulo em Gn 1 ,2; 3,8; Is 7,2; Ex 10,13.19; 14,21...
Existe também o vento do homem, que é a respitação: Is 42,5; 57,16; Gn 7,22. Esse vento do homem que é
também o seu hálito, parece ser o princípio vital do homem ou o homem em suas expressões mais elevadas: SI
146,4; Ed 12,7; Jz 15,19; Jó 34,14s; SI 104,29.
O homem, penetrado pelo ruach (diríamos:...espírito) de Javé, realiza grandes façanhas; assim Jz 3,10
(Otoniel saiu para o combate ) ; Jz 14,6 (Sansão despedaça um leão) ; Gn 41 ,38 (o Faraó procura um homem
no qual esteja a ruach de Deus).
Por fim ruach designa os sentimentos e afetos do homem: Esd 1,5; Nm 14,24; SI 32,2;51,12; Ez 36,26s;
11,19. Seria o que chamamos "o espírito do homem" em Is 29,24; 19,3.

1.2.3. Leb (ab), o Homem Racional


O vocábulo leb ou leb(ab) ocorre 858 vezes no Antigo Testamento. À diferença dos outros conceitos, refere-
se quase unicamente ao homem.
Em muitos casos, o coração vem a ser a sede do raciocínio e das funções intelectuais:
“Até o dia de hoje o Senhor não os tinha dado um coração para compreender” (Dt29,3).
"O coração do sensato procura o saber" (Pr 16,23).
"Ensina-nos a contar nossos dias para adquirirmos um coração sábio" (SI 90, 12).
Salomão pede "um coração que escuta" (l Rs 3,9-12).
Estar "sem coração" significa "não ter orientação":
"O vinho tira o coração ao meu povo. Consulta o seu lenho; quer que o seu varapau lhe anuncie" (Os 4, 11s).
.
O coração pode significar o juízo, como no caso de Jó, que se defende contra os amigos "sábios": "Também
eu tenho coração como vós. Não vos fico atrás" (Jó 12,3). Ver Jó 34,10; 34,40; Eclo 10,2s; Pr19,8.
Vê-se, em conclusão, que o coração, no Antigo Testamento, designa tudo o que nós atribuímos à cabeça do
homem: razão, compreensão, consciência, saber e também o querer.

1.3. Monismo e Dualidade


Verdade é que o israelita não distinguia os componentes do ser humano; considerava a pessoa como um
todo, que tem expressões intelectuais como também manifestações vegetativas e sensitivas. Todavia, quando
pensavam na vida póstuma, distinguiam entre a corporeidade ou o cadáver, que era sepultado, e os refaim
(sombras, núcleo da personalidade, que sobreviviam adormecidos no cheol ou na subterrânea região dos
60 Escola Mater Ecclesiae
mortos). São vários os textos que professam essa dualidade de componentes do homem quando se referem ao
além:
Gn 25,8-10: "Abraão expirou, morreu numa velhice feliz, idoso, e foi reunido a sua parentela. Isaque e
lsmael, seus filhos, enterraram-no na gruta de Macpelá, no campo de Efron... É o campo que Abraão comprara
dos filhos de Het; nele foram enterrados Abraão e sua mulher Sara". – O texto quer dizer que o cadáver de
Abraão foi sepultado em Macpelá, onde fora enterrada Sara. Algo, porém, de Abraão, os refaim (sombras), foi
reunir-se à sua parentela no cheol ou na região dos mortos. Ver Gn 47. 35.
Gn 49,29-33: Antes de morrer, Jacó diz que se vai reunir aos seus pais, enquanto o cadáver deverá ser
sepultado em Macpelá.
A palavra refaim vem de rafa, ser débil , lânguido. Só se usa na forma dual, que indica, no caso, certo
anonimato. Os refaim estão adormecidos: Jó 3,13.17; 14,21s; 17,16. Não louvam a Deus: Is 38,18; SI 88,11s;
Edo17,22. Por conseguinte, no cheol não havia sanção nem para os bons, nem para os maus.
Aos poucos, porém, esta concepção primitiva e desanimadora foi cedendo a outra, mais evoluída e
estimulante.
É o que se verifica nos chamados "salmos místicos", em que o autor sagrado julga que Deus não pode
permitir que o seu servidor fiel seja privado de consciência, com os infiéis, e, por isto, incapacitado de receber a
justa sanção. Veja-se:
SI 16, 10s: " Não abandonarás minha vida (nefesh) no cheol nem deixarás que teu fiel veja a cova. Ensinar-
me-ás o caminho da vida, cheio de alegria em tua presença, e delícias à tua direita perpetuamente"
SI 49,16: "Deus resgatará minha vida (nefesh) das garras do cheol e me tomará".
Sl.73,23s: "Quanto a mim; estou sempre contigo, Tu me agarraste pela mão direita. Tu me conduzes com teu
conselho e com tua glória me atraíras.
Como se vê, nestes três salmos, é expressa a esperança de que o Senhor libertará do cheol o justo e o levará
consigo para a verdadeira vida. O nefesh adquire mais substância e identidade, aproximando-se do conceito
grego de alma (psyché).
Verifica-se outrossim que o justo arrebatado do cheol goza de felicidade e tem suas aspirações à vida
saciadas.

Lição 2: A Retribuição Póstuma


As linhas de antropologia ate aqui apresentadas mostram que nos seus séculos mais antigos os israelitas não
concebiam retribuição póstuma, mas, sim, a inconsciéncia dos refaim
após a morte. Tal doutrino era como que uma “bofetada” para aqueles que quisessem guardar fidelidade ao
Senhor na vida presente; depois da morte não teriam destino diferente do dos infiéis. Julga-se que o Senhor
Deus não quis revelar a realidade consciente e grandiosa da vida póstuma aos antigos israelitas por causa do
perigo de culto ou endeusamento dos antepassados, como ocorria entre os povos pagãos vizinhos de Israel. Tal
fase provisória devia ceder à plena revelação da vida póstuma, sem a qual a vida presente não se explica, pois a
ordem é violada neste mundo muitas vezes em favor dos maus e para grande decepção dos bons.
No século I a.C. já se professa a crença na alma imortal por si mesma e capaz de receber a justa sanção na
vida póstuma. Dá testemunho disto o livro da sabedoria, escrito no Egito por um judeu lá residente: afirma a
retribuição de justos e pecadores no além, como se depreende dos textos seguintes.
" Os justos vivem para sempre, recebem do Senhor sua recompensa, cuida deles o Altíssimo.
Receberão a magnífica coroa real, e, das mãos do Senhor o diadema da beleza; com sua direita Ele o
protegerá, com seu braço os escudará" (Sb 5, 15s).

A alma (psyché) dos justos está nas mãos de Deus; nenhum tormento os atingirá. Aos olhos dos insensatos
parecem morrer... mas eles estão em paz. Aos olhos humanas pareciam cumprir uma pena, mas sua esperança
estava cheia de imortalidade; por um pequeno castigo receberão grandes favores. Julgarão as nações, dominarão
os povos, e o Senhor reinará sobre eles para sempre" (Sb 3, 1-4).
O texto não fala de, ressurreição, dos corpos, mas apenas de sobrevivência da alma lúcida no além. A razão
pela qual a ressurreição não é mencionada, é que o autor escrevia no Egito, terra de cultura helenística, para
qual a volta da alma ao corpo seria punição e desgraça. Todavia na mesma época os judeus residentes na terra
de Israel professaram nitidamente a ressurreição dos corpos. Tenham-se em vista os seguintes dizeres:
Dn 12,2s: "Muitos dos que dormem no solo poeirento, acordarão, uns para a vida eterna, e outros para o
opróbrio, para o horror eterno. Os que são esclarecidos resplandecerão como o resplendor do firmamento, e os
que ensinam a muitos a justiça hão de ser como as estrelas por toda a eternidade".
2Mc 7 registra as últimas palavras dos irmãos macabeus condenados a morrer por causa da sua fé:
61 Escola Mater Ecclesiae
"Tu, celerado, nos tiras da vida presente. Mas o Rei do mundo nos fará ressurgir para uma vida eterna, a nós
que morremos por suas leis!"(v 9).
"Do céu recebi estes membros, e é por causa de suas leis que os desprezo, pois espero dele recebê-los
novamente (v 11).
"É desejável passar para a outra vida às mãos dos homens, tendo da parte de Deus as esperanças de ser um
dia ressuscitados por Ele" (v 14).
"Nossos irmãos, após ter suportado uma aflição momentânea por uma vida eterna já estão na Aliança de
Deus. Tu, porém, pelo julgamento de Deus, hás de receber os justos castigos da tua soberba " (v 36).
É também 2 Mc que, testemunhando indiretamente a existência do purgatório, alude explicitamente à
ressurreição dos mortos:
"Tendo feito entre os seus homens uma coleta de duas mil dracmas, (Judas Macabeu) enviou-a a Jerusalém
para ser convertida num sacrifício expiatório do pecado. Bela e nobre ação, inspirada pela idéia da ressurreição!
Com efeito, se ele não esperasse que esses soldados mortos houvessem de ressuscitar fora coisa supérflua e vã
orar pelos defuntos" (12,43s).
Com o decorrer dos tempos, a fé na ressurreição se firmou cada vez mais em Israel. Para o judeu em
particular, esta fé era corolário lógico da crença numa justa sanção póstuma; com efeito, a mentalidade israelita,
sempre propensa a afirmar o concreto, dificilmente podia conceber sorte feliz para as almas que estivessem
separadas do corpo; estariam condenadas a viver uma vida mutilada. Assim, pois, encontram-se no Evangelho
testemunhos da fé israelita na ressurreição dos mortos:
Conforme Mt 14,2, Herodes julgava ser Jesus o próprio João Batista ressuscitado; outros confundiam o
Senhor com algum dos antigos profetas redivivo (cf. Lc 9,8); Marta admitia, sem dúvida, que seu irmão Lázaro
ressuscitaria no último dia (Jo 11,23-25). Os fariseus, que representavam a facção tradicionalista de Israel,
faziam mesmo da ressurreição um dogma de fé, que a ninguém era lícito negar. Todavia o partido dos "livres
pensadores" de Israel, ou seja, dos saduceus, imbuídos de princípios filosóficos gregos, rejeitava
peremptoriamente a ressurreição, o que criava intransponível barreira entre eles e os fariseus (cf. Mt 22,23-33;
At 23,6-10; 26,5-8).
Observa-se, nos textos do Antigo Testamento, a transição da idéia de refaim, sombras inconscientes
póstumas, para a de alma (psyché) dotada de imortalidade e lucidez mesmo separada do corpo pela morte. O
fato de que a noção de psyché imortal tenha vindo à consciência dos judeus em terra helenista ou no Egito não
depõe contra a veracidade desta doutrina. Deus pode revelar a verdade aos homens em qualquer terra e através
de qualquer canal. Não existe uma filosofia oficial (como seria a filosofia semita) para o Senhor Deus; qualquer
sistema de raciocínio, também de origem grega, pode ser válido instrumento da Revelação divina, desde que
diga a verdade.

PERGUNTAS
1) Os judeus antigos distinguiam entre corpo e alma do homem? Saberia dizer porquê ?
2) Exponha o sentido de basar e o de leb (ab) no Antigo Testamento.
3) Como evoluiu a antropologia do Antigo Testamento?
4) Quando e onde aflorou o conceito de ressurreição dos corpos?
5) Qual a relação entre refaim e psyché?

MÓDULO 21: O HOMEM NO TEMPO


Estudaremos neste Módulo quatro aspectos particulares da antropologia do Antigo Testamento.

Lição 1 : O Tempo
O homem vive no tempo, do qual Deus é o Senhor:
"Desde o princípio manifestei o futuro; desde a antigüidade, aquilo que ainda não acontecera" (Is 46, 10).
Deus é tão soberano que parece estar acima ou fora do tempo:
"Teu trono está firme desde sempre. Desde sempre tu existes "(SI 93, 2).
O homem, ao contrário, tem efêmera duração sobre a terra:
"O homem, nascido de mulher pobre em dias, cheio de tormentos, floresce como uma flor que se abre e logo
murcha; foge como sombra sem consistência" (Jó 14, 1s).
Esse tempo passageiro, porém, é precioso porque nele Deus fala ao homem.
O Deuteronômio enfatiza muito especialmente o hoje no qual o Senhor comunica ao homem seus desígnios
e seus preceitos. A palavra hoje (hajjom) se encontra 70 vezes naquele livro, sempre chamando a atenção para
a importância do momento em que Deus fala:
62 Escola Mater Ecclesiae
"Escuta, ó Israel, as determinações e prescrições que hoje te faço ouvir... Não foi com nossos pais que o
Senhor concluiu aliança, mas conosco, que estamos aqui hoje todos vivos".
"Se esqueceres completamente o Senhor teu Deus, seguindo outros deuses, asseguro-vos hoje solenemente
que perecereis"( Dt 8, 19).
"Guarda, pois, o mandamento que hoje te ordeno seguir"(Dt 7, 11).
Aliás, o tempo é precioso não só porque Deus nele se revela da maneira explícita, fazendo aliança com seu
povo, mas também porque o tempo é harmoniosamente disposto; há um tempo oportuno para cada uma das
atividades do homem:
"Há um momento para tudo e um tempo para todo propósito debaixo do céu:
Tempo para nascer e tempo para morrer.
Tempo para plantar e tempo para arrancar a planta.
Tempo para matar e tempo para curar
Tempo para construir e tempo para destruir
Tempo para chorar e tempo para rir
Tempo para lamentar-se e tempo para dançar.
Tempo para atirar pedras e tempo para recolher pedras.
Tempo para abraçar e tempo para se separar.
Tempo para buscar e tempo para perder.
Tempo para guardar e tempo para jogar fora.
Tempo para rasgar e tempo para costurar.
Tempo para calar-se e tempo para falar
Tempo para amar e tempo para odiar
Tempo para a guerra e tempo para a paz"(Ed 3, 1"8).
Depreende-se que Deus, o Senhor do tempo, dispõe harmoniosamente os tempos, de tal modo que, se o
homem, limitado como é, não observa a ordem devida, ele se condena ao fracasso. Muitas vezes o homem se
torna cego para o momento presente e não compreende o que este acarreta:
"O homem não conhece o seu tempo. Como peixes presos na rede traiçoeira, como pássaros presos na
armadilha, assim os filhos dos homens são surpreendidos pela desgraça" (Ecl 9, 12).
Apesar de todos os enigmas que o tempo apresenta ao homem, este pode exclamar em paz:
"Meus tempos repousam em tua mão"(Sl 31, 16).

Lição 2: O Trabalho
O tempo do homem é tempo de trabalho,... embora não só de trabalho, pois há tempo para rir e dançar, como
lembrava o Eclesiastes 3, 1-8.
Logo ao criar o homem, o Senhor Deus lhe impõe o encargo de trabalhar. Deve reinar sobre os animais
inferiores e dominar a terra (Gn 1, 26-28).
O Senhor colocou o homem no jardim para que o cultivasse e o guardasse (Gn 2,15). Após o pecado, o
trabalho se torna penoso e ingrato para o homem (Gn 3, 17-19).
O trabalho humano assume muitas modalidades: é o do lavrador, o do pastor e domesticador de animais (Gn
4,2), é o dos músicos, metalúrgicos, artesãos de bronze e ferro (Gn 4, 21s). É o da viticultura (Gn 9, 20s) e até o
da construção de cidades com seus edifícios gigantescos (Gn 4, 17.20;11,3).
Mais tarde aparece o trabalho intelectual: a pedagogia, a educação dos jovens (príncipes e funcionários da
corte), a diplomacia, o saber jurídico, a historiografia, as ciências naturais; cf. l Rs 3,8"13; 5,12"14... Para
fundamentar e incutir o trabalho durante seis dias e o repouso no sétimo, a Bíblia apresenta o próprio Deus a
criar o mundo como o Operário Modelo, que produz todas as criaturas no decorrer de uma semana e descansa
no sétimo dia; cf. Gn 1,1-2,4a.
Todos os que trabalham, "ainda que não brilhem pela cultura e o discernimento", cada qual a seu modo,
"sustentam a criação "(cf Eclo 38, 34).
A experiência ensina que o zelo pelo trabalho é penhor de riqueza e bem-estar, como a preguiça é fonte de
miséria e desgraça:
A mão preguiçosa empobrece, mas a mão diligente enriquece"(Pr 10, 4).
A mão dos diligentes dominará, mas a mão preguiçosa será escrava "(Pr 12,24). Ver Pr 11,16; 12,27; 14,23;
21,5.
O sábio chega a satirizar a preguiça:
"Passei pelo campo de um preguiçoso e pela vinha de um tolo. E eis que tudo estava cheio de urtigas, sua
superfície coberta de espinhos, e seu muro de pedras em ruínas. Ao ver isso, comecei a refletir, vi e tirei uma
63 Escola Mater Ecclesiae
lição. 'Dormir um pouco, cochilar um pouco, um pouco cruzar os braços e deitar-se' e tua pobreza virá como
um salteador de estradas, e como um mendigo a tua indigência "(Pr24, 30-34).
Ou ainda:
"O preguiçoso diz: 'Há uma fera no caminho, um leão no meio da praça'. A porta gira nos seus gonzos, o
preguiçoso no seu leito. Se o preguiçoso põe a mão no prato, já se sente cansado para levá-la à boca. Aos seus
próprios olhos, o preguiçoso é mais sábio do que sete pessoas que respondem sensatamente" (Pr 26, 13-16).
Os animais podem servir de exemplo para o homem:
"Preguiçoso, vê a formiga, observa o seu proceder e torna-te sábio!
Ela não tem capataz, ninguém que dirige, nenhum chefe. Contudo no verão cuida do seu pão, recolhe a sua
forragem no tempo da colheita. Até quando dormirás, ó preguiçoso? Quando te levantarás do sono?
Dormes um pouco, cochilas um pouco, um pouco cruzas os braços e descansas, e tua pobreza virá como um
salteador de estradas, e como um mendigo a tua indigência "(Pr 6,6-11).
Todavia, ainda observam os sábios de Israel , toda a diligência do homem é inútil se não vem abençoada por
Deus:
"Se o Senhor não construir a casa, em vão trabalharão os que a constróem. Se o Senhor não protege a cidade,
em vão vigia a sentinela. É inútil que madrugueis e que atraseis o vosso olhar para comer o pão com duros
trabalhos. Aos seus amigos Ele o dá enquanto dormem" (SI 127, 1s).
A própria riqueza não vale se não é associada à prática da virtude:
"Mais vale pouco com temor do Senhor do que grandes tesouros com sobressalto" (Pr 15,16).
"No dia da ira a riqueza para nada serve, mas a justiça salva da morte" (Pr 11,4).
"Melhor um bocado de pão seco com tranqüilidade do que uma casa cheia de carne de sacrifício e discórdia"
(Pr 17, 1).
"Melhor um prato de hortaliças com amor do que um boi cevado com ódio "(Pr 15, 17).
Em suma, "quem confia na sua riqueza cai, mas como folhagem verde desabrocham os justos" (Pr 11 ,28).
A sabedoria no trabalho consiste em conhecer a regra e, antes do mais, o Senhor da regra.
Assim o homem evitará os dois extremos: estar abaixo dos animais (a formiga) pela preguiça ou querer estar
acima de Deus enganando-se a si mesmo.

Lição 3: Doença e Cura


O tempo do homem é também ameaçado pelas doenças. O Senhor Deus vem a ser o Grande Médico.
São freqüentes as referências a moléstias físicas no Antigo Testamento. Principalmente vêm citadas as
doenças da pele: lepra, pústulas, eczemas purulentos, sarnas, inflamações diversas... Ocorrem também, não
poucas vezes, as doenças dos olhos.
À diferença do que ocorria na Babilônia e no Egito, não é claramente atestada, em Israel, a profissão de
médico. O principal artesão da cura era sempre considerado o Senhor; parece mesmo que uma antiga tradição
em Israel desaconselhava o recurso aos médicos (pois a medicina era contagiada pela magia) e propunha o
recurso ao Senhor Deus mediante os sacerdotes 34. É o que se depreende da história do rei Asa como descrita em
2 Cr 16,15:
"No trigésimo nono ano do seu reinado, Asa teve uma doença muito grave nos pés; mesmo então na doença
não recorreu ao Senhor mas aos médicos35.
No século II a.C. , porém, já se fazia o elogio e a recomendação do médico: "Presta ao médico as honras que
lhe são devidas por causa de seus serviços, pois o Altíssimo o criou. Pois é do Altíssimo que vem a cura como
um presente que se recebe do rei. A ciência do médico o faz levantar a cabeça; ele é admirado pelos grandes...
O Senhor é quem dá a ciência aos homens... Por eles, Ele curou e aliviou. O farmacêutico prepara a mistura...
Filho, na doença não te revoltes, mas reza ao Senhor e Ele te curará" (Eclo 38, 1-4. 7,9s).
Como se vê, o autor sagrado é sóbrio em relação ao médico. Este recebe de Deus a sua sabedoria e arte, do
mesmo modo como os remédios são dádivas do Criador tiradas da terra. Por isto, tanto o médico como o
paciente precisam de fazer oração a Deus para obter o bom êxito do tratamento empreendido.
Por isto também, no Antigo Testamento não se distinguem curas naturais e curas milagrosas. Em todo e
qualquer caso, é necessário que o enfermo procure a Deus, que é o Senhor da vida e da morte. Ver Is 38,9-20,
onde o rei Ezequias canta:
"Dia e noite me consumiste... Gemo como a pomba, os meus olhos se cansam de olhar para o alto. Senhor
estou oprimido, socorre-me! ... Tu restaura-me, faze-me viver. Com isto a minha amargura se transformou em
34
Este modo de ver deve-se, em grande parte, também à persuasão, existente em Israel, de que a doença é conseqüência do pecado; por conseguinte,
é o Senhor quem a inflige e é o Senhor quem a pode curar.
35
Note-se que a doença de Asa era castigo do Senhor devido a um grave pecado do rei Asa (cf. 2 Cr 16, 10).
64 Escola Mater Ecclesiae
bem-estar Tu preservaste a minha vida do abismo da destruição. Lançaste para trás de ti todos os meus
pecados"(Is 38, 13s. 16s).
Em suma, a doença assim entendida pode levar o enfermo a um exame de consciência e ao arrependimento
dos pecados. Na cidade messiânica, uma vez superada toda a desordem do pecado, não haverá mais doenças,
conforme Is 33,24:
"Nenhum habitante seu tornará a dizer: 'Estou doente1 Pois ao povo que nela morar estará perdoada a
culpa."

Lição 4: A Esperança
Deus, que confiou tarefas ao homem, nem sempre lhe dá motivos para esperar um futuro que corresponda às
expectativas do ser humano. O futuro para o israelita, ficava sempre algo de obscuro, pois nos séculos iniciais
de sua história o povo não tinha consciência de uma vida póstuma lúcida; a retribuição da fidelidade à Lei de
Deus, por conseguinte, devia ocorrer na vida presente. Todavia esta vida nem sempre parece lógica e ordenada,
pois neste mundo muitas vezes os maus prevalecem sobre os bons; não se vê a recompensa para a virtude e a
punição para o pecado, como observa o Eclesiastes em seus doze capítulos. O Senhor é soberano em seus
desígnios, de modo que o homem, limitado como é, não pode definir com segurança o seu futuro na terra; é o
que notam os sábios de Israel:
"O corcel é preparado para o dia da batalha, mas a vitória está com o Senhor" (Pr 21,31).
"O espírito do homem planeja o seu caminho, mas o Senhor dirige o seu passo" (Pr 16, 9).
Por isto, "os justos e os sábios com as suas obras estão nas mãos de Deus" (Ed 9,1).
Apesar de tudo, porém, o israelita piedoso tem sua esperança no Senhor. Ele, que deu a terra a seu povo,
guiando-o através do deserto, havia de completar a sua obra.
"A nossa alma espera no Senhor; Ele é a nossa ajuda e o nosso escudo" (SI 33,20).
"Agora, que devo esperar Senhor? A minha esperança se funda em vós, só em vós" (SI 39, 8).
"Espero no Senhor espero com desejo, espero na sua palavra. O meu anseio vai para o Senhor mais do que
aquele dos vigias para a manhã" (SI 130,5s).
A tentação de desconfiar é superada pela esperança mais forte do orante:
"Não digas: 'Quero retribuir o mal!'Espera no Senhor Ele te salvará" (Pr20,22).
Mesmo nos momentos mais angustiantes, como são os que se seguiram à destruição de Jerusalém em 587, a
esperança vence o desânimo; há sempre uma voz que se levanta para reconfortar os desfalecentes:
"Eu disse: Desfaleceu o meu vigor e minha esperança no Senhor...
O Senhor é bom para quem nele espera, para aquele que O busca" (Lm 3, 18.25).
O fundamento da esperança de Israel está nos próprios benefícios concedidos pelo Senhor aos antepassados:
as promessas feitas a Abraão, não somente em favor de Israel, mas em favor de todo o povo (cf. Gn 12,3)...; a
promessa de paz (Shalom), que era o grande ideal dos israelitas: "Um menino nos nasceu, um menino nos foi
dado... e recebeu este nome: Conselheiro Maravilhoso... Príncipe da Paz...assegurando o estabelecimento de
uma paz sem fim" (Is 9,5s).
O mesmo ideal é retornado por Os 2, 20:
"Exterminarei da face da terra o arco, a espada e a guerra; fa-los-ei repousar em segurança".
Ver ainda Mq 5,9: "Ele será a paz!"
Por fim, notemos que as promessas do Senhor se dirigiam, antes do mais, ao povo de Israel como tal. O
indivíduo era nos tempos mais remotos, considerado em função da comunidade e não diretamente como tal. A
mentalidade do clã assim concebida devia ceder à valorização explícita e direta de cada indivíduo com o passar
do tempo. Principalmente os Profetas Jeremias e Ezequiel incutiram a responsabilidade pessoal de cada um,
dissipando assim a alegação hipócrita dos israelitas do século VI a. C.; ameaçados e punidos pelos babilônios,
recusavam-se a reconhecer seus pecados e fazer penitência, alegando que os antepassados é que haviam pecado
e os descendentes estavam pagando pelas culpas de seus ancestrais:
"A palavra do Senhor foi-me dirigida nestes termos: Que vem a ser este provérbio que vós usais na terra de
Israel: Os pais comeram uvas verdes e os dentes dos filhos ficaram embotados? Por minha vida, oráculo do
Senhor lahweh, não repetireis jamais esse provérbio em Israel... Aquele que pecar esse morrerá "(Ez 18, 1-4; cf.
Jr 31,29).
O livro da Sabedoria, no séc. I a.C., professa claramente a responsabilidade pessoal e o cumprimento das
promessas do Senhor não na vida presente, mas na vida póstuma. A revelação da vida póstuma lúcida veio
corroborar a esperança do israelita no Deus que falava aos pais.

PERGUNTAS
65 Escola Mater Ecclesiae
1) Como é que os israelitas viam o tempo, levando em conta principalmente o Deuteronômio e o
Eclesiastes?
2) Como era estimado o trabalho em Israel?
3) Como eram vistas as doenças e a medicina no Antigo Testamento?
4) Em que se baseava a esperança de Israel?
5) Que é a mentalidade do clã ? Como foi encarada pelo Profeta Ezequiel?

OS DOENTES, NOSSOS IRMÃOS


Eis como, nos tempos após Cristo, S. Gregório de Nazianzo († 390 aproximadamente) se refere aos
enfermos:
"São tais as calamidades que padecem os enfermos, irmãos nossos segundo Deus, possuidores de natureza
idêntica à nossa, formados do barro do qual fomos todos criados no princípio. Foram feitos, como nós, de
nervos e ossos, revestidos de pele e carne, como todos, conforme diz Jó ao filosofar sobre nossos sofrimentos e
ao desprezar o que em nós é aparência. Ou, para falar melhor, eles receberam a mesma imagem de Deus que
todos nós e talvez a conservem mais do que nós, embora estropiados nos corpos. Eles se revestiram, segundo o
homem interior, do mesmo Cristo que nós; foi-lhes dado o mesmo Espírito. Participam de idênticas leis, dos
mesmos divinos oráculos e testamentos, das comunidades, dos sacramentos, da esperança. Por eles também
morreu Cristo, que tira o pecado do mundo. São herdeiros da vida eterna, apesar de fracassados na vida
presente. São sepultados juntamente com Cristo e com ele ressuscitam. Padecendo com ele, serão glorificados
com ele.
Que faremos, pois, nós? Nós, que herdamos um grande e novo nome, o do próprio Cristo; nós, que somos
nação santa, sacerdócio régio, povo particular e eleito, seguidor de obras boas e salvíficas; nós, discípulos do
Cristo manso e benigno, que carregou sobre si nossas enfermidades, se humilhou a ponto de assumir nossa
carne e se fez habitar neste tabernáculo terrestre, sofrendo por nosso amor a fim de que nos enriquecêssemos de
sua divindade? Tendo tal exemplo de misericórdia e compaixão, que pensaremos e que faremos com esses
miseráveis? Vamos desprezá-los, passar por eles de largo, abandoná-los como cobras ou feras? De maneira
alguma, irmão! Isso não nos conviria, ovelhas que somos de Cristo, do bom pastor que vai em busca da ovelha
desgarrada e fortalece a frágil" (Discurso sobre o Amor dos Pobres).

MÓDULO 22: O HOMEM À LUZ DE JESUS CRISTO


Passamos agora ao Novo Testamento, que leva a termo as noções apresentadas pelos livros sagrados de
Israel.

Lição 1: O Homem - quem é?


Como se compreende, os escritos do Novo Testamento estão todos perpassados pelo fato da Encarnação ou
pelo encontro do divino e do humano em Jesus Cristo:
"Uma vez que os filhos têm em comum carne e sangue, por isto também Ele participou da mesma condição,
a fim de destruir pela morte o dominador da morte, isto é, o diabo, e libertar os que passaram toda a vida em
estado de morte" (Hb 2, 14s).
Jesus Cristo é o Homem por excelência , o Primogênito de uma série de muitos irmãos:
"Os que de antemão o Pai conheceu, esses Ele também os predestinou a serem conformes à imagem de seu
Filho, a fim de ser Ele o primogênito entre muitos irmãos" (Rm 8,29).
O homem é concebido no Novo Testamento como na antropologia judaica tardia, ou seja, como um
composto de corpo (soma) e alma (psyché). O texto mais significativo é o de Mt 10,28:
"Não temais os que matam o corpo, mas não podem matar a alma. Temei, antes, aquele que pode destruir a
alma e o corpo na geena".
O texto afirma a sobrevivência da alma após a destruição do corpo, o que supõe a espiritualidade da alma.
Disto resulta que o ser humano é composto de corpo (material) e alma espiritual.
Verdade é que São Paulo em 1Ts 5,23 apresenta três componentes do ser humano:
"Que o vosso ser inteiro, o espírito, a alma e o corpo, sejam guardados de modo irrepreensível para o dia da
vinda de Nosso Senhor Jesus Cristo!"
É esta a única passagem em que São Paulo apresenta a divisão tri-partida (espírito, alma e corpo). O
Apóstolo não professa uma antropologia sistemática. O próprio vocábulo "espírito" (pneuma) pode ter mais de
um significado conforme o Apóstolo: assim, por exemplo, designa o Espírito Santo derramado em nossos
corações em Rm 5,5; 1Ts 4,8; Gl 4,6; 3,5; Fl 1,19; Rm 8,9; 1Cor 3,16. Espírito (pneuma) pode também
66 Escola Mater Ecclesiae
significar o componente mais digno do homem, distinto do corpo (cf. l Cor 5,3s; 7,4; Cl 2,5) ou da carne (1Cor
5,5; 2Cor 7,1). Em lTs 5,23 São Paulo, acrescentando espírito a corpo e alma, quer designar a vida da graça ou
a filiação divina que a psyché (alma) humana recebe quando batizada.
O Apóstolo menciona também o nous, inteligência, razão, mente do homem em Rm 7,25; Ef 4,23. É uma
faculdade da psyché humana, e não um terceiro componente do indivíduo (cf. l Cor 14,14.19; Fl 4,7; 2Ts 2,2).
São Paulo conhece a antítese entre carne e espírito. Não se trata de dualismo ontológico, como se a carne
fosse má por si e o espírito bom, mas o Apóstolo tem em vista tendências antagônicas no plano moral ou no
plano do agir humano: "As obras da carne são fornicação, impureza, libertinagem, idolatria, feitiçaria... ao
passo que os frutos do espírito são amor, alegria, paz, longanimidade"... (Gl 5,16-24).
Outro traço importante da antropologia paulina é a distinção entre corpo psíquico e corpo espiritual. O corpo
psíquico é o corpo animado pela psyché (alma), princípio vital de todo ser humano. O corpo espiritual (soma
pneumatikón) é o mesmo corpo, que, sem perder a sua psyché, é todo penetrado pelo pneuma ou pelo Espírito
Santo, de modo a ser transparente para a Glória de Deus. Eis o que diz o Apóstolo:
"Se há um corpo psíquico, há também um corpo espiritual. Assim está escrito: o primeiro homem, Adão, foi
feito alma (psyché) vivente; o último Adão tornou-se espírito que dá a vida. Primeiro foi feito não o que é
espiritual, mas o que é psíquico; o que é espiritual, vem depois." (I Cor 15,44-46).
S. Paulo tem em vista aqui a ressurreição do corpo. Este será então configurado ao corpo de Cristo e
vivificado pelo Espírito Santo.
Logicamente passamos a estudar:

Lição 2: A Ressurreição dos Corpos


Na pregação de Jesus, três são os principais aspectos postos em realce:
a) A ressurreição será universal ; tanto os justos como os pecadores ressuscitarão: "Não vos admireis, pois
vem a hora em que todos os que estão nos túmulos ouvirão a voz do Filho do Homem, e sairão; os que tiverem
praticado o bem, ressuscitarão para a vida; os que tiverem cometido o mal, ressuscitarão para a condenação" (Jo
5,28). Assim concebida, a ressurreição da carne se apresenta como a plena eflorescência dos dons que o Senhor
outorga ao homem no decorrer da sua vida terrestre.
b) Jesus afirmou também algo do modo da futura ressurreição: implicará a glorificação dos corpos. Este
ensinamento era bem oportuno frente à concepção dos saduceus, que negavam a ressurreição justamente porque
a definiam, à semelhança de alguns pagãos, como a volta das almas a um corpo e às circunstâncias da vida
presente. A glorificação acarretará um gênero de vida semelhante ao dos anjos, o que quer dizer: de todo isento
das vicissitudes e indigências da carne mortal:
"Os filhos deste século esposam e são esposados; aqueles, porém, que tiverem sido julgados dignos de tomar
parte no mundo futuro e na ressurreição dos mortos, não esposarão nem serão esposados; também não poderão
morrer pois serão semelhantes aos anjos e serão filhos de Deus, uma vez ressuscitados" (Lc 20,34-36).
A ressurreição prometida por Deus é, pois, algo que transcende muito as mais otimistas concepções dos
homens!
c) Penhor da transfiguração dos corpos é a Sagrada Eucaristia. Jesus apresenta este dom não apenas como
alimento da alma, mas como o próprio remédio da carne mortal; não em vão o corpo de Cristo glorioso é dado
ao corpo do cristão enfermiço; aquele há deter uma ação sobre este, a ação de vivificar e transfigurar: "Em
verdade, em verdade vos digo: se não comerdes a carne do Filho do homem e não beberdes o Seu sangue, não
tereis a vida em vós. Aquele que come a Minha carne e bebe o Meu sangue tem a vida eterna, e eu o
ressuscitarei no último dia " (Jo 6,53s).
d) Em Mt 27,51-53 narram-se episódios que têm chamado a atenção dos leitores: "(Quando Jesus morreu), o
véu do Santuário se rasgou em duas partes, de cima a baixo, a terra tremeu e as rochas se fenderam. Abriram-se
os túmulos e muitos corpos dos santos falecidos ressuscitaram. E, saindo dos túmulos após a ressurreição de
Jesus, entraram na Cidade Santa e foram vistos por muitos".
Que significam estes dizeres?
O Evangelista faz questão de notar as conseqüências escatológicas e inovadoras da morte de Jesus: o véu do
Templo se rasgou, em sinal de que a antiga Aliança fora ultrapassada; a terra e as rochas se abalaram, em
resposta da natureza à obra salvífica de Jesus. Quanto à ressurreição dos mortos, que terá ocorrido após a
ressurreição de Jesus, significa a vitória de Jesus sobre a morte; os Profetas já haviam predito que a morte seria
vencida pelo Messias (cf. Is 26,19; Dn 12,2; 2Mc 7,9-14). Notando tais fenômenos, o Evangelista quis realçar o
significado teológico da morte de Jesus: é a vitória do Senhor, predita pelo próprio Jesus em seu sermão
escatológico (cf. Mt 24,27-29) e perante o Sinédrio que o julgava (cf. Mt 26,64). A morte de Jesus foi
mensagem de redenção para os justos do Antigo Testamento, que aguardavam a vinda do Salvador (cf. l Pd
67 Escola Mater Ecclesiae
3,19). Assim vemos que, redigidos em consonância com os Profetas e os escritos apocalípticos, os episódios
mencionados hão de ser entendidos como portadores de profunda mensagem teológica.

Lição 3: O Trabalho
O trabalho, no Antigo Testamento muito valorizado, é de modo especial santificado pela vinda de Cristo.
Fazendo-se homem, Deus Filho quis assumir a condição de trabalhador (cf. Mc 6,3; Mt 13,55) como bem
registra o Concílio do Vaticano II:
"Trabalhou com mãos humanas, pensou com inteligência humana, agiu com vontade humana, amou com
coração humano. Nascido de Maria Virgem, tornou-se verdadeiramente um de nós, semelhante a nós em tudo,
exceto no pecado "(Gaudium et Spes n°. 22).
Com sua participação na vida dos homens, Jesus consagrou o trabalho intelectual e manual, à diferença da
aristocracia grega, que desdenhava o trabalho braçal. O Senhor Jesus encontra, no mundo do trabalho, imagens
que bem ilustram a missão do Salvador: pastor, vinhateiro, médico, semeador (cf. Jo lo,11 .14; 15,1; Mc 2,17;
4,3). O apostolado é comparado à ceifa (Mt 9,37; Jo 4,38) e à pesca (Mt 4,19). As parábolas de Jesus se voltam
para o mundo do trabalho: o lavrador em seu campo (Lc 9,62), a dona de casa com a sua vassoura (Lc 15,8), o
homem que enterra o talento em vez de trabalhar com ele (Mt 25,14-30).
Os Apóstolos eram também trabalhadores, sobressaindo-se São Paulo, que fazia questão de trabalhar com as
mãos para poder subsistir em vez de viver às custas das comunidades que ele evangelizava:
"Ainda vos lembrais, meus irmãos, dos nossos trabalhos e fadigas. Trabalhamos de noite e de dia para não
sermos pesados a nenhum de vós. Foi assim que pregamos o Evangelho de Deus" (1Ts 2, 9). Ver At 18, 3; 20,
34; 1Cor 4, 12
Conseqüentemente o Apóstolo podia exortar os fiéis ao trabalho, principalmente em Tessalônica, onde
alguns, dados à fantasia, não trabalhavam à espera de "imediata" Segunda vinda de Cristo:
"Quando estávamos entre vós, já vos demos esta ordem; quem não quer trabalhar também não há de comer.
Ora ouvimos dizer que alguns dentre vós levam vida ociosa, atarefados em fazer coisa alguma. A essas pessoas
ordenamos e exortamos, no Senhor Jesus Cristo, que trabalhem na tranqüilidade, para ganhar o pão com o
próprio esforço" (2Ts 3, lo-12).
A solidariedade existente entre o homem (microcosmos) e o mundo irracional (macrocosmos) explica que,
por causa do pecado da origem, as criaturas irracionais estejam em desordem; acham-se sujeitas à vaidade, ou
seja, à loucura (mataiótes) do homem, servindo ao egoísmo e à cobiça do homem que trabalha contrariamente
ao plano de Deus; "elas gemem e sofrem dores de pano até o presente, na expectativa ansiosa da plena redenção
dos filhos de Deus; quando estes forem livres de toda desordem do pecado, as criaturas inferiores serão livres
da escravidão a que o homem atualmente as sujeita" (cf. Rm 8,18-22).
O cristão trabalha com afinco, sem dúvida, para cumprir a missão que Deus lhe confiou, mas ele sabe que
não lhe adianta ganhar o mundo inteiro se ele se perder ou arruinar a si mesmo (cf. Lc 9,25). Diante do valor
absoluto, que é Deus descoberto e plenamente amado, tudo empalidece, pois "passa a figura deste mundo"(1Cor
7,31).

Lição 4: O Homem em Sociedade


O ser humano é social por sua própria natureza. Este caráter social tem seu fundamento mais remoto na
diferença dos dois sexos, diferença segundo a qual o ideal humano não se realiza plenamente senão na
colaboração de homem e mulher. Desta colaboração tem origem a família. O pecado rompeu a solidariedade
natural existente entre o homem e a mulher; o homem acusou sua mulher (Gn 3,12); doravante o
relacionamento mútuo será difícil (Gn 3,16). Não somente os casais sofrem as conseqüências do primeiro
pecado; a família humana em geral se divide em facções, cuja convivência nem sempre é pacífica.
Jesus Cristo, o segundo Adão, veio reparar os males induzidos pelo pecado. Tendo recriado em si a
humanidade pela sua ressurreição, enviou o Espírito Santo sobre os homens, afim de os congregar numa
sociedade sobrenatural - a Igreja - em que não são apagadas as diferenças, étnicas e sociais, mas são elevadas a
um plano superior, de modo a convergir harmoniosamente no serviço a Deus. O "estar em Cristo" dá uma nova
dimensão ao ser humano, a ponto que o Apóstolo pode dizer: "Não há mais judeu nem grego, não há mais
escravo nem livre, não há mais homem nem mulher, pois todos vós sois um só em Cristo" (Gl 3,28).
O episódio de Babel, expressão do orgulho e do egoísmo do homem sem Deus e raiz da confusão das
línguas, é resgatado pelo de Pentecostes (cf. At 2,1-l 3).
A própria família, sujeita à poligamia e ao divórcio "por causa da dureza dos vossos corações" (Mt 19,8), é
resgatada por Cristo, de modo a tornar-se monogâmica e indissolúvel ou ainda "a Igreja doméstica". Nesta o
68 Escola Mater Ecclesiae
marido faz as vezes de Cristo, e a esposa as vezes da Igreja; o casal é o mistério (sacramento) pequeno em
relação ao mistério (sacramento) grande, que é a união de Cristo com a sua Igreja. (cf. Ef 5,25-33).
A procriação já não tem a importância que ela tinha no Antigo Testamento, quando se esperava a vinda do
Messias pela propagação da linhagem de Israel. A virgindade ou a vida una e indivisa tornou-se uma forma
privilegiada de responder ao anuncio messiânico; é, de certo modo, a antecipação do estado definitivo da
humanidade:
"Na ressurreição nem eles se casam nem elas se dão em casamento, mas são todos como os anjos no céu "
(Mt 22, 30).
São Paulo acrescenta:
"Eis o que vos digo, irmãos: O tempo se fez curto. Resta, pois, que aqueles que têm esposa, sejam como se
não a tivessem, aqueles que choram como se não chorassem, ... aqueles que usam deste mundo como se não
usassem plenamente. Pois passa a figura deste mundo" (1Cor 7,29-31).
O Reino de Deus foi instaurado em gérmen por Cristo na terra, e tende a desenvolver-se com o decorrer do
tempo, na expectativa da sua consumação: então o último inimigo - a morte - será destruído, e o Filho,
encabeçando a humanidade inteira e o mundo inferior, entregará o reino ao Pai, afim de que Deus seja tudo em
todos (cf. l Cor 15,20-28).
Entrementes, diz São Paulo, "ninguém procure nos homens motivo de orgulho, pois tudo pertence avós:
Paulo, Apolo, Cefas, o mundo, a vida, a morte, as coisas presentes e as futuras. Tudo é vosso; vós sois de Cristo
e Cristo é de Deus"(1Cor 3,21s).

PERGUNTAS
1) Qual a grande novidade do Novo Testamento para a antropologia ?
2) Quantos e quais são os componentes do ser humano, conforme o Novo Testamento?
3) Como entender o texto de 1Ts 5,23 ?
4) Como é visto o trabalho humano no Novo Testamento?
5) Como entender a escravidão do mundo irracional conforme Rm 8, 18-22?
6) Como Jesus Cristo realiza a re-união da família humana dividida pelo pecado?

PARTE II: O HOMEM: B) história do Dogma

MÓDULO 23: DAS ORIGENS AO SÉCULO IV


A conceituação de ser humano (homem e mulher) entre as primeiras gerações cristãs foi dificultada pelo fato
de que algumas correntes antropológicas gregas e orientais interferiam no pensamento cristão. É o que
passamos a considerar, a partir dos escritos paulinos e joaneus.

Lição Única: De São Paulo a Lactâncio († 316/317)


À guisa de pano de fundo, devemos notar que o Cristianismo começou a se expandir em ambiente
helenístico. Ora, desde Sócrates (t 399 a.C.) os gregos viam na alma (psyché) a autêntica essência do homem,
sendo a alma imortal por sua natureza. O corpo era visto, por grande número de pensadores gregos (excluído
Aristóteles), como algo de negativo, que impedia a plena realização da alma. Daí julgarem muitos gregos que a
ressurreição dos corpos era um absurdo; em vez de ser um prêmio, seria uma punição. Ora o Cristianismo
pregava a imortalidade da alma, sem dúvida, mas anunciando também o retorno do corpo à vida na ressurreição
da carne. Estes dois modos de ver deviam entrar em choque nos primeiros séculos do Cristianismo, como aliás
ocorreu nos tempos mesmos de S. Paulo: quando o Apóstolo, no Areópago de Atenas, anunciou Jesus e a
anastasía (ressurreição), imaginavam que estivesse apregoando novo par de deuses e escarneceram Paulo; não
lhe permitiram que continuasse a falar:
"Ao ouvirem falar da ressurreição dos mortos, uns zombavam, outros diziam: 'Ouvir-te-emos a respeito disso
outra vez'. Foi assim que Paulo se retirou do meio deles" (At 17, 32s).
O pensamento dualista de filósofos gregos se prolongou na gnose ou no gnosticismo. A gnose ou
gnosticismo é um conjunto de teses de origem oriental (iraniana, zoroástrica), grega (dualismo) e judaica
(especialmente da literatura apocalíptica de Israel). Pode-se dizer que esse amálgama de idéias começou a se
fundir antes de Cristo e repercute já nas primeiras com unidades cristãs.
Assim São Paulo, escrevendo aos coríntios, teve que impugnar os "entusiastas do espírito", que
menosprezavam o corpo por ser material, rejeitavam a ressurreição da carne e se entregavam à libertinagem
sexual:
69 Escola Mater Ecclesiae
"'Tudo me é permitido', mas nem tudo convém. 'Tudo me é permitido' mas não me deixarei escravizar por
coisa alguma. Os alimentos são para o ventre e o ventre para os alimentos, e Deus destruirá aquele e estes. Mas
o corpo não é para a fornicação, e sim para o Senhor e o Senhor é para o corpo. Ora Deus, que ressuscitou o
Senhor ressuscitará também a nós pelo seu poder" (lCor6,12-14;cf 15, 11-53).
A gnose afirmava que é preciso libertar a alma arrancando-a ao corpo, afim de a transferir para o mundo da
luz. Em réplica, o Apóstolo enfatiza que a corporeidade é o "lugar" em que se realiza a nossa Salvação; Cristo
nos salvou assumindo a corporeidade do homem, de modo que só pertencemos a Ele plenamente se nossos
corpos lhe são consagrados.
São João Apóstolo também teve que enfrentar os adversários da corporeidade, insistindo na realidade da
Encarnação do Logos. Os docetas julgavam indigno de Deus assumir a carne do homem; daí proclamarem a
carne aparente, e não real, de Jesus Cristo. São palavras do Apóstolo:
"O que era desde o princípio... e o que as nossas mãos apalparam do Verbo da Vida, pois a Vida se
manifestou... e vos anunciamos esta Vida eterna, que estava voltada para o Pai e que nos apareceu" (I Jo 1, 1s).
Ver ainda I Jo 4,2; 2Jo 7.
No século II encontram-se ecos dessa impugnação da gnose avessa à matéria.
É o que se nota nas cartas de S. Inácio de Antioquia († 107), que muito acentuou a realidade da Encarnação:
"Eu sei e acredito que Ele, mesmo após a ressurreição, permaneceu em sua carne. Quando se apresentou
também aos companheiros de Pedro, disse-lhe: 'Tocai em mim, apalpai-me e vede que não sou espírito sem
corpo1 De pronto nele tocaram e creram, entrando em contato com seu corpo e seu espírito. Por isto,
desprezavam também a morte, e a ela se sobrepuseram. Após a ressurreição, comeu e bebeu com eles, como
alguém que tem corpo, ainda que estivesse espiritualmente unido ao Pai" (Aos Esmirnenses 3, 1-3).
"Abstêm-se eles da Eucaristia e da oração, porque não reconhecem que a Eucaristia é a carne de nosso
Salvador Jesus Cristo, carne que padeceu por nossos pecados e que o Pai, em sua bondade, ressuscitou" (Aos
Esmirnenses 7, 1).
São Justino († 165), ao comentar a palavra bíblica "Façamos o homem à nossa imagem e semelhança" (Gn 1,
26-28), exclui a hipótese de se tratar de um diálogo de Deus com os anjos que teriam criado o corpo humano;
este foi criado diretamente por Deus (Diálogo com Trifão 62,3). Todavia no tocante à alma humana, Justino
professa não ser ela imortal por si mesma, mas poder deixar de existir:
"Tudo o que existe fora de Deus... é perecível por sua natureza, pode desaparecer e não existir mais.
Somente Deus é incriado e imperecível - e exatamente por isto é Deus -, ao passo que tudo o que vem depois
dele é criado e perecível"
"Á alma participa da vida porque Deus quer que ela viva. Portanto, se alguma vez Deus quiser que não viva,
deixará de participar da vida... Quando for necessário que já não exista a alma, há de abandoná-la o espírito
vital e deixará de existir voltando novamente para o lugar donde foi tirada" (Diálogo com Trifão 6, 1).
Este texto é obscuro e manifesta concepções ainda hesitantes da parte de Justino. S. Ireneu († 202) tem uma
concepção muito positiva da carne humana, em oposição a qualquer tipo de dualismo; reconhece que o homem
inteiro, não somente o espírito, mas também a carne, é imagem de Deus:
"Á verdade.., apareceu quando o Verbo de Deus se fez homem, tornando-se semelhante ao homem e
tornando o homem semelhante a Si, para que, pela semelhança com o Filho, o homem se tornasse precioso aos
olhos do Pai. Com efeito; nos tempos anteriores dizia-se que o homem fora feito à imagem de Deus, mas isto
não aparecia, pois o Verbo ainda era invisível, Ele segundo cuja imagem o homem fora feito; foi, aliás, por este
motivo que a semelhança se perdeu facilmente. Mas, quando o Verbo de Deus se fez carne, Ele confirmou uma
e outra; fez aparecer a imagem em toda a sua verdade, tornando-se Ele mesmo aquilo que era sua imagem, e
restabeleceu a semelhança de maneira estável, tornando o homem totalmente semelhante ao Pai invisível por
meio do Verbo que doravante se fizera visível" (Contra as Heresias V 16,2).
Tertuliano († após 220), tem em vista o gnosticismo dualista. Daí o combate à tese da preexistência da alma,
que atualmente estaria ligada ao corpo por efeito de um pecado da alma. Afirma a ressurreição da carne, título
de uma obra sua, que enfatiza a vocação da carne à ressurreição. Entre a morte do homem e a ressurreição do
mesmo (que se dará no fim dos tempos). Tertuliano admite que a alma, separada do corpo, colha os frutos da
semeadura realizada na terra; ao professar esta doutrina, Tertuliano revela sofrer influência platônica,
atribuindo excessiva autonomia à alma com detrimento da unidade do ser humano:
"Que sucederá nesse intervalo de tempo entre a morte e a ressurreição? Dormiremos? Mas nem nos vivos as
almas dormem, pois o sono é próprio do corpo, como própria do corpo é a morte, cujo espelho é o sono...
Acaso a alma espera sempre pelo corpo para sofrer ou gozar? Ao contrário, não basta ela a si mesma para
experimentar alegria ou dor? Quantas vezes o corpo está intato e só ela se atormenta pela ira, pela revolta, pelo
70 Escola Mater Ecclesiae
tédio, por vezes até sem consciência disto? Quantas vezes, nas aflições do corpo, a alma encontra uma secreta
alegria, e então se afasta da inoportuna companhia do corpo?
Portanto também no além poderá sofrer e alegrar-se sem a carne, se mesmo com a carne intata sabe sofrer se
quer e gozar se quer. Se isto lhe é possível em vida, quanto mais, por decreto de Deus, após a morte!" ( De
Anima 58).
Contra os gnosticos, Tertuliano proferiu famosa sentença, até hoje muito citada: "Caro cardo salutis. A
carne é o gonzo (a dobradiça) da salvação" Ou ainda: "Considera como esta carne é grande, para que nela seja
manifestada a vida de Cristo" (De resurrectione carris 44).
No tocante à origem da alma humana, Tertuliano ainda professa concepção imperfeita, afirmando que a alma
se propaga por uma espécie de semente (tradux) espiritual, de modo que todas as almas são descendentes de
uma única alma original (De Anima 36s). Tal doutrina é insustentável, pois a alma humana, sendo espiritual,
não pode emitir alguma semente ou parcela de si; está subjacente a esta concepção uma falsa noção de
espiritualidade, concebida como algo de etéreo ou gasoso. S. Agostinho retomou a sentença de Tertuliano, mas
não se fixou definitivamente sobre a mesma.
Voltando ao mundo de língua grega, encontramos Orígenes de Alexandria († 254), que parece ter sofrido
forte influxo platônico. Com efeito; Orígenes vivia numa época em que a teologia ainda procurava a
formulação precisa de muitas proposições de fé; por isto aventou hipóteses pessoais que ele reconhecia serem
meras tentativas de explicação, sujeitas ao julgamento da Igreja. Dentre essas hipóteses, há aquela que se refere
à origem da alma humana: baseando-se num jogo de palavras. Orígenes derivava psyché (alma) de psychos
(frio) e dizia que as almas preexistiam à sua vinda ao mundo; terão assumido um corpo humano em
conseqüência de um esfriamento do seu fervor inicial; a salvação consiste em libertar a alma dos laços do corpo
pela morte. Orígenes, porém, escapa dos erros do gnosticismo, ao admitir a criação das almas por Deus, em vez
de professar o panteísmo e a emanação:
"Se as realidades santas são chamadas gozo, luz e são tidas como candentes, se as realidades contrárias são
frias e se a caridade se esfria (cf Mt 24,12), segundo a Escritura (Mt 24, 12), nos pecadores, podemos perguntar
se talvez a palavra alma, que em grego se dizpsyché, não vem desse esfriamento figurado, a partir de um
estado mais divino e melhor; em outras palavras: podemos perguntar se a alma não se esfriou, deixando o seu
calor natural e divino, para receber as condições e a denominação que ela tem atualmente" (Sobre os
Princípios II 8,3).
Os discípulos de Orígenes, monges pouco letrados, fizeram das hipóteses do mestre dogmas de fé, de modo
a professar também a reencarnação e proposições congêneres. Tal corrente de pensamento é dita "Origenismo".
Mereceu a condenação por parte do magistério da Igreja em 543 no Sínodo Permanente de Constantinopla, que
promulgou quinze anátemas contra o Origenismo, dos quais nos interessam os quatro primeiros:
"1. Se alguém crer na fabulosa preexistência das almas e na repudiável reabilitação das mesmas (que é
geralmente associada àquela), seja anátema.
2. Se alguém disser que os espíritos racionais foram todos criados independentemente da matéria e alheios
ao corpo, e que vários deles rejeitaram a visão de Deus, entregando-se a atos ilícitos, cada qual seguindo suas
más inclinações, de modo que foram unidos a corpos, uns mais, outros menos perfeitos, seja anátema.
3. Se alguém disser que o sol, a lua e as estrelas pertencem ao conjunto dos seres racionais e que se tornaram
o que eles hoje são, por se terem voltado para o mal, seja anátema.
4. Se alguém disser que os seres racionais nos quais o amor de Deus se arrefeceu, se ocultaram dentro de
corpos grosseiros como são os nossos, e foram, em conseqüência, chamados homens, ao passo que aqueles que
atingiram o último grau do mal tiveram como partilha corpos frios e tenebrosos, tornando-se o que chamamos
demônios e espíritos maus, seja anátema".
Como se vê, a teoria da reencarnação não é cristã, nem jamais foi oficializada pela Igreja. Teve origem numa
corrente de cristãos pouco instruídos, influenciados pelo platonismo, mas foi rejeitada solenemente no
momento oportuno.
Merece ainda atenção um escritor latino chamado Lactâncio († 316 ou 317) não pela importância de sua
doutrina, mas porque revela bem a hesitação por que passaram os autores cristãos desejosos de definir o
homem; as escolas de filosofia grega, especialmente as dualistas, lhes dificultavam compreender o ser humano
como algo de harmonioso ou uno na multiplicidade de suas funções. Uma das obras mais significativas de
Lactâncio é o escrito "De Opificio Dei" (A respeito da obra de Deus) : trata do homem, expondo varias
sentenças de filósofos anteriores. Em suma, para Lactâncio a alma vem do céu, onde Deus reina, ao passo que o
corpo pertence à terra, onde o diabo domina; assim alma e corpo reproduzem o antagonismo existente entre
Deus e o diabo. Todavia a oposição entre alma e corpo é contrabalançado pela afirmação de que ambos são
criados por Deus. A superioridade da alma sobre os seres corpóreos se baseia sobre o fato de que a origem da
71 Escola Mater Ecclesiae
alma (que é espiritual) se deve imediatamente, e não mediatamente (como no caso do corpo) ao Espírito
Divino. - Como se vê, o pensamento de Lactâncio não é claro; ressente-se de insegurança, explicável pela
influência das correntes filosóficas gregas anteriores.

PERGUNTAS
1) Quais as dificuldades que os Apóstolos encontraram para definir a natureza do ser humano? Cite dois
textos.
2) Até o século IV que influência sofreram os escritores cristãos ao procurar conceber a natureza humana?
3) Qual o pensamento antropológico de S. Ireneu?
4) Quem foram os origenistas? Que professaram?
5) A teoria da reencarnação foi reconhecida pela Igreja ?

MÓDULO 24: DO SÉCULO V AO SÉCULO XIV


Continuamos o percurso da história da Antropologia Teológica, voltando-nos para S. Agostinho (t 430), que
repensou os problemas antropológicos dos antepassados e exerceu enorme influência sobre os pósteros,
especialmente sobre a teologia subseqüente até o séc. XIII, sobre a Escola Franciscana (S. Boaventura,
Alexandre de Hales...), Lutero, Jansênio, a Mística medieval e moderna...

Lição 1: S. Agostinho († 430)


S. Agostinho, tendo percorrido algumas escolas de Filosofia de sua época, abraçou o Cristianismo em 387,
tornando-se um dos maiores doutores da fé cristã. Pouco depois de convertido, escrevia em seus "Solilóquios":
"Desejo conhecer a Deus e a alma... Nada mais absolutamente "(1 2) ou ainda: "Ó Deus, que és sempre o
mesmo , faze que eu conheça a mim e conheça a ti" (II, 1 , 1).
Para elaborar seus conhecimentos relativos à alma humana, Agostinho contava com a influência
neoplatônica recebida de Plotino como também com a mensagem da fé: como terá construído sua antropologia?
É certo que, segundo Agostinho, o homem consta de alma e corpo. Mas o mestre hesita sobre a maneira
como se relacionam entre si estes dois componentes. Ele reconhece, sem dúvida, que o corpo é parte integrante
da natureza humana (o homem não é anjo) e repete algumas vezes a fórmula clássica: "O homem é um animal
racional, mortal" (De Ordine11 31 ; De quantitate animae 47-49; De Trinitate VI1 7; XV 11). Esta fórmula
neoplatônica não há de ser entendida no sentido do hilemorfismo aristotélico, mas sim no sentido de que o
corpo é o servidor e instrumento da alma; esta parece ser o sujeito ou o homem propriamente dito, como se
depreende de outra fórmula: "O homem é uma alma racional, que se serve de um corpo mortal e terrestre" (De
morilus Ecclesiae1 52; De quantitate animae 22). Dir-se-ia, em conseqüência, que a união de corpo e alma é
funcional e acidental, e não propriamente substancial (como ensinará a Teologia posterior). A razão dessa
especial estima de Agostinho para com a alma humana se deve ao fato de que o mestre vê na alma humana a
imagem da SS. Trindade, como se dirá adiante.
Para Agostinho, a composição de corpo e alma tem o significado de colocar o homem entre os anjos e as
bestas ou animais irracionais.
Quanto ao corpo como tal, Agostinho não diz que é ontologicamente mau, como dizia o maniqueísmo; nem
é prisão ou sepulcro, como afirmava o platonismo. É criado por Deus, mas Agostinho não se furta a considerá-
lo negativamente do ponto de vista ético, pois, na verdade, o corpo é a sede dos impulsos desregrados; com as
suas concupiscências e sua procura de prazer sensível, pode opor-se à alma e arrastá-la para o mal.
Um dos traços próprios da antropologia de Agostinho está no fato de que ele vê no homem interior (na alma
e suas faculdades) a imagem da SS. Trindade. Agostinho descobriu no homem várias tríades, que refletem o
mistério de Deus. Eis, por exemplo, como se exprime na obra "Sobre a Trindade" (I. IX cap. 15): .
"Eis-me, por exemplo; eis-me, que busco. Quando amo algo, há então três coisas: eu, aquilo que amo, e o
amor... Eis portanto três coisas: o que ama, o amado, o amor".
Ou ainda na obra " Sobre a Cidade de Deu":
"Embora não sejamos iguais a Deus, estando aliás infinitamente distantes dele, no entanto como, entre as
suas obras, somos aquela que mais se aproxima da sua natureza, reconhecemos em nós mesmos a imagem de
Deus, ou seja, da Santíssima Trindade, imagem que ainda deve ser aperfeiçoada para aproximar-se sempre mais
dele. Com efeito; nós existimos, sabemos que existimos e amamos o nosso ser e o nosso conhecimento... Sem
qualquer representação dá fantasia, eu estou certíssimo de ser de me conhecer e de me amar".
72 Escola Mater Ecclesiae
Assim Deus se espelha na alma. Aliás, alma e Deus são os dois focos de interesse do pensamento de S.
Agostinho. Não é perscrutando o mundo, mas escavando a alma, que se encontra Deus. O conhecer-se a si
mesmo tão preconizado por Sócrates, vem a ser, pata Agostinho, conhecer-se como imagem de Deus.
Quanto ao modo como se origina a alma humana, o santo hesitou até o fim da vida. Considerou quatro
hipóteses, entre as quais o traducianismo ou a emissão de uma semente (tradux) espiritual por parte da alma dos
pais; julgou-a, porém, insuficiente, porque não se explicaria a diferença de personalidades existente entre pais e
filhos.
Continuemos o percurso da história considerando a Teologia dita "escolástica".

