Teologia Fundamental

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TEOLOGIA FUNDAMENTAL

Apresentação
Caro (a) Cursista,
Você recebe agora um Curso de Teologia Fundamental.
Que é Teologia Fundamental?
Como diz o nome, é aquela disciplina que estuda os fundamentos da Teologia.
- A Teologia, porém, se constrói sobre a fé. A fé, por sua vez, tem que estar fundamentada em
critérios objetivos, que dêem credibilidade às proposições da fé. Sim; o cristão deve saber por que
crê..., e porque crê em Jesus Cristo e não neste ou naquele mestre. Essa credibilidade é obtida
mediante o emprego da razão. A fé precisa da razão, como lembrava o Papa João Paulo II na sua
encíclica "Fé e Razão".
Ora este Curso tenciona corresponder a tal necessidade, apresentando:
l ) o fenômeno religioso ou o fato religioso que acompanha o homem desde os seus primórdios;
2) as razões para crer em Deus;
3) as razões para crer em Jesus Cristo;
4) as razões para crer na Igreja Católica.
Com outras palavras: a Teologia propriamente dita, aprofundando as verdades da fé, constrói um
belo edifício de vários andares. Mas, se não há portas para entrar nesse edifício, a bela construção
fica sendo impenetrável. Pois bem; a Teologia Fundamental propõe as portas para que se entre no
edifício da Teologia propriamente dita. Verdade é que, por vezes, o teólogo recorre à razão para
ilustrar tal ou tal artigo de fé, mas o uso da razão, em tais casos, é janela de terceiro andar, e não
porta. Este Curso pretende ser uma ou algumas portas que podem ser abertas por qualquer pessoa que
aceite o trabalho de girar a chave na fechadura. Lembremo-nos de que, antes de crer, o Apóstolo
Tomé quis tocar em Jesus; e o Senhor lho permitiu. Em nossos dias, Cristo permite a quem o queira,
que o toque ou alcance pela razão antes de nele crer. É certo que muitos fiéis têm uma fé tranqüila e
não precisam de se dar conta das razões por que crêem. Mas, sem dúvida, muitas e muitas pessoas
sinceras, desejam saber por que hão de crer ou quais as credenciais dos artigos de fé. Embora o
cristão não veja o que crê, ele deve poder ver que deve crer; a fé não é um ato cego, mas, ao
contrário, um ato altamente inteligente. Para crer, o homem, longe de renunciar à razão, põe em
exercício a sua inteligência dotada de todo o acume que, lhe é peculiar.
Eis, caro (a) cursista, a proposta deste Curso. Esteja certo (a) de que lhe será de grande utilidade.
Persevere no estudo, e disponha de nós para tirar as suas dúvidas; desejamos ajuda-lo(a) a
caminhar... com a graça de Deus.
O seu
Pe. Estêvão Tavares Bettencourt O. S. B.

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TEOLOGIA FUNDAMENTAL
Parte I. O Fenômeno Religioso
1 . O FENÔMENO RELIGIOSO
MÓDULO 01: O FATO RELIGIOSO
O nosso estudo do fenômeno religioso começa pela verificação do fato religioso. Sobre tal base
serão tecidas as reflexões desta primeira parte do nosso Curso.
Quem percorre o panorama da história antiga e contemporânea, toma consciência de que a
religião é um traço comum aos povos e aos indivíduos até época recente, quando começa a se
difundir o ateísmo. - Examinemos os dados.

1.1. Na pré-história
Por pré-história entendemos o período em que existia o homem sem deixar documentos escritos
que permitam reconstituir a sucessão dos fatos ou história. Vai até 8.000 a.C. aproximadamente.
A religiosidade do homem pré-histórico se manifesta através de vestígios deixados por ele nos
lugares onde habitou; atestam principalmente a crença numa vida póstuma, que é uma das expressões
mais espontâneas do senso religioso.
No paleolítico inferior encontra-se o homem de Neanderthal, com sinais de ritos fúnebres e
ofertas de sacrifício. No paleolítico superior, o Fenerântropo parece ter praticado ritos de
sepultamento e sacrifícios propiciatórios. No período neolítico, encontram-se monumentos
megalíticos ou dolmens (o dolmen é uma pedra chata colocada sobre duas pedras verticais), sinais
religiosos que persistem entre os povos primitivos que ainda hoje vivem como na idade da pedra. Na
idade do bronze, as características religiosas são muito mais numerosas, incluindo geralmente o culto
ao Sol desde a Escandinávia até o Mediterrâneo.

1.2.As Religiões tradicionais


1 ) A religião da China compreende três ramos :
- o mais antigo professa um Deus do céu, outro da terra e outro dos antepassados. O Deus do céu
prescreve cinco mandamentos de amor e respeito, ouve as orações dos homens e é cultuado mediante
ritos primitivos. Confúcio (S51-479 a.C.) sistematizou essas crenças e ritos;
- o taoismo (tao = caminho) é uma visão panteísta do mundo e do homem. Considera Tao como o
Princípio Supremo e Eterno, que se manifesta pela potência vital dos seres inferiores e ao qual o
homem deve retornar mediante meditação e práticas ascéticas;
- o budismo chinês, derivado do indiano, enfatiza o culto dos mortos e propõe rigorosa ascese
mesclada de práticas de magia.
2) A religião do Japão é, antes do mais, o xintoísmo: o Sol, divindade feminina, seria o regente
dos céus e o chefe da família imperial. A noção de Ser Supremo não aparece muito clara, porque
envolvida em concepções panteístas. Pratica-se o culto da natureza e dos seres humanos, a começar
pelo Imperador, não excluídos os antepassados. Há ritos de oferendas e purificação. Posteriormente
entrou no Japão o budismo, que promete o nirvana ou a emancipação completa, que extingue o
próprio eu.
3) A antiga religião do Egito deifica o Sol, que assumindo nomes diversos, domina lugares e
monumentos.
4) Na Babilônia antiga, eram cultuados alguns deuses, designados pelo prefixo ilu (celeste), que
passou para as línguas semitas, especialmente para o hebraico (EI, Elohim) e para o árabe (Alá). Os
babilônios e assírios divinizavam os astros, iniciando assim a astrologia. Aceitaram deuses dos povos
vizinhos (Marduque, Baal...), donde resultou o politeísmo com uma divindade suprema, celebrada
por hinos de louvor.
5) Na Índia encontra-se o hinduísmo, que evoluiu no bramanismo. Os povos indo-europeus
adotaram a raiz div (resplandecente), que designa o Ser Supremo, Fonte de luz, Céu e Pai, chamado
na Índia Dyaus, na Grécia Zeus, na língua latina Deus, entre os germanos Ziu, na Lituânia Diewas...
O bramanismo se fundamenta nos textos sagrados dos Vedas, quatro coleções de hinos, que
descrevem os céus e os seus senhores (Idra, Varuna, Mitrava-runau); os sacerdotes brâmanes
comentaram esses hinos, produzindo os Upanishad, que professam o panteísmo: o eu individual.
(atman) seria derivado da alma do mundo (brahma), Princípio do qual terá emanado tudo o que
existe. O homem, nesse contexto, se salva não por obras e sacrifícios rituais, mas pela meditação, que
o livra de toda ilusão (maya) ou de todas as imagens ilusórias que este mundo lhe transmite.
O budismo se deriva do bramanismo, insistindo fortemente sobre a prática da meditação, que
propicia o desapego e a libertação; a história é regida pela dura lei do Kanma, segundo a qual os
acontecimentos presentes são efeitos mais ou menos mecânicos de acontecimentos passados.
6) A religião da Pérsia, a princípio, era ligada à natureza. Foi reformada por Zaratustra, que,
segundo o Avesta (livro sagrado), rege os ritos de adoração e sacrifício oferecidos ao grande sábio
Senhor Ahura-Mazdá, que terá criado tudo com a sua palavra.
7)Na Grécia, a mitologia considerava Zeus como “o pai dos deuses e dos homens”, impotente
para dominar o destino, embora, com suas leis físicas e morais, mantenha o equilíbrio do cosmos.
Platão e Aristóteles, cultivando a metafísica, depuraram o conceito de Deus.
8) Roma conservou a religiosidade dos etruscos, povo que acreditava no deus Júpiter (=Zeus),
dominador de todas as forças da natureza. Posteriormente os romanos foram criando o seu Panteon,
no qual tinham lugar os deuses de todos os povos conquistados. O culto do Imperador foi-se
introduzindo e intensificando aos poucos.
9) Na Arábia, desde tempos remotos havia o culto de dividades animísticas: a natureza seria
movida por seres superiores, responsáveis pelas fontes, pelos rios, pelos ventos. Foi predominando o
conceito de Alá, Deus por excelência, que Maomé no século VII d.C. assumiu como Revelador do
Corão e da religião muçulmana: Alá seria o Juiz Supremo, que retribui a cada ser humano segundo as
suas obras; o anjo Gabriel terá sido o mediador entre Alá e Maomé, inspirando os princípios da
guerra santa segundo os quais quem morre em guerra pela causa religiosa está salvo no paraíso
póstumo. Abraão, Moisés e Jesus terão sido os profetas que prepararam a revelação definitiva feita a
Maomé.
10) O povo israelita professa a crença num único Deus, que começou a revelar-se a Abraão e aos
Patriarcas; sucedeu-lhe Moisés, portador da Lei (Torá). O fenômeno religioso judaico é um portento
para os historiadores, pois admite o monoteísmo estrito a partir do século XIX a.C. num mundo
politeísta; esse monoteísmo conservou-se incólume no povo de Israel apesar das tendências do
próprio povo a abraçar os deuses dos povos vizinhos. A fé de Israel estava orientada para o messias
prometido, que veio na plenitude dos tempos: Jesus Cristo consumou as promessas feitas aos
Patriarcas e reis de Israel e deu origem ao Cristianismo, bojo de experiências religiosas profundas e
marcantes.
Em conclusão, pode-se dizer que o fenômeno religioso é algo de tipicamente humano. Consiste
em reconhecer um ser Supremo (que pode ter sua corte de deuses inferiores). Desse Ser o homem
sente que depende, de modo que a oração e o culto à divindade vêm a ser uma das expressões mais
características do fato religioso. É o senso religioso que norteia a vida humana e dá vigor ao homem
para enfrentar a luta de cada dia.
No Módulo 6 deste Curso será considerada a hipótese de que houve povos primitivos sem
religião. No próximo Módulo procuraremos definir mais precisamente o que é Religião e como se
caracteriza.

PERGUNTAS
Após fere reler os dados deste Módulo, queira tecer algumas considerações que lhe venham à
mente.

MÓDULO 02: RELIGIÃO-NOÇÃO

Lição1: Etimologia e Conceito


1.1. Etimologia
A palavra religião vem do latim religio, vocábulo cuja etimologia é incerta, pois suscetível de três
interpretações:
- religião < religio < relegere, verbo que significa "considerar, tratar com diligência", segundo
Cícero, que escreve:
"... qui omnia quae ad cultum deorum pertinerent, diligenter retractarent et quasi relegerent, sunt
dicti religiosi, ex relegendo, ut ex eligendo eligentes, tamquam ex diligendo diligentes" (De Natura
Deorum II 28).
Religião seria considerar atentamente tudo o que diz respeito a Deus.
- religião < religio < religare = religar, segundo o cristão Latâncio († 317), que escreve:
"Hoc vinculo pietatis obstricti Deo et relegati sumus, unde ipsa religio nomen accepit, non, ut
Cicero interpretatus est, a relegendo" (Divinae Institutiones IV 28).
Religião seria a ligação ou a vinculação do homem a Deus.
S. Agostinho († 430) hesitou entre uma e outra etimologia; ver Retractationes I 13, e De Civitate
Dei X 3.
- religião < religio < reelegem = escolher Deus de novo (após o pecado). Tal interpretação goza de
pouca probabilidade. A segunda ficou sendo comum na Teologia Católica.
Pergunta-se agora: dentro do vasto panorama de crenças e correntes religiosas da humanidade,
quais seriam os elementos constitutivos e necessários da religião propriamente dita?
1.2. Elementos constitutivos
Muito se tem escrito a respeito dos elementos que necessariamente devem integrar o conceito de
religião. Em síntese, pode-se dizer que são três: um Credo, um culto que exprima a dependência do
homem frente a Deus, uma conduta moral correspondente.
Examinemos cada qual de per si.

1.2.1. Credo
A religião, sendo a ligação do homem com Deus, professa uma como visão ou uma visão global
de Deus, do mundo e do homem. A religião é abrangente; ela projeta um olhar sobre Deus e tudo o
que existe, avaliando cada realidade à luz da Divindade. O Credo pode assumir três modalidades: o
politeísmo, o panteísmo e o monoteísmo.
l ) O politeísmo, do grego polýs (muito) e theós (Deus). É a religião que professa a existência de
muitos deuses, sendo endeusados os elementos dos quais o homem mais sente a dependência (o sol, a
mãe-terra, o fogo, as pedras, os rios, os astros em geral, as árvores...). Pode tomar a forma de
mitologia, que admite uma divindade superior e outras subordinadas. Pode também aparecer como
totemismo: haverá um lotem, animal sagrado ou planta sagrada, do qual uma família ou uma tribo
seria participante. Assume também a modalidade do animismo, que atribui uma alma ou um
princípio vital a tudo o que se move na natureza, à semelhança do que se dá no homem. O fetichismo
é outra forma de politeísmo: o fetiche seria um objeto portador de poder oculto ou misterioso, objeto
utilizado como talismã (protetor contra inimigos ocultos) ou amuleto ou bentinho dotado de energia
profilática e imunizante. Mais: a magia pode ser classificada sob o título de politeísmo, na medida
em que é um conjunto de práticas tidas como eficazes para obter efeitos maravilhosos (bons ou
maus), da parte dos deuses, práticas cujo segredo misterioso é do conhecimento exclusivo do mago.
2) O panteísmo, do grego pan (todo) e theós (Deus), afirma que tudo (o mundo e o homem) é
Deus. Assume a forma emanatista: o Primeiro Ser se expandiria numa série de seres degradados, cuja
alma ou cuja realidade seria a do Ser Supremo. Pode também ser panteísmo espiritualista, que é
menos grosseiro e reduz toda a realidade (mesmo a material) ao espírito e à sua atividade.
O panteísmo espiritualista é sustancialista, segundo Baruch Spinoza, que admite uma só realidade
(divina) manifestada como extensão e como pensamento, ou seja, como matéria e como espírito.
Existe outrossim o panteísmo de Hegel que professa a idéia (divina) em constante vir-a-ser,... o
panteísmo de Fichte (o Eu absoluto em continua evolução), e o de Gentile (Ato Pensante em
progressão auto criativa). Assim concebido o Panteísmo também é dito monismo.
3) O monoteísmo, de mónos (um) e theós (Deus), professa um só Deus, o que é a única forma
correta de conceber a Divindade; tudo lhe é subordinado como criatura ao Criador. Existe nas três
grandes religiões abraãmicas:
- o judaísmo, cujo monoteísmo não se explica bem aos olhos do historiador como tal, pois tem
origem num povo pequeno, dependente dos grandes impérios politeístas do Egito e da Mesopotâmia,
e se transmite de geração em geração apesar das tendências politeístas de Israel;
- O Cristianismo, que é a consumação do judaísmo, pois é o cumprimento das promessas feitas a
Abraão, aos Patriarcas e aos reis. O Messias é filho de Abraão e filho de Davi e veio preencher as
expectativas do povo israelita;
- o islamismo (que significa submissão) é a fusão da primitiva religião dos beduínos da península
arábica com elementos do judaísmo e do Cristianismo. Professa estrito monoteísmo ou um só Deus
que se revelou a Abraão, a Moisés, a Jesus Cristo e, por último, a Maomé, prometendo o paraíso a
quem morra na "guerra santa" (guerra de conquista).