Lição 2: A Escolástica nascente


Chamam-se "Escolástica" a Filosofia e a Teologia que eram ensinadas nas escolas (scholae) medievais. O
objetivo fundamental da Escolástica era conciliar entre si razão e fé, ou seja, procurar penetrar com a razão nas
verdades da fé e construir assim grandes sistemas ou Sumas Teológicas, em que se procurava ilustrar, tanto
quanto possível, racionalmente o depósito da Revelação. No caso, a razão coloca-se a serviço da fé; a Filosofia
aparece como a servidora (ancilla) da Teologia. Os escolásticos procuravam não apenas crer, mas também
demonstrar, com o auxílio da Filosofia, a beleza, a profundidade, a logicidade ou, ao menos, anão
contraditoriedade das verdades da fé. A princípio, o platonismo e o neoplatonismo eram as escolas escolhidas
para tal tarefa em virtude da influência de S. Agostinho; posteriormente, foi a vez do aristotelismo transmitido
aos ocidentais por Avicena e Averroís ou mesmo lido diretamente em tradução latina. Assim o pensamento
filosófico clássico tornou-se precioso subsídio para melhor compreensão da doutrina cristã.
A Escolástica nascente, no século Xl1, apresenta correntes de pensamento:
- a platônica extremada ( Hugo de São Vítor, † 1141 , Roberto de Melun, † 1167, a "Suma das Sentenças"),
que atribui somente à alma a personalidade e, por conseguinte, o homem verdadeiro, a tal ponto que a relação
entre alma e corpo aparece como algo de acidental;
- a unitária (Gilberto Porretano t 1154, Alano de Ville † 1203, Simão de Tournai, † 1203), segundo a qual
corpo e alma constituem a pessoa de maneira tão estrita que a sua separação mútua acarreta o fim do ser
humano como tal ; a alma espiritual sobrevive, sim, por ser espiritual, mas num estado que não corresponde à
natureza, visto que ela foi feita para vivificar o corpo;
- a intermediária (Abelardo † 11 42 e Pedro Lombardo † 1159), segundo a qual a alma, como tal, não pode
ser tida como pessoa a não ser após a morte do composto "corpo-alma". Uma nova fase teológica, rompendo
com o neoplatonismo agostiniano, seria inaugurada por S. Tomás de Aquino († 1274).

Lição 3: O Pensamento de S. Tomás


S. Tomás adota a Filosofia, especialmente o hilemorfismo de Aristóteles (t 322 a.C.), mas supera a
antropologia aristotélica, que distinguia entre mente (nous) e alma numa concepção ainda um tanto obscura.
Para São Tomas, que tem a coragem de se distanciar dos comentadores de Aristóteles, a alma é a forma do
corpo, e... única forma do corpo.
Por matéria (hyle) entende-se, no caso, pura potência, ou virtualidade ou capacidade de receber uma
determinação. Essa determinação lhe vem do que se chama forma (morphé, em grego). A forma, unindo-se à
matéria, constitui um ser corpóreo, que é uno; tratando-se do ser humano, é uno de maneira substancial e não
acidental. A forma humana ou a alma humana é o primeiro elemento determinado e atuante da matéria prima.
Matéria e forma são dois seres incompletos, pois, juntos, constituem não duas substâncias, mas uma substância.
Aplicando o hilemorfismo ao ser humano, São Tomás, melhor do que os pensadores anteriores, ressalva
tanto a dualidade como a unidade do homem. Com efeito, fica dito que o homem consta de dois princípios
irredutíveis um ao outro (pois um é matéria e o outro é a alma espiritual). Não se diga, porém, que a alma se
une ao corpo como se este estivesse determinado e pronto antes da união com a alma. Não; a alma se une à
matéria prima, que é um substrato potencial, o qual recebe a sua determinação e atuação a partir da alma
(forma); dando-se à matéria indeterminada, .a alma se auto-realiza nessa doação; o que há de determinado na
matéria do homem, é a expressão da respectiva alma. Donde se conclui que o que nós chamamos corpo não é
senão a atualidade da alma colocada dentro da matéria prima; é o símbolo, através do qual transparece a alma.
Com outras palavras: o homem não é um composto resultante da união de duas grandezas disparatadas,
estranhas uma à outra, como se corpo e alma fossem duas coisas subsistentes no homem ou dois pedaços do
homem unidos entre si. Na verdade, o homem é o resultado da atuação da matéria prima por parte da alma, de
modo que ele é, todo inteiro, corpo e, todo inteiro, alma; tudo o que se afirma a respeito do corpo, e tudo o que
se afirma a respeito da alma, diz respeito ao homem tomado como um todo.
73 Escola Mater Ecclesiae
A doutrina de S. Tomás não desvaloriza o corpo como se fosse instrumento da alma (muito menos, cárcere
ou obstáculo) alma foi criada para se unir ao respectivo corpo (matéria prima de Aristóteles) ; é no corpo e
pelo corpo que ela desenvolve suas faculdades e talentos. A estrutura do espírito humano é tal que ele não pode
descobrir a verdade nem amar o bem senão passando Selo corpo, utilizando os sentidos externos (visão,
audição, tato...) para elaborar seus conceitos, raciocinar e progredir em demanda da verdade. Está claro que,
após a separação de corpo (desgastado pela doença ou pela idade) e alma, a alma sobrevive sem corpo, pois ela,
sendo espiritual, é por si mesma imortal.
A estima do corpo, na doutrina de S. Tomás, permite também compreender a dimensão social e histórica do
ser humano. Por sua corporeidade o homem pertence a uma família, a uma linhagem, a uma sociedade... Ele
existe para estar com; o caráter social e histórico do homem não é algo de adventício e acidental à pessoa
humana. Por isto a plena realização do homem se faz em sociedade tanto no plano meramente natural como no
da fé sobrenatural.
O pensamento de S. Tomás, assim exposto, tornou-se definitivo na história da Antropologia. Teológica. O
Mestre conseguiu conciliar sabiamente dualidade (tão apregoada pela filosofia grega)36 e unidade (recomendada
pela fé) no ser humano: matéria (pura potência) e forma (ato) se unem entre si num todo substancial. A posição
de S. Tomás foi reforçada pelo Concílio geral de Viena (França) em 1313.

Lição 4: O Concílio de Viena (1313)


No século XIII ainda houve hesitações a respeito de corpo e alma no homem. Pedro João Olivi, Franciscano
(1248-1298), e os "espirituais"37 da Ordem Franciscana afirmavam que a alma não se une à matéria
imediatamente, mas por intermédio de um princípio diferente dela; assim se destruia a estrita unidade do
homem.
Eis o texto da declaração conciliar:
"Com a aprovação do Santo Concílio, reprovamos como errônea e oposta à fé católica toda doutrina ou toda
tese que afirme temerariamente que a substância da alma racional ou intelectual não é realmente e por si mesma
a forma do corpo humano, ou o põe em dúvida. Para que todos conheçam a verdade da pura fé e para obstar à
introdução de todo erro, definimos que todo aquele que doravante ousar afirmar defender ou sustentar
obstinadamente que a alma racional ou intelectiva não é por si mesma e essencialmente a forma do corpo, seja
considerado herege" (Denziger - Schönmetzer Enquirídio 902 f48 li).
Com esta definição o Concílio não intencionou oficializar o hilemorfismo aristotélico - tomista, tornando-o
obrigatório a todos os cristãos, mas quis salvaguardar a unidade do ser humano, excluindo algum terceiro
componente além de corpo (matéria) e alma no homem. A tendência dos franciscanos espirituais era distanciar
as funções intelectivas das sensitivas ou distanciar espírito e matéria no homem, reagindo contra a
espiritualização do corpóreo e a corporificação do espiritual que ocorre em todo ser humano (sem que por isto
se negue a distinção de corpo e alma).

PERGUNTAS
1) Que é Escolástica?
2) Como se configurou a Antropologia da Escolástica do século Xll?
3) Como S. Tomás entendeu a dualidade e a unidade do ser humano?
4) Como se distinguem dualidade e dualismo?
5) Qual a sentença de Pedro Olivi? Que significado tinha? Como foi considerada pelo magistério da Igreja ?

MÓDULO 25: DECLARAÇÕES DA IGREJA


Percorreremos as principais manifestações do magistério da Igreja relativas à estrutura do ser humano,
evitando repetir o que tenha sido dito a respeito no Módulo 10 deste Curso.

Lição 1: Os Símbolos de Fé
Ao tratar da Encarnação do Filho de Deus, os Símbolos de Fé professaram uma certa antropologia. Sejam
citados dois espécimens.
O Símbolo de S. Epifânio, datado de 374, em sua recensão mais longa, reza o seguinte:

36
É importante distinguir dualidade e dualismo. - Dualismo significa dois princípios distintos e antagônicos entre si, como o Bem. e o Mal no
Maniqueísmo. Dualidade implica dois princípios distintos, mas não antagônicos entre si, como homem e mulher.
37
Eram ditos "espirituais", porque entendiam a pobreza franciscana em sentido extremado e impraticável.
74 Escola Mater Ecclesiae
"Cremos... no Filho de Deus... que se fez homem, isto é, assumiu a humanidade total: alma, corpo e mente e
tudo mais que pertence ao homem, exceto o pecado" (DS 44).
O Símbolo de S. Atanásio (DS 46) é de data e autor incertos; alguns o atribuem ao século IV (época de S.
Atanásio de Alexandria) ; outros, ao século VI1. Repete a fórmula acima, a ponto que alguns críticos julgam ser
o próprio Símbolo longo de S. Epifânio.
Em ambos os textos chama-nos a atenção a trilogia "corpo (soma), alma (psyché), e mente (nous)". Talvez
seja inspirada pelo texto de São Paulo em 1Ts 5,23, já analisado no Módulo 22 deste Curso. O Apóstolo não
tinha em vista definir alguma concepção antropológica, mas recorreu (uma vez só, aliás, em todo o seu
epistolário) à tricotomia da Filosofia grega. Os Padres da Igreja, influenciados pelo pensamento grego,
retomaram tal fórmula, sem que se possa dizer que estabeleceram um princípio dogmático.
O Símbolo Quicumque, falsamente atribuído também a S. Atanásio, é dos séculos IV ou V. Professa "Jesus
Cristo como homem perfeito, constando de alma racional e carne humana" (DS 76). A tricotomia cede à
dicotomia ou à dualidade.

Lição 2: As Declarações Conciliares


Em 400, o Concílio regional de Toledo (Espanha) rejeitou a doutrina de Prisciliano, segundo a qual a alma
humana seria uma parcela de Deus ou a própria substância de Deus e não haveria ressurreição da carne:
10. "Se alguém ... acreditar que os corpos humanos não ressuscitarão após a morte, seja anátema " (DS 200).
11. "Se alguém... acreditar que a alma humana é uma parcela de Deus ou é a substância de Deus, seja
anátema" (DS 201).
Em 498 o Papa Anastásio II condenou, numa carta aos Bispos da Gália, a doutrina do Bispo de Arles; este
professava o traducianismo, segundo o qual a alma humana é produzida pelos genitores e se transmite pelo
processo de geração. O Papa apelava para Jo 5,1 7 ("M eu Pai trabalha sempre, e eu também trabalho") e Eclo
18,1 ("Aquele que vive eternamente, criou tudo simultaneamente") e explicava: já que Deus trabalha ou cria
sem cessar, não há razão para não o considerar presente a cada ato de gerar um novo ser humano, criando a
respectiva alma (DS 360s [170]).
Em 543, o Sínodo local de Constantinopla condenou o origenismo, que afirmava a preexistência das almas,
enviadas a este mundo material em conseqüência de um esfriamento de seu fervor. Ver DS 403 e Módulo 23
deste Curso.
Em 651, o Concílio regional de Braga (Portugal) rejeitou o dualismo maniqueu e priscilianista. Condenou
também a sentença que afirmava ter sido a alma produzida a partir da substância de Deus, ao passo que o diabo
teria criado o corpo e a matéria, considerada como princípio do pecado. Repeliu outrossim a concepção de que
o matrimônio e a procriação são pecaminosos, bem como a negação da ressurreição da carne:
"5. Se alguém crê que as almas humanas e os anjos são da substância de Deus, como Maniqueu e Prisciliano
afirmavam, seja anátema".
"6. Se alguém disser que as almas dos homens outrora pecaram na morada celeste e, por causa disto, foram
lançadas no corpo, como afirmou Prisciliano, seja anátema".
"11. Se alguém condena o matrimônio e rejeita a procriação, como Maniqueu e Prisciliano, seja anátema".
"13. Se alguém disser que a criação dos corpos humanos não é obra de Deus, mas sim dos anjos maus, como
Maniqueu e Prisciliano, seja anátema " (DS 455s. 461.463).
Em 869 -870 o Concílio Geral do Constantinopla IV rejeitou a tese segundo a qual há duas almas no homem,
contradizendo à clássica doutrina bíblica e patrística, que admite uma só alma (intelectiva ou racional) em cada
indivíduo humano. Cf. DS 657.
Em 1053 o Papa Leão IX redigiu uma Profissão de Fé, que afirma: "A alma não é parte de Deus, mas foi
criada a partir do nada" (DS 685).
Em 1313 o Concílio de Viena proclamou "ser a alma humana a forma do corpo", ficando excluído qualquer
intermediário entre o corpo e a alma (DS 902). Ver Módulo 10 deste Curso.
Em 1392 o Papa João XXl1 condenou os erros de Eckhart, autor de Mística, entre os quais o seguinte:
"Há algo na alma que é incriado e incriável; se a alma toda fosse tal, ela seria incriada e incriável; ora assim
é o intelecto " (DS 977).
Em 1513 o Concílio Universal do Latrão V retomou a fórmula do Concílio de Viena, condenando os erros de
Pedro Pomponazzi (1464-1525), discípulo de Averróis, que afirmava haver uma alma coletiva única para todos
os homens; em réplica, o Concílio professou uma alma individual e imortal para cada ser humano; ver DS 1440.
Pomponazzi baseava sua concepção no fato de que a alma humana conhece noções universais e, por
conseguinte, não parece ser algo de individual ou particular, mas sim um ser universal, tão amplo quanto a
humanidade. No indivíduo, segundo Pomponazzi, haveria um princípio de vida vegetativa e sensitiva, que se
75 Escola Mater Ecclesiae
extinguiria com a morte do corpo. Tal teoria lesava a unidade do ser humano; por isto foi rejeitada pelo
Concílio. A alma intelectiva imortal seria impessoal, porque comum a todos os homens.
Registramos ainda o Concílio de Trento (1545-63), que, tendo em vista as teses protestantes, afirmou a
existência do livre arbítrio em cada pessoa humana, frisando não estar ele totalmente viciado pelo pecado
original:
"Cânon 5. Se alguém disser que, após a falta de Adão, o livre arbítrio está perdido e extinto ou que é apenas
um título, título ao qual nada de real corresponde ou ainda um simulacro introduzido na Igreja por Satanás, seja
anátema".
"Cânon 6. Se alguém disser que não está em poder do homem perverter os seus caminhos, mas que os atos
bons, assim como os maus, são obras de Deus, não exclusivamente no sentido de que Deus permite o mal, mas
no sentido próprio da palavra, de tal modo que a traição de Judas não é menos obra de Deus do que a vocação
de Paulo, seja anátema" (DS 1555s).
A concupiscência desregrada pode fortemente tentar o homem ao pecado, mas a pessoa tentada pode-lhe
resistir com a graça de Deus, ao contrário do que dizia Lutero ao falar de "servo arbítrio" em lugar de "livre
arbítrio".
O Concílio Vaticano I (1870) pronunciou-se sobre a criação como tal, de acordo com o que foi dito no
Módulo 10 deste Curso.
Ainda se pode registrar a encíclica Humani Generis do Papa Pio XII (1950),que aborda questões de
evolucionismo e poligenismo. Ver Módulos 16 e 17 deste Curso.

PERGUNTAS
1) Quais foram os principais erros que o magistério da Igreja teve de enfrentar até o séc. XI em matéria
antropológica ?
2) Qual a importância do Concílio de Viena em 1313?
3) Que afirmou o Concílio do Latrão Vem 1513?

POR QUE DEUS SE FEZ HOMEM


Eis o que a respeito diz S. Atanásio († 373) na obra "Sobre a Encarnação do Verbo":
"Dado que os homens se tinham pervertido na irracionalidade e a impostura dos falsos deuses propagava por
toda parte sua sombra, eclipsando o conhecimento do verdadeiro Deus, que haveria de fazer o Senhor? Guardar
o silêncio frente à situação e deixar os homens iludidos, ignorando seu Deus? Mas então para que teria criado o
homem à sua imagem? Ocorria simplesmente tê-lo criado sem razão; ou, do contrário, não o deixar vivera vida
dos irracionais. Para que lhes teria também comunicado, desde o início, a noção de Deus, se não se mostravam
dignos de a receber? Melhor fora não a ter conferido no princípio. Pois que glória advém para o Criador se os
homens, suas criaturas, não o adoram e até pensam ser feitos por algum outro? Tê-los-ia criado para outros?
Um rei, mesmo humano, não permite que suas cidades se entreguem a estranhos e se submetam a eles.
Adverte os súditos, envia-lhes mensageiros e, se necessário, vai em pessoa tentar comovê-los: unicamente para
evitar que sirvam a senhor alheio e se inutilize a obra sua, Com mais razão, Deus não se apiedaria da criatura a
fim de evitar que errasse longe de si e fosse servir a fantasmas inexistentes? Tanto mais que tal erro seria causa
de ruína para o ser que um dia participou da imagem de Deus!
Que haveria pois de fazer o Senhor senão renovar o que era nos homens a divina imagem, a fim de por ela
chegarem ao seu conhecimento ? Mas como se realizaria isto de outro modo que não pela presença da própria
Imagem de Deus, nosso Salvador Jesus Cristo?
Sim, a coisa não seria realizável jamais por homens, pois também foram criados segundo a imagem; nem por
anjos, que não são em si mesmos imagens. Veio, pois, o próprio Verbo de Deus, Imagem do Pai, a fim de
recriar o homem segundo a divina imagem; e se esta obra não se podia fazer sem destruição, sem a deterioração
da morte, convinha que ele assumisse um corpo mortal, para nele destruir a morte e renovar os homens segundo
a divina imagem. Com vistas a tal obra nenhum outro se credenciava mais que a própria Imagem do Pai.
Se aos poucos se apagou uma efígie impressa na madeira, pelo acúmulo da pátina exterior pode acontecer
que sua renovação só se torne possível, ali no mesmo material, pela presença do modelo, cujos traços se
desfiguraram. Não se rejeitará o material onde a figura fora antes impressa, mas se procurará compor nova
imagem38. Da mesma forma, o Filho Santíssimo do Pai celeste, sendo a Imagem do Pai, veio até nossa região,
visando a renovar o homem criado segundo seu modelo, visando a remir os pecados daquele que estava
perdido, a fim de reencontrá-lo, conforme as palavras da Escritura: "Eu vim para encontrar e salvar o que estava
38
Esta passagem foi transcrita pelo Papa Adriano I, em carta referente ao culto das imagens e lida no 2 o Concílio de Nicéia (787): cf. Mansi, XII,
1067 c.
76 Escola Mater Ecclesiae
perdido "39. Assim, dirá também ele aos judeus: se alguém não renascer não poderá ver o reino de Deus 40,
aludindo, não z um renascimento a partir da mulher como pensaram os judeus, mas ao renascimento que é a
recriação da alma segundo a imagem divina".

PARTE I: O HOMEM: C). APROFUNDAMENTO SISTEMÁTICO

MÓDULO 26: QUEM É O HOMEM?


Após estudar a fundamentação bíblica e a história da Antropologia, passamos ao Aprofundamento
Sistemático do tema. Coloca-se a pergunta: afinal quem é o ser humano? A Escritura responde que foi feito à
imagem e semelhança de Deus. A Tradição nos diz que consta de dois elementos: corpo e alma, já considerados
pela Filosofia grega, que hesitava entre Platão e Aristóteles. Eis agora o momento de definirmos, à luz da fé e
da razão, quem é o homem.
Para o fazer devidamente, proporemos neste Módulo a teoria do hilemorfismo ou teoria da matéria e da
forma, que integram todo ser corpóreo, inclusive o homem. A Filosofia presta valioso subsidio à Teologia nesta
área de pensamento.

Lição 1: Hilemorfismo - que é ?


Notemos que o físico procura determinar os elementos constitutivos dos corpos (moléculas, átomos,
elétrons, neutros, prótons...), mas não penetra até os princípios intrínsecos dos corpos (grandes ou pequenos);
isto não é da área das ciências empíricas ou da Física e da Química. A Filosofia, porém, valendo-se da
experiência destas ciências, procura ir além; ela estuda os princípios dos quais resultam os corpos não enquanto
são tais corpos, mas enquanto são, pura e simplesmente, corpos. Tal estudo nos leva à teoria do hilemorfismo.
l. A palavra hilemorfismo vem dos termos gregos hýle = matéria e morphé = forma. Designa a teoria
segundo a qual a essência dos corpos resulta da união de dois princípios ditos "matéria" e "forma". Para
entendê-la, façamos as seguintes ponderações:
Todo corpo tem matéria... e matéria bem determinada: uma é a matéria do corpo humano, outra a da árvore,
outra a da rocha... Perguntamos então: donde vêm as diferenças que existem entra as diversas matérias? - Não
vêm da matéria como tal, pois esta é inerte ou passiva; ela pode ser sujeito de diversas transformações. Com
efeito, imaginemos uma planta viva, com suas flores e frutos; se essa planta for desarraigada, ela morrerá ou
converter-se-á num aglomerado de substâncias químicas, que já não darão flores, mas servirão para usos
medicinais, alimentícios, decorativos...; a planta passou do reino dos viventes para o dos minerais. Notemos,
porém, que entre a planta viva e o aglomerado químico inerte posterior, há uma massa corpórea comum; há um
sujeito que pode existir tanto com a perfeição do vivente quanto com a perfeição do mineral ; é um sujeito
indiferente ou potencial em relação àquela e a esta perfeição. Podemos generalizar o caso, estendendo-o a todos
os viventes; sim, em cada vivente corpóreo encontramos os elementos corpóreos de que se compõem os outros
corpos (carbono, oxigênio, hidrogênio, cálcio...). Por conseguinte, o sujeito comum de todas as mudanças,
capaz de existir com a perfeição de qualquer corpo (vivente ou não), não possui, como propriedade sua, a
perfeição de nenhum corpo. É pura potência.
Vemos então que as diferenças entre os corpos devem provir de outro princípio que não a matéria. Tal
princípio se chama a forma substancial. Esta, apropriando-se da matéria indeterminada (ou prima, primeira),
faz que seja tal matéria (matéria segunda: corpo humano, vegetal, pedra).
Esse princípio que determina a matéria indeterminada, chama-se forma substancial... Substancial, porque,
antes da forma, há apenas um sujeito em potência; a forma é o primeiro elemento determinado ou atuante; com
a matéria prima, ela constitui uma substância; por isto é chamada forma substancial.
Donde se vê que todo corpo, como tal, tem dois princípios constitutivos intrínsecos: a matéria prima
(indeterminada, capaz de receber diversas determinações) e a forma substancial (determinante). Matéria e
forma são dois seres incompletos, pois, juntos, constituem não duas substâncias, mas uma substância. Sim, a
roseira viva é de natureza vegetal, com a especificidade da roseira; a roseira, quando morre, decompõe-se em
substâncias minerais, cada qual dotada de sua forma própria (forma de carbono, oxigênio, hidrogênio...); a
forma da roseira que faz a unidade do vivente, cede às formas dos minerais, que já não perfazem uma
substância, mas muitas substâncias independentes umas das outras.
2. Desenvolvendo nosso raciocínio, dizemos ainda: a matéria e a forma se comportam como potência e ato.
A matéria é potência capaz de converter-se em tal ou tal corpo, desde que atualizada pela forma substancial,

39
Lc 19,10.
40
Jo 3,5.
77 Escola Mater Ecclesiae
que vem a ser o ato de tal potência. Assim a alma racional (forma substancial) é o ato que faz da matéria prima
(primeira) um corpo humano.
3. Observemos outrossim que a matéria prima (primeira) não existe nem pode existir separadamente de
alguma forma substancial, pois a matéria prima é indeterminada. Todo ser material real é matéria segunda,
determinada por uma forma substancial. Do mesmo modo, a forma substancial (excetuado o caso da alma
humana, como se verá em Psicologia) não existe nem subsiste sem matéria; a forma substancial de todo ser
corpóreo infra-humano é eduzida da matéria prima 41 quando este começa a existir, e absorvida pela matéria
prima quando deixa de existir.

Lição 2: Propriedades da Matéria e da Forma


2.1. Propriedades da Matéria
Enumeremos três propriedades:
1) A matéria prima não é perceptível aos nossos sentidos (olhos, tato...). O que nós vemos, é o ser
concreto ou a matéria prima penetrada pela forma. Só chegamos à noção de matéria prima mediante um
raciocínio que abstrai de um todo concreto os seus elementos estruturais.
2) A matéria prima não tem em si perfeição nenhuma. Com efeito, a perfeição é algo que determina ou
define; a matéria prima, porém, é indeterminada; é potência capaz de receber determinações ou perfeições.
3) A matéria prima, embora não exista sem forma substancial nem tenha alguma determinação, não deixa
de ser algo real. Com efeito, a noção de ser, e ser real, pode exprimir realidades diversas, com diversos graus de
perfeição. Podemos provar que a matéria prima, indeterminada como é, é algo de real, considerando, por
exemplo, a lenha e a água em relação ao fogo; a lenha pode ser atualizada, "apropriada" pelo fogo, ao passo que
a água não; isto quer dizer que na lenha há algo que na água não existe. Consideremos o mármore e o oxigênio;
aquele pode ser transformado em estátua; este, não - o que significa que no mármore existe algo que não se
encontra no oxigênio.42

2.2. Propriedades da Forma Substancial


Apontemos seis propriedades:
1) A forma substancial é o princípio que especifica o ser corpóreo. Com outras palavras: todo corpo
pertence a uma espécie determinada ou a uma categoria de seres que têm a mesma natureza (espécie humana,
espécie cão, espécie mármore...). Ora a forma é o fundamento da diferença específica ou do caráter essencial,
que situa o ser numa determinada espécie. Assim a diferença do homem em relação aos demais viventes é o seu
caráter racional, decorrente da forma substancial do homem ou da sua alma racional.
A forma substancial pode ser dita "essência" na medida em que ela especifica ou determina a identidade de
um corpo. Pode também ser chamada "natureza" na medida em que é o princípio das atividades do corpo ( a
natureza é, sim, a essência de um ser considerada como princípio de operação).
2) A forma substancial e, por conseguinte, a diferença específica da maioria dos seres permanecem
desconhecidas na sua essência. Por isto definimos esses seres mediante as suas propriedades ou, às vezes,
apenas mediante características que impressionam os nossos sentidos; tal é o caso, por exemplo, da espécie
vegetal jacarandá, que só podemos definir indicando o tamanho da árvore, o formato das folhas, o tipo de
madeira que fornece...
3) A forma substancial é princípio de ação, pois nada age a não ser na medida em que está em ato. É da
forma que decorrem as manifestações operativas de um corpo. A matéria prima, ao contrário, é o princípio de
inércia e passividade de um corpo.
4) A forma substancial é o princípio de inteligibilidade dos corpos. Isto quer dizer que só podemos
conhecer os corpos mediante as suas manifestações características... manifestações que decorrem da forma
substancial.
5) A forma substancial é o princípio de perfeição e de finalidade dos corpos. Dando as determinações à
matéria prima, a forma substancial dá o princípio de perfeição ao ser corpóreo e o move a agir em demanda da
sua plena realização ou da sua finalidade própria.
6) Assim como existe a forma substancial, existem as formas acidentais em

41
Está claro que esse eduzir da matéria prima supõe um agente extrínseco que atualiza a matéria ou que reduza a ato a potencialidade da matéria.
42
A noção de pura potência indeterminada, mas real, pareceu inaceitável e pensadores como S. Boaventura († 1274), Duns Scotus († 1308), Suárez
(† 1617); em conseqüência, atribuíram à matéria prima real uma atualidade incompleta; daí, falarem de diversas matérias: uma corporal, outra
espiritual... Tal teoria é inconcebível aos olhos de quanto acabamos de expor. Para que a pura potência seja real, não se requer que seja determinada.
Não existe matéria espiritual no âmbito da Filosofia.
78 Escola Mater Ecclesiae
cada corpo. As formas acidentais correspondem aos diversos acidentes que se encontram em cada ser
corpóreo. As formas acidentais não modificam a natureza do ser, mas apenas as suas modalidades de ser.
Observemos, por exemplo, um bloco de mármore; compõe-se de matéria prima e forma substancial (forma
substancial que o faz ser mármore, e não ferro); esse bloco de mármore é matéria segunda, e não prima, pois
tem sua forma substancial; está em potência para receber formas acidentais, visto que um escultor poderá fazer
com ele um banco, uma bacia, uma coluna, uma estátua (... de Júpiter, ... de Vênus, ... de Marte). Também a
água, que é matéria segunda, está em potência para assumir estados acidentais, como o do gelo e o do vapor. As
formas acidentais são ditas atos segundos, em relação à matéria segunda; sobrevêm a um corpo já dotado de
forma substancial.

Lição 3: O Hilemorfismo aplicado ao Homem


As noções gerais que acabam de ser expostas, aplicam-se ao ser humano principalmente a partir de S. Tomás
de Aquino. Vimos que a Teologia anterior ao século Xl11 hesitou sobre o conceito de homem, visto que recebia
influxo da S. Escritura - propensa a encarar o homem como um só todo designado por basar, nefesh ou ruach
(ver Módulo 20) - como da filosofia grega, tendente a considerar dois componentes no homem (corpo e alma)
sem dar o devido valor ao corpo humano.
Foi S. Tomás de Aquino quem conciliou a unidade de sujeito com a dualidade de componentes no homem,
recorrendo à teoria hilemorfista: corpo e alma são duas realidades distintas entre si, mas unidas numa só
substância como matéria e forma. O importante, no caso, é enfatizar que a matéria é pura potência, pura
capacidade de receber o ato, a atuação ou as determinações essenciais que lhe vêm da forma. Assim tudo que
no homem existe de específico, é expressão da forma ou da alma humana. Esta, porém, não existiria se não
tivesse sido criada por Deus para vivificar a potência à qual ela sobrevêm. Mesmo num ser produzido
artificialmente (em proveta ou por clonagem), se existem as características específicas humanas, existe alma
humana espiritual, criada e infundida por Deus no momento da conceição (por mais artificial que seja).
A união de matéria e forma é muito estreita. Ressalva bem a unidade do ser humano, no qual nada é
meramente corpóreo, nada é meramente espiritual. Exclui, porém, a identificação do material e do espiritual
entre si. Independentemente dos acidentes (estatura, cor da pele, tipo de cabelo, forma dos olhos), todo ser
humano é tal por ter a forma ou o princípio vital específico do ser humano.
Vê-se também que não há meio-termo entre homem e macaco, pois o que especifica o indivíduo é a sua
forma substancial (ou o seu princípio vital), a qual é indivisível. A estrutura óssea pode ser primitiva, mas, se é
animada por alma humana, o indivíduo é ser humano. Disto surge a pergunta: e como se reconhece a presença
de alma humana num determinado vivente? - É o que veremos no Módulo seguinte.

PERGUNTAS
1) Que se entende por matéria em Filosofia?
2) Que se entende por forma correlativa à matéria ?
3) Que é união substancial?
4) Que é forma acidental?
5) Como se aplica o hilemorfismo ao ser humano?

MÓDULO 27: A ALMA HUMANA - ESPIRITUALIDADE (I)


Após haver apresentado o homem como composto de corpo e alma, convém que nos detenhamos sobre a
alma humana e sua índole própria. Daí o Módulo presente e o seguinte.

Lição 1: Generalidades - espírito, alma


1. A palavra "alma" provém do vocábulo latino anima; significa o princípio vital ou o princípio animador
(vivificador) de um corpo organizado. Isto quer dizer que
1) todo ser vivo tem alma;
2) distinguem-se tantos tipos de alma quantos são os tipos de vida.
Ora há três tipos de vida:
a) a vida vegetativa, cujas funções são:
nutrição, isto é, a faculdade de assimilar e incorporar ao próprio organismo determinadas substâncias;
crescimento, isto é, a capacidade de desenvolvimento homogêneo das partes do organismo, segundo um
modelo impregnado na natureza mesma desse organismo;
reprodução ou faculdade de gerar outros viventes da espécie dos genitores;
79 Escola Mater Ecclesiae
irritabilidade ou capacidade de reagir a lesões, restaurando os tecidos prejudicados, em conformidade com
o modelo impregnado no vivente;
b) a vida sensitiva, cujas funções são as da vegetativa, acrescidas da capacidade de conhecer seres concretos
e singulares mediante os sentidos externos (visão, audição, tato...) e os sentidos internos (estimativa, memória
sensitiva, fantasia) ;
c) a vida intelectiva, que realiza as tarefas da vida vegetativa e da sensitiva e ainda é dotada do
conhecimento de noções universais, abstratas, distinguindo o essencial e o acidental, para chegar a definições
tão precisas quanto possível43.
Em consequência, distinguem-se
a alma vegetativa (o princípio vital de um organismo de vida vegetativa), que se encontra nas plantas;
a alma sensitiva (o princípio vital de um organismo de vida sensitiva), que se encontra nos animais
irracionais;
a alma intelectiva (o princípio vital de um organismo de vida intelectual), que ocorre nos viventes racionais
ou intelectivos, ou seja, nos seres humanos.
2. A palavra psiqué vem do grego psyché. É geralmente tida como equivalente a anima, alma. Verdade é
que as escolas filosóficas e psicológicas hoje em dia atribuem matizes diversos ao vocábulo psiqué, matizes
que não é nosso intuito recensear nestas páginas.
3. Espírito é o ser real que não tem corpo, isto é, carece de extensão, quantidade , peso, tamanho..., mas é
dotado de inteligência e vontade. Vê-se assim que a palavra espírito tem acepção mais ampla do que o
vocábulo alma. A chave abaixo exprime a diferença:

incriado: Deus
ESPÍRITO criado, não unido à matéria: anjo
criado, unido à matéria, para nela se aperfeiçoar: alma humana (espiritual)
O espírito que é o princípio vital do organismo humano, é chamado alma humana. Esta, portanto, é
espiritual ou não material. Se a alma humana é espiritual, também é imortal, pois a imortalidade é propriedade
de todo espírito.
Procuremos agora considerar a alma humana em suas duas notas essenciais: 1) espiritual idade e 2)
Imortalidade.

Lição 2: Espiritualidade da alma humana


Pergunta-se: a alma humana é espiritual? Tal pergunta já foi abordada no Módulo 15 deste Curso. Voltamos
ao assunto, desta vez de maneira mais exaustiva.
Para averiguar se a alma humana é espiritual ou não, devemos levar em conta o seguinte princípio: o ser e o
agir de determinada realidade devem ser correlativos entre si. Conseqüentemente, se vejo que determinada
substância tem por efeito "salgar" alimentos, digo obviamente que o seu ser consta de cloro e sódio (Nacl); se
outra substância é corrosiva, suporei que seja um ácido sulfúrico (H 2SO4). Se, pois, desejo saber se a alma
humana é espiritual ou se é material, devo examinar o seu agir ou as atividades que exerce; se estas são de
ordem material, sem ultrapassar as capacidades da matéria, direi que a alma humana é material; se, ao contrário,
as atividades da alma humana ultrapassam as virtual idades da matéria, concluirei que o próprio ser da alma
humana é imaterial ou espiritual.
Analisemos, pois, as atividades da alma humana:
1) Percepção do universal
É certo que o ser humano, além de conhecer os objetos concretos, singulares e materiais que lhe ocorrem, é
também capaz de conceber noções abstratas, universais, percebendo o essencial; é apto a reconhecer
proporções, relações de dependência, de causalidade e de finalidade.
Com efeito, depois dever um homem, uma mulher, uma criança, um ancião, um gordo, um magro..., a
inteligência humana se emancipa das diferenças motivadas por cor, tamanho, sexo, idade...e define todos esses
indivíduos como participantes da mesma essência ou natureza; são todos seres humanos, iguais entre si pela
natureza (que a inteligência apreende), embora diferentes uns dos outros pelos aspectos que os olhos percebem.

43
Observa-se uma diferença entre intelectivo e racional. Intelectivo é todo ser que conhece noções universais, distinguindo essência e acidentes.
Racional é o ser cuja inteligência não é intuitiva, mas progressiva, passando de premissas a conclusões, para estabelecer novas premissas e chegar a
ulteriores conclusões. O ser humano, por exemplo, é intelectivo racional (aos poucos vai penetrando a verdade). Deus e os anjos são intelectivos não
racionais, mas intuitivos.
80 Escola Mater Ecclesiae
Paralelamente, depois de ver diversos objetos belos (uma flor, uma paisagem, um animal, uma escultura...), a
inteligência humana se emancipa dos elementos extrínsecos e concretos que apreende, e formula a definição da
beleza. A partir da percepção de situações justas e injustas, formula as noções universais de justiça e injustiça.
A Psicologia Experimental, por sua vez, corrobora estas afirmações mediante a seguinte experiência:
Disponha-se uma série de vasilhas fechadas, na primeira das quais se coloca o alimento de um macaco. O
animal, posto diante de tal série, não sabe onde encontrar a sua ração; o operador então abre a primeira vasilha e
lhe mostra o seu alimento.
Repita-se a experiência, encerrando na segunda vasilha o alimento, e não na primeira. O animal, recolocado
diante da série, é guiado pela memória sensitiva e, recordando-se do ocorrido no dia anterior, vai à primeira
vasilha. O operador então o coloca diante do segundo recipiente, do qual o animal se serve.
Num terceiro ensaio, coloque-se o alimento fechado no terceiro recipiente: guiado pelas impressões
sensíveis do ensaio anterior, o macaco se dirige para o segundo vaso... Caso se multipliquem as experiências,
verifica-se que o animal procura de cada vez o recipiente em que no ensaio anterior encontrou o que lhe
interessava. Nunca chega a abstrair dessas diversas experiências a lei da progressão que as rege. Nunca se
desvencilha das notas concretas da vasilha em que, por último, encontrou a sua ração, deduzindo que não é o
fato de ser a segunda, a terceira ou a quarta vasilha que interessa, mas o fato de ser a vasilha n + 1 (fórmula em
que n designa o número da experiência anterior). Ora uma criança sujeita a tal teste, depois de quatro ou cinco
experiências, consegue abstrair a lei n +1 do fenômeno.
Destes ensaios se conclui que o animal, por mais semelhante que seja ao homem, jamais se desembaraça da
percepção do concreto, material; ele percebe o primeiro, o segundo, o terceiro objetos...postos à sua frente, mas
é incapaz de perceber a proporção que há entre esses objetos:
1=n+1
2=n+1
3=n+1
4=n+1
5=n+1
Na coluna da esquerda temos acima a lista dos termos concretos, particulares, ao passo que na coluna da
direita temos a fórmula universal e a indicação de proporção. Ora passar da coluna da esquerda para a da
direita, percebendo a constante n + 1 por debaixo das variações 2, 3, 4, 5... é algo que só a inteligência faz,
porque só esta abstrai do concreto. O animal irracional não se eleva ao abstrato, universal. Por conseguinte, o
irracional não tem princípio de conhecimento ou princípio vital imaterial ou espiritual; a alma do macaco ou do
animal irracional é material. Ao contrário, o homem, que é capaz de abstrair do concreto singular, possui um
princípio vital ou uma alma imaterial ou espiritual.
Observe-se também: não há transição entre o material e o imaterial (ou espiritual). O espiritual não é a
matéria rarefeita ou gasosa energética, pois mesmo a matéria rarefeita e a energia elétrica são dimensionáveis
mediante números ou estão sujeitas à quantidade, ao passo que o espírito não é quantitativo nem comensurável.

2) A consciência de si mesmo
Verifica-se que os animais têm conhecimento de objetos que os cercam, ameaçando-os ou favorecendo-os. O
ser humano além deste tipo de conhecimento, possui o conhecimento de si mesmo ou a autoconsciência; o
homem não somente sente dor, mas sabe que sente dor ou que está lesado fisicamente; este fator aumenta
enormente a sua dor, pois o sujeito humano percebe que a sua moléstia o impede de trabalhar devidamente, o
que pode prejudicar a sua família, a sua carreira, o seu ideal... Possuindo o conhecimento dos objetos e de si
mesmo, o homem concebe o plano de ordenar o mundo e a si mesmo, dominando fatores estranhos ao seu ideal,
superando paixões desregradas, cultivando boas tendências, etc. Isto tudo escapa às possibilidades de um
animal irracional, pois este conhece o seu objeto concreto, singular, e é incapaz de se emancipar das notas
concretas deste e de se voltar para si mesmo de maneira sistemática a fim de se conhecer. O ser humano, ao
contrário, realiza esta introspeção, porque o seu princípio de conhecimento (intelecto) é capaz de ultrapassar o
seu objeto concreto, material para atingir o próprio sujeito...

3) A cultura e o progresso
Verifica-se que o homem intervém no ambiente natural que o cerca, modificando-o de acordo com as suas
intenções e os seus planos; cria assim a cultura, que se sobrepõe à natureza, adaptando-a ao homem; assim é
que surgem casas, estradas, cidades, fábricas, artefatos... Essa atividade científica e técnica, social e ética,
artística e religiosa, não é o produto de processos fisiológicos apenas ou de fatores materiais e econômicos tão
somente, mas se deve à ação intelectiva e planejadora da inteligência e à liberdade de arbítrio do ser humano.
81 Escola Mater Ecclesiae
Com efeito, ao conhecer a natureza que o cerca, o homem apreende as relações entre meios e fins ou as
proporções entre diversos termos e concebe projetos para melhorar o seu ambiente (o seu habitat natural, a sua
alimentação, seu vestuário, as expressões de sua arte, de seus sentimentos religiosos...) ; vai assim construindo
civilizações sucessivas... Ora o animal é incapaz de progredir em suas expressões, porque é guiado por
instintos; assim o animal. embora certeiro e apurado em seus movimentos instintivos, é incapaz de dar contas a
si mesmo do que faz e dos porquês da sua atividade; é, por isto, incapaz de se corrigir ou de se ultrapassar. Em
última análise, a raiz da diferença entre o comportamento do homem e o do animal reside no fato de que o
homem tem um princípio vital ou um princípio de atividades imaterial ou espiritual, ao passo que o animal tem
uma alma material ou confinada pelas potencialidades da matéria.
Os argumentos em prol da espiritualidade da alma humana continuarão a ser estudados no próximo Módulo,
que tratará da linguagem ou do falar do homem.

PERGUNTAS
1) Que é a Psicologia Filosófica ou Racional?
2) Que é alma? Quantos tipos de alma há ? Como se distinguem alma e espírito?
3 Que é a percepção do universal? Como se prova a espiritualidade da alma humana?
4) Como a consciência de si mesmo é sinal da espiritualidade da alma humana?
5) O progresso e a civilização estão relaciona dos com a espiritualidade da alma ?

MÓDULO 28: A ALMA HUMANA - ESPIRITUALIDADE (II)


Consideremos neste Módulo duas questões complementares à doutrina da espiritualidade da alma humana:
1) a dependência da alma em relação ao cérebro; 2) a tese que identifica entre si corpo e alma.

Lição 1: Dependência do cérebro


Dirá alguém: como admitir a espiritualidade da alma humana quando se sabe que as atividades mais
sublimes do ser humano não se realizam se o organismo está lesado em seu cérebro ou em seu sistema nervoso?
Em tais condições, pode-se falar de alma imaterial ou espiritual? A resposta não é difícil. Todos os
antropólogos reconhecem a realidade psicossomática do homem. A moderna Psicologia científica adverte que
não se pode dissociar, no homem, o plano intelectivo (e volitivo) do plano sentimental, nem este do plano
vegetativo e instintivo; a linguagem humana (que é a expressão mais típica do raciocínio ou da espiritualidade
do homem) é acompanhada por movimentos mímicos, gestos automáticos do corpo, desencadeados pelo
funcionamento da inteligência e da vontade. Assim o espiritual e o corpóreo colaboram intimamente no
homem.
De modo especial, a inteligência humana (que é uma das faculdades da alma espiritual) depende dos sentidos
externos e do cérebro. Com efeito, os sentidos externos percebem os dados concretos da realidade ambiental
(cores, sons, temperatura...), que, através de filamentos nervosos, são levados ao cérebro, sede do senso
comum. No cérebro, esses dados são elaborados e reduzidos a uma síntese. Posteriormente o intelecto hu mano
se aplica às diversas sínteses ou imagens que recebe, e distingue nestas o essencial e o acidental.
Admitamos, porém, que o cérebro ou algum filamento nervoso venha a se ressentir de lesão ou defeito,
transmitido por hereditariedade ou contraído pelo próprio sujeito em acidente ou moléstia... Em conseqüência, a
inteligência humana carecerá do instrumental sem o qual não pode manifestar a sua perspicácia; o sujeito
poderá chegar a levar vida meramente sensitiva ou vegetativa... como se não tivesse inteligência. É o que leva
muitos estudiosos a dizer que a inteligência é o próprio cérebro ou a massa cinzenta (camada cortical) do
cérebro. - Tal conclusão, porém, é precipitada ou errônea. A alma humana, com as suas faculdades próprias
(inteligência e vontade), não é matéria, como foi evidenciado atrás, mas depende da matéria para exercer suas
atividades. Um doente mental possui alma espiritual como os demais homens, todavia tem seu organismo
lesado a ponto de não permitir as manifestações inteligentes e lúcidas da alma que deveria servir-se desse
organismo.
Vê-se, pois, que a dependência da alma em relação ao corpo no tocante ao seu agir não significa que a alma
humana seja uma realidade material, mas tão somente que a alma humana espiritual foi feita para animar a
matéria e aperfeiçoar-se em união com esta.
82 Escola Mater Ecclesiae
Lição 2: Corpo e alma - Dualismo ou dualidade?
1. Até os últimos anos era comum, nas escolas cristãs, afirmar-se que o homem é um composto de corpo
(matéria) e alma (espírito); corpo e alma nesta perspectiva se completam mútua e harmoniosamente,
constituindo assim a realidade psicossomática do ser humano.
Recentemente, vários autores, entre os quais pensadores católicos, julgam que corpo e alma não se
distinguem entre si, mas são, antes, duas facetas de uma só e mesma realidade que é o homem. As razões em
favor desta nova tese seriam:
a) a antropologia bíblica que, segundo dizem, propõe uma concepção monista ou unitária do homem, sem
deixar lugar para a distinção de corpo e alma;
b) a necessidade de superar o dualismo "corpo e alma", o qual tem inspiração platônica e facilmente leva a
conceber oposição entre espírito e matéria ou entre salvação eterna e progresso material ou temporal.
2. A propósito observemos:
a) os autores bíblicos não pretenderam "canonizar" ou oficializar algum sistema filosófico. Verdade é que os
mais antigos escritores sacros eram propensos a conceber o ser humano como um todo sempre integrado pela
matéria ou, depois da morte, por "sombras da matéria" (rephaim). Os semitas dificilmente faziam abstração de
imagens e noções sensíveis, de modo que não lhes era fácil conceber o ser humano sem matéria. Todavia o
autor bíblico do livro da Sabedoria (séc. II a.C.) serve-se de noções filosóficas gregas e concebe a alma humana
após a morte como um ser separado do corpo (cf. Sb 5). No próprio Evangelho segundo S. Mateus, lêem-se as
palavras do Senhor:
"Não temais os que matam o corpo, mas não podem matar a alma. Temei, antes, aquele que pode destruir a
alma e o corpo na geena" (Mt 10, 28).
b) Não há dúvida, a filosofia platônica, herdeira de concepções órficas, admitia dualismo antagonista entre
corpo e alma. Todavia entre o dualismo platônico-órfico e o monismo contemporâneo existe uma posição
intermediária que é a aristotélico-tomista: esta afirma a distinção entre corpo e alma, sem, porém, os opor
ontologicamente entre si, antes concebendo-os como seres complementarmente unidos um ao outro. O próprio
discípulo de Platão, Aristóteles († 322 a.C.), superou o dualismo de seu mestre, estabelecendo os princípios do
hilemorfismo; estes, devidamente desenvolvidos, levam a afirmar a distinção de corpo e alma que se unem
entre si como matéria e forma, constituindo um todo harmonioso. Os cristãos que seguiram a filosofia de
Aristóteles, professaram a dualidade de corpo e alma, não, porém, o dualismo de Platão.
3. A distinção de corpo e alma e, por conseguinte, a negação de todo monismo no ser humano evidencia-se
por diversas vias. Realçaremos apenas o seguinte fato: O corpo humano consta de inúmeras partículas que vão
sendo renovadas constantemente, de modo que de sete em sete anos a matéria do corpo humano é totalmente
nova. Não obstante, não muda o núcleo consciente da personalidade que se manifesta através do corpo em
mutação; um só é o eu que pensa, fala e age dentro da matéria mutante do organismo. Isto quer dizer que dentro
do ser humano há algo que não está simplesmente sujeito às leis da biofísica e que se chama a alma humana.
Os dois princípios - corpo e alma - se unem entre si, sem a mediação de um terceiro princípio, mas por si
mesmos, perfazendo um todo, que é uno. O corpo é o substrato material e a expressão da alma; a alma é o
princípio vivificante, que comunica sentido e finalidade às diversas partes e funções do corpo. O corpo está
constituído de tal modo que corresponde às exigências da alma; esta, por sua vez, necessita do corpo afim de
desenvolver as suas potencialidades.

PERGUNTAS
l) Se a alma intelectiva não funciona quando o cérebro está lesado, como se pode dizer que é espiritual?
2) Qual a diferença entre dualisno, dualidade e monismo?
3) Que é hilemorfismo? Como se aplica ao ser humano?

MÓDULO 29: A ALMA HUMANA – IMORTALIDADE


O ser humano consta de corpo (matéria) e princípio vital (alma espiritual), que anima o corpo. Enquanto o
corpo conserva íntegras sua estrutura e sua organização, a alma exerce por ele as funções da vida. Desde,
porém, que se desgaste, a ponto de não poder ser mais sede da vida, a alma se separa dele.
O corpo então se reduz a poeira.
E a alma? Perece? Ou sobrevive imortalmente?
Esta questão é de importância capital para a orientação da vida humana, como bem notava
o filósofo Pascal († 1662):
"A imortalidade da alma é algo que nos importa e afeta profundamente. É preciso que alguém tenha perdido
todo o senso das coisas para se deixar na indiferença a esse propósito. Todos os nossos atos e pensamentos
83 Escola Mater Ecclesiae
tomam rumos muito diferentes conforme haja ou não bens eternos a esperar. Só nos é possível empreender algo
com consciência e juízo se nos deixamos guiar por esse tema, que deve ser o nosso supremo motivo de
orientação. Por conseguinte, nosso primeiro interesse e nosso primeiro dever consistem em que nos
esclareçamos sobre tal assunto, donde depende todo o nosso comportamento" (Pensées, no 191).
Em resumo, afirmava o mesmo Pascal: "Importa, para a vida inteira, sabermos se a alma é mortal ou
imortal".
Não somente o rumo de nossa vida pessoal, mas também as relações com o próximo dependem da crença ou
não na imortalidade da alma. O filósofo existencialista Gabriel Marcel em uma de suas peças de teatro, introduz
um personagem que faz a seguinte confidência: "Amar alguém é dizer-lhe: 'Tu não hás de morrer!'"
No Módulo presente serão apresentados alguns argumentos de razão filosófica para provar que a vida hu
mana não termina com a separação de alma e corpo; a alma sobrevive sem fim por sua própria natureza, não
por privilégio nem por um dom sobrenatural, e sobrevive conservando sua individualidade e lúcida consciência
de si mesma; o eu se reconhece após a morte, guardando sua identidade pessoal, continuando a conhecer e
amar.
Afirmando isto, distanciamo-nos do
a) panteísmo, segundo o qual a alma, após a morte, se perde na substância do Grande Todo ou do Absoluto.
E o que professam certas crenças hinduístas, assim como o filósofo Baruch Spinoza († 1677);
b) positivismo, que só reconhece uma sobrevivência metafórica; o homem se perpetuaria apenas na memória
e no amor dos seus descendentes. Para cultuar essa imortalidade, Augusto Comte († 1857) fundou a religião da
Humanidade, que venera os grandes homens do passado.
Três são os principais argumentos filosóficos em favor da imortalidade da alma.

Lição 1: Deus o deve a Si mesmo


1. A experiência ensina que um ser morre ou deixa de existir quando se desintegra ou desagrega ou
decompõe. A morte é sempre conseqüência da decomposição.
2. Ora a alma humana é destituída de partes componentes ou integrantes, de quantidade, de extensão... É
simples, porque é espiritual; cf. Módulo 27 deste Curso.
3. Em consequência, vê-se que a alma humana não está sujeita a se decompor; ela não traz em si princípio
algum de morte ou desintegração. É, pois, imortal em virtude de sua própria natureza.
Mesmo que o corpo se destrua, ela não se destrói (como se destrói o princípio vital do animal irracional),
porque não é parte do corpo. O espírito é de natureza diversa do corpo e subsiste independentemente da
matéria.
4. Pergunta-se, porém: dado que o homem tenha uma alma imortal, não se pode conjeturar que Deus a queira
aniquilar?
- A rigor, Deus, que tirou as criaturas do nada, pode também reduzi-las ao nada. Todavia o Senhor rege cada
ser segundo as leis da sua própria natureza; a justiça e a sabedoria de Deus o exigem; o Senhor não derroga aos
seus dons, nem contradiz arbitrariamente às suas obras.
Ora a imortalidade é uma propriedade de todo ser espiritual; foi o próprio Criador quem a instituiu.
Conseqüentemente, Ele a respeita e não lhe contradiz; o Criador deve à sua justiça e sabedoria a conservação
dessa alma imortal.
Na verdade, Deus pode não querer - e, por isto, pode não criar - uma alma espiritual. Dado, porém, que a
queira, Ele a quer com tudo que naturalmente lhe compete; por conseguinte,... com a imortalidade.

Lição 2: A Sede de Vida


O raciocínio se desenvolve em três etapas.
1. Todo homem aspira naturalmente a viver, e a viver feliz.
Essa aspiração é tão espontânea que ela é necessária; sempre que quer alguma coisa, a criatura humana a
quer em vista de ser feliz.
E a felicidade a que o homem tende, é a felicidade perfeita, absoluta, a qual inclui em seu conceito a
imortalidade. A felicidade temporariamente limitada não sacia o homem. Os bens finitos são, para nós, o
reflexo de um Bem mais profundo e duradouro; aguçam em nós o desejo de Plenitude e Eternidade, que se
encontra latente em todo homem.
Verdade é que nem todos concebem do mesmo modo a felicidade irrestrita: alguns a procuram nas riquezas;
outros, na ciência; outros, na virtude. Como quer que seja, todos sem exceção, crentes e ateus, aspiram
invencivelmente a ser felizes sem limites.
Pascal observava:
84 Escola Mater Ecclesiae
"Todo os homens procuram a felicidade; neste ponto, não há exceção. Por mais diversos que sejam os meios
utilizados, todos tendem a esse objetivo. O que faz que uns vão para a guerra e outros não, é esse mesmo
desejo, que está em uns e outros, colocado dentro de perspectivas diversas. A nossa vontade não toma a mínima
de suas iniciativas a não ser em vista de tal fim. A felicidade é o motivo de todas as ações, de todos os homens,
até mesmo daqueles que se enforcam " (Pensées no 425).
Sim; mesmo aqueles que se suicidam, procuram ser felizes!... Julgando que sua vida na terra é de todo
insustentável, procuram melhor sorte no repouso que lhes parece provir do suicídio.
Iludem-se; mas, mesmo iludidos, estão procurando algo que, para eles, tem a semelhança de felicidade.
2. Em outros termos: Deus, que é o Autor da natureza humana, deve ser também, em virtude da sua
sabedoria e perfeição, o Consumador das aspirações espontâneas dessa natureza. virtualidades naturais do
homem são também promessas do Criador. Observe-se o mundo que cerca o homem: há correspondência
harmoniosa entre as faculdades e as funções, entre os meios e os fins: a existência do olho implica em
existência da luz; a existência do pulmão, em existência de uma atmosfera respirável; a existência do ouvido,
em existência de vibrações sonoras. Mais ainda: quando, nas proximidades do inverno, o instinto leva as
andorinhas a procurar um clima mais ameno, o observador pode estar certo de que elas o encontrarão. Pergunta-
se, pois: a correspondência existente entre os instintos ou as virtualidades naturais das criaturas e seus
respectivos objetivos há de ser contraditada apenas no homem, ... no homem que aspira à felicidade infinita?
Tal aspiração nada teria que lhe correspondesse na realidade? Seria dirigida para o vazio ou para o logro?
Parece que, ao contrário, em lógica sadia se deve dizer: o profundo desejo de sobreviver que todo homem
experimenta, supõe necessariamente uma sobrevivência real. A sã razão recusa-se a aceitar que a obra-prima da
criação, o homem, tenha o monopólio das aspirações sem objeto. A felicidade sem fim que nos atrai e
atormenta, não pode ser mera idéia ou quimera...
3. Destas considerações conclui-se que o homem possui uma alma que, por sua natureza, é imortal ou
destinada a apreender a felicidade sem fim a que ela espontaneamente aspira. A dissolução do corpo humano,
pela morte física, não extingue a vida da alma, mas, ao contrário, fá-la entrar no seu estado definitivo.
4. Mas, dirá alguém, deve-se então crer que todos os desejos dos homens, pelo fato de serem veementes,
encontram aceitação da parte de Deus e, cedo ou tarde, se realizam? Os homens não aspiram a tantas coisas
utópicas e impossíveis?
- Por certo, não se pode esperar que todo e qualquer desejo livremente concebido pelo homem seja
preenchido ; almejamos muitas coisas fantasistas, que Deus em sua sabedoria não nos pode prometer. Todavia
as aspirações que concebemos anteriormente a qualquer deliberação, ou seja, de maneira espontânea e natural,
não podem ser frustradas. Se nos são incutidas pela natureza, vêm do próprio Deus, o qual, conseqüentemente,
se empenha por lhes dar a resposta adequada. O Criador não teria excitado em nós a sede de viver, e viver em
plenitude, se não nos quisesse saciar na proporção mesma da nossa sede.

Lição 3: A Justa Retribuição


1. Deve haver justa sanção para o bem e o mal: recompensa para a virtude, castigo para o vício. Essa sanção
há de ser universal (destinada a todos os homens) e proporcional às responsabilidades de cada um.
Exige-o, de um lado, a consciência moral, voz misteriosa que fala espontaneamente dentro do homem.
Exigem-no, de outro lado, a justiça e a providência de Deus. O Senhor não se pode mostrar indiferente ao
bem e ao mal. Deus não seria Deus se a generosidade, a justiça, a castidade fossem para sempre tratadas do
mesmo modo que o crime, o deboche, o egoísmo...
2. Ora a experiência demonstra que as sanções nesta vida são imperfeitas ou, por vezes, nulas. Não há
proporção entre o bom comportamento dos homens e a felicidade; as pessoas honestas são, por vezes,
desgraçadas, ao passo que as libertinas obtêm êxito. Os Códigos Penais só atingem uma minoria de culpados e
reprimem apenas as faltas que prejudicam a ordem pública. As leis são impotentes para recompensar o bem
oculto e a dedicação ignorada. Por sua vez, a sociedade nem sempre é justa ao atribuir admiração, estima e
honra a determinadas pessoas; nota-se mesmo que o ser humano pode sufocar a sanção da sua própria
consciência: embota-se de tal modo que os remorsos freqüentemente diminuem na medida em que a
culpabilidade aumenta.
3. De tais fatos deve-se concluir que há necessariamente uma vida futura, em que cada um receberá a sanção
preparada por sua própria conduta. A exigência dessa restauração da ordem está gravada no íntimo do coração
de todos os homens.
Vítor Hugo dizia que, se tudo terminasse no túmulo, Deus não poderia ser comparado nem mesmo a um
homem honesto.
85 Escola Mater Ecclesiae
No séc. IV a. C., um autor judeu dava, do seu modo, testemunho das proposições acima, observando o
aparente escândalo das sanções neste mundo:
"Há justos aos quais acontece o que conviria à conduta dos malvados, e há ímpios aos quais acontece o que
conviria à conduta de justos... " (Ecl 8,14).
"O homem bom é tratado como o pecador e o perjúrio como quem respeita seu juramento " (Ecl 9, 2).
"Nas minhas investigações debaixo do sol, ainda vi que a corrida não é para os ágeis, nem a batalha para os
corajosos nem o pão para os prudentes, nem a riqueza para os inteligentes, nem o favor para os sábios; todos
estão à mercê das circunstâncias e da sorte " ( Ecl 9, 11). O autor sagrado mostrava-se perplexo e amargurava-
se ao fazer tais observações, porque não sabia que a alma humana está destinada a continuar a sua vida
consciente após a separação do corpo. Os judeus admitiam, sim, a sobrevivência da alma para todo o sempre;
julgavam, porém, que, ao deixar o corpo, a alma entrava num estado de torpor, que a tornava incapaz de
qualquer sanção. Somente aos poucos, no Antigo Testamento mesmo, os judeus, sob o influxo da Revelação
Divina, conceberam a noção de uma vida póstuma plenamente consciente e apta para receber a retribuição
divina. Esclareceu-se então o enigma do livro do Eclesiastes. Tenham-se em vista os textos de Dn 12, 2s; 2 Mc
7, 9. 14. 23; Sb 5, 1-23.

Conclusão
Os três argumentos apresentados em favor da imortalidade da alma se corroboram mutuamente.
Vê-se que recusar a sobrevivência pessoal e consciente do ser humano equivale a fazer do homem uma
simples peça da máquina do mundo e reduzir a história a um jogo de concorrências movidas pela esperteza e a
brutalidade. Conseqüentemente, como diz Blondel, o problema da imortalidade "torna-se a pedra de toque que
manifesta o valor das doutrinas, a chave que abre o mistério da vida" (Supplément de la Vie Spirituelle, oct.
1939, pág. [11]).
Não há dúvida, a alma, separando-se do corpo, entra em novas condições de existência: deixa de exercer as
funções da vida vegetativa e sensitiva, que dependem de órgãos corpóreos. Mas nem por isto é destituída de
suas atividades mais elevadas, que são as da vida intelectiva; ela continua a gozar das faculdades de pensar e
amar. Por conseguinte, conhece, pensa e ama, e, segundo S. Tomás,... de maneira muito mais desimpedida,
muito mais profunda e pura, do que quando unida ao corpo, que a sujeita à opacidade da matéria e às paixões da
concupiscência (cf. Suma Teológica I qu. 89).

PERGUNTAS
1) Exponha o primeiro argumento em favor da imortalidade da alma.
2) Exponha o segundo argumento.
3) Exponha o terceiro argumento.
4) Qual a importância da temática "imortalidade da alma humana"?

MÓDULO 30: O PROBLEMA DO MAL


A existência do mal (desgraça físicas e morais) no mundo sempre merecem a atenção dos pensadores por
vezes perplexos perante a realidade da história humana. Daí a necessidade de abordarmos o problema neste
Módulo.
Proporemos em nove sentenças um rigoroso raciocínio sobre a questão do mal, cientes de que o assunto deve
ser considerado segundo a precisão da lógica. Após o quê, trataremos de temas complementares.

Lição 1: O Mal e Deus


O problema do mal exige sério raciocínio, afim de que o homem não se deixe dominar por emoções e
sentimentos. Proporemos esse arrazoado por etapas:
1) O mal não é um ser ou uma coisa, mas é um não-ser ou uma carência (ausência de algo que deveria existir
). O mesmo se diga das trevas: estas não são o efeito de ondas pretas, mas resultam da ausência de ondas
luminosas. Assim a cegueira é um mal no homem, porque é a carência de olhos, que integram a natureza
humana. A falta de asas não é um mal no homem, pois elas não integram a natureza humana; é, sim, um mal
nos pássaros.
2) Distingue-se o mal físico e o mal moral. Aquele é a carência de algo que deveria existir no plano material
(a fome, a miséria, a doença...). O mal moral é a carência da finalidade adequada a que o homem deve tender;
por exemplo, o ladrão é alguém que mobiliza inteligência, vontade, coragem... (valores físicos) para a
finalidade de prejudicar o próximo, em vez de o fazer para ajudar o semelhante.
86 Escola Mater Ecclesiae
3) Em conseqüência, deve-se dizer que o mal sempre supõe o bem; só existe porque existe o bem..., todavia
o bem inacabado, incompleto.
4) Donde se vê que o mal, sendo uma lacuna, não tem causa direta; não é causado como tal. Tem, sim, causa
indireta, isto é , aquela causa que é capaz de não realizar seus efeitos até o fim ou de maneira perfeita. Tal causa
não pode ser Deus, que é sempre perfeito em tudo o que faz ; mas só pode ser a criatura, que é limitada e, por
isto, pode produzir o bem sem chegar ao seu remate.
5) A falibilidade ou a possibilidade de falhar ou de fazer algo inacabado (algo de mau) é inerente ao conceito
de criatura. Toda criatura, por ter sido tirada do nada, é sempre ameaçada de cair no nada ou de falhar. Deus
não pode criar algum ser infalível por sua própria natureza; isto contradiria à noção de criatura; Deus criaria
então um outro Deus - o que é totalmente ilógico.
6) A falibilidade da criatura pode-se exercer, como de fato se exerceu, na história da humanidade. A S.
Escritura - e somente ela - nos dá a respeito uma explicação satisfatória: o mal começou a existir no mundo no
plano moral. É o pecado dos primeiros pais; a estes Deus concedera as graças originais (entre as quais a
imortalidade, a impassibilidade, a imunidade de concupiscência...); perderam-nas, porém, cedendo à soberba e à
auto-suficiência; o primeiro pecado acarretou a perda da santidade original e, conseqüentemente, o mal físico (a
dor e a morte) para a humanidade.
7) Qual o papel de Deus diante do mal produzido pelas criaturas?
- Deus não quer o mal, mas permite-o, porque não quer retirar a liberdade do homem nem teleguiar as
criaturas. Afirma, porém, S. Agostinho que Deus nunca permitiria o mal no mundo se não tivesse meios em sua
sabedoria para tirar do mal bens ainda maiores: "Deus julgou melhor tirar dos males bens do que não permitir
mal algum" (Enquirídio ou Livro sobre a Fé, a Esperança e a Caridade, cap. 27).
O plano de Deus atingiu seu auge em Jesus Cristo. Este é o segundo Adão (cf. Rm 5,14), que assumiu a sorte
mortal do primeiro Adão e de sua descendência, e, sofrendo a dor e a morte decorrentes do pecado, deu a estas
um valor positivo. Como o primeiro Adão se precipitou na dor e na morte por desobediência, o segundo Adão
assumiu-as por obediência e amor ao Pai; assim o sinal negativo se transformou em positivo. O mal físico
continua a existir no mundo, mas já não é mera sentença da justiça; é canal ou passagem para a ressurreição e a
plenitude da vida.
8) Até hoje Deus permite que os maus, convivendo com os bons, escandalizem os justos e aparentemente
prevaleçam sobre estes. Este fato já causava perplexidade aos fiéis do Antigo Testamento, como atestam Jr
12,1s; MI 2,17; Jó 21,7s; SI 73... Deus o permite porque é paciente; dá aos pecadores a moratória necessária
para que se convertam. Além disto, o Senhor sabe que os maus podem provocar os bons a uma vida mais
consciente; através da história, muitas e muitas pessoas indiferentes e tíbias passaram a ter uma conduta mais
fervorosa em conseqüência dos males que sofreram, ou dos maus que as provocaram.
Afinal de contas, o mal físico (a dor) é uma escola, a ponto de que os gregos précristãos formularam o
trocadilho: páthos máthos, sofrimento é educação. Até o pecado (que será sempre indesejável) pode tornar-se,
para o pecador, ocasião de maior humildade e mais ardorosa procura da graça de Deus. Em suma, de todo e
qualquer mal (acarretado pela criatura) a Providência Divina tira ocasião de fazer o homem crescer
interiormente.
9) Se o Senhor é paciente, Ele pede ao homem que também o seja 44. O clima no qual o cristão se santifica, é
o da hypomoné (sustentação, suporte, agüentar firme até o extremo, apesar da perplexidade que isto cause).
Lemos, por exemplo, em Lc 8,15: a semente que cai em terra boa, dá fruto na paciência. Ver também Lc 21,19;
Mt 10,22; 24,13.
Com outras palavras: o pecado e o escândalo estarão sempre presentes no mundo e dentro da própria Igreja,
pois esta consta de homens falíveis.45 O escândalo da Cruz é a lei atual da salvação; isto quer dizer que até o fim
dos tempos haverá iniqüidade e aparente vitória do mal sobre o bem, como se Deus estivesse alheio ao mundo .
Muitos cristãos, perplexos diante do fato, se deixam abater ou imaginam uma "nova Igreja", em que haja
somente trigo sem joio. Esta tentação acometeu várias gerações de cristãos, mas nunca alcançou o seu objetivo,
pois toda comunidade humana é sujeita à fraqueza moral; o que se registra na história, fora da Igreja Católica,
são reavivamentos sucessivos, que começam ardorosamente, mas em breve declinam, para dar lugar a outros
reavivamentos. O Senhor, através da parábola do joio e do trigo, responde aos seus fiéis que tenham confiança
na sabedoria de Deus; Este sabe exatamente por que permite o mal; sabe também definir a exata medida do mal
44
Tenha-se em vista a parábola do joio e do trigo em Mt 13,24-30: os servidores do Senhor do campo querem arrancar o joio que cresce junto com o
trigo, o patrão recusa-o, pedindo que esperem o tempo da colheita, quando se fará a triagem. - Assim Deus se revela paciente em seus sábios
desígnios, tendo sempre em vista um fim providencial. Ele quer que os homens também saibam pacientar. Ver Módulo 14 do nosso Curso sobre
Parábolas e Páginas Difíceis dos Evangelhos.
45
Verdade é que a Igreja não consta apenas de homens; Ela tem algo de transcendental, ou seja, Jesus Cristo nela prolongado sob a forma
sacramental.
87 Escola Mater Ecclesiae
no mundo e na Igreja. Paciência e paz! Que cada um cumpra fielmente a sua tarefa, procurando santificar-se
fervorosamente, e um dia colherá os frutos dessa longanimidade.

Lição 2: Questões complementares


2.1. O Sofrimento das Pessoas Retas
Pergunta-se freqüentemente : por que os bons sofrem, se são inocentes? Os pecadores é que deveriam sofrer
(mas nem sempre sofrem) em conseqüência de suas faltas.
Em resposta, será preciso dissipar a premissa segundo a qual o sofrimento é castigo. - Na verdade, o
sofrimento é algo de natural ou decorre da própria índole da criatura humana. Deve-se mesmo dizer
paradoxalmente: quanto mais alguém é perfeito, tanto mais sofre. O S. Padre João Paulo II o observa em sua
carta sobre a Dor salvífica, no 2, datada de 11/02/84:
"Ainda que os sofrimentos do mundo dos animais sejam bem conhecidos e estejam próximos ao homem,
aquilo que nós exprimimos com a palavra 'sofrimento' parece ser algo particularmente essencial à natureza
humana... O sofrimento parece pertencer à transcendência do homem".
Estes dizeres, à primeira vista, desconcertam, pois contrariam à espontânea tendência que temos, de procurar
uma vida "feliz" e sem sofrimento. Como pode então o sofrimento ser essencial à natureza humana?
- A resposta não é difícil. Consideremos a escala dos seres.
Os seres inanimados (minerais...), quando percutidos ou lesados, não reagem; nada sentem, não sofrem; são
os mais imperfeitos dos seres, pois não têm vida. Passando para o nível dos seres vivos vegetativos, verificamos
que, quando um vegetal ou uma planta é maltratada ou mutilada, ela tende a se restaurar reagindo contra a lesão
infligida; dir-se-ia que não é impassível como os minerais. Subindo ao degrau dos animais irracionais,
percebemos que reagem muito sensivelmente aos golpes dolorosos: gemem, rugem, fogem, contra-atacam...
Elevando-nos ainda na escala dos seres criados, chegamos ao homem; este sofre mais porque, além de sofrer
fisicamente, ele sabe que sofre (tem consciência psicológica); o homem reflete sobre o seu sofrimento,
comparando-o com o seu ideal e verificando que este é, não raro, truncado ou prejudicado pelas adversidades
da caminhada; um pai ou uma mãe de família atingidos em sua saúde física quando têm filhos pequenos,
sentem, além do incômodo físico, a dor de não poderem desempenhar devidamente a sua tarefa de educadores...
Diremos mesmo: quanto mais um ser humano é nobre e profundo (no plano moral), tanto mais sofre; quanto
menos alguém tem ideal ou vive como criatura inteligente, tanto menos sofre; diz-se que a mãe desnaturada é
aquela que não se sensibiliza pela dor dos filhos.
Eis em que termos o sofrimento é essencial ao homem e característico da sua transcendência: ele decorre da
dignidade mesma da natureza humana, que aspira legitimamente a realizações que infelizmente são
prejudicadas pelos golpes da vida. Ele decorre, com outras palavras, da nobreza intelectual (e espiritual) do ser
humano, que não só conhece, mas sabe que conhece ou reflete sobre si mesmo (coisa que os animais inferiores
não realizam).
Está claro, porém, que uma pessoa de fé sabe superar a dor natural que a afeta, olhando para o modelo do
Cristo Jesus; Este, diante da perspectiva da sua Paixão e Morte, orava "Pai, se possível, que este cálice passe
sem que eu o beba; faça-se, porém, a tua vontade e não a minha" (Mt 26,39). Acima de tudo, importa ao cristão
identificar-se com o desígnio do Pai, que certamente é mais sábio que os planos dos homens.
Se o sofrimento é algo de natural aos viventes, especialmente ao ser humano, entende-se que as crianças
inocentes possam sofrer. Sofrem pelo fato mesmo de terem a perfeição da vida sensitiva decorrente de sua alma
espiritual. Na medida em que desabrocham para o uso da razão, as crianças sofrem a novo título como os
adultos.
Entende-se também o sofrimento dos animais irracionais. Sofrem na proporção do seu grau de vida sensitiva.
Sofrem menos do que o homem, porque guiados pelos instintos cegos e não pela razão.

2.2. Sofrimento e Pecado


Embora o sofrimento seja natural ao homem, não se pode esquecer que, no estado original, o Senhor Deus
quis dar ao homem o dom da impassibilidade. Conforme Gn 3,16-19, o sofrimento hoje existe no mundo não só
porque decorre da dignidade humana, mas também porque é conseqüência do primeiro pecado, que fez o
homem perder os dons da justiça original; cf. Módulo 40 deste Curso.
O primeiro pecado da história não foi simplesmente um fato desregrado como outro qualquer, mas um Não
dito ao convite de Deus, que chamava o homem ao consórcio de sua vida (na justiça original) ; essa recusa
acarretou para os homens a perda dos dons paradisíacos, entre os quais o não sofrer e o não morrer. A S.
Escritura, de ponta-a-ponta, relaciona a dor e a morte com o pecado, que é responsável pelo desencadeamento
da miséria física e moral de que o homem sofre através dos séculos. Como bem atesta São Paulo, em
88 Escola Mater Ecclesiae
consonância com todo o Antigo Testamento, "por um só homem o pecado entrou no mundo e, pelo pecado, a
morte" (Rm 5,12).

2.3. Sofrimento-serviço
Na sua Carta dobre a Dor Salvífica, João Paulo II alude ao sentimento de inutilidade que acomete, muitas
vezes, as pessoas que sofrem; julgam ser apenas fardo para os outros – o que as aflige e humilha. Ora a
propósito escreve o S. Padre:
"Torna-se fonte de alegria o superar o sentimento de inutilidade do sofrimento, sensação que, por vezes, está
profundamente arraigada no sofrimento humano; e isto não só desgasta o homem por dentro, mas parece fazer
dele um peso para os outros. O homem sente-se condenado a receber ajuda e assistência da parte dos outros e,
ao mesmo tempo, considera-se a si mesmo inútil. A descoberta do sentido salvífico do sofrimento em união
com Cristo transforma esta sensação deprimente. A fé na participação nos sofrimentos de Cristo traz consigo a
certeza interior de que o homem que sofre, completa o que falta aos sofrimentos do mesmo Cristo, e de que, na
dimensão espiritual da obra da Redenção, serve, como Cristo, para a salvação dos seus irmãos e irmãs.
Portanto, não só é útil aos outros, mas presta-lhes ainda um serviço insubstituível" (no 27).
O Papa frisa que o sofrimento é serviço insubstituível. E isto a dois títulos: 1) na comunhão dos santos,
aquele que se santifica contribui para santificar o mundo inteiro ("uma alma que se eleva, eleva o mundo
inteiro", diz Elizabeth Leseur); a mais íntima configuração a Cristo beneficia os irmãos; 2) aquele que sofre
com paciência e tenacidade heróicas, dá aos seus semelhantes um exemplo que os homens fortes, importantes e
violentos não conseguem dar. É dos enfermos heroicamente prostrados sobre o seu leito de dor que os homens
sadios podem aprender coragem e magnanimidade. Não fossem tais figuras pacientes, o mundo careceria de
lições valiosas e insubstituíveis. Aquele que remata uma discussão dando um murro sobre a mesa e quebrando
valores, é mais fraco do que aquele que sabe aguardar magnanimamente a hora precisa para salvar os valores
em perigo.
É preciso, pois, que se congreguem em espírito, junto à Cruz do Calvário, todos aqueles que sofrem e
acreditam em Cristo... a fim de que o oferecimento dos seus sofrimentos apresse o realizar-se da oração do
mesmo Salvador pela unidade de todos os homens (cf. Jo 17,11.21s).
Em seu último parágrafo dirige o S. Padre um apelo caloroso: "Pedimos a todos vós que sofreis, que nos
ajudeis. Precisamente a vós, que sois fracos, pedimos que vos tomeis uma fonte de força para a Igreja e para a
humanidade. Na terrível Juta entre as forças do bem e do mal, de que o nosso mundo contemporâneo nos
oferece o espetáculo, que vença o vosso sofrimento em união com a Cruz de Cristo!" (no 31).
A tal ponto o S. Padre valoriza o sofrimento aceito em união com Cristo que ele pede aos enfermos e
fisicamente fracos que o ajudem a desenvolver a sua função pastoral. Colaborem com o Papa não tanto
enviando-lhe sugestões e escritos, mas configurando-se a Cristo Redentor pregado à Cruz.
Tal é, em última análise, o significado do sofrimento para o cristão.

PERGUNTAS
1) O sofrimento é algo de positivo? Que é o mal?
2) Enuncie os dois tipos de mal que existem.
3) Como entender o sofrimento das pessoas inocentes?
4) Como a S. Escritura explica o sofrimento e a morte na realidade concreta da história?
5) Diga algo sobre o sofrimento-serviço.

APÊNDICE
O mal moral (o pecado) é mais grave do que o mal físico, conforme a razão humana, que já Platão († 347
a.C.) exprimia nos seguintes termos:
O INJUSTO E O JUSTO
Sócrates discute com Polos, ardente e verboso discípulo do sofista Górgias, a respeito do que é justo e do
que é injusto.
Polos: Na minha opinião, aquele que é levado à morte injustamente, é, ao mesmo tempo, infeliz e digno de
pena, não é verdade?
Sócrates: Ele o é menos do que aquele que o faz morrer injustamente. E também menos do que aquele que,
simplesmente, morre por causa de uma sentença justa.
Polos: Mas que absurdo! E como assim ?
Sócrates: No sentido de que o maior de todos os males é cometer a injustiça.
89 Escola Mater Ecclesiae
Polos: Será realmente este o maior de todos os males? Sofrer uma injustiça não é, porventura, um mal
maior?
Sócrates: Absolutamente, não!
Polos: Então, tu preferirias ser vítima da injustiça a cometer a injustiça?
Sócrates: Por minha parte, eu preferiria não ter de encontrar-me nem numa situação nem na outra. Mas se,
forçosamente, tivesse que haver ou uma injustiça praticada ou uma injustiça sofrida, eu preferiria sofrer uma
injustiça a cometê-la".
(Platão, Oeuvres Complètes. Bibliothèque de la Pléiade, I vol. p.406; Diálogo "Górgias", § 469).

MÓDULO 31: A MORTE (I) - CONCEITO CRISTÃO


Lição 1: O Conceito Cristão de Morte
O mais radical de todos os males é a morte. Consideremo-lo em particular: 1. Para os cristãos, a morte não
deixa de ser um fenômeno natural. Compreende-se que se dê a separação de corpo e alma, visto que os órgãos
corpóreos (coração, pulmões, fígado...) se vão desgastando, a tal ponto que, cedo ou tarde, o organismo já não
pode preencher as funções da vida; por isto a alma - princípio vital (espiritual e imortal) - se separa do corpo.
Todavia a morte brutal e dolorosa, como ela é atualmente, decorre do pecado dos primeiros pais. A S.
Escritura ensina-o enfaticamente:
"Deus não fez a morte nem experimenta alegria quando perecem os vivos. Criou todas as coisas para que
tenham existência" (Sb 1, 13s).
"Deus criou o homem para a imortalidade, e o fez imagem de sua própria natureza. Foi por inveja do diabo
que a morte entrou no mundo" (Sb 2,23s).
"Por meio de um só homem o pecado entrou no mundo e, pelo pecado, a morte; e assim a morte passou a
todos os homens, porque todos pecaram" (Rm 5, 12).
2. Eis, porém, que o Deus de bondade, que criou o homem, não o abandonou à sua triste sorte. Em tempo
oportuno, o próprio Deus assumiu a carne humana; tomou sobre si a morte com todas as angústias precursoras e
ressuscitou; assim Jesus Cristo venceu a morte e dela nos libertou.
O Senhor obteve o triunfo sobre a morte em favor do gênero humano, afim de que cada indivíduo saiba que,
embora deva morrer dolorosamente em conseqüência da culpa original, a morte não é para ele mera sanção,
mas é a passagem para a vida definitiva. Diz o Apóstolo:
"Pois que seus filhos participam da carne e do sangue, também Ele quis ter parte na carne e no sangue, a fim
de, por sua morte, reduzir à impotência aquele que tinha o império da morte, isto é, o diabo, e libertar os que,
por temor da morte, estavam sujeitos à escravidão durante toda a vida" (Hb 2, 14; cf 2Tm 1, 10).
Jesus assim se apresenta como o segundo Adão, que nos comunica a vida, e vida sem fim, em oposição ao
primeiro Adão, que nos transmitiu a morte. Cf. Rm 5,12-17.
3. Jesus nos comunica a sua vida mediante o Batismo; este nos incorpora a Cristo Cabeça (cf. l Cor 12,12)
ou nos enxerta na verdadeira Videira (cf. Jo 15,1-5). Isto quer dizer que a vida de Jesus se prolonga no cristão;
é-nos dada sob a forma de um gérmen, que tende a expandir-se cada vez mais através das nossas atividades e
transfigurar o corpo no dia em que este ressuscitar.
4. Esta situação leva o cristão a fazer uma revisão dos valores do mundo presente.
Não há propriamente morte para o cristão. Ele sofre, sim, as misérias da carne como os demais homens; mas
as suas mazelas são as de um membro de Cristo; o que quer dizer que elas, fazendo sofrer, levam à verdadeira
vida e à glória definitiva. "O corpo do regenerado torna-se a carne do Crucificado", diz S. Leão Magno († 461).
Quanto mais esse corpo se configura ao de Jesus pelo padecimento, tanto mais também se lhe assemelhará na
glória futura; todo sofrimento, portanto, vem a ser um rejuvenescimento ou uma antecipada participação da
glória de Cristo, como diz São Paulo:
"trazemos incessantemente em nosso corpo a morte de Jesus, a fim de que a vida de Jesus se manifeste,
também ela, em nosso corpo" (2Cor 4, 10).
Sofrer e morrer significam, para o cristão, estender à sua carne os sofrimentos e a morte de Cristo vitorioso;
por isto o mesmo Apóstolo pode afirmar:
"Enquanto o nosso homem exterior vai definhando, o nosso homem interior se vai renovando de dia a dia "
(2Cor 4, 16).
O cristão pode muito bem dizer: assim como, para quem não tem fé, a vida presente é toda dominada pela
tremenda perspectiva da morte, que lhe vai absorvendo as energias, assim, para o cristão, a morte presente é
toda iluminada pela perspectiva da vida que não é meramente futura, mas que ele já possui em gérmen e que
nele vai desabrochando progressivamente até a ressurreição gloriosa. E o que o gráfico abaixo significa:
90 Escola Mater Ecclesiae

< = Novo homem


> =Velho homem

O ângulo que se fecha, representa a vida corpórea, biológica, sujeita ao definhar e à morte, ao passo que o
ângulo que se abre designa nossa vida espiritual, elevada à filiação divina pelo Batismo e os demais
sacramentos. E em consideração desta que o Senhor Jesus pode dizer:
"Quem comer do pão que desce do céu, não morrerá" (Jo 6,50).
"Quem crê em mim, mesmo que estivesse modo, há de reviver e todo aquele que vive e crê em mim, jamais
morrerá" (Jo 11,25s).
"Em verdade, em verdade eu vos digo: quem ouve a minha palavra e crê naquele que me enviou, possui a
vida eterna..., passou da morte para a vida" (Jo 5,24).
Vejamos agora

Lição 2: As Conseqüências do Conceito Cristão


1 . Um fato que exprime tipicamente a mudança da escala de valores decorrente do conceito cristão de morte
é o seguinte:
Em sua Retórica (11, 12s), o filósofo grego Aristóteles (384-322 a C.) procura caracterizar a juventude e a
velhice da vida humana. Afirma então que os jovens vivem para os valores morais e artísticos; concebem um
ideal de virtude e de heroísmo, cuja beleza os atrai e ao qual se entregam sem medir forças e bens materiais.
Numa palavra: vivem para o belo (pròs tò kalón), não para o útil ou o interesse pessoal (tò symphéron). A razão
disto é que sentem em si uma vitalidade ardorosa, ainda não contraditada por reveses.
Conseqüentemente, para Aristóteles, os anciãos, experimentando em si o definhar das forças físicas, vivem
não mais para um ideal de beleza e bravura, mas para o interesse particular; vivem para aquilo que lhes possa
trazer proveito físico e conservar a existência. Numa palavra: vivem não mais para o belo, mas para o útil ou o
interesse pessoal (pròs tò symphéron).
Esta caracterização do ancião não deixa de impressionar; é uma desdita às aspirações mais espontâneas e
nobres da natureza humana. E lógica, porém, aos olhos da razão natural: a vida é o fundamento de qualquer
ideal que o homem possa conceber. Ora Aristóteles e seus contemporâneos só conheciam a vida neste corpo;
por isto julgavam que as aspirações variam de acordo com o grau de vitalidade que o homem experimenta nas
sucessivas fases da sua existência terrestre.
O quadro é triste .Pergunta-se, porém: será que o homem está necessariamente fadado a renegar seus ideais
mais nobres?
A esta pergunta responderemos apontando o caso de outro pensador - o apóstolo São Paulo - que viveu três
séculos após Aristóteles e tomou conhecimento da mensagem cristã. Esta lhe inspirou um modo de ver bem
diferente das concepções do filósofo grego. Com efeito; basta notar que o Apóstolo escreveu treze cartas, sendo
as três últimas (as Pastorais: 1/2 Tm e Tt) datadas dos anos de Paulo sexagenário, encarcerado em Roma e
consciente de que estava prestes a ser condenado à morte. Pois bem; ao passo que nas dez epístolas anteriores o
Apóstolo empregava vinte vezes o adjetivo kalón (belo e bem moral), nas três pastorais ele o usou vinte e
quatro vezes, e geralmente como aposto aos diversos substantivos com que descrevia a vida cristã46.
A mente de S. Paulo aparece assim impregnada pelo ideal da beleza e pelas aspirações supremas na idade
decrépita, muito mais ainda do que no vigor dos anos. O Apóstolo assim punha em xeque as previsões do
filósofo grego. - E qual a razão deste contraste? - É que justamente o Apóstolo percebia o sentido que a morte
tomou após Cristo, sentido que o homem antes de Cristo não podia perceber: Paulo já não considerava a morte
como fim da existência humana, mas como passagem para outra vida, muito mais rica e fecunda do que a
terrestre; por isto também, quanto mais próximo se achava da morte, tanto mais afirmava os valores nobres,
pois sabia que o seu definhar na vida terrestre era, na realidade, um rejuvenescimento para a vida definitiva.
Eis como a morte, para o cristão, importa um autêntico desabrochar, em vez de extinção da personalidade.
Ela pode e deve ser dita "transfiguração" do discípulo de Cristo.
2. Conscientes deste valor da morte, os antigos cristãos chamavam-na o seu natalício propriamente dito.
Bem se entende isto, pois a morte é a consumação do Batismo ou da regeneração sacramental iniciada na pia
46
Assim bela luta (2 Tm 4, 7); bela milícia (1Tm 1,18; 2Tm 3, 3) ; bela doutrina (1Tm 4, 6); belo testemunho (I Tm 3,7); bela lei (I Tm 1,8); belo
fundamento (I Tm 6,19); belo ministro (de Cristo) (I Tm 4,6)...
91 Escola Mater Ecclesiae
batismal e desdobrada lentamente nesta existência terrestre. É por isto que S. Inácio de Antioquia († 110
aproximadamente), condenado a ser lançado às feras no Coliseu de Roma, escrevia aos fiéis amigos que
tencionavam interceder junto às autoridades romanas para lhe evitar o martírio:
"É bom para mim morrer a fim de me unir ao Cristo Jesus... Aproxima-se o momento em que serei dado à
luz... Não ponhais empecilho a que eu viva, não queirais que eu não morra" (Aos Romanos 6, 1s).
O cristão, sim, só é homem perfeito na medida em que é filho do dia, da luz, da vida definitiva. E desta que
ele vive, trazendo-a arraigada em seu íntimo. Em conseqüência, a morte pode tornar-se meta ardentemente
desejada, como revela o mesmo S. Inácio:
"Escrevo a vós, possuído do amor da morte... ; há, em mim, uma água viva que fala e dentro de mim diz:
'Vem para o Pai"'(Aos Romanos 7,2).47
3. Estas verdades podem ser expressas ainda do seguinte modo: o cristão nasce em duas etapas. A primeira
ocorre após nove meses de gestação no seio materno; o bebê que então vem à luz, chora, porque perde o
aconchego e a proteção de que desfrutava no seio materno. Aos poucos, porém, vai-se adaptando ao novo
ambiente, adquire sua autonomia e encontra seu lugar ao sol; aí prepara novo tipo de aconchego, ao qual
espontaneamente se apega e do qual não quer ser desinstalado; vive então uma nova fase de sua gestação, já não
aos cuidados de sua mãe, mas sob os seus próprios cuidados; sim, o que nasceu do seio materno, foi um ser
ainda embrionário, cheio de potencialidades não desabrochadas; estas são desdobradas e atualizadas pelo
indivíduo no decorrer desta vida terrestre; é ele quem vai definir sua estatura física e espiritual ou sua
configuração definitiva. Quando o Pai o julga oportuno, chama-o para a mansão definitiva num momento dito
"morte", que na verdade é a segunda etapa do nascimento dessa pessoa; é então que acaba de nascer, pois se
acha com a sua personalidade acabada. Desta maneira vê-se mais uma vez que a morte, para o cristão, não é
propriamente morte, mas passagem para a plenitude da vida.
4. Deve-se mesmo dizer que, em seu sentido mais profundo, a morte, abraçada em união com a de Cristo, é a
resposta positiva e generosa que o cristão dá ao convite do Pai, em oposição à recusa que o primeiro homem
deu ao mesmo convite (incorrendo por isto na condenação à morte). Sereno, pois, e alegre caminha o cristão na
terra de encontro ao seu nascimento para a vida eterna. Na realidade, só há um tipo de angústia que o afeta: o
pecado, pois este significa justamente separação de Deus ou da verdadeira vida. Diante do pecado, sim, o
cristão ressente todo o horror que a perspectiva da morte física suscita no não cristão. Caso, porém, esteja isento
de pecado, o discípulo de Cristo não se deixa abalar pelas vicissitudes desta peregrinação nem pela própria
morte; sabe que nada disto lhe pode tirar o verdadeiro tesouro que ele traz em seu íntimo, vida que Deus lhe deu
e que só Deus, ou a sua infidelidade voluntária, podem extinguir. A convicção desta verdade levava o Apóstolo
a dizer:
"Quem nos separará do amor de Cristo? A tribulação, a angústia, a perseguição, a fome, a nudez, o perigo, a
espada?... Em todas estas coisas somos mais do que vencedores, graças àquele que nos amou. Pois estou
convencido de que nem a morte, nem a vida, nem os anjos nem os principados, nem as coisas presentes nem as
futuras, nem as potestades, nem a altura nem a profundidade nem qualquer outra criatura nos poderá separar do
amor que Deus tem para conosco em Cristo Jesus nosso Senhor" (Rm 8,35. 37-39).
Ou ainda:
"Tudo é vosso... tanto o mundo como a vida e a morte, o presente e o futuro. Tudo é vosso; vós, porém, sois
de Cristo, e Cristo é de Deus (Pai) " (1Cor 3,21-23).
S. Agostinho, de resto, faz notar muito bem que, se não fosse a precedente sorte de Cristo, o cristão de modo
nenhum ousaria tomar tal atitude diante da morte: "O cálice do sofrimento é amargo e salutar; se o médico não
o tivesse bebido primeiramente, o doente recearia tocá-lo" (Sermão 329,2).

PERGUNTAS
1) Qual a relação entre morte e pecado, segundo a S. Escritura ?
2) Que fez Deus para tirar o homem da condenação à morte definitiva?
3) Como o cristão que vive o seu Batismo, encara os valores desta vida e a própria morte?
4) Como se pode dizer que a morte é o natalício do cristão?
5) Qual é a desgraça de que o cristão deve realmente ter horror?

MÓDULO 32: A MORTE (II) - NOÇÕES COMPLEMENTARES


Impõe-se agora o estudo de algumas noções complementares relativas à morte no sentido cristão.

47
2 A água viva de que fala Inácio, é símbolo do Espírito Santo, conforme Jo 7,37-39.
92 Escola Mater Ecclesiae
Lição 1: Morte - Termo Final
1. A morte coloca o homem num estado definitivo e imutável. O homem fica sendo para sempre amigo ou
inimigo de Deus, conforme as disposições que tenha ao deixar este mundo; somente enquanto peregrina na
terra, pode merecer ou desmerecer o Sumo Bem.
Esta verdade se encontra no Evangelho: Jesus admoesta os discípulos a que vigiem, pois a atitude que
tiverem assumido nesta vida em relação a Deus, definirá a sua sorte definitiva. É o que incutem as parábolas
das dez virgens (Mt 25, 1-13), dos dez talentos (Mt 25, 14-30), do ricaço e de Lázaro (Lc 16, 18-31), o quadro
do juízo final em Mt 25, 31-46...
A mesma idéia ressoa na pregação dos Apóstolos; ver Gl 6, 10; 1Cor 15, 24; 2Cor 5, 10; 6,2; Hb 3, 13. A
tradição cristã a repetiu sempre, e o Concílio do Vaticano 1 (1870), suspenso antes de concluído, estava para
promulgá-la em suas definições teológicas, nos seguintes termos:
"Depois da morte, que é o remate da nossa caminhada, todos teremos logo de nos apresentar perante o
tribunal de Cristo, a fim de que cada qual receba a retribuição do que tiver feito de bem ou de mal quando
estava no corpo (2Cor 5, 10); depois desta vida mortal, não há mais possibilidade de penitência e justificação"
(Man si - Petit, Conc. t. LIII, 175).
2. Levanta-se agora a pergunta: não se poderia imaginar que, após a morte, a alma humana continue a
merecer e desmerecer, sujeita à mutabilidade que caracteriza a vida na terra? - A rigor, respondemos que sim. A
Palavra de Deus, porém, nos ensina que a morte é a entrada numa situação definitiva. S. Tomás de Aquino
procura ilustrar tal proposição do seguinte modo:
Até a morte, mas somente até a morte, a natureza humana se acha completa (alma e corpo) e dotada das
faculdades que concorrem para a sua evolução (sentidos, inteligência e vontade). Ora é lógico que a decisão do
homem relativa ao fim supremo seja tomada pelo homem em sua natureza completa. O homem não é espírito
só, mas espírito destinado a vivificar um corpo e desenvolver-se mediante o corpo.
Verdade é que, depois da ressurreição, o corpo estará de novo unido à alma. Por que então não poderá haver
mudança de opções após a ressurreição? - Respondemos dizendo que a re-união de corpo e alma após a morte é
algo a que a natureza hu mana não tem, por si mesma, direito; é dom gratuito de Deus. O corpo então não
servirá de instrumento mediante o qual a alma mude as suas inclinações; ao contrário, as condições do corpo se
adaptarão às disposições, boas ou más, da alma, em vez de as influenciar; os justos terão um corpo glorioso, ao
passo que os réprobos terão um corpo dito "tenebroso".
3. A irrevogabilidade de um destino é algo que nós, peregrinos na terra, dificilmente concebemos; tudo o que
conhecemos neste mundo, se nos apresenta como transitório; não temos a experiência do definitivo ou da
morte. Por isto é que, fora das Escrituras Sagradas, nunca, nas crenças religiosas da humanidade, se encontra a
noção de sorte póstuma irrevogável ou definitiva.
Entregues ao próprio raciocínio, o pagão e o filósofo foram, muitas vezes, levados a imaginar a vida humana
à semelhança do ritmo da natureza. Nesta a morte não parece ser definitiva, mas sempre seguida de nova vida;
ao inverno sucede regularmente novo nascimento da vegetação na primavera; ao ocaso cotidiano do sol segue-
se sempre nova aurora. Em conseqüência, o homem, considerando-se como parcela da natureza, julgou sua vida
sujeita ao ritmo do renascimento na carne mortal, destinada a recomeçar sua peregrinação na terra. A teoria da
metempsicose ou das reencarnações sucessivas, daí resultante, tomou mais de uma forma através da história.
Seu berço é a Ásia. Os hindus a professavam na religião dos Vedas; desta, a doutrina passou para o budismo.
Do Oriente, a metempsicose entrou no sistema de vários filósofos gregos: Pitágoras, Empédodes, Platão, os
neoplatônicos...Ainda hoje está muito em voga na Teosofia, no Esoterismo, no Espiritismo... O assunto e
explicitamente abordado no Módulo 7 do nosso Curso de Novíssimos (Escatologia).

Lição 2: A Universalidade da Morte e Exceções


Não há dúvida de que, segundo a S. Escritura, todos os homens estão sujeitos ao império da morte. Ver
Hb 9,27: "Foi estabelecido, para os homens, morrer uma só vez; após o quê, vem o juízo".
1 Cor 15,22: "Assim como todos morrem em Adão, todos recuperarão a vida em Cristo". Cf Rm 5,12.
Todavia o Apóstolo São Paulo afirma que serão dispensados da morte aqueles que estiverem vivos por
ocasião da segunda vinda de Cristo. Haverá, pois, exceção em favor deles. É o que se lê em :
1Cor 15, 51s: "Eis que vos digo um mistério. Nem todos morreremos, mas todos seremos transformados,
num instante, num abrir e fechar de olhos, ao som da trombeta final".
93 Escola Mater Ecclesiae
Vê-se que o Apóstolo, referindo-se ao último dia, distinguia duas categorias de cristãos: os que já tiverem
morrido, e os que ainda estiverem vivos; aqueles ressuscitarão, ao passo que estes terão seus corpos
transfigurados, sem passar pela morte: "nem todos morreremos, mas todos seremos transformados".48
1 Ts 4,15-17: "Dizemo-vos segundo a palavra do Senhor: nós, que vivemos, que somos deixados até a volta
do Senhor não teremos primazia sobre aqueles que estiverem mortos. O Senhor mesmo descerá do céu, quando
for dado um sinal, o grito do Arcanjo, o toque da trombeta divina, e os mortos ressuscitarão primeiro, pelo
poder de Cristo; a seguir nós, os vivos, os sobreviventes, seremos arrebatados com eles nas nuvens, de encontro
ao Senhor nos ares. E assim estaremos sempre com o Senhor".
De novo o Apóstolo distingue os mortos e os sobreviventes por ocasião da volta de Cristo: aqueles
ressuscitarão e estes, sem provar a morte, irão com os ressuscitados ao encontro de Cristo.
2Cor 5,1-3: "Sabemos que, se a nossa morada terrestre, esta tenda, for destruída, teremos no céu um edifício,
obra de Deus, morada eterna, não feita por mãos humanas. Tanto assim que gememos pelo ardente desejo de
revestir por cima da nossa morada terrestre a nossa habitação celeste - o que será possível, se formos
encontrados vestidos, e não nus".
Mais uma vez refere-se o Apóstolo à segunda vinda de Cristo. E diz que os fiéis poderão encontrar-se então
em duas condições: ou despidos (isto é, almas sem corpo, o que será o caso dos já falecidos) ou vestidos (isto é,
almas unidas aos respectivos corpos, o que será o caso dos sobreviventes).
A exceção, assim claramente admitida pelo Apóstolo, tinha certo significado outrora, quando se esperava
para breve a segunda vinda de Cristo. Em nossos dias, porém, já impressiona menos, visto que a ansiosa
expectativa se dissipou. Muito mais ênfase atualmente se deve atribuir ao encontro com Cristo no final da
peregrinação terrestre de cada indivíduo.

Lição 3: Conseqüências Práticas

3.1. As misérias desta vida


O fato de que a morte e seus precursores (doenças, misérias desta vida) se tornaram, depois de Cristo,
instrumento de Redenção e glória, inculca aos cristãos o valor não somente da morte, mas também dos
sofrimentos.
Aceite, pois, o cristão as misérias cotidianas (doenças, cansaço, penúria...) em união consciente com Cristo;
e tais misérias se lhe tornarão via para maior intimidade com Deus. Nenhuma é meramente casual. Elas podem
ser suportadas com tibieza e pouco mérito, mas também podem ser precioso elemento de santificação para
quem as abrace com generosidade e amor.

3.2. Assistência aos gravemente enfermos


É de enorme importância assistir a uma pessoa gravemente enferma enquanto ainda está lúcida; trata-se de
proporcionar-lhe os subsídios necessários para que morra no amor de Deus; o último ato consciente e livre,
anterior à morte, decide de todo o futuro póstumo desse indivíduo. Sem dúvida, o Senhor não falta ao
moribundo com auxílios especiais, afim de que atravesse com as devidas disposições tão importante etapa.
Registram-se casos de conversões maravilhosas no momento final desta peregrinação; a misericórdia de Deus,
derramando-se pacientemente sobre o pecador, move por fim moribundos empedernidos.

3.3. Morte correlativa ao tipo de vida


Muito temerário seria fazer da misericórdia divina um pretexto, mais ou menos consciente, para negligência
e tibieza na vida espiritual. É sábio crer que cada um morre como viveu. Quase cada ato do homem, no decorrer
desta vida, deixa uma marca ou um vestígio em sua personalidade; e a morte não faz senão manifestar
definitivamente esse tipo de personalidade do indivíduo. Por conseguinte, os últimos instantes não são algo de
essencialmente novo na vida do homem; mas, preparados pelas fases anteriores desta peregrinação, vêm a ser o
seu desabrochamento normal e a sua última expressão. Na morte a pessoa recapitula toda a sua vida e a entrega
ao Pai Celeste; ora, a menos de uma intervenção extraordinária de Deus, não pode recolher senão o que tenha
semeado dia-a-dia na terra. Os atos cotidianos, aparentemente transitórios, pela morte se tornam imperecíveis,
depondo para sempre em abono ou desabono do seu autor.
Surge então a pergunta:

3.4. Como nos preparamos para a morte?

48
São Paulo, ao falar dos acontecimentos finais, costuma referir-se apenas à sorte dos justos.
94 Escola Mater Ecclesiae
Respondemos que a melhor preparação para a morte é a vida de cada dia, vivida quando estamos lúcidos ou
precisamente quando a morte ainda parece distante. É nos dias bons que nos preparamos para os dias finais e
para a morte, e não apenas quando as faculdades mentais e físicas começam a desfalecer (pois então é mais
difícil pensar, ler, orar...). A ação de sedativos e analgésicos dificulta o raciocínio e obnubila a mente. A
tendência a afastar o pensamento da morte é paradoxal, pois na verdade "a morte é a única certeza que temos
desde a infância".
Cada qual viva como desejaria morrer, prestando atenção às coisas que realmente terão algum valor naquele
momento e distinguindo-as bem de bagatelas e ninharias, que nada significarão no momento final, mas que
muito empolgam e apaixonam no decorrer desta caminhada. Procure o cristão julgar tudo como Deus julga, ou
seja, a partir da eternidade; coloque-se assim na rota e na luz do definitivo, e a morte não será um susto nem
uma desinstalação. Assuma o cristão as provações desta vida como aprendizado para o instante terminal.
Trabalhe por deixar este mundo um pouco melhor do que o encontrou, pois este aspecto entrará na prestação de
contas que cada qual fará a Deus. Ame os irmãos com sinceridade e benevolência. E principalmente ore, pois o
contato com Deus cultivado na oração é a mais viva antecipação do grande encontro final.
É tradicional pedir a Deus que nos preserve da morte subitânea e imprevista. É para desejar que estejamos
tão maduros na fé que vamos conscientemente ao encontro dá morte. A nossa vida de cada dia é como um livro,
do qual escrevemos diariamente uma página; no fim da redação, é oportuno que tenhamos um espaço de tempo
e lucidez de espírito para rever esse livro, corrigir o que nele esteja errado ou inadequado, e ainda melhorar o
que precise de ser melhorado; assim o cristão poderá entregar aos pósteros o livro de sua vida emendado e
rematado - o que será, sem dúvida, um grande presente.
Possa ainda cada qual morrer reconfortado pelos últimos sacramentos, exclamando as palavras finais da
Escritura Sagrada: "Vem, Senhor Jesus!" (Ap 22,20).
A boa morte é fruto de graça especial ou do dom da perseverança final. Não é algo que se possa merecer,
mas algo que o Senhor concede, atendendo às orações dos seus fiéis. Merecer o dom da perseverança final seria
o mesmo que merecer a graça - o que é contraditório (a graça é sempre gratuita). A oração, porém, humilde e
confiante obtém o grande dom; por isto, pedir a graça de uma boa morte é coisa freqüentemente recomendada
pelos Santos e teólogos. Aliás, ao invocarmos diariamente a Virgem Santíssima na "Ave Maria", pedimos-lhe
que rogue por nós "agora e na hora da nossa morte".

PERGUNTAS
1) Após a morte, será possível mudar de opção ou converter-se para Deus? Explique bem.
2) Todos hão de morrer sem exceção?
3) Que podemos fazer no plano espiritual, em prol dos gravemente enfermos?
4) É recomendável afastar da mente o "pensar na morte"?
5) Como o cristão se pode preparar para a morte?

MÓDULO 33: O TRABALHO


O homem, cuja estrutura foi estudada nos Módulos 26 - 32, se exprime, dentre outras maneiras, pelo
trabalho. Este, em nossos tempos, ainda é mais focalizado e estudado do que em épocas passadas. Daí a
encíclica do Papa João Paulo 11 datada de 15/09/1981, que tem as iniciais Laborem Exercens ( O
Trabalhador). Este documento versa, por inteiro, sobre o trabalho humano, considerando as mais diversas
facetas da questão no mundo contemporâneo. O trabalho é tido como uma das características que distinguem o
homem das demais criaturas, cuja atividade, relacionada com a conservação da própria vida, não se pode
chamar trabalho (proêmio). Este também vem a ser a chave da questão social (n o 3). Nos tempos de Leão XIII a
questão do trabalho coincidia com a do relacionamento entre patrões e operários. Hoje em dia o mesmo
problema, reconsiderado, suscita conotações muito diferentes; com efeito, a humanidade se acha no fim de um
ciclo de civilização, que foi caracterizado pelo consumo do carvão e do petróleo, e está iniciando novo ciclo, no
qual a eletrônica, a automação e seus diversos produtos darão nova cadência às atividades do homem e
revolverão profundamente os tipos e as condições do trabalho humano (cf. no1).
Ciente disto, o Papa João Paulo 11 quis focalizar, do ponto de vista ético, o presente e o futuro do homem
mediante a consideração direta do trabalho humano.
Neste Módulo poremos em relevo os grandes traços da encíclica.

l. Trabalho Objetivo e Trabalho Subjetivo (no 5 e 6)


95 Escola Mater Ecclesiae
Uma das grandes novidades da encíclica (ao menos, no plano das formulações explícitas) é a distinção entre
trabalho no sentido objetivo e trabalho subjetivo. O primeiro seria o trabalho mercadoria, o trabalho como valor
impessoal ou como coisa. O trabalho no sentido subjetivo é entendido como obra de uma pessoa, que através da
sua luta cotidiana se vai realizando e vai cumprindo o grande desígnio do Criador. Este aspecto confere a todo e
qualquer tipo de trabalho uma dimensão valiosa; não se pode exaltar apenas o trabalho intelectual ou liberal
com detrimento do trabalho manual ou braçal. O Filho de Deus feito homem houve por bem trabalhar como
carpinteiro. Torna-se assim patente que o fundamento para determinar o valor do trabalho humano não é, em
primeiro lugar, o gênero de trabalho que se realiza, mas o fato de aquele que o executa ser uma pessoa. As
fontes da dignidade do trabalho devem ser procuradas sobretudo não na sua dimensão objetiva, mas, sim, na sua
dimensão subjetiva (no 6).
Isto não quer dizer que o trabalho humano não deva ser qualificado do ponto de vista objetivo (há trabalhos
de maior, e outros de menor responsabilidade). Mas retenha-se que o primeiro fundamento do valor do trabalho
é o próprio homem.
Disto se segue uma conclusão de natureza ética: o trabalho é para o homem, e não o homem para o trabalho.
Isto quer dizer que todos se devem empenhar para que o homem seja engrandecido através do seu regime de
trabalho, ficando excluída toda e qualquer forma de produção que reduza o homem a mero instrumento da
produtividade. Destas verdades se seguem outras:

2. Trabalho e Capital: O Problema (no 7)


Trabalho e capital têm estado em conflito desde os inícios da questão social. O capital mais de uma vez
sufocou o mundo do trabalho, reduzindo os operários a condições extorsivas e contrárias à dignidade humana.
Contra tal processo insurgiu-se o marxismo, apregoando a coletivização dos meios de produção, afim de que
pela transferência destes meios das mãos dos particulares para a coletividade, representada pelo Estado, o
trabalho humano fosse preservado da exploração. - A solução marxista, porém, é ilusória, pois o grupo de
detentores dos meios de produção que constituem o Estado, pode exercer um monopólio administrativo tal que
desrespeite os direitos fundamentais dos demais cidadãos. Deste modo, pois, o simples fato de os meios de
produção passarem para a propriedade do Estado, no sistema coletivista, não significa, só por si, a socialização
(ou a posse comunitária e justa) desta propriedade (n° 14).
Diante do problema, a Igreja apregoa: 1) a prioridade do trabalho sobre o capital; 2) o direito de todos à
propriedade particular, desde que se recordem de que todos os bens naturais têm destinação universal ou devem
servir ao bem de toda a comunidade.

3. Prioridade do Trabalho (no 12 e no 13)


A Igreja sempre ensinou a prioridade do trabalho sobre o capital. O trabalho é a expressão da grandeza e da
dignidade da pessoa humana; é também a continuação da obra do Criador. Além disto, verifica-se que o
trabalho, utilizando os elementos entregues ao homem pelo Criador, produz os seus instrumentos, cada dia mais
aperfeiçoados, incluindo os recursos da técnica. Estes instrumentos, cujo conjunto constitui o que se chama
capital, são subordinados ao trabalho, porque efetuados pelo trabalho. O capital nasceu do trabalho e é portador
das marcas do trabalho humano. É preciso, pois, pôr em relevo o primado do homem no processo de produção
ou o primado do homem em relação às coisas. O capital não é senão um conjunto de coisas, ao passo que o
homem, como sujeito do trabalho, independentemente do trabalho que realiza, é pessoa.
Esta visão lúcida teológica e, ao mesmo tempo, humanista é deturpada quando se considera o trabalho
unicamente segundo a sua finalidade econômica. Ocorre então o que se chama economismo ou materialismo;
tal erro afirma o primado dos valores materiais, colocando em posição subordinada à matéria os valores
espirituais e pessoais (o agir do homem, os valores morais e semelhantes). O economismo tem sua origem na
filosofia e na prática econômico-social do século XVIII, época em que começou a industrialização; esta visava,
antes do mais, a multiplicar as riquezas materiais, isto é, os meios, perdendo de vista o fim, ou seja, o homem, a
quem tais meios devem servir. Este erro ameaça ainda hoje a sociedade e não poderá ser suplantado se não se
instaurar entre os homens contemporâneos a firme convicção do primado da pessoa sobre as coisas e do
trabalho do homem sobre o capital (entendido como conjunto dos meios de produção). Cf. no 12 e 13.

4. Propriedade Particular (n? 14 e 15)


A Igreja defende o direito à propriedade particular, mesmo quando se trata dos meios de produção. Todavia
a Igreja observa que a propriedade particular tem uma finalidade social ou deve servir ao bem comum da
sociedade. Com outras palavras: os bens de propriedade particular não devem ser possuídos como fim ou para
possuir, nem devem ser possuídos contra o trabalho, pois o único título que legitima a sua posse é que eles
96 Escola Mater Ecclesiae
sirvam ao trabalho, e, servindo ao trabalho, tornem possível a participação de todos os homens nos bens que o
Criador deixou para todos. Neste contexto, não se vê por que condenar a socialização de certos meios de
produção, desde que haja condições oportunas e razões suasivas para tanto.
À luz destes princípios, percebe-se que inaceitável é o capitalismo rígido, que defende o direito à
propriedade privada dos meios de produção sem apontar para a necessidade de que o uso de tais bens sirva aos
interesses comuns. Contudo a rejeição do capitalismo liberal não implica recusa da propriedade particular. De
modo análogo, a socialização de certos meios de produção, como dito, não quer dizer automaticamente que a
sociedade venha a possuir em comum os meios de produção, pois não raro estes ficam em poder de um pequeno
grupo de homens que representam o Estado; estes não são os proprietários, mas procedem como se fossem os
detentores da propriedade; o capitalismo dos particulares torna-se assim o capitalismo do Estado e dos
governantes.

5 . Empregadores e Desemprego (no 8. 16-18)


1 . A encíclica Laborem Exercens formula, em termos novos, a distinção entre empregador direto e
empregador indireto.
"O empregador direto é aquela pessoa ou aquela instituição com as quais o trabalhador estipula diretamente
o contrato de trabalho segundo condições determinadas"( n o 16). "No conceito de empregador indireto entram
as pessoas, as instituições de diversos tipos, bem como os contratos coletivos de trabalho e os princípios de
comportamento que, estabelecidos por essas pessoas ou instituições, determinam todo o sistema sócio-
económico ou dele resultam "( no 17).
Compreende-se que o empregador indireto determine substancialmente um ou outro aspecto do contrato de
trabalho ou mesmo o comportamento do empregador direto. Principalmente o Estado, como grande legislador e
responsável pelo ritmo geral das empresas e dos contratos num país, é o empregador indireto por excelência.
Ao Estado, pois, compete vigiar especialmente para que se observem as normas da justiça nas relações entre
empregador direto e trabalhador. Muitas vezes o próprio Estado nacional está inserido numa rede de
dependências em relação a outros Estados ou a países altamente industrializados. Faz-se, pois, mister que se
evite a exploração que repercute nas próprias condições de trabalho dos cidadãos dos países pobres.
"Os países altamente industrializados e, mais ainda, as empresas que em vasta escala superintendem os
meios de produção industrial (as chamadas 'sociedades multinacionais ou transnacionais) ditando os preços
mais altos possíveis para os seus produtos, procuram ao mesmo tempo fixar os custos mais baixos possíveis
para as matérias-primas ou para os produtos semi-elaborados. Ora isto, juntamente com outras causas, dá como
resultado criar uma desproporção sempre crescente entre as rendas nacionais dos respectivos países...
Evidentemente isto não deixa de ter os seus efeitos na política local do trabalho e na situação dos trabalhadores
nas sociedades economicamente desfavorecidas.
O dador direto de trabalho que se encontra num sistema semelhante de condicionamentos, fixa as condições
de trabalho abaixo das objetivas exigências dos trabalhadores, especialmente se ele próprio quer tirar os lucros
mais elevados possíveis da empresa que dirige (ou das empresas que dirige), quando se trata de uma situação de
propriedade socializada dos meios de produção" (n? 17).
2. Nesta altura da reflexão, impõe-se a consideração do problema do desemprego. Este pode tornar-se
autêntica calamidade social, atingindo muitas vezes os jovens que, depois de se terem preparado por meio de
formação profissional adequada, vêem frustrada a sua vontade sincera de trabalhar no desenvolvimento da
comunidade. A verificação deste fato leva a preconizar o estabelecimento de fundos em favor dos
desempregados, a fim de que estes possam subsistir com as suas famílias; na verdade, também os
desempregados têm o direito à vida. Merece especial atenção um fato desconcertante de imensas proporções:
enquanto, por um lado, importantes recursos da natureza permanecem inutilizados, há, por outro lado, massas
imensas de desempregados e subempregados e multidões indigentes de famintos. Este fato demonstra que, tanto
no interior das comunidades políticas como nas relações entre estas a nível continental e mundial, ocorrem
falhas que devem ser reparadas (no 18).
Ainda um fenômeno significativo chama a atenção: o desemprego se dá também entre os intelectuais; o
número, sempre crescente, de pessoas que obtêm um diploma de estudos superiores, acarreta a falta de emprego
para muitas. O desemprego dos intelectuais ocorre quando a instrução não está orientada para os tipos de
serviço de que carece a sociedade, ou quando um trabalho que exige instrução profissional é menos bem pago
do que o trabalho braçal. É necessário cuide a sociedade de que não se desvalorize a instrução em grau superior,
enriquecimento importante da pessoa humana (cf. no 8).

6. O Trabalho da Mulher (no 19)


97 Escola Mater Ecclesiae
Voltando-se para a família, João Paulo II apregoa o chamado salário-família, "salário único, atribuído ao
chefe de família, e que seja suficiente para as necessidades da família, sem que a esposa seja obrigada a assumir
um trabalho remunerado fora do lar".
De modo geral, é necessário aplicar-se à revalorização das funções maternas, dos trabalhos que a estas
andam ligados e à necessidade de amor e carinho que têm os filhos. "Reverterá em honra para a sociedade o
tornar possível à mãe - sem pôr obstáculos à sua liberdade, sem discriminação psicológica ou prática e sem que
ela fique numa situação de desdouro em relação às outras mulheres - cuidar dos seus filhos e dedicar-se à
educação deles, segundo as diferentes necessidades da sua idade. O abandono forçoso de tais tarefas, por ter de
arranjar um trabalho retribuído fora de casa, é algo de não correto, sob o ponto de vista do bem da sociedade e
da família, se isto estiver em contradição ou tornar difíceis tais objetivos primários da missão materna" (no 19).
Valorizando as funções da maternidade, a encíclica está longe de se mostrar avessa ao trabalho da mulher
fora do lar. Ao contrário, aceita-o e pede não haja discriminação em detrimento da mulher, desde que esta se
ache habilitada para ocupar determinado emprego. Apenas o Papa deseja que a mulher não se veja obrigada a
pagar a própria promoção com a descaracterização da sua feminilidade e com detrimento da família, na qual a
mulher, como mãe, tem papel insubstituível (no 19). É para desejar, portanto, não seja menos valorizada do que
as outras a mulher que opta prioritariamente pelos deveres da maternidade e, por isto, não procura trabalho fora
de casa; seja, pois, o trabalho na sociedade estruturado de tal modo que a mãe de família obrigada a educar os
filhos não se veja constrangida a sair de casa para ganhar o pão cotidiano ou para completar o orçamento de
casa.

7. O Trabalho Agrícola (no 21)


O mundo agrícola e o trabalho nos campos, proporcionando à sociedade os bens necessários ao sustento
cotidiano, revestem-se de importância fundamental. As condições dos trabalhadores agrícolas são diferentes nos
diversos países do g lobo, não só por causa dos diversos graus de desenvolvimento da técnica agrícola, mas
também, e talvez mais ainda, por causa do insuficiente reconhecimento dos justos direitos dos trabalhadores
agrícolas.
O trabalho dos campos, além de ser fisicamente extenuante, é pouco apreciado socialmente, a ponto de se
sentirem os camponeses marginalizados pela sociedade; daí o êxodo dos mesmos, em massa, para as cidades,
onde as condições de vida são por vezes ainda mais desumanas. Mais: em certos países em via de
desenvolvimento, há milhões de homens que se vêem obrigados a cultivar as terras de outros e que são
explorados pelos latifundiários, sem esperança de... poderem chegar à posse nem sequer de um mínimo pedaço
de terra...
Não existem formas de proteção legal para a pessoa do trabalhador agrícola e para a sua família nos casos de
velhice, doença ou falta de trabalho. Longas jornadas de duro trabalho físico são pagas miseramente. Terras
cultiváveis são deixadas ao abandono pelos proprietários; títulos legais para a posse de um pequeno pedaço de
terra, cultivado por conta própria de há anos, são preteridos ou ficam sem defesa diante da 'fome da terra' de
indivíduos ou de grupos mais potentes (no 21). Também se deve mencionar o direito de co-gestão e o de livre
associação dos trabalhadores agrícolas como elementos cuja não observância corrobora as injustas condições
em que vivem os camponeses.
Diante de tais falhas, os homens de bem tomam consciência da necessidade de promover especialmente a
dignidade do trabalho agrícola, pelo qual o homem de maneira expressiva submete a terra recebida de Deus
como dom e afirma o seu domínio sobre o mundo visível. Cf. no 21.

8. O Trabalho dos Emigrantes (no 23)


Levem-se em consideração outrossim as pessoas que deixam a pátria de origem para procurar trabalho em
outro país. Este fenômeno assume proporções cada vez mais vultosas. Embora toque a todo homem o direito de
emigrar, tal realidade não deixa de acarretar situações que a ética cristã deve levar em conta; com efeito, é
preciso que o emigrante não seja constrangido, em terra estrangeira, a aceitar condições de trabalho injustas,
principalmente quanto confrontadas com as dos trabalhadores nativos do país que o hospeda; não seja
explorado financeira ou socialmente; não sofra discriminação por motivos de nacionalidade, religião ou raça.
Seria mesmo desejável que todo homem pudesse encontrar em sua pátria as condições de trabalho suficientes e
justas que lhe permitissem contribuir para o aumento do bem comum no seu próprio país.

9. Os Deficientes e o Trabalho (no 22)


98 Escola Mater Ecclesiae
Outro problema que se impõe a quem estuda o trabalho, é a situação dos deficientes. "Também os deficientes
são sujeitos plenamente humanos, dotados dos correspondentes direitos inatos, sagrados e invioláveis, que,
apesar das limitações e dos sofrimentos inscritos no seu corpo e nas suas faculdades; põem mais em relevo a
dignidade e a grandeza do homem. E, uma vez que a pessoa que tem quaisquer deficiências, é um sujeito
dotado de todos os seus direitos, deve facilitar-se-lhe a participação na vida da sociedade em todas as
dimensões e a todos os níveis que sejam acessíveis às suas possibilidades. A pessoa deficiente é um de nós e
participa plenamente da mesma humanidade que nós. Seria algo radicalmente indigno do homem e seria uma
negação da humanidade comum admitir à vida da sociedade e, portanto, ao trabalho somente os membros na
plena posse das funções do seu ser, porque, procedendo desse modo, se recairia numa forma grave de
discriminação: a dos fortes e sãos contra os fracos e doentes. O trabalho no sentido objetivo deve ser
subordinado, também neste caso, à dignidade do homem, ao sujeito do trabalho e não às vantagens econômicas"
(no 22).