1.2.2. Culto Sagrado


A dependência do homem frente a Deus se exprime pela oração. Esta é uma atitude espontânea de
todo ser humano que, cedo ou tarde, reconhece a sua fragilidade física e moral. A oração é sempre
pessoal e íntima, mas, já que o ser humano é social, ela assume expressões coletivas, que são o culto
sagrado; este consta de sinais sensíveis, como são palavras, gestos, cantos, atitudes corporais, vestes,
uso de objetos..., que tomam o nome de "rito". O rito requer um âmbito adequado ou um templo, um
santuário... ; em muitos casos é dirigido por um sacerdote ou um ministro do culto.
O culto divino tem quatro momentos importantes:
1) adoração ou reconhecimento da soberania da Divindade, que por definição é o Ser Absoluto e
Perfeito;
2) agradecimento pelos benefícios recebidos, entre os quais os dons naturais ou os frutos da terra;
3) expiação ou pedido de perdão por faltas cometidas;
4) súplica ou impetração, decorrente da experiência de fragilidade e carência do ser humano.
Distinga-se da súplica a magia, que é precisamente o contrário; vem a ser a tentativa de manipular
a Divindade; depende não do favor de Deus, mas do poder de um homem tido como possuidor de
segredos maravilhosos. A magia visa a obter benefícios, afastar perigos, recorrendo a sons, fogo,
água, sal, óleo...
Dentre as autênticas formas de culto, destacam-se:
- os sacrifícios... Etimologicamente, sacrifício vem de sacrum facere, fazer ou tornar sagrado, ou
seja, tornar próprio da Divindade... Geralmente o homem se oferece à Divindade entregando-lhe algo
que simboliza a sua vida: gado ou frutos da terra. O sangue de vítimas derramado significa a vida do
oferente;
- os ritos ditos "de trânsito", mediante os quais o homem tenciona pedir êxito para momentos
decisivos de sua existência: nascimento, puberdade, casamento, morte... Geralmente a religião
celebra com rito especial esses momentos-chaves da vida.

1.2.3. Ética
O contato com a Divindade deve manifestar-se no comportamento do homem religioso frente a
Deus, aos homens e a si mesmo. Por conseguinte, a religião se exprime na Ética ou na Moral,
orientada pela escala de valores religiosa. Uma religião que não repercuta no comportamento do
homem, dignificando-o e aperfeiçoando-o, é moda ou até hipócrita. Se a Divindade é o Sumo Bem, o
autêntico cultor da Divindade não pode viver uma vida alheia ao Bem, mas, ao contrário, deve tender
a praticar o bem. A religião suscita a Ética, mas não se reduz à Ética, como pensa o filósofo alemão
Kant; segundo este, os preceitos da Ética fundamentam a religião; devem ser observados "como se
fossem mandamentos divinos", embora não o sejam; o dever ético seria um imperativo categórico,
autônomo, derivado da razão prática do homem.
Deve-se reconhecer que os ateus podem levar vida honesta e digna não fundamentada na religião
explicitamente professada; o ateu que não mata, não rouba, não calunia, honra o próximo, segue a lei
natural, que é a lei de Deus incutida no íntimo de todo ser humano.

Lição 2: Classificação dos sistemas religiosos


Registra-se, no decorrer da história da humanidade, grande variedade de correntes religiosas, de
tal modo que é difícil estabelecer uma classificação das mesmas. Como quer que seja, podem-se
distinguir duas grandes categorias religiosas:
1) a religião natural, que brota espontaneamente do íntimo do homem e se volta para um Ser
Superior, concebido tal como a razão e o bom senso o podem conceber.
2) a religião revelada, que supõe uma revelação ou manifestação da Divindade, codificada num
Livro sagrado. Compreende as ditas "religiões do livro": o judaísmo, o Cristianismo, o islamismo. As
duas primeiras seguem a Bíblia Sagrada lo Antigo Testamento, para os judeus, o Antigo e o Novo
Testamento, para os cristãos); o islamismo adota o Corão, que terá sido revelado a Maomé por Deus
mediante o anjo Gabriel. Além destas três religiões abraãmicas, há quem cite, como religião
revelada, o Zoroastrismo, cujo código sagrado - o Avesta - terá sido revelado a Zaratustra pelo Sábio
Senhor Ahura-Mazdá.
Já que as religiões reveladas não professam as mesmas proposições, chegando mesmo a se
contradizer entre si, compreende-se que não são todas autenticamente reveladas por Deus. O
Cristianismo, a bom título, reivindica para si a qualidade de "única religião revelada", revelada
paulatinamente seguindo sábia pedagogia desde os tempos do Patriarca Abraão (século XIX a.C.) até
Jesus Cristo. Ver a propósito os Módulos 33-36 deste curso.
O fato de haver elementos comuns às diversas correntes religiosas não significa empréstimo ou
plágio, mas sim expressões do senso religioso natural persistentes dentro dos moldes da fé revelada.
É de notar ainda que certos sistemas religiosos têm seu livro sagrado, sem que o considerem
revelado por Deus. Tal é o caso dos Kojiki, Nihongi, Engishiki do Xintoísmo japonês;... dos cinco
King de Confúcio, da China;... do Tao-te-king de Lao-tse ou do Taoismo;... do Tripitaka do
Budismo.
Lição 3: A experiência de grandes vultos
O que acaba de ser dito sobre Religião em termos especulativos, é vivamente ilustrado pela
experiência de pessoas do nosso tempo que fizeram a experiência do ateísmo e foram profundamente
tocadas pela necessidade de uma explicação mais cabal para a sua existência, sua luta, seu porvir... -
Seguem-se, pois, breves quadros que retratam a conversão imprevista de personalidades marcantes
do século XX.

3.1. Alexis Carrel (1873-1944)


Foi cirurgião francês, Prêmio Nobel de Medicina (1912) por ter desenvolvido uma técnica de
sutura dos vasos sangüíneos, abrindo caminho para o transplante de órgãos. Impregnado de
materialismo positivista, perdeu a fé, mas não se deu por satisfeito. Numa viagem a Lourdes, pôde
comprovar com todo o rigor a cura milagrosa de um câncer. Começou então um longo e acidentado
processo de procura da verdade. Escreveu contra o materialismo e contra a religiosidade acomodada,
mas nem por isso chegou à fé plena. O seu drama íntimo só encontrou desfecho durante sua última
enfermidade, quando se entregou a Deus como um menino e recebeu os sacramentos, animado pelo
heroísmo de uma jovem órfã; declarou então: "A minha salvação está ligada ao fato de que uma
pobre ignorante me dê a mão e me guie... Sim, quando se trata de morrer não como um cão, mas de
acabar os dias com nobreza, é somente junto aos humildes adoradores de Deus que os filósofos hão
de receber lições de lógica".

3.2. Eva Lavallière (1860-1929)


Era atriz de vida desregrada, que desempenhava papeis de mulher feliz. Dentro de si, porém,
carregava uma tragédia, que a levou ao desespero e às portas do suicídio. Tendo caído enferma,
apelou para o espiritismo, que não lhe satisfez. Pôs-se à procura de Deus no Catolicismo e
perguntava a uma amiga: "Julgas que Deus me receberá após uma vida tão devassa?". As leituras e
conversas foram-na ajudando a clarear a mente até o momento em que ela escreveu: "Muito duro
para mim é escrever esta carta, e mais duro ainda é enviá-la; nela está registrada minha morte ao
teatro. Nunca mais representarei no palco!". Tendo recuperado a saúde e fortalecida por profunda
experiência de Deus, pôs-se a servir ao próximo.

3.3. Tatiana Goricheva (1947...)


Nasceu em Leningrado em 1947. Estudou Filosofia e Eletrônica. Declarou: "Nasci num país em
que os valores da cultura, da religião e da moral foram arrancados pela raiz de maneira sistemática e
bem sucedida... Eu odiava tudo e me comprazia na solidão". Entusiasmou-se pelos filósofos
ocidentais, especialmente Niezche e os existencialistas ateus (Sartre, Camus...); assim chegou "ao
desespero onde começa a té". Aos 26 anos de idade, empreendeu a luta contra a mentira:
"Cansada e desiludida, eu praticava meus exercícios de yoga e repetia os mantras. Até aquela
época eu nunca tinha proferido uma oração. Mas o livro de Yoga apresentava como exercício uma
oração cristã, ou seja, o Pai-Nosso. Comecei a repeti-la mentalmente como um mantra de maneira
inexpressiva e automática. Eu a pronunciei seis vezes; de repente, porém, senti-me transtornada por
completo. Compreendi - não com a fria inteligência apenas, mas com todo o meu ser - que Ele existe.
Ele, o Deus vivo e pessoal, que ama a mim e a todas as criaturas. A velha criatura havia morrido.
Não somente abandonei meus valores e meus ideais anteriores, mas também meus hábitos de vida.
Finalmente meu coração se abriu. Comecei a querer bem às pessoas... fiquei impaciente por servir a
Deus e aos homens. Que alegria e que luz esplendorosa brotaram em meu coração!"
Tatiana tomou consciência de que fazia parte de uma Igreja perseguida, e exclamou: "Eu também
pertenço a esse povo!" Fez sua primeira confissão, que a fortaleceu interiormente, levando-a ao
estudo da religião em seminários integrados por intelectuais. Após diversos interrogatórios e
encarceramentos, em 1980 foi expulsa da Rússia Soviética e passou a residir em Paris.

3.4.Tomas Merfon (1915-1968)


Foi educado sem religião e em ódio ao Catolicismo. A guerra e a doença de entes queridos o
abalaram. Pôs-se a estudar filósofos católicos, mas sem se entusiasmar:
"Coisa estranha! Eu assimilava tudo, mas encontrava-me vazio de tudo; devorando prazeres e
alegrias, eu só sentia angústia, miséria e temor. Achando-me nessa extrema miséria e humilhação, fui
vítima de uma aventura sentimental, na qual experimentei os dissabores que havia experimentado em
outras muitas nos últimos anos. Como justo castigo, à semelhança de um cãozinho, eu mendigava um
pouco de carícias e demonstrações de afeto. Isto significava a morte do grande homem, do herói que
eu havia sonhado ser. A minha derrota foi a ocasião da minha salvação ".
Após dolorosas tentativas de chegará verdade, leu escritos de Newman, e sentiu-se fortemente
impelido: "Que esperas? Que fazes aqui? Sabes o que tens de fazer, porque não o fazes?"
Foi batizado. Mas era um convertido mais de inteligência do que de vontade. Resolveu finalmente
fazer-se monge no mosteiro trapista de Gethsêmani (U.S.A.), onde se tornou um homem de profunda
oração; deixou escritos de repercussão mundial, que despertaram o entusiasmo de muitos seguidores.

3.5. Ernesto Pschari (1883-1914)


Era neto de Ernesto Renan, autor racionalista de uma famosa "Vida de Jesus". Após fracassar no
amor duas vezes, tentou o suicídio. Fez-se militar e foi para a África, onde aprendeu a lição do
silêncio no deserto; aí começou a se voltar mais decididamente para Deus. Tornou-se catecúmeno e
foi batizado, após o que escreveu a notável obra "A viagem do Centurião", que é a história da sua
conversão.

3.6. Paul Claudel (1868-1955)


Famoso poeta francês, Claudel aos dezoito anos de idade aderia à incredulidade e à devassidão.
Ao terminar seus estudos no Liceu Louis-le-Grand, já havia lido os filósofos alemães ateus, admirava
Ernest Renan (sarcástico em relação ao Evangelho) e professava o culto da ciência como resposta aos
seus anseios naturais. Ele mesmo descreveu posteriormente o seu estado de alma:
"Evoquem-se esses tristes anos da década de 1880, a época do pleno desabrochar da literatura
naturalista. Nunca pareceu mais firme o domínio da matéria. Os grandes nomes nas artes, na ciência,
na literatura eram todos irreligiosos... Renan imperava. Foi ele quem presidiu à última distribuição de
prêmios do Liceu Louis-le-Grand, à qual eu assisti, e creio que fui coroado por suas mãos... Vivia
então na imoralidade e pouco a pouco caí em estado de desespero... Esquecera completamente a
religião; a seu respeito a minha ignorância era de selvagem" (ver J. Calvet, Le Renouveau
Catholique dans la Littérature Contemporaine, Paris 1927, p. 139).1
Aos vinte anos de idade, por ocasião do Natal, entrou na basílica de Notre-Dame em Paris e ouviu
o canto do Magnificat, que muito o impressionou, como ele mesmo relata:
“Foi então que se deu o acontecimento que ia mudar a minha vida. Num instante foi sacudido o
meu coração e passei a acreditar. Acreditei com forte adesão, com o bem-estar de todo o meu ser,
com perfeita convicção, com certeza isenta de qualquer dúvida: todos os livros, todos os arrazoados,
todos os percalços da minha vida agitada não conseguiram abalar a minha fé, nem mesmo tocá-la...
Quão felizes são aqueles que têm fé! Ó, se tudo isso fosse verdade! Mas é verdade! Deus existe! Está
aí! É alguém, um ser pessoal, tão pessoal como eu! Ele me ama, Ele me chama!... E eu estive diante
de Vós como um lutador que zombeteia. ... Vás me chamastes por meu nome. E, como alguém que
conhece, Vós me escolhestes dentro todos os meus companheiros”.
Apesar de tão explícitas declarações, Claudel ainda lutou dez anos contra Deus. Prendia-o o medo
dos companheiros ou o respeito humano, que por muito tempo lhe paralisou os passos e a última
decisão:
"Farei esta confissão? No íntimo, o sentimento mais forte que me impedia de declarar as minhas
convicções era o respeito humano. A idéia de anunciar a todos as minhas convicções e a conversão,
de dizer aos meus pais que não comeria carne às sextas-feiras, de me proclamar um desses católicos
tão ridicularizados, fazia-me suar frio" (Les Témoins du Renouveau Catholique, p. 68).

1
Conta-se que nesse discurso Renan teve uma inspiração e disse: "Quem sabe? Hoje estais aqui à rada de mim; há talvez entre vós algum que mais
tarde se levantará para dizer que foi ruinosa a minha influência a minha influência sobre a juventude". Claudel o disse.
Em seus embates íntimos, Claudel pensou em fazer-se monge beneditino, mas verificou que sua
vocação era outra. Passou por outra crise, que finalmente chegou a equilíbrio tranqüilo. Em suma,
teve uma conversão que durou a vida inteira, o que bem revela quanto a graça encontra resistência no
recôndito de muitas pessoas dilaceradas entre o Bem Infinito e os bens finitos.

3.7. Giovanni Papini (1881-1956)


Giovanni desde menino muito leu, procurando satisfazer à sua sede de saber. Em busca da
verdade, entregou-se à Filosofia, que o deixou descontente. Passou então para o pessimismo, o
materialismo, o pragmatismo, chegando a tomar-se ocultista e espírita. Era sempre movido pelo
desejo de ser grande e tornar os outros felizes. Entre as suas reflexões de tal época, lê-se a seguinte:
“Ser Deus! Empreendimento impossível, mas era a soberba meta almejada. Tal é o meu programa
e o de outros... Ainda não acreditava em Deus, Deus não existia para mim, e jamais tinha existido.
Eu queria criá-lo para o futuro e fazer de um homem pobre e miserável o Ser supremo, soberano,
muito rico e poderoso”.
Essa pretensão deixou-o frustrado e inspirou-lhe outras considerações.
"Peço, rogo humildemente de joelhos e com toda a pujança de minha alma um pouco de certeza,
uma só, uma pequena crença certa, um átomo de verdade. Mas por que ainda não me encontrei com
ela ?... Não posso continuar vivendo assim, vacilando entre a dúvida e a negação, sempre ansioso por
causa de um desejo que renasce todos os dias, e abatido pelo fracasso cada vez mais freqüente...
Quero uma certeza firme e dela preciso, ainda que seja uma só. Quero uma fé indestrutível, mesmo
que seja uma só. Quero uma verdade autêntica, por pequena e exígua que seja..., uma verdade que
me faça tocar o âmago mais íntimo do mundo, e me confira o derradeiro e mais firme apoio".
Pôs-se então a procurar mais a fundo nos Evangelhos: "Retornei aos Evangelhos para procurar
cristo; entrei nas igrejas para encontrar Deus".
Papini encontrou Deus finalmente, refletindo sobre os horrores da guerra mundial à luz do
Evangelho. Foi então que escreveu a sua célebre "História de Cristo". A firmeza da conversão de
Giovanni Papini transparece na seguinte declaração, que ele redigiu com o próprio sangue:
"Temos necessidade de Ti, de Ti, e de mais ninguém. Só Tu, que nos amas de verdade, podes
sentir por cada um de nós o que sofremos; só Tu podes conhecer a solicitude que cada um de nós
experimenta por si. Só Tu podes sentir plenamente quão imensa é a necessidade que temos de Ti
neste mundo e nesta hora ".