10. Sindicatos e Greves (no 20)


1. Entre os direitos dos trabalhadores está o de se associarem em sindicatos, com a finalidade de defender os
justos interesses da sua vida profissional.
A experiência ensina que as organizações deste tipo são elemento indispensável da vida social não só no
setor dos operários da indústria, pois existem também os sindicatos dos agricultores e os dos trabalhadores
intelectuais, como existem os sindicatos dos empregadores.
Os sindicatos não são expoentes da luta de classe ou de luta contra os outros, mas, sim, protagonistas na luta
pela justiça social e pelos direitos dos trabalhadores em suas diversas profissões. O trabalho tem como
característica, antes de mais nada, unir os homens entre si e nisto consiste a sua força social: a força para
construir uma comunidade (nQ20).
É de notar que os justos esforços para garantir os direitos dos trabalhadores da mesma profissão devem
sempre levar em conta as limitações impostas pela situação econômica geral do país. As exigências sindicais
não podem transformar-se numa espécie de egoísmo de grupo ou de classe. A vida sócio-econômica é como um
sistema de vasos comunicantes, de modo que cada uma das atividades sociais que tenham como finalidade
salvaguardar os direitos dos grupos particulares, devem adaptar-se a tal sistema.
Neste sentido a atividade dos sindicatos entra indubitavelmente no campo da política, entendida como
prudente solicitude pelo bem comum. Todavia o papel dos sindicatos não é o de fazer política no sentido da
política partidária. Os sindicatos não se devem assemelhar a partidos em luta pelo poder, nem devem estar
subordinados aos partidos políticos.
2. A tutela dos justos direitos do trabalhador pode recorrer à tática da greve. Esta é legítima, como recurso
extremo e dentro dos devidos limites. Não se pode abusar da greve para fins políticos, nem se deve permitir que
a greve leve à paralisação de serviços essenciais da sociedade (transporte, alimentação, saúde, escola...); o bem
comum exige a salvaguarda da ordem sócio-econômica. Os trabalhadores, portanto, devem ter o direito à greve,
sem que sofram sanções pessoais por participarem da mesma.
Uma vez propostas as questões de ordem ética relacionadas com o trabalho, o S. Padre passa, na quinta parte
da encíclica, a descrever os principais traços da espiritualidade do trabalho.

11. Espiritualidade do Trabalho (no 24-27)


Se a Igreja julga seu dever pronunciar-se sobre o trabalho numa perspectiva ética, Ela também se sente
obrigada a promover a espiritualidade do trabalho, apta a ajudar todos os homens a se aproximar de Deus
através da sua labuta cotidiana.
Dois são os principais elementos de uma espiritual idade do trabalho:

11.1. Participação na Obra do Criador (no 25)


No primeiro capítulo do Gênesis, o homem encontra o primeiro evangelho do trabalho. Com efeito, o texto
bíblico aponta o trabalho como continuação da obra do Criador; para incutir a santidade do trabalho realizado
em seis dias seguidos de um dia de repouso, o autor sagrado apresenta o próprio Deus a observar a semana do
homem. Esta passagem bíblica (Gn 1,1-2,4a) não tenciona descrever a fenomenologia do surto das criaturas,
mas tem precisamente em mira chamar a atenção para o significado profundo do trabalho que o homem,
imagem e semelhança de Deus, realiza numa semana.
A consciência desta verdade é formulada mais de um a vez nos documentos do Concílio do Vaticano II, dos
quais vai aqui citado o seguinte trecho:
99 Escola Mater Ecclesiae
"Longe de pensar que as obras do engenho e do poder humano se opõem ao poder de Deus e de considerar a
criatura racional como rival do Criador os cristãos, ao contrário, estão bem persuadidos de que as vitórias do
gênero humano são um sinal da grandeza de Deus e são fruto do seu desígnio inefável. Mas, quanto mais
aumenta o poder dos homens, tanto mais se alarga o campo das suas responsabilidades, pessoais e
comunitárias... A mensagem cristã não afasta os homens da tarefa de construir o mundo, nem os leva a
desinteressar-se do bem dos seus semelhantes, mas, pelo contrário, obriga-os a aplicar-se a tudo isto por um
dever mais exigente ainda" (Constituição Gaudium et Spes n? 34;enc. Laborem Exercens no 25).

11.2. Participação na Páscoa de Cristo (no 26)


1. Esta verdade, segundo a qual o homem mediante o trabalho participa na obra do Criador, foi
particularmente posta em relevo por Jesus Cristo, "Ele próprio homem do trabalho, do trabalho artesanal como
Jesus de Nazaré" (no 26).
Jesus encara com amor o trabalho e em parábolas refere-se a diversos tipos da atividade humana: o pastor, o
agricultor, o médico, o semeador, o amo, o servo, o feitor, o pescador, o comerciante, o operário... Fala também
das atividades exercidas pelas mulheres, como alude também ao trabalho dos estudiosos.
O ensinamento de Cristo sobre o trabalho encontrou eco imediato na pregação do Apóstolo São Paulo: este
se dedicava à confecção de tendas (cf. At 18,3) e formulou o princípio categórico: "Se alguém não quer
trabalhar, abstenha-se também de comer" (2Ts 3,10).
Os dizeres do Novo Testamento relativos ao trabalho fundamentaram decisivamente a espiritualidade cristã
do trabalho; este, na sua expressão material e concreta, é ulteriormente destinado a promover a grandeza
interior ou espiritual do ser humano, pois ainda mais vale ser do que ter, como lembra o Concílio do Vaticano
II:
"O homem vale mais por aquilo que é do que por aquilo que tem. Do mesmo modo, tudo o que o homem faz
para conseguir mais justiça, uma fraternidade mais difundida e uma ordem mais humana nas relações sociais,
excede em valor os progressos técnicos. Com efeito, tais progressos podem proporcionar a base material para a
promoção humana, mas, por si sós, de modo nenhum são capazes de a realizar" (Const. Gaudium et Spes no
35; Laborem Exercens no 26).
2. O trabalho, seja manual, seja intelectual, acarreta inevitavelmente a fadiga. Ora esta há de ser considerada
pelo cristão à luz do mistério pascal de Cristo. O Senhor realizou a salvação da humanidade mediante o
sofrimento e a morte, aos quais se seguiu a ressurreição. Pois bem; suportando o que há de penoso no trabalho
em união com Cristo crucificado, o homem colabora, de algum modo, com o Filho de Deus na redenção da
humanidade. E, visto que a cruz é inseparável da glória da ressurreição, o cristão vislumbra nas próprias fadigas
do trabalho um princípio de vida nova ou de transfiguração ou a presença dos valores da eternidade. Também o
Concílio do Vaticano II pôs em relevo este significado ambíguo (cruz-ressurreição) do trabalho humano,
redigindo a seguinte ponderação:
"É certo que nos é lembrado que nada aproveita ao homem ganhar o mundo inteiro, se se perde a si mesmo.
A expectativa da nova terra, porém, não deve enfraquecer mas antes estimular a solicitude por cultivar esta
terra, onde cresce aquele corpo da nova família humana, que já consegue apresentar uma certa prefiguração em
que se vislumbra o mundo novo. Por conseguinte, embora se deva distinguir cuidadosamente o progresso
terreno do crescimento do reino de Cristo, todavia, na medida em que tal processo pode contribuir para a
melhor organização da sociedade humana, tem muita importância para o reino de Deus" (Const. Gaudium et
Spes no 39; enc. Laborem Exercens no 27).
Consciente destas verdades, o cristão procurará realizar o seu trabalho de cada dia tendo em mira não só o
progresso terreno, mas também a sua própria santificação (mediante configuração a Cristo) e o
desenvolvimento do Reino de Deus, que deve transparecer através das real idades terrestres modeladas pelas
mãos do discípulo de Cristo.
Eis, em poucas páginas, o conteúdo da notável encíclica Laborem Exercens, que é apresentada ao mundo "
cristãos e homens de boa vontade em geral - como contribuição para a solução dos graves problemas que
deixam a humanidade perplexa no limiar do terceiro milênio.

PERGUNTAS
1) Qual a distinção existente entre trabalho objetivo e trabalho subjetivo?
2) Como se relacionam entre si trabalho e capital? Qual dos dois tem a prioridade?
3) Como a encíclica vê o trabalho da mulher?
4) Como são avaliados os sindicatos e as greves?
5) Descreva os traços de uma espiritualidade do trabalho.
100 Escola Mater Ecclesiae

MÓDULO 34: TEOLOGIA FEMINISTA


Na Europa e nos Estados Unidos tem-se difundido uma bibliografia que propugna uma Teologia Feminista
(TF) ou, em alemão, Feministische Theologie. Procura, com argumentos filosóficos e psicológicos, remover o
caráter "machista" e dominador das clássicas concepções do Cristianismo para poder atribuir à mulher um lugar
condigno ou mesmo... extinguir as diferenças entre o homem e a mulher existentes na civilização de todos os
tempos. O movimento assim oriundo tem-se espalhado, afirmando teorias totalmente inéditas, que
revolucionam não somente a religião, mas também toda a cultura humana.
Eis por que apresentaremos, a seguir, o breve histórico dessa tendência e as suas principais concepções, às
quais se acrescentará um comentário.

Lição 1: Teologia Feminista: conceito e origem


Como diz a própria expressão, a TF tem ligação com os Movimentos Feministas leigos de nossos dias. Estes
apregoam não somente a igualdade de homem e mulher, mas até mesmo uma nova estruturação da sociedade.
Segundo Catharina Halkes, as mulheres "emancipadas" até agora queriam ser a metade do bolo da sociedade,
sendo os homens a outra metade; o Feminis" mo avançado, porém, afirma que se deve fazer um bolo totalmente
novo. O adjetivo "Feminista" exprimiria o protesto contra a atual estrutura patriarcal da sociedade ou contra o
domínio dos homens, que deverá ser removido por novo modelo de organização social.
Ora a Teologia Feminista transfere estas idéias para o setor religioso. Como fundamento e sinal do
predomínio dos homens, apontam-se a própria imagem de Deus, que unilateralmente vem representado pelos
símbolos masculinos do "Pai", do "Senhor", do "Rei"... É preciso começar por libertar o conceito de Deus da
sua masculinidade; somente então desaparecerá a "Igreja dos homens".
O feminismo leigo e a Teologia Feminista têm seu berço principal nos Estados Unidos. Foi aí decisivo o
surto do marxismo radical sob a forma de "Movimento de Libertação da Mulher" ou Women's Lib em 1968.
Segundo a mais conhecida pioneira desse Movimento, Kate Millett, a estrutura opressora da sociedade não
provém do capitalismo, mas do papel de liderança do homem; o capitalismo seria apenas uma conseqüência do
regime patriarcal, e não vice-versa; por conseguinte, para se obter o pleno desabrochamento da mulher, Kate
Millett , seguindo Friedrich Engels, apregoa a extinção da família, pois esta é considerada o sustentáculo da
sociedade patriarcal.
Ora as mais importantes teólogas feministas confessam ter sido fortemente influenciadas pelo pensamento
marxista e procuram apoio político no socialismo. Vão, porém, mais longe do que o marxismo, que elas
chegam a criticar, valendo-se sempre do esquema "opressores-oprimidas".
As idéias das feministas foram-se concatenando, de tal modo que se pode dizer que a data de nascimento da
Teologia Feminista foi o ano de 1973, em que apareceu o livro Beyond God the Father. Towards a
Philosophy of women's Liberation 49 (Boston 1973) de Mary Daly. Tal obra foi considerada clássica e sua
autora tida como "a ama de leite" da Teologia Feminista. - Esta, entre outras coisas, tomou a si a bandeira da
ordenação presbiteral de mulheres, principalmente nos Estados Unidos; não poucas Religiosas professas de
Congregações diversas assumiram posição de destaque em toda essa movimentação.
Na década de 1970 a TF tomou pé na Europa. Muito significativo, para tanto, foi o Conselho Mundial das
Igrejas,50 com seu "Departamento para a Cooperação de Homens e Mulheres", que se reuniu em Berlim no ano
de 1974 para dias de estudos sobre Sexismo; foi então que a Sr a Pauline Webb, membro do Comitê Central,
propôs a seguinte definição de Sexismo:
"Por Sexismo entendemos todo tipo de subordinação ou menosprezo de uma pessoa ou de um grupo em
virtude do sexo".
O Pastor Philip Potter, Secretário-Geral do Conselho Mundial das Igrejas, qualificou como demoníaca
qualquer forma de prevalência do homem. Aliás, estas declarações do Conselho Mundial das Igrejas haviam
sido preparadas pelo posicionamento do Conselho favorável à Teologia da Libertação desde 1968; esta e a
Teologia Feminista têm pontos comuns: ambas se fixam em aspectos parciais; sim, a Teologia da Libertação se
coloca no lugar dos pobres, geralmente identificados com o proletariado de Marx, ao passo que a Teologia
Feminista adota a experiência feminista como diretriz da sua síntese teológica.
Em conseqüência, acontece que, na Teologia Feminista, a palavra "Teologia" tem significado particular e
impróprio; já não é uma reflexão lógica e coerente sobre Deus, como na clássica Teologia, mas "um agir

49
Para além de Deus o Pai. Em direção de uma Filosofia de Libertação da Mulher.
50
Organização protestante e ortodoxa, não católica.
101 Escola Mater Ecclesiae
inventivo e improvisado, menos substancioso e mais ambíguo" (Dra. Catharina Halkes, Gott hat nicht nur
starke Söhne. Deus não tem apenas filhos fortes, pp.36.73). Por isto algumas representantes da TF preferem
falar de Teo-fantasia a professar Teo-logia (discurso lógico a respeito de Deus).
Os círculos protestantes foram os primeiros a adotar a TF; transmitiram-na aos católicos especialmente
através de duas mulheres convertidas do protestantismo ao Catolicismo: Christa Meves e Horst Bürkle. Em
1977 a Sra. Catharina Halkes conseguiu uma cátedra na Universidade Católica de Nimega (Holanda) para
lecionar "Feminismo e Cristianismo". O Movimento se expandiu rapidamente, lançando livros, artigos e
realizando Jornadas de Estudos periodicamente: apresenta atualmente matizes diversos, pois há teólogas
feministas que querem permanecer dentro dos moldes do Cristianismo, como há algumas que abandonaram a fé
cristã como sendo um dado patriarcal, do qual nada se salva; a demarcação entre uma e outra corrente é um
tanto indistinta, como reconhece a teóloga Ursula Krattiger: "Quem se tornou feminista, só pode viver na
fronteira do mundo atual , onde já não é importante saber 'se estou dentro' ou 'se já estou fora"'. Mary Daly já
não calcula o tempo a partir do nascimento de Cristo como sendo "anos do Senhor", mas adota nova contagem:
a dos "anos das mulheres". Essas teólogas se comprazem em afirmar que estão a caminho e não pretendem
apresentar algum sistema teológico fechado; "aonde o caminho leva, elas mesmas não o sabem", conforme
Ursula Krattiger.

Lição 2: O Andrógino:51 dado fundamental do Feminismo


Não se pode entender a TF se não se conhecem um pouco as idéias fundamentais do Feminismo
contemporâneo. Procuremos, pois, esboçá-las.
O Feminismo tem afinidade com a corrente marxista, na qual Friedrich Engels propunha a tese de que na
pré-história o regime era matriarcal; a mãe predominava. Só posteriormente as posições se inverteram em favor
do regime patriarcal; no futuro deveria ocorrer plena equivalência do homem e da mulher, de modo que
qualquer tipo de predomínio estaria abolido. Afim de consegui-lo, Engels apregoava a extinção da família, a
mesma inserção do homem e da mulher no processo de trabalho, e a educação dos filhos por parte do Estado.
Não haveria oposição a este projeto da parte da natureza humana, pois, segundo Marx, o homem é apenas o
produto de relações sociais; é a educação, é o ambiente que forma o homem de maneiras muito variáveis.
Este modo de pensar foi ulteriormente elaborado pelo psicólogo Ernest Bornemann, que se pôs a serviço da
fundamentação do Feminismo, como Karl Marx se pusera a serviço do proletariado. Julga que é preciso
restaurar o pretenso regime matriarcal das origens, abolir a monogamia e a propriedade particular. A gravidez
deverá ser assumida pela tecnologia, e as diferenças corporais entre o masculino e o feminino hão de ser
reduzidas ao mínimo. À sociedade sem classes de Marx corresponderia a sociedade sem bissexualidade: " Uma
não pode ser atingida sem a outra", escreve Bornemann.
O apagamento das características masculinas e femininas e a permuta dos papéis do homem e da mulher na
sociedade vêm sendo mais e mais acentuados, de acordo com a proposição de Simone de Beauvoir: "Ninguém
vem ao mundo como mulher, mas as pessoas tornam-se mulheres".
A extinção das diferenças entre homem e mulher deve realizar-se na educação dos filhos, no trabalho
doméstico e nas áreas profissionais. Todo indivíduo deve realizar em si igualmente os predicados que até agora
eram tidos como tipicamente masculinos e tipicamente femininos; o ideal é o andrógino!
Verdade é que a expressão "andrógino" é evitada por várias feministas. Por exemplo, Rosemary Ruether
julga que tal palavra ainda admite indiretamente a existência do tipicamente masculino e do tipicamente
feminino; melhor seria, segundo a escritora, falar de "um todo psíquico" ou de "total idade" (wholeness). -
Outras feministas rejeitam o modelo do andrógino, porque dão nítida preferência às características femininas;
estas seriam muito mais valiosas do que as masculinas. Herbert Marcuse, que as feministas muito citam, opõe o
princípio feminino do sentimento ao princípio masculino do fazer ou produzir; os sentimentos femininos assim
privilegiados seriam a receptividade, a sensibilidade, a não violência, a delicadeza.
Todas estas posições convergem entre si por rejeitarem a tese de que o homem e a mulher se devem
complementar mutuamente. Cada tentativa de complementar ou de distinguir os dois pólos - o masculino e o
feminino - redundaria inevitavelmente em fomentar o patriarcado. A aversão às notas sexuais que a natureza
apresenta, traduz-se em luta contra a instituição da família e em favor do aborto.
O pensamento feminista progrediu ulteriormente, reivindicando para si uma cultura própria muito variegada,
com suas revistas, livrarias, clínicas, pensões, etc.
Mais: entre as feministas têm tomado vulto as lésbicas, a quem é atribuído papel importante no processo
encetado, ocupando às vezes a frente dos movimentos feministas; um slogan norte-americano afirma que "o

51
Andrógino vem do grego: anén andrós = homem; gyné, gynaikos = mulher Traduzir-se-ia por "homem-mulher".
102 Escola Mater Ecclesiae
feminismo é a teoria e o lesbianismo é a prática". Embora a maioria das feministas não compartilhe esse modo
de viver, consideram-no com certa complacência. Também se deve registrar a afinidade do Feminismo com o
Partido Verde. Está também muito próximo do movimento dito "Nova Era" (New Age), que tem sua mística e
seu "profetismo"; uma das mensageiras de New Age - Fritjof Capra - louva o Feminismo como sendo a
expressão mais autêntica da Nova Era.
Em suma, o Feminismo extremado vem a ser uma contracultura, com tendência a reestruturar toda a
sociedade. Principalmente a rejeição do que existe, o caracteriza, sem que possa oferecer um substitutivo muito
concreto. Assim é certo que repele como Sexismo qualquer diferenciação entre os sexos. Todo domínio de
pessoa sobre pessoa deve desaparecer,... mas não se sabe bem em favor de quê ...

Lição 3: Mary Daly, a mentora da TF


A mais conhecida e comentada teóloga feminista é a ex-freira Mary Daly, tida como luminar da nova
corrente. Começou a expor seu pensamento depois do Concílio do Vaticano II no livro The Church and the
Second Sex (A Igreja e o Segundo Sexo), New York 1968. Segue a orientação de Simone de Beauvoir e do
existencialismo francês. Como sua mestra, ela também afirma que ninguém é mulher por nascença, mas as
pessoas tornam-se mulheres. Será preciso, pois, renunciar ao conceito estático de natureza humana em prol de
uma visão evolucionista do ser humano no mundo, visão apregoada por Teilhard de Chardin; não haveria uma
imagem de homem ou de mulher oriunda do próprio Criador; por isto a realidade está sempre em evolução sem
que se saiba por que etapas ainda há de passar; a própria biologia está sujeita à mudança dos tempos; é a
sociedade "machista" que traça a imagem típica e definida da mulher; o que se pode afirmar, é apenas que a
mulher quer ser independente e procurar de modo criativo a sua própria realização. A "mulher eterna" de
Gertrud von Le Fort é um demônio, que tem de ser expulso ou exorcizado.
A visão evolutiva é aplicada também à Igreja, sujeita a constantes mudanças. Daly estima a encíclica "Pacem
in Terris" e os documentos do Concílio do Vaticano II, dos quais ela deduz a extinção de todas as diferenças
entre o homem e a mulher, sem levar em conta as passagens conciliares que mencionam as respectivas
peculiaridades. Segundo Daly, o Concílio terá colocado o ponteiro da Igreja a zero hora para começar nova
fase; mas Paulo VI atrasou o relógio.
A exegese bíblica da Sra. Daly é passional; joga São Paulo contra Jesus e São Paulo contra São Paulo; a
devoção a Maria merece a sua condenação, pois propõe à mulher um ideal inatingível, que humilha a mulher.
Uma crítica pesada é por Daly dirigida à habitual concepção de Deus: a autora não aceita o conceito de um
Deus Todo-Poderoso e imutável, criador de imutável ordem de coisas.
Anos mais tarde ou após 1973, Mary Daly publicou duas outras obras, em que rompe definitivamente com o
Cristianismo; este lhe parece irreformável ou irremediavelmente errôneo; assim como não se pode traçar um
triângulo quadrado, assim não se pode corrigir a linguagem do Cristianismo: "Se Deus é um Pai no seu céu e
reina sobre o seu povo, é natural que a sociedade seja dominada pelos homens". O sexismo do Cristianismo
revela-se também na imagem de Cristo, imagem masculina que exclui a mulher. A "Cristalologia" repercute na
devoção a Maria, a mulher sujeita a Cristo; o Cristianismo assim acorrentou a antiga deusa-mãe das mitologias.
O caráter machista do Cristianismo é ameaçador para o mundo, pois favorece o recurso à violência. Em
conseqüência, Daly conclama todas as mulheres para realizarem a castração da linguagem e das imagens que
exprimem a submissão da mulher; essa castração é um exorcismo e também uma forma de matar Deus.
Daly não acredita mais num Deus pessoal, isto é, dotado de inteligência e amor; professa o panteísmo. A
palavra "Deus" não seja tida como substantivo, mas como verbo, o verbo ser, no qual nós tomamos parte. Em
conseqüência, aos seres humanos podem-se atribuir predicados divinos.
Mais: rejeitando a idéia de que o homem e a mulher se complementam mutuamente nos planos físico e
psíquico, Daly é passional defensora do lesbianismo. As feministas unidas entre si em irmandade formam uma
anti-Igreja.
Em 1978 Mary Daly deu mais um passo no seu itinerário filosófico, publicando o livro Gyn-Ecology. 52
Nesta obra ela manifesta ódio a tudo o que é masculino; todos os nomes e pronomes masculinos são
substituídos por femininos; escarnece a Cruz de Cristo como instrumento de tortura e contrapõe-lhe a feminina
"Árvore da Vida". Adota o símbolo da aranha; como a aranha, as feministas têm o dever de cobrir o mundo
inteiro com a sua teia e tender para o centro dessa teia, que tudo governa, e a partir do qual elas podem dizer:
"Eu sou". Em lugar de oração, Daly fala da Teologia da Aranha ou da Caminhada da Aranha para o centro da
sua teia ou para o centro do mundo.

52
Neste título gyn lembra gyné, mulher em grego.
103 Escola Mater Ecclesiae
Em 1984 Daly publicou mais um livro - Pure Lust (Puro Prazer) -, em que exalta o prazer como plenitude
do ser e consumado poder!

Lição 4: Teologia Feminista: os principais pontos


As teólogas feministas confessam estar ainda elaborando o seu sistema teológico. Todavia alguns princípios
sobressaem de suas obras. A seguir, apresentá-los-emos tais como se depreendem de três autoras que, à
diferença de Mary Daly, tencionam ficar dentro dos quadros do Cristianismo: Catharina Halkes, Elisabeth
Moltmann-Wendel e Rosemary R. Ruether.

4.1. Antropologia
Como se percebe, a TF é, mais do que outra coisa, uma antropologia relacionada com o Transcendental. A
concepção básica é a do andrógino, que é tido como subjacente a todo indivíduo humano e que reúne em si o
masculino e o feminino. A palavra androginia é evitada pelas teólogas feministas, que preferem falar de
"totalidade" ou "conjunto". Halkes entende, por este vocábulo, a integração das polaridades (homem-mulher,
espírito-corpo) numa unidade pessoal. Por conseguinte, rejeitam a fórmula: "O homem e a mulher têm o mesmo
valor, mas de maneiras diferentes e complementares" ; em vez de complementação mútua do homem e da
mulher, pleiteiam a autonomia de cada indivíduo; a complementaridade, como quer que seja concebida, leva à
subordinação da mulher. Qualquer hierarquização, qualquer relação de submissão é o próprio Mal. A diferença
sexual (em que o masculino acaba predominando) é responsável por outras formas de subordinação ou
hierarquização: homem superior à natureza, Deus mais perfeito do que as criaturas, dirigentes da sociedade e
simples cidadãos... Subordinação significa depreciação. Por isto também as teólogas feministas rejeitam a
distinção entre corpo material e alma espiritual, devendo aquele obedecer às aspirações desta. Espírito e matéria
seriam apenas o interior e o exterior da realidade corpórea. Em conseqüência, não existe alma imortal ou
imortalidade da alma. O controle do corpo e dos seus impulsos por parte da inteligência e da vontade é uma
forma de violência.
Como dito, também é típico das teólogas feministas rejeitar o primado do raciocínio, que formula verdades
perenes. Mais importante, para elas, é a experiência; esta gera a "Teo-fantasia", em lugar da "Teo-logia". A vida
tem que ser reconhecida como ela é vivida, sem que se estabeleça uma dicotomia entre o espírito e seus
ditames, de um lado, e os anseios das paixões e dos sentidos, de outro lado. Todo tipo de controle é vestígio de
masculinidade ou de estrutura patriarcal; por isto tem que desaparecer.

4.2. Relacionamento com a "Natureza"


A Teologia Feminista interessa-Se também pelo relacionamento com a natureza, cultivando o Eco-
Feminismo. A depredação da natureza hoje verificada tem suas raízes em Gn 1,28, onde o Senhor entrega ao
homem o domínio da terra; esta entrega ao dominador implica depreciação da terra. Por conseguinte, ponha-se
de lado a idéia de que o homem é a coroa da criação; as criaturas irracionais que nos cercam, não são objetos,
mas são sujeitos conosco; é preciso que nos sintamos solidários com nossa mãe, a Terra. Quem sabe que é parte
do todo que é a natureza, já não aspira à imortalidade pessoal; o todo, o conjunto, e não o indivíduo, é que não
tem fim; dele procede o homem e para ele volta.
Passemos agora a

5. Reflexões críticas
5.1. A Antropologia da TF
1. A tese de que todo ser humano encerra em si aspectos masculinos e aspectos femininos pode valer-se da
psicologia das profundidades de Carl Gustav Jung; este mestre ensina que todo indivíduo deve integrar em si
valores do outro sexo: a mulher integra o animus e o homem a anima.
Todavia é certo que todo indivíduo, até as mínimas células do seu organismo, é marcado pela masculinidade
ou pela feminilidade. As diferenças entre homem e mulher não são apenas evidentes no momento da
propagação da espécie, mas vão muito mais a fundo; toda a realidade psicossomática de cada indivíduo é
caracterizada por essa diferença fundamental. - O próprio Carl Gustav Jung (cujas idéias são discutidas por
outros psicólogos) reconhece as diferenças sexuais do homem e da mulher e não pretende extinguir a identidade
singular de cada sexo.
De resto, os psicólogos se comprazem em estudar as peculiaridades sexuais e mostram minúcias muito
interessantes. Assim, segundo Philipp Lersch, o homem é caracterizado pela "ex-centricidade", simbolizada por
uma linha que parte do íntimo do sujeito e se lança no mundo; ao contrário, a mulher é definida pela
centralidade, simbolizada por uma linha circular que se vai recolhendo nu m ponto central. Esta central idade
104 Escola Mater Ecclesiae
faz que a mulher tenha mais facilidade para a apreensão dos conjuntos ou do todo e tente expandir seus talentos
ao redor de si no mesmo plano, sem criar a pirâmide do poder.
Segundo o Cristianismo, o homem e a mulher não são apenas produtos transitórios da evolução cósmica,
mas criaturas de Deus sábio, que quis o masculino e o feminino como tais: "Deus criou o homem à sua imagem;
à imagem de Deus Ele o criou; homem e mulher Ele os criou... Deus viu tudo o que tinha feito; era muito bom"
(Gn 1,27.31). O homem e a mulher são imagem de Deus, desfrutando do mesmo valor, mas não da mesma
maneira. Quem quer extinguir as diferenças do masculino e do feminino, extingue a própria natureza humana,
que não é um neutro assexuado.
2. Um sinal da fragilidade dos princípios das teólogas feministas é a sua complacência para com o
lesbianismo. Este significa a extinção da espécie humana; sem complementaridade sexual, não há futuro para a
humanidade. A família, na qual o masculino e o feminino se encontram como tais num convívio enriquecedor
para ambas as partes, não pode ser alijada sem prejuízo para a espécie hu mana. O homem precisa da mulher, e
vice-versa; são as diferenças sexuais que provocam a atração mútua do homem e da mulher e ocasionam uma
comunhão de interesses e valores, à diferença da autonomia andrógina, que se opõe à colaboração harmoniosa.
É na família que se exprimem por excelência a excentricidade do homem e a centralidade da mulher; esta,
como mãe, é naturalmente voltada para os filhos e o lar, enquanto o homem procura fora de casa o sustento dos
seus; o homem tende a ser a cabeça da família e a mulher o coração, embora estes papéis possam, na vida
moderna, ser atenuados em favor de uma certa equiparação de tarefas. A propósito veja-se a Constituição
Gaudium et Spes do Concílio do Vaticano II, §§ 48-51, onde é freqüentemente citada a encíclica Casti
Connubii de Pio XI (1930).
3. À subordinação que São Paulo atribui à esposa frente ao marido (cf. Ef 5,21"33), corresponde uma
subordinação do homem à mulher, pois é esta que educa e forma o homem, quando o tem em seus braços e ao
seu lado nos primeiros anos de vida. É o que lembra o Papa João Paulo II na sua exortação Apostólica sobre a
Dignidade da Mulher no 18:
"O ser genitores - ainda que seja comum aos dois - realiza-se muito mais na mulher especialmente no
período pré-natal. É sobre a mulher que recai diretamente o peso deste comum gerar que absorve literalmente as
energias do seu corpo e da sua alma. É preciso, portanto, que o homem seja consciente de que contrai, neste seu
comum ser genitores, um débito especial para com a mulher. Nenhum programa de paridade de direitos das
mulheres e dos homens é válido, se não se tem presente isto de modo todo essencial...
A educação do filho, globalmente entendida, deveria conter em si a dúplice contribuição dos pais: a
contribuição materna e a paterna. Todavia a materna é decisiva para as bases de uma nova personalidade
humana".
4. De resto, subordinação não significa depreciação. Sem hierarquia, não pode haver sociedade; é o bom
andamento mesmo da vida social que pede haja direção e governo promulgando leis justas; esta estrutura nada
tem que ver com as diferenças entre masculino e feminino. A afirmação paulina de que em Cristo não há
homem nem mulher (cf. Gl 3,28), há de ser entendida no respectivo contexto: o Apóstolo fala do Batismo e dos
seus efeitos, que enriquecem com a graça de Deus o homem e a mulher indiferentemente. Aliás, o próprio
Apóstolo incute a diferença de funções na sociedade e na Igreja, quando propõe a imagem de um corpo, cujos
membros precisam uns dos outros, sem que possa haver menosprezo de algum (cf. l Cor 12,12-27).
De resto, o poder da mulher na sociedade tem sido mais e mais exaltado na bibliografia dos últimos tempos.
Com razão a mulher assume papéis sempre mais salientes na vida pública. Às vezes tem-se a impressão de que
as feministas querem simplesmente copiar o modelo negativo do homem machista e dominador, como se
inconscientemente estivessem sofrendo de um complexo de inferioridade.
5. Além do mais, a TF cai em contradição quando, de um lado, apregoa a mansidão e os afetos da mulher
como valores principais e, de outro lado, propugna o aborto: o seio materno torna-se assim campo de batalha e
morte. Não se poderia conceber mais brutal dominação de um indivíduo sobre outro, dominação que
precisamente a TF diz rejeitar. À mulher compete justamente segurar o braço do homem, cuja cabeça fria e
calculista pode muitas vezes cometer desatinos, desatinos que só o coração da mulher autenticamente feminina
consegue impedir.
6. A orientação do corpo e de seus afetos por parte da alma não pode ser tida como atitude de violência.
Caso não exista, o ser humano se torna escravo de suas paixões e caprichos irracionais. É a alma humana
espiritual e imortal que configura a personalidade, imprimindo seus traços à respectiva corporeidade.

5.2. Relacionamento com a "Natureza"


105 Escola Mater Ecclesiae
A estima da natureza irracional não é bandeira específica dos ecologistas contemporâneos, mas é antigo
patrimônio cristão. São Francisco de Assis (+1227) é, por exemplo, o grande cantor da beleza das criaturas que
cercam o homem: "Irmão Sol, Irmã Lua, Mãe Terra..." são expressões suas.
O preceito, do Criador, de dominar a terra não implica deterioração ou destruição da natureza.
O mundo não é divino nem se identifica com a Divindade, como pretende o panteísmo. O culto da "Mãe-
Terra" significaria o retorno à mitologia pagã.
A exaltação da natureza na TF acarreta uma degradação do ser humano, que Mary Daly coloca no mesmo
plano que cães, gatos, vacas e tartarugas.
Em suma, o amor da TF pela natureza vem a ser a negação da identidade de cada criatura e a rejeição do
plano do Criador. O homem - e cada indivíduo em particular - tem a vocação para
comungar com a felicidade do próprio Deus Uno e Trino na vida futura: esta sua dignidade pessoal não pode
ser reduzida a normas ecológicas.
As ponderações até aqui propostas evidenciam quão distante está a TF da doutrina cristã; o diálogo com as
suas representantes é muito difícil porque há divergências básicas. A restauração do mito do andrógino (que as
mais radicais representantes nem sequer aceitam) lembra a gnose dos séculos II/III.

PERGUNTAS
1) Segundo o Cristianismo, as diferenças entre o masculino e o feminino têm sentido?
2) Como se caracteriza a psicologia masculina? ... E a feminina... ?
3) Como entender o pensamento de S. Paulo em Gl 3,28?
4) É justificado o domínio das paixões por parte do próprio indivíduo?
5) Qual a posição católica frente á Ecologia ?

A PALAVRA DA FÉ
(Catecismo da Igreja Católica)

DEUS É PAI
238. A invocação de Deus como Pai é conhecida em muitas religiões. A divindade é muitas vezes
considerada como pai dos deuses e dos homens. Em Israel, Deus é chamado de pai enquanto Criador do mundo.
Deus é Pai, mais ainda, em razão da Aliança e do dom da Lei a Israel, seu 'filho primogênito' (Ex 4,22). É
também chamado de Pai do rei de Israel. Muito particularmente ele é 'o Pai dos pobres', do órfão e da viúva,
que estão sob a sua proteção de amor.
239. Ao designar a Deus com o nome de "Pai", a linguagem da fé indica principalmente dois aspectos: que
Deus é origem primeira de tudo e autoridade transcendente, e que ao mesmo tempo é bondade e solicitude de
amor para todos os seus filhos. Esta ternura paterna de Deus pode também ser expressa pela imagem da
maternidade, que indica mais a imanência de Deus, a intimidade entre Deus e a sua criatura. A linguagem da fé
inspira-se assim na experiência hu mana dos pais (genitores), que são de certo modo os primeiros
representantes de Deus para o homem. Mas esta experiência humana ensina também que os pais humanos são
falíveis e que podem desfigurar o rosto da paternidade e da maternidade. Convém então lembrar que Deus
transcende a distinção humana dos sexos. Ele não é nem homem nem mulher, é Deus. Transcende também à
paternidade e à maternidade humana, embora seja a sua origem e a medida: ninguém é pai como Deus o é.
IGUALDADE E DIFERENÇA QUERIDAS POR DEUS
369. O homem e a mulher são criados, isto é, são queridos por Deus: por um lado, em uma perfeita
igualdade enquanto pessoas humanas, e por outro, no seu ser respectivo de homem e de mulher. 'Ser homem',
'ser mulher' é uma realidade boa e querida por Deus: o homem e a mulher têm uma dignidade inamissível que
lhes vem diretamente de Deus, seu Criador. O homem e a mulher são criados em idêntica grande dignidade, 'à
imagem de Deus'. No seu 'ser-homem' e seu 'ser-mulher', refletem a sabedoria e a bondade do Criador.
370. Deus não é de modo algum à imagem do homem. Não é nem homem nem mulher. Deus é puro espírito,
não havendo nele lugar para a diferença dos sexos. Mas as perfeições do homem e da mulher refletem algo da
infinita perfeição de Deus: as de uma mãe e as de um pai e esposo".

MÓDULO 35: A DIGNIDADE DA MULHER


Um tratado de Antropologia não pode deixar de considerar explicitamente a mulher como tal numa época
em que ela mais e mais se impõe à humanidade por seus talentos e suas atividades.
A nossa abordagem consistirá em transmitir o conteúdo de dois documentos do Papa João Paulo II: o
primeiro será a Carta Apostólica sobre a Dignidade da Mulher, datada de 15 / 08 / 1988, de índole
106 Escola Mater Ecclesiae
marcadamente teológica. O outro documento será a Cana do Papa às Mulheres, com data de 29 / 06 / 1995, de
tipo mais coloquial e parenético.

A CARTA "MULIERIS DIGNITATEM"


1. Introdução no 1-2
O Papa João Paulo II começa por observar que a dignidade e a vocação da mulher, sempre presentes ao
pensamento cristão, têm sido recentemente consideradas com especial atenção. Entre outros testemunhos, cita a
Mensagem Final do Concílio do Vaticano II:
" A hora chegou em que a vocação da mulher se realiza em plenitude, a hora em que a mulher adquire no
mundo uma influência, um alcance, um poder jamais alcançados até agora. Por isto, no momento em que a
humanidade conhece uma mudança tão profunda, as mulheres iluminadas pelo espírito do Evangelho muito
podem ajudar a que a humanidade não decaia " (Acta Apostolicae Sedis 58, 1966, 13s).53
Dentro dessa linha de estima que a Igreja vem consagrando à mulher, está a Declaração de Santa Teresa de
Jesus e Santa Catarina de Sena como Doutoras da Igreja em 1970 por parte de Paulo VI. 54 Mais recentes
documentos da Igreja têm manifestado o desejo de que se aprofundem as premissas antropológicas e teológicas
da dignidade da mulher. Ora precisamente fazendo eco a tais anseios é que se situa a presente Carta Apostólica.

2. Mulher-Mãe de Deus (Theotókos) (no 3-5)


Na plenitude dos tempos, diz o Apóstolo, Deus enviou o seu Filho ao mundo nascido de uma mulher (cf. Gl
4,4). Isto nos mostra que no ponto-chave da história da salvação se dá um acontecimento capital em que entra a
figura de uma mulher. O Apóstolo não diz o nome "Maria", mas, sim, "mulher", lembrando as palavras do
Proto-Evangelho: "Porei inimizade entre a serpente e a mulher..." (Gn 3, 15). " Precisamente essa mulher está
presente no evento salvífico central, que decide da plenitude dos tempos; esse evento realiza-se nela e por meio
dela" (no 3).
É de notar que a vinda de Deus ao mundo e a revelação do plano eterno de salvação dizem respeito a toda a
humanidade. Sim; todos os homens, qualquer que seja a sua crença religiosa, procuram uma resposta para as
suas questões fundamentais ("Que é o homem? Qual o sentido da vida?...do sofrimento?...da morte?..."). Ora a
mulher acha-se no coração da auto-revelação de Deus, que vem ao encontro do homem para responder às
indagações deste. Na plenitude dos tempos, portanto, manifestou-se a extraordinária dignidade da mulher. Esta
então assumiu uma forma de união com Deus que é típica e exclusiva da mulher; sim, tornou-se a Theotókos, a
Mãe de Deus feito homem; este título significa o ponto culminante da grandeza da mulher e, conseqüentemente,
do gênero humano. Com efeito; a dignidade de todo homem tem a sua medida definitiva na união com Deus;
ora Maria é a expressão mais acabada de tal união.

3. Imagem e Semelhança de Deus (no 6-8)


A grandeza da mulher tem sua base mais remota no fato de que ela e o homem foram criados à imagem e
semelhança de Deus; por sua racionalidade a criatura humana espelha o Criador e participa do domínio que
Este tem sobre os seres infra-humanos. Assim homem e mulher aparecem, desde o início, dotados da mesma
dignidade e natureza; existe uma igualdade essencial entre o varão e a mulher. Mais: um é feito para o outro, de
modo que através do consórcio marital constituem "uma só carne" e transmitem a vida aos seus descendentes:
"O homem não pode existir só (cf Gn 2, 18); pode existir somente como unidade dos dois, e portanto em
relação a uma outra pessoa humana..., relação recíproca do homem para com a mulher e da mulher para com o
homem" (no 7).
A reciprocidade existente entre o homem e a mulher deve manifestar-se em auxílio mútuo, comunhão
interpessoal e Dom de um ao outro. "O ser pessoa significa tender à própria realização, que não se pode
alcançar senão por um Dom sincero de si mesmo" (no 7).
A semelhança do ser humano com Deus é ocasião para que Deus se revele ao homem utilizando noções e
imagens humanas. Por isto a Bíblia atribui a Deus predicados masculinos e femininos; Deus aparece não só
como Pai e Esposo (cf. Os 11,1-4;Jr 3,4-19), mas também como Mãe (cf. Is 49,14s; 66,13; SI 131, 2s). "Em
diversos trechos, o amor de Deus, solícito para com seu povo, é apresentado como semelhante ao amor de uma

53
Esta mesma Mensagem prossegue nos seguintes termos não citados por João Paulo II: "Vós, mulheres, vós tendes sempre, como
responsabilidade, a guarda do lar o amor das fontes, o sentido da maturidade. Vós estais presentes ao mistério da vida que começa.
Vós consolais na partida da morte. Nossa técnica corre o risco de se tornar desumana. Reconciliai os homens com a vida. E,
sobretudo, velai, nós vos suplicamos, sobre o futuro da nossa espécie. Segurar a mão do homem que, num momento de loucura,
tentasse destruir a civilização humana" (ib.).
54
Pode-se acrescentar a partir de 19/10/97, a inclusão de S. Teresinha de Lisieux no catálogo das Doutoras (nota da redação).
107 Escola Mater Ecclesiae
mãe: tal como uma mãe, Deus carregou no próprio regaço a humanidade e, particularmente, o seu povo
escolhido, deu-o à luz na dor, nutriu-o e consolou-o (cf. Is 42,14; 46, 3s)" (no 8).
Ao usar tais imagens, os autores sagrados não esquecem as limitações da semelhança ou da analogia
existente entre Deus e o homem: "Deus não é homem para que minta, nem filho de Adão para que se retrate.
Por acaso Ele diz e não o faz, fala e não realiza?" (Nm 23,19; cf. Os 11,9; Is 40,18; 46,5). Afinal há mais
dissemelhanças do que semelhanças entre Deus e o homem: Deus é "o Diverso" por essência, "o totalmente
Outro", "Aquele que habita uma luz inacessível" (1Tm 6,16). Estas dissemelhanças se aplicam especialmente à
paternidade divina comparada à paternidade humana: embora se derive de Deus toda paternidade nos céus e na
terra (Ef 3,14s), a paternidade divina não implica as características corpóreas (masculinas ou femininas) que
marcam o gerar humano.

4. Eva-Maria (no 9-11)


4.1. O princípio e o pecado (no 9)
Ao criar o homem à sua imagem e semelhança, Deus quis fazer o varão e a mulher consortes da vida e
felicidade do próprio Criador. O homem, porém, abusou da sua liberdade de arbítrio, dizendo Não ao Dom de
Deus; a soberba o moveu à auto-suficiência. O pecado assim cometido foi causa da ruptura:... ruptura da
criatura humana com Deus,... do varão com a mulher,... do homem consigo mesmo (ou no seu íntimo) e com o
mundo exterior... Tal é o pecado da origem ou original ; contrapõe-se à justiça original, com que fora prendado
o primeiro casal.
Ao descrever estes fatos, a Bíblia refere que o início do pecado se deu na mulher: "Não foi Adão o seduzido,
mas a mulher" (1Tm 2,4). Com isto, porém, o texto sagrado não exime de culpa o homem. "O primeiro pecado
é o pecado do homem, criado por Deus varão e mulher'. É o pecado dos primeiros pais, que por isto tem
conseqüências hereditárias: os pósteros nasceram, e nascem até hoje, destituídos da graça santificante e dos
demais dons que os primeiros pais receberam de Deus para os transmitir, mas perderam pelo pecado (de modo
que não os puderam transmitir).
O pecado dos primeiros pais teve ainda outras seqüelas:
- introduziu a não-semelhança dentro da imagem e semelhança de Deus existente no homem; sim, o pecado
é a antítese da santidade, que se identifica com o próprio Deus. A imagem e semelhança de Deus não foram
destruídas, mas ofuscadas e empalidecidas;
- a dor e a morte entraram no mundo (Gn 3,15-19): o homem se afadiga para ganhar o pão, a mulher sofre as
dores da maternidade tanto no parto como na educação dos filhos. E ambos, "tirados do pó, voltam ao pó" (Gn
3,19).

4.2. " Ele te dominará" (no 10)


O ser humano - tanto o homem como a mulher - foi feito para viver em comunhão,... comunhão que faz a
unidade dos dois e a dignidade pessoal tanto do homem como da mulher. Acontece, porém, que o pecado
original acarretou uma ruptura dessa unidade harmoniosa e complementar, pois dele decorreu a tendência do
homem a dominar a mulher: - "Ele te dominará" (Gn 3,16). A violação da autêntica comunhão ou da igual
dignidade resulta em desfavor não só da mulher, mas também do homem, pois é ofensa à ordem instituída pelo
Criador.
"A mulher não pode tornar-se objeto de domínio e de posse do homem"( n o 10),não só no matrimônio, mas
também não na vida civil. Verdade é que o relacionamento entre o homem e a mulher, no curso dos séculos, é
sempre ameaçado pela tríplice concupiscência dos olhos, da carne e do fausto da vida (cf. l Jo 2,16). Mas será
sempre reprovável qualquer situação em que a mulher seja discriminada pelo fato de ser mulher; quando a
Escritura se refere a tais situações, chama o homem à conversão. Foi precisamente fazendo apelo à Lei divina
que os escritores cristãos do século IV reagiram fortemente contra a discriminação ainda em vigor, a respeito da
mulher, nos costumes e na legislação civil do seu tempo.
Em nossos dias, a questão dos direitos da mulher tem adquirido novo significado. É de notar, porém, que a
réplica à discriminação da mulher não deve levar à masculinização das mulheres; "a mulher - em nome da sua
libertação - não deve tender a apropriar a si as características masculinas contrariando a sua originalidade
própria; caso ceda a esta tentação, a mulher perde a sua riqueza essencial, que é imensa." As prendas femininas
não são menos valiosas do que as masculinas, mas são diversas. A mulher (como também o homem) deve
conceber a sua realização na linha de suas prendas típicas ou características. Somente por este caminho pode ser
superada a herança do pecado sugerida pelas palavras da Bíblia: "Sentir-te-ás atraída para o teu marido, e ele te
dominará"(Gn 3,16).
108 Escola Mater Ecclesiae
4.3. O Proto-Evangelho (no 11)
Ao referir a sentença sobre a criatura pecadora, o livro do Gênesis anuncia também a salvação no chamado
"Proto-Evangelho": "Porei inimizade entre ti (serpente) e a mulher, entre a tua descendência e a dela; esta te
esmagará a cabeça, enquanto tu te lanças contra o seu calcanhar" (Gn 3,15). É significativa a menção da mulher
neste contexto; ela, representando o gênero humano, é mencionada em primeiro lugar; é ela que inicia a
inimizade contra a serpente. Nesta função de protagonistas da luta contra o mal emergem duas figuras
femininas: Eva e Maria.
Com efeito; as palavras do Proto-Evangelho realçam tão fortemente a mulher porque com ela tem princípio a
nova e definitiva Aliança de Deus com a humanidade, Aliança selada pelo sangue do Redentor. Assim a
primeira Eva prenuncia a Segunda Eva, a Mãe da Vida por excelência, que é Maria. Aliás, no decorrer da
história da salvação, Deus quis servir-se de algumas mulheres, como a mãe de Sansão e a de Samuel; na
plenitude dos tempos quis servir-se de Maria, significando que a nova Aliança quer precisamente realçar a
dignidade da mulher.
O título de "nova Eva" quer dizer, entre outras coisas, que "Maria é o novo princípio da dignidade e da
vocação da mulher, de todas e de cada uma das mulheres". "Grandes coisas fez em mim o Todo-Poderoso",
exclamou Maria (Lc 1,49), insinuando toda a riqueza, todos os recursos da feminilidade.
"Em Maria, Eva redescobre a verdadeira dignidade da mulher da humanidade feminina. Esta descoberta
deve chegar continuamente ao coração de cada mulher e plasmar a sua vocação e a sua vida" (no 11).

5. Jesus Cristo(no 12-16)


5.1."Jesus conversava com uma mulher" (no 12)
O reconhecimento da dignidade da mulher foi manifestado por Jesus Cristo, cujo modo de tratar as mulheres
era surpreendente no seu tempo. Sim ; Jesus causou estranheza aos Apóstolos pelo fato de estar conversando a
sós com a Samaritana (Jo 4,27) ; escandalizou o fariseu por permitir que uma mulher pecadora lhe ungisse os
pés com óleo perfumado (cf. Lc 7,39). Deve ter provocado indignação nos ouvintes ao exclamar: "Os
publicanos e as meretrizes vos precederão no reino de Deus" (Mt 21,31). Mais: o Senhor extinguiu o direito de
repudiar a esposa que, conforme a Lei de Moisés, tocava ao homem (cf. Mt 19,3-8); tratou com deferência as
"filhas de Jerusalém" que sobre Ele choravam (cf. Lc 23,28). Isto tudo evidencia que Jesus quis romper os
preconceitos que havia em detrimento da mulher, para afirmar o valor próprio da feminilidade.

5.2. As Mulheres do Evangelho (no 13)


Quem folheia os Evangelhos, verifica outrossim o papel saliente que as mulheres aí ocupam. Ora trata-se de
mulheres que acompanhavam Jesus viandante por cidades e aldeias, assistindo-lhe com os seus bens (cf. Lc 8,
1-3). Ora vemos mulheres beneficiadas de maneiras diversas, como aquela encurvada pela doença e chamada
por Jesus "filha de Abraão" (Lc 13,11-16), título que na Bíblia só é dado aos homens; a sogra de Simão (Mc
1,30); a mulher que sofria de um fluxo de sangue e que foi louvada por sua fé (cf. Mc 5,25-34); a filha de Jairo
ressuscitada (cf. Mc 5,41), a viúva de Naím, cujo filho voltou à vida (cf. Lc 7,13), a cananéia que pedia a cura
de sua filha (Mt 15,28), a viúva cujo óbolo generoso mereceu especial elogio, conforme Lc 21,1-4 ( a viúva era
totalmente indefesa no sistema sócio-jurídico da época, cf. Lc 18,1-7).
As parábolas também põem ante os olhos do leitor diversos tipos femininos: a mulher que perdeu a dracma
(cf. Lc 15,8-10), a que lançou fermento na massa (cf. Mt 13,33), as virgens prudentes e as insensatas (cf. Mt
25,1-13).
As mulheres desprezadas pela opinião pública foram benignamente acolhidas por Jesus: a Samaritana junto
ao poço de Jacó (cf. Jo 4,7"27), a pecadora pública em casa do fariseu (cf. Lc 7, 37-47), a mulher surpreendida
em adultério e pelos fariseus condenada ao apedrejamento (cf. Jo 8, 3-11)...
Ora "o comportamento de Jesus a respeito das mulheres que Ele encontra ao longo do caminho do seu
serviço messiânico, é o reflexo do desígnio eterno de Deus, o qual, criando cada uma delas, a escolhe e ama em
Cristo (Ef 1,1-5)".

5.3. A mulher surpreendida em adultério (no 14)


É muito eloqüente a maneira como Jesus tratou a mulher adúltera, conforme Jo 8,3-11: antes de a despedir,
quis despertar a consciência do pecado nos homens que a acusavam, como se dissesse: "Esta mulher, com todo
o seu pecado, não é talvez o testemunho dos vossos abusos masculinos e da vossa injustiça?"
Tal fato era paradigmático, pois em todas as épocas da história houve mulheres expostas como pecadoras,
enquanto por trás do seu pecado se escondia um homem co-responsável pelo mesmo. Muitas vezes a mulher é
abandonada na sua maternidade, dado que o pai da criança não quer assumir a sua responsabilidade. Quantas
109 Escola Mater Ecclesiae
também não são pressionadas pelo homem culpado para se livrar da criança abrigada no seio materno? As que
cedem a tal pressão, não escapam do duro trauma de ver tirada a vida ao seu filho, pois não conseguem apagar
o senso de maternidade inscrito no mais íntimo do coração da mulher.
Jesus também fala do adultério que o homem pode cometer em seu coração olhando para uma mulher com
mau desejo (cf. Mt 5,28). Com isto o Senhor quer lembrar ao homem que ele pode agredir a mulher, mesmo
sem a violentar fisicamente. É claro, porém, que a própria mulher deve comportar-se à altura de sua dignidade,
pois ela também pode agredir a si mesma e expor-se à agressão do homem se não sabe manter uma conduta de
vida condizente com a sua nobreza feminina.

5.4. Custódias da Mensagem Evangélica (no 15)


Cristo chega a fazer da mulher a destinatária da Boa-Nova: falou-lhe de questões sobre as quais, naquele
tempo, não se discutia com uma mulher, tornando-a discípula do Divino Mestre. O exemplo mais típico é o da
Samaritana, que se tornou também mensageira do Evangelho (cf. Jo 4, 39-42). Sejam lembradas outrossim as
irmãs de Lázaro, das quais Maria escutava a Palavra do Mestre (cf. Lc 10, 38-42) e Marta recebeu a mensagem
da ressurreição de Lázaro e dos mortos (cf. Jo 11,21-27). Instruídas por Jesus, as mulheres deram-lhe a sua
resposta de fé, que o Senhor elogiou mais de uma vez: vejam-se o caso da cananéia (Mt 15, 28), o da pecadora
convertida em Lc 7, 47, o da mulher que ungiu os pés de Jesus na presença de Judas (Mt 26, 6-13)...
Por ocasião da Paixão de Cristo, as mulheres se mostraram seguidoras fiéis e perseverantes: assim as que
ficaram intrépidas ao pé da Cruz ou do Calvário (cf. Jo 19,25; Mt 27,55), aquelas que na via dolorosa se
lamentavam por Jesus (cf. Lc 23,27).. Além destas, pode-se referir também a mulher de Pilatos, que admoestou
o marido a que não se envolvesse no processo de Jesus (cf. Mt 27,19).

5.5. Primeiras testemunhas da Ressurreição (no 16)


Não só no momento da Cruz, mas também na manhã da Ressurreição, as mulheres desempenharam papel
significativo: foram as primeiras junto à sepultura, as primeiras a ouvir: "Ressuscitou como disse" (Mt 28,6) ;
as primeiras a abraçar os pés de Jesus (Mt 28,9), as primeiras chamadas a anunciar a Ressurreição aos
Apóstolos (cf. Mt 28,1-10; Lc 24,8-11). Especialmente Maria Madalena se destacou como "apóstola dos
Apóstolos" (cf. Jo 20,16-18). Disto tudo se deduz que a mulher recebeu, como o homem, o Dom de acolher e
transmitir a verdade de Deus, gozando, para isto, do carisma da profecia concedido pelo Espírito Santo.
A mulher foi feita, assim, sujeito e testemunha insubstituível das grandes obras de Deus.

6. Maternidade e Virgindade (no 17-22)


6.1. Duas dimensões da vocação da mulher (no 17)
A personalidade feminina se realiza segundo duas modalidades: a virgindade e a maternidade. Maria
realizou-as plenamente, de modo que se completaram nela uma e outra.

6.2. A Maternidade (no 18)


A maternidade é fruto da união matrimonial, ou seja, da doação mútua do homem e da mulher; o dom
recíproco se abre para uma nova vida, um novo homem, que também é pessoa à semelhança de seus pais.
Assim os esposos participam da obra grandiosa do Criador.
Os aspectos genéticos, biológicos e psíquicos da maternidade têm sido estudados com grande afinco nos
últimos tempos; verifica-se cada vez mais que todo o ser da mulher se dispõe para a geração de uma nova vida.
Todavia essa face fisiológica da maternidade, embora muito importante, não esgota o significado da mesma. A
maternidade transcende tais aspectos na medida em que é obra de uma pessoa que se dá. Mais: verdade é que
não há maternidade sem paternidade ou sem a colaboração do varão, mas deve-se reconhecer que a mulher está
mais associada do que o homem ao processo generativo. "É sobre a mulher que recai diretamente o peso desse
comum gerar, que absorve literalmente as energias do seu corpo e da sua alma. É preciso, portanto, que o
homem seja plenamente consciente de que contrai, neste seu comum' ser genitores', um débito especial para
com a mulher. Nenhum programa de paridade de direitos das mulheres e dos homens é válido se não tem
presente isto de modo todo especial".
Leve-se em conta outrossim que a mulher, mais do que o homem, é capaz de atenção à pessoa concreta e à
vida que desabrocha ou definha. "O homem... encontra-se sempre fora do processo de gestação e do nascimento
da criança; por isto deve, sob muitos aspectos, aprender da mãe a sua própria paternidade". A educação do filho
exige, sem dúvida, a colaboração de pai e mãe; "todavia a maternidade é decisiva para as bases de uma nova
personalidade humana". A mulher é a primeira educadora do homem.
110 Escola Mater Ecclesiae
6.3. Maternidade e Aliança (no 19)
A função materna da mulher tem seu paradigma na Santa Mãe de Deus, Maria, a qual, mediante o seu
consentimento (Fiat), deu início à nova Aliança de Deus com a humanidade. Maria exerceu seu papel
compartilhando as dores de seu Filho, que foram transfiguradas pela Páscoa ou pela vitória da vida sobre a
morte:
"Contemplando esta Mãe, cujo coração foi transpassado por uma espada (cf. Lc 2, 35), o pensamento volta-
se a todas as mulheres que sofrem no mundo, tanto no sentido físico como no moral. Neste sofrimento, uma
parte é devida à sensibilidade própria da mulher mesmo que ela, com freqüência, saiba resistir ao sofrimento
mais do que o homem. É difícil enumerar estes sofrimentos, é difícil nomeá-los todos: podem ser recordados o
desvelo maternal pelos filhos, especialmente quando estão doentes ou andam por maus caminhos, a morte das
pessoas mais queridas, a solidão das mães esquecidas pelos filhos adultos ou das viúvas, os sofrimentos das
mulheres que lutam sozinhas pela sobrevivência e os das mulheres que sofreram uma injustiça ou são
exploradas. Existem, enfim, os sofrimentos das consciências por causa do pecado, que atingiu a dignidade
humana ou materna da mulher as feridas da consciência que não cicatrizam facilmente. Também com estes
sofrimentos é preciso pôr-se aos pés da Cruz de Cristo" (no 19).

6.4. A Virgindade (no 20s)


O ideal da virgindade ou da vida una, totalmente dedicada à causa do Reino de Deus, tem seu fundamento no
próprio Evangelho (cf. Mt 19,12);vem a ser uma das expressões típicas da vida cristã, dado que no Antigo
Testamento toda mulher tendia à maternidade para preparar a vinda do Messias. Maria é o protótipo da
virgindade que é fecunda ao se consagrar totalmente a Deus.
Na virgindade espontaneamente abraçada existe um grande amor esponsal a Cristo e, conseqüentemente, a
todos aqueles que Cristo redimiu com o seu sangue. Donde se vê que virgindade não é simplesmente um Não,
mas contém um profundo Sim ao amor; é doação de amor total e indiviso ao Senhor Jesus e ao seu Reino aqui
na terra.
A renúncia à maternidade física abre para a experiência da maternidade segundo o Espírito (cf. Rm 8,4). De
fato, a virgindade não priva a mulher das suas prerrogativas. Uma mulher consagrada encontra o Esposo na
pessoa dos homens que precisam de sua solicitude: os doentes, os abandonados, os órfãos, os encarcerados, os
marginalizados... ;a estes todas as Religiosas dedicam seu trabalho ou, se levam vida contemplativa, a sua
fidelidade específica à oração e à renúncia. Também no mundo ou em família é possível viver-se a vida una em
benefício dos irmãos. É tal fecundidade que permite aproximar entre si a mulher não casada e a casada.

6.5. "Filhinhos meus..." (Gl 4,19) (no 22)


São Paulo escrevia aos Gálatas: "Filhinhos meus, por quem sofro novamente as dores do parto" (Gl 4,19).
Vê-se assim que o Apóstolo-homem sentiu necessidade de recorrer a uma imagem feminina para significar o
seu serviço apostólico. Afim de ilustrar o mistério fundamental da Igreja, São Paulo não encontrou melhor
expressão do que a maternidade. Aliás, o Concílio do Vaticano II reafirmou que não se pode compreender o
mistério da Igreja se não se contempla a Mãe de Deus, figura e protótipo consumado da realidade eclesial.
Recapitulando, pois, o que foi dito até aqui, podemos observar:
"A Bíblia convence-nos do fato de que não se pode ter uma adequada hermenêutica do homem, ou seja,
daquilo que é humano, sem um recurso adequado àquilo que é feminino. Analogamente acontece na economia
salvífica de Deus: se queremos compreendê-la plenamente em relação a toda a história do homem, não
podemos deixar de lado, na ótica de nossa fé, o mistério da mulher: virgem-mãe-esposa " (no 22).