3.8. Adolfo Retté (1863-1930)


A. Retté foi anarquista, inimigo entranhado da Igreja, entregue aos prazeres do sexo e da bebida.
Certa vez, socialista que era, falou a um auditório de socialistas em Fontainebleau. O tema era o
materialismo de Haeckel e Büchner; Deus será "exorcizado" pelas conquistas da ciência e banido do
universo. Terminada a palestra, quatro pessoas aproximaram-se do orador e pediram-lhe explicações
mais minuciosas: dissesse como foi que o mundo começou, se por ninguém o universo foi criado. A.
Retté repugnava falar sobre o que ele ignorava, por conseguinte balbuciou e hesitou. Tal incidente
lhe pôs em foco o problema das origens, que a ciência por si só não resolve:
"Estava profundamente perturbado; sentia-me mal; tinha necessidade de refletir a sós com a
minha consciência".
Internou-se na floresta: "Mas já não apreciava o encanto da sombra e do silêncio. O coração
pesava-me no peito: tinha vontade de chorar; um remorso estranho e insólito parecia tumultuar
dentro de mim" (Du Diable à Dieu, Paris l907, p. 15)
Retté começou a duvidar do valor da vida. Caiu no desespero, que o levou a tentar o suicídio. Foi
buscar uma corda:
"Então senti-me como que partido em dois: a metade do meu ser queria o suicídio imediato. A
outra metade resistia e parecia estar pedindo socorro, enquanto em torno de mim eu sentia
desencadear-se uma tempestade de blasfêmias e palavrões... Ouvi uma voz celeste, que me gritava:
'Deus, Deus está ai!' Fulminado pela graça, caí de joelhos e entre soluços, murmurei: 'Eu te dou
graças, ó meu Deus, porte haveres voltado para mim!"'.
Após três anos de ansiedade, aos quarenta e três anos de idade, Adolfo Retté fez sua Primeira
Comunhão e tornou-se católico convicto, dedicado ao serviço dos pobres e ajudando muitos irmãos a
se levantar.

3.9. Charles de Foucauld (1858-1916)


Charles foi educado de acordo com seus caprichos infantis. Após a Primeira Comunhão, perdeu a
fé e entregou-se à licenciosidade. Fez-se militar no exército francês e foi servir na África. No seu
ritmo de idas e vindas foi seqüestrado. Começou então a repensar sua religião... Foi procurar um
sacerdote para pedir-lhe esclarecimentos e ouviu do padre as palavras: "Ajoelha-te e confessa-te!".
Charles o fez, e disse, mais tarde, ter sido inundado por luz e paz. Tornou-se monge trapista na Terra
Santa. Mas preferiu a vida eremítica, que ele passou a viver heroicamente no deserto do Saara,
dedicando-se aos muçulmanos mais pobres. Certa noite, quando rezava, foi assassinado. Seu
testemunho de vida e seus escritos suscitaram numerosos seguidores e seguidoras.

3.10. Léon Bloy (1846-1917)


Léon era filho de pai sarcástico, que zombava da religião (discípulo de Voltaire), e de mãe muito
religiosa católica. Recebeu educação contraditória, que nele suscitou lutas internas entre a verdadeira
crença religiosa (sugerida por sua mãe) e os preconceitos (incutidos por seu pai). Aos poucos estes
foram desmoronando, mas com grande sofrimento para Bloy, que ele descreve em sua obra A
Mulher Pobre. Acabou pedindo o Batismo, mas nem por isso conseguiu definir o seu ritmo de vida:
quis tornar-se monge beneditino, mas não foi possível, porque caía e recaía em seus vícios. Retirou-
se para um mosteiro cartuxo, a fim de lá escrever; mas sua consciência lhe dizia que suas palavras
não correspondiam ao seu tipo de vida. Um belo dia pareceu-lhe ouvir uma voz interior, que lhe
dizia: "Se fores dócil à graça, eu te anuncio com certeza alegrias tão profundas, tão intensas, tão
puras, tão luminosas que julgarás estar para morrer". Começou então uma vida nova, que com seus
escritos e conversas levou muitos irmãos a Deus.
Estes testemunhos repetem em termos vivências as palavras de S. Agostinho: "Senhor, Tu nos
fizeste para Ti, e inquieto é o nosso coração enquanto não repousa em Ti" (Confissões I 1).

PERGUNTAS
1) Qual a mais aceita etimologia da palavra "religião "?
2) Que é o panteísmo?
3) Que é animismo?... Totemismo?
4) Quais são as religiões do Livro?... de que Livro ?
5) Quais são os elementos integrantes do culto divino ?
6) Ética e Religião se identificam entre si?
7) Que é religião natural?... religião revelada ?

MÓDULO 03: A ORIGEM DA RELIGIÃO


Nos Módulos anteriores foram estudados o conceito de Religião e seus elementos integrantes.
Pergunta-se agora: qual seria a raiz de tal fenômeno? Implica nobreza de ânimo ou covardia, medo e
primitivismo da parte do ser humano? É o que examinaremos nos próximos Módulos, percorrendo
primeiramente algumas teorias modernas sobre a origem do fenômeno religioso, para depois
considerarmos elementos da História e da Etnologia, que nos permitirão formar um juízo sobre o
surto e o significado da Religião. À guisa de pano de fundo, este Módulo apresentará

Algumas opiniões modernas


Foi no século passado que os estudos de história das Religiões começaram a se desenvolver. Um
dos conceitos que então mais em voga se achavam, era o de evolução; seguindo, pois, a tendência
geral da época, os estudiosos foram aplicando ao fenômeno religioso a tese de que é algo de
contingente e relativo, sujeito a surto e declínio, como qualquer outra modalidade da civilização.
Como, por conseguinte, explicavam o aparecimento e a história das manifestações religiosas?
O fenômeno religioso, que envolve três agentes - Deus, o indivíduo e a sociedade -, poderia ser
explicado pela ação preponderante de cada um deles de per si. No século XIX, porém, o fator Deus,
por ultrapassar a órbita do sensível, não era considerado por muitos estudiosos, que o tinham na
conta de não-cientifico. Só lhes restava, pois, explicar a religião ou a partir do indivíduo e da sua
psicologia, ou a partir da sociedade e do seu poder criador. Ora justamente a explicação do primeiro
tipo é o chamado Animismo (cujo principal mentor é o inglês Burnett Tylor († 1917), ao passo, que
a do segundo tipo é o Totemismo (apregoado por Emílio Durkheim († 1917). Vejamos
sucessivamente cada uma destas duas teses.
a) O Animismo afirma que o homem no início da sua história era totalmente destituído de
Religião. Aos poucos, porém, observando certos fenômenos de psicologia (como o sono, o sonho, a
doença etc.), foi concebendo a ideia de possuir em si um princípio diferente do corpo, ou seja, a
alma. Em breve, atribuiu à alma sobrevivência após a morte do indivíduo; donde o culto dispensado
aos mortos.
Evoluindo ulteriormente, o homem passou a conceber todos os demais seres como compostos de
corpo e alma; conseqüentemente começou a crer que todos os fenômenos da natureza são regidos por
almas (animi) superiores ao homem. Daí se originou o culto da Natureza: água, bosques, animais,
trovão, fogo, astros se tornaram divindades reverentemente obsequiadas.
Devagar, isto é, à medida que o homem foi aprimorando seus conceitos filosóficos, esse
"animismo" se terá desembaraçado de suas formas grosseiras para finalmente dar lugar à mais pura
modalidade de Religião que é o monoteísmo ...
Enquanto a escola de Tylor assim raciocinava, Durkheim percorria processo inverso.
b) O Totemismo, como o Animismo, parte do pressuposto de que o homem é, por si mesmo,
arreligioso. Mas, ao passo que, segundo Tylor, o indivíduo projeta para fora de si as suas
imaginações, criando a Religião, na teoria de Durkheim a Religião vem a ser a criação da sociedade;
é esta que a incute ao indivíduo, o qual no caso se comporta passivamente, sendo iludido sem o
saber.
Com efeito, segundo Durkheim, a sociedade é para os indivíduos o que Deus é para os fiéis:
realidade transcendente, onipresente, benfazeja, à qual devemos tudo o que somos, podemos e
valemos. Essa realidade se terá imposto ao homem primeiramente soba forma de um símbolo
chamado totem2 - animal (salamandra, dragão...) ou, mais raramente, vegetal (lírio, rosa, alguma
planta medicinal ...) -, com o qual o indivíduo, membro de determinada tribo, se julga aparentado. O
totem é propriamente alguma força impessoal e anônima, participada por um grupo de seres afins; é
superior e, ao mesmo tempo, imanente a todos estes, à semelhança da sociedade. Desta forma se
originou o culto do totem (animal ou vegetal). Tal terá sido a forma primitiva da Religião, imposta
pela sociedade ao indivíduo; como se vê, é o culto da sociedade mesma (correspondente de certo
modo ao culto da Humanidade apregoado por Augusto Comte). Essa religiosidade primordial se terá
desenvolvido, segundo Durkheim, dando formas cada vez menos grosseiras, até chegar ao
monoteísmo.
As teses de Tylor e Durkheim foram cultivadas por outros estudiosos do século passado, os quais
lhes deram múltiplos matizes. Por exemplo, o inglês Lubbock, na sua obra The Origin of
Civilization and the primitive Condition of Man (1870), estabelecia a seguinte linha evolutiva:
Ausência originária de Religião
Fetichismo
(culto de objetos mais ou menos monstruosos
tidos como portadores de forças sobrenaturais)
Totemismo
Xamanismo3
(arte de dominar os poderes divinos)
Idolatria
2
Totem, totam, todaim, ndodem... O termo provem da língua dos Índios Odjibwa (Algonquins), do Canadá meridional; significa 'parentesco,
emblema de família" ou também “espírito tutelar”.
3
Shaman é palavra proveniente da língua tunguses (estirpe dos mongóis); significa “asceta” isto é, homem afeito à disciplina e ao domínio do espírito
sobre o corpo.
(culto de elementos artificiais divinizados)
Monoteísmo
As várias teorias congêneres às de Tylor e Durkheim constituíam a expressão de uma
mentalidade que penetrou profundamente os homens do século passado e de inícios do presente
século: a Religião, sob qualquer das suas modalidades, é expressão da ignorância de espíritos fracos,
que, não sabendo explicar os fenômenos da natureza, admitem a existência de forças superiores
invisíveis; contudo chegara para o gênero humano a hora de se libertar desse artifício covarde e de
tomar a atitude arreligiosa, a única condizente com a dignidade do homem.
Augusto Comte († 1857), na França, e Ludwig Feuerbach († 1872), na Alemanha, tornaram-se
famosos arautos dessa concepção. Em seu Cours de la Philosophie positive (Paris 1830-1843),
Comte proclamava a lei dos três estados: o gênero humano, que começara a sua história num estado
teológico ou fictício, passara pelo estado metafísico ou abstrato, para entrar, a partir de 1842, no
estado cientifico ou positivo, estado que representaria finalmente a perfeição da cultura.
Faz-se mister averiguar nos Módulos seguintes o valor que possam ter tais explicações do
fenômeno religioso.
PERGUNTAS
1) Que se entende por "animismo" segundo Tylor?
2) Que é Totemismo?
3) Que é xamanismo?
4) Que é fetichismo?

MÓDULO 04: A PRÉ-HISTÓRIA (I)


A questão da origem da Religião há de ser elucidada pela investigação concreta dos valores que
atestam a vivência do homem primitivo. A propósito é preciso investigar com precisão o que esses
dados de caráter rudimentar significam. Ora duas ciências se debruçam sobre os mesmos: a
Paleontologia (estudo de documentos antigos como são os escritos, armas, utensílios, sepulturas...) e
a Etnologia (estudo dos povos primitivos, que outrora existiam ou ainda hoje existem).
Neste Módulo, interessar-nos-á a Paleontologia na medida em que ela estuda a pré-história.
Antes de entrarmos no assunto, impõe-se uma observação.
A história sugere a seguinte reflexão:
O homem se preocupa com tudo que diz respeito à sua subsistência. Isto é bem compreensível; o
surpreendente é que no decorrer da história ele jamais se tenha contentado apenas com o que vê e
apalpa; tende a subir acima do meramente material, procurando entrar em relações com algo de
invisível e transcendente, mediante o que se chama "Religião". Esta ascensão, nenhum animal
irracional a faz, ao passo que o homem, desde as suas primeiras manifestações na terra, a tem feito. É
o que se evidencia através de rápido percurso de dados da Pré-história.

Lição 1: Pré-história - que é? Como viviam?


1.1 Que é?
Antes do mais, impõe-se breve explanação do que se entende por "pré-história".
"Pré-história" vem a ser a fase da existência do homem anterior aos primeiros documentos
escritos que possuímos; só a podemos conhecer através de detritos (ossos e utensílios) fossilizados
no seio da terra ou em cavernas. A conservação de tais detritos era naturalmente esporádica, sempre
dependente das circunstâncias do respectivo ambiente (ar, umidade, chuvas, invasões de animais e
homens, etc.); daí a Índole relativamente lacônica dos fósseis da pré-história. Em conseqüência,
torna-se difícil reconstituir com precisão os caracteres e o gênero de vida das populações pré-
históricas; muitos traços, principalmente os que se referem ao psíquico ou ao íntimo do homem das
cavernas, nos devem ficar para sempre ocultos.
Faz-se mister notar outrossim que, além de ser relativamente lacônica, a ciência da pré-história
não pode pretender atingir o limiar da existência do homem sobre a terra; nos fósseis, não se espera
encontrar algum sinal que caracterize o primeiro dentre os primeiros homens.
Ora o fato de que o primeiro homem nos é praticamente inatingível aumenta as dificuldades de se
saber exatamente como pensavam e viviam as mais antigas gerações humanas.
Como quer que seja, procuraremos rapidamente sondar o que, neste vasto setor de pesquisas, se
oferece ao estudioso, percorrendo as seguintes etapas:1) o quadro de vida do homem da pré-história;
2)suas manifestações religiosas; 3)considerações finais.

1.2. O quadro de vida dos mais antigos homens


A pré-história, abrangendo um período que vai aproximadamente do 600.000 ao ano 5.000 a.C., é
dividida em fases caracterizadas pelo tipo de cultura então vigente entre os homens.
Consequentemente distinguem-se:
a idade da pedra ou lítica, com suas subdivisões: a idade da pedra-bruta (paleolítica) e a da
pedra lascada ou polida (neolítica);
a idade do metal (cobre, bronze, ferro).
Tentemos reconstituir as circunstâncias da vida humana na época paleolítica mais antiga ou
inferior.
Os homens levavam então existência nômade, ou seja, habitualmente peregrina; agrupados em
pequenas hordes, a fim de assegurar ajuda e defesa mútuas; seguiam geralmente os cursos dos rios ou
das costas marítimas; as altas montanhas e as cordilheiras constituíam para eles barreiras
intransponíveis.
A alimentação era-lhes fornecida pela flora e a fauna do ambiente em que se achavam. Eram
caçadores primitivos ide grandes e pequenos mamíferos, aves, peixes, moluscos ...) e coletores de
frutas, folhas, raízes, bulbos, não sabendo cultivar industriosamente o solo nem domesticar os
animais; viam-se, por conseguinte, obrigados a emigrar desde que a natureza não lhes oferecesse
mais os necessários recursos de subsistência. Postos em marcha, os pequenos grupos passavam as
noites no local mesmo em que o pôr do sol os surpreendia, procurando o melhor abrigo que as matas
ou as cavernas rochosas lhes proporcionassem; em tais abrigos estabeleciam às vezes um
acampamento provisório que lhes servia para descanso mais demorado; ramos de árvores, fincados
no solo e entrelaçados uns nos outros forneciam proteção contra o vento, a chuva e outras
intempéries do clima; durante a noite, acendiam o fogo a fim de manter os animais selvagens à
distância.
Os destroços de cultura humana do paleolítico inferior foram encontrados com especial freqüência
em antigos terrenos lacustres ou fluviais, ou seja, em terraços de lama e areia; donde se depreende
que as hordes antigas se estabeleciam de preferência junto às águas ide lagos ou rios), possivelmente
aproveitando os meandros e promontórios, a fim de se beneficiar tanto do abrigo natural como da
facilidade da pesca e da frequência de animais de caça que iam beber em tais lugares; ademais era no
leito dos rios, principalmente nas sinuosidades respectivas, que os antigos homens podiam encontrar,
em maior abundância, pedras e cascalhos de tipos diversos para a sua indústria rudimentar; a seleção
perspicaz que os primitivos faziam entre as numerosas pedras que se lhes ofereciam (preferindo o
sílex e o quartzo) é prova de que percebiam as relações entre meios e fins, possuindo
conseqüentemente uma inteligência prática alertada. Quando se demoravam em cavernas, era
geralmente na abertura destas que os primitivos estabeleciam pousada, a fim de se beneficiar da luz
do dia, e evitar os males provenientes da umidade assim como do difícil escoamento da fumaça do
fogo.
A caça devia dirigir-se com particular afinco contra os animais ferozes (panteras, hienas, lobos...);
os homens da pré-história recorriam com freqüência às armadilhas. Estas eram cavadas à margem
dos roteiros mais percorridos pelos animais, junto às fontes e aos bebedouros e em outros lugares
estratégicos; recobria-as uma camada de folhagem, terra, esterco ... O animal desprevenido caia na
cova, ferindo-se muitas vezes mortalmente; debatia-se então para sair, mas geralmente em vão, de
modo que parava extenuado; a essa altura sobrevinha o caçador, que desferia as pedradas finais ou
sufocava a presa com densa fumaça, caso não a quisesse deixar morrer lentamente em conseqüência
das suas contusões ou da fome. Para apoderar-se dos animais que costumavam passar os dias em
profundas covas (como o urso e o leão das cavernas), era preciso não raro asfixiá-los em seus
próprios esconderijos mediante a fumaça de possantes fogueiras acesas à entrada dos esconderijos.
Nem eram poupados os animais de corrida muito veloz (veados e cavalos selvagens...); o homem
pré-histórico sabia acometê-los de surpresa, deixando-se ficar durante horas e horas prostrado por
terra à espreita dos mesmos; encontraram-se exemplares dos dardos e globos de pedra então
arremessados.
Quanto à colheita de frutas silvestres, folhas e raízes, era geralmente confiada às mulheres e
crianças.
O fogo se obtinha por fricção mútua de dois pedaços de madeira ou por meio de um pilão movido
à mão.
A cerâmica era ignorada pelo homem paleolítico. Vasilhas de barro, dada a sua fragilidade, teriam
sido de exígua utilidade para o nômade. Este, à guisa de recipientes, usava crânios de animais,
conchas, talvez também vasos de madeira e odres de couro.
A respeito do estado sanitário da época, indícios escassos, mas interessantes, têm sido colhidos. A
vida humana devia durar pouco, raramente ultrapassando os quarenta anos de idade; a mortalidade
infantil era muito freqüente, mais precoce no sexo feminino do que no sexo masculino. O
reumatismo era um mal muito generalizado, ao passo que não se conhecia a cárie dentária.
Eis algumas linhas gerais do que se presume tenha sido o quadro de existência do homem em sua
primeira fase sobre a terra. Interessa agora averiguar se tal vivente possuía realmente o senso
religioso ou a crença em Deus.

Lição 2: Manifestações religiosas


2.1. O homem de Pequim
O primeiro tipo humano pré-histórico de maior importância é o "Sinântropo", cujos vestígios
foram encontrados na gruta de Chou-Kou-Tien a 50 km de Pequim (China), permitindo-nos
reconstituir uma população de trinta indivíduos (adultos e crianças). O Sinântropo apresenta
caracteres muito primitivos, tais como volumosa viseira (proeminência dos ossos superiores da
cavidade ocular), crânio alongado e achatado, testa quase nula, falta de queixo, capacidade craniana
aproximada de 1000 cm3. Em vista de tão rude índole, não poucos autores recusaram-se a considerar
os fósseis de Pequim como pertencentes a verdadeiros homens. - Prevalece, porém, hoje em dia a
sentença afirmativa; e isto, por três motivos:
1) o Sinântropo sabia produzir e entreter o fogo (arte esta que nenhum vivente infra-humano
pratica); encontraram-se, com efeito, junto às ossadas pedaços de carvão, depósitos de cinzas, pedras
manchadas por fumaça, ossos calcinados.
2) O Sinântropo utilizava Instrumentos devidamente talhados em vista de determinado objetivo; o
que quer dizer: aprendia as proporções vigentes entre meio e fim; conseqüentemente, inventava...
Ora a capacidade de inventar supõe abstração de notas concretas e percepção de relações que ligam
diversos valores entre si; muito difere do instinto do animal, que geralmente "acerta", mas sem
perceber o "porquê" da sua atividade e sem se poder aprimorar.
Assim foram recolhidos perto de 2000 pedaços de quartzo talhado segundo técnica precisa;
encontraram-se outrossim longos ossos transformados em utensílios, assim como chifres de animais
convertidos em punhais.
3) Além disso - o que é muito importante -, o homem de Pequim revela um certo culto de valores
superiores, principalmente perante os mistérios da morte ou do Além (esta terceira nota, aliás, está
geralmente associada na pré-história ao uso do fogo e à confecção de instrumentos).
Assim é que na gruta de Chou-Kou-Tien se acharam diversos ossos de animais fragmentados. Ao
contrário, os restos humanos consistem apenas em crânios e mandíbulas correspondentes a doze
adultos, dez crianças e dois adolescentes; em alguns crânios o orifício occipital foi artificialmente
alargado, a fim de melhor se extrair o cérebro ( a quanto parece)... Ora estes vestígios se
correlacionam com ritos funerários praticados por povos primitivos da própria era histórica; com
efeito, atestam a inumação dita "a dois degraus": primeiramente, tais primitivos sepultavam os
cadáveres no seio da terra segundo um cerimonial respeitoso; uma vez putrefeitas as carnes,
recolhiam os crânios e extraiam os respectivos cérebros. Quanto ao destino que lhes davam,
discordam os paleontologistas; há quem pense que ofereciam o cérebro, uma das partes mais
importantes do corpo humano, em sacrifício a uma Divindade; há também quem julgue (talvez com
mais probabilidade) que o cérebro era consumido pelos sobreviventes a fim de assimilarem a si as
qualidades do falecido. Como quer que seja, segundo os intérpretes, os crânios da gruta de Chou-
Kou-Tien indicam que o homem pequinense possui o senso do mistério, do transcendente, assim
como uma atitude religiosa correspondente. Observa Gabriel de Mortillet: "Uma das primeiras
manifestações das ideias religiosas é a prática de ritos funerários" (citado por Bergounioux-Glorl,
Les premiers hommes, 4e. éd. Paris pág. 220).
Pode-se mesmo dizer que o respeito do defunto e o desejo de manter contato com ele (mediante o
possível consumo do cérebro) ilustram bem a famosa frase de Robert Pitrou:
"Nesta vida apenas percebemos o borbulhar da fonte da qual somente os mortos podem beber"
(transcrito da ob. cit., pág. 7)
Em suma, diz sabiamente o paleontólogo Bergounioux, encerrando o seu estudo sobre o homem
de Pequim:
"Seria imprudente deduzir desses fetos (os três indícios atrás recenseados) conclusões demasiado
precisas. Contudo é necessário registrar cuidadosamente essas manifestações de lida de uma tribo
ditadas por preocupações já não meramente materiais e já características de uma aspiração a valores
superiores. Primeiros lampejos de uma consciência religiosa que veremos expandir-se e aprimorar-se
no homem da etapa seguinte" (Les Religions des Préhistoriques et des Primitifs, na coleção "Je
sais - je crois" no 140. Paris 1958 pág. 14). (Continua no Módulo seguinte)

PERGUNTAS
1) Que é pré-história ?
2) Que se pode apurar a respeito da religiosidade do homem de Pequim?

MODULO 05: A PRE-HISTORIA (II)


Continuamos a estudar os vestígios de religiosidade encontrados nos documentos da pré-história.
Após considerar o homem de Pequim, passamos ao de Neanderthal, que constitui a etapa seguinte.
2.2. O homem de Neanderthal
O homem da etapa seguinte é o chamado "Neanderthalense", cujas primeiras ossadas devem ter
uma centena de milhares de anos.
O aspecto físico do Neaderthalense ainda é assaz primitivo; apresenta corpo robusto, pequeno,
com cabeça grande, mas um tanto diversa da do homem moderno; as órbitas oculares eram
avantajadas, quadrangulares, e dotadas de espessas viseiras; a testa era quase nula, a parte superior
do crânio achatada; quase não havia queixo, de modo que a configuração geral do rosto se achava
fortemente projetada para a frente. Os dentes contudo eram tipicamente humanos, embora mais
volumosos do que os das raças atuais.
Poder-se-iam nesse tipo de viventes averiguar os indícios de inteligência, assim como o, senso de
Deus e de religião?
Não há dúvida, a raça de Neanderthal, embora fosse rude, era propriamente humana, pois os
detritos deixados dão a ver que sabia usar o fogo e talhar utensílios de caça, de pesca, de cozinha ...
Contudo é costume dizer-se que o homem de Neanderthal era "homo faber" (operário manual,
manufatureiro, pequeno fabricante), e não "homo sapiens" (homem inteligente, homem que cultiva
os valores invisíveis). A razão desta afirmativa é que não se descobriu expressão alguma de senso
artístico na raça de Neanderthal. - A distinção, porém, é insidiosa: desde que se tenha um ser humano
em qualquer época ou lugar que seja, tem-se um "homo sapiens", dotado de inteligência. Não há
criatura que seja apenas 50%, 30% ou 80% homem, pois o que caracteriza o homem é a alma
intelectiva; ora esta ou existe em determinado corpo, fazendo que seja corpo humano: tem-se então
um homem 100%, embora dotado de traços somáticos grosseiros, ou simplesmente não existe em tal
corpo; neste há então uma alma meramente vegetativa e sensitiva, característica do macaco ou do
animal infra-humano.
É claro que há corpos fossilizados muito semelhantes ao do macaco; há outros mais próximos ao
do homem moderno; contudo (insistimos em dizê-lo) o indivíduo que nesses corpos vivia,
caracterizado por sua alma (alma intelectiva ou alma apenas sensitiva), era 100% homem ou 100%
Símio.
De resto, a técnica do "homo faber" ou manufatureiro supõe sempre uma faculdade intelectiva.
Talhar utensílios segundo métodos precisos e variados é fazer obra de "homo sapiens", pois isso
supõe sempre um poder inventivo, ou seja, uma inteligência que, pela sua ampla capacidade de
conhecer, pode transcender o concreto e perceber as relações abstratas que unem os meios ao fim
respectivo. É assim precisamente que o homem se distingue do animal irracional; este fica, por toda a
sua vida, paralisado na "perfeição" dos seus instintos e na "impecabilidade" das suas atitudes
técnicas. Na verdade, o homem é uno, "faber" e "sapiens", através dos séculos; apenas se deve notar
que ora se manifestou mais como manufatureiro, ora mais como artista e dentista.
Portanto, o homem de Neanderthal, sendo verdadeiro homem, não podia deixar de ter também
suas expressões religiosas, que vão abaixo sumariamente enumeradas:
a) as sepulturas. É, como se sabe, na maneira de tratar os mortos que primeiramente se, manifesta
a alma religiosa.
Ora as pesquisas dão a ver que os esqueletos neanderthalenses foram inumados de acordo com
ritos próprios; as sepulturas eram, sim, intencionalmente escavadas em forma retangular ou oval;
muitas vezes uma camada de pedras as recobria: a sua posição era a do eixo solar (Este-Oeste);
utensílios, alimentos e oferendas diversas acompanhavam os mortos na grande viagem póstuma.
Além disto, é significativa a posição dos cadáveres no túmulo: um esqueleto, por exemplo,
descoberto em Moustier (França) aos 10 de agosto de 1908 apresentava o crânio a repousar sobre o
braço direito devidamente dobrado; a face se apoiava diretamente sobre o cotovelo; duas pedras
foram colocadas à altura do nariz; o braço esquerdo se estendia de modo a alcançar um utensílio
bifacial. Na Capela dos Santos ("Chapelle-aux-Saints") encontrou-se um cadáver no fundo de um
fosso retangular (1,45 x 1 m); jazia sobre o dorso, na direção de leste; a cabeça, a oeste, era protegida
por três ou quatro destroços de ossos alongados. Junto à mão do defunto, foi colocada uma sela de
rena e uma pata de um grande bovino com sua carne respectiva.
No Oriente, as sepulturas neanderthalenses ainda são mais interessantes ou intrigantes. Na
Palestina, por exemplo, em Sukhül se encontrou o esqueleto de um ancião que parece ter sido muito
manipulado depois de lançado na terra: substituíram-lhe a cabeça por um crânio de bovino!... Outro
cadáver do sexo masculino tinha em mãos uma mandíbula de javali. Um terceiro apresentava o
fêmur e o púbis perfurados por uma arma de corte quadrangular. Os esqueletos mais conservados se
acham sempre em posição arqueada, o que atesta um rito de inumação intencional. Na Ásia Central,
cerimônias especiais se realizavam: no túmulo de Teshik-Tash, o fundo é constituído por ossos de
cabra postos em filas paralelas; o cadáver de um menino foi aí deitado sobre seu flanco esquerdo; em
torno do crânio seis pares de chifres de cabra das montanhas ("capra siberica") formavam uma
espécie de diadema (mera decoração ou munição defensiva?); cuidado meticuloso foi, sem dúvida,
dispensado a essa sepultura.
Por vezes tem-se a impressão de que os cadáveres eram recobertos de ocre vermelho (caso de
"Chapelle-aux-Saints"), ou de tênue camada de cinzas (em Spy, na Bélgica); não se saberia indicar a
razão exata de tais práticas.
Como quer que seja, as descobertas que acabamos de enunciar, atestam todas que o homem de
Neanderthal tratava zelosamente os seus mortos.
Esses ritos funerários vêm reforçar a convicção em nós gerada pelo estudo da técnica
neanderthalense: a inteligência desse homem era tão viva quanto a nossa. Ele foi nosso irmão na
miséria assim como na grandeza. Embora tivesse uma fisionomia um tanto diversa da nossa, seu
psiquismo conquistador lhe permitiu encarar de frente tremendas questões às quais nenhum homem
desde essa época respondeu por seus próprios recursos ( Bergounioux-Glorl, Les premiers hommes
221).
b) O rito dos crânios. Prolongou-se entre os homens de Neanderthal a antiga praxe (de fundo
religioso, como sabemos) de se extrair o cérebro dos crânios. Assim na gruta de San Felice Circeo, às
margens do mar Tirreno, encontrou-se um único crânio, com o orifício occipital alargado; estava
depositado em meio a um circulo de pedras, ao passo que nas proximidades círculos semelhantes
envolviam fragmentos de ossos animais (possíveis vestígios de oferendas).
Para ilustrar tal costume, cita-se o fato de que ainda hoje os Adamas do Oceano Índico em
ocasiões oportunas procedem à solene exumação do cadáver de um defunto caro; os ossos são
purificados na água do mar e levados de volta à aldeia, enquanto as mulheres entoam lamentações.
Crânio e mandíbula são conservados na família do extinto e não raro trazidos ao pescoço dos
familiares (à guisa de amuleto ou "porte-bonheuf"); em certas solenidades, o crânio, ungido de óleo
ou de gordura, torna-se objeto de grande veneração.
c) Os santuários dos sacrifícios. Na Suíça, em Drachenloch (2445m acima do nível do mar)
encontraram-se duas grutas que continham pequenas caixas de lajes largas, nas quais se viam
numerosos ossos de urso das cavernas ("ursus spelaeus") principalmente, porém, crânios deste
animal.
Na gruta de Wildermannslosch (a 1628 m de altura), na Suíça, descobriram-se outrossim crânios
de ursos dispostos em nichos cavados nas paredes rochosas. Semelhantes achados registraram-se na
Francônia ("Petershöle"). Trata-se, em todos esses casos, de sacrifícios oferecidos como primícias à
Divindade por parte de caçadores de urso. O mesmo tipo de oferenda ainda é observado por certas
populações da região ártica.
Em El-Guettar, no sul da Tunísia, descobriu-se sobre as areias de um poço artesiano um acervo de
ossos, pedras talhadas e dardos esféricos. O conjunto tinha a forma de um cone regular, de 1,50 m de
diâmetro na base e 0,75m de altura. Mais de duas mil pedras foram aí contadas, geralmente talhadas
em forma pontiaguda. Levando em conta semelhantes monumentos dos povos históricos, julgam os
intérpretes tratar-se de um depósito de oferendas feitas à Divindade do poço, à qual os homens
exprimiam sua fé e sua veneração.
Em tenros sumários, eis alguns indícios da mentalidade religiosa do homem de Neanderthal;
procuraremos aquilatar todo o seu significado na Lição 3 deste Módulo.