7. A Igreja, Esposa de Cristo (no 23-27)


7.1. O Grande Mistério (no 23-25)
São Paulo compara o amor esponsal existente entre o homem e a mulher com o matrimônio de Cristo e da
Igreja (cf. Ef 5, 25-32): Cristo é o Esposo da Igreja, a Igreja é a Esposa de Cristo, aliás, em consonância com
quanto já haviam anunciado os Profetas (cf. Is 54, 4-8. 10; Os 1,2; 2,16-18; Jr 2,2; Ez 17,8; Is 50,1; 54, 5-8).
O Apóstolo exorta os maridos a amar as esposas como Cristo ama a Igreja, a fim de torná-la resplandecente
de glória. São Paulo não vê contradição entre essa exortação e a observação de que "as mulheres sejam
submissas aos maridos como ao Senhor, porque o marido é a cabeça da mulher" (Ef 5,22s); o autor sagrado
sabe que a posição da mulher na sociedade antiga há de ser entendida de modo novo, pois o próprio Apóstolo
admoesta: "Submetei-vos uns aos outros no temor de Cristo" (Ef 5,21); vê-se, pois, que na relação marido-
mulher a submissão não é unilateral, mas recíproca. Tal é a novidade evangélica, fruto da Redenção. A
consciência desta norma deve penetrar o comportamento do marido e da mulher; aliás, há de se lembrar de que
111 Escola Mater Ecclesiae
também o Apóstolo escreveu: "Em Cristo Jesus não há escravo nem livre, não há homem nem mulher, pois vós
todos sois um só em Cristo Jesus" (Gl 3,27s).
Outro traço importante se deduz do texto de Ef 5, 24-32: a Esposa é a Igreja. Este sujeito, porém, é coletivo;
significa uma comunidade composta de homens e mulheres. Nesta concepção, por meio da Igreja, todos os
seres humanos - tanto homens como mulheres - são chamados a ser Esposa de Cristo, Redentor do mundo.
Assim ser esposa, portanto o feminino, torna-se símbolo de todo o humano, segundo as palavras do Apóstolo;
como membros da Igreja, também os homens estão compreendidos no conceito de Esposa. Na Igreja, também
todo ser humano - homem e mulher - é a esposa, enquanto acolhe o amor de Cristo e procura corresponder-lhe
com o dom da própria pessoa.

7.2. A Eucaristia (no 26)


É de notar que Cristo só chamou homens para serem seus Apóstolos. Fazendo isto, o Senhor agiu de maneira
livre e soberana; não se creia que Jesus, assim procedendo, tenha apenas procurado conformar-se à mentalidade
discriminatória dominante em sua época; Ele não fazia acepção de pessoas (cf. Mt 22,16). Em conseqüência
somente os doze Apóstolos receberam o mandato: "Fazei isto em memória de mim" (Lc 22,19; 1 Cor 11 ,24).
Somente eles na tarde da Ressurreição receberam o Espírito Santo para perdoar os pecados (cf. Jo 20,22s). Daí
se pode deduzir que o sacramento da Ordem, que perpetua a ação redentora de Cristo mediante seus ministros, é
destinado aos homens apenas, como aliás já observou a Congregação para a Doutrina da Fé na Declaração
Inter Insigniores de 15/10/76.

7.3. O Dom da Esposa (no 27)


A mulher participa do sacerdócio universal de todos os fiéis, derivado dos sacramentos do Batismo e da
Crisma. Assim todos têm parte na grande oblação que Cristo fez de Si mesmo ao Pai no Calvário e que Ele
perpetua na Eucaristia.
Na Igreja o que valoriza alguém não é o seu grau hierárquico (embora tenha significado importante), mas é a
santidade. O Concílio do Vaticano II recordou que na linha da santidade precisamente a mulher Maria de
Nazaré é figura da Igreja. Contemporaneamente a Maria e depois dela, numerosas mulheres - ao lado dos
homens - se destacaram por sua santidade ou por seu amor esponsal a Cristo. Tais foram, entre outras: as
mulheres que acompanhavam Jesus durante a sua vida mortal e estiveram presentes no Cenáculo de Pentecostes
(cf. Lc 8,1-3; At 1,14; 2,1-3); as mulheres que tiveram parte na vida da Igreja nascente (a diaconisa Febe, de
Cêncreas, cf. Rm 16,1; Prisca, cf. 2Tm 4,19; Evódia e Síntique, cf. Fl 4,2; Maria, Trifena, Pérside, Trifosa, cf.
Rm 16, 6"12)... Em todas as épocas houve mulheres perfeitas (Pr 31,10), que corajosamente participaram da
missão da Igreja: Mônica, mãe de Agostinho; Macrina, Olga de Kiev, Matilde da Toscana, Edviges da Silésia,
Edviges de Cracóvia, Elisabete da Turíngia, Brígida da Suécia, Joana d'Arc, Rosa de Lima, Elisabete Seaton,
Mary Ward...além das doutoras Santa Catarina de Sena, Santa Teresa de Ávila e Santa Teresinha de Lisieux.
Também em nossos dias a Igreja não cessa de enriquecer-se com o testemunho de numerosas mulheres que
realizam a sua vocação à santidade. As mulheres santas são uma personificação do ideal feminino e um modelo
para todos os cristãos.

8. Maior é a Caridade (no 28-30)


Os relatos da criação do homem e da mulher no Gênesis, relidos à luz da carta aos Efésios, permitem intuir
uma verdade que parece decidir a questão da dignidade da mulher e da sua vocação: a dignidade da mulher é
medida pela ordem do amor. A mulher é a pessoa que manifesta ao mundo o amor que Deus tem aos homens e
que os homens devem entreter uns com os outros. Isto implica para ela uma missão: Deus lhe confia de maneira
especial o homem, o ser humano. A mulher é forte pela consciência dessa missão, forte pelo fato de que Deus
lhe confia o homem, até nas condições de discriminação social em que ela se possa encontrar. Deste modo a
mulher perfeita (Pr 31 ,10) torna-se um amparo insubstituível e uma fonte de força espiritual para os outros, que
percebem as grandes energias do seu espírito. A tais mulheres perfeitas muito devem as suas famílias e, por
vezes, inteiras nações.
Nossa época de consumismo e bem-estar material ameaça a sociedade de perder gradativamente a
sensibilidade pelo homem ou pelos valores essencialmente humanos. Daí se deduz o papel particularmente
importante daquele gênio da mulher que assegura a sensibilidade pelo homem em todas as circunstâncias pelo
fato mesmo de ser homem. E porque "a maior das virtudes é a caridade" (1Cor 13,13):
"Se o homem é por Deus confiado de modo especial à mulher isto não significará talvez que Cristo espera
dela a realização do sacerdócio real (cf. I Pd 2,9), que é a riqueza que ele deu aos homens? Esta mesma herança
112 Escola Mater Ecclesiae
Cristo, sumo e único Sacerdote da nova e eterna Aliança e Esposo da Igreja, não cessa de submeter ao Pai,
mediante o Espírito Santo, para que Deus seja tudo em todos(I Cor 15, 28)".

9. Conclusão (no 31)


As reflexões desenvolvidas nestas páginas permitem-nos contemplar o dom que Deus fez à mulher
outorgando-lhe a feminilidade e o papel que ela tem desenvolvido e ainda há de exercer na história da
humanidade. "Em última análise, não foi nela e por meio dela que se operou o que há de maior na história do
homem sobre a terra: o evento pelo qual Deus mesmo se fez homem?"
A Igreja, portanto, rende graças a Deus por todas as mulheres e por cada uma delas, quer vivam no mundo,
quer se tenham consagrado a Deus na Vida Religiosa...A Igreja agradece todas as manifestações do gênio
feminino ocorridas na história. Agradece todos os carismas que o Espírito Santo concede às mulheres na
história do Povo de Deus, todas as vitórias que deve à fé, à esperança e à caridade das mesmas; agradece todos
os frutos de santidade feminina. – Ao mesmo tempo pede que tais manifestações do Espírito sejam
reconhecidas e valorizadas e que todas as mulheres encontrem na mensagem bíblica a sua identidade e a sua
suprema vocação. Maria obtenha tais frutos para toda a Igreja no limiar do terceiro milênio da vinda de Cristo!
Como se vê, o texto põe em relevo o significado específico que a Palavra de Deus atribui à mulher: por sua
feminilidade mesma, ela está especialmente vinculada à vida, à conceição e à formação da vida. Em
conseqüência ela é a mestra de todo ser humano ou do próprio homem; este deve aprender da mulher as noções
básicas que formam a sua personalidade. Tal missão equivale a um autêntico sacerdócio, que Deus lhe confiou,
ao lado dos ministérios que Ele quis entregar ao homem na sua especificidade masculina.

PERGUNTAS
1) Que se entende por Proto-Evangelho? E pelo título "Nova Eva "?
2) Como Jesus trata as mulheres no Evangelho ?
3) Qual o sentido cristão da maternidade?
4) Qual o sentido cristão da virgindade?
5) Que é que valoriza alguém aos olhos de Deus?:

A MULHER NA HISTÓRIA DO POVO DE DEUS


64. "Através dos profetas, Deus forma o seu povo na esperança da salvação, na expectativa de uma Aliança
nova e eterna destinada a todos os homens, e que será impressa nos corações. Os profetas anunciam uma
redenção radical do Povo de Deus, a purificação de todas as suas infidelidades, uma salvação que incluirá todas
as nações. Serão sobretudo os pobres e os humildes do Senhor os portadores desta esperança. As mulheres
santas como Sara, Rebeca, Raquel, Míriam, Débora, Ana, Judite e Ester mantiveram viva a esperança da
salvação de Israel. Delas todas, a figura mais pura é a de Maria.
791. A unidade do corpo não acaba com a diversidade dos membros: "Na edificação do corpo de Cristo, há
diversidade de membros e de funções. Um só é o Espírito que distribui os dons variados para o bem da Igreja
segundo suas riquezas e as necessidades dos ministérios". A unidade do Corpo Místico produz e estimula entre
os fiéis a caridade: Por isso, se um membro sofre, todos os membros padecem com ele; ou se um membro é
honrado, todos os membros se regozijam com ele. Finalmente, a unidade do Corpo Místico vence todas as
divisões humanas: "Todos vós, com efeito, que fostes batizados em Cristo, vos vestistes de Cristo. Não há judeu
nem grego, não há escravo nem livre, não há homem nem mulher; pois todos vós sois um só em Cristo Jesus"
(Gl 3, 27-28).
(Catecismo da Igreja Católica)

MÓDULO 36: O PAPA ÀS MULHERES (I)


Aos 29/06/95, o Papa João Paulo II dirigiu às mulheres do mundo inteiro uma carta coloquial e doutrinária,
tendo em vista o Congresso Internacional que se realizaria em Pequim sobre População e Desenvolvimento.
É documento precioso, em que o Papa reconhece o valor da mulher e lhe pede que guarde sua identidade e
autenticidade. Ei-lo na íntegra (com exceção do primeiro parágrafo introdutório).

1. Gratidão
O ponto de partida deste diálogo ideal não pode ser senão um obrigado. A Igreja – escrevia na Carta
Apostólica Mulieris Dignitatem - "deseja render graças à Santíssima Trindade pelo "mistério da mulher" - por
113 Escola Mater Ecclesiae
toda mulher - e por aquilo que constitui a eterna medida da sua dignidade feminina, pelas "grandes obras de
Deus" que, na história das gerações humanas, nela e por seu meio se realizaram" (n. 31).
O obrigado ao Senhor pelo seu desígnio sobre a vocação e a missão da mulher no mundo torna-se também
um concreto e direto obrigado às mulheres, a cada mulher, por aquilo que ela representa na vida da
humanidade.
Obrigado a ti, mulher-mãe, que te fazes ventre do ser humano na alegria e no sofrimento de uma experiência
única, que te torna o sorriso de Deus pela criatura que é dada à luz, que te faz guia dos seus primeiros passos,
amparo do seu crescimento, ponto de referência por todo o caminho da vida.
Obrigado a ti, mulher-esposa, que unes irrevogavelmente o teu destino ao de um homem, numa relação de
recíproco dom, ao serviço da comunhão e da vida.
Obrigado a ti, mulher-filha e mulher-irmã, que levas ao núcleo familiar, e depois à inteira vida social, as
riquezas da tua sensibilidade, da tua intuição, da tua generosidade e da tua constância.
Obrigado a ti, mulher-trabalhadora, empenhada em todos os âmbitos da vida social, econômica, cultural,
artística, política, pela contribuição indispensável que dás à elaboração de uma cultura capaz de conjugar razão
e sentimento, a uma concepção da vida sempre aberta ao sentido do "mistério", à edificação de estruturas
econômicas e políticas mais ricas de humanidade.
Obrigado a ti, mulher-consagrada, que, a exemplo da maior de todas as mulheres, a Mãe de Cristo, Verbo
Encarnado, te abres com docilidade e fidelidade ao amor de Deus, ajudando a Igreja e a humanidade inteira a
viver para com Deus uma resposta "esponsal", que exprime maravilhosamente a comunhão que Ele quer
estabelecer com a sua criatura.
Obrigado a ti, mulher, pelo simples fato de seres mulher! Com a percepção que é própria da tua
feminilidade, enriqueces a compreensão do mundo e contribuis para a verdade plena das relações humanas.

2. O Reconhecimento da Mulher
Mas agradecer não basta, já sei. Infelizmente, somos herdeiros de uma história com imensos
condicionalismos que, em todos os tempos e latitudes, tornaram difícil o caminho da mulher, ignorada na sua
dignidade, deturpada nas suas prerrogativas, não raro marginalizada e, até mesmo, reduzida à escravidão. Isto
impediu-a de ser profundamente ela mesma, e empobreceu a humanidade inteira de autênticas riquezas
espirituais. Não seria certamente fácil atribuir precisas responsabilidades, atendendo à força das sedimentações
culturais que, ao longo dos séculos, plasmaram mentalidades e instituições. Mas, se nisto tiveram
responsabilidades objetivas mesmo não poucos filhos da Igreja, especialmente em determinados contextos
históricos, lamento-o sinceramente. Que este pesar se traduza, para toda a Igreja, num compromisso de
renovada fidelidade à inspi ração evangélica que, precisamente no tema da libertação das mulheres de toda
forma de abuso e de domínio, tem uma mensagem de perene atualidade, que brota da atitude mesma de Cristo.
Ele, superando as normas em vigor na cultura do seu tempo, teve para com as mulheres uma atitude de abertura,
de respeito, de acolhimento, de ternura. Honrava assim, na mulher, a dignidade que ela sempre teve no projeto e
no amor de Deus. Ao fixar o olhar n'Ele, no final deste segundo milênio, vem-nos espontaneamente a pergunta:
em que medida a sua mensagem foi recebida e posta em prática?
Sim, é tempo de olhar, com a coragem da memória e o sincero reconhecimento das responsabilidades, a
longa história da humanidade, para a qual as mulheres deram uma contribuição não inferior à dos homens, e a
maior parte das vezes em condições muito mais desfavoráveis. Penso, de modo especial, nas mulheres que
amaram a cultura e a arte, e às mesmas se dedicaram partindo de condições desvantajosas, excluídas
freqüentemente de uma educação paritária, submetidas à inferiorização, ao anonimato e até mesmo à
expropriação da sua contribuição intelectual. infelizmente, da obra imensa das mulheres na história, bem pouco
restou de significativo com os métodos da historiografia científica. Mas, por sorte, se o tempo sepultou os seus
vestígios documentais, não é possível não perceber os seus influxos benfazejos na seiva vital que impregna o
ser das gerações, que se foram sucedendo até à nossa. Relativamente a esta grande, imensa "tradição" feminina,
a humanidade tem uma dívida incalculável. Quantas mulheres foram e continuam ainda a ser valorizadas mais
pelo aspecto físico que pela competência, pela profissionalidade, pelas obras da inteligência, pela riqueza da sua
sensibilidade e, em última análise, pela própria dignidade do seu ser

3. Igualdade de Direitos
Que dizer também dos obstáculos que, em tantas partes do mundo, impedem ainda às mulheres a sua plena
inserção na vida social, política e econômica? Basta pensar como, com freqüência, é mais penalizado que
gratificado o dom da maternidade, à qual, todavia, a humanidade deve a sua própria sobrevivência. Certamente,
resta ainda muito a fazer para que o ser mulher e mãe não comporte discriminação. Urge conseguir, onde quer
114 Escola Mater Ecclesiae
que seja, a igualdade efetiva dos direitos da pessoa e, portanto, idêntica retribuição salarial por categoria de
trabalho, tutela da mãe-trabalhadora, justa promoção na carreira, igualdade entre cônjuges no direito de família,
o reconhecimento de tudo quanto está ligado aos direitos e aos deveres do cidadão num regime democrático.
Trata-se não só de um ato de justiça, mas também de uma necessidade. Na política do futuro, os graves
problemas em aberto verão sempre mais envolvida a mulher: tempo livre, qualidade da vida, migrações,
serviços sociais, eutanásia, droga, saúde e assistência, ecologia, etc. Em todos estes campos, se revelará
preciosa uma maior presença social da mulher, porque contribuirá para manifestar as contradições de uma
sociedade organizada sobre critérios de eficiência e produtividade, e obrigará a reformular os sistemas a bem
dos processos de humanização que delineiam a "civilização do amor".

4. O Heroísmo Feminino
Pensando, depois, a um dos aspectos mais delicados da situação feminina no mundo, como não lembrar a
longa e humilhante história - com freqüência, "subterrânea" - de abusos perpetrados contra as mulheres no
campo da sexualidade? No limiar do terceiro milênio, não podemos permanecer impassíveis e resignados diante
deste fenômeno. Está na hora de condenar vigorosamente, dando vida a apropriados instrumentos legislativos
de defesa, as formas de violência sexual, que não raro têm a mulher por objeto. Mais, em nome do respeito pela
pessoa, não podemos não denunciar a difusa cultura hedonista e mercantilista que promove a exploração
sistemática da sexualidade, levando mesmo meninas de menor idade a cair no circuito da corrupção e a permitir
comercializar o próprio corpo.
Por outro lado, diante de tais perversões, quanto louvor merecem as mulheres que, com amor heróico pela
sua criatura, carregam uma gravidez devida à injustiça de relações sexuais impostas pela força; e isto não só no
quadro das atrocidades que, infelizmente, se verificam nos contextos de guerras, ainda tão freqüentes no
mundo, mas também nas situações de bem-estar e de paz, não raro viciadas por uma cultura de permissivismo
hedonista, na qual prosperam facilmente também tendências de machismo agressivo. Nestas condições, a
escolha do aborto, que permanece sempre um pecado grave, antes de ser uma responsabilidade atribuível à
mulher, é um crime que deve ser imputado ao homem e à cumplicidade do ambiente circundante.
Assim, o meu "obrigado" às mulheres converte-se num premente apelo a que, da parte de todos,
particularmente dos Estados e das Instituições Internacionais, se faça o que for preciso para devolver à mulher o
pleno respeito da sua dignidade e do seu papel. A este propósito, não posso deixar de manifestar a minha
admiração pelas mulheres de boa vontade que se dedicaram a defender a dignidade da condição feminina,
através da conquista de direitos fundamentais sociais, econômicos e políticos, e assumiram corajosamente tal
iniciativa em épocas em que este seu empenho era considerado um ato de transgressão, um sinal de falta de
feminilidade, uma manifestação de exibicionismo, e talvez um pecado!
Como escrevi na Mensagem para o Dia Mundial da Paz deste ano, ao contemplar este grande processo de
libertação da mulher, pode-se dizer que "foi um caminho difícil e complexo e, por vezes, não isento de erros,
mas substancialmente positivo, apesar de ainda incompleto, devido a tantos obstáculos que, em diversas partes
do mundo, se interpõem não deixando que a mulher seja reconhecida, respeitada, valorizada na sua peculiar
dignidade" (no 4).
É preciso continuar neste caminho! Estou convencido, porém, de que o segredo para percorrer
diligentemente a estrada do pleno respeito da identidade feminina não passa só pela denúncia, apesar de
necessária, das discriminações e das injustiças, mas passa também, e sobretudo, por um eficaz e claro projeto de
promoção, que englobe todos os âmbitos da vida feminina, a partir de uma renovada e universal tomada de
consciência da dignidade da mulher. Ao reconhecimento desta, não obstante os múltiplos condicionalismos
históricos, leva-nos a própria razão, que capta a lei de Deus inscrita no coração de cada homem. Mas é
sobretudo a Palavra de Deus, que nos permite identificar com clareza o radical fundamento antropológico da
dignidade da mulher, apontando-o no desígnio de Deus sobre a humanidade.

5. O Livro do Gênesis
Permiti-me, pois, caríssimas irmãs, que juntamente convosco, medite uma vez mais aquela página bíblica
maravilhosa que mostra a criação do homem, e na qual se exprime bem a vossa dignidade e missão no mundo.
O Livro do Gênesis fala da criação, de modo sintético e com linguagem poética e simbólica, mas
profundamente verdadeira: "Deus criou o homem à sua imagem, criou-o à imagem de Deus; Ele os criou varão
e mulher" (Gn 1, 27). O ato criador de Deus desenvolve-se segundo um preciso projeto. Antes de mais, diz que
o homem é criado "à imagem e semelhança de Deus" (cf. Gn 1, 26), expressão que esclarece logo a
peculiaridade do homem no conjunto da obra da criação.
115 Escola Mater Ecclesiae
Depois, diz que ele, desde o início, é criado como "varão e mulher" (Gn1, 27). A mesma Sagrada Escritura
fornece a interpretação deste dado: o homem, mesmo encontrando-se rodeado pelas inumeráveis criaturas do
mundo visível, dá-se conta de estar só (cf. Gn 2, 20). Deus intervém para fazê-lo sair desta situação de solidão:
"não é conveniente que o homem esteja só; vou dar-lhe uma auxiliar semelhante a ele" (Gn 2, 18). Portanto na
criação da mulher está inscrito, desde o início, o princípio do auxílio: auxílio - note-se - não unilateral, mas
recíproco. A mulher é o complemento do homem, como o homem é o complemento da mulher: mulher e
homem são entre si complementares. A feminilidade realiza o "humano" tanto como a masculinidade, mas com
uma modulação distinta e complementar.
Quando o Gênesis fala de "auxiliar", não se refere só ao âmbito do agir, mas também ao do ser. Feminilidade
e masculinidade são entre si complementares, não só do ponto de vista físico e psíquico, mas também
ontológico. Só mediante a duplicidade do "masculino" e do "feminino" é que o "humano" se realiza
plenamente.
(Continua no próximo Módulo)

MÓDULO 37: O PAPA ÀS MULHERES (II)


(Continuação do Módulo 36)
6. A Mulher, construtora da história
7. Depois de criar o homem, varão e mulher, Deus diz a ambos: "Enchei e dominai a terra" (Gn 1,28). Não
lhes confere só o poder de procriar para perpetuar no tempo o gênero humano, mas confia-lhes também a terra
como tarefa, comprometendo-os a administrar os seus recursos com responsabilidade. O homem, ser livre e
racional, é chamado a transformar a face da terra. Nesta tarefa, que é essencialmente a obra da cultura, tanto o
homem como a mulher têm, desde o início, igual responsabilidade.- Na sua reciprocidade esponsal e fecunda,
na sua tarefa comum de dominar e submeter a terra, a mulher e o homem não refletem uma igualdade estática e
niveladora, mas tampouco comportam uma diferença abissal e inexoravelmente conflituosa: a sua relação mais
natural, conforme ao desígnio de Deus, é a unidade dos dois, ou seja, uma unidualidade relacional, que permite
a cada um sentir a relação interpessoal e recíproca como um dom enriquecedor e responsabilizador.
A esta unidade dos dois, está confiada por Deus não só a obra da procriação e a vida da família, mas a
construção mesma da história. Se durante o Ano Internacional da Família, celebrado em 1994, a atenção se
concentrou sobre a mulher como mãe, a Conferência de Pequim torna-se ocasião propícia para uma nova
tomada de consciência da múltipla contribuição que a mulher oferece à vida inteira das sociedades e nações. É
uma contribuição, inicialmente, de natureza espiritual e cultural, mas também sócio-política e econômica.
Devem realmente muito ao subsídio da mulher, os vários setores da sociedade, os Estados, as culturas
nacionais, e, em última análise, o progresso de todo o gênero humano!
8. Normal mente, o progresso é avaliado segundo categorias técnicas e científicas; ora, até sob este ponto de
vista, não falta a contribuição da mulher. Mas, essas não são as únicas dimensões do progresso, antes, não são
sequer as principais. Mais importante ainda é a dimensão ético-social, que diz respeito às relações humanas e
aos valores do espírito: e, nesta dimensão, freqüentemente desenvolvida sem alarde, a partir das relações
quotidianas entre as pessoas, especialmente dentro da família, a sociedade é em larga medida devedora,
precisamente, ao gênio da mulher.
A este respeito, gostaria de manifestar particular gratidão às mulheres empenhadas nos distintos setores da
atividade educativa, para além da família: infantários, escolas, universidades, instituições de assistência,
paróquias, associações e movimentos. Onde quer que se revele necessário um trabalho de formação, pode-se
constatar a imensa disponibilidade das mulheres a dedicarem-se às relações humanas, especialmente em prol
dos mais débeis e indefesos. Nesse trabalho, elas realizam uma forma de maternidade afetiva, cultural e
espiritual, de valor realmente inestimável, pela incidência que tem no desenvolvimento da pessoa e no futuro da
sociedade. E como não lembrar aqui o testemunho de tantas mulheres católicas e de tantas Congregações
Religiosas femininas, que, nos vários continentes, fizeram da educação, especialmente dos meninos e meninas,
o seu principal serviço? Como não pensar com espírito de gratidão em todas as mulheres que operam, e
continuam a fazê-lo, no campo da saúde, não só no âmbito das instituições sanitárias bem organizadas, mas,
com frequência, em circunstâncias muito precárias, nos países mais pobres do mundo, dando testemunho de
disponibilidade que toca não raro o martírio?

7. O Gênio da Mulher
9. Faço votos pois, caríssimas irmãs, para que se reflita com particular atenção sobre o tema do gênio da
mulher, não só para nele reconhecer os traços de um preciso desígnio de Deus, que há-de ser acolhido e
116 Escola Mater Ecclesiae
honrado, mas também para lhe dar mais espaço no conjunto da vida social, bem como da vida eclesial.
Precisamente sobre este tema, de resto já considerado por ocasião do Ano Mariano, pude deter-me amplamente
na mencionada Carta Apostólica Mulieris Dignitatem, publicada em 1988. Além disso, este ano, por ocasião
da Quinta-Feira Santa, quis unir idealmente a Mulieris Dignitatem à habitual Carta que envio aos sacerdotes
convidando-os a refletirem sobre o significativo papel que na sua vida desempenha a mulher como mãe, como
irmã e como colaboradora nas obras de apostolado. Esta é outra dimensão - distinta da conjugal, mas
importante também - daquele auxílio que a mulher, segundo o Gênesis, é chamada a prestar ao homem.
A Igreja vê, em Maria, a máxima expressão do gênio feminino e encontra nela uma fonte incessante de
inspiração. Maria definiu-se serva do Senhor (cf. Lc 1,38). Foi por obediência à Palavra de Deus que ela
acolheu a sua vocação privilegiada, mas nada fácil, de esposa e mãe da família de Nazaré. Pondo-se ao serviço
de Deus, ela colocou-se também ao serviço dos homens: um serviço de amor. Este mesmo serviço permitiu-lhe
realizar na sua vida a experiência de um misterioso, mas autêntico reinar. Não é por acaso que é invocada como
Rainha do céu e da terra. Assim a invoca toda a comunidade dos crentes; invocam-na como Rainha muitas
nações e povos. O seu reinar é servir! O seu servir é reinar!
Assim deveria ser entendida a autoridade, tanto na família, como na sociedade e na Igreja. O reinar é
revelação da vocação fundamental do ser humano, enquanto criado à imagem daquele que é Senhor do céu e da
terra, e chamado em Cristo seu filho adotivo. O homem é a única criatura sobre a terra a ser querida por Deus
por si mesma, como ensina o Concílio Vaticano II, o qual, de modo significativo, acrescenta que o homem não
se pode encontrar plenamente a não ser no sincero dom de si mesmo (Gaudium et Spes,24).
Nisto consiste o materno reinar de Maria. Tendo-se feito, com todo o seu ser, Dom para o seu Filho, ela veio
a tornar-se também dom para os filhos e filhas de todo o gênero humano, gerando uma profundíssima confiança
em quem a ela recorre para ser guiado pelos caminhos difíceis da vida até ao próprio destino definitivo e
transcendente. Cada um chega através das etapas da própria vocação a esta meta final, uma meta que orienta o
empenho na história tanto do homem como da mulher.

8. Homem e Mulher: funções diferentes


10. Neste horizonte de serviço que, se prestado com liberdade, reciprocidade e amor, exprime a verdadeira
realeza do ser humano - é possível acolher também, sem conseqüências desfavoráveis para a mulher, uma certa
diversidade de papéis, na medida em que tal diversidade não é fruto de arbitrária imposição, mas brota da
peculiaridade do ser masculino e feminino. É um tema que tem a sua específica aplicação, mesmo no seio da
Igreja. Se Cristo - por escolha livre e soberana, bem testemunhada no Evangelho e na constante tradição
eclesial - confiou somente aos homens a tarefa de ser ícone da sua imagem de Pastor e Esposo da Igreja através
do exercício do sacerdócio ministerial, isto em nada diminui o papel da mulher, como afinal sucede com os
outros membros da Igreja não investidos do sagrado ministério, já que todos são igualmente dotado da
dignidade própria do sacerdócio comum, radicado no Batismo. Tais distinções de papéis, com efeito, não
devem ser interpretadas à luz dos cânones em uso nas sociedades humanas, mas com os critérios específicos da
economia sacramental, ou seja, daquela economia de sinais livremente escolhidos por Deus para Se fazer
presente no meio dos homens.
De resto, precisamente na linha desta economia de sinais, mesmo se fora do âmbito sacramental, não é de
pouca importância a feminilidade vivida segundo o sublime modelo de Maria. Há, de fato, na feminilidade da
mulher crente, e especialmente da mulher consagrada, uma espécie de profecia imanente (cf. Mulieris
Dignitatem, 29), um simbolismo fortemente evocador, dir-se-ia uma sugestiva inconicidade, que se realiza
plenamente em Maria e exprime bem o ser mesmo da Igreja, enquanto comunidade consagrada com a dimensão
de absoluto de um coração virgem, para ser esposa de Cristo e mãe dos crentes. Nesta perspectiva de
complementaridade icônica dos papéis masculino e feminino, ficam mais em evidência duas dimensões
imprescindíveis da Igreja: o princípio mariano, e o princípio apostólico-petrino (cf. ibid.,27).
Por outro lado - lembrei-o aos sacerdotes na mencionada Carta da Quinta-Feira Santa deste ano -, o
sacerdócio ministerial, no desígnio de Cristo, não é expressão de domínio, mas de serviço (n o 7). É tarefa
urgente da Igreja, na sua renovação quotidiana à luz da Palavra de Deus, pólo sempre mais em evidência, quer
no desenvolvimento do espírito de comunhão e na promoção atenta de todos os instrumentos tipicamente
eclesiais da participação, quer através do respeito e valorização dos inúmeros carismas pessoais e comunitários,
que o Espírito de Deus suscita para edificação da comunidade cristã e serviço dos homens.
Neste amplo espaço de serviço, a história da Igreja nestes dois milênios, apesar de tantos condicionalismos,
conheceu realmente o gênio da mulher, tendo visto surgir no seu seio mulheres de primeira grandeza, que
deixaram amplos e benéficos vestígios de si no tempo. Penso na longa série de mártires, de santas, de místicas
insignes. Penso, de modo especial, em Santa Catarina de Sena e em Santa Teresa de Ávila, a quem o Papa
117 Escola Mater Ecclesiae
Paulo VI, de venerável memória, conferiu o título de Doutora da Igreja. E como não lembrar também tantas
mulheres que, impelidas pela fé, deram vida a iniciativas de extraordinário relevo social, especialmente ao
serviço dos mais pobres? O futuro da Igreja, no terceiro milênio, não deixará certamente de registrar novas e
esplêndidas manifestações do gênio feminino.

9. Conclusão
11. Vede, portanto, caríssimas irmãs, quantos motivos tem a Igreja para desejar que, na próxima Conferência
promovida em Pequim pelas Nações Unidas, se ponha em evidência a verdade plena sobre a mulher. Seja
colocado realmente em devido relevo o gênio da mulher, tendo em conta não somente as mulheres grandes e
famosas, do passado ou nossas contemporâneas, mas também as mulheres simples, que exprimem o seu talento
feminino com o serviço aos outros na normalidade do quotidiano. De fato, é no doar-se aos outros na vida de
cada dia, que a mulher encontra a profunda vocação da própria vida, ela que talvez mais que o próprio homem
vê o homem, porque o vê com o coração. Vê-o independentemente dos vários sistemas ideológicos e políticos.
Vê-o na sua grandeza e nos seus limites, procurando ir ao seu encontro e ser-lhe de auxílio. Deste modo,
realiza-se na história da humanidade o fundamental desígnio do Criador e aparece à luz incessantemente, na
variedade das vocações, a beleza - não só física, mas sobretudo espiritual - que Deus prodigalizou desde o
início à criatura humana e especialmente à mulher.
Ao mesmo tempo que, na minha oração, confio ao Senhor o bom êxito do importante encontro de Pequim,
convido as comunidades eclesiais a fazer do ano em curso ocasião para uma profunda ação de graças ao Criador
e ao Redentor do mundo precisamente pelo Dom de um bem tão grande como é o da feminilidade: esta, nas
suas múltiplas expressões, pertence ao patrimônio constitutivo da humanidade e da mesma Igreja.
Que Maria, Rainha do amor, vele pelas mulheres e pela sua missão ao serviço da humanidade, da paz, da
difusão do Reino de Deus! Com a minha Bênção Apostólica. Vaticano, 29 de junho de 1995, solenidade dos
Apóstolos S. Pedro e S. Paulo. Joannes Paulus PP.II
Os Módulos 36 e 37 deste Curso tem o caráter de documentário, que servirá à reflexão dos leitores, sem o
habitual questionário.

A FAMÍLIA SEGUNDO O CATECISMO DA IGREJA CATÓLICA


Natureza da Família
2201. A comunidade conjugal está fundada no consentimento dos esposos. O casamento e a família estão
ordenados para o bem dos esposos e a procriação e a educação dos filhos. O amor dos esposos e a geração dos
filhos instituem entre os membros de uma mesma família relações pessoais e responsabilidades primordiais.
2202. Um homem e uma mulher unidos em casamento formam com seus filhos uma família. Esta disposição
precede todo reconhecimento por parte da autoridade pública, impõe-se a si mesma e deve ser considerada
como a referência normal, em função da qual devem ser avaliadas as diversas formas de parentesco.
2203. Ao criar o homem e a mulher, Deus instituiu a família humana e dotou-a de sua constituição
fundamental. Seus membros são pessoas iguais em dignidade. Para o bem comum de seus membros e da
sociedade, a família implica uma diversidade de responsabilidades, de direitos e de deveres.

Família Cristã
2204. Uma revelação e atuação específica da comunhão eclesial é constituída pela família cristã, que
também, por isso, se pode e deve chamar igreja doméstica. É uma comunidade de fé, de esperança e de
caridade; na Igreja ela tem uma importância singular, como se vê no Novo Testamento.
2205. A família cristã é uma comunhão de pessoas, vestígio e imagem da comunhão do Pai, do Filho e do
Espírito Santo. Sua atividade procriadora e educadora é o reflexo da obra criadora do Pai. A família é chamada
a partilhar a oração e o sacrifício de Cristo. A oração cotidiana e a leitura da Palavra de Deus fortificam nela a
caridade. A família cristã é evangelizadora e missionária.
2206. As relações dentro da família acarretam uma afinidade de sentimentos, de afetos e de interesses,
afinidade essa que provém sobretudo do respeito mútuo entre as pessoas. A família é uma comunidade
privilegiada chamada a realizar uma comunhão de alma no bem-querer, a decisão comum dos esposos e a
diligente cooperação dos pais na educação dos filhos.

MÓDULO 38: A ALMA DAS MULHERES


Alegando que a Igreja durante séculos não valorizou devidamente a mulher, há historiadores que apelam
para o Concílio de Mâcon (Gália) em 585; os Bispos reunidos teriam então discutido se a mulher tem ou não
118 Escola Mater Ecclesiae
tem alma. Segundo o escritor Garcia Redondo, só por uma "diminuta maioria" é que eles convieram em
reconhecer à mulher a dignidade humana. Outros autores dizem que recusaram formalmente tal proposição. -
Visto que este tópico passa de boca em boca sem que os próprios narradores saibam exatamente de que se trata,
vamos abordar o assunto nas páginas seguintes.

Lição 1: O Concílio de Mâcon (585)


O único fundamento das alegações acima é um trecho da Historia Francorum (História dos Francos) de S.
Gregório de Tours, que, referindo-se ao Concílio de Mâcon, descreve o seguinte:
"Houve neste Sínodo um Bispo que dizia não poder a mulher chamar-se homem. No entanto, deu-se por
satisfeito, quando Bispos lhe apresentaram as razões, recordando-lhe o que ensinava o livro do Antigo
Testamento, o qual diz que no princípio, quando Deus criou o homem, os criou varão e fêmea e lhes deu o
nome de Adão, isto é, homem da terra e, dando embora à mulher o nome de Eva, os chamou homem a ambos.
Aliás, Nosso Senhor Jesus Cristo é também chamado Filho do Homem, porque nasceu da Virgem Santíssima,
que é uma mulher. Quando ele converteu a água em vinho, disse: 'Mulher que há entre ti e mim ?'Graças a estes
testemunhos e a vários outros, a questão ficou liquidada e a discussão terminou" (VIII, XX)
Este é o único depoimento pelo qual somos informados a respeito do incidente. As atas do Concílio de
Mâcon, que nos foram conservadas e que constam de vinte cânones (leis), dizem respeito aos principais deveres
dos fiéis e do clero, e não fazem a mínima menção do episódio em pauta. Donde se deduz que este não deve ter
ocorrido nas próprias sessões do Concilio, mas em conversas particulares, fora das sessões oficiais. Um único
Bispo então levantou a questão: pode-se designar o sexo feminino pela palavra latina homo? Vê-se que não se
tratava de uma questão teológica, mas de um ponto de vocabulário e lingüística; na verdade, não se discutiu a
existência de alma nas mulheres.
Por conseguinte, a versão que até hoje é veiculada em conversas, lançando sobre a Igreja uma nota sombria,
carece de fundamento na realidade. É amostragem muito significativa de como surgem lendas e estórias com
aparência de historicidade, aptas a impressionar o público pouco informado sobre o assunto.
Procuremos entender melhor a dificuldade levantada pelo anônimo Bispo no Concílio de Mâcon.

Lição 2: O Porquê do Problema


1. O português, o francês, o italiano, o espanhol e outras línguas carecem de vocábulo próprio para designar
genericamente todos os indivíduos humanos, abstraindo da diferença sexual. Por isto, tais línguas são obrigadas
a usar o vocábulo que indica o indivíduo masculino (homem, homme, uomo, hombre...) para designar a
espécie humana. Dizemos, por exemplo: "o homem é um ser mortal", tencionando designar com tal termo
masculino (homem) também a mulher. Ao contrário, o latim, como também o grego, o alemão, possuem, além
dos termos específicos (vir-femina, em latim; anér-gyné, em grego; Man-Weib ou Frau em alemão) um
termo genérico que designa todo e qualquer indivíduo pertencente à espécie humana: homo, ánthropos,
Mensch. A existência de tal vocábulo é vantagem para as línguas que o possuem, pois aumenta a clareza da
expressão, evita a confusão, e facilita o debate filosófico. Acontece, porém, que nem sempre em latim se retinha
o sentido genérico do vocábulo homo; era utilizado por vezes para indicar ou um indivíduo masculino ou
mesmo um feminino. O primeiro destes empregos resultou em que homo nas línguas neo-latinas designa,
primeiramente, o indivíduo masculino. Há exemplos, no latim clássico, de homo significando mulher, mas são
raros; eram tidos como exceções (cf. Cícero, Pro Cluent. LXX; Ad Familiares IV V; Ovídio, Fast. V 620;
Juvenal VI, 282; Plínio, Historia Natural XXVIII, IX, 33). Os gramáticos latinos toleravam tal uso, mas não
permitiam que se atribuísse à palavra homo o gênero gramatical feminino. Assim escreve Charisius:
"Heres, parens, homo, etsi in communi sexu intellegantur tamen masculino genere semper dicuntur. Nemo
enim secundam heredem dicit aut bonam parentem aut malam hominem, sed masculine, etsi de femina
habeatur"(Ver Keil, Grammatici latini, t.l, p. 102). Simplificando: os gramáticos toleravam que se afirmasse "O
homem é mortal", tendo em vista o ser masculino e o feminino, mas não permitiam que se dissesse: "A mulher
é mortal".
2. Ora acontece que os autores cristãos latinos da antiguidade faziam uso da liberdade concedida pelo
gramático Charisius. Assim o próprio Gregório de Tours relata uma visita que ele fez a Ingeberga, viúva do rei
Cariberto, dizendo: 'Accessi, fateor vidi hominem timentem Deum, qui cum me benigne excepisset...
"(Historia . Francorum IXXXVI). O que significa: 'Aproximei-me, digo, e vi um homem (uma pessoa) que
temia a Deus, o qual, após me ter benignamente recebido... "
Na linguagem feudal, homem era sinônimo de vassalo, de modo que se tornou freqüente o uso do vocábulo
homem para designar a mulher-vassalo. Assim lê-se em Molanus, Historiae Lovanienses IV, 4: "Quod mulieres
sint etiam homines Sancti Petri. - As mulheres são também vassalos (homens) de São Pedro."
119 Escola Mater Ecclesiae
A Condessa Margarida da Flândria escrevia a São Luís de França: "Sire, si vos requier com vostre cousine et
vostre hom."
Entende-se agora qual o objeto da discussão de que fala S. Gregório de Tours, no Concílio de Mâcon. O
Bispo em questão duvidava da legitimidade de um costume raro, mas autorizado pelos gramáticos, de se usar a
palavra homo para designar um indivíduo do sexo feminino. Quando lhe mostraram, por exemplos tirados da
Bíblia, que a sua crítica carecia de fundamento, o Bispo retirou seu questionamento e o caso não teve ulteriores
seqüelas.
Vê-se assim quanto é necessário que, ao falar de história, principalmente de História da Igreja, o cidadão
contemporâneo se certifique daquilo que tenciona afirmar, afim de não cometer um erro historiográfico e uma
injustiça. Vê-se também que não se questionou nas sessões do Concílio a existência de alma humana intelectiva
na mulher, mas se tratou apenas de uma questão de nomenclatura. Ninguém pôs em dúvida a autêntica pertença
da mulher à espécie humana intelectiva ou racional.

PERGUNTAS
1) Em que consistiu o problema da alma das mulheres?
2) Como se resolveu?
3) Explique a questão lingüística subjacente ao problema.

PARTE III: O PECADO: A) FUNDAMENTAÇÃO BÍBLICA

MÓDULO 39: O PARAÍSO TERRESTRE


Após haver explanado o conceito teológico de ser humano com as respectivas conotações, passamos a tratar
do pecado dos primeiros pais tal como nos é relatado pelas fontes da Revelação (a Escritura Sagrada e a
Tradição oral transmitidas pelo magistério da Igreja). A temática do pecado original não é propriamente da
alçada das ciências naturais nem do âmbito da Filosofia, mas se deriva estritamente da Palavra de Deus tal
como foi aprofundada e entendida através dos séculos. Alguns Concílios se detiveram sobre o assunto e, após
prolongadas reflexões de teólogos emitiram a respeito declarações que servem de baliza ao estudioso.
Procederemos por partes, começando por estudar o paraíso em que o Gênesis diz terem sido colocados os
primeiros pais.

A.FUNDAMENTAÇÃO BÍBLICA
Referida a formação do primeiro homem (Gn 2,7), o autor sagrado descreve o habitáculo em que Deus o
colocou: o chamado "paraíso terrestre" (2,8-15).
O estilo minucioso desta secção dá-lhe certa solenidade; mostra que o hagiógrafo lhe atribuía importância;
muito chamou a atenção dos teólogos, e também dos curiosos, no decorrer dos séculos.
Procuremos o significado desse paraíso, esclarecendo, antes do mais, a respectiva topografia.

Lição 1: As Interpretações Topográficas


Eis o texto do Gênesis relativo à instauração do paraíso terrestre, precedido dos seus versículos
introdutórios:
Gn 2, 4b "Quando o Senhor Deus fez a terra e os céus, 5ainda não havia sobre a terra arbustos selvagens nem
germinaram alguma planta cultivada, pois o Senhor Deus ainda não fizera chover sobre a terra e não havia
homem para lavrar o solo. 6Todavia uma corrente subia da terra e irrigava toda a superfície do solo. 7Então o
Senhor Deus formou o homem da argila do solo e insuflou em suas narinas um hálito de vida, de modo que o
homem se tornou um ser vivo. 8A seguir o Senhor Deus plantou um jardim em Éden, ao Oriente, e lá colocou o
homem que formara. 9E o Senhor Deus fez crescer do solo todas as espécies de árvores agradáveis à vista e
suaves ao paladar assim como a árvore da vida no meio do jardim e a árvore do conhecimento do bem e do mal.
10
E um rio saia de Éden para irrigar o jardim, e de lá se dividia em quatro braços.
11
O nome do primeiro é Fison; é o rio que contorna todo o país de Hevilá, onde se encontra o ouro. 12 E o
ouro deste país é bom ; lá também há resina e pedra de ónix. 13O nome do segundo rio é Gehon; é o que rodeia
toda a terra de Cuche. 14O nome do terceiro é Tigre; é o rio que corre ao Oriente de Assur. O quarto é o
Eufrates. 15E o Senhor tomou o homem e o colocou no jardim de Éden para que o cultivasse e guardasse".
Como se vê, o autor sagrado começa com uma exposição negativa do que era o mundo antes que Deus nele
produzisse o homem e sua habitação, o paraíso: a terra é dita nua, destituída de vegetação, porque o Senhor
ainda não fizera chover sobre ela nem criara o seu cultivador (v. 5). Não obstante, no v. 6 o hagiógrafo refere
que uma corrente de água, emanando do subsolo, umedecia a terra e - subentenda-se bem - produzia barro; esta
120 Escola Mater Ecclesiae
observação prepara imediatamente a narrativa subseqüente: a formação do homem por Deus à semelhança de
um vaso de argila nas mãos de seu oleiro.
Brevemente referida a criação do homem no v. 7, o texto passa a descrever a mansão e os bens de que
gozava o primeiro pai.
Deus planta um jardim para o homem (v. 8)... A figura de Deus Jardineiro, assim como a de Deus Oleiro
(2,7), a de Deus Cirurgião e Arquiteto (2,21s), a de Deus Alfaiate (3,21), indica o carinho com que o Senhor
trata a criatura humana; o homem tem suas origens envolvidas no beneplácito do Criador!
Numerosos são os traços que descrevem o horto assim plantado. Neste capítulo interessam-nos os três dados
que parecem indicar a sua topografia: Deus plantou 1) no Oriente 2) em Éden (v. 8) um parque 3) onde se
encontravam quatro rios: o Fison, o Gehon, o Tigre, e o Eufrates (vv. 10-14).
Estas notícias, principalmente a terceira, têm sido entendidas dos mais diversos modos. Vejamos, pois, qual
o seu sentido genuíno.
l ) O Jardim estava situado ao Oriente (região do sol nascente). Pois que o Oriente significa o princípio do
curso (aparente) do sol, a mesma palavra hebraica qedem podia designar Oriente e princípio. Foi o que induziu
S. Jerônimo a traduzir menos corretamente, na Vulgata latina: "Deus plantou... no princípio" (2,8).
2) Em Éden. Éden é a forma hebraica do termo sumérico edin (em babilônico, edinu), que significa estepe
fértil. Há quem queira identificar Éden com Bit Addini (= Casa de Éden, em assírio), região situada à margem
do Eufrates, ao sul de Edessa. Essa teoria, porém, carece de sólido fundamento. Melhor será, pois, dizer que o
hagiógrafo situava o Éden (estepe fértil) ao Oriente, a saber, da Palestina, sem nos permitir mais precisas
deduções.
Visto que o conceito de estepe fértil se liga freqüentemente com o de bem-estar, Éden, em hebraico, passou a
significar devidamente delícias (cf. Jr 51,34); donde a tradução da Vulgata latina: "um paraíso de delícias".
Quanto ao termo paraíso, é palavra de origem persa (= pairidaeza), que designava os parques dos reis da
Pérsia. A edição grega dos LXX e a Vulgata latina usaram deste termo para produzir o hebraico gan (= jardim),
realçando mais assim o caráter encantador do dito lugar.
Donde a evolução do texto original induzida pelos tradutores:
"Um jardim na estepe fértil ao Oriente
↓ ↓ ↓
Um paraíso de delícias no princípio"
3) Um grande rio irrigava o jardim, separando-se em quatro braços de água, denominados respectivamente
Fison, Gehon, Tigre e Eufrates (w. 10-14).
Destes quatro rios, os dois últimos se deixam claramente reconhecer como sendo os que delimitam a
Mesopotâmia. Quanto aos dois primeiros nomes, os exegetas, desde Flávio José judeu do séc. 1o d.C.), têm
procurado de todos os modos identificá-los; donde resultam hoje cerca de oitenta hipóteses a respeito dos rios e,
conseqüentemente, a respeito da localização do paraíso! Uma opinião bastante antiga é a que identifica o Gehon
com o rio Nilo ou um dos seus afluentes, dado que o Gehon é dito contornar a terra de Cuche (que muitos
julgam, com bom fundamento filológico, ser a Etiópia) ; o Fison seria o Ganges, visto que a região de Havilá,
por ele banhada, é localizada na Ásia Oriental. Admitida, porém, esta interpretação, nada de preciso se tem
sobre a posição do paraíso, visto que os quatro rios apontados distam não pouco uns dos outros e não têm
nascente comum55. Dada, pois, a incerteza das indicações, houve, principalmente nos dois últimos séculos,
quem quisesse localizar o paraíso na Armênia, na Arábia, na Babilônia, na Índia, na China, mesmo no Polo
Norte, na África Ocidental, em Mecklenburg (Alemanha Setentrional), nas ilhas Canárias, no Peru, etc...
Na Antigüidade e na Idade Média ainda outras opiniões estavam em voga. Já uma tradição judaica colocava
o paraíso no céu junto de Deus.56 Alguns Padres e escritores cristãos prosseguiram esta tradição, afirmando que
o paraíso está fora deste mundo; assim S. Ireneu (que afirmava para lá terem sido transferidos Henoque e Elias),
Latâncio, S. Ambrósio, S. Atanásio, também as videntes místicas S. Hildegardes, S. Liduvina, Ana Catarina
Emmerich. Outros cristãos, ao contrário, admitiam que o paraíso ainda existe na terra, mas, depois do pecado de
Adão, é inacessível aos homens por estar cercado de montes, águas ou fogo; assim S. Isidoro de Sevilha,
Valafrido Estrabão, S. Tomás de Aquino (Suma Teológica 1 102, 1 ad 3). - Até o século 16, em geral, julgava-
se que o paraíso terrestre ainda existia e que negar isto seria heresia. Uma tal variedade de sentenças já é
suficiente para insinuar que a questão do local do paraíso terrestre, tal como este parece indicado pelo Gênesis,
é praticamente insolúvel.

55
Os Judeus e aqueles dentre os cristãos que seguiam a cosmologia judaica não teriam dificuldade em atribuir-lhes origem comum:
seria o oceano, que cercava a terra e dava origem a todos os rios.
56
Cf. Apocalipse de Baruque sírio 4,1-4; 51,9ss; 4 Esdras 3,6; 4,7s; 8,52.
121 Escola Mater Ecclesiae
Lição 2: O Significado Teológico do Paraíso
Diante da conclusão acima, alguns exegetas recentes propuseram a questão: Não será que o problema
mesmo está mal formulado?
O motivo desta dúvida é o seguinte: as sentenças enumeradas pressupõem que o autor sagrado nos queira
fornecer dados geográficos para localizarmos o jardim dos primeiros pais; supõem, pois, uma preocupação de
índole meramente topográfica, natural, na Sagrada Escritura. Ora as conclusões da exegese moderna têm
inculcado que tais pressupostos não se verificam: o que os hagiógrafos querem comunicar é a verdade religiosa;
ensinamentos de outra ordem não entravam, como tais, na sua tarefa de escritores sagrados; eram sempre
subordinados a uma finalidade religiosa. Donde argumentam: não sendo evidente que os quatro nomes de rios,
em Gn 2, 10-14, querem ser indicações topográficas (mas, ao contrário, sendo claro que não se podem entender
como dados geográficos), será preciso admitir que, conforme a finalidade de toda a narrativa de Gn 2 e da
Bíblia mesma, estes nomes têm significado não geográfico, mas religioso. Após aprofundados estudos da
literatura antiga, os autores hoje em dia chegam mesmo à conclusão de que os quatro nomes de rios citados
querem ser entendidos como indicações de qualidades, índices de valores, que servem para realçar verdades
religiosas contidas em Gn 2.
Eis como expõem e comprovam tal sentença.
O hagiógrafo, intencionando em Gn 2 inculcar a excelência do estado a que Deus elevou o primeiro homem,
quis ilustrar tal excelência também pelo seu modo de descrever a primeira mansão que Deus assinalou ao
homem; esta deveria ser apresentada bem harmoniosa, condigna de uma criatura altamente agraciada pelo
Criador (a Teologia ensina, sim, que Adão foi elevado a grande dignidade sobrenatural). Ora, para alcançar este
fim, o hagiógrafo julgou oportuno propor o paraíso irrigado por quatro rios.
O rio é sempre (e o era principalmente para o Oriental) um fator e símbolo de fecundidade, vida e
civilização (basta recordar que a vida do Egito se concentra toda em torno do Nilo);
quatro é o número que, conforme os antigos, simbolizava a totalidade das coisas deste mundo; 57 por
conseguinte, quatro rios significam toda a fecundidade, todos os benefícios, que as águas fluentes possam
trazer a uma região.
E, para mais ainda inculcar a sua tese, o autor quis dar aos quatro rios simbólicos os nomes de quatro
imponentes caudais: tal era certamente, para o Oriental, o Eufrates, nomeado sem ulterior explicação;58 tal era
o Tigre, caracterizado por correr a leste de Assur, capital de próspero Império até 1300 a.C.; o valor benéfico
do Fison é indicado por correr este rio em torno de uma terra rica em substâncias preciosas: ouro, pedra de
ônix, resina aromática; quanto ao Gehon, bastava dizer que tocava a Mesopotâmia, de um lado, e a Etiópia
(Cuche), de outro lado, para indicar pujança.
Em conclusão, pois, afirmar-se-á que os quatro rios paradisíacos devem ser interpretados como uma
expressão figurada da riqueza e dos encantos que ornavam a primeira vida do homem. O oriental incluía no
conceito de parque agradável a abundância de águas (os quatro rios, vv. 10-l 4), luz e sol ("a Oriente", v.8),
vegetação (as árvores plantadas por Deus, v. 9).
A fim de ilustrar, senão comprovar, esta explicação dos rios paradisíacos, os exegetas, com bom direito,
chamam a atenção para duas outras passagens da Sagrada Escritura e umas considerações de história literária:
1) Eclo 24,23.25: 'Á Lei de Moisés difunde a sabedoria como o Fison, e como o Tigre na primavera; é cheia
de sentido como o Eufrates...; faz jorrar a ciência... como o Gehon no tempo da vindêmia (isto é, da cheia)".
É este o único trecho de toda a Sagrada Escritura em que são de novo mencionados conjuntamente os quatro
rios paradisíacos. O seu autor tinha certamente em vista o texto de Gênesis; estabelece uma comparação da Lei
mosaica - algo de ótimo - com os quatro rios benéficos, e, usando a partícula "como", faz notar explicitamente
que está comparando. Todavia na linguagem humana, particularmente em hebraico, não é rara a comparação
"decurtata", ou seja, destituída de qualquer termo que indique claramente comparação. Pergunta-se, pois, se não
há em Gn 2, 10-14 uma dessas comparações implícitas, que diria: a harmoniosa mansão do primeiro homem era
semelhante a um jardim imaginariamente irrigado pelos mais benéficos rios do mundo.
2) Em Is 10,28.34, o profeta descreve de forma dramática uma futura incursão do exército assírio sobre
Jerusalém ; menciona etapa por etapa dos invasores como se estes fossem descer de Norte a Sul, para
finalmente, diante de Jerusalém, sucumbirem a inesperada derrota. Ora na realidade a incursão verificou-se e
terminou com o portentoso revés dos Assírios; todavia o itinerário anunciado por [saías não foi observado, pois
57
Alguns monarcas da Babilônia, no 3o milênio a.C., para significar seu domínio universal, cognominavam-se "Reis das quatro partes
do mundo". Na Sagrada Escritura, "as quatro extremidades da terra" (Is 11,12), "os quatro ventos" (Jr 49,36; Ez 37, 9; Dn 11,4; Mt
24,31) designam o mundo inteiro; cf. também Ap 7,1.
58
O Eufrates, na Sagrada Escritura, é não raro dito "o grande rio" (cf. Gn 15,18; Dt 1,7; Js 1,4) ou simplesmente o "rio" (cf Gn 31,21;
Ex 23, 31; SI 17,8).
122 Escola Mater Ecclesiae
os inimigos caíram sobre a Cidade Santa provindos do sudoeste (cf. Is 36s). Teria o profeta, por conseguinte,
errado em seu vaticínio? - Não, responde a sã exegese. O que Isaías intencionava, era predizer a incursão sobre
Jerusalém e a prodigiosa libertação desta cidade no sumo perigo. Dentro desta perspectiva, o itinerário era algo
de subordinado; servia, antes, de ornamento literário ao termo do vaticínio; por isto Deus não o revelou ao
profeta; em conseqüência, Isaías descreveu o percurso dos inimigos baseando-se nas experiências anteriores: os
Assírios, como os Babilônios, costumavam entrar na Palestina pelo Norte (cf. Jr 1,14). O profeta assim
colocava um acontecimento futuro, que ele predizia com segurança, dentro do seu ambiente ou "milieu"
provável, sem, porém, intencionar envolver sua autoridade neste pormenor acidental.
Ora algo de semelhante se terá dado em Gn 2, 8-14. Deus não quis revelar ao hagiógrafo a situação
geográfica do paraíso, minúcia que não interessava à finalidade religiosa do texto. Por conseguinte, o autor
sagrado referiu os dados que a tradição lhe fornecia ("o jardim era tal, irrigado pelos quatro ditos rios"), não,
porém, enquanto poderiam ser indicações topográficas, mas enquanto neles via um meio apto para exprimir a
bonança e a felicidade existentes no paraíso. – O paralelo assim estabelecido entre Is 10, 28-34 e Gn 2,8-14 se
funda no fato de que, conforme bons exegetas católicos, há uma analogia entre o estilo, muito ornamentado,
simbólico, com que os Profetas descreviam os acontecimentos futuros, e a forma literária com que o autor de
Gn 1-l1 narrava alguns feitos ou traços do passado; tais exegetas falam de uma "visão profética dos
acontecimentos pretéritos", paralela à "visão profética dos acontecimentos futuros".

PERGUNTAS
1) Afinal onde ficava o paraíso terrestre?
2) Que significado tem o paraíso terrestre?
3) Em que se baseia a interpretação teológica dada ao paraíso terrestre?

O PARAÍSO NA POESIA SÍRIA


Santo Efrém (t 373) é considerado o maior poeta sírio, chamado "a cítara do Espírito Santo". Nasceu em
Nísibe, por volta de 306, de pais cristãos. É possível que tenha acompanhado seu bispo, Tiago, ao Concílio de
Nicéia, como diz uma tradição. De qualquer modo, em 338 foi ordenado diácono, assim permanecendo até o
fim da vida. Em 363, após a tomada de Nísibe pelos persas, transferiu-se para Edessa.
Interpretando literalmente o texto bíblico, escreveu a respeito versos, que bem representam o pensamento
antigo:
123 Escola Mater Ecclesiae
"O ar do Paraíso Igreja de hinos.
É a fonte de prazer O claustro que o cerca
onde Adão bebia é a paz que tudo envolve.
Na juventude. Sua fortaleza, seu baluarte
Era um ar como seio de mãe, a concórdia que tudo reconcilia.
que o nutria na sua infância. Um querubim o guarda:
Adão era então muito belo, sorridente para os de dentro,
irradiante de alegria. ameaçante para os de fora,
O desprezo da ordem o fez velho, que estão na condenação.
triste, decaído, Sobre esse Paraíso, puro e santo,
e o fez carregar da velhice tudo que pudesses dizer
o peso de miséria. seria sutil...
Bendito seja aquele que exaltou Adão Mais que as estrelas
e o fez tornar ao Paraíso. de nosso céu visível,
Nem o frio malfazejo as flores desse Jardim
ou o calor ardente são densas e triunfantes.
conheceu o Paraíso, Algo de seu perfume
cheio de bênção e prazer, se exala por graça de Deus
porto das alegrias, e cura as doenças
reunião de todas as delícias, de nossa terra amaldiçoada.
lugar de luz e júbilo, Perfume curativo,
coro de harpas, casa de cítaras, traz remédio ao mal
ressoando clamores de hosanas, que nos veio da Serpente".

MÓDULO 40: O PECADO DOS PRIMEIROS PAIS


Prosseguindo quanto foi dito no Módulo anterior, procuraremos, antes do mais, explicitar o estado de
"bonança" em que se achavam os primeiros pais.

Lição 1 : A Justiça Original


Vimos que o Paraíso Terrestre era irrigado por quatro rios simbólicos, que significavam a bonança do estado
original dos primeiros pais.
Como entender essa bonança? Quem lê atentamente o texto bíblico, verifica que os primeiros homens
gozavam de dons especiais constitutivos da "justiça original"59; esta compreendia:
1) a filiação divina ou a graça santificante ou a elevação do homem à condição de filho de Deus, chamado a
participar da vida e da felicidade do próprio Deus. É o que se deduz do texto sagrado, o qual indica claramente
que Adão vivia na amizade com o Criador. Este dom é dito "sobrenatural", isto é, ultrapassa todas as exigências
de qualquer criatura.
2) Os dons preternaturais, isto é, que ampliavam as perfeições da natureza:
a) a imortalidade, pois em Gn 2,7; 3,3s. 19 a morte é apresentada como conseqüência do pecado; isto
significa que, antes do pecado, o homem não morreria dolorosa e tragicamente como hoje morre;
b) a impassibilidade ou ausência de sofrimentos, pois estes decorrem da sentença contraditória de Gn 3,1 6;
c) a integridade ou a imunidade de concupiscência desregrada, visto que os primeiros pais, antes do pecado,
não se envergonhavam da sua nudez (cf. Gn 2,25; 3,7-11); os seus instintos ou afetos estavam em consonância
com a razão e a fé; não havia neles tendências contraditórias;
d) a ciência moral infusa, que os tornava aptos a assumir as suas responsabilidades diante de Deus. Os dons
da justiça original não implicam que os primeiros homens fossem formosos; terão sido dons meramente
interiores, compatíveis com a configuração rude e primitiva que as ciências naturais atribuem aos primeiros
seres humanos.
A Bíblia menciona no paraíso duas árvores: a da ciência do bem e do mal e a da vida (Gn 2,9). Hoje em dia,
sabe-se pelo estudo das literaturas antigas que a árvore era um símbolo religioso assaz freqüente; 60 é, pois, em
sentido simbólico que entendemos as árvores dê Gn 2. A árvore da ciência do bem e do mal designa um
preceito ou um modelo de vida que daria ao homem a ciência ou a experiência concreta do que são o bem e o
59
Justiça, no caso, significa "santidade original".
60
Com efeito, os babilônios falavam de "erva da vida, alimento da vida, água da vida' atribuindo a estes elementos valor sagrado. Os
gregos e romanos conheciam a "ambrosia". alimento dos deuses que concedia eterna juventude. Ora para estes povos o alimento da
vida não era mais que um símbolo ou uma figura de linguagem.
124 Escola Mater Ecclesiae
mal. Era justo que Deus indicasse ao homem um modelo de vida, pois o homem, elevado à filiação divina, não
se deveria reger apenas por critérios racionais ou naturais, mas deveria seguir uma norma de vida incutida pelo
próprio Deus. Devemos renunciar a pedir pormenores desse modelo de vida. - Quanto à árvore da vida, pode-se
crer que ela dava ao homem o fruto da vida perpétua ou o sacramento da imortalidade; o homem saberia assim
que a imortalidade é um dom de Deus.