2.3. As raças posteriores


No período paleolítico superior aparecem na Europa, provenientes talvez do Oeste da Ásia, os
homens dos quais descendem diretamente as raças atuais: são os tipos de Cro-Magnon, Grimaldi,
Chancelade, Wadjak. Como ensinam os paleontologistas, representam o desabrochar racial de um
único tronco humano, que, passando pelos neanderthalenses, teve início com os primeiros homens do
paleolítico. A primeira fase paleolítica superior, a de Aurignac, deve-se ter estendido do ano 40.000
ao de 20.000 a.C.
Em tal período da pré-história, os homens já viviam em sociedade organizada, entregando-se
principalmente à caça; é o que explica as modalidades características da sua cultura, que serão abaixo
brevemente focalizadas.
No setor religioso, reproduzem-se então as manifestações já assinaladas no estudo dos períodos
anteriores.
Apenas importa aqui notar que a crença na sobrevivência da alma do defunto é atestada ainda
mais explicitamente do que outrora. Parece que se atribuiu ao extinto uma nova existência durante a
qual ele poderia ser nocivo aos sobreviventes na terra. Daí não somente a oferenda de alimentos, mas
também o desejo de se manter o defunto no lugar mesmo de sua sepultura; em vista disto, acendiam
fogo e lamparinas junto a esta a fim de proteger o morto contra o frio; amarravam-no todo ou apenas
o manietavam; colocavam-no dentro de um saco; fixavam também uma estátua sem pernas ou com
um só braço ao seu lado, como para indicar que não devia mais poder locomover-se. Procuravam
outrossim satisfazer ao defunto, sepultando-o com seus mais belos adornos (braceletes, colares,
ligas ...); no mobiliário dos sepulcros se encontraram não raro estatuetas de animais que os
sobreviventes queriam assim colocar a serviço do defunto.
Nova manifestação religiosa ainda se pode observar nessa época paleolítica superior: é a arte sacra
inicial. Com efeito, não são raras as grutas da época cujas paredes apresentam desenhos e pinturas
diversos: ora trata-se da representação de animais, principalmente daqueles que o caçador mais
estimava (veados, cavalos, touros, vacas, renas, bisões, por vezes mamutes...); ora aparecem cenas de
caça, ora sinais simbólicos (os dedos de uma mão aberta, por exemplo, na atitude de quem quer
vedar a passagem). Com razão afirmam os paleontologistas que tal decoração não se pode atribuir ao
simples desejo de ornamentar a morada do homem pré-histórico, de mais a mais que as grutas assim
ornamentadas são muitas vezes de difícil acesso; parecem ter servido apenas a indivíduos iniciados.
O significado de tais figuras é, antes, o seguinte: a caça e a pesca eram ocupações de primeira
necessidade para o homem antigo; caso nelas não fosse bem sucedido, morreria (ou abatido pelos
animais que ele perseguia, ou prostrado por inanição). Dessa necessidade deve ter nascido no
caçador o desejo de recorrer a um poder superior, divino, afim de obter pleno êxito na luta pela vida.
O recurso se fazia então nas cavernas, transformadas em santuários com suas imagens ia gruta de
Lascaux, França, que data de 20.000/ 15.000 a.C., foi mesmo denominada " a capela sixtina da pré-
história"). Nesses santuários desenvolvia-se um ritual cuja inspiração era provavelmente de índole
mágica: os homens, tendo à frente um mago ou iniciado, aplicavam aos animais representados em
efígie os ferimentos que eles depois lhes tentariam infligir na realidade; ferir a imagem em
determinadas circunstâncias era, de certo modo, equiparado a adquirir o poder de ferir o protótipo
vivo. Essa índole mágica do culto, reservado aos iniciados, explica o desejo que os antigos nutriam,
de ocultar os seus santuários.
Além de imagens e grutas sagradas, a pré-história no paleolítico superior apresenta rica coleção de
estatuetas dotadas de caráter religioso: aparecem principalmente figuras femininas de pedra ou
marfim, com os seios muito desenvolvidos, a representar a deusa da Fecundidade; desde remota
época se deve ter associado a esse Ídolo a idéia da "Tellus Mater" ou da "Terra Mãe" (sempre
fecunda). Para o homem antigo, a esterilidade das mulheres causava verdadeiro dano, pois concorria
para diminuir o número de componentes da tribo, fazendo que esta se tornasse ainda mais vulnerável
aos múltiplos adversários que a assaltavam.
Com o adiantamento dos tempos pré-históricos, as expressões de religiosidade se foram
multiplicando e cada vez mais enriquecendo pelos recursos da arte e da civilização. Apenas
ressaltaremos que o lugar onde os defuntos repousavam, foi sendo mais e mais considerado terra
sagrada; procuravam, por isto, situá-lo a certa distância do habitat da respectiva tribo. Podia
acontecer, porém, que o morto fosse enterrado em seu próprio domicílio sob as cinzas da lareira;
então os sobreviventes incendiavam tal choupana, que naturalmente desabava e recobria o túmulo
com os destroços do incêndio. - As pesquisas de paleontologia também nos deram a conhecer
vestígios de culto do sol mais notáveis do que a simples orientação de cadáveres na direção LO (já
praticada em épocas remotas): assim, por exemplo, na gruta de Peyort (Ariège, França) foi
encontrada a imagem de um homem que com os braços estendidos persegue três veados, enquanto
um imenso disco fulgurante domina toda a cena.
Tais dados, que poderiam ser ainda longamente enumerados, já bastam para incutir no observador
a conclusão de que, desde que o homem aparece na pré-história, possui senso religioso. Esta
consciência religiosa se manifesta, antes do mais, no reconhecimento de que existe um Mistério ou
uma realidade transcendente de que o homem depende e que ele deve cultuar reverentemente.
Contudo algumas dúvidas provavelmente ainda afloram ao espírito do estudioso, dúvidas que
deverão ser elucidadas nas nossas

Lição 3: Considerações finais


Talvez cause espanto ou decepção o fato de que a Religião na pré-história se manifeste sob formas
tão grosseiras (magia, possível canibalismo, totemismo, etc.).
Para esclarecer tal fenômeno, lembraremos o que a princípio observamos: o testemunho da pré-
história é assaz lacônico, pois é testemunho morto, fossilizado, e representado apenas por
documentos tardios. Sendo assim, concordam os estudiosos em afirmar que os resultados da pré-
história têm que ser completados e interpretados pelos da Etnologia (ciência que estuda os povos
mais primitivos hoje existentes, povos que parecem representar de perto as primeiras formas da
cultura humana: pigmeus, certos índios, esquimós...).
"Para atingir o passado longínquo, não nos podemos dirigir à ciência da pré-história se não em
medida muito limitada; e, quando a ciência da pré-história encontra algum documento, ela só o pode
interpretar apelando para a Etnologia" (Brillant-Aigrain, Histoire des Religions V. Paris pág. 348).
Ora os etnólogos chegaram em nossos dias à conclusão de que a religião dos primeiros homens
não era fetichista, nem totemista, nem politeísta, mas consistia no culto do "Supremo Ser", também
chamado "o Deus do Céu", "Nosso Pai", Autor do mundo e dos homens, tutor da lei moral e
distribuidor da justa sanção para cada criatura.

PERGUNTAS
1) Quem é o homem de Neanderthal?
2) Como se exprimia a sua religiosidade?
3) Porque é tão sóbria a Paleontologia ? Como pode ser completada?

MÓDULO 06: A ETNOLOGIA (I)


Muito mais ricos do que os resultados da Paleontologia, são os da Etnologia, pois este campo de
observação oferece dados mais vivos e variados do que o dos fósseis.
Com efeito, ainda hoje existem certos dás de selvagens que, como julgam os observadores,
representam o primeiro gênero de vida do homem sobre a terra: alguns, infra-civilizados como são,
nem sabem construir habitações estáveis, vivendo conseqüentemente sob o abrigo de folhagens da
floresta. Tais seriam: os pigmeus da África central e ocidental, do SE da Ásia (Málaca), das
Filipinas, algumas tribos de aborígenes do SE da Austrália (os tasmanianos, extintos em 1877,
pareciam representar o homem de Neanderthal), algumas tribos de índios norte-americanos
(algonquins e habitantes da Califórnia), certos índios da Terra do Fogo (Yamanas ou Yaghãs e
Alakalufs), algumas populações árticas do Estreito de Behring, esquimós isolados a O. da Baía de
Hudson.
Note-se bem: as manifestações culturais desses povos, por muito simples que sejam, se mostram
tão afins entre si que levam a crer, tenham esses dás em tempos remotos constituído uma única
população, a qual se dispersou, conservando, porém, nas mais desconexas regiões do globo as idéias
e práticas características do seu agrupamento primitivo. Por conseguinte, nas tribos acima
recenseadas vamos encontrar as primeiras manifestações culturais do homem, anteriores mesmo à
expansão dos povos pela superfície do orbe.
E que atestam tais tribos no tocante à Religião?

Lição 1: Darwin e a Escola de Viena


No século XIX Darwin empreendeu duas viagens de exploração à Terra do Fogo: a sua primeira
estada aí durou de meados de dezembro de 1832 a janeiro de 1833, ao passo que a segunda se
estendeu de fins de maio de 1834 a 10 de junho do mesmo ano. Após tão breves períodos de
observação, o naturalista inglês voltava à Europa anunciando que pela primeira vez na história se
poderia apontar um povo (os índios Yamanas) que absolutamente não tinha religião e que parecia
representar a atitude mais espontânea do homem. As afirmações de Darwin, dado o seu caráter
inovador, causaram sensação. Aos poucos, porém, verificou-se que o cientista inglês não poderia ser,
no caso, testemunha fidedigna: não somente permanecera exíguo tempo na Terra do Fogo, mas
também (todo ocupado com a flora e fauna) não voltara diretamente sua atenção para os aborígenes,
cuja língua ele nem sequer conhecia.
Em consequência, de l9l9 e l924, dois etnólogos, Martin Gusinde e Wilhelm Köppers, membros
do Instituto de Etnologia da Universidade de Viena (Áustria), fizeram novas viagens de estudos à
Terra do Fogo. Tendo aprendido a língua dos aborígenes, procuraram ganhar-lhes a confiança e, por
fim, puderam anunciar ao mundo que, na verdade, os Yamanas têm sua Religião, professando um
Deus chamado Watauinewa (isto é, o Eterno, Antigo, (mutável). Descoberta semelhante foi efetuada
entre aborígenes da Austrália Central: os Aruntas. Spencer e Gillen afirmaram que não tinham
religião; o contrário, porém, foi minuciosamente comprovado por Strehlow.
Vejamos de mais perto as conclusões dos exploradores da Terra do Fogo.
1.1. Na Terra do Fogo
Na extrema ponta meridional da Terra do Fogo, vivem duas tribos irmãs de Índios, que têm sido
recentemente estudadas pelos etnólogos: os Alakalufs e os Yamanas.
Os Alakalufs estão em franca decadência, prestes a se extinguir: em 1953 a tribo contava apenas
61 membros, minados por sífilis, doenças pulmonares e alcoolismo, de sorte que se julga que dentro
de poucos anos estarão totalmente extintos. Esses índios vivem numa inatividade quase absoluta; o
governo chileno lhes dá vestes e comida, sem prover ao seu desenvolvimento físico e intelectual.
Com isto vão-se embrutecendo cada vez mais; suas faculdades superiores - a inteligência e a vontade
- quase não se exercitam: as expedições de caça se tornam cada vez mais raras; de vez em quando
fabricam uma canoa, um anzol ou uma cesta... Ora a regressão física e cultural repercute na
religiosidade desses homens; é muito depauperada; as antigas tradições estão quase por completo
esquecidas; o culto, que exigiria certo esforço, já não é mais praticado. Tem-se a impressão de que a
religião que eles ainda hoje manifestam, é um mínimo resquício daquilo que outrora possuíam; a
crença que neles mais firme permaneceu, é a crença no Além, onde sobrevivem os mortos. Tal estado
de coisas parece atestar que, com o embrutecimento do homem e de suas faculdades superiores, se
atenua o senso religioso; quando o homem deixa de viver plenamente como homem, isto é, como ser
inteligente e ativo, depaupera-se-lhe a religiosidade.
Estado de coisas diferente verifica-se na tribo dos Yamanas, irmã da dos Alakalufs. Também os
Yamanas estão em via de extinção por motivo de epidemias que os acometem. Mas, em oposição aos
Alakalufs, nutrem uma concepção dinâmica da vida e uma noção severa dos deveres do homem.
Lutam ardorosamente pela existência cotidiana; um deles declarou a um dos seus exploradores
recentes, o etnólogo austríaco Gusinde: " As coisas não são como desejaríamos que fossem. Os
homens têm o dever de trabalhar sem descuido... Não há alegria sem esforço prévio".
E qual seria o tipo de religião desses índios?
Já o citamos atrás. Acreditam num Ser Supremo, que não come nem bebe (é espírito, dirse-ia em
linguagem filosófica) e que reside por cima da abóbada celeste, além das estrelas; chamam-no
Watauinewa ou também Hitapuan, "Nosso Pai", ou ainda "o Forte, o mais Alto, o Habitante do Céu".
É o tutor dos bons costumes e da justiça; a doença e a morte são manifestações do seu desagrado. O
melhor meio de atrair a sua benevolência é viver dignamente, ou seja, respeitando as tradições
morais da tribo.
Certamente estas crenças não lhes foram incutidas pelos cristãos, pois fazem questão de as
distinguir de idéias novas que lhes transmitiram os missionários; o nome de Deus está ligado a
antigas formas rituais e a cerimônias de origem evidentemente local; o vocabulário religioso consta
de termos arcaicos da língua desses índios...
Eis um depoimento concreto colhido pelo explorador Martin Gusinde, em 1920, dos lábios de um
velho índio chamado Tenenesk, da tribo dos Selk’nam, na Terra do Fogo:
"Antes de todos os antepassados existia Temaukel; é anterior a todos os howenk (seres
maravilhosos) e a todos os tchon (homens). Só mais tarde é que veio Kenosh (o primeiro homem);
antes, porém, já existia Ele (Temaukel).
Temaukel é kashpi (espírito), mas não é homem; não tem corpo.
Fez o primeiro firmamento e a terra primordial; mas nunca veio à erra. Kenosh (o primeiro
homem) foi por Ele enviado à terra. Ele mesmo fica longe, por detrás das estrelas; é lá que mora, lá é
que permanece sempre. Desde os tempos antigos Ele existe.
Aquele que está no Alto (=Ele lá em cima) sabe o que acontece aqui: vê todos os Selk’nam. De
vez em quando, Ele castiga os homens; então morre alguém. Os Selk’nam choram e se queixam;
dizem: 'Tu que estás lá no Alto, mataste tal ou tal dentre nós!' O kashpi (espírito) do morto vai ter
com Ele lá em cima; lá permanece e não volta mais cá.
Mas Temaukel é mais forte do que todos os homens. O que Ele manda, devemos executá-lo, pois
é o Senhor de todos. Se assim não fizermos. Ele castigará e de novo alguém morrerá. Aquele, porém,
que habita no céus jamais morrerá,- é kashpi (espírito), existe sempre" (Die Feuerlandindianer I
506).
Este texto, em estilo muito simples, refere verdades profundas, que constituem o patrimônio
filosófico-religioso da humanidade da primeira hora: existe um só Deus, diferente do mundo e do
homem, Autor do universo, providente para com todas as criaturas e esteio da ordem moral. Foi
dentro desta perspectiva que se orientou a alma religiosa do homem primitivo.

1.2.Entre os Pigmeus
Tenha-se em vista outrossim a tribo dos pigmeus Efés, estudada pelo etnólogo Paulo Schebesta, o
qual relata um diálogo seu com dois dos anciãos do dá:
"Quem fez o que nos cerca?", perguntou o europeu.
Calaram-se os aborígenes. Mas o explorador continuou:
"Por que oferecemos as primeiras frutas a Toré?"
A nova pergunta foi suficiente para provocar a manifestação de proposições muito caras àquela
gente. Respondeu um dos interpelados:
"Tudo pertence a Toré. Toré tudo fez. Toré fez as árvores. Fez Pucopuco (o ancestral da tribo);
Toré vê tudo: Toré nos vê: ouve o que dizemos. Ele sabe de todo o mal que se comete; castiga os
culpados, e até mesmo os magos, pois Toré fez também os magos".
A seguir, o velho falou do poder de Toré sobre o raio, a morte, as almas etc. Cf. P. Schebesta, Die
Bambuti, die Zwerge vom Congo, l933.
Outro episódio significativo é narrado por M. Briault, que passou quinze anos entre os negros
Pamués, habitantes do Gabão francês (África). Estes aborígenes cultuam um Deus sã, denominado
Nzame (da raiz do bantu mba, que significa "fazer, arrumar, plasmar"). Deus assim aparece, na
espiritualidade daquela gente, como o Grande Artificie, do qual dizem os seus devotos: "É aquele
que nos fez, nosso Pai".
Um dia Briault sugeriu a um grupo de maiorais da terra a idéia de existirem dois deuses supremos;
responderam , porém, decididamente:
"Dois deuses iguais, isso é coisa impossível,- fariam a guerra um ao outro, e o mundo estaria
destroçado".
Há aqui autêntica sabedoria em vestes muito simples: os conceitos de dois deuses iguais pugnam
um contra o outro, excluindo-se mutuamente.
"Deus terá fim ? Morrerá um dia?"
- "E quem colocaria em seu lugar?"
Esta resposta equivale a dizer que Deus é o Ser absolutamente necessário.
Os selvagens acrescentavam: "Nzame não é um homem como nós". E como explicavam isto?
Árdua questão, sem dúvida... Afirmavam sentir a presença de Nzame em toda a parte embora ele
permaneça invisível; comparavam-no ao ar, sem o qual nenhum ser pode viver, o qual (ar), porém,
não tem figura sensível. Asseguravam também que Deus é soberanamente poderoso e bom, não
podendo ser constrangido por encantamentos nem conjurações mágicas. Merece respeito e piedade.
Cf. M. Briault, Polythéisme et fétichisme. Paris l928.
Encontram-se em grau variável entre essas tribos primitivas elementos de magia e superstição;
parecem, porém, importados de outros povos, seus vizinhos mais adiantados, com os quais os infra-
civilizados têm que entrar em contato, para se prover de fogo (quando necessário) ou para realizar
certo comércio. Verifica-se, contudo, que, quanto mais rude e fechada em si é determinada tribo,
tanto mais pura e simples é a sua religião, permanecendo fiel ao monoteísmo.