Lição 2: O Pecado dos Primeiros Pais


1. Em Gn 3,1 entra em cena a serpente como "o mais astuto de todos os animais do campo". Tal serpente é
imagem do demônio tentador. O livro da Sabedoria (2,23) diz que "Deus não fez a morte, mas esta entrou no
mundo por inveja do demônio"; e Jesus, aludindo a Gn 3, chama o Maligno "homicida desde o início,
mentiroso e pai da mentira" (Jo 8,44). O demônio é um anjo, que Deus criou bom, mas que se rebelou contra o
Criador por soberba (vê-se que desde as suas primeiras páginas a Escritura supõe e afirma a existência dos
anjos, especialmente a dos anjos maus). O autor sagrado quis simbolizar o Maligno mediante a figura da
serpente, porque esta freqüentemente na S. Escritura representa o homem malvado e fraudulento (Gn 49,17; Is
59,5; Mq 7,17; Jó 20,14-16; SI 140 [141], 4). Mais: é de observar que a serpente era, para os cananeus (antigos
habitantes da Terra de Israel), uma divindade associada à fecundidade e à vida; ora, precisamente para condenar
essa figura, o autor talvez tenha apresentado o tentador sob forma de serpente; assim a descrição da serpente
paradisíaca assumia, para o israelita, o valor de admoestação contra a sedução dos cultos idólatras que
cercavam a verdadeira religião.
Não é necessário admitir que a mulher tenha visto uma serpente diante de si, mas pode-se dizer que o
diálogo entre o tentador e a mulher foi meramente interno, como acontece geralmente nas tentações ao pecado.
2. Em Gn 3,6s está dito que os primeiros pais comeram da fruta proibida. Isto quer dizer que desobedeceram
a Deus ou não aceitaram o modelo de vida que o Senhor lhes havia apontado.
A raiz desse pecado foi a soberba. Notemos que a serpente, ao tentar os primeiros pais, disse explicitamente:
"No dia em que comerdes... os vossos olhos se abrirão e sereis como Deus, versados no bem e no mal" (Gn
3,5). Precisamente o homem quis ser como Deus, capaz de definir o que é o bem e o que é o mal, sem ter que
pedir normas ao Senhor. A soberba é o pecado do espírito, o único que os primeiros homens, portadores da
harmonia original, podiam cometer. A soberba se exteriorizou em determinado ato, que não podemos
identificar.
Há quem diga que o primeiro pecado foi de ordem sexual. Argumentam afirmando que 1) ciência ou
conhecimento na Bíblia significa por vezes o relacionamento sexual (cf. Gn 4,1.17.25) ; 2) os primeiros pais
estavam nus, e não se envergonhavam um do outro (2,25), mas após o pecado se recobriram (3,7) ; 3) a mulher
foi punida pelas dores do parto (3,16). A propósito observamos: 1) quando se trata do relacionamento sexual, o
texto sagrado diz "conhecer sua esposa" (cf. Gn 4,1.17.25), ao passo que em Gn 2,17; 3,5 se lê "conhecer o bem
e o mal"; 2) o aparecimento da concupiscência sexual e a vergonha se seguem à culpa e não precedem, como
seria lógico no caso de um pecado sexual; 3) a mulher, punida pelas dores do parto, foi atingida em sua função
específica de mãe, como o homem, condenado a ganhar o pão ao suor da sua fronte (3,19), foi atingido em sua
função típica de trabalhador; não há, pois, necessidade de recorrer a pecado sexual para explicar o tipo de
punição da mulher.
Vejamos agora

Lição 3: As Conseqüências do Pecado


Enumeremos as conseqüências do pecado: 1) em relação aos primeiros pais, cujo pecado é dito "pecado
original originante"; 2) em relação aos seus descendentes, que trazem "o pecado original originado".

3.1. Em relação aos primeiros pais (pecado original originante)


Em relação aos primeiros pais, o pecado acarretou a perda da justiça original, ou seja, da filiação divina e
dos dons que a acompanhavam. O texto sagrado (Gn 3,7) diz que, após o pecado, "abriram-se-lhes os olhos e
reconheceram que estavam nus". Essa nudez é, antes do mais, o despojamento interior ou a perda dos dons
originais; a concupiscência ou a desordem das paixões se manifestou; por isto sentiram a necessidade de se
vestir afim de encobrir a sua natureza desregrada. Não há dúvida, a diversidade de tendências dentro do homem
é algo decorrente da própria natureza humana (sensível e espiritual, ao mesmo tempo) ; todavia ela estaria
superada se o homem não tivesse pecado em suas origens; ela hoje existe como conseqüência do pecado. Da
mesma forma, os homens perderam o dom da imortalidade (ou o poder não morrer); sem dúvida, a morte é um
fenômeno natural, inerente à criatura, mas a sua realidade hoje é conseqüência do primeiro pecado, conforme a
S. Escritura (cf. Rm 5,12.19). O mesmo se diga em relação ao sofrimento; é um dos precursores da morte.
125 Escola Mater Ecclesiae
O pecado acarretou também a desarmonia no mundo irracional que cerca o homem; este já não é o ponto de
convergência das criaturas inferiores; ao contrário, estas muitas vezes prejudicam o homem e lhe negam a sua
serventia; tendo-se rebelado contra Deus, o homem sente contra si a rebelião das criaturas inferiores.
Depois da queda, o Senhor Deus quis interrogar os primeiros homens (Gn 3,8-13). As respostas são bem
características de quem é culpado: o homem, antes de confessar, acusa, com certa covardia, a esposa como
causa da sua desgraça (3,12); da mesma forma, a mulher acusa a outrem, a serpente (3,13). Ambos silenciam o
verdadeiro motivo da sua desobediência: a soberba ou o desejo de serem iguais a Deus, arbitrando entre o bem
e o mal ou definindo a sua própria regra de vida. Na verdade, o pecado acovarda o homem e separa-o do seu
semelhante e mesmo mais íntimo amigo.
Todavia o Senhor não quis apenas condenar os pecadores. Ao mesmo tempo, propôs-lhes a esperança da
reconciliação que é chamada, no caso, "o proto-evangelho" (ou o primeiro evangelho). Ler Gn 3,14s... A
sentença sobre a serpente não recai sobre o animal irracional, mas sobre o tentador: "rastejar e comer a poeira
da terra" são imagens que significavam derrota (os vencedores, na antigüidade, colocavam os adversários
derrotados no chão, debaixo de seus pés) ; o texto sagrado quer assim dizer que o demônio é um lutador já
vencido; poderá maltratar os fiéis de Deus no decorrer da história, mas pode estar certo de sua derrota final.
Para corroborar esta afirmação, o Senhor promete colocar inimizade entre a serpente (o tentador) e a mulher,
entre a descendência da serpente (os homens maus) e a descendência da mulher (os homens bons) – o que
significa: promete reconciliar a mulher e os seus descendentes com Deus. A mulher, no contexto, só pode ser
Eva; a sua descendência são os homens bons, que não seguem as sugestões do tentador; todavia o papel da
mulher e o de sua descendência só se tornaram plenos e perfeitos em Maria e em seu Filho Jesus Cristo; por isto
o proto-evangelho alude indiretamente a Maria e a Jesus Cristo, prometendo a vitória do Senhor Jesus sobre o
Maligno através da Cruz e da Ressurreição. Ver nosso Curso de Mariologia, Módulo 1.

3.2. Em relação aos descendentes (pecado original originado)


Em relação aos descendentes dos primeiros pais, o pecado original tornou-se algo de hereditário. Dizemos
que todos os homens nascem com a culpa original. Todavia é preciso entender que não se trata de culpa pessoal
ou de pecado voluntário nos descendentes de Adão e Eva.
Nestes o pecado original consiste na ausência dos dons originais (graça santificante, dons pretematurais),
que os primeiros pais deviam ter guardado e transmitido, mas não puderam transmitir porque pecaram. A
criança que hoje nasce, devia nascer com a graça santificante, mas isto não acontece ela nasce destoando do
exemplar ou do modelo que o Senhor lhe tinha assinalado; essa dissonância (que implica a concupiscência
desordenada e a morte) é que se chama, por analogia, "pecado original" nos pequeninos.
Por que Deus quis que a culpa dos primeiros pais assim repercutisse nos seus descendentes? Seria Deus
vingativo? A criança, que não pediu a eventualidade de nascer, muito menos pediu nascer com pecado!
Em resposta, diremos: toda criança que vem ao mundo, nasce dentro de um contexto social, geográfico, do
qual é solidária; assim há crianças que nascem no Brasil, outras na China, outras em Biafra, outras na Europa;
há crianças que nascem no século XX, outras nasceram no século II a.C. , outras no século X d.C. ... Cada uma
traz a herança da família, do lugar e da época em que nasce. Essa solidariedade é palpável, também no seguinte
caso: imaginemos um pai de família que numa noite perde todos os seus bens numa jogatina de cassino; os
filhos desse homem não têm culpa, mas hão de carregar as conseqüências (miséria, fome...) decorrentes do
destino de seu pai. Ora a solidariedade mais fundamental que cada um de nós traz, é a solidariedade com os
primeiros pais ; se estes perderam os dons originais, nós, sem culpa nossa, somos afetados por essa perda - o
que é muito lógico. Vê-se, pois, que a transmissão do pecado original não se deve a intenção vingativa de Deus,
mas é conseqüência da índole mesma da natureza humana.
A doutrina do pecado original pertence estritamente ao patrimônio da fé. Não é lícito reduzir o conceito de
pecado original ao de "pecado do mundo", como se não fosse mais do que o acúmulo de faltas pessoais que se
cometeram desde o início da história, fazendo que todo homem seja, desde os seus primeiros anos, seduzido ao
mal. Ver ulteriores considerações no módulo 44 deste Curso.

PERGUNTAS
1) Que é que se chama 'justiça original"?
2) Que elementos compreendia a justiça original?
3) Em que consistiu o pecado dos primeiros pais?
4) Que dizer da interpretação sexual do pecado dos primeiros pais ?
5) Que se entende por pecado original originante e pecado original originado?
6) Quais as conseqüências do pecado de Adão para os seus descendentes?
126 Escola Mater Ecclesiae
7) Deus é vingativo, punindo os filhos por causa dos pais?

PARTE III: O PECADO: B) HISTÓRIA DO DOGMA

MÓDULO 41: ATRADIÇÃOEO MAGISTÉRIO DA IGREJA


Lição 1: A Antiga Tradição
As palavras de S. Paulo em Rm 5,12-17 tiveram grande influência na tradição teológica, especialmente entre
os Padres ocidentais. Com efeito; o Apóstolo se refere a dois Adão: o primeiro, introdutor do pecado e da morte
no mundo; o segundo, o Redentor, que venceu o pecado e a morte, trazendo à humanidade a Boa Nova da Vida.
Já S. Ireneu (t 202) aludiu a essa antítese:
"Nós ofendemos a Deus no primeiro Adão, desobedecendo à sua ordem e fomos reconciliados com Ele no
segundo Adão, tornando-nos obedientes até a morte, pois não éramos devedores para com outro, mas para com
Aquele cuja ordem no princípio transgredimos" (Contra as Heresias 5, 16.3).
Nestes dizeres Adão aparece com um homem-compêndio, cuja falta não repercute apenas sobre ele, mas
sobre todos os seus descendentes.
Orígenes († 253) retorna a mesma perspectiva:
"Todos morrem em Adão, e assim todo o universo decaiu e necessita de ser reerguido, a fim de que todos
sejam novamente vivificados em Cristo (In Jeremiam, hom. 8, 1).
Orígenes refere o uso de batizar as crianças como oriundo da praxe dos próprios Apóstolos, que batizavam o
chefe de família e "toda a sua casa" (cf. At 10, 1s. 24.44.47s; 16, 31-33; 18,8; 1Cor 1,16). O mesmo insiste
sobre a índole de culpa do pecado original, pois, em caso contrário, a graça do Batismo seria inútil aos
pequeninos (In Leviticum, hom. 8,3).
Tertuliano († 220) criou a terminologia latina, falando de "pecado de origem" (vitium originis) e "pecado de
natureza" (vitium naturae); cf. De anima 41.
S. Cipriano († 258) justifica o Batismo de crianças do seguinte modo: se são admitidos ao Batismo os
grandes pecadores, "tanto menos dele devemos excluir a criança, que ainda não pecou, mas, nascida na carne
segundo Adão, contraiu neste primeiro nascimento o contágio da antiga morte; ela pode receber tanto mais
facilmente a remissão dos pecados, visto não lhe serem perdoados pecados pessoais, mas estranhos" (Epístola
64,5).
É de notar ainda o Ambrosiaster, autor do século IV a nós desconhecido, cujo estilo se assemelhava ao de S.
Ambrósio († 397) :
"Evidentemente todos pecaram em Adão, como em massa . De fato, como ele arruinou a si mesmo com o
pecado, assim todos aqueles que ele gerou, nasceram no pecado. Por isto nós todos somos pecadores por ele,
pois descendemos dele" (Ed. Migne, tomo 17, 92).
Os Padres orientais antigos não foram tão explícitos na afirmação do pecado original por causa do combate
contra o gnosticismo e o maniqueísmo, que admitiam haver seres humanos maus ou viciados por sua própria
natureza.
S. Agostinho († 430) teve que se opor a duas tendências extremadas: a dos pelagianos e a dos maniqueus.
Os pelagianos afirmavam que a natureza humana não sofreu deterioração em conseqüência do pecado de Adão;
é apta por si mesma a praticar o bem. Ao contrário, os maniqueus professavam que a natureza hu mana,
corpórea como é, é má, de modo que ela peca necessariamente. - S. Agostinho reconheceu que a natureza
humana herdada dos primeiros pais é propensa ao pecado, mas possui autêntica liberdade de arbítrio, que lhe
permite evitar o pecado. Todavia S. Agostinho, procurando combater o pelagianismo, excedeu-se ao apresentar
o pecado original como ferida infligida à natureza do homem; esta posição avançada de S. Agostinho foi
cultivada pelos reformadores protestantes e os jansenistas nos séculos XVI / XVIII.
Foi S. Anselmo († 1109) quem formulou com exatidão definitiva a noção de pecado original. Este não é um
pecado pessoal (como foi o dos primeiros pais), mas é uma privação: privação da justiça original, que devia ter
sido guardada e transmitida pelos primeiros pais, mas foi perdida pelo pecado. Tal privação faz que a natureza
humana careça da harmonia de que gozava no paraíso: os instintos e os sentidos não obedecem à razão; a
concupiscência desregrada é assim desencadeada e se faz sentir por toda a vida do homem; este
conseqüentemente é obrigado à ascese a fim de subordinar seus afetos aos anseios de sua vontade e aos ditames
da fé. Em linguagem escolástica diz-se: o elemento formal do pecado original originado é a ausência da justiça
original, ao passo que o elemento material do mesmo é a concupiscência desregrada, carente do controle que a
justiça original lhe impunha.
A doutrina de S. Anselmo permanece válida até nossos dias.
127 Escola Mater Ecclesiae
Lição 2: O Magistério da Igreja
2.1. Nos primeiros séculos
Os primeiros a negar o pecado original foram os pelagianos no século IV. O pecado original seria apenas
uma falta cometida por Adão, que deixou o mau exemplo para a posteridade, sem que esta possa ser tida como
culpada do que fez Adão. A concupiscência desregrada, a dor e a morte não estariam relacionadas com o
pecado dos primeiros pais, pois seriam tidas como dados naturais ou decorrentes da própria natureza do
homem. Daí, conforme os pelagianos, não ser necessário o Batismo das crianças para que cheguem à vida
eterna, mas tão somente para que atinjam a plena bem-aventurança do reino dos céus.
O magistério da Igreja opôs-se prontamente a tais erros no Concílio de Cartago em 416, na " Epístola
Tractoria" do Papa Zósimo, no Concílio de Orange em 529.

2.2. O Concílio de Trento (1545 -1563)


Os reformadores protestantes no século XVI ensinavam que o homem está radicalmente pervertido e sua
liberdade anulada pelo pecado original; identificavam o pecado herdado por cada homem com a tendência ao
mal (concupiscência), que seria insuperável. A Igreja pronunciou-se sobre o assunto no Concílio de Trento,
que, em seu decreto sobre o pecado original (promulgado em 17 de junho de 1546), rejeitou energicamente
doutrinas erradas, tanto sobre o pecado original quanto sobre a culpa hereditária:
"Se alguém não confessar que Adão, o primeiro homem, tendo infringido o mandamento de Deus no paraíso,
perdeu imediatamente a santidade e a justiça em que fora criado, ... e com isto incorreu na morte, com a qual
Deus o ameaçara antes, e com a morte incorreu no cativeiro sob o poder daquele que desde então teve o
domínio da morte, isto é, do diabo, e Adão, por causa desta ofensa do pecado, foi mudado totalmente, no corpo
e na alma, para pior: seja anátema.
Se alguém afirmar que a prevaricação de Adão prejudicou somente a ele e não a sua descendência, e que
perdeu a santidade e a justiça recebidas de Deus somente para si e não para nós também e que, manchado pelo
pecado da desobediência, transmitiu a todo o gênero humano apenas a morte e os castigos corporais, mas não o
pecado, que é a morte da alma: seja anátema.
Se alguém afirmar que este pecado de A dão, que é em sua origem um só, e é transmitido por propagação e
não por imitação, inerente e próprio a cada um, pode ser apagado pelas forças da natureza humana ou por
outros remédios que não os méritos do único Mediador nosso Senhor Jesus Cristo, o qual nos reconciliou em
seu sangue com Deus ...; ou negar que precisamente este mérito de Jesus Cristo é comunicado tanto aos adultos
como às crianças, através do sacramento do batismo, quando ministrado devidamente na forma da Igreja, seja
anátema" (Denzinger-Schönmetzen Enchiridion 1511-1513).

2.2. O Concílio do Vaticano II (1962-1965)


Já no século XX, o Concílio Vaticano II, em sua Constituição Pastoral sobre a Igreja no Mundo de Hoje (de
7 de dezembro de 1965), se pronunciou sobre a origem e sobre o poder do mal na história:
"Constituído por Deus em estado de justiça, o homem, contudo, instigado pelo Maligno, desde o início da
história abusou da própria liberdade. Levantou-se contra Deus desejando atingir seu fim fora dele. Apesar de
conhecerem a Deus, não o glorificaram como Deus. Os seus corações insensatos se obscureceram e eles
serviram à criatura ao invés do Criador!' (Rm 1,21ss). Isto, que nos é conhecido pela revelação divina, concorda
com a própria experiência. Pois o homem, olhando seu próprio coração, descobre-se também inclinado para o
mal e mergulhado em múltiplos males que não podem provir de seu Criador que é bom. Recusando muitas
vezes conhecer a Deus como seu princípio, o homem destruiu a devida ordem em relação ao fim último, e, ao
mesmo tempo, toda a harmonia consigo mesmo, com os outros homens e com as coisas criadas.
Por isto, o homem está dividido em si mesmo. Por esta razão, toda a vida humana, individual e coletiva,
apresenta-se como uma luta dramática entre o bem e o mal, entre a luz e as trevas. Bem mais ainda. O homem
se encontra incapaz por si mesmo de debelar eficazmente os ataques do mal, e assim cada um se sente como
que carregado de cadeias. Mas o próprio Senhor veio para libertar e confortar o homem, renovando-o
interiormente. Expulsou o 'príncipe deste mundo' (Jo 12,31), que retinha o homem na escravidão do pecado. O
pecado, porém, diminuiu o próprio homem, impedindo-o de conseguir a plenitude.
À luz desta revelação, a vocação sublime e ao mesmo tempo a profunda miséria que os homens sentem,
encontram a sua razão última" (no 13).
"Uma Juta árdua contra o poder das trevas perpassa a história universal da humanidade. Iniciada desde a
origem do mundo, vai durar até o último dia, segundo as palavras do Senhor. Inserido nesta batalha, o homem
deve lutar sempre para aderir ao bem; não consegue alcançar a unidade interior senão com grandes labutas e o
auxilio da graça de Deus" (no 37).
128 Escola Mater Ecclesiae
Mais recentemente ainda, ou seja, em 1992, a Igreja se manifestou sobre a doutrina do pecado original,
ponderadas todas as dificuldades que essa doutrina possa suscitar em ambientes críticos. Isto se deu no
Catecismo da Igreja Católica, que é mais do que um livro para principiantes; na verdade, é uma Súmula da
doutrina da Fé atualizada e dirigida aos homens de nossos tempos. - Dado o valor de tal documento, referiremos
no Módulo seguinte os seus dizeres relativos ao pecado original.

PERGUNTAS

1) Qual o texto que mais inspirou os Padres da igreja ao abordarem o tema do pecado original?
2) Como justificavam os Padres da Igreja o Batismo de crianças?
3) Que ensinava o Pelagianismo? Como S. Agostinho lhe respondeu?
4) Que ensinavam os reformadores protestantes do século XVI e como lhes respondeu o Concílio de Trento?
5) Qual o ensinamento do Concílio do Vaticano II a respeito?

PARTE III: O PECADO: C) APROFUNDAMENTO SISTEMÁTICO

MÓDULO 42: A DOUTRINA DO CATECISMO


Reservamos este Módulo à exposição da Doutrina do Catecismo da Igreja Católica, promulgado em 1992,
tendo em vista a necessidade de dirimir dúvidas ou hesitações teológicas e expor de maneira clara a doutrina
oficial da Igreja. - O texto resume em sentenças nítidas e concatenadas o que a fé ensina sobre o pecado
original, de modo que transcreveremos tal qual o texto oficial, distribuindo-o em três lições.

Lição 1: A Justiça Original


374. O primeiro homem não só foi criado bom, mas também foi constituído em uma amizade com o seu
Criador e em uma tal harmonia consigo mesmo e com a criação que o rodeava, que só serão superadas pela
glória da nova criação em Cristo.
375. Interpretando de maneira autêntica o simbolismo da linguagem bíblica à luz do Novo Testamento e da
Tradição, a Igreja ensina que os nossos primeiros pais Adão e Eva foram constituídos em um estado "de
santidade e de justiça original". Esta graça da santidade original era uma "participação na vida divina".
376. Pela irradiação desta graça, todas as dimensões da vida do homem eram fortalecidas. Enquanto
permanecesse na intimidade divina, o homem não devia nem morrer, nem sofrer. A harmonia interior da pessoa
humana, a harmonia entre o homem e a mulher, e finalmente a harmonia entre o primeiro casal e toda a criação
constituíam o estado denominado "justiça original".
377. O "domínio" do mundo que Deus havia outorgado ao homem desde o início realizava-se antes de tudo
no próprio homem como domínio de si mesmo. O homem estava intacto e ordenado em todo o seu ser, porque
livre da tríplice concupiscência que o submete aos prazeres dos sentidos, à cobiça dos bens terrestres e à auto-
afirmação contra os imperativos da razão.
378. O sinal da familiaridade com Deus é o fato de Deus o colocar no jardim. Lá vive "para cultivar e o
guardar" (Gn 2,15) : o trabalho não é uma penal idade, mas sim a colaboração do homem e da mulher com
Deus no aperfeiçoamento da criação visível.
379. É toda esta harmonia da justiça original, prevista para o homem pelo desígnio de Deus, que será perdida
pelo pecado dos nossos primeiros pais.

Lição 2: O Pecado dos Primeiros Pais


O pecado original - uma verdade essencial da fé
388. Com o progresso da Revelação é esclarecida também a realidade do pecado. Embora o Povo de Deus
do Antigo Testamento tenha abordado a dor da condição humana à luz da história da queda narrada no Gênesis,
não era capaz de entender o significado último desta história, que só se manifesta plenamente à luz da Morte e
da Ressurreição de Jesus Cristo. É preciso conhecer a Cristo como fonte de graça para conhecer Adão como
fonte do pecado. É o Espírito-Paráclito, enviado por Cristo ressuscitado, que veio estabelecer "a culpabilidade
do mundo a respeito do pecado" (Jo 16,8), ao revelar Aquele que é o Redentor do mundo.
389. A doutrina do pecado original é, por assim dizer, "o reverso" da Boa Notícia de que Jesus é o Salvador
de todos os homens, de que todos tem necessidade da salvação e de que a salvação é oferecida a todos graças a
Cristo. A Igreja, que tem o senso de Cristo, sabe perfeitamente que não se pode atentar contra a revelação do
pecado original sem atentar contra o mistério de Cristo.
129 Escola Mater Ecclesiae

Para ler o relato da queda


390. O relato sobre a queda (Gn 3) utiliza uma linguagem feita de imagens, mas afirma um acontecimento
primordial, um fato que ocorreu no início da história do homem. A Revelação dá-nos a certeza de fé de que
toda a história humana está marcada pelo pecado original cometido livremente pelos nossos primeiros pais.

A liberdade posta à prova


396. Deus criou o homem à sua imagem e o constituiu na sua amizade. Criatura espiritual, o homem só pode
viver esta amizade como livre submissão a Deus. É o que exprime a proibição, feita ao homem, de comer da
árvore do conhecimento do bem e do mal, "pois no dia em que dela comeres, terás que morrer" (Gn 2,17). "A
árvore do conhecimento do bem e do mal" (Gn 2,17) evoca simbolicamente o limite intransponível que o
homem, enquanto criatura, deve livremente reconhecer e respeitar com confiança. O homem depende do
Criador, está submetido às leis da criação e às normas morais que regem o uso da liberdade.

O primeiro pecado do homem


397. O homem, tentado pelo Diabo, deixou morrer em seu coração a confiança em seu Criador e, abusando
da sua liberdade, desobedeceu ao mandamento de Deus. Foi nisto que consistiu o primeiro pecado do homem.
Todo pecado, daí em diante, será uma desobediência a Deus e uma falta de confiança em sua bondade.
398. Neste pecado, o homem preferiu-se a si mesmo a Deus, e com isto menosprezou a Deus: optou por si
mesmo contra Deus, contrariando as exigências do seu estado de criatura e conseqüentemente de seu próprio
bem. Criado em um estado de santidade, o homem estava destinado a ser plenamente "divinizado" por Deus na
glória. Pela sedução do Diabo, quis "ser como Deus", mas "sem Deus, e antes de Deus e não segundo Deus"
399. A Escritura mostra as conseqüências dramáticas desta primeira desobediência. Adão e Eva perdem de
imediato a graça da santidade original. Têm medo desse Deus do qual fizeram uma imagem falsa, a de um Deus
enciumado das suas prerrogativas.
400. A harmonia na qual estavam, estabelecida graças à justiça original, está destruída; o domínio das
faculdades espirituais da alma sobre o corpo é rompido; a união entre o homem e a mulher é submetida a
tensões; suas relações serão marcadas pela cupidez e pela dominação. A harmonia com a criação está rompida:
a criação visível tornou-se para o homem estranha e hostil. Por causa do homem, a criação está submetida "a
servidão da corrupção" (Rm 8,20). Finalmente vui realizar-se a conseqüência explicitamente anunciada para o
caso da desobediência: o homem "voltará ao pó do qual é formado" (Gn 3,19). A morte entra na história da
humanidade.

Lição 3: As Conseqüências do Pecado


401. A partir do primeiro pecado, uma verdadeira "invasão" do pecado inunda o mundo: o fratricídio
cometido por Caim contra Abel; a corrupção universal em decorrência do pecado; na história de Israel, o
pecado se manifesta freqüentemente e sobretudo como uma infidelidade ao Deus da Aliança e como
transgressão da Lei de Moisés; e mesmo após a Redenção de Cristo, entre os cristãos, o pecado se manifesta de
muitas maneiras. A Escritura e a Tradição da Igreja não cessam de recordar a presença e a universalidade do
pecado na história do homem.
402. Todos os homens estão implicados no pecado de Adão. São Paulo o afirma: "Pela desobediência de um
só homem, todos se tornaram pecadores" (Rm 5,19). "Como por meio de um só homem o pecado entrou no
mundo e, pelo pecado, a morte, e assim a morte passou para todos os homens, porque todos pecaram..." (Rm
5,12). À universalidade do pecado e da morte o Apóstolo opõe a universalidade da salvação em Cristo: "Assim
como da falta de um só resultou a condenação de todos os homens, do mesmo modo, da obra da justiça de um
só resultou para todos os homens a justificação que traz a vida" (Rm 5,18).
403. Na linha de S. Paulo, a Igreja sempre ensinou que a imensa miséria que oprime os homens e a sua
inclinação para o mal e para a morte são incompreensíveis, a não ser referindo-se ao pecado de Adão e sem o
fato de que este nos transmitiu um pecado que por nascença nos afeta a todos e é "morte da alma". Em razão
desta certeza de fé, a Igreja ministra o batismo para a remissão dos pecados mesmo às crianças que não
cometeram pecado pessoal.
404. De que maneira o pecado de Adão se tornou o pecado de todos os seus descendentes? O gênero humano
inteiro é em Adão "sicut unum corpus unius hominis - como um só corpo de um só homem". Em virtude desta
"unidade do gênero humano" todos os homens estão implicados no pecado de Adão, como todos estão
implicados na justiça de Cristo. Contudo, a transmissão do pecado original é um mistério que não somos
capazes de compreender plenamente. Sabemos, porém, pela Revelação, que Adão havia recebido a santidade e
130 Escola Mater Ecclesiae
a justiça originais não exclusivamente para si, mas para toda a natureza humana; ao cederem ao Tentador, Adão
e Eva cometem um pecado pessoal, mas este pecado afeta a natureza humana, que vão transmitir em um estado
decaído. É um pecado que será transmitido por propagação à humanidade inteira, isto é, pela transmissão de
uma natureza privada da santidade e da justiça originais. E é por isso que o pecado original é denominado
"pecado" de maneira analógica: é um pecado "contraído" e não "cometido", um estado e não um ato.
405. Embora próprio a cada um, o pecado original não tem, em nenhum descendente de Adão, um caráter de
falta pessoal. É a privação da santidade e da justiça originais, mas a natureza humana não é totalmente
corrompida: ela é lesada na suas próprias forças naturais, submetida à ignorância, ao sofrimento e ao império da
morte, e inclinada ao pecado (esta propensão ao mal é chamada "concupiscência"). O Batismo, ao conferir a
vida da graça de Cristo, apaga o pecado original e torna a voltar o homem para Deus, porém as conseqüências
de tal pecado sobre a natureza, enfraquecida e inclinada ao mal, permanecem no homem e o incitam ao combate
espiritual.
406. A doutrina da Igreja sobre a transmissão do pecado original adquiriu precisão sobretudo no século V,
em especial sob o impulso da reflexão de S. Agostinho contra o pelagianismo, e no século XVI, em oposição à
Reforma protestante. Pelágio sustentava que o homem podia, pela força natural da sua vontade livre, sem a
ajuda necessária da graça de Deus, levar uma vida moralmente boa; limitava assim a influência da falta de
Adão à de um mau exemplo. Os primeiros Reformadores protestantes, ao contrário, ensinavam que o homem
estava radicalmente pervertido e sua liberdade anulada pelo pecado original: identificavam o pecado herdado
por cada homem com a tendência ao mal ("concupiscência"), que seria insuperável. A Igreja pronunciou-se
especialmente sobre o sentido do dado revelado no tocante ao pecado original no segundo Concílio de Orange
em 529 e no Concílio de Trento em 1546.

PERGUNTAS
1) Em que consiste o domínio de que os primeiros pais gozavam antes do pecado?
2) Como se relaciona a doutrina de pecado original com a obra da Redenção?
3) Qual foi o pecado dos primeiros pais ?
4) Quais as conseqüências do pecado para os primeiros pais?... E para os seus descendentes?
5) O pecado original nas crianças é culpa pessoal delas?

MÓDULO 43: PECADO ORIGINAL E MENSAGEM CRISTÃ


Não se poderia entender adequadamente a doutrina do pecado original como uma proposição isolada entre
outras do Credo cristão: pareceria sempre estranha, principalmente por apresentar todos os homens solidários
com a culpa de um só homem. Na verdade, tal doutrina deve ser considerada à luz do Cristo Jesus e da sua
obra.
É o que vamos fazer neste Módulo.

Lição 1: Cristo Jesus, Centro do Plano do Pai


1) Deus Pai concebeu todos os homens em vista de Jesus Cristo, verdadeiro Homem e verdadeiro Deus. É
em Cristo e por Cristo que todo ser humano vem à existência e chega à sua consumação. Lembra São Paulo que
o Pai predestinou os homens a se tornarem conformes à imagem de seu Filho, afim de que Este seja o
Primogênito entre muitos irmãos (cf. Rm 8,29; Ef 1,4.11 ; Cl 1, 15.18); " ao Cristo Jesus compete o primado em
toda a criação" (cf. Cl 1,18), e ninguém vai ao Pai senão por Cristo (cf. Jo 14,6).
Destas verdades se depreende que o Cristo Jesus é como que um Homem-compêndio, no qual estão contidas
as sortes de todos os homens; a vida de Cristo contém a dos demais homens. Assim Cristo constitui o eixo
central da história, que marca com a sua figura os tempos passados, presentes e futuros: "Jesus Cristo ontem,
hoje e por todos os séculos" (Hb 13,8).
2) Ora, antes que aparecesse Cristo na plenitude dos tempos, Deus Pai quis que no início dos séculos Ele
projetasse uma miniatura de si mesmo: o primeiro homem, Adão, tipo do futuro Homem, Cristo, que seria o
segundo Adão (cf. Rm 5,14). O primeiro pai do gênero humano, portanto, foi também um homem-compêndio,
no qual estavam envolvidas as sortes de todos.
Isto se compreende de algum modo quando se considera que todos os membros de uma estirpe estão
incluídos no seu Patriarca; é o Patriarca quem dá o nome e as características raciais à sua linhagem. Pois bem;
Deus Pai quis fazer todos os homens solidários com Adão não somente no plano natural, genealógico, mas
também no plano religioso.
131 Escola Mater Ecclesiae
3) Adão frustrou o seu ideal. Em vez de levar a si e a toda a sua linhagem para Deus Pai, ele se voltou contra
Deus e acarretou sobre o gênero humano miséria e morte.
4) A esta altura, talvez pergunte alguém: pode Adão ser realmente responsabilizado de tão importante falta?
Tinha consciência do que fazia?
- Por certo, Adão não possuía a ciência e a cultura de um cidadão do século XX; não obstante, Deus lhe
comunicou, como dito no Módulo 40, o dom pretematural da ciência, isto é, as luzes necessárias no plano
religioso e moral para que desempenhasse devidamente a sua função patriarcal; em caso contrário, o Senhor
Deus teria sido injusto.

Lição 2: Um Problema
Pergunta-se: e Deus Pai não sabia que Adão seria infiel, tornando infelizes todos os seus descendentes? E, se
o sabia, porque depositou tanta responsabilidade sobre Adão?
- Não há dúvida, Deus Pai previa a desobediência de Adão. Esta havia de decorrer exclusivamente da
liberdade de arbítrio do primeiro homem; Deus não a provocou. Para impedi-la, o Criador deveria ter retirado
ou suspenso milagrosamente o livre arbítrio que Ele havia dado como característica da nobreza humana. Ora o
Senhor Deus não quis retirar, por pouco que fosse, o que Ele havia outorgado. Não o quis, pois isto seria
indigno. Mas, usando de maior sabedoria e magnanimidade, Deus Pai se comprometeu consigo mesmo a
remediar maravilhosamente à desgraça do gênero humano decaído; tomaria ocasião da própria falta de Adão
para derramar maior amor e maior bondade sobre o gênero humano.
Ensina S. Agostinho que Deus "jamais teria permitido existisse qualquer mal em suas obras, se a sua
Onipotência e a sua Bondade não fossem tais que pudesse tirar do próprio mal o bem" (Enchiridion III 11).
Este solene princípio, reafirmado mais tarde por S. Tomás, é como que a chave que abre o mistério do pecado
neste mundo; é ele que ilumina o procedimento aparentemente frio e desconcertante de Deus frente à liberdade
humana; Deus não faz o que julgamos deveria fazer, porque quer fazer algo de muito mais sábio e grandioso.
Admitida esta norma, esvanece-se a perplexidade ocasionada pela história do pecado original: Deus quis, sim,
respeitar até o fim a liberdade do homem, mas houve por bem servir-se da própria ruína do homem para o
beneficiar ainda mais.
E como o beneficiou ainda mais?
Cristo, centro da história, veio ao mundo não somente como Mestre e Modelo, mas também como
Instaurador de uma ordem de coisas ainda mais estupenda do que a inicial; não veio apenas para restabelecer o
homem no estado donde decaíra, mas para elevá-lo a destino mais sublime.
Escrevem os teólogos carmelitas de Salamanca (séc. XVII) :
"Seria desordem e como que uma espécie de crueldade permitir o mal em vista apenas de o reparar e de nos
reconduzir ao nosso estado inicial. lsto, porém, não se dá quando o mal é permitido em função de um grande
bem que de longe ultrapassa esse mal e o apaga... Ora eis aqui o caso. Se Deus permitiu a catástrofe humana,
não foi apenas para lhe dar remédio posteriormente, mas foi na previsão da glória de Cristo Redentor cuja
dignidade supera de muito a malícia da queda permitida ...; foi outrossim em vista de um bem maior do gênero
humano mesmo, que recebe mediante o sangue de Cristo uma graça mais abundante e uma suprema nobreza"
(De Incarnatione, disp. 2, dub. 1 no 36).
É São Tomás († 1274) quem escreve:
"Nada impede que a natureza humana tenha sido elevada a um estado melhor após o pecado. Com efeito,
Deus permite que os males aconteçam para deles tirar maior bem. Donde a palavra de São Paulo aos Romanos:
'Onde o pecado abundou, a graça superabundou' (5,20). E o canto do 'Exultet': 'Ó feliz culpa, que mereceu tal e
tão grande Redentor! "' (S. Teol. II qu. l. art. 3, ad 3).
É o que permite ao Cardeal Charles Joumet, em nossos dias, concluir:
'A quem pergunta por que o poder de Deus não impediu, por algum milagre, o pecado do primeiro homem,
pode-se responder que ele se preparava a compensá-lo sobejamente por um milagre mais estupendo" (Le Mal,
Desclée de Brouwer 1961, pág. 284).
Enfim, Deus jamais teria permitido a queda do homem se no mesmo instante divino e eterno não tivesse
previsto a Redenção.

Lição 3: Objeta-se . . .
Contudo ainda uma objeção surge espontaneamente: O mundo atual, constantemente visitado pela dor, pelas
epidemias, mentiras e injustiças, o mundo que se convulsiona em guerras intercontinentais, aterrorizado pela
bomba atômica, manchado pelos campos de concentração e as câmaras de gás, tal mundo de hoje após a vinda
de Cristo como pode ser considerado melhor, em seu conjunto, do que o mundo anterior à culpa, em que havia
132 Escola Mater Ecclesiae
inocência apenas e nenhuma aflição? Existe em nosso mundo de hoje algum bem que não existisse no paraíso
terrestre e que compense sobejamente o peso quase esmagador das misérias atuais?
Eis o núcleo mais íntimo de todo o problema do pecado original e da Redenção; eis o ponto decisivo da
questão debatida nestas páginas.
Uma resposta cabal jamais poderia ser dada com a filosofia ou com o raciocínio apenas. É a fé que a
formula.
Ora a fé ensina que Cristo, o segundo Adão, o novo Pai do gênero humano, não é mero homem, mas é o
Filho eterno de Deus, possuindo dignidade infinita. Ele comunica aos homens a sua vida mediante o Batismo
ou o sacramento da regeneração; não lhes dá apenas vida humana, mas vida imortal, eterna, fazendo-os
participar da comunhão de vida do próprio Deus (Pai, Filho e Espírito Santo).
Para fazer-nos solidários consigo, com sua bem-aventurança infinita, Cristo fez-se primeiramente solidário
conosco, com nossas misérias e nossa morte; não as quis cancelar ou apagar da história, pois constituem a
sanção que em justiça o gênero humano deve carregar, afim de que a ordem seja devidamente reparada; Cristo
preferiu assumir tais misérias, passar por elas e acompanhar-nos na dor e na morte, afim de transfigurar esses
males, tornando-os vestíbulo para a ressurreição e a glória. Conseqüentemente afirma São Paulo:
"É digna de crédito esta palavra:
Se morrermos com Ele (Cristo), com Ele viveremos,
Se nos conservarmos firmes com Ele, com Ele reinaremos.
Se O renegarmos, também Ele nos renegará.
Se somos infiéis, Ele permanece fiel,
Pois não se pode renegar a Si mesmo" (2Tm2,11-13)
O que quer dizer: se compartilharmos o sofrimento e a morte com Cristo, ressuscitaremos triunfantes com
Ele. Se O rejeitarmos de maneira definitiva na hora da nossa morte, Ele reconhecerá e respeitará a nossa recusa.
Mas, se O repudiarmos transitoriamente nos altos e baixos da vida cotidiana, sempre O encontraremos pronto a
nos receber de volta. Podemos estar certos de que Ele nunca retirará de nós o seu convite e a sua solidariedade,
pois, em caso contrário, se desdiria e não seria Deus.
É a inabalável certeza destas verdades que, para o cristão, torna refulgente o espectro sinistro do sofrimento,
transformando a cruz, patíbulo de ignomínia, em árvore de vida. O mundo de hoje é ambivalente aos olhos da
fé: profundo motivo de dor, sim, mas também, e mais ainda, profundo motivo de exultação.
O cristão não se ilude; não julga que, com o decorrer dos tempos, haverá menos pecado e menos pranto nesta
terra; com efeito, a Escritura Sagrada, no Evangelho e no Apocalipse, prediz a multiplicação de iniqüidades e
aflições no fim da história. Contudo o cristão sabe que, quanto mais íntima lhe é a participação da Cruz do
Senhor, tanto mais bela será também a sua partilha no Reino de Cristo.
É nestes termos que a visão cristã do mundo é otimista. Ela não receia dizer que houve uma queda original e
que carregamos as conseqüências desta queda; mas ela afirma a existência de uma Providência Divina, que,
respeitando o livre jogo da vontade humana e suas conseqüências, não permite as quedas senão afim de as fazer
servir a maiores bens. Todo homem que toma consciência disto, concebe a grande preocupação de ser
incondicionalmente fiel a Deus em todas as conjunturas da sua existência; só Ele pode fazer da ignominia
glória, e da morte vida.

PERGUNTAS
1) Qual é o primeiro Homem-compêndio no plano do Pai?
2) Como o primeiro Adão respondeu ao desígnio de Deus?
3) Deus não sabia que Adão ia pecar? Por que permitiu?
4) O mundo de hoje é realmente melhor do que o estado paradisíaco dos primeiros pais?

MÓDULO 44: OBJEÇÕES À DOUTRINA CLÁSSICA


A clássica maneira de entender o pecado original parece a vários estudiosos de nossos dias entrar em conflito
com o modo geral de pensar do homem moderno. Em conseqüência , têm procurado reformular a doutrina do
pecado original. Ampla bibliografia apareceu a respeito nos últimos anos, da qual serão abaixo apresentadas as
linhas principais. Por certo, a doutrina do pecado original se reveste de importância capital, pois dela dependem
a Antropologia Teológica (ou o modo cristão de entender o homem através da história) e a Moral católica.
Examinaremos as objeções propostas, as teorias novas referentes ao assunto e finalmente poremos em clara
luz a doutrina da Igreja.
133 Escola Mater Ecclesiae
Lição 1: As Objeções
Eis as dificuldades levantadas:
1) A doutrina do pecado original supõe responsabilidade coletiva. Admite que todo o gênero humano tenha
estado incluído na pessoa de Adão e que este, como personalidade coletiva, tenha decidido a sorte de seus
pósteros: um ato de Adão, chefe ou cabeça do gênero humano, valeu como ato de todos os homens.
Ora ofende-se a dignidade humana quando se afirma que uma comunidade de homens possa ou deva ser
responsabilizada por um ato que a maioria dos mesmos não pôde em absoluto evitar; responsabilidade moral e,
por conseguinte, culpa moral só podem ser individuais, e não coletivas.
2) A geração biológica seria meio de propagação do pecado. - Este, porém, pertence à esfera ético-religiosa;
como pode ser transmitido por um processo biológico? Seria pecaminoso o ato de procriar?
3) A ciência moderna é inclinada a admitir na origem de cada espécie o poligenismo, ou seja, um grupo
inteiro, constituído de vários casais. O monogenismo, admitindo um só casal no princípio do gênero humano, é
hipótese demasiado estranha aos estudiosos contemporâneos.
4) A filosofia e a ciência de nossos dias propõem uma ascensão gradativa e certeira do gênero humano
através da sua pré-história e história. Não são propensas a admitir que os homens tenham estado outrora em
condições de bonança material e hajam sofrido uma queda em sua evolução. Nem se entende que a humanidade
de nossos dias esteja carregando as conseqüências de um pecado cometido na pré-história. Pecado é noção que
a Psicologia moderna tende a considerar superada ou ultrapassada. Em suma, custa crer que a história da
humanidade e, em particular, a obra de Cristo devam ser tidas como uma tentativa de recuperar o estado
original.
O pensamento moderno dá ênfase à possibilidade de progresso humano muito mais do que à aceitação de
uma Redenção vinda de Deus. Precisamente, o complexo de culpa associado à doutrina do pecado original é
tido como entrave desfavorável ao progresso humano.
Numa hipótese benigna, os homens modernos poderiam talvez admitir a doutrina teológica do pecado
original como uma maneira de explicar a aparente inclinação para o mal que constantemente se nota entre os
homens.
5) Como harmonizar a doutrina do pecado original com a vontade de Deus, que quer salvar todos os
homens? Cf. l Tm 2,4.
Baseados na consideração de tais objeções, os autores modernos propõem novas formas de explicar o pecado
original, recorrendo a certas categorias de pensamento da filosofia moderna.

Lição 2: As novas Teorias


1) Flick e Alszeghy, dois professores da Universidade Gregoriana de Roma, formularam a seguinte teoria:
Admita-se a origem do gênero humano por via de evolução. Um grupo de viventes não-humanos foi-se
hominizando61 ... Os primeiros seres humanos assim oriundos apareceram semelhantes a crianças, não
plenamente capazes de responsabilidade moral nem dotados de graça santificante; eram preparados mediante
graças preliminares para a elevação ao estado sobrenatural ou à filiação divina (g raça santificante). Finalmente
um indivíduo dessa população chegou à plenitude da responsabilidade moral. Deus então lhe fez conhecer o seu
desígnio de elevar o homem à filiação divina. Tal indivíduo, porém, recusou o plano de Deus; as conseqüências
desta rejeição se estendem a todos os indivíduos da estirpe humana (contemporâneos e pósteros do primeiro
pecador), pois Deus fizera deste o representante de toda a humanidade. - Assim é que se pode falar de um
pecado cometido nos primórdios da história por um só indivíduo de modo a repercutir sobre todo o gênero
humano. De um lado, evitar-se-ia dizer que o homem esteve outrora em condições de bonança material e
espiritual; de outro lado, aceitar-se-ia o poligenismo na Teologia católica.
Como se vê, esta teoria utiliza o conceito de personalidade coletiva (a sorte de toda a humanidade estaria
incluída na sorte de um de seus ancestrais). Sem este conceito não se poderia conceber que a queda de um
indivíduo se tenha tornado a queda de outros, distanciados do primeiro no tempo e no espaço.
Cf Flick e Alszeghy II peccato originale in prospettiva evoluzionistica, em Gregorianum 47 (1966) 201-225;
The Tablet 17sept. 1966, 1039-1041.
2) Piet Schoonenberg S. J., Professor do Centro Catequético de Nimega (Holanda), propõe a seguinte
teoria:
Não houve dons pretematurais nem graça santificante na origem do gênero humano. Este se foi formando
por evolução num grupo de indivíduos numerosos. Desde que os primeiros homens chegaram à
responsabilidade moral, começaram a pecar, pois a falha e o erro estão dentro das possibilidades da natureza
61
O que só se pode entender no sentido de que seu corpo se foi tornando cada vez mais organizado, de sorte que um belo dia o Criador lhes infundiu
uma alma intelectiva ou espiritual.
134 Escola Mater Ecclesiae
humana. Não é necessário, porém, insistir no pecado de um homem em particular, no início da tragédia; diga-se
simplesmente que o pecado começou uma vez na história (quando, como e onde? - Não importa). Os pecados se
foram multiplicando e estendendo cada vez mais; os homens se tornaram uns para os outros ministros do
pecado. As palavras e os atos desregrados de cada indivíduo vão criando uma atmosfera de pecado, na qual é
cada vez mais difícil obedecer a Deus; o ambiente que cerca o homem, seduz para o mal. Cada criança que
nasce no mundo, é herdeira desse pecado do mundo, que, por conseguinte, pode ser dito pecado original.
A influência que o mundo exerce sobre a mentalidade, o caráter ou a personalidade de cada criança é mais
forte ainda do que a do mau exemplo; pode ser comparada ao ato de gerar. Com efeito, pela geração biológica
os pais geram o corpo da criança;, pelas influências más (instilando falsos ideais e orientação errada), os pais e
os demais homens geram o pecado nessa mesma criança.
Schoonenberg admite que, através de Cristo, podiam existir lugares da terra preservados de más influências,
recantos onde não penetrara o pecado do mundo ou original. Em conseqüência, havia aí imaculadas conceições.
- Todavia a condenação de Cristo à morte foi o grande pecado do mundo, incomparavelmente mais grave do
que qualquer falta anterior; encheu a medida do pecado dos pais (cf. Mt 23, 32), de tal sorte que após Cristo a
universal idade do pecado original já não admite exceção. Mas também todo homem após Cristo encontra a
salvação, pois o Senhor Jesus ressuscitou dos mortos e enviou seu Espírito Santo ao mundo. Assim a morte de
Cristo sobre a cruz acarretou perdição (colocando o mundo inteiro sob o signo do pecado) e, ao mesmo tempo,
salvação. Todo homem que morre com Cristo pelo Batismo, participa da vitória do Senhor sobre a morte e
ressuscita com o Senhor.
Cf Schoonenberg, De Macht der Zonde. L. C-G- Malmberg, 's-Hertogenbosch, 1962. Também R.
Troisfontaines, Je ne meurs pas. Paris 1960, 183-196; L. Boros, Mysterium mortis. Olten 1962, 122.138.
3) P. Smulders propõe teoria semelhante. O gênero humano foi chamado por Deus a participar da vida
divina, inserindo-se plenamente no Corpo de Cristo. Este estado de consumação devia ser atingido
gradativamente mediante cooperação de Deus e do homem através de longas etapas. Todavia o gênero hu mano
foi infiel a essa vocação. - Tal infidelidade não se deu de uma vez só, por obra de um só homem, nos
primórdios da história, mas ela se foi afirmando paulatinamente; o primeiro pecado, ainda que leve, provocou
outras falhas; assim o pecado no mundo foi-se avolumando, à semelhança de uma bola de neve que se engrossa
à medida que vai rolando; o desenvolvimento da civilização foi também o desenvolvimento do pecado do
mundo. Em conseqüência, o gênero humano se recusou ao seu destino transcendente, e criou sobre a terra um
clima que contagia toda criança que venha a nascer.
C. P. Smulders, Theologie und Evolution. Essen 1963.

Lição 3: Que dizer?


As objeções à clássica doutrina do pecado original exigem esclarecimentos, que contribuirão para as
dissipar.

l) Responsabilidade coletiva
É real mente difícil aceitar a idéia de que todos paguem por uma culpa que não cometeram. Todavia o
conceito de responsabilidade coletiva não está necessariamente implicado na doutrina do pecado original.
Notemos o seguinte:
- O Catecismo da Igreja Católica afirma que "o pecado original não tem, em nenhum descendente de Adão,
um caráter de falta pessoal. É a privação da justiça e da santidade originais" (no 405).
Com outras palavras: o pecado original não pode ser tido como uma culpa que Deus impute a todo o gênero
humano; a Teologia não ensina que a culpa pessoal de Adão se transmite a todos os seus descendentes.
Em linguagem exata, deve-se dizer: O pecado original tem a índole de culpa em Adão apenas; a este só é ele
imputável. Nos descendentes de Adão, o pecado original significa carência dos dons sobrenaturais que Adão
possuía e que ele perdeu ao se afastar de Deus. Se tivesse perseverado na inocência, Adão teria sido
simultaneamente pai e sacerdote; teria transmitido a seus filhos, juntamente com a natureza humana, os dons
sobrenaturais ou a filiação divina. Após o pecado, Adão só pôde transmitir a natureza humana destituída do seu
ornato original. Ora esta ordem de coisas que, aos olhos da razão, nada tem de extraordinário, aos olhos de
Deus e da fé, é uma aberração ou um desvio do que deveria ser segundo os desígnios de Criador.
Tal aberração é, sem dúvida, inculpada da parte dos filhos de Adão; todavia ela não deixa de ser real; ela se
entende logicamente dentro do conjunto das verdades da fé. É a ela que se dá, por analogia 62, o nome de pecado

62
Esta expressão é muito importante: significa que o conceito de pecado não se realiza do mesmo modo nos primeiros pais e nos seus descendentes.
135 Escola Mater Ecclesiae
original. É uma nódoa que afeta diretamente a natureza humana como tal e, indiretamente, cada um dos
membros da natureza humana.
Pode-se comprovar, dentro de uma visão de fé, que o pecado original com que nascemos, não é culpa
pessoal nossa, pela seguinte consideração:
Uma criança pequena que morra com o pecado original (sem o Batismo, portanto), não é tratada como
alguém que morra com um pecado pessoal: tal criança não vai nem para o purgatório nem para o inferno.
Segundo teólogos seguidores de S. Anselmo de Cantuária († 1109), toca-lhe o limbo. Este não significa punição
nem expiação, mas, sim, felicidade: a felicidade de que a natureza humana pode gozar, independentemente de
qualquer elevação sobrenatural. O limbo é comparável à herança que compete a alguém por ser membro de
determinada família, ao passo que o céu é semelhante à sorte grande... sorte grande que ninguém tem o direito
de reivindicar.
É de lembrar, porém, que a existência do limbo não constitui dogma de fé: muitos e bons teólogos admitem
que Deus dê a todas as crianças meios para se salvar, caso não sejam batizadas; tais meios seriam a oração
oficial da Igreja, a ofertas dos filhos a Deus por parte dos pais.
Em conseqüência das considerações acima, vê-se que não é oportuno falar de responsabilidade coletiva,
como se todos os homens tivessem que responder pelo desatino de um só.
É mais adequado falar de solidariedade.
Inegavelmente os homens são solidários entre si. Note-se que há vínculos de solidariedade voluntários, como
os de educação, cultura, profissão, etc. ; e há vínculos de solidariedade naturais, anteriores a qualquer ato de
vontade, como são os de família e estirpe. Estes vínculos naturais são inevitáveis; para que um ser humano
exista, ele deve nascer dentro de alguma família, em determinada região do globo e em alguma fase da história.
Pois bem; o pecado original tem seu fundamento lógico e compreensível na solidariedade mais natural possível,
solidariedade que decorre do fato de que todos os homens compartilham da mesma natureza e, por geração, são
consangüíneos entre si; compreende-se então que, caso esta natureza esteja desordenada em sua origem, todos
os seus membros hão de aparecer neste mundo portadores da desordem original.

2) O ato biológico de gerar é pecaminoso?


O que acima foi dito, também dá a ver que a fé católica, em hipótese alguma, julga desonesto o ato de gerar
(considerado como tal). Deus quis que o gênero humano crescesse e se multiplicasse. Neste multiplicar-se, o
ato biológico de gerar transmite a natureza humana como se acha nos genitores (os pais comunicam a vida não
enquanto são santos ou pecadores, mas enquanto possuem a natureza humana). Conseqüentemente, a criança
nasce sem a graça de Deus, que ela deveria ter. Nisto, porém, não há defeito do ato generativo; este, em sua
realidade fisiológica, de modo nenhum é causa do pecado original ou do estado desregrado em que nascem os
filhos de Adão, nem pode exercer influxo sobre tal estado.
- O que a geração não dá, ou seja, a graça santificante, a regeneração ou o Batismo o deve dar. Por isto é que
não se deve protrair o Batismo das crianças; estas hão de ser levadas ao sacramento da fonte quanto antes, a fim
de que a qualquer instante estejam prontas para comparecer diante do Senhor na qualidade de filhos de Deus. A
filiação divina, Cristo Redentor (o segundo Adão) a readquiriu para o gênero humano e a comunica mediante o
Batismo.

3) E o Poligenismo?
A respeito ver Módulo 17
4) Otimismo e pecado original
Para evitar equívocos neste setor, parecem ser úteis as seguintes considerações:
a) Não se deve acentuar exageradamente a perfeição do estado primitivo da humanidade dito de justiça
original. Terá sido um estado digno de todo apreço, mas do ponto de vista religioso e moral apenas, não sob o
aspecto da civilização ou da cultura. Os primeiros homens de que fala o Gênesis, podem muito bem ter tido a
configuração rudimentar ou grosseira de que dão indícios os fósseis da pré-história; não é necessário que hajam
vivido de modo diferente daquele que conjeturam as ciências naturais. Mesmo as idéias religiosas de Adão
poderão ter sido puras, sim, mas sob a forma de intuições concretas semelhantes às dos povos primitivos e das
crianças; não se tratava de altos conhecimentos teológicos. - Vê-se, pois, que as clássicas descrições do paraíso
terrestre não devem em absoluto ser identificadas com a doutrina da fé.
b) O estado de justiça original assim concebido foi de breve duração, pois afetou apenas o primeiro homem
antes que pecasse. Compreende-se, pois, que não tenha deixado vestígios na pré-história nem haja
necessariamente influído no curso natural de evolução do gênero humano. As pesquisas paleontológicas não
podem nem provar nem recusar empiricamente a existência de tal estado.
136 Escola Mater Ecclesiae
c) Também não se deve ceder a otimismo desmedido ao conceber a evolução da humanidade. É verdade que
o progresso material se faz sentir de maneira cada vez mais impressionante; verifica-se, porém, que tal
progresso não é sempre acompanhado de elevação moral correspondente. O fascínio que a matéria exerce sobre
muitos homens, faz que os valores da consciência e da filosofia sejam não raro obliterados e menosprezados.
O desajuste entre o aspecto material e o moral da evolução do homem é fenômeno intrigante, que certos
teólogos vêem como indício de uma desordem inicial da história.

5) Deus quer salvar todos os homens


A verdade acima enunciada não é posta em xeque pela doutrina do pecado original. A falta do primeiro
homem foi cometida livremente, apesar da graça que o Criador lhe outorgou para que praticasse o bem. Quanto
à transmissão do pecado de Adão, ela não se deve a um decreto arbitrário de Deus, como vimos, mas é apenas a
conseqüência lógica da obra dos primeiros pais.
A vontade salvífica de Deus se manifesta no fato de que em todos os tempos Deus, em vista dos méritos de
Cristo, provê à salvação de todo e qualquer ser humano: por vias manifestas (pela voz da lei natural, pela
pregação do Evangelho, pelo Batismo e os demais sacramentos) como também por vias ocultas (que não
podemos discriminar e que muitas vezes ocorrem na iminência da morte). O Senhor confere a todos os homens
os recursos (luz espiritual e graça atual) para que repudiem o pecado e façam um ato de incondicional amor ao
Supremo Bem. Somente o Senhor sabe quantos e quais os que, por livre obstinação no mal, resistem a tais
meios e não chegam à salvação eterna.

Conclusão
Os autores que procuram novas formas de explicar o pecado original, caem muitas vezes em considerações
sutis ou em hipóteses, sem dúvida, muito eruditas, mas um tanto vagas e gratuitas.
Alguns como Schoonenberg e Smulders, em última análise, reduzem o conceito de pecado original ao do
"pecado do mundo", como se não fosse mais do que o acúmulo de faltas pessoais que se cometeram desde o
início da história, fazendo que todo homem seja desde os seus primeiros anos seduzido para o mal.
Em particular, a noção de "imaculadas conceições" proposta por Schoonenberg é insustentável dentro do
conjunto da mensagem cristã: segundo esta, somente a Virgem SS. foi imaculada em sua conceição. Mais
ainda: seria absurdo dizer que depois de Cristo não há as imaculadas conceições que antes havia.
A hipótese de Flick e Alszeghy é vulnerável pelo fato de apelar para o conceito de personalidade coletiva.
Em conclusão, deve-se dizer que a doutrina do pecado original pertence estritamente ao domínio da fé; não
pode ser provada, mas também não é contraditada pela razão humana.

PERGUNTAS
1) A clássica doutrina do pecado original implica responsabilidade coletiva? Explique bem.
2) Pode-se dizer que o ato biológico de gerar é pecaminoso?
3) A clássica doutrina do pecado original opõe-se a uma visão otimista da história ?
4) A vontade salvífica universal de Deus exclui a clássica concepção de pecado original?

MÓDULO 45: O TESTEMUNHO DOS POVOS PRIMITIVOS


Os povos primitivos antigos e contemporâneos têm a noção de que os males existentes no mundo não são
originais nem devidos ao Criador, mas provêm de uma culpa dos primeiros homens ou de um pecado original;
tal crença, tão generalizada como é, pode ser entendida como valioso argumento em favor da doutrina católica.
Passamos a expor os testemunhos desses povos relativos à origem da morte e à figura do Tentador.

Lição 1: A Origem da Morte


É assaz comum entre os povos primitivos a crença de que a morte e teus precursores, os males físicos, não
pertenciam à ordem das coisas originarias neste mundo, mas sobrevieram por efeito de uma desobediência dos
homens à Divindade.
Como se entende, os diversos povos exprimem esta proposição com uma roupagem própria, fazendo entrar
em cena os personagens mais expressivos e interessantes para a mentalidade de cada tribo. A mensagem,
porém, das variadas estórias é sempre a mesma. Ora o fato de que homens localizados nas mais desconexas
regiões do globo, detentores hoje de uma cultura que corresponde aproximadamente à dos inícios da
humanidade, professem idêntica concepção a respeito da morte e do seu significado, insinua que tal concepção
pertence ao patrimônio das noções primordiais do gênero humano.
137 Escola Mater Ecclesiae
Eis, pois, algumas dessas narrativas dos povos primitivos, pelas quais se manifesta a consciência de que a
Morte é uma "intrusa" neste mundo.
Em New South Wales (África) várias tribos afirmam que os primeiros homens foram destinados a não
morrer. Contudo era-lhes proibido aproximar-se de certa árvore oca, em que abelhas selvagens tinham feito a
sua colméia. No decorrer do tempo, as mulheres cobiçaram o mel da árvore proibida, até que, belo dia, uma
delas, desprezando as admoestações dos homens, tomou do seu machado e o arremessou contra o tronco;
imediatamente saiu deste uma enorme coruja. Era a Morte, a qual de então por diante circula livremente sobre o
mundo e reinvindica para si tudo que ela possa tocar com as asas.
Os pigmeus referem que Deus (Mugasa) a princípio criou dois rapazes e uma jovem, com as quais vivia
amigavelmente na floresta, como o pai com seus filhos, num lugar de toda bonança: nada faltava aos homens,
nem tinham que recear por alguma perspectiva de morte. Mugasa apenas lhes proibira que procurassem ver a
sua face. Habitava uma tenda, diante da qual diariamente a jovem tinha que depositar lenha para o fogo e um
jarro de água. Um dia, porém, a moça, vencida pela curiosidade, escondeu-se atrás de uma árvore, ficando à
espreita do "Pai", que havia de aparecer. De fato, ela o pôde ver, quando estendia o braço reluzente de
ornamentos afim de apanhar o jarro. A menina alegrou-se então profundamente e guardou o segredo do
ocorrido. Mugasa, porém, percebera a desobediência. Chamou os três irmãos à sua presença e lhes censurou a
falta, predizendo-lhes que havia de os deixar; para'o futuro, a indigência e a morte pesariam sobre eles. Os
prantos do grupinho humano não conseguiram deter a sentença; certa noite Mugasa partiu rio acima, e não foi
mais visto. Quanto ao primeiro filho que nasceu à mulher, morreu após três dias de existência...
Os Bagandas da África Central contam que Kintu, o primeiro homem, depois deter superado vários testes,
obteve a licença de se casar com Nambi, uma das filhas de Mugulo (o Céu ou o Alto). O pai da donzela deixou
que ela viesse com seu consorte para a terra, trazendo ricos presentes, entre os quais uma galinha; ao despedir-
se do casal, mandou que se apressassem por sair, aproveitando o fato de que o irmão de Nambi, chamado
Warumbe (a Morte), estava fora de casa; recomendou-lhes, outrossim, não voltassem para apanhar o que quer
que tivessem esquecido. Durante a caminhada, porém, Nambi verificou que chegara a hora de dar de comer à
galinha; já que se esquecera do milho, consentiu então em que Kintu voltasse à casa para buscá-lo. Mugulo, o
pai, ao rever o genro, irritou-se pela desobediência; Warumbe (a Morte), estando de novo em casa, fez questão
de acompanhar Kintu; toda resistência tendo sido vã, a Morte desceu com o casal para a terra, onde até hoje
habita com os homens.
Graciosa é a história que contam os japoneses: o príncipe Ninighi se enamorou pela princesa "Florescente
como as flores". O pai da jovem, que era o Deus da grande Montanha, consentiu em seu casamento e deixou-a
partir com sua irmã mais velha "Alta como as rochas". Esta, porém, era tremendamente feia, de sorte que o
noivo a mandou voltar para casa. Em conseqüência, o velho Deus amaldiçoou o genro, e declarou que sua
posteridade seria frágil e delicada como as flores!
Os "Bataks" de Palawan (ilhas Filipinas) contam que o seu deus costumava ressuscitar os mortos. Todavia
certa vez os homens o quiseram enganar, apresentando-lhe um tubarão enfaixado como um cadáver. Quando a
Divindade descobriu a astúcia, amaldiçoou os homens, condenando-os a ficar sujeitos ao sofrimento e à morte.
No território de Uganda os "Masai" referem que um dos seres divinos ou Demiurgos deu a um homem a
seguinte ordem: todas as vezes que morresse uma criança, deveria remover o cadáver dizendo: "Homem, morre
e vem de novo à vida! Lua, morre e desaparece definitivamente!" Essas palavras produziam o efeito de
ressuscitar. Um dia, porém, o dito comissário da Divindade, posto diante de uma criança que não lhe pertencia,
houve por bem desobedecer, invertendo os dizeres da famosa fórmula. Quando na vez seguinte repetiu a frase
certa sobre um de seus próprios filhos, verificou que ela perdera o seu poder. De então por diante acontece que,
quando a Lua morre, ela volta à vida, ao passo que o homem, caindo nas garras da morte, é por esta detido.

Lição 2: O Demônio Adversário


Que haja um espírito mau, inimigo dos desígnios de Deus, sedutor dos homens, como o conhece o Gênesis, é
proposição por vezes sujeita a dúvidas pela mentalidade moderna, a quem o Maligno parece ser criação da
fantasia simplória ou primitiva.
Contudo quem investiga a história das religiões não se furta à impressão de que a crença no demônio e na
sua ação perniciosa é mais um elemento do patrimônio religioso do gênero humano: afirmam-na os povos
primitivos em variadas regiões, dando-nos a supor que tenha sido professada (como a doutrina referente à
intrusão da Morte) quando os homens ainda se achavam congregados numa única população.
Note-se que a crença no demônio entre os primitivos se distingue do dualismo persa, gnóstico ou maniqueu,
que é filosofia de povos colocados em grau de civilização muito posterior: o demônio adversário do Deus bom
que os homens rudes conhecem, é um ser pessoal revoltado contra o Senhor, mas de certo modo subordinado à
138 Escola Mater Ecclesiae
Divindade. Ao contrário, o Princípio do mal no dualismo é independente do Princípio do bem; afeta a matéria,
tornando-a abominável aos indivíduos religiosos (concepção que não se encontra entre os selvagens).
Eis algumas das histórias que os etnólogos puderam colher ao estudar a religião dos antigos:
Certas tribos da Sibéria, principalmente os tártaros, contam a origem do homem nos seguintes termos: o
Grande Oleiro fez de argila um boneco humano, destituído de alma ou sopro vital; plasmou também um cão
sem pelo, ao qual deu vida e mandou guardasse cuidadosamente o corpo humano. Dito isto, o Artista se foi;
sobreveio então seu adversário Ngaa (a Morte personificada), que assim se dirigiu ao cão: "Hás de sentir frio,
pois estás nu. Entrega-me o homem e dar-te-ei uma veste" . Depois de resistir um pouco, o animal cedeu,
permitindo a Ngaa apreender a presa e devorá-la. Ao voltar, perguntou o Senhor ao cão: "Onde está o homem?"
- "Ngaa o devorou!". Irado, disse então o Grande Oleiro: "Já que permitiste isso, doravante comerás excremento
humano!". A seguir, recomeçou a criação, formando um homem e uma mulher, genitores de toda a estirpe
humana.
Esta história se apresenta com variantes bem significativas entre os Mordvinos, tribo da Sibéria: Tscham-
Pas, o Criador, depois deter formado o corpo hu mano a partir do barro, o confiou à guarda do cão, que ainda
estava sem pelo. Então Chaitan, o adversário do Ser Supremo, excitou um frio tremendo, que ameaçou de morte
o animal; com isto obteve que o guarda lhe entregasse o corpo humano em troca de uma coberta. Chaitan, de
posse do homem, pôs-se a cuspir sobre todos os seus poros, dando origem às doenças do organismo; insuflou-
lhe também as tendências para o mal e o vício. Sobreveio Tscham-Pas, que repeliu Chaitan e, afim de curar o
homem, voltou para dentro a parte externa do corpo manchada pelos escarros do Inimigo; insuflou-lhe
outrossim uma alma boa. As doenças, porém, permaneceram e permanecem na vítima, assim como as
inclinações para o vício, de sorte que o homem hoje se vê dilacerado, entregue à luta consigo mesmo, porque à
obra do Criador se quis opor o Adversário mau.
A tribo "Arapaho" dos índios Algonquins conta que, quando o Criador estava para terminar a formação do
mundo e do homem, apareceu o Inimigo, chamado Nih'asa ("Homem amargo"); este era o único sobrevivente
de uma geração de seres maus ou canibais, criados antes do gênero humano atual e aniquilados pela Divindade.
Nih'asa, pois, com um cajado nas mãos, apresentou-se na assembléia dos homens diante dos quais o Criador
terminava sua obra; pediu o poder de criar e uma parte da terra. O Grande Autor atendeu ao primeiro dos dois
rogos, de sorte que Nih'asa estendeu o seu bastão e começou a formar colinas e riachos, com grande surpresa
para os homens. O Criador, então, tomou um pouco da medula de um salgueiro e o lançou na água; o objeto se
afundou, mas logo subiu à tona, fenômeno que o Senhor assim comentou: "Vós, homens, haveis de viver dessa
forma" (isto é, morrereis, mas voltareis à vida sem demora). À vista disso, exclamou Nih'asa: "A terra não é
grande; em breve sofrerá excesso de população. Tenho melhor sugestão". E tomou um seixo, que atirou na
água; a pedra mergulhou para não mais aparecer: "Assim será a vida no Além", afirmou o Maligno. Voltando-
se então para este, disse o Criador: "Pediste uma parte da terra; farei outra região para ti". E, tendo apanhado
um punhado de terra, lançou-a no oceano com as palavras: "Onde essa terra cair, lá estará teu país - além do
oceano!"
A história seguinte associa ainda mais claramente o Adversário e a introdução da morte no mundo. Os
Maidus, na Califórnia Central, afirmam que o Criador resolveu outrora poupar os homens da morte; quando
estivessem velhos, deveriam ir banhar-se em certo lago, onde rejuvenesceriam. Mostrou-lhes mesmo Kuksu, o
primeiro beneficiado por esse tratamento. O Maligno, porém, denominado Coyote (lobo das planícies, o canis
Lyciscus Iatrans), queria que os homens morressem, pois, dizia ele, neste caso haveria pompas solenes em
honra dos mortos, as viúvas se poderiam casar de novo, etc. O Criador acabou cedendo a Coyote, que
inaugurou a nova era do mundo mediante uma festa; eis, porém, que, tomando parte dos jogos do programa, o
filho de Coyote passou perto de um buraco onde se ocultava uma serpente; mordido pelo animal, morreu,
ocasionando grande desgosto a seu pai. Coyote, acometido pelo remorso, resolveu levar o filho ao lago outrora
destinado a rejuvenescer os homens; mas em vão o atirou na água, pois o morto não ressuscitou. Tal foi o
castigo do Inimigo de Deus, que introduziu a morte no mundo.
Quanto à origem desse Adversário, os primitivos não referem muita coisa. Um ou outro tópico, porém, o
mostra subordinado ao Criador.
Conforme os Ahinus, aborígenes do norte do Japão, o Criador, depois de ter formado o mundo, jogou fora os
machados de obsidiana (pedra comum nos terrenos vulcânicos) que usara; apodreceram na terra, dando origem
aos espíritos maus, os quais são numerosíssimos e têm um Chefe Supremo. Os Coríacos, tribo da Sibéria
setentrional, contam que o Grande Corvo se originou da poeira que costuma cair do Céu sobre a terra, quando o
Ser supremo afia o facão de pedra. De acordo com os Algonquins "Wawenock", o Gluskabe, que se opõe a
Deus, constituiu-se dos restos de barro úmido com que o Criador formou o primeiro homem. Estes mitos dos
povos primitivos hoje em dia são estudados atentamente pelos etnólogos e historiadores, porque, sob
139 Escola Mater Ecclesiae
modalidades infantis e caducas, traduzem a filosofia de vida e o patrimônio cultural dos antigos. A Filosofia
contemporânea não despreza os mitos, como outrora se fazia, mas procura ler a sua mensagem sapiencial.
O material aqui citado foi colhido no longo repertório de tradições dos povos antigos elaborado por H. S.
Hartland com o título Death and Disposal of the Dead, em Encyclopaedia for Religion and Ethics, ed. Hastings
IV 411-414.

Ver também:
W SCHMIDT Der Ursprung der Gottesidee. Munster i./W., 6 volumes.
P SCHEBESTA, Die Religion der Primitiven, em Christus und die Religionen der Erde. Handbuch der
Religionsgeschichte, herausgegeben von Fr. König 1. Wien 1951, 565s.

PERGUNTAS
1) Diga que significado tem os dizeres dos povos primitivos sobre a origem da morte para a doutrina católica
da morte. Reflita sobre o assunto.
2) Diga o mesmo, após reler os depoimentos referentes ao Demônio Adversário. Queira refletir sobre a
temática.

PARTE IV: OS ANJOS: A) FUNDAMENTAÇÃO BÍBLICA

MÓDULO 46: A EXISTÊNCIA DOS ANJOS


O nosso Curso, dito de "Antropologia Teológica", compreende também o tratado dos Anjos, segundo a
clássica disposição dos temas da Teologia. A razão disto é que, ao abordar a criação do mundo e do homem, se
faz necessário considerar também as criaturas invisíveis ou os Anjos.
O tratado dos Anjos, em nossos dias, torna-se especialmente oportuno, pois caminhamos entre duas
tendências antitéticas: a de negar a existência dos anjos (reduzindo-os a figuras mitológicas ou à personificação
do bem e do mal) e a de exagerar a ação dos mesmos neste mundo, cedendo à fantasia desorientada.
Na verdade, como diz o Catecismo da Igreja Católica, "a existência dos seres espirituais, não-corporais, que
a Sagrada Escritura chama habitualmente anjos, é uma verdade de fé. O testemunho da Escritura a respeito é tão
claro quanto a unanimidade da Tradição" (§ 328).
Estudaremos, a seguir, a existência, a identidade e a atividade dos anjos bons e maus (= demônios).
Somente aos poucos na S. Escritura foi-se delineando o conceito de anjo. Esta palavra vem do grego
ángelos, que significa mensageiro.

Lição 1: No Antigo Testamento


1.1. Anjos Bons
1. Nos livros mais antigos da Bíblia aparece uma figura um tanto misteriosa chamada em hebraico mal'ak
jahveh = enviado ou mensageiro do Senhor. Ora parece distinto de Deus, ora identifica-se com Deus (aparece o
anjo ou o mensageiro, mas fala o próprio Deus)63. Eis os textos mais significativos:
Gn 16,11-13: " O anjo de Javé disse a Agar... A Javé, que lhe falou, Agar deu este nome: 'Tu és El-Roi"'.
Gn 18,2.9s: 'Abraão viu três homens de pé, perto dele; logo que os viu, correu... ao seu encontro... e disse...
Eles lhe perguntaram: 'Onde está Sara, tua mulher?' Ele respondeu: 'Está na tenda'. O hóspede disse: 'Voltarei a
tino próximo ano; então tua mulher Sara terá um filho'".
Gn 21,17-19: "Deus ouviu os gritos da criança (Ismael) e o Anjo de Deus, do céu, chamou Agar dizendo:
'Que tens, Agar? Não temas, pois Deus ouviu os gritos da criança ... Ergue-te: Levanta a criança... porque eu
farei dela uma grande nação"'.
Gn 22, 11s: "O anjo do Senhor chamou Abrão e disse: ... 'Não estendas a mão contra o menino... Agora sei
que temes a Deus, tu não me recusaste teu filho, teu único'".
Gn 31,11-13: "O anjo de Deus me disse em sonho: '... Eu vi tudo o que te fez Labão. Eu sou o Deus que te
apareceu em Betel, onde... me fizeste um voto'".
Ex 3, 2-6: "O anjo do Senhor apareceu a Moisés numa chama de fogo, do meio de uma sarça... E Deus o
chamou e disse: 'Moisés, Moisés"'

63
A razão deste fato é provavelmente a necessidade de evitar qualquer insinuação de politeísmo.
140 Escola Mater Ecclesiae
Como se vê, o anjo do Senhor é figura ambígua: ora distinta de Deus, ora identifica-se com Deus. Em última
análise, pode-se dizer que se trata de um mensageiro distinto de Deus, mas investido pelo Senhor com
determinada missão e plenos poderes, de modo que é o próprio Deus quem intervém e age por meio do seu
mal'ak.
2. No Antigo Testamento, mesmo nos livros mais arcaicos, os anjos desempenham diversas funções:

a) Anjos protetores:
Gn 24, 7: Quando Abraão envia seu servo Eleazar procurar uma mulher para seu filho, diz-lhe: "O Senhor
mandará seu anjo diante de ti para que tomes lá uma mulher para meu filho".
Ex 23,20-23: Disse o Senhor ao seu povo: "Enviarei um anjo diante de tique te guardará pelo caminho e te
levará ao lugar que te tenho preparado. Respeita a sua presença e observa a sua ordem e não sejas rebelde,
porque ele não perdoará a vossa transgressão, pois nele está o meu Nome... Meu anjo caminhará diante de ti e te
conduzirá à terra dos amorreus..."
Gn 48,16: "O anjo que me salvou de todo mal, abençoe estas crianças (Manassés e Efraim)", disse Jacó.
SI 34 (33),8: "O anjo do Senhor acampa ao redor dos que o temem, e os liberta" CL SI 91 (90), lo-13.
Dn 6,23: "Deus enviou-me o seu anjo e fechou a boca dos leões, de tal modo que não me fizeram mal".
b) Anjos cortesãos de Deus:
Gn 28,12: Jacó teve um sonho: eis que uma escada se erguia sobre a terra e o seu topo atingia o céu, e o
anjos de Deus subiam e desciam por ela".
Tb 12,15: "Eu sou Rafael, um dos sete anjos que estão sempre presentes e têm acesso junto à glória do
Senhor".
SI 89 (88),8: "Deus é terrível no conselho dos Santos".
1 Rs 22,19: "Eu vi o Senhor no trono e todo o exército do céu estava diante dele", disse o Profeta Miquéias
(cf. 2Cr 18, 18).
Quando a Escritura se refere ao "Deus dos exércitos", tem em vista as criaturas visíveis e invisíveis, que lhe
obedecem disciplinadamente.

c) Anjos executores dos desígnios de Deus:


2Sm 24,16s: "O anjo estendeu a mão sobre Jerusalém para a exterminar, mas o Senhor se arrependeu desse
mal, e disse ao anjo que exterminava o povo: 'Basta!'...".
SI 78177),48: "Lançou contra eles o fogo da sua ira: cólera, furor e aflição, anjos portadores de desgraças".
2Rs 19,35: "Naquela mesma noite saiu o anjo do Senhor e exterminou no acampamento assírio cento e
oitenta mil homens. De manhã, ao despertar, só havia cadáveres".
SI 35(34),6: "Que seu caminho seja escuro e escorregadio, quando o anjo do Senhor o perseguir'. 3. Com o
passar do tempo, como se vê nos textos até aqui citados, foi-se clareando o conceito de mal'ak; distinguiu-se
nitidamente de Deus. Assim, por exemplo, em 1Rs 19,5-11 aparece primeiramente o anjo do Senhor (19,5-8) e,
a seguir, o próprio Deus (19,9-11); o anjo realiza uma missão de preparação e serviço, ao passo que o Senhor se
manifesta a Elias, como a Moisés se manifestara.
4. A tendência dos israelitas a distanciar Deus dos homens, acentuando a transcendência do Eterno, levou-os
a admitir vários emissários de Deus junto aos homens, o que contribuiu para desenvolver a angelologia; na
época da monarquia, o Senhor aparece em sua corte cercado de servidores, como vimos em 1Rs 22,19.
5. O contato com a cultura persa e a greco-romana após o exílio na Babilônia (587-538
a.C.) trouxe novo desenvolvimento para o conceito de anjo. Talvez, em contraste com as religiões orientais e
as mitologias, Israel tenha tomado mais profunda consciência da sua mensagem relativa aos anjos bons ou
maus. A antiga ameaça de politeísmo em Israel ia cedendo à noção, cada vez mais profunda, da transcendência
de Deus, de modo que os escritores israelitas bíblicos e extra-bíblicos (apócrifos) passaram a falar mais e mais
de anjos. É possível também que esses autores tenham procurado celebrar a grandeza de Deus mencionando
seus numerosos servidores, como acontecia nas correntes religiosas não israelitas. Todavia o monoteísmo rígido
de Israel deu à sua angelologia uma nota singular. O Senhor é o Único a quem toca a iniciativa da obra que Ele
realiza neste mundo com poder absoluto; Ele se serve de intermediários, mas estes (os anjos) se relacionam com
Ele de modo diverso do que ocorre nas mitologias; os anjos não são semideuses, mas apenas criaturas do único
Deus.
Assim aparecem: Rafael (Deus cura), que é enviado a guiar Tobias e curar o velho pai Tobite (cf. Tb 3,17;
12,15); Gabriel (homem de Deus), que revela a Daniel os desígnios de Deus (cf. Dn 8,16; 9,21) 64; Miguel

64
No Alcorão, Gabriel é tido como o interlocutor de Maomé, portador de mensagem celeste. O seu nome árabe é Djibal.
141 Escola Mater Ecclesiae
(Quem é como Deus?), apresentado como um grande Príncipe da corte celeste (cf. Dn lo,13; 12,1) ; o anjo
protetor de cada povo (Dn lo,13.20).
Os apócrifos ampliaram a noção de atividade dos anjos, atribuindo-lhes a regência dos astros (Henoque
etíope 72,1.3; Henoque eslavo 19,2), dos ventos, dos raios, dos trovões, das chuvas, das estações do ano, etc.
Embora os livros canônicos só revelem os nomes de três anjos (como acima dito), os apócrifos imaginaram
outros nomes, como: Uriel (= Luz de Deus), o interlocutor no 4°. livro de Esdras; Jeremiel (4Esdr 4,36);
Selatiel ou Salatiel (= Oração de Deus) ; Jehudiel (= Louvação de Deus), Baraquiel (= Benção de Deus) ; são
nomes teofóricos, pois o sufixo EI significa Deus.

1.2. Anjos Maus


Aparece também, aos poucos, no Antigo Testamento, a noção de anjo mau, adversário dos homens. O
primeiro esboço ainda pálido é a figura da Satã (=Adversário) no livro de Jó: aparece como anjo da corte do
Senhor, portanto anjo bom, mas acusador e tentador do homem reto, que é Jó; cf. Jó 1,6-12; 2,1-7.
Indiretamente esse anjo é também adversário de Deus, pois desafia Deus, querendo mostrar ao Senhor que Jó é
interesseiro no seu culto a Deus (Jó não seria fiel a Deus por causa de Deus, mas por causa dos bens recebidos
de Deus). O Satã do livro de Jó é figura de transição entre o anjo bom e o anjo mau ; por isto em Jó 1 ,6-12 e 2,
1-7 o nome Satã não é nome próprio, mas é acompanhado de artigo (como em Zc 3,ls); designa a função do
anjo acusador. Aos poucos, os pensadores de Israel haveriam de o conceber como desejoso de levar o homem
ao pecado mediante explícita tentação ao mal. É o que se nota no texto de 1Cr 21,1, onde Satã aparece sem
artigo como nome próprio:
"Satã levantou-se contra Israel e induziu Da vi a fazer o recenseamento de Israel".
Notemos que este texto, datado dos séculos V ou IV a.C., corrige, de certo modo, o texto mais antigo de
2Sm 24,1, que usava de antropomorfismo muito rude:
"A ira do Senhor se acendeu contra Israel e incitou Davi contra eles".
Satã aparece ainda nitidamente como o Adversário de Deus em Sb 2,23s (um dos textos mais recentes do
Antigo Testamento) :
"Deus criou o homem imortal e o fez à sua imagem e semelhança. Mas, por inveja do demônio, entrou no
mundo a morte,- sofrem-na, os que a ele pertencem". Este texto alude a Gn 3,1-5.14s, onde a serpente aparece
como imagem de Satanás. Este é um ser inteligente, astuto e mentiroso, e não uma força neutra instintiva do
homem. Todavia é sujeito a Deus; só age contra o homem por permissão do Senhor e o homem é capaz de
resistir-lhe.
A Escritura não refere explicitamente a queda dos anjos maus e o porquê do seu pecado. Simplesmente o
livro do Gênesis, ao narrar a transgressão cometida por nossos primeiros pais, supõe o anjo decaído e apresenta-
o a tentar o homem sob forma de serpente.
Verdade é que alguns textos bíblicos têm sido citados para ilustrar a queda dos anjos maus. Todavia nenhum
deles se refere ao pecado dos anjos. Assim:
Jr 2,20: "Tu, desde o princípio, quebraste meu jugo, rompeste os meus laços e disseste: 'Não servirei!" Na
realidade, estes dizeres aludem à desobediência e soberba do povo de Israel. A queda dos anjos maus se deve,
sem dúvida, à soberba (único pecado de que é capaz um ser espiritual), mas não é a soberba dos anjos que o
Profeta Jeremias tem em vista.
Is 14,13-15: "Dizias em teu coração: 'Hei de subir até o céu, colocarei o meu trono acima das estrelas de
Deus... Subirei acima das nuvens, tornar-me-ei semelhante ao Altíssimo'. E contudo foste precipitado no cheol,
nas profundezas do abismo". - Estas palavras são dirigidas ao rei da Babilônia, insolente contra o povo de Deus.
Is 14,12: "Como caíste do céu, ó estrela dalva (em latim Lúcifer), filho da aurora!". Este texto, pouco
anterior ao recém-citado, também se refere ao rei da Babilônia. A tradução latina, porém, deu ensejo a que se
atribuísse a Satanás (presumidamente interpelado por Isaías) o nome de Lúcifer.
No Novo Testamento, cita-se Lc 10,18: "Eu via Satanás cair do céu como um relâmpago". Estas palavras de
Jesus não parecem aludir a uma visão do Senhor no sentido moderno da palavra (Jesus nunca se refere a tal
experiência); mas referem-se aos exorcismos praticados pelos discípulos.
Em Ap 12,7-9, o autor menciona as conseqüências da vitória de Cristo sobre o pecado e a morte: há uma
cena de batalha entre os anjos bons e maus e o "destronamento" de Satanás, que, pelo pecado dos primeiros
pais, se tornara "o príncipe deste mundo" (cf. Jo 12,31). Supõem-se os anjos maus já decaídos.
Cita-se também o texto de Jd 6:
"Quanto aos anjos que não conservaram o seu principado, mas abandonaram a sua morada, guardou-os
presos em cadeias eternas sob as trevas, para o julgamento do grande Dia". Estes dizeres, que têm seu paralelo
em 2Pd 2,4, não se referem à queda inicial dos anjos, mas a um presumido pecado dos anjos com mulheres de
142 Escola Mater Ecclesiae
que fala o apócrifo livro de Henoque. Tal tipo de pecado é impossível, visto que os anjos não têm corpo; trata-
se de uma lenda, que os autores de 2Pd e Jd não abonam; apenas referem-se a ela para enfatizar, mediante esse
exemplo (acreditado pelos antigos leitores), que Deus não tolera o pecado, mas pune-o com justiça.

Lição 2: Novo Testamento


Nos escritos do Novo Testamento ainda é mais patente a existência dos anjos. De certo modo, fazem as
vezes de cortesãos e arautos do Reino de Deus trazido à terra por Jesus Cristo.
O Evangelho fala do exército celeste: "De repente juntou-se ao anjo uma multidão do exército celeste a
louvar a Deus" (Lc 2,13).
O Apocalipse chega a falar de "milhões de milhões e milhares de milhares de anjos" (Ap 5,11), fazendo eco
a Dn 7,10.
Em Mt 26,53 Jesus fala de "doze legiões de anjos". Trata-se de figuras de linguagem, que significam elevado
número de anjos.
Os anjos acompanham o Senhor Jesus durante todo o decorrer da sua vida na terra. Assim, Gabriel anuncia a
Maria a Encarnação do Verbo (cf. Lc 1 , 26-38) ; os anjos levam aos pastores a boa notícia do nascimento do
Messias (cf. Lc 2,8-14); servem a Jesus após as tentações no deserto (cf. Mc 1 ,13) ; reconfortam Jesus em
agonia no horto das Oliveiras (cf. Lc 23,43) ; anunciam a ressurreição do Senhor (cf. Mt 28,2-6) ; predizem a
segunda vinda do Senhor após a ascensão (cf. At 1, 10s). Alegram-se pela conversão dos pecadores (cf. Lc
15,9s).
Na história da Igreja nascente aparecem freqüentemente como ministros de Deus para a tutela dos homens:
abrem as portas da prisão (cf. At 5,19; 12,7-11) ; assistem ao centurião romano Cornélio (cf. At 10,3-7); levam
o diácono Filipe ao carro do eunuco etíope (cf. At 8,26-38); encorajam Paulo na sua acidentada viagem de
Cesaréia para Roma (cf. At 27, 22-25). Aparecerão por ocasião da segunda vinda de Cristo (cf. Mt 24,31; lTs
4,16; 1Cor 15,52; 2Ts 1,6s). São "espíritos servidores, enviados ao serviço dos que devem herdar a salvação"
(Hb 1 ,13s). O Apocalipse refere-se, muitas vezes, aos anjos como ministros da liturgia celeste, oferecendo a
Deus as orações dos justos (cf. Ap 5,11s; 8,2-5). Miguel e seus anjos são os defensores do povo de Deus (cf. Ap
12,7; 201s). Um anjo é porta-voz da mensagem de Deus a João Apóstolo (cf. Ap 1,1).
São Paulo põe em relevo a subordinação dos anjos a Cristo vitorioso sobre o pecado e a morte (cf. Hb1,7-14;
Ef1,21; Cl 2,13-15). Os anjos maus também ocorrem freqüentemente no Novo Testamento com nomes
diversos: Satanás (Mc 1,13), demônio (Mt 4,12; Lc 4,2), Beelzebu (Mt 10,25), Belial (2Cor 6,15), tentador (Mt
4,3; 1Ts 3,5), inimigo (Mt 13,25.28.39; Lc 10,19), espírito impuro ou mau (Ap 19,12.15; Ef 6,12), grande
dragão (Ap 12,3; 13,2), antiga serpente (Ap 12,9; 20,2), príncipe deste mundo (Jo 12,31; 14,30; 16,11)... Jesus
diz que ele "é homicida desde o princípio e que não permaneceu na verdade"(Jo 8,44; cf. l Jo 3,8); Jesus viu a
queda do demônio como a de um raio (Lc 10,18). O Maligno pediu os Apóstolos para os joeirar como trigo,
Jesus rogou por eles ao Pai (Lc 22,31) – o que mostra que o demônio só age com autorização de Deus.
Em suma, a presença e a atividade dos anjos bons e maus estão a tal ponto inseridas na história da salvação,
especialmente na obra redentora de Cristo, que não se poderiam eliminar tais elementos sem desmantelar a
mensagem bíblica.
- Não há dúvida, a existência dos anjos não pode ser provada racionalmente; também é certo que tanto os
anjos bons como os demônios foram na tradição descritos de maneira infantil ou fantasiosa, inaceitável. Isto,
porém, não quer dizer que sua existência deva ser cancelada. Os critérios para avaliar a questão da existência
dos anjos são os da fé: ora esta fala eloqüentemente tanto através da Bíblia (objetivamente entendida) quanto
através da Tradição, em favor da real idade dos anjos.

PERGUNTAS
1) Como aparece o mal'ak do Senhor nos livros bíblicos mais antigos?
2) Que é que favoreceu mais nítida concepção de anjos no Antigo Testamento?
3) Quais as principais funções dos anjos na Escritura Sagrada?
4) Como aparecem os anjos no Novo Testamento ?
5) Existe algum texto bíblico que fale explicitamente da queda dos anjos?

O PAPA PIO XI E OS ANJOS


O Papa Pio XI confiou a um grupo de visitantes que, no começo e no fim de cada dia, rezava ao seu Anjo da
Guarda. E repetia esta oração, sempre que se defrontava com dificuldades. "Importa-nos manifestar isto, como
dever de gratidão. Temo-nos visto sempre maravilhosamente assistidos pelo nosso Anjo da Guarda. Com muita
freqüência, sentimos que está aí, próximo, disposto a ajudar-nos".
143 Escola Mater Ecclesiae
E ainda acrescenta: "Quando temos de falar com uma pessoa de difícil acesso às nossas argumentações,
recorremos ao nosso Anjo da Guarda. Encomendamos-lhe o assunto. Pedimos que intervenha junto ao Anjo da
Guarda da pessoa com quem temos de nos encontrar. Uma vez estabelecido o entendimento entre os Anjos, a
conversa do Papa com o seu visitante é muito mais fácil". "Os conselhos de São Bernardo a respeito dos Anjos,
diz Pio XI, contribuíram para tudo o que de bom o Papa tenha podido fazer durante a sua vida" (ver G. Galache,
Os Anjos, p. 47).

PARTE IV: OS ANJO: B) TRADIÇÃO E MAGISTÉRIO DA IGREJA

MÓDULO 47: EXISTÊNCIA E AÇÃO DOS ANJOS


Como dito, a existência dos anjos não é da alçada da Filosofia, mas unicamente da fé. Está fundamentada na
Palavra de Deus oral e escrita. Já vimos os textos bíblicos correspondentes. Resta passar em revista as
declarações da Tradição oral e do magistério da Igreja.

Lição 1: Os Padres da Igreja


Não é necessário enumerar muitos testemunhos patristicos; é unânime entre os antigos escritores cristãos a
crença na existência dos anjos bons e maus. S. Agostinho († 430) não discute a existência dos anjos. Trata da
maneira como conhecem, em sua obra "A Cidade de Deus" 11 ,29:
"Os santos anjos não alcançam o conhecimento de Deus mediante palavras soantes, mas pela própria
presença da verdade imutável, isto é, do Verbo Unigênito, e conhecem o Verbo, o Pai e o Espírito Santo. Sabem
que Eles formam a Trindade inseparável, na qual as Pessoas em si mesmas são uma única substância, e no
entanto não são três deuses, mas um só Deus. Eles conhecem estas verdades melhor do que nós nos
conhecemos a nós mesmos. Também conhecem as criaturas na sabedoria de Deus... e nela conhecem
igualmente a si mesmos... "
"Juntamente com os anjos, formamos uma só e mesma Cidade de Deus" (ibid., 10, 7). 'A palavra anjo
(mensageiro) é designação de um encargo, não de natureza. Se perguntares pela designação da natureza, a
resposta será: é um espírito. Se perguntares pelo enviado, é num anjo. É espírito por aquilo que é; é anjo por
aquilo que faz" (In Psalm. 103,1,5).
S. João Crisóstomo († 407) escrevia: "Na capital celeste, Jerusalém, nossa mãe comum, estão os Serafins,
Querubins, muitos milhares de Arcanjos e inumeráveis Anjos" (Homilia sobre os Serafins 1).
S. Gregório Magno († 604) afirma: "Os anjos são incomparavelmente mais íntimos de Deus do que os
homens... São espíritos, e somente espíritos, enquanto o homem é espírito e carne" (Moralia in Job IV, III, 8).
S. João Damasceno († 749) refere na sua "Exposição da Fé Ortodoxa":
"Por serem espíritos, ... os anjos não são fisicamente circunscritos. De fato, eles não possuem corpo nem tem
três dimensões, mas estão presentes e operam espiritualmente para onde quer que vão; por outro lado, não
podem atuar simultaneamente em dois lugares diferentes... Eficientes e solícitos no cumprimento da vontade de
Deus, são velozes a ponto de comparecer instantaneamente onde a vontade de Deus os chama. Alguns
defendem as várias partes do mundo, presidem às nações e regiões, conforme a ordem do Sumo Criador
governam as nossas coisas e prestam-nos ajuda".

Lição 2: O Magistério da Igreja até Paulo VI


Já o Concílio universal de Nicéia I em 325 professou:
"Creio em um só Deus, Pai Todo-Poderoso, Criador do céu e da terra e de todas as coisas visíveis e in
visíveis " (Denzinger-Schönmetzer Enchiridion; abreviadamente citamos DS).
Por "coisas invisíveis" sempre se entenderam os seres espirituais, inclusive os anjos. A mesma verdade foi
repetida pelo Concílio de Constantinopla I em 381 . Em conseqüência do quê, falamos do Credo Niceno-
Constantinopolitano.
O sentido desses seres invisíveis foi posteriormente explicitado: trata-se dos anjos, dos quais alguns pecaram
e assim se tornaram anjos maus. Foi o que o Concílio do Latrão IV (1215) declarou: "O diabo e os demais
demônios foram certamente por Deus criados bons em sua natureza, mas por si mesmos se tornaram maus" (DS
800). - Este esclarecimento, ao qual se poderiam acrescentar outros semelhantes, de data anterior ou posterior,
tinha em vista o dualismo, que admitia dois Princípios coeternos: o do Bem e o do Mal, Deus e o Diabo.
3) O Sínodo regional de Constantinopla em 543, tendo em vista os origenistas, afirma que a punição dos
demônios não tem fim e não se pode admitir a restauração (reintegração) dos mesmos na graça de Deus. Cf. DS
411 .
144 Escola Mater Ecclesiae
4) O Concílio de Braga (561) determinou:
"Se alguém diz que o diabo. não foi primeiramente um anjo bom, criado por Deus, e que sua natureza não foi
obra de Deus, mas, ao contrário, diz que emergiu do caos e das trevas e que não tem autor pois é ele mesmo o
princípio e a substância do mal, como afirmaram Maniqueu e Prisciliano, seja anátema.
Se alguém crê que o diabo fez no mundo algumas criaturas e que por sua própria autoridade continua
produzindo os trovões, os raios, as tempestades e as secas, como disse Prisciliano, seja anátema" (DS 457s).
5) O Concílio de Sens, na França, em 1140, rejeitou, entre outros erros de Pedro Abelardo, a tese de que o
diabo sugestiona mediante determinadas pedras e ervas (cf. DS 736). 6) Na Profissão de Fé proposta a Durando
de Huesca e seus companheiros valdenses (dualistas), está inserido o artigo:
"Cremos que o diabo se fez mau não por criação, mas por seu livre arbítrio" (DS 797).
7) O Concílio de Florença, em seu Decreto para os Jacobitas (1442), 65 declara: 'A Igreja firmemente crê,
professa e ensina que ninguém concebido de homem e de mulher foi jamais libertado do domínio do diabo a
não ser pela fé no Mediador entre Deus e os homens, Jesus Cristo, Nosso Senhor" (DS 1347).
8) O Concílio de Trento afirma, no Decreto sobre a justificação (1547), que os homens, em conseqüência do
pecado original, "estavam sob o poder do diabo e da morte" (DS 1521). Ao falar da perseverança, observa que,
depois da justificação, "os homens ainda têm que enfrentar a luta contra o diabo" (DS 1541). Os que pecam
após o Batismo, entregam-se "à servidão do pecado e ao poder do demônio " (DS 1668).
Referindo-se à Unção dos Enfermos, diz o mesmo Concílio em 1551: 'Ainda que o nosso adversário (o
demônio), durante toda a vida, procure e aproveite ocasiões para poder de um modo ou de outro devorar nossas
almas (cf. I Pd 5,8), em tempo algum ele é mais astuto para nos perder totalmente do que no término iminente
da nossa vida" (DS 1694). "Graças a este sacramento, o enfermo resiste melhor às tentações do demônio" (DS
1696). 9) Inocêncio XI, ao condenar os erros de Miguel de Molinos (1687), afirmou indiretamente que Deus
não permite nem quer que o diabo violente de tal modo o homem que este não seja responsável por alguns atos
pecaminosos (cf. DS 2241-2253; cf. 2192).
10) Leão XIII condenou em 1887 uma proposição de Rosmini, que erradamente explicava o pecado original:
"Já que os demônios possuíam o fruto (proibido), julgaram que, se o homem o comesse, eles entrariam no
homem; pois, convertido aquele alimento no corpo vivo do homem, poderiam entrar livremente na sua
animalidade, isto é, na vida subjetiva do homem e assim dispor dele, como haviam proposto" (DS 3233).
11) Pio XII, na encíclica Humani Generis (1950), censura a atitude daqueles que perguntavam "se os anjos
(e, portanto, também o diabo) são criaturas pessoais" (DS 3891). O Papa tinha em vista os que pretendiam
negar a existência do demônio, reduzindo-o a figura literária.
12) O Concílio do Vaticano II afirma que o "Filho de Deus, por sua morte e ressurreição, nos livrou do poder
de Satanás" (Sacrosanctum Concílíum 6) ; ... " o Pai enviou seu Filho afim de por Ele arrancar os homens ao
poder das trevas e de Satanás" (Ad Gentes 3); ... "Cristo derrotou o Império do diabo" (Ad Gentes 9).
Aludindo a Ef 6,11-13, o Concílio fala das "ciladas do demônio" (Lumen Gentíum 48).
13) Paulo VI, em várias ocasiões, referiu-se à existência e à criatividade maléfica do demônio. Em sua
homilia de 29/06/72 pronunciou famosa frase:
"Através de uma brecha penetrou a fumaça de Satanás no templo de Deus.
Aos 15/11/72 estendia-se sobre a realidade do demônio:
" É o inimigo número um, o tentador por excelência. Sabemos também que este ser obscuro e perturbado
existe de verdade e que com pérfida astúcia é atuante; é o inimigo oculto que dissemina erros e infortúnios na
história dos homens... É o pérfido e astuto encantador que sabe insinuar-se em nós por meio dos sentidos, da
fantasia, da concupiscência, da lógica utópica ou dos desordenados contatos sociais no exercício das nossas
atividades, para nestas introduzir desvios, muito mais nocivos porque aparentemente conformes com nossas
estruturas físicas ou psíquicas ou com nossas instintivas e profundas aspirações...
Poderemos supor que esteja atuando sinistramente onde a negação de Deus se faz radical, sutil e absurda;
onde a mentira se afirma hipócrita e poderosa contra a, "verdade evidente; onde o amor é eliminado por um
egoísmo frio e cruel; onde o nome de Cristo é impugnado com ódio consciente e rebelde...; onde o espírito do
Evangelho é mistificado e contraditado; onde se afirma o desespero como última palavra".
Dizia Paulo VI, na mesma ocasião, que "deixa o quadro do ensinamento bíblico e eclesial quem se recuse a
reconhecer a existência do demônio, ou quem faz do demônio um princípio que existe por si e não tem, como as
demais criaturas, a sua origem em Deus, ou ainda quem explica o demônio como sendo uma pseudo-realidade,
uma personificação conceitual e fantástica das causas desconhecidas de nossas desgraças" (Ver L'osservatore
Romano de 16/11/1972). Tão categóricas afirmações de Paulo VI nada tinham de inovador, mas

65
Jacobitas são monofisitas sírios que voltaram ao seio da Igreja.
145 Escola Mater Ecclesiae
fundamentavam-se em longa série de pronunciamentos anteriores do Magistério (baseados, por sua vez, sobre a
S. Escritura e a Tradição).

Lição 3: O Catecismo da Igreja Católica


Reservamos ao Catecismo da Igreja Católica um lugar de especial destaque, visto ser uma Súmula da
Doutrina da Fé para os nossos dias.
Eis as principais afirmações desse importante documento:
328. 'A existência dos seres espirituais, não corporais, que a Sagrada Escritura chama habitualmente anjos, é
uma verdade de fé. O testemunho da Escritura a respeito é tão claro quanto a unanimidade da Tradição.
330. Enquanto criaturas puramente espirituais, são dotadas de inteligência e de vontade: são criaturas
pessoais e imortais. Superam em perfeição todas as criaturas visíveis. Disto dá testemunho o fulgor de sua
glória". Seguem-se textos bíblicos relativos aos anjos. Por último, alguns incisos sobre a queda dos anjos.
391. Por trás da opção de desobediência de nossos primeiros pais há uma voz sedutora, que se opõe a Deus,
e que, por inveja, os faz cair na morte. A Escritura e a Tradição da Igreja vêem neste ser um anjo destronado,
chamado Satanás ou Diabo. A Igreja ensina que ele tinha sido anteriormente um anjo bom, criado por Deus.
'diabolus enim et alii daemones a Deo quidem natura creati sunt sunt boni, sed ipsi per se facti sunt mali - Com
efeito, o Diabo e outros demônios foram por Deus criados bons em (sua) natureza, mas se tornaram maus por
sua própria iniciativa'.
392. A Escritura fala de um pecado desses anjos. Esta "queda" consiste na opção livre desses espíritos
criados, que rejeitaram radical e irrevogavelmente a Deus e o seu Reino. Temos um reflexo desta rebelião nas
palavras do Tentador ditas a nossos primeiros pais: 'E vós sereis como deuses'(Gn 3,5). O Diabo é 'pecador
desde o princípio'( I Jo 3,8), pai da mentira'(Jo 8,44).
393. É o caráter irrevogável da sua opção, e não uma deficiência da infinita misericórdia divina, que faz com
que o pecado dos anjos não possa ser perdoado. Não existe arrependimento para eles depois da queda, como
não existe arrependimento para os homens após a morte.
394. A Escritura atesta a influência nefasta daquele que Jesus chama de 'o homicida desde o princípio' (Jo
8,44), e que até chegou a tentar desviar Jesus da sua missão recebida do Pai. 'Para isto é que o Filho de Deus se
manifestou: para destruir as obras do Diabo' (I Jo 3,9). A mais grave dessas obras, devido às suas
conseqüências, foi a sedução mentirosa que induziu o homem a desobedecer a 'Deus. '
395. Contudo, o poder de Satanás não é infinito. Ele não passa de uma criatura, poderosa pelo fato de ser
puro espírito, mas sempre criatura: não é capaz de impedir a edificação do Reino de Deus. Embora Satanás atue
no mundo por ódio contra Deus e o seu Reino em Jesus Cristo, e embora a sua ação cause graves danos - de
natureza espiritual e, indiretamente, até de natureza física - para cada homem e para a sociedade, esta ação é
permitida pela Divina Providência, que com vigor e doçura dirige a história do homem e do mundo. A
permissão divina da atividade diabólica é um grande mistério, mas 'nós sabemos que Deus coopera em tudo
para o bem daqueles que o amam' (Rm 8,28) ".
Concluindo este percurso de textos do magistério da Igreja, procuremos condensar o seu conteúdo em cinco
proposições:
1) Os documentos citados convergem em supor a existência dos anjos como seres reais, ontologicamente
bons, dotados de inteligência e vontade, capazes de agir no mundo. Este é um dado de fé. Não podem ser
entendidos como personificação mitológica do bem ou do mal no mundo.
2) Os anjos dependem de Deus Criador. Foram criados por Deus; por conseguinte, foram criados bons. Se o
diabo é mau, isto se deve ao fato de que pecou. Afastou-se livremente de Deus condenando-se a estar privado
de Deus para sempre, pois os seres espirituais (no caso, os anjos) são imortais por sua própria natureza.
3) Por permissão de Deus, o diabo atua astuciosamente, tentando levar o homem ao mal, sem poder anular a
liberdade humana. O homem, ao pecar, entrega-se à influência do Maligno.
4) Cristo Redentor nos resgatou do domínio do Maligno.
5) O Magistério da Igreja não se compromete com outras afirmações, como aquelas atinentes ao tipo de
pecado dos anjos maus, ao número e à hierarquia dos anjos bons e maus, às modalidades de sua atuação no
mundo. Se alguém deseja ultrapassar os limites dos dados fundamentais propostos pelo magistério da Igreja,
"entra, como diz Paulo VI, num mundo misterioso, marcado por um drama muito infeliz, do qual pouca coisa
conhecemos" (15/11/76).

PERGUNTAS
Diga em síntese, o que o Magistério da Igreja propõe a respeito dos anjos bons e maus.
146 Escola Mater Ecclesiae
PARTE IV: OS ANJOS: C) APROFUNDAMENTO SISTEMÁTICO

MÓDULO 48: QUEM SÃO OS ANJOS?


Reuniremos neste Módulo vários aspectos da reflexão sistemática sobre os anjos, após haver proposto a
fundamentação bíblica e a doutrina da Tradição e do Magistério da Igreja.

Lição 1: Espíritos Puros


Os anjos não têm corpo, nem mesmo um corpo sutil ou etéreo, como pensavam muitos dos antigos. São
espíritos que Deus criou para a sua glória e seu serviço. O fato de não terem corpo permite aos anjos um acume
intelectual muito mais profundo do que o dos homens. Estes estão sujeitos aos sentidos; progridem lentamente
em seus raciocínios, donde resulta a possibilidade de errar com freqüência maior ou menor. Ao contrário, os
anjos têm um conhecimento intuitivo, que é direto e menos sujeito a errar.
A existência de tais criaturas - espíritos sem corpo, superiores ao homem em perfeição ontológica e
inferiores a Deus - não pode ser provada pela razão. Todavia, a quem reflete parece conveniente que Deus tenha
criado tais seres; se há criaturas meramente materiais (as irracionais) e se há criaturas psicossomáticas,
compostas de matéria e espírito (os seres humanos), é conveniente que haja criaturas puramente espirituais (os
anjos). Assim a obra do Criador aparece em toda a sua variedade e harmonia. Não se pode definir o momento
em que os anjos foram criados. Alguns Padres da Igreja admitiam terem eles tido origem antes da criação do
mundo; há, porém, quem prefira afirmar que foram criados juntamente com as demais criaturas. Torna-se
impossível dirimir a dúvida, por falta de documentação adequada. O fato é que os primeiros pais foram tentados
por um anjo mau ou decaído (cf. Gn 3,1), o que significa que os anjos foram criados antes dos homens.
É de notar ainda que os anjos foram inicialmente elevados à ordem sobrenatural, ou seja, a uma dignidade
que os habilitava a ver Deus face-a-face (meta esta que está acima de qualquer pretensão de um ser criado).
Para se confirmarem nesta graça, foram submetidos a uma prova (como os primeiros pais também foram); uma
parte deles, porém, recusou fidelidade ao Senhor Deus, pecando por soberba. Tornaram-se então os anjos maus
ou demônios, cuja ação neste mundo é regida pela Providência Divina, como se dirá no Módulo 49 deste Curso.
Muitos povos não judeus nem cristãos admitiram a existência de seres intermediários entre o homem e a
Divindade. Os anjos, porém, não podem ser identificados com semideuses nem com duendes nem com gênios
(do paganismo) nem com exus e orixás. São meras criaturas, em tudo subordinadas ao único Deus; não
constituem um poder rival de Deus. Também não são seres chifrudos com tridentes, nem tem asas.
A representação de anjos como meninos ou como meninas é fantasiosa e destituída de fundamento. Está
claro, porém, que os artistas tinham que recorrer a uma forma plástica humana para apresentar aos olhos dos
homens seres que são meramente espirituais.
As asas dos anjos são um artifício inspirado pela Bíblia. Esta apresenta com asas os Serafins, os Querubins,
os quatro seres vivos do Apocalipse; cf. Is 6,2; Ez 1 ,9-11 ; 10,21; Ex 37,9; Ap 4,8. Os anjos voam, conforme
Dn 9,21; Ap 14,6. Trata-se de expressões figuradas que supõem corporeidade nos anjos a fim de os poder
ilustrar aos leitores. Talvez as asas simbolizem a leveza da imaterialidade; assim na arte egípcia a alma
separada do corpo tem asas e um corpo de ave; o mesmo ocorre na arte da antiga Mesopotâmia. É no século V
que aparecem na iconografia cristã os primeiros anjos alados; aliás, os artistas costumam colocar asas nas
figuras que representam espíritos.

Lição 2: Os Coros Angélicos


Os teólogos, no decorrer dos séculos, tentaram penetrar, tanto quanto possível, na real idade dos anjos, muito
sobriamente apresentada pela S. Escritura. Como resultado de suas reflexões, propuseram algumas sentenças,
que reproduzimos a seguir, conscientes de que não pertencem ao patrimônio da fé e são de livre discussão. É
São Tomás quem propõe o seguinte raciocínio: '
1) Cada anjo é de uma espécie diferente ou cada espécie angélica é constituída por um só anjo. Isto quer
dizer: não há dois anjos iguais entre si.
A razão desta afirmativa é que os anjos são substâncias simples, imateriais; portanto cada um deles não pode
deixar de ser único; os anjos não se multiplicam, não se reproduzem. Não há como fazê-los diferentes dentro da
mesma espécie, porque só a matéria é que causa a individuação das criaturas. Expliquemo-lo mediante uma
imagem:
Um arquiteto traça um projeto de casa. Ele pode produzir muitos indivíduos ou muitas casas iguais dentro
desse seu projeto. A planta fica sendo uma só ou única; mas as casas conformes a esta planta serão muitas, por
causa da respectiva localização (endereço), e por causa do material empregado, por causa da cor da respectiva
147 Escola Mater Ecclesiae
pintura... Vê-se que o que multiplica as casas são as características materiais dessas casas; o projeto, porém,
permanece um só e sempre o mesmo. Imaginemos agora que o arquiteto altere o seu projeto e, se possível fosse,
conceba uma casa imaterial; esse novo modelo de casa não poderá multiplicar-se porque não terá matéria
(matéria que é condição indispensável para individualizar os seres corpóreos); tal casa "sem matéria" será única
no seu projeto ou na sua espécie.
Ora algo de análogo se dá com os anjos. Já que não têm matéria, cada qual é uma espécie única, singular,
que não tem par; cada um esgota a sua espécie.
2) Como quer que seja, a Bíblia menciona grupos ou categorias de anjos, atribuindo-lhes nomes coletivos.
Em vista disto, um teólogo do século V dito "o Pseudo-Dionísio Areopagita" 66 houve por bem classificar os
anjos em três graus hierárquicos, cada um dos quais com três coros angélicos, assim distribuídos:
A primeira hierarquia compõe-se dos anjos que estão mais perto de Deus: os Serafins (Is 6,2), os
Querubins (Gn 3,24; Ex 25,18; 1Rs 6,23; SI 18 (17),11;Ez 10,3; Dn 3,55); os Tronos (Cl 1,16). Segundo o Ps.
Dionísio, os Serafins são a imagem mais perfeita do amor de Deus, ao passo que os Querubins refletem a
Sabedoria Divina e os Tronos compreendem os juízos de Deus, caracterizando-se pela submissão e paz. Toda a
atividade desses três coros se concentra na contemplação de Deus pelo amor, pelo conhecimento e pela
aceitação de sua Vontade, que eles transmitem às demais criaturas.
A segunda hierarquia compõe-se de Dominações (Ef1,21), Virtudes (Ef1,21) e Potestades67 (1Pd 3,22; Ef
1,21). Segundo o Ps. Dionísio, as Dominações ocupam-se com o governo dos próprios anjos, aos quais
transmitem as ordens de Deus; as Virtudes executam as ordens das Dominações no tocante aos elementos da
natureza material; as Potestades se dedicam à luta contra os maus espíritos.
A terceira hierarquia consta dos Principados (Cl 1,16), Arcanjos (Dn lo,13.21; 12,1; Dn 8,16; 9,21; Tb
3,16s) e Anjos. Segundo o Ps. Dionísio, os Principados dirigem as sortes das nações; os Arcanjos, além de
comunicarem importantes notícias aos homens (cf. Lc 1 ,26-38;1 ,5-22), têm a missão de proteger
especialmente pessoas que desempenham funções de relevo para a Glória de Deus, como seriam os pastores da
Igreja. Os Anjos são os ministros de Deus destinados particularmente à guarda dos homens.

Lição 3: O Culto aos Anjos


Os mais antigos teólogos e pastores da Igreja acautelavam os fiéis contra um exagerado culto aos anjos,
desejando evitar que recaíssem no culto dos "gênios" do paganismo. Todavia não recusavam uma legítima
veneração aos anjos. Assim Orígenes († 252), em polêmica contra o filósofo pagão Celso, afirmava que os
cristãos não adoram os anjos, mas lhes prestam o culto devido à dignidade dos mesmos (Contra Celsum VIII
13).
Já nos escritos de S. Justino († 165) e de Atenágoras († 185 aproximadamente) se encontram os mais antigos
vestígios de culto aos anjos; ver respectivamente 1a Apologia 6 e Súplica em favor dos Cristãos 10.
S. Ambrósio († 397) escreve: "Devemos rogar aos anjos em nosso favor, pois nos são enviados para tutela"
(De Viduis IX 55).
Em Constantinopla, no século IV, havia quinze igrejas dedicadas a S. Miguel Arcanjo. Nos tempos de S.
Gregório Magno (†604), o culto aos anjos e, especialmente, a São Miguel, tinha seu centro no monte Gargano
(Itália meridional); no século VIII teve origem outro Centro no Mont Saint-michel (França). No séculos IX
havia em Roma sete Oratórios dedicados a São Miguel.
Muito contribuiu para difundir a consciência de que os anjos acompanham a oração da Igreja, a Regra de
São Bento; em seu capítulo 19, esta afirma que o Ofício Divino é celebrado na presença dos anjos. Esta
concepção faz eco, de certo modo, a Ap 8,3, onde se lê que os anjos apresentam ao Senhor Deus as orações dos
homens.
Na Idade Média a devoção aos anjos tomou grande impulso por obra de S. Bernardo de Claraval († 1150) ;
este santo mestre propôs uma fórmula sintética que ilustra a atitude dos fiéis frente aos anjos, fórmu la que
ficou clássica na Liturgia da Igreja: aos anjos devemos "reverentiam pro praesentia, devotionem pro
benevolentia, fiduciam pro custodia", ou seja, "reverência porque nos assistem, devoção porque nos querem
bem, confiança porque nos guardam" (In Psalmum Qui lnhabitat sermão Xll 6).
A partir do século XIII encontram-se orações dirigidas ao anjo da guarda. No século XVI Lutero e Calvino
rejeitaram o culto aos anjos. Mas este conheceu nova estima por obra da Companhia de Jesus: S. Inácio de
Loiola († 1556) recomenda aos seus Religiosos que imitem a pureza dos anjos (Reg. Summ. 28). Os jesuítas
66
O autor anônimo do século V foi confundido com Dionísio que no Areópago de Atenas se converteu ao Cristianismo apregoado por São Paulo,
conforme At 17,34. Na verdade, Dionísio Areopagita foi o primeiro Bispo de Atenas, ao passo que o autor em pauta é muito posterior e revela
influência neoplatônica; escreveu algumas obras, das quais nos interessa aqui a intitulada "Sobre a Hierarquia Celeste".
67
Notamos que as traduções brasileiras da Bíblia não traduzem do mesmo modo os nomes dos coros angélicos.
148 Escola Mater Ecclesiae
ocasionaram a publicação de vários tratados de devoção aos anjos, principalmente no século XVl1; tenham-se
em vista, por exemplo, "Tratado e Prática da Devoção aos Anjos" de São Francisco Borgia e "Tratado do Anjo
da Guarda " do Pe. Francisco Albertini (amplamente difundido). Os autores de livros de piedade posteriores,
como o Cardeal Pedro de Berulle († 1629) e o Venerável Jean-Jacques Olier († 1657), muito contribuíram para
difundir a devoção aos anjos.
Foram celebrados pela Liturgia desde remota época. Em Constantinopla celebrava-se o Ofício de Todos os
Asomaton (incorpóreos) aos 8 de novembro e aos 11 de janeiro. No Ocidente prestava-se homenagem a todos
os anjos no Ofício da Dedicação da igreja de S. Miguel Arcanjo aos 29 de setembro. No século Ex celebrava-se
uma Missa para pedir a intercessão dos anjos.
Na Espanha tornou-se costume venerar os Anjos da Guarda não apenas das pessoas, mas também das
cidades e províncias. O Papa Paulo V em 1608 instituiu a festa dos Anjos da Guarda para todo o Império
Austríaco, atendendo ao pedido do Imperador Ferdinando 11 da Áustria; finalmente em 1670 o Papa Clemente
X estendeu a festa a toda a Igreja do Ocidente, e assinalou-lhe, no calendário litúrgico, o primeiro dia livre após
a festa de S. Miguel Arcanjo (29 de Setembro), ou seja, o dia 2 de outubro.
A existência dos Anjos da Guarda é abonada pela Tradição e o Magistério da Igreja; este se manifesta pela
Liturgia, que, como vemos, desde época remota, celebra os anjos como tutores dos homens. É, portanto, certo
que cada cristão, desde o Batismo, tem seu anjo guardião; em nossos dias há quem professe que todo ser
humano, desde o nascimento, tem seu Anjo da Guarda. Não podemos definir com precisão a maneira como este
exerce seu ministério. Como quer que seja, é muito recomendada a oração: "Santo Anjo do Senhor, meu zeloso
guardador, se a ti me confiou a piedade divina, sempre me rege, governa, guarda e ilumina. Amém".

Lição 4: O Conhecimento e a Vontade dos Anjos


1. Os teólogos medievais esforçaram-se por explicar como se dá o conhecimento dos anjos e como se
comunicam. Para tanto, recorreram a subsídios da Filosofia. Neste estudo não desceremos aos pormenores de
tais ponderações, que não são de fé; proporemos apenas as conclusões mais óbvias.
Sendo espíritos sem vinculação com a matéria, os anjos não dependem dos sentidos, como nós dependemos.
Não precisam de abrir os olhos ou os ouvidos para captar impressões visuais ou sonoras e elaborá-las pelo
raciocínio, ... raciocínio prolongado e sujeito a erros. O conhecimento dos anjos é inato e intuitivo.
Inato: Deus lhes infundiu, desde que os criou, as noções que lhes convinha saber, a respeito de Deus, dos
outros anjos, dos homens e da natureza. Intuitivo, isto é, não discursivo; o anjo vai direto ao âmago das coisas,
sem experimentar hesitações - o que lhe permite ter um saber muito mais sólido, firme e penetrante do que o
nosso saber.
Em conseqüência, os anjos conhecem os "futuros necessários", isto é, aquelas coisas que decorrem
necessariamente das leis da natureza, assim como o astrônomo pode prever fenômenos distantes (eclipses, por
exemplo) aplicando simplesmente as leis da natureza. Todavia os anjos não podem conhecer os "futuros livres",
isto é, os acontecimentos que dependem da liberdade humana; também não podem conhecer os pensamentos e
desejos íntimos dos homens (só Deus os conhece) ; percebem, porém, nossos pensamentos e sentimentos na
medida em que os manifestamos de algum modo, mediante sinais e expressões adequadas.
2. Dotados de inteligência, os anjos têm necessariamente vontade. Esta é tanto mais perfeita, firme e forte
quanto mais perfeito é o conhecimento que lhe antecede. Ninguém pode querer algo sem o conhecer; e há de
querê-lo ou repudiá-lo na medida do que conhece.
A vontade dos anjos é livre, ... e mais livre do que a de muitos homens, porque não influenciada pelas
paixões, que por vezes dominam o querer do homem. As opções dos anjos são de natureza puramente
intelectual. Portanto, depois que um anjo escolheu, com a lucidez que lhe é própria e com plena liberdade, não
volta atrás nas suas decisões. Assim os anjos que optaram por Deus no início da sua história, não podem querer
retratar-se, como também aqueles que optaram contra Deus não podem querer converter-se.
Ulteriores considerações serão propostas a respeito no Módulo 49 deste Curso.