PERGUNTAS
1) Que é Etnologia? Que estuda?
2) Que notícias difundiu Darwin ao regressar da Terra do Fogo?
3) Que reação suscitou?
4) A que conclusão chegou a Escola de Viena?

MÓDULO 07: A ETNOLOGIA (II)


A tese segundo a qual o monoteísmo é a religião primitiva da humanidade, é apoiada pelo
testemunho de povos muito antigos ainda hoje existentes. Neste Módulo são apresentados os
resultados de estudos efetuados entre os negros de Ruanda, na África Central, por Dominique
Nothomb, o qual publicou em 1965 o livro Un humanisme africain. Valeurs et pienres d’atfente
(Um humanismo africano. Valores e cabeças de ponte), Louvain, Edições "Lumen Vitae".
Os dados abaixo demonstram que esses homens primitivos reconhecem um só Deus (monoteísmo
puro), ao qual atribuem predicados muito elevados.

1. Quem é Immana?
Os ruandenses aceitam a existência de Deus, e de um só Deus, que eles chamam "Immana", nome
que, segundo alguns lingüistas, quer dizer "Grande Espírito", segundo outros "Aquele que mora
conosco".
Embora não saibam desenvolver uma teologia sistemática, os primitivos fazem afirmações a
respeito de Deus, na sua linguagem cotidiana e simples, que contêm um pensamento teológico muito
reto e profundo. O homem culto que saiba compreender os antropomorfismos e as numerosas
imagens tiradas da agricultura, da caça ou da vida doméstica de um povo primitivo, não poderá
deixar de admirar a sabedoria dos dizeres dos ruandenses.
Eis um catálogo de tais afirmações, distribuídas sob títulos congruentes:
1) Unicidade de Deus
Ntawe uhwana n’Immana: Ninguém igual a Deus.
Ntawuhwanye n'Immana: Não há iguala Deus.
Habimmana: Só Deus importa.
Immana ntihenda indi, iba iyriye: Deus não engana outro Deus; destruiria a si mesmo.

2) Poder de Deus
Eis algumas expressões que manifestam a onipotência divina:
a) Immana é o Criador. Por isto, outro nome que lhe compete , é Rurema, Criador. Dizem
também os ruandenses:
Niyo Ibeshaho byose: é Ele quem dá a vida a tudo.
Niyintunze: É Ele quem dá a vida.
Iyamulemye: Aquele que o criou.
Haba Rurema; Haba Ruhanga; Habumulemyi: O Criador é (existe).
Quanto a Ele, ninguém O criou: Yalihanze (Ele criou a si mesmo), expressão imperfeita para
dizer que Deus é o princípio Absoluto de todas as criaturas.
b) A obra da criação dá a conhecer o poder ilimitado de Immana, poder especialmente realçado
por expressões como:
Immana iruta Ingabo: Deus é maior do que os exércitos.
Immana ikira amaboko marimare: Deus tem os braços compridos.
Immana ikinga ukuboko: Deus fecha o braço, isto é, pode salvar tudo.
Rugaba: o Poderoso.
c) O que o Criador começou, Ele o continua, de sorte que Immana é o Dispensador de todo bem.
Este atributo é o que mais frequentemente ocorre em nomes próprios e em provérbios de Ruanda.
Todos os bens - vida, alimentos, saúde, força, bênçãos, crescimento, leite, colheitas, pousada,
auxílios de todos os tipos - provem, em última análise, dessa fonte única: Immana. Dizem os
ruandenses: Maniraguaba, é Deus quem dá, quem distribui; Itangikunda, Ele dá por amor.
Immana dá gratuitamente, distribuindo as suas dádivas como quer:
Ntihabose: Não dá a todos.
Itangishaka: Ele dá o que quer.
Ntiyabahwanije: Ele não os fez todos iguais.
Immana yaremye byinshi itora bike: Deus criou muitos; escolhe poucos.
Umubaji w’imitima ntiyayiringanije: O Artífice dos corações não os mediu todos do mesmo
modo.
Ntawiha icyo Immana Itamuhaye: Ninguém dá a si o que Deus não lhe deu.
Ntihaba gukanura amaso haba Immana Ikubonera: É vão arregalar os olhos; somente importa
Deus, que vê por ti.
Estas expressões visam apenas a realçara soberania de Deus; não implicam necessariamente
imperfeição ou injustiça em Immana.

3) Saber de Deus
Paralelo ao poder divino, o saber de Deus não eliminado por algum segredo. Poristo dizem os
ruandenses:
Bwimmana: Deus conhece essas coisas.
Biziyaremye: Aquele que os criou, os conhece.

4) Providência Divina
a) As sortes do homem e de todas as criaturas estão nas mãos de Deus:
Agati gateretswe n'Immana ntigahuhwa n’umuyaga: O arbusto plantado por Deus não pode
ser levado pelo vento.
Urwubatswe n’Immana, ntirusenywa n’umuyaga: A casa construída por Deus, nenhum vento
pode derrubá-la.
Immana itera amapfa itegeka naho bazahaha: Deus provoca a fome e manda dizer onde é
preciso reabastecer-se.
Immanga y’Immana fruta ikigarama cy’ijisho: Mais vale o precipício de Deus do que a
planície do nosso olho. O que quer dizer: Mais vale o que Deus manda (embora nos assuste como um
precipício) do que aquilo que nós (pobres criaturas) julgamos conveniente.
Hagenimmana, Bugenimmana, Maniragena, Mbonigena: É Deus quem determina tal pessoa
para tal pessoa (em vista do casamento).
Ndahayo: Eu vivo por Ele.
b) Para designara solicita Providência de Deus, os ruandenses recorrem à imagem do Pastor:
Haragira Immana: É Deus o Pastor!
Immana ikuragire: Deus seja teu Pastor!
Immana ikuragidra uharf cyanga udahali: Deus é teu pastor, estejas presente ou ausente.
c) A Providência Divina não dispensa a atividade do homem. Donde:
Haba Rugira, hakaba umugwi: A Providência aí está, mas existe também o homem de
iniciativa.
Uragirfwe n’Immana ashyiraho n’umuwungeri: Ainda que Deus vigie sobre o teu rebanho,
toma o cuidado de o confiar a um pastor.
Ibitihuse, Immana Irabihambya: Àqueles que procedem com prudência, Deus se chega em
tempo oportuno.
Abagiye Inama, Immana irabasanga: Àqueles que deliberam conjuntamente, Deus vai-se
reunir.

Bahatimmana: É preciso forçar Deus.


Usabira Immana kw’ishyga, ikagusiga ivu: Tu oras a Deus ficando perto da lareira; Ele te cobre
de cinzas, isto é, deixa-te na miséria ( Deus não favorece a preguiça ).
d) Os ruandenses primitivos mostram ter consciência de que através das criaturas é Deus quem
age; é Immana quem dá ao homem o bom resultado de suas ações.
Ukwerewe n’Immana agirango yakwerewe nase: Aquele que recebeu de Deus com que pagar a
sua dote, diz que a recebeu de seu pai.
Uwo Immana ihaye irobe agirango arusha abandi guhinga: Aquele a quem Deus deu farinha,
julga que cultivou melhor do que os outros.
Uwaraslwe n’lmmana niwe urasirwa n’incuti: Aquele para quem Deus arremessou as flechas, é
para ele que os amigos arremessam as flechas. - "Arremessar as flechas", no caso, quer dizer
"assistir". Donde: quando os amigos ajudam, é Deus quem ajuda.
e) Deus, que guia o homem todos os dias de sua existência, determina o dia em que o homem
deve passar desta vida para o reino dos bazimu (almas dos defuntos):
Ntawurenga umunsi immana yavuze: ninguém passa além do dia que Deus lhe assinalou.
Ntawupfa adatanzwe n'Immana: Ninguém morre sem ser entregue por Deus.
Iykaremyo niyo ikajaja: Aquele que formou o crânio, é o único que o esmaga.
Hategekimmana: É Deus quem manda.

5) Transcendência de Deus
Em presença de Deus, o homem de Ruanda (Munnya-Rwanda) afirma, em última análise, que
Immana é o absolutamente outro, aquele que está acima de todos os seres, e difere de todas as
criaturas, não somente por sua dignidade, mas também por sua maneira de existir. Com efeito,
a) Immana tem dois outros nomes próprios: iyambere, o Primeiro, e iyakare, o inicial.
b) É o Eterno: Uhoraho, Aquele que é sempre.
c) Está acima de outro ser:
Ntakiruta Immana: Nada está acima de Deus.
Harushimmana: Deus é Aquele que está acima.
Niyonkuru: É Ele que é grande.
Ntaklyiruta: Nada há que o supere.
Inyundo ntisumba uwayicuze: O martelo não supera aquele que o forjou.
d) Está em toda parte:
Nta ho Immana itaba: Não há lugar onde ele não esteja.
Nyamugendera hasi no hejuru: É aquele que percorre o céu e a terra.
e) Enfim, Deus não carece de coisa alguma: é o Umudabagizi, o Pleno, Cumulado; o Umutesi, o
Cumulado, Satisfeito; Hatungimmana, é Deus quem possui.

6) Bondade de Deus
a) O Deus transcendente não deixa de ser o Deus bom, amigo do homem. Por isto, é chamado
Rukiza, o Salvador, Ruvuna, aquele que socorre, Nyamutezi, Aquele que estende a mão,
Sebantu,
Pai dos homens, Sebibondo, Pai dos pequeninos.
Diz o ruandense: Niyinkunda: é Ele quem ama.
b) Conscientes disto, os ruandenses oram a immana, que lhes está sempre próximo e atento:
Ndemgimmana: Adoro a Deus.
Nsabimmana: Eu oro a Deus.
Nsabikunze: Oro àquele que ama.
Nsabiyumva: Oro àquele que ouve.
Nsabiyeze: oro àquele que é propicio.
Ndayambaje: Eu o imploro.
Nlyonsaba: É a ele que oro.
Mbonishaka: Vejo que ele me quer ajudar.
Ntezryayo: Ouço a sua palavra.
Mbonimpa: Ele me dará.
Mbonigorore: Ele restabelecerá minha situação
Mboniyankura: Deus me tirará deste estado.
Ntezimmana: Confio em Deus
Umbohore: Desliga-me! .
Mana y’i Rwanda, umpfashe, untabare: Deus de nossos pais, ajuda-me; vem em meu socorro!
Yankundiye: Ele mo concedeu por amor.
Musabyimmana: Peço a Deus, dê vida a esta criança.
Ndagijimmana: Faço-me apascentar por Deus.
Nizeyimmana: Espero em Deus.
Nshmiyimmana: Agradeço a Deus.
Immana irakarama: A Deus se dêem graças!
Umuntu arasizira, Iyamuemye ntisinzira: O homem dorme, aquele que o criou não dorme.
Ao despedir-se, deseja o amigo ao amigo: Uragahorana Immana, Ubane n’Immana. Possas viver
perpetuamente com Deus!
Estas são as principais noções religiosas professadas e vividas pelos homens primitivos de
Ruanda. Referem os observadores que é com grande fervor que aquela gente fala de Deus e pratica
seus atos de piedade.

2. Reflexão final
Acabamos de catalogar os pontos positivos da alma religiosa de um dos povos primitivos de
nossos dias.
Faz-se mister ainda registrar que, ao lado desses elementos perfeitamente válidos, existem na
religiosidade ruandense pontos deficientes como, por exemplo, práticas supersticiosas. Sabe-se
também que as crenças referentes à vida futura aí são tímidas: os ruandenses admitem a
sobrevivência da alma, mas não tem clara noção de sanção póstuma nem de união com Deus após a
morte. Os benefícios que eles pedem ao Senhor, são geralmente de Índole temporal: saúde e haveres
materiais. (rebanhos, colheitas, fecundidade, vitórias, domínio...), que tornem o homem feliz sobre a
terra.
Como quer que seja, é extremamente valioso o testemunho da fé do povo de Ruanda. E isto
porque corrobora a tese de que o monoteísmo é a forma de religião inicial da humanidade. Esta
tese é de importância capital para que se possa aquilatar o significado da Religião no quadro da
história geral dos homens. Pode-se dizer que Religião - e a Religião pura, de um Deus só - é algo
de tão antigo quanto o homem, em vez de ser (como se tem dito) produto de determinada fase de
cultura. Ao contrário, o politeísmo, o totemismo, o animismo são formas posteriores e decadentes da
religião: com o progresso da civilização, dir-se-ia que o homem não sustentou mais o conceito,
filosoficamente muito elevado, de um Deus só; foi esfacelando esse conceito e repartindo a noção de
Deus entre os elementos de que o agricultor ou o caçador se via dependente: sol, lua, água, fogo,
terra, vegetação, animais... A ignorância, o medo e outras atitudes falhas (que a doutrina bíblica do
pecado original mulo bem explica) concorreram para a decadência das noções religiosas da
humanidade.
Este Módulo, ilustrativo da temática anteriormente abordada, não apresenta perguntas.

MÓDULO 08: RELIGIÃO E CIVILIZAÇÃO


Dado que os povos primitivos manifestaram evidente senso religioso, pergunta-se: não seria a
religião a expressão do medo, da ignorância e da simploriedade do homem? Não estaria ultrapassada
em nossos tempos, incapaz de resistir ao crivo da inteligência?
Abordemos atemática.

Lição 1: Religião - elemento propulsor


Longe de se prender à ignorância e à covardia, a Religião tem sido sempre poderoso estímulo da
cultura: verifica-se que as grandes conquistas da civilização no decorrer dos séculos foram
empreendidas primeiramente por interesses religiosos. Para ilustrar isto, os geógrafos apontam longa
série de instituições culturais que a Religião inspirou ou, ao menos, fomentou pujantemente:
a) A casa. O domicílio do homem difere do ninho ou do antro do animal irracional não só por sua
complexidade, mas principalmente por ser em seus primórdios um santuário religioso. Com efeito, o
tipo característico da casa entre os romanos, por exemplo, se deve ao culto do fogo sagrado, fogo
junto ao qual residiam os deuses Lares e Penates; para defender dos profanos o fogo santo, os
homens construíram em torno dele um enquadramento, no qual aos poucos conceberam a idéia de
estabelecer sua própria residência. Algo de semelhante se deu entre os gregos, os quais diziam que o
fogo havia ensinado os homens a construir seu domicílio. O fogo parece ter entrado nas casas em
geral primeiramente a título religioso; só posteriormente foi dentro de casa utilizado para fins
domésticos (aquecer, cozinhar...); ainda há tribos antigas que deixam a cozinha com o seu fogo fora
de casa, só introduzindo no domicílio o fogo de caráter religioso. - Numerosos são os vestígios de
crenças religiosas na arquitetura e na localização das casas, na disposição de portas, janelas e poços,
entre os diversos povos.