PERGUNTAS
1) Os anjos têm corpo? ... corpo sutil?
2) Quando foram criados?
3) Foram elevados á ordem sobrenatural?
4) Perseveraram todos na fidelidade a Deus?
5) Que são e quais são os coros angélicos?
6) Como se desenvolveu a devoção aos anjos?
149 Escola Mater Ecclesiae

SANTA TERESA DE ÁVILA E OS ANJOS


Santa Teresa conta na sua Autobiografia (Cap. 29, 13) a experiência mística, muitas vezes repetida, do Anjo
que com um dardo de ouro lhe atravessava o coração. Hoje se mostra aos visitantes o lugar em que essa visão
aconteceu. O coração da santa carmelita se conserva intato em precioso relicário, na cidade em que faleceu,
Alba de Tormes. Na parte superior do coração, se aprecia a ferida horizontal a que faz referência a santa quando
descreve esta visão:
"Quis o Senhor que eu tivesse algumas vezes esta visão: eu via um anjo perto de mim, ao lado esquerdo, em
forma corporal, o que só acontece raramente. Muitas vezes me aparecem anjos, mas só os vejo na visão passada
de que falei. O Senhor quis que eu o visse assim: não era grande, mas pequeno, e muito formoso, com um rosto
tão resplandescente que parecia um dos anjos muito elevados que se abrasam. Devia ser dos que chamam
querubins, já que não me dizem os nomes, mas bem vejo que no céu há tanta diferença entre os anjos que eu
não os saberia distinguir.
Vi que trazia nas mãos um comprido dardo de ouro, em cuja ponta de ferro julguei que havia um pouco de
fogo. Eu tinha a impressão de que ele me perfura va o coração com o dardo algumas vezes, atingindo-me as
entranhas. Quando o tirava, parecia-me que as entranhas eram retiradas, e eu ficava abrasada num imenso amor
de Deus. A dor era tão grande que eu soltava gemidos, e era tão excessiva a suavidade produzida por essa dor
imensa que a alma não desejava que tivesse fim nem se contentava senão com a presença de Deus. Não se trata
de dor corporal; é espiritual, se bem que o corpo também participe, ás vezes muito. É um contato tão suave
entre a alma e Deus que suplico à Sua bondade que dê essa experiência a quem pensar que minto ".
'Estando uma vez em oração, muito recolhida e envolta em suavidade e quietude, senti-me rodeada de anjos
e muito próxima de Deus" (V 40, 12).
(Texto extraído da obra de Gabriel C. Galache: Os Anjos, Ed. Loyola, pp. 39s).

MÓDULO 49: OS ANJOS MAUS (I)


Lição 1 : A Queda dos Anjos
A S. Escritura menciona "espíritos malignos" (Ef 6,12), "espíritos impuros" (Lc 8,29), "espíritos piores" (Lc
11,26). São anjos que, criados bons, se tornaram maus abusando do seu livre arbítrio.
O texto bíblico não se refere ao pecado dos anjos 68, mas supõe-no, pois logo nas suas primeiras páginas
apresenta o anjo tentador sob a imagem de uma serpente.
Em que terá consistido esse pecado?
- Já que o anjo não tem corpo, só pode ter sido pecado do espírito, que é a soberba. E por que soberba?
S. Tomás de Aquino († 1274) supõe que tenha sido a soberba de desejar diretamente a bem-aventurança
final, não por concessão gratuita de Deus, mas como decorrência da natureza angélica; quiseram assim
manifestar sua independência em relação a Deus e recusar a homenagem que deviam ao Criador; ver Suma
Teológica I 63, art. 2. Em poucas palavras: terá sido um pecado de complacência na própria excelência, com
desdém da honra e do respeito devidos a Deus.
No século XVII, o teólogo jesuíta Francisco Suarez († 1617) propôs outra sentença: supõe, sim, o orgulho,
mas julga que este se externou na recusa de adorar a santíssima humanidade de Cristo unida ao Verbo de Deus
(a natureza humana, como tal, é inferior à natureza angélica). Uma variante desta hipótese afirma que os anjos
maus não se quiseram submeter à Mãe do Verbo Encarnado, que é a Rainha dos anjos por sua função singular
no plano da salvação.
Não há como dirimir as dúvidas. Resta firme, porém, que o pecado dos anjos foi o da soberba.69
O pecado dos anjos tem caráter definitivo. Verdade é que, desde os primeiros séculos do Cristianismo, houve
quem propusesse a conversão dos anjos. Tal foi o caso dos monges origenistas, discípulos de Orígenes (t 253),
que propuseram a apokatástasis ton panton (restauração de todas as criaturas; cf. At 3,21); todavia o magistério
da Igreja condenou tal tese no Concílio ecumênico de Constantinopla II em 553. A razão desta recusa é dupla: -
nem a Escritura nem a Tradição falam da conversão dos anjos maus. Ao contrário, o Senhor Jesus no
Evangelho se refere ao "fogo eterno70 preparado para o diabo e seus anjos" (Mt 25,41);
68
Os textos de Jd 6 e 2Pd 2,4 não se referem ao pecado inicial dos anjos, mas a um pretenso pecado dos anjos com mulheres, admitido pela Tradição
Judaica. Tal tipo de falta é impossível; os autores sagrados não o afirmam, mas referem-no como presumido exemplo de como a justiça de Deus se
exerce em relação aos pecadores.
69
S. Paulo, aliás, referindo-se ao epíscopo ou supervisor da comunidade de Efeso, diz o seguinte: "Não seja um recém-convertido; não aconteça que,
inchado de soberba, venha a cair na mesma condenação do demônio" (lTm 3,6).
70
Está claro que não se trata de fogo semelhante ao que conhecemos; o que importa entender aí é o definitivo afastamento de Deus, com a dor que
isto causa na criatura.
150 Escola Mater Ecclesiae
- a natureza dos anjos é tal que, como dito, uma vez feita a sua opção, eles não podem voltar atrás, seja para
o bem, seja para o mal. Tendo uma inteligência lúcida e uma vontade firme (tanto mais firme quanto mais
lúcida é a sua inteligência), não estão sujeitos às paixões e não podem fazer opções provisórias, como o
homem; as razões que levaram o anjo a fazer a sua escolha, já lhe eram suficientemente claras antes da opção.
Daí a irrevogabilidade da atitude soberba dos anjos pecadores.
Julga-se que há uma hierarquia entre os anjos maus, sendo Satanás ou Satã o príncipe da milícia celeste;
deve ser um anjo mais perfeito do que os outros no plano ontológico.

Lição 2: Os Apelativos dos Anjos Maus


Os nomes dados aos anjos maus são, além de Satã (= o Adversário, em hebraico):
demônio, palavra que vem do grego daimón ou daimónios. Designa, de modo geral, todos os anjos maus;
diabo, do grego diábolos = caluniador. Este vocábulo é usado como sinônimo de Satã; ver Mt 25,41: "... o
Diabo e seus anjos".
Maligno parece equivaler a Satanás na expressão de Jesus: "O joio são os filhos do Maligno. O inimigo que
semeou, é o Diabo" (Mt13,38s).
Beelzebu, também sinônimo de Satã (a quanto parece), pois os fariseus falavam de "Beelzebu, o príncipe
dos demônios " (Mt 12,24). Tal nome representa uma divindade cananéia e significa "Baal, o príncipe". A
forma Beelzebu ou Beelzebul é depreciativa, pois Beel Zebul quer dizer "Baal, o príncipe" e Beelzebub, "Baal
das moscas" (não do esterco, como por vezes se diz).
Lúcifer é a palavra latina, que traduz o hebraico de Is 14,12, texto que tem em vista a estrela brilhante ou
estrela dalva (assim é interpelado pelo Profeta o rei de Tiro).
Azazel aparece em Lv 16,8-10.26. É o nome de um demônio que os antigos hebreus e cananeus acreditavam
que habitava o deserto, terra árida onde Deus não exerce ação. Em Lv 17,1 lê-se o seguinte: "Não imolarão
mais seus sacrifícios a essas espécies desátiros, aos quais se presta um culto devasso". Sátiro aí traduz um
vocábulo hebraico que significa "o peludo" ou "bode". Designava gênios ou espíritos maus que tinham a forma
de animal e que se julgava habitarem lugares desertos e desolados (cf. Is 13,21; 34,14). Os filhos de Israel
poderiam ser tentados a atrai-los para si mediante a oferta de sacrifícios. A palavra "sátiro" vem do grego
Satyros e designa um semideus impudico, que tinha chifres curtos e pés e pernas de bode. Asmodeu é o anjo
mau, "o pior dos demônios", que fez perecer os sete maridos de Sara, conforme o livro de Tobias 3,8. Tal nome
significa em hebraico "aquele que faz perecer" (lembra o anjo destruidor de 2Sm 24,16; Sb 18,25; Ap 9,11). É,
no livro de Tobias, a antítese do arcanjo Rafael, cujo nome significa "Deus cura". No apócrifo "Testamento de
Salomão", este demônio se apresenta também como inimigo da união conjugal.
É de notar que o texto sagrado alude a tais tipos de seres maus, sem pretender confirmar o que os pagãos
imaginavam a respeito deles. Trata-se de referências feitas de passagem, que nada definem no plano
doutrinário.
Em Ef 2,2 e 6,12 São Paulo se refere ao "Príncipe do poder do ar", sem tencionar definir o habitat dos
espíritos maus; apenas alude à crença dos antigos, que julgavam ser o ar o lugar onde pairavam os espíritos
demoníacos; assim situadas, as potências adversas se interporiam entre Deus (no alto) e o homens (na terra).
Em Ef 6,12 há menção dos "Dominadores deste mundo de trevas" e dos "Espíritos do Mal, que povoam as
regiões celestiais"; há aí referência à opinião segundo a qual os espíritos (bons e maus) governavam os astros e,
por eles, todo o universo; residiam "nos céus" (cf. Ef 1,20s; 3, 10; Fl 2,10) ou "no ar" (Ef 2,2), entre a terra e a
morada de Deus; vêm a ser, pode-se dizer, "os elementos do mundo", de que fala Gl 4,3. – Nestas passagens, o
Apóstolo recorre a concepções e expressões dos antigos povos no exclusivo intuito de significar os anjos maus
ou demônios (que não têm habitat ou lugar de residência) e sua ação neste mundo; nada, além disto, se pode
deduzir destas alusões a elementos da cultura antiga.
Em Jo 12,31; 14,30; 16,11, Jesus se refere a Satanás como sendo "o Príncipe deste mundo". Em 2Cor 4,4
São Paulo fala do "Deus deste mundo". - Eis expressões muito fortes, que pretendem indicar o domínio de
Satanás sobre a humanidade que se lhe entregou pelo pecado dos primeiros pais. Com efeito; São Paulo nos diz
que "por um só homem o pecado entrou no mundo e pelo pecado a morte" (Rm 5,12). Isto significa que a morte
não é atualmente mero fenômeno biológico, mas ela traz uma conotação religiosa; se não fora o pecado dos
primeiros pais, a morte seria uma passagem suave da vida presente para a futura; após o pecado ela tem a
característica de um arranco violento e doloroso. Em conseqüência, a morte violenta (que o pecado introduziu
no mundo) é um elemento que significa o poder de Satanás sobre os homens e o mundo. É o que justifica os
títulos "Príncipe deste mundo" e "Deus deste mundo" (empregados metaforicamente). Não há dúvida, Cristo
remiu a humanidade de tal domínio, vencendo a morte pela sua ressurreição; assim a morte perdeu o seu sinal
151 Escola Mater Ecclesiae
negativo ou a sua característica de punição para tornar-se a porta que leva à plenitude da vida que Cristo
conquistou para o gênero humano.
Examinemos agora as modalidades da ação do Maligno neste mundo.

Lição 3: A Ação do Demônio


A S. Escritura se refere freqüentemente à ação de Satanás neste mundo. Basta lembrar a parábola do joio e
do trigo, segundo a qual o Maligno é o semeador do joio (Mt 13,38s),... a exortação do Senhor à vigilância, à
oração e ao jejum como meios de combater o Inimigo: "Esta espécie (de demônio) não pode ser expulsa a não
ser por meio da oração (e do jejum)" (Mc 9,29).
Disto decorre que a vontade do demônio, voltada contra Deus, procura arrastar os homens para longe de
Deus mediante o pecado. O demônio assim tenta o homem - o que, aliás, ele faz desde o início da história
sagrada, quando induziu os primeiros pais à desobediência, prometendo-lhes que seriam como deuses,
arbitrando entre o bem e o mal (cf. Gn 3,5); "nele não há verdade; quando ele mente, fala do que lhe é próprio,
porque é mentiroso e pai da mentira" (Jo 8,44).
Jesus, ao contrário, é a Verdade (cf. Jo 14,6) e veio ao mundo para dar testemunho da verdade (cf. Jo 18,37).
Quem considera o mundo de hoje, principalmente o da política e dos negócios públicos, verifica quanto de fato
está alastrado o costume de seduzi r e enganar desonestamente. Verifica também quanto são ilusórias as
promessas de felicidade mediante sexo livre, drogas, homossexualismo... A maneira inteligente e requintada
como a mentira é propagada em nossos dias (tenham-se em vista especialmente os Estados totalitários), lembra
a perspicácia e a sagacidade do demônio, capazes de sugerir a inversão das categorias do bem e do mal e os
bárbaros sistemas da lavagem de crânio e dos campos de concentração.
Aliás, já se tem dito que a mais esperta mentira do diabo é a de fazer crer que ele não existe (Beaudelaire).
Daí a advertência do S. Padre Paulo VI em 15/1 1/1972:
"Ficai sabendo que a questão do demônio e da influência que ele pode exercer sobre indivíduos, sobre
comunidades, sobre sociedades inteiras ou sobre acontecimentos é um capítulo extremamente importante da
doutrina católica que deve ser de novo objeto de estudo, embora hoje em dia não se lhe dê muita atenção".
O escritor inglês C-S- Lewis, em seu livro The Screwtape Letters compraz-se em apresentar um demônio
senior (mais velho) a instruir um júnior (mais jovem) na arte da tentação. Em dado momento, o instrutor refere
que uma das principais linhas de ação do Inferno consiste precisamente em estabelecer o reino da mentira nas
sociedades e nas instituições: "Tomei nota do que você me escreveu acerca do modo como vem orientando as
leituras do seu paciente ia pessoa tentada] e do empenho que tem posto em que conviva bastante com o seu
amigo materialista. Mas não estará sendo um tanto ingênuo? As suas palavras dão-me a impressão de que você
pensa que argumentar é a melhor maneira de mantê-lo longe das garras do Inimigo [Deus]. Talvez fosse assim
se ele tivesse vivido alguns séculos antes; naquela época, os seres humanos ainda sabiam bastante bem se uma
afirmação estava provada ou não, e, quando tinham certeza, realmente pautavam-se por ela. Ainda vinculavam
o pensamento à ação e estavam preparados para mudar a sua conduta em função de uma cadeia de raciocínios.
Mas, felizmente, graças à imprensa e outras armas do mesmo gênero, conseguimos alterar em grande medida
essa atitude. O seu paciente foi acostumado desde menino a ter uma dúzia de filosofias incompatíveis entre si
dançando juntas na sua cabeça. Não pensa se uma doutrina é, em primeiro lugar "verdadeira" ou "falsa" mas se
é "teórica" ou "prática" "ultrapassada" ou "moderna'[ "convencional" ou "radical". O melhor aliado que temos
na nossa tarefa de mantê-lo afastado da Igreja é o chavão, não o argumento. [... ] Mantenha tudo nebuloso na
sua cabeça agora, e você terá toda a eternidade para divertir-se produzindo nele esse tipo peculiar de lucidez
mental própria do Inferno"71
Para evitar a tentação, recomendam-se dois principais meios:
- fugir das ocasiões próximas e também remotas de sedução ao pecado. Não é na hora da tentação que o
cristão começa a estar alerta e resistente, mas é durante todo o trâmite da sua vida;
- a oração. Diz João Paulo II: "O cristão, dirigindo-se ao Pai no Espírito de Jesus e invocando o seu reino,
clama com a força da fé: 'Não nos deixeis cair em tentação, mas livrai-nos do mal, do Maligno. Fazei, Senhor,
que não cedamos à infidelidade para a qual nos atrai aquele que foi infiel desde o começo"' (Audiência Geral,
13/08/1986).
Notemos ainda que sentir tentação não é pecado (a não ser que voluntariamente alguém se exponha a ela). O
pecado só existe quando há consentimento e na proporção do consentimento dado à tentação.
A existência dos anjos maus é atestada por povos primitivos; ver Módulo 45.

71
C-S- Lewis, The Screwtape Letters, Harper and Collins, London 1991, p. l1.
152 Escola Mater Ecclesiae
PERGUNTAS
1) Em que consiste o pecado dos anjos?
2) Os anjos maus podem arrepender-se ? Serão restaurados no bem ? Por quê ?
3) Que significam os nomes Beelzebul, Lúcifer Sátiro?
4) Em que sentido se pode dizer que Satanás era o Príncipe ou o Deus deste mundo?
5) Porque o demônio tenta os homens? Qual o papel de Deus diante deste fato?
6) Como Satanás tenta os homens? Como evitar as tentações?

MÓDULO 50: OS ANJOS MAUS (II )


Ao tratar da tentação no Módulo precedente, abordamos o que se chama "a ação ordinária" do demônio
contra o homem. Há que considerar agora "a ação extraordinária" do mesmo. Há quem fale de obsessão e
possessão.
Obsessão seria uma atuação perturbadora do demônio sobre o mundo infra-humano (minerais, vegetais,
animais irracionais) ou sobre o ser humano (sem contudo impedir o uso da inteligência e da livre vontade da
pessoa agredida). No primeiro caso, tem-se a obsessão local e no segundo caso a obsessão pessoal. Não nos
deteremos sobre alguma forma de obsessão, pois os fenômenos assim designados são de difícil diagnóstico; a
Parapsicologia explica muitos dos estados de perturbação de ambientes e de pessoas que outrora eram
atribuídos ao demônio. Tenha-se em vista especialmente o fenômeno das casas mal assombradas: outrora
julgava-se que se devia a espíritos maus ou a almas "do outro mundo", ao passo que hoje se explica
satisfatoriamente pela telergia de uma pessoa que traz dentro de si um conflito ou uma tempestade e exprime
essa perturbação interior emitindo uma energia que transtorna a casa onde se acha o paciente. Mais: não se pode
dizer que terremotos, pragas, doenças desconhecidas, raios do céu, são necessariamente causados pelo demônio.
Nem mesmo são necessariamente efeito da ação diabólica as idéias fixas, o ódio, a angústia, o desespero.., que
afetam certas pessoas. Por isto, trataremos neste Módulo tão somente da possessão diabólica.

Lição 1: Possessão Diabólica - que é?


Neste particular, há que evitar dois erros extremos: acreditar com facilidade que alguém está possesso, como
também negar a possessão diabólica. Esta pode ocorrer hoje e ocorreu de fato na vida de Cristo. Sim; os
evangelistas nos dizem que Jesus expulsava demônios: "De tarde, já posto o sol, levaram a Jesus todos os que
estavam enfermos e possessos... E ele curou muitos doentes de diversas enfermidades e expulsou muitos
demônios" (Mc 1, 32-34) ; cf Mt 8, 16; Lc 4,40s.
Dizia Jesus: "Se eu lanço fora os demônios pela virtude do Espírito de Deus, chegou a vós o Reino de Deus"
(Mt 12,28); cf. Lc 11,20.
Há quem diga que Jesus, assim agindo, apenas se acomodava à mentalidade simplória da gente de seu
tempo. Ora isto é inconcebível, pois Ele mesmo disse que "veio ao mundo para dar testemunho da verdade" (cf.
Jo 18,17) e não para confirmar os seus contemporâneos numa crença errônea que se teria protraído até nosso
dias . Por conseguinte, deve-se admitir que ao menos nos Evangelhos há notícia de autêntica possessão
diabólica. Os casos posteriores, relatados na história da Igreja, hão de ser examinados cada qual de per si.
Pergunta-se então: que é a possessão diabólica?
A possessão diabólica é um estado em que o demônio exerce domínio diretamente sobre o corpo e
indiretamente sobre a alma de uma pessoa. Esta vem a ser instrumento dócil e cego do poder despótico do
Maligno. Tal indivíduo é chamado "possesso, endemoniado", porque vítima da ação do demônio, ou também
"energúmeno", porque movido por uma energia que lhe é estranha. Não é fácil distinguir tal estado de um
quadro patológico de histeria, epilepsia ou outra doença nervosa. O Ritual Romano datado do século XVI
estipulava, como critérios para se diagnosticar a possessão diabólica, os seguintes sintomas:
- falar ou compreender línguas estrangeiras sem as ter aprendido previamente;
- reconhecer e revelar coisas secretas ou distantes;
- outras manifestações do mesmo gênero, que, quanto mais numerosas forem, mais fortes indícios
constituirão.
Em nossos dias, porém, a Parapsicologia explica tais manifestações como fenômenos paranormais, que
podem ocorrer independentemente de intervenção do além. Por isto a Igreja é muito cautelosa diante de
presumidos casos de possessão diabólica; para os explicar, recorre primeiramente à medicina e às ciências
psicológicas. Somente em última instância admite possessão diabólica, cujos verdadeiros sintomas são sempre a
revolta contra Deus, o espezinhamento dos valores morais, a sátira em relação ao sagrado... Aliás, já o Sínodo
153 Escola Mater Ecclesiae
regional de Reims (França) em 1583 chamava a atenção para o fato de que certas manifestações tidas como
sinais de possessão diabólica poderiam ser apenas sintomas de doenças mentais.72
A ação do demônio num possesso não é contínua, mas intermitente; tem seus momentos de crise, O possesso
não é necessariamente culpado; Deus pode permitir este estado por motivos que nos escapam, mas que fazem
parte de um plano sábio e providencial. Não está excluído, porém, que a possessão seja conseqüência de uma
vida devassa ou libertina. Há pessoas, aliás, que fazem pacto com o demônio, pretendendo receber dele
benefícios, como há também aqueles que se fazem membros de uma sociedade satânica, praticam a " Missa
Negra" e cultos blasfemos, dos quais tratará o Módulo 51 deste Curso.
Uma vez diagnosticada a possessão (o que requer muita prudência), a Igreja aplica o exorcismo.

Lição 2: O Exorcismo
A palavra exorcismo vem do grego exorkismós, derivado do verbo exorkízo, fazer prestar juramento;
exorkismós seria o ato de fazer prestar juramento. Na linguagem eclesiástica tornou-se o ato de conjurar ou
afastar e desviar o Maligno.
Distinguem-se dois tipos de exorcismo:
- o exorcismo simples, que ocorre no Ritual do Batismo, do qual consta "a renúncia a Satanás, às suas
pompas e às suas obras". Impropriamente certas orações que pedem o afastamento de Satanás, são chamadas
"exorcismos simples";
- o exorcismo solene: é um sacramental, que consta de solenes orações a ser proferidas tão somente por um
Bispo ou por um sacerdote devidamente designado pelo Bispo de sua Diocese.73
Então é toda a Igreja que reza e pede a Deus a expulsão do Maligno. Eis o que a propósito diz o Direito
Canônico:
"Cânon 1172 - § 1o- Ninguém pode fazer legitimamente exorcismos em possessos a não ser que tenha obtido
licença especial e explícita do Ordinário local.
§ 2o Essa licença seja concedida pelo Ordinário local somente a sacerdote que se distinga pela piedade,
ciência, prudência e integridade de vida ".
Por sua vez, o Catecismo da Igreja Católica § 1673 reza o seguinte:
"Quando a Igreja exige publicamente e com autoridade, em nome de Jesus Cristo, que uma pessoa ou objeto
sejam protegidos contra a influência do Maligno e subtraídos a seu domínio, fala-se de exorcismo. Jesus o
praticou, é dele que a Igreja recebeu o poder e o encargo de exorcizar. Sob uma forma simples, o exorcismo é
praticado durante a celebração do Batismo. O exorcismo solene, chamado 'grande exorcismo [ só pode ser
praticado por um sacerdote, com a permissão do Bispo. Nele é necessário proceder com prudência, observando
estritamente as regras estabelecidas pela Igreja. O exorcismo visa a expulsar os demônios ou livrar da
influência demoníaca, e isto pela autoridade espiritual que Jesus confiou á sua Igreja. Bem diferente é o caso de
doenças, sobretudo psíquicas, cujo tratamento depende da ciência médica. É importante, pois, assegurar-se,
antes de celebrar o exorcismo, se se trata de uma presença do Maligno ou de uma doença".
Ainda é de notar a advertência da Congregação para a Doutrina da Fé, que, em 29/09/1985, pedia aos fiéis
católicos sobriedade no tocante ao recurso aos exorcismos. Dirigia-se aos Srs. Bispos do mundo inteiro nos
seguintes termos:
SAGRADA CONGREGAÇÃO PARA A DOUTRINA DA FÉ
00193 Roma, dia 29 de setembro de 1985
Piazza del S. Ufficio 11
Prot. na 291/70
Excelentíssimo Senhor, Já há alguns anos, certos grupos eclesiais multiplicam reuniões para orar no intuito
de obter a libertação do influxo dos demônios, embora não se trate de exorcismo propriamente dito. Tais
reuniões são efetuadas sob a direção de leigos, mesmo quando está presente um sacerdote.
Visto que a Congregação para a Doutrina da Fé foi interrogada a respeito do que pensar diante de tais fatos,
este Dicastério julga necessário transmitir a todos os Ordinários a seguinte resposta:
1. O Cânon 11 72 do Código de Direito Canônico declara que a ninguém é lícito proferir exorcismo sobre
pessoas possessas a não ser que o Ordinário do lugar tenha concedido peculiar e explícita licença para tanto
(§1); determina também que esta licença só pode ser concedida pelo Ordinário do lugar a um presbítero dotado
de piedade, sabedoria, prudência e integridade de vida (§2). Por conseguinte, os Srs. Bispos são convidados a
urgir a observância de tais preceitos.
72
Referência colhida no livro de Gabriele Amorth "Um Exorcista conta-nos", pp.53s.
73
Sacramentais são certos objetos (água benta, velas bentas, medalhas, terços...) ou cenas ações (bênçãos, consagrações, exorcismos... ), dos quais a
Igreja se serve para obter efeitos espirituais. O valor dos sacramentais procede do poder de intercessão da Igreja.
154 Escola Mater Ecclesiae
2. Destas prescrições segue-se que não é lícito aos fiéis cristãos utilizar a fórmula de exorcismo contra
Satanás e os anjos apóstatas, contida no Rito que foi publicado por ordem do Sumo Pontífice - Leão XIII; muito
menos lhes é lícito aplicar o texto inteiro deste exorcismo. Os Srs. Bispos tratem de admoestar os fiéis a
propósito, desde que haja necessidade.
3. Por fim, pelas mesmas razões os Srs. Bispos são solicitados a que vigiem para que - mesmo nos casos que
pareçam revelar algum influxo do diabo, com exclusão da autêntica possessão diabólica -, pessoas não
devidamente autorizadas não orientem reuniões nas quais façam orações para obter a expulsão do demônio,
orações que diretamente interpelem os demônios ou manifestem o anseio de conhecer a identidade dos mesmos.
A formulação destas normas de modo nenhum deve dissuadir os fiéis de rezar para que, como Jesus nos
ensinou, sejam livres do mal (cf. Mt 6,13). Além disto, os Pastores poderão valer-se desta oportunidade para
lembrar o que a Tradição da Igreja ensina a respeito da função própria dos Sacramentos e a propósito da
intercessão da Bem-aventurada Virgem Maria, dos Anjos e dos Santos na luta espiritual dos cristãos contra os
espíritos malignos.
Aproveito o ensejo para exprimir a V. Excia. meus sentimentos de estima, enquanto lhe fico sendo dedicado
no Senhor
Joseph Card. Ratzinger - Prefeito
† Alberto Bovone - Secretário"

Lição 3: Uma Palavra Tranqüilizadora de S. Teresa de Ávila


Sta. Teresa de Ávila († 1582) deixou-nos escrita a sua "Vida" que, mais do que uma biografia, é uma
descrição de fatos relacionados com a sua vida de oração. Entre outros, descreve ela como se comportava
perante as ameaças do demônio. Eis o que se lê no respectivo capítulo 25,19-22.
"Se o Senhor é tão poderoso como eu sei e como eu vejo; se os demônios não passam de escravos, e disso a
minha fé não me permite duvidar que mal me podem eles fazer se eu sou a servidora desse Senhor e Rei? Então
porque é que não me hei de sentir suficientemente forte para enfrentar o inferno inteiro? Agarrei uma cruz entre
as mãos e parecia que Deus me dava a coragem necessária. Em pouco tempo, vi-me de tal modo transformada
que já não tinha medo de descer à arena para lutar contra todos eles, e gritei-lhes: 'Venham cá agora, que, sendo
eu a servidora do Senhor quero ver o que é que vocês me podem fazer!'
E parece que tiveram mesmo medo de mim, porque me deixaram tranqüila. Daí para a frente aquela angústia
não me voltou a preocupar e já não tive mais medo dos demônios, a ponto que, quando eles me apareciam,
como explicarei mais à frente, não só já não tinha medo deles, mas tinha verdadeiramente a impressão de que
eles é que tinham medo de mim. O Mestre soberano de todas as coisas deu-me sobre eles uma tal soberania que,
hoje, já não me metem mais medo do que as moscas. São de tal forma covardes que, quando se vêem
desprezados, perdem a coragem. Só atacam frontalmente os que vêem que se lhes rendem facilmente, ou então
quando o Senhor o permite a fim de que, com as lutas e perseguições, os seus servidores ganhem méritos.
Agrada a Sua Majestade que só tenhamos medo daquilo de que convém ter medo, tendo presente que um só
pecado venial nos prejudica mais do que o inferno inteiro; essa é que é a verdadeira realidade.
Vocês sabem quando é que os demônios se manifestam e nos devem causar pavor? Quando nos
preocupamos com as honras, os prazeres e as riquezas deste mundo. Ora nós, amando e procurando aquilo que
devíamos aborrecer pomos nas suas mãos as armas com as quais nos poderíamos defender e incentivamo-los a
combater contra nós próprios, para nossa maior perdição. Dá-me pena pensar nisto, porque bastaria agarrar-nos
firmemente à cruz e desprezar todas as coisas por amor a Deus, para que Satanás fugisse destas práticas, mais
do que nós fugimos da peste. Amigo da mentira e sendo ele próprio a Mentira, o Maligno nunca se dá bem com
aquele que segue o caminho da verdade. Mas, se vê que o espírito está obscurecido, faz tudo o que pode para o
cegar completamente; quando ele percebe que uma pessoa está tão cega a ponto de se contentar com as coisas
do mundo, que são tão fúteis e vãs como brincadeiras infantis, convence-se de que está a lidar com uma criança,
trata-a como tal e diverte-se a atacar e a voltar a atacar.
Queira Deus que eu não seja assim, mas que, apoiada pela graça, repouse quando é ocasião para repousar
honre o que é digno de honra, me alegre com o que é a verdadeira alegria e não ao contrário. Assim, poderei ser
eu a mostrar os cornos a todos os demônios, que fugirão espavoridos. Não compreendo o medo dos que gritam:
'Demônio! Demônio![. deviam gritar: 'Deus! Deus! 'e assim encher o inferno de pavor. Não sabemos que os
demônios não podem nem se mover sem a permissão de Deus? Então para que é que são vãos temores? Quanto
a mim, os indivíduos apavorados pelo diabo fazem-me mais medo do que o próprio diabo, pois este não me
pode fazer nada, enquanto os outros, principalmente se se trata de maus confessores, enchem a alma de
inquietação. Por causa deles passei muitos anos de tormentos e ainda me admiro de ter conseguido suportar.
Bendito seja o Senhor que me trouxe a Sua ajuda preciosa!"
155 Escola Mater Ecclesiae

PERGUNTAS
1) Que se entende por obsessão diabólica ?
2) Que vem a ser possessão diabólica? Que sintomas a caracterizam?
3) Que é um exorcismo simples? Que é que a Igreja propõe a respeito?
4) Que é um exorcismo solene? Defina o que é um sacramental.
5) Quem pode aplicar o exorcismo solene?
6) Que diz Santa Teresa de Ávila sobre o Maligno?

O PAPA JOÃO XXIII E OS ANJOS


Inúmeras vezes e com grande naturalidade João XXIII recomenda a invocação dos anjos:
"Nunca se deve descuidar a especial devoção ao Anjo da Guarda, que está ao lado de cada um de nós "
(Discurso de 26/10/1962).
"O Anjo da Guarda é um bom conselheiro, intercede junto a Deus a nosso favor: ajuda-nos nas nossas
necessidades; defende-nos dos perigos e dos acidentes. O Papa gostaria de que os fiéis sentissem toda a
grandeza desta existência dos anjos "(Discurso de 26/10/1962).
"O Papa deseja que aumente a devoção aos Anjos da Guarda. Cada um de nós tem o seu e cada um de nós
pode conversar com os Anjos dos outros" (Discurso de 9/11/1962).
A Irmã Ângela Roncalli recebeu do seu tio João XXIII, quando ainda era bispo, a seguinte carta carregada
de humanismo:
"O teu nome de religião, que recorda o de teu tio, o de teu bisavô e o de teu irmão, dos quais estes dois
últimos já gozam da companhia visível dos anjos, deve ser para ti um estímulo para manter uma intimidade
familiar com o teu Anjo da Guarda e também com os Anjos da Guarda das pessoas que conheces e amas, na
santa Igreja e na tua Congregação. É um consolo sentir perto de nós este custódio celestial, este guia de nossos
passos, esta testemunha de nossos atos mais íntimos. Eu mesmo recito a oração 'Santo Anjo do Senhor meu
zeloso guardador' pelo menos cinco vezes por dia e com freqüência converso espiritualmente com ele, sempre
com sossego e paz. Quando tenho de visitar algum personagem importante para tratar de assuntos da Santa Sé,
peço ao meu Anjo da Guarda que se ponha de acordo com o do alto personagem, para que influa na sua
disposição de ânimo. É uma devoção que nos recomendava muitas vezes o Santo Padre Pio XI e que me é
muito fecunda " (Carta de 3/10/1948).
Outro fato, pouco conhecido, que teve uma influência incalculável no destino da Igreja: numa confidência a
um bispo canadense, João XXIII atribuiu a uma inspiração do seu Anjo da Guarda a idéia de convocar o
Concílio Vaticano II.
(Ver G. Galache, obra citada, pp. 49s)

MÓDULO 51: O SATANISMO


Após tratar do Maligno e de suas possíveis manifestações no mundo, abordamos o que se chama
"Satanismo" ou o culto de Satã. Embora haja quem não faça caso deste fenômeno ou o reduza a manifestações
psicológicas, cremos que há motivo para considerar o assunto como fenômeno religioso ou como culto prestado
a um Ser real, avesso ao bem do homem.

Lição 1: Satanismo - que é?


Por Satanismo entende-se o culto prestado por indivíduos ou grupos a Satã, tido como um ser real,
misterioso, que, embora seja alheio a Deus, pode ajudar o homem. Alguns desses grupos realizam seus atos
rituais às ocultas e secretamente, ao passo que outros o fazem às claras. Alguns têm existência efêmera, outros
são mais duradouros. Dividem-se e subdividem-se com freqüência.
Os Estados Unidos são o país em que mais se registra tal fenômeno, que lá toma características assaz
manifestas. Como seitas satânicas norte-americanas, podem-se citar: "Church of Satan, Temple of Set, Order of
the Black Ram, Werewolf Order, Worldwide Church of Satanic Liberation, Church of War..." Existe uma
considerável bibliografia de língua inglesa a respeito como também comunicação satanista por internet.
Na Inglaterra, são conhecidos os grupos: "Order of the nine Angels" e "Dark Lily". Na Nova Zelândia sabe-
se da existência do "Ordo Sinister Vivendi". Na Itália, há os "Bambini di Satana", a "Chiesa di Satana di Filippo
Scerba", a "Chiesa Luciferiana di Efrém del Gano", o "lmpero Satanico della Lucce degli Inferi" ou "Seguaci
del Maestro Loitan".
156 Escola Mater Ecclesiae
Também existem grupos que não querem passar por satânicos e que realizam ritos pagãos para entrar em
harmonia com as forças ocultas da natureza (como dizem). A este título, têm aspectos que permitem agregá-los
ao multiforme mundo do Satanismo.
Os ritos praticados pelas seitas satânicas têm em vista adorar, venerar ou evocar o Maligno, do qual os
sectários esperam receber algum favor (mudar alguma situação, provocar a desgraça de alguém, beneficiar tal
ou tal indivíduo...). Quando, por exemplo, querem obter a ruína espiritual ou material de alguém, escolhem as
horas noturnas, quando tal pessoa está adormecida; eis por que muitos dos ritos satânicos são celebrados
durante a noite. Como lugar adequado para efetuar tais ritos, escolhem cemitérios ou vizinhanças de cemitérios
ou de igrejas desativadas; geralmente procuram lugares em que não sejam facilmente detectados. Não se exclui
que, por ocasião de tais ritos, haja profanação de cadáveres, violência física sobre menores, práticas eróticas e
até homicídios rituais.
Uma das seitas mais fortes, matriz de outras , é a "Church of Satan" fundada nos Estados Unidos em 1966
por Anton Szandor La Vey. O símbolo desta seita é o que se chama "o selo de Bafomé", ou seja, uma cabeça de
bode, no interior de uma estrela de cinco pontas contida dentro de círculo e trazendo na extremidade de cada
ponta cinco letras hebraicas; esse conjunto, por sua vez, é encerrado em outro círculo. Le Vey escreveu três
livros citados com preferência no mundo satanista: "The Satanic Bible", "Compleat Witch" e "The Satanic
Ritual" ; este último apresenta diversos ritos em latim, inglês, francês e alemão. O principal rito de quase todos
os grupos satânicos é a chamada "Missa Negra", da qual tratará a Lição 4 deste Módulo.

LIÇÃO 2: AS CRENÇAS SATÂNICAS


As crenças satânicas podem variar de um grupo para outro.
Há quem veja em Satã a expressão da libertação do homem em relação aos condicionamentos religiosos,
morais e culturais do seu ambiente. Assim pensando, alguns satanistas afirmam que "o Satanismo é uma
religião da carne. A felicidade do satanista deve ser encontrada aqui e agora. Não existe céu após a morte, nem
há inferno de fogo para o pecador". Há quem veja em Satanás o Príncipe das Trevas, ao qual é possível ao
homem dirigir-se mediante ritos adequados e mágicos, afim de obter todo tipo de favores.
Existem também aqueles que consideram Satanás, especialmente Lúcifer, como uma entidade que se opõe
ao Deus da Tradição Judaico-Cristã, que é malvado ou adversário do homem (como dizem). '
Não se pode definir com absoluta precisão o conceito de Satã ou Maligno nas respectivas seitas; há matizes
diversos, que têm como denominador comum o ódio a Deus e o desejo de vilipendiar ironicamente os clássicos
valores do Cristianismo: o Evangelho, a Eucaristia, a Igreja, o próprio Deus... Toda essa oposição deve resultar
(como crêem) em emancipação e exaltação do homem; este passa a se afirmar com soberba e pretensa
autonomia.
Entre as motivações que levam as pessoas ao culto de Satã, assinalam-se: a convicção de que obterão
vantagens materiais, mesmo às custas de outras pessoas; o desejo de contestar a sociedade atual de maneira
excêntrica e desafiadora; um atrativo mórbido por aquilo que é pavoroso e horrível, talvez fundamentado no
desejo de exorcizar as fobias ou os temores do próprio indivíduo; a resposta violenta a traumatismos sofridos na
infância; a vontade de adquirir poderes especiais conferidos pela revelação dos segredos satânicos e pela
participação em ritos adequados; a satisfação derivada de aberrações ou de libertiníssimos sexuais mediante
experiências novas, insólitas e um tanto misteriosas (como são os ritos do Satanismo).
Apontam-se no mundo de hoje alguns fatores que impelem certas pessoas a procurar a novidade do
Satanismo. Tais seriam: a solidão que muitos experimentam dentro da multidão humana amorfa e impessoal ; a
campanha que caricatura o Cristianismo e o apresenta como adversário do progresso do homem; a
desagregação da família, que leva muita gente ao desânimo e à desesperança e, conseqüentemente , à procura
de solução em ambientes desconhecidos e inéditos.
Pergunta-se: as pessoas que se entregam ao culto de Satanás, podem ser tidas como possessas do demônio no
sentido descrito em nosso Módulo 50? - Não necessariamente. A possessão diabólica é algo que aliena a pessoa
a si mesma, fazendo-a joguete do Maligno, o que não parece ocorrer sempre no caso de satanistas.

Lição 3: Em Síntese
O que mais caracteriza o Satanismo, é a inversão dos valores: o que é, objetivamente falando, falso ou
errôneo, passa a ser considerado modelo correto e benéfico, que o indivíduo adota e transmite a seus
semelhantes.
Com isto está associada a aspiração à liberdade,... liberdade absoluta, formulada no seguinte axioma de
Croweyl: "Fazer o que tu queres - eis toda a lei". Isto quer dizer na prática que a liberdade do indivíduo não
termina onde começa a liberdade do vizinho.
157 Escola Mater Ecclesiae
A pretensa exaltação ou o endeusamento do homem cedo ou tarde deve chocar-se com a evidência das
limitações ou da finitude de todo ser humano. Tal choque é altamente amargo e frustrativo, podendo ter graves
conseqüências sobre a saúde física e psíquica da pessoa. O Satanismo é nutrido por forte tensão emocional e
poderosa atitude irracional, que se camuflam sob a capa de novas descobertas da razão e do saber do homem.
Assim um mal profundo, que mina e solapa o ser humano, se esconde sob aparências "atraentes": prazer sexual,
conquista do poder, procura de dinheiro e sucesso, narcisismo exacerbado... Os crimes perpetrados em grupos
satânicos dão testemunho da irracionalidade ou da loucura que move tais seitas.

Lição 4: Algumas Expressões do Satanismo


Em apêndice apresentamos duas expressões muito significativas do Satanismo: a Missa Negra e a música
rock (em algumas de suas letras).

4.1. A Missa Negra


A Missa Negra vem a ser uma paródia do rito da Missa católica, paródia inspirada pelo desejo de achincalhe
e sátira. O rito é presidido por um "celebrante", acompanhado de diácono e subdiácono. São utilizados as
alfaias e os instrumentos correspondentes: velas, o símbolo do bode dentro da estrela de cinco pontas, um cálice
cheio de vinho ou de licor, uma espada, um aspersório ou hissopo para aspergir água benta, um crucifixo de
cabeça para baixo e, se possível, uma hóstia autenticamente consagrada numa igreja católica. O altar da Missa
Negra é uma mulher desnuda. Os participantes vestem trajes pretos com capuzes. O rito segue
aproximadamente o curso da Missa Católica, com partes recitadas em latim, em francês ou em inglês. Em vez
do nome de Deus, é invocado o nome de Satanás, como também o de diversos demônios. O Pai nosso é recitado
com inversão do respectivo sentido (assim "Pai Nosso que estais no inferno..."). São proferidas blasfêmias
contra Jesus Cristo; a hóstia é profanada de diversas maneiras, utilizada em práticas sexuais e verberada com
ódio.
Eis mais algumas notícias extraídas do livro de Roland Villeneuve "L'Univers Diabolique" (Paris
1972,pp.264-370); apresentam os rituais dos séculos XVI/XVII, que fazem eco aos de séculos anteriores.
A Missa do Diabo, a partir do século XVI , é exatamente a contra-parte do Ofício católico. É a paródia do
que Jesus fez na sua última ceia. O que é abençoado, torna-se amaldiçoado; o que é branco, torna-se preto... Por
ocasião da elevação da hóstia e do cálice, os sacerdotes- magos exclamam: "Corvo preto! Corvo preto!" para
evocar o Maligno. E estes clamores são acompanhados por contorsões e saltos. O Demônio, dizem, voa no
momento da consagração em torno do cálice. Quando a assembléia vê essa borboleta, levanta-se e conjura:
"Belzebu! Belzebu!". Não há ato penitencial nem aleluia. Evitam-se os sinos e as sinetas, pois causam horrenda
dor ao Demônio...
Como o cálice, também a hóstia é preta e, mais, difícil de ser engolida; traz a figura do Demônio, que diz por
ocasião da consagração: "Isto é meu corpo". Ele levanta a hóstia acima de seus chifres; neste momento toda a
assembléia a adora. Cercando o altar em semicírculo, prostram-se por terra, O Demônio faz então um sermão e
intima-os a comungar, dando a cada qual um pedacinho da hóstia, a fim de que o possam engolir; entrega a
cada qual dois goles de um remédio infernal, e uma bebida de tão mau gosto e odor que, ao engolirem-na, suam
e, ao mesmo tempo, ficam gelados em seus corpos, em seus nervos e em suas medulas.
Era "bom costume " roubar o pão eucarístico nas capelas católicas afim de o profanar no culto satânico.
Satanás, dizem, divertia-se atirando as hóstias aos sapos. Estendia sua sanha aos presbíteros da Igreja, fazendo
que estes apresentassem as hóstias ao Maligno. Na Alemanha e na Áustria as moças virgens eram incitadas a
perfurar as hóstias com três punhaladas; uma certa Maria Renata Saenger percutia-as com alfinetes, em total
ódio a Deus.
Em 15/01/1632 o Parlamento de Dole condenou à morte o cidadão Nicola Nicolas , de Anjeux, porque em
1628 levara o SS. Sacramento do altar para um culto satânico, tendo-o misturado com excrementos humanos
por ordem do Diabo; as sagradas partículas desapareceram.
As profanações do SS. Sacramento eram freqüentes no fim da Idade Média e nos dois séculos seguintes: as
hóstias eram pisoteadas, conculcadas, transpassadas... ; podiam ser torradas no forno. Entre outros traços, ainda
se narra que o Diabo, por meio de seu representante, exortava os seus seguidores a praticar o estupro, o incesto
e a sodomia. Os presentes respondiam em uníssono e tão forte quanto possível: "Mestre, ajuda-nos!" O Maligno
então apressava-se por aspergi-los com a sua urina como se fosse água benta. O oficiante revestia uma capa
preta sem cruz; tomava em mãos o Livro das Blasfêmias, que servia de Cânon ou de Oração oficial e central da
Missa Negra; continha as mais abjetas blasfêmias contra a SS. Trindade, o SS. Sacramento do altar, os outros
sacramentos e ritos da Igreja Católica; estava redigido em 1íngua que o povo ignorava. O sinal da cruz era feito
obrigatoriamente com a mão esquerda.
158 Escola Mater Ecclesiae
Satã, por seu representante, ridicularizava os dogmas católicos e propunha uma vida nova aos seus fiéis,
prometia-lhes não menos do que a vida eterna. No momento do Ofertório, declarava: "Eu sou o verdadeiro
Deus; ao menos vocês me vêem, me sentem e me podem tocar. Ao passo que o Outro... é melhor não falar
dele". Os discursos de Satanás e sua presença eram tão "reais" e persuasivos que os magos o adoravam no
sentido próprio da palavra. Uma certa Maria de la Ralde, de 28 anos de idade, afirmava que ela gostava de ir a
um culto satânico tanto quanto a uma festa de núpcias; julgava que era muito mais satisfatório e gratificante do
que ira uma Missa convencional, pois o Diabo dava a crer que ele era o verdadeiro Deus, e a alegria dos
feiticeiros, naquela ocasião, era o começo de uma glória muito maior.
Era normal recitar ladainhas e orações em honra do Demônio; eram acompanhadas de blasfêmias e
expressões de demência. São estes alguns traços típicos dos cultos satânicos , que culminam na chamada
"Missa Negra", paródia sacrílega da S. Missa. A existência desse ritual em nossos dias significa a capitulação
da razão e da sanidade mental diante da imaginação e dos impulsos desregrados da carne. Também a mística
precisa dos subsídios da razão. O Demônio existe, mas não pode ser concebido como um deus poderoso, ao
qual se deva prestar culto.

4.2. A Música Rock


Entre os temas do "Rock" cada vez mais agressivo, está o Satanismo, a partir de 1970, com alusões
explícitas a Satã, ao demônio, ao inferno, como se depreende dos exemplos seguintes:
Grupo Iron Maiden: disco "O número da Besta" ("Tochas acesas e cantos sagrados... o ritual começou, a
obra de Satã está feita").
Grupo Black Sabath: disco "Nascido de novo" ("Olha este Príncipe do Mal combatendo por tua alma...").
Disco "Céu e Inferno".
Grupo HC-DC: Canções " O inferno não é um Lugar Ruim para aí estarmos". "Autopista para o Inferno".
Grupo Ozzi Osborne: "Ladrando para a Lua" ("Agora ressurgi. Fazem falta Milagres para salvar aqueles
que a Besta procura... Encontraram o seu céu vomitando a partir da boca do inferno"). Discos "Falando do
Diabo", "Diário de um Homem Mau".
Grupo Twisted Sister: Canções " Arder no Inferno", "A Besta".
Grupo Venon: disco "Benvindo, Inferno" e canções como "Mil Dias em Sodoma". "Em Aliança com Satã",
"Filhos de Satã", "Vive como um Anjo, Morre como um Demônio".
Grupo Kiss: disco "Criaturas da Noite", e canções como "Tock and Roll, inferno". Às vezes, a mensagem
satânica só se percebe quando se gira ao inverso o disco. Assim, por exemplo, em Congratulations de Pink
Floyd, se ouve: "Precisamente acabas de descobrir a mensagem secreta do Diabo, comunica-te com o Velho".
Em Fire on High de ELO se ouve: "Volta, Satã, volta, volta, volta!" Em Snow-Blind de Stix: "Mostra-te, Satã,
manifesta-te em nossas vozes". Em Stairway to Heaven de Led Zeppelin: "Quero ir ao Reino, quero ir ao
Inferno, ao Oeste da Terra plana, canto porque vivo com Satã".
Julgam os peritos no assunto que os roqueiros dão muito mais importância ao ritmo e ao aparato sonoro e
colorido do "Rock" do que à letra das respectivas canções; a veemência das letras, mesmo daquelas que
invocam Satã, não têm valor para os roqueiros senão na medida em que constituem protesto contra a ordem
estabelecida, e ruptura com as gerações anteriores, tidas como fracassadas. Uma pesquisa feita entre estudantes
da Califórnia deu a ver que poucos davam atenção ao significado da letra de suas canções; 37% eram incapazes
de identificar o tema (sexo, violência, droga, Satã...) de suas canções preferidas.

PERGUNTAS
1) Que é o Satanismo?
2) Como é concebido Satanás nas seitas satânicas?
3) Como se manifesta o curto a Satanás?
4) Quem é que o homem moderno procura no culto a Satanás?
5) Quais as causas que favorecem o Satanismo?
6) Que resposta você daria ao Satanismo?

Escreva suas respostas em folhas à pane, e mande-as, com o nome e o endereço do (a) Cursista, para:
CURSOS POR CORRESPONDÊNCIA, Caixa Postal 1362, 20001-970 Rio de Janeiro (RJ).
Caro (a) Cursista, aqui termina o nosso Curso. Que o Criador, mediante seus Anjos, nos faça ver este mundo
como reflexo da sua sabedoria, nos preserve de todo pecado e oriente nossos passos para chegarmos à visão
face-a-face da Beleza Infinita!
159 Escola Mater Ecclesiae
OS MESTRES E OS ANJOS
1.SÃO JOÃO DA CRUZ
São João da Cruz, o grande doutor místico da Igreja, atribui aos anjos uma ação constante e fiel na
santificação das almas. Eis algumas frases do santo:
"Olha que teu Anjo da Guarda nem sempre move o apetite para agir embora sempre ilumine a razão.
Portanto, não esperes pelo gosto para praticar a virtude: que te baste a razão e o entendimento " (D 35).
"Quando o apetite está posto em outra coisa, não dá lugar a que o anjo o mova" (D 36). "Todas as obras e
inspirações vindas dos anjos, diz a Sagrada Escritura, com verdade e propriedade, vêm deles e de Deus ao
mesmo tempo. O Senhor efetivamente, costuma comunicar suas vontades aos anjos, e eles as vão, por sua vez,
comunicando uns aos outros sem dilação alguma, como um raio de sol que atravessasse vários vidros colocados
na mesma linha. O raio, embora atravesse todos, todavia, atravessa-os um por um, e cada vidro transmite luz ao
outro, modificada na proporção em que a recebe, com maior ou menor esplendor e força, quanto mais ou menos
cada vidro está perto do sol" (2N 12, 3).

2.SÃO JOÃO BOSCO


Grande devoto dos anjos, São João Bosco confia as pessoas, sobretudo os jovens, aos seus Anjos de Guarda.
Deles são as seguintes palavras, belíssimo testemunho da dignidade do homem, confiado por Deus a um Anjo
de Guarda:
"Um argumento que mostra a excelência do homem é o fato de ele ter um Anjo da Guarda.
Uma vez criado o céu, a terra e todas as coisas neles contidas, Deus deixou que as coisas seguissem o curso
das leis naturais de acordo com a ordem da cotidiana Providência que as preserva.
Para o homem, contudo, não foi assim. Além de enriquecê-lo com nobres qualidades, tanto espirituais como
corporais, tornou-o responsável de todas as outras criaturas e quis que um espírito celeste cuidasse dele.
Desta maneira, desde o primeiro instante em que o homem aparece no mundo, um Anjo o assiste noite e dia.
Acompanha-o nas viagens, nas estradas, defende-o dos perigos da alma e do corpo, e lhe diz o que é bom, para
que o siga.
Grande dignidade do homem, grande bondade de Deus, dever permanente ao qual haveremos de
corresponder!"
(Ver G. Galache, obra citada, pp. 38 e 42).
160 Escola Mater Ecclesiae
SUMÁRIO

CURSO DE ANTROPOLOGIA TEOLÓGICA (CRIAÇÃO E PECADO)....................................................1


Lição 1: Gn 1,1-2,4a . Gênero Literário........................................................................................................2
Lição 2: Os Ensinamentos do Hexaémeron....................................................................................................3
PERGUNTAS..................................................................................................................................................3
MÓDULO 2: GÊNESIS 2,1.7 (O MUNDO E O PRIMEIRO HOMEM)..........................................................3
Lição 1: A Chave da Interpretação................................................................................................................3
Lição 2: A Origem do Mundo.........................................................................................................................3
Lição 3: A Origem do Homem........................................................................................................................3
PERGUNTAS..................................................................................................................................................3
MÓDULO 3: GÊNESIS 2,18-24 (A PRIMEIRA MULHER)............................................................................3
Lição 1: Uma Análise Literária de Gn 2,18-14..............................................................................................3
Lição 2: A Mensagem Teológica....................................................................................................................3
PERGUNTAS..................................................................................................................................................3
MÓDULO 4: LIVROS PROFÉTICOS E LIVROS SAPIENCIAIS..................................................................3
Lição 1: Livros Proféticos..............................................................................................................................3
1.2. Jeremias...................................................................................................................................................3
1.3. Amos.........................................................................................................................................................3
Lição 2: Os Livros Sapienciais.......................................................................................................................3
2.2. O Livro dos Provérbios............................................................................................................................3
2.3. O Livro da Sabedoria...............................................................................................................................3
Lição 3: O 2o Livro dos Macabeus.................................................................................................................3
PERGUNTAS..................................................................................................................................................3
MÓDULO 5: OS TEXTOS PAULINOS E JOANEUS......................................................................................3
Lição 1: Escritos Paulinos..............................................................................................................................3
Lição 2: O Evangelho segundo S. João..........................................................................................................3
PERGUNTAS..................................................................................................................................................3
A TRADIÇÃO CRISTÃ....................................................................................................................................3
MÓDULO 6: OS SÉCULOS II-IV.....................................................................................................................3
Lição 1: Pano de Fundo - o Gnosticismo.......................................................................................................3
Lição 2: A Recapitulação segundo S. Ireneu..................................................................................................3
Lição 3: O Milenarismo de Santo Ireneu.......................................................................................................3
Lição 4: Observação final..............................................................................................................................3
PERGUNTAS..................................................................................................................................................3
MÓDULO 7: DO SÉCULO V AO SÉCULO IX...............................................................................................3
LIÇÃO 1: O Pensamento de S. Agostinho......................................................................................................3
1.4. As Razões Seminais..................................................................................................................................3
Lição 2: João Escoto Eriúgena.......................................................................................................................3
PERGUNTAS..................................................................................................................................................3
MÓDULO 8: IDADE MÉDIA E IDADE MODERNA......................................................................................3
Lição 1: Averróis - a Eternidade do Mundo...................................................................................................3
Lição 2: Copérnico e Galileu - heliocentrismo..............................................................................................3
Lição 3: Leibniz - o melhor mundo possível...................................................................................................3
PERGUNTAS..................................................................................................................................................3
MÓDULO 9: TEILHARD DE CHARDIN - O FENÓMENO HU'ÍÍÉ...............................................................3
Lição 1: Teilhard - biografia e pensamento...................................................................................................3
Lição 2: Que dizer?........................................................................................................................................3
2.1. Ambigüidade............................................................................................................................................3
2.2. Otimismo Exagerado...............................................................................................................................3
PERGUNTAS..................................................................................................................................................3
MÓDULO 10: DECLARAÇÕES DA IGREJA..................................................................................................3
Lição 1: Os Símbolos de Fé............................................................................................................................3
Lição 2: As Declarações Conciliares.............................................................................................................3
Lição 3: A Encíclica "Humani Generis".........................................................................................................3
161 Escola Mater Ecclesiae
PERGUNTAS..................................................................................................................................................3
MÓDULO 11: CRIAÇÃO - NOÇÃO E CORRELATOS..................................................................................3
Lição 1: Que é criação?.................................................................................................................................3
Lição 2: Conservação das criaturas...............................................................................................................3
Lição 3: Eternidade do Mundo?.....................................................................................................................3
Lição 4: Ulteriores Questões..........................................................................................................................3
PERGUNTAS..................................................................................................................................................3
MÓDULO 12: CRIAÇÃO - REFLEXÕES........................................................................................................3
Lição 1: A Criatura diante do Criador...........................................................................................................3
Lição 3: O por quê e o para quê da criação...................................................................................................3
Lição 4: Atividade do Criador e atividade das criaturas...............................................................................3
Lição 5: A SS. Trindade e a Criação..............................................................................................................3
PERGUNTAS..................................................................................................................................................3
MÓDULO 13: “A CRIAÇÃO NÃO É UM MITO.............................................................................................3
MÓDULO 14: EVOLUÇÃO - SIM OU NÃO?..................................................................................................3
MÓDULO 15: ORIGEM DA VIDA...................................................................................................................3
MÓDULO 16: ORIGEM DO HOMEM E EVOLUÇÃO...................................................................................3
MÓDULO 17: MONOGENISMO OU POLIGENISMO?.................................................................................3
MÓDULO 18: CONCEITUAÇÃO DE RAÇA HUMANA...............................................................................3
MÓDULO 19: ORIGEM DAS RAÇAS HUMANAS........................................................................................3
MÓDULO 20: O HOMEM - IDENTIDADE E DESTINO................................................................................3
MÓDULO 21: O HOMEM NO TEMPO............................................................................................................3
MÓDULO 22: O HOMEM À LUZ DE JESUS CRISTO..................................................................................3
MÓDULO 23: DAS ORIGENS AO SÉCULO IV.............................................................................................3
MÓDULO 24: DO SÉCULO V AO SÉCULO XIV...........................................................................................3
MÓDULO 25: DECLARAÇÕES DA IGREJA..................................................................................................3
MÓDULO 26: QUEM É O HOMEM?...............................................................................................................3
MÓDULO 27: A ALMA HUMANA - ESPIRITUALIDADE (I)......................................................................3
MÓDULO 28: A ALMA HUMANA - ESPIRITUALIDADE (II).....................................................................3
MÓDULO 29: A ALMA HUMANA – IMORTALIDADE...............................................................................3
MÓDULO 30: O PROBLEMA DO MAL..........................................................................................................3
MÓDULO 31: A MORTE (I) - CONCEITO CRISTÃO....................................................................................3
MÓDULO 32: A MORTE (II) - NOÇÕES COMPLEMENTARES..................................................................3
MÓDULO 33: O TRABALHO...........................................................................................................................3
MÓDULO 34: TEOLOGIA FEMINISTA..........................................................................................................3
MÓDULO 35: A DIGNIDADE DA MULHER.................................................................................................3
MÓDULO 36: O PAPA ÀS MULHERES (I)....................................................................................................3
MÓDULO 37: O PAPA ÀS MULHERES (II)...................................................................................................3
MÓDULO 38: A ALMA DAS MULHERES.....................................................................................................3
MÓDULO 39: O PARAÍSO TERRESTRE........................................................................................................3
MÓDULO 40: O PECADO DOS PRIMEIROS PAIS.......................................................................................3
MÓDULO 41: ATRADIÇÃOEO MAGISTÉRIO DA IGREJA........................................................................3
MÓDULO 42: A DOUTRINA DO CATECISMO.............................................................................................3
MÓDULO 43: PECADO ORIGINAL E MENSAGEM CRISTÃ.....................................................................3
MÓDULO 44: OBJEÇÕES À DOUTRINA CLÁSSICA..................................................................................3
MÓDULO 45: O TESTEMUNHO DOS POVOS PRIMITIVOS......................................................................3
MÓDULO 46: A EXISTÊNCIA DOS ANJOS..................................................................................................3
MÓDULO 47: EXISTÊNCIA E AÇÃO DOS ANJOS......................................................................................3
MÓDULO 48: QUEM SÃO OS ANJOS?..........................................................................................................3
MÓDULO 49: OS ANJOS MAUS (I)................................................................................................................3
MÓDULO 50: OS ANJOS MAUS (II )..............................................................................................................3
MÓDULO 51: O SATANISMO.........................................................................................................................3

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