b) As cidades. Também a formação e a configuração das cidades foram fortemente inspiradas por
motivos religiosos. Era em torno de um templo ou de um recinto de culto que se ia aglomerando a
população de uma região, dando assim origem a uma aldeia ou cidade; Enéias, por exemplo, fundou
a cidade de Lavinium, levando para o santuário do mesmo nome os deuses de Tróia; na Idade Média
era em torno de uma igreja situada no alto de uma colina, ou em torno de um mosteiro, que
frequentemente se fundavam as cidades (tenham-se em vista os nomes compostos com moutier,
mosteiro: Romainmoutier, Moyenmoutier, Noirmoutier...; em alemão Münster...).
Observe-se também que desde cedo se foram constituindo cidades entre os egípcios, os
mesopotâmios, os cretenses, porque a religião lhes favorecia; julgavam que os deuses queriam
cidades; as grandes cidades gregas nasceram em período de efervescência religiosa. Ao contrário, os
germanos, os celtas, os albaneses só tardiamente conheceram cidades, porque a sua sabedoria
religiosa não as fomentava; foram não raro estrangeiros que entre eles fundaram as cidades.
c) A agricultura. Foi também muito estimulada por concepções religiosas, que atribuíam a certas
plantas um valor sagrado ou uma função qualquer no culto. Tal foi o caso da figueira, que na Índia
traz o nome de ficus religiosa; os gregos diziam que o figo era símbolo de iniciação a melhor vida,
A oliveira gozou de semelhante estima. - O ópio, ao contrário, sendo proibido pelo budismo e o
islamismo, é cultivado com estranha irregularidade no Oriente.
d) Os animais. Também não poucos animais têm recebido veneração religiosa. Em vários casos a
passagem do animal selvagem para o estado de animal doméstico se fez mediante o estado de animal
sagrado. O elefante, por exemplo, antes de ser animal doméstico, era animal sagrado na Índia. No
antigo Egito, os gatos sagrados eram numerosíssimos (descobriram-se milhares de múmias desse
felino); julga-se com probabilidade que foram domesticados por constituírem objeto de culto
religioso. Outros animais entraram no convívio do homem, a fim de honrarem a Divindade pela sua
beleza; assim a íbis, no Egito; o pavão, na Índia; o gamo, no Japão.
e) A indústria. Não menos profunda é a influência benéfica da Religião no desenvolvimento da
indústria. A fabricação de laticínios, por exemplo, está em grande parte a serviço do culto no Oriente;
nos templos do Tibete centenas de lamparinas ardem dia e noite, alimentadas por manteiga; os
"lamas" têm o rosto, as pernas e as mãos untados com manteiga. A fabricação do papel e do livro têm
dependido muito das necessidades do culto e da piedade; o mesmo se dá com os têxteis e a
metalurgia.
f) O comércio. Está claro que as aglomerações vultosas de fiéis motivadas pela religião acarretam
intensificação benéfica do comércio; as primeiras moedas eram objetos estimados por seu caráter
ritual ou seu valor religioso. A contabilidade dos bancos e escritórios tem suas origens nos templos
da Mesopotâmia, onde os sacerdotes, movidos por respeito sagrado, faziam o inventário de tudo que
dizia respeito ao culto e ao sustento do templo.
g) Os transportes, as vias e as pontes devem grande parte do seu incremento ao fervor religioso
de peregrinos e missionários. Não raro a afluência a determinado santuário provocou a abertura de
estradas, assim como a multiplicação e o aperfeiçoamento de veículos. - Em particular, as pontes têm
sido obras de sacerdotes ou de pessoas dedicadas a Deus. Com efeito, os romanos pagãos, por
exemplo, julgando que os rios tinham algo de sagrado, reservavam a construção de pontes a um
grupo especial de sacerdotes. Entre os cristãos da Idade Média, era a caridade que levava os fiéis a
formar confrarias construtoras de pontes: havia os "Irmãos Pontífices", aos quais se devem as pontes
de Avinhão e do Espírito Santo, sobre o Ródano (França).
h) Por fim, note-se outrossim que no surto das artes está em geral a inspiração religiosa; as
primeiras peças literárias das antigas e modernas civilizações são documentos religiosos; costumam
estar redigidos em poesia, que é a forma literária mais correspondente ao entusiasmo sagrado
(tenham-se em vista, por exemplo, as obras de Homero e dos "teólogos" gregos). A pintura e a
escultura não são menos tributárias à Religião.
Em suma, registra-se o seguinte: sempre que nos é dado observar as origens ou as fases iniciais de
determinada cultura, verificamos que as suas diversas manifestações estão todas indistintamente
fundidas com a Religião; é no seio materno da Religião que elas nascem e por muito tempo são
nutridas.
Donde se vê que considerar a Religião como algo de pré-lógico ou como produto da covardia do
homem significa, de certo modo, lançar uma nota de desprezo sobre a própria cultura humana, que
nasceu no seio da Religião.
Vêm a propósito aqui as observações de famoso geógrafo contemporâneo:
"A maioria dos homens atesta sobre a Terra a existência do sobrenatural; a espécie humana, em
graus diversos, mas de maneira geral, é religiosa,- esta, aliás, vem a ser uma de suas características; o
"homo faber et sapiens" é também primordialmente um homo religiosus. Por obra dele, a terra está
impregnada de religiosidade. A pujante tarefa cultural dos homens não foi efetuada somente em vista
da instalação da espécie humana sobre o globo, mas parte muitas vezes grandiosa desses esforços foi
empreendida mais ou menos diretamente a fim de proclamar ou exaltar a existência de seres
sobrenaturais ou sagrados ...
A religião nos aparece como um dos grandes fatores que transformam a face da Terra e, em
qualquer caso, como o motivo de atividades caracteristicamente humanas... À semelhança do
homem, o animal (irracional) lutou contra os elementos da natureza; mas o que somente o homem
fez, foi dar vulto à ideia da Divindade sobre a face do globo. A Geografia religiosa vem a ser a
Geografia mais especificamente humana ... " (P. Deffontaines, Gêographie et Religions. Paris l948,
8.12).

Lição 2: Progresso material e decadência religiosa


Contrariamente às teorias do século XIX, verifica-se que os povos primitivos professam a crença
num só Deus bom. Autor de tudo e todos, a quem os homens devem obediência e prestação de contas
dos seus atos. Esta afirmação está hoje assentada sobre denso material colhido pelos exploradores.
Foi com o progresso da civilização que o homem começou a deturpar o seu monoteísmo inicial,
caindo nos tipos de religião grosseiros que certos autores julgavam ser anteriores à crença num só
Deus.
Entende-se bem tal roteiro da história das religiões. À medida que se desenvolve a civilização, o
homem entra em contato com a natureza e seus mistérios; percebe a sua dependência frente aos
grandes fatores da prosperidade e da desgraça: o sol, a lua, a terra fecunda, a chuva, o trovão, etc. Daí
surge-lhe a tentação de transferir para estas criaturas o conceito de Deus, o qual é então esfacelado.
Mais ainda: para explicar a diversificação da religião inicial, levar-se-á em conta o seguinte. Todo
homem traz em si duas aspirações espontâneas: a de saber e a de poder ou dominar. Ora a religião
primitiva era muito simples, ensinando ao homem apenas o essencial a respeito de Deus e da vida
moral; em conseqüência, o desejo de saber ou de explicar os mistérios levou muitos dos antigos a
tentar suprir, com o bom senso ou com a fantasia, as lacunas deixadas pela sua crença religiosa;
assim tiveram origem os mitos, histórias fantasistas concernentes à Divindade e aos homens, nas
quais o conceito de Deus é geralmente rebaixado. - Outros indivíduos, impelidos pela ambição ou
pelo desejo inato de dominar, começaram a explorara Religião (fator certamente poderoso) para
obter prestigio junto aos seus semelhantes; apresentaram-se como detentores de segredos (fórmulas e
artes) capazes de forçar a Divindade a intervir em favor dos homens. Tais são os magos, que, como
se vê, também derrogam aos conceitos de Deus e Religião, pois pretendem colocar a Divindade a
serviço do homem.
Recolhendo-se os dados propostos na presente explanação, pode-se reconstituir a evolução da
cultura humana e dos fenômenos religiosos conforme o quadro seguinte, proposto pela Escola
Etnológica de Viena (Schmidt, Gusinde, Schebesta, Köppers):
1) Cultura originária: começou há uns 600.000 anos, como aparecimento dos primeiros homens,
no período paleolítico antigo.
Os homens não sabem cultivar a terra industriosamente nem domesticar os animais; por isto
vivem do que colhem dentre os produtos nativos do solo, ou do que conseguem caçar. Daí a
designação de coletores e caçadores primitivos que lhes é dada. Os homens dedicam-se á caça
(trabalho mais árduo), ao passo que as mulheres colecionam frutas, bulbos e raízes (tarefa mais
suave).
O matrimônio é monogâmico, havendo primazia moral do varão e suficiente reconhecimento dos
direitos da mulher. A união conjugal é estável; o divórcio, coisa rara, tida como exceção.
É reconhecida a propriedade particular. Não há aristocracia nem se pratica a escravidão.
A religião é monoteísta, cultuando-se um Deus que é Pai e Remunerador dos homens.
2) Cultura média, também dita primária: o segundo grau de cultura é o dos caçadores superiores,
cultivadores e pastores, iniciado no período paleolítico recente há uns 100.000 anos atrás.
O homem conseguiu fazer progressos na indústria, fabricando instrumentos (ainda simples) que
lhe permitem dirigir verdadeira caça aos animais, de modo sistemático. Do regime dos caçadores
superiores se origina posteriormente o tipo de cultura pastoril (dos pastores): há, sem dúvida, uma
distância entre caçar industriosamente para consumir incontinente, e criar, domesticar, o animal.
Os instrumentos permitem também cultivar o solo de maneira metódica e eficiente.
O progresso econômico assim obtido é acompanhado de decadência moral e religiosa.
No regime dos caçadores predomina a figura do varão, consciente de seu poder e sua importância.
Daí nasce a forma de vida patriarcal, poligamia, não mais monogamia; constitui-se o direito da
primogenitura. - Em religião, cultuam-se os astros, em particular o Sol, considerado como símbolo
do varão e fonte de energias naturais, beleza e vida. A tendência do varão a dominar se exprime na
magia, que surge e toma grande incremento, visto o contato freqüente dos caçadores com a natureza
e suas forças ocultas. Admitem-se deuses secundários, que são os elementos da natureza
personificados e os espíritos superiores ao homem.
No regime dos cultivadores predomina a figura feminina e, por conseguinte, o matriarcado. Em
religião, cultuam-se a Terra-Mãe sempre fecunda, deusa inexaurível da vida, e a Lua, que é tida
como símbolo da mulher. Os varões se organizam em sociedades secretas, que prestam culto especial
aos mortos: donde o animismo, que é derrogação à religião do Ser Supremo.
3) Cultura mista: fundem-se num só gênero de vida o tipo do pastor e o do agricultor, dando
origem ao camponesato. Este abre o período mesolítico, entre 5000 e 3000 a . C.
A vida da família se torna mais estável e definida; a distribuição eqüitativa do trabalho entre
marido e mulher contribui para equilibrar as relações entre os dois sexos.
A consciência religiosa se vai obscurecendo cada vez mais: o culto dos astros e dos elementos da
natureza, o animismo e a magia, desenvolvendo-se, chegam por vezes a submergir o culto do Ser
Supremo.
4) Alta cultura: formaram-se por fim as civilizações estritamente documentadas por monumentos
históricos, os quais aparecem em toda a sua eflorescência por volta do ano 3000. Constituíram-se os
grandes Impérios do Egito, da Assíria, da Babilônia, etc., em que as classes sociais se foram
diversificando, o despotismo se introduziu junto com o culto ou a divinização do monarca.
Numerosos deuses e semideuses foram sendo cultuados, o que acarretou a máxima exuberância do
politeísmo e grande decadência da moral; o imoral e o anti-social foram como que legalizados ou
divinizados.
Assim passou o homem do monoteísmo primitivo ao politeísmo. No século XIX a.C. o Patriarca
Abraão, chamado por Deus, encabeçou em Canaã o ressurgimento do monoteísmo. Há quem julgue
que na época de Abraão havia resquícios do monoteísmo, pois aparece então Melquisedeque como
Rei e Sacerdote do Deus Altíssimo; cf. Gn 14,18.
PERGUNTAS
1) Explique e exemplifique como a Religião se tornou fator de civilização.
2) Como e porque o monoteísmo originário cedeu lugar ao politeísmo?
3) Como explicar o surto da mitologia ?
4) Como explicar o surto da magia?
5) Como explicar o surto das sociedades secretas?

MÓDULO 09: O ATEÍSMO (I) - CARACTERÍSTICAS


Depois de examinar o fenômeno religioso em suas manifestações mais antigas e espontâneas,
compete-nos considerar a sua antítese flagrante que é o ateísmo contemporâneo.
O ateísmo é, em poucas palavras, a atitude de quem nega ou ignora a Deus. Tem-se dito que
constitui o problema no 1 da Igreja de nossos dias.
O ateísmo apresenta-se, tanto nas classes cultas como nas camadas simples da sociedade, sob
variadas formas, que dão a tal fenômeno um caráter assaz complexo.
Assim o ateísmo repercute profundamente em diversos setores da vida contemporânea, entre os
quais o da Moral: desde que se dissociem a Ética e a Religião, a Ética se torna vacilante; se não se
admite um Deus Autor das leis da moralidade, estas passam a ser confeccionadas pelo próprio
homem, de acordo com o bom senso de cada indivíduo. Se o pecado não é uma ofensa de Deus,
deixa de ser um mal sempre condenável; pode mesmo haver ocasiões em que o homem classifique o
chamado pecado como um bem e, ao invés, a virtude como um mal.
As consequências teóricas e práticas do ateísmo vêm mais e mais chamando a atenção do mundo
contemporâneo:
"O Criador está ausente das cidades, dos campos, das leis,... das artes, dos costumes. Está ausente
da própria vida religiosa, no sentido de que os que querem ser ainda os seus mais íntimos amigos,
não sentem necessidade de sua presença" (Léon Bloy).
O Concílio do Vaticano II ocupou-se com o problema, deixando, para os estudiosos, válidos
pontos de reflexão na Constituição sobre a Igreja no mundo moderno, no 20 - 21.
Examinemos as principais características do ateísmo contemporâneo e esbocemos uma resposta
para o fenômeno.

Lição 1: Ateísmo, fenômeno pós-religioso


Os estudos recentes manifestam que o ateísmo (ao menos, o ateísmo consciente) não é um
fenômeno primitivo da humanidade, mas, sim, um fenômeno pós-religioso, ou seja, um fenômeno
que supõe a Religião e que se ergue contra ela, à guisa de crítica ou réplica.
Em outros termos: o ateísmo (a negação de Deus) não é uma manifestação espontânea da natureza
humana; o homem primitivo dá sinais da Religião; os ateus, quando aparecem, constituem uma
repulsa a conceitos religiosos grosseiros ou errôneos professados pelos homens seus
contemporâneos.
Em nossos Módulos anteriores encontram-se enunciados alguns fatos que atestam ser a Religião
um fenômeno espontâneo, arraigado no mais íntimo da natureza humana. Foi mesmo a Religião
quem incitou o homem a galgar os grandes escalões da civilização.
Aqui, a título de complemento, vão citados os testemunhos de alguns antropólogos e
historiadores:
"Alguns escritores, alegando exemplos de povos selvagens que se diziam privados de ideias
religiosas, pretenderam demonstrar a falsidade da proposição que afirma não ter havido na história
uma época sequer em que o homem não tenha tido religião. Não temos intenção de discutir este
ponto, porque sabem todos os antropólogos que é controvérsia morta e sepultada. Autores que se
ocuparam da questão de diferentes pontos de vista, como Tylor, Max Muller, A. de Quatrefages,
Waitz, Gerland, Pesch, são concordes em afirmar que não há tribo humana, por mais bárbara, privada
da ideia religiosa"(Jevons, An Introduction to lhe History of Religions, pág. 07).
"A afirmação da existência de povos ou tribos sem religião repousa ou em observação inexata ou
numa confusão de ideias. Nunca se encontrou tribo ou nação que não acreditasse em seres
superiores; os viajantes que afirmaram o contrário, foram depois contraditados pelos fatos"(Tiele,
Manuel de I’Histoire des Retigions, pág. 12).
"Obrigado pelo meu magistério a passar em revista todas as raças humanas, procurei o ateísmo
entre as mais degradadas e as mais elevadas. Não o encontrei em lugar nenhum a não serem estado
individual... O ateísmo só existe errático. Talo resultado de uma investigação que posso chamar
conscienciosa e que comecei muito antes de subir à cátedra de antropologia "(A. de Quatrefages,
L'Espèce Humaine, 4a c. XXXV).
"Os povos sem Deus são como os povos sem fogo e sem linguagem; encontram-se em algum
sistema... porque prestam serviços; mas na realidade estão ainda por descobrir-se" (Chantepie de la
Saussaye, Lehrbuch der Religionsgeschichte, pág. 13).
O ateísmo, quando surge, aparece como réplica à religiosidade decadente... É o que se verifica,
por exemplo, no caso de Sócrates (séc. V a.C.), que foi tido como ateu pelo fato de repelir as
imagens grosseiras e ridículas que seus concidadãos cultuavam. Tenha-se em vista também o que se
dava com os primeiros cristãos: recusavam-se a oferecer incenso aos ídolos; consequentemente, as
multidões bradavam à sua presença: "Morte aos ateus, morte aos sem-Deus!" (cf. a Apologia I de
São Justino, filósofo cristão martirizado em 165 aproximadamente).
Analogamente, pode-se dizer que o ateísmo contemporâneo consiste em uma crítica feita à
vivência religiosa dos homens nos tempos modernos.
O ateísmo como total negação de Deus é fenômeno tipicamente ocidental (o que se explica pela
Índole fortemente racionalista dos homens ocidentais). No Oriente, principalmente na índia, o
ateísmo não é a negação de Deus como tal, mas a de tal conceito de Deus.
Jacques Maritain, aliás, fala de pseudo-ateus, referindo-se a numerosos pensadores ocidentais que
julgam não crer em Deus, mas que na verdade crêem inconscientemente nele, pois o Deus cuja
existência eles negam, não é Deus, mas algo de diverso (La signification de l'athéisme
contemporain, trad. ital. Brescia l950, pág. 9).
E quais seriam os falsos conceitos de Deus que provocam a crítica dos pensadores
contemporâneos e, por conseguinte, o seu ateísmo?
São conceitos que pecam ora por excesso. ora por deficiência:
a) a noção de um Deus demasiado humano ou de um Deus concebido à semelhança de um
Homem Bonachão, cultuado de maneira sentimental ou infantil; um Deus concebido como o Grande
Banqueiro, do qual obtém favores e graças aqueles que lhe pagam juros. Tal é o Deus da religião
interesseira (Dou para que dês) e, mais ainda, o da superstição e da magia; o homem se torna então
um cliente de Deus e vê na religião um salvo-conduto para escapar de desgraças e resolver seus
problemas temporais; Deus expressos com traços humanos: ancião de longas barbas, braços e mãos
poderosos...
b) a noção de um Deus desumano, ou seja, de um Deus vingativo, tirano, prestes a esmagar o
homem. É o que ocorre na Religião do medo; os que a praticam, são sufocados, e não elevados, pela
sua crença; carregam a Religião e seus preceitos como um jugo, um fardo esmagador, do qual,
porém, não se ousam emancipar por receio de que algo de pior lhes sobrevenha da parte de Deus.
Defrontando-se com tão imperfeitas noções de Deus, compreende-se que muitos pensadores
proclamem: "Deus morreu! Se é em tais termos que os homens religiosos concebem a Deus,
escaneceu-se o conceito de Deus: Deus morreu na mente dos que dizem professá-lo!" Passemos a
outra característica do ateísmo contemporâneo:

Lição2: Ateísmo, fenômeno de promoção humana


Em todos os tempos houve ateus por comodismo ou covardia, isto é, pessoas que renegaram a
Deus por levarem um gênero de vida moral incompatível com as leis de Deus. É o que do seu modo
atesta François Coppé, um ateu que voltou a Deus:
"Muitos homens que estão no meu caso, reconheceriam, se tossem sinceros, que o que os afastou
inicialmente da Religião, foi a regra severa que ela impõe a todos no uso dos seus sentidos,- somente
mais tarde é que foram buscar no raciocínio e na ciência argumentos metafísicos que tranqüilizassem
a sua consciência. Comigo, ao menos, as coisas se deram assim. A crise da adolescência e a vergonha
de confessar certas coisas levaram-me a renunciar aos meus hábitos de piedade" (La bonne
souffrance, 1898, pág. 5s).
Em nossos dias, porém, numerosos ateus apoiam sua posição sobre o desejo de promover o
homem ou realizar um autêntico humanismo, humanismo para o qual Deus e a Religião seriam
entraves.
E como é concebido esse humanismo do séc. XX?
Toma várias formas, das quais eis as mais relevantes:
a) Humanismo racionalista. É a posição daqueles que propugnam a plena autonomia da razão ou
do livre pensamento. A Religião, apresentando-lhes o mistério de Deus, parece-lhes derrogar aos
diretos da razão. É inadmissível, portanto, a ideia de Deus para quem queira livremente usar da sua
inteligência.
b) Humanismo científico-técnico. As conquistas do saber e da técnica contemporâneos tornaram
o homem moderno como que ébrio...; em seus triunfos, ele está pronto a desafiar os céus e os deuses,
à semelhança de Prometeu.
Prometeu é o herói da mitologia grega que desafiou Júpiter, o Pai dos deuses, em nome do homem
que se erguia contra a Divindade ou em nome da terra que se levantava contra o céu. Roubou o fogo
dos deuses, e o entregou aos homens. O mito de Prometeu representa o papel do homem que arroga a
si o poder de construir o mundo por suas próprias forças, dando fogo (luz e calor, bem-estar) aos seus
contemporâneos, em vez de esperar esses bens do Alto.
O homem, nos últimos tempos, subiu aos céus, e encontrou-os vazios de Deus. Isto parece sugerir
a muitos de nossos contemporâneos que, na verdade, o próprio homem é o senhor absoluto do
mundo.
c) Humanismo moral. Não poucos são os que experimentam a revolta contra o mal no mundo. O
sofrimento lhes parece incompatível com a existência de Deus, pois ou Deus seria impotente diante
do mal ou, pior ainda, cúmplice do mal.
Há também os que consideram a Religião, com seus preceitos morais, como uma redução ou um
acovardamento da personalidade humana. O homem de hoje deseja criar por si mesmo seus valores
morais (sua bondade, sua honradez, sua honestidade, sua coragem, sua glória, sua iniciativa) e julga
que, para ser bom cidadão deste mundo, não é preciso crer em Deus nem esperar normas do Senhor.
Em suma, o homem quer ser legislador moral e ditar a sua própria ética.
d) Humanismo social (econômico-político). É representado por aqueles que têm a Religião na
conta de alheamento do homem em relação ao mundo e à história. Incutindo a esperança num futuro
transcendente e alimentando a fé em realidades invisíveis, a ideia de Deus seria nociva ao
desenvolvimento material da humanidade: tornar-se-ia pretexto para manter as classes humildes sob
a opressão de pequeno grupo de poderosos capitalistas. Tal é a posição do marxismo que,
classificando a Religião como "ópio do povo", veio a ser a forma suprema, a mais filosófica e
militante, do ateísmo contemporâneo. Mais um traço próprio da negação de Deus em nossos dias:

Lição 3: O ateísmo como postulado de base


Para muitos homens de hoje, o ateísmo não é propriamente a conclusão de raciocínio, mas um
postulado de base, uma posição tomada como ponto de partida da filosofia.
Não pensam sequer em refutar as provas da existência de Deus, pois se desinteressam pelo
assunto. Estão convictos de que Deus e homem fazem concorrência um com o outro; é preciso, pois,
optar entre um e outro. Diante do dilema dão a preferência ao homem, pois este não se poderia
realizar plenamente se acima de si admitisse uma ordem de coisas divina. O homem, portanto, há de
ser entendido e levado à consumação sem Deus. Ao "senso de Deus" é assim substituído o "senso do
homem".
Eis, em grandes linhas, um esboço do ateísmo contemporâneo com as suas notas mais novas e
típicas.
No próximo Módulo será explanada a resposta a tal fenômeno.

As perguntas relativas a este Módulo estão no final do Módulo seguinte.

MÓDULO 10: O ATEÍSMO (II) - REFLEXÃO


Uma vez expostas, no Módulo anterior, as características do ateísmo contemporâneo, resta propor
uma resposta ao fenômeno. Será formulada neste módulo, percorrendo-se as três grandes expressões
do fenômeno que foram analisadas.
Lição 1: Fenômeno pós-religioso
É muito importante a observação de que o ateísmo, no decorrer da história, não é um fenômeno
primitivo, mas supõe sempre a Religião (Religião mal apresentada ou vivida), à qual ele é uma
réplica.
É este fato que mantém o otimismo dos cristãos de hoje e lhes permite crer que o ateísmo
contemporâneo supõe uma crise do pensamento humano; essa crise poderá ser debelada se os arautos
de Deus tomarem consciência da mensagem do ateísmo do séc. XX.
Expliquemo-nos melhor:
O ateísmo contemporâneo tem duplo significado; ele implica em:
a) uma crise do senso religioso da humanidade e
b) uma reação contra essa crise
a) Uma crise do senso religioso da humanidade. Já que o ateísmo de nossos dias é um
fenômeno tipicamente ocidental e uma réplica ao Cristianismo, consideremos de maneira especial o
Ocidente e o Cristianismo nos últimos séculos.
Sabe-se que a Europa foi profundamente penetrada nos séc. XVIII / XIX pelo chamado
Iluminismo ou Racionalismo. Este se infiltrou até mesmo dentro dos íntimos redutos do Catolicismo
(os Seminários, sob D. José II da Áustria, o Imperador Sacristão, eram obrigados a adotar a filosofia
de Kant). Em conseqüência, a fé perdeu parte do seu vigor sobrenatural, tornando-se, no povo
cristão, subnutrida ou nutrida por alimentos heterogêneos. Até nossos tempos, os cristãos têm-se
ressentido desse depauperamento espiritual. Em conseqüência, nos séculos passados, e ainda nos
últimos decênios, o conceito de Deus foi muitas vezes mal-entendido e apresentado, relegado para a
esfera do sentimentalismo, do tradicional folclórico ou infantil. Ao mesmo tempo, porém, a
inteligência humana foi-se apurando e desenvolvendo. Era lógico então que, posta diante da Religião
mal formulada, a razão do homem moderno se recusasse a abraçar a crença em Deus, embora no seu
íntimo guardasse e guarde inextinguível a consciência do Transcendente, do Infinito ou de Deus
(mesmo os ateus modernos admitem, explícita ou implicitamente, um Absoluto e um Messianismo,
confinados, porém, dentro dos limites deste mundo material).
b) Uma reação contra a crise religiosa. Pode-se crer que, no ateísmo de hoje, há um valor
positivo latente. Ele é, sim, o brado da alma que procura a Deus em torno de si e julga não O
encontrar entre aqueles que dizem ter Religião. A decepção do homem moderno então se traduz
numa pseudo-revolta contra Deus; esse homem que se ergue contra Deus, é um homem a quem, em
muitos casos, nunca foi dado tomar conhecimento exato do que é Deus e ver a Religião
autenticamente vivida. Tal homem bem seria capaz de dar sua adesão a Deus, caso Este lhe fosse
apresentado de maneira condizente com o nível da cultura de nossos tempos. Todo potencial que o
ateu emprega para impugnar a Religião em torno de si ou em seu íntimo, é, em última análise, um
potencial religioso, dotado, porém, de sinal negativo. Tem-se dito que o ateu, em particular o
marxista, é um santo às avessas; ele tem sua religião e sua mística, centradas, porém, num anti-
Deus.
Diante desta situação, compete naturalmente aos homens religiosos e, em particular, aos cristãos,
esmerar-se por apresentar ao mundo de hoje uma noção de Deus e uma prática religiosa translúcidas,
tomando-se assim verdadeiros sinais do Altíssimo no século presente.
Para os cristãos, isto não significa acomodar a fé às tendências do mundo moderno, dando-lhe
dimensões meramente humanas, mas, sim, expô-la com tudo que ela tem de mais seu, de mais
evangélico e sobrenatural... Em última análise, é precisamente o genuíno sobrenatural ou evangélico
que os homens de hoje, consciente ou inconscientemente, desejam ver.
Removam-se, portanto, do pensamento dos católicos as errôneas noções de um Deus Bonachão,
um Deus Banqueiro, um Deus Tirano, na medida em que elas ainda existem. Na verdade, Deus é
transcendente e inefável, é o Ser por si mesmo; mas dignou-se comunicar-se ao homem, de modo a
ser o Hóspede de toda alma justa: "Superior summo meo, intimior intimo meo. - Deus è mais
elevado do que o que concebo de mais elevado, e me é mais íntimo do que o que tenho de mais
íntimo", dizia S. Agostinho.
Deus, ao criar, decretou elevar o homem ao consórcio da sua vida eternamente feliz. Quem peca,
contradiz a esse desígnio divino: o Senhor, porém, permite sejam os seus filhos visitados pela Cruz a
fim de se purificarem de suas paixões e chegarem finalmente ao seu supremo Objetivo.
Destas considerações não se segue que Religião seja "escola de medo"; Deus não esmaga as
criaturas, mas, ao contrário, as quer atrair a Si; a grande miséria do homem consiste justamente em
não querer voltar-se para o Criador, ainda que só tenha um coração contrito e humilde a Lhe
oferecer. Em suma: do modo de pensar, falar e viver dos cristãos em nossos dias, muito depende a
futura sorte do ateísmo; ele poderá, em conseqüência, recrudescer ou também apagar-se. Haja vista a
solene advertência do Concílio do Vaticano II:
"Na verdade, os que deliberadamente tentam afastar Deus de seu coração e evitar os problemas
religiosos, não seguindo o ditame da sua consciência, não são isentos de culpa. No entanto, os
próprios fiéis arcam sobre si muitas vezes com alguma responsabilidade. Pois o ateísmo, considerado
no seu conjunto, não é algo de inato, mas antes originado de causas diversas, entre as quais se
enumera a reação crítica contra as religiões e, em algumas regiões, sobretudo contra a religião cristã.
Por esta razão, na gênese do ateísmo grande parte podem ter os crentes,- negligenciando a educação
da sua fé ou propondo de maneira falaz a doutrina (da fé) ou cometendo faltas na sua vida religiosa,
moral e social, mais escondem do que manifestam a face genuína de Deus e da religião"
(Constituição Gaudium et Spes no l9).

Lição 2: Fenômeno de promoção humana


A promoção humana visada pelos ateus pode ser concebida segundo as quatro maneiras
recenseadas sem nosso Módulo anterior.

2,1. Humanismo racionalista


A razão humana, logicamente utilizada, aponta ao homem, a existência de um Ser transcendente e
absoluto, sem o qual não existiriam os seres contingentes e relativos. E, portanto, sumamente
racional ou inteligente admitir a existência de Deus; esse Senhor Deus, por definição, há de ter seus
mistérios, pois o Infinito ultrapassa naturalmente a finita compreensão humana. Reconhecer esses
mistérios e prestar-lhes o obséquio da fé não diminui a dignidade da criatura humana, mas, ao
contrário, confirma-a e preserva-a de cair em erros. Ver a encíclica "Fé e Razão" de João Paulo II
citada nas páginas finais deste Módulo.

2.2. Humanismo científico-técnico


Os cristãos empenham-se por mostrar ao mundo que o Evangelho não se opõe às descobertas da
ciência e da técnica. Para que os homens possam conquistar o mundo e o espaço cósmico,
assujeitando a si as riquezas da materia, não precisam de se divorciar da Religião; elas não fazem
sombra ao Criador, mas, ao contrário, só refletem a luz do Todo-Poderoso. É mesmo na S. Escritura
que o homem encontra o convite de Deus para "crescer, multiplicar-se e dominar a terra" (cf. Gn. 1,
26s). Assim se exprime o Concílio a respeito:
"Para os fiéis, é pacifico que a atividade humana individual e coletiva, ou aquele empenho
gigantesco no qual os homens se esforçam no decorrer dos séculos para melhorar as suas condições
de vida, considerado em si mesmo, corresponde ao plano de Deus. Com efeito, o homem, criado à
imagem de Deus, recebeu a ordem de dominar a terra com tudo o que ela contém e de governar o
mundo na justiça e na santidade, isto é, reconhecendo Deus como Criador de todas as coisas...
Portanto, bem longe de julgar que as obras produzidas pelo talento e a energia dos homens se
opõem ao poder de Deus e de considerar a criatura racional em competição com o Criador os cristãos
estão antes convencidos de que as vitórias do gênero humano são um sinal da magnitude de Deus e
fruto de seu inefável desígnio...Donde aparece que a mensagem cristã não desvia os homens da
construção do mundo nem os leva a negligenciar o bem de seus semelhantes, mas, antes, os obriga
mais estritamente por dever a realizar tais coisas" (Const. Gaudium et Spes no 34).
Tenha-se em vista o grande número de sábios e cientistas que em todos os tempos professaram a
fé em Deus e foram almas ardentemente religiosas.
2.3. Humanismo moral
O problema do sofrimento será sempre um enigma para o homem desde que este o queira explicar
sem Deus ou o julgue incompatível com a existência de Deus.
A última palavra do homem sem Deus frente ao mal é o existencialismo de Sartre que afirma a
náusea de viver, o absurdo do próprio eu e de todas as coisas.
Para o cristão, o mal não deixa de ser um enigma, mas enigma envolvido em clarão e confiança.
Com efeito, o cristão, baseando-se na própria razão humana, assevera que o mal não é uma entidade,
mas uma carência de entidade, um não-ser (o que não quer dizer que o mal ou a carência não sejam
uma realidade). O mal, por conseguinte, não tem causa por si ou direta (o não-ser não tem causa
direta); tem, sim, uma causa indireta, a saber: a causa que produz um ser ou um efeito, mas o produz
incompleto ou carecente de alguma de suas perfeições (assim o mal sobrevêm, como carência, a um
ser bom, o mal está sempre aderente ao bem, e supõe o bem). Ora a causa que possa produzir um
efeito incompleto ou carecente, não é Deus (Deus, por definição, é absoluto, é infalível); mas é a
criatura e, em primeiro lugar, a criatura humana. Donde se vê que o mal tem origem não em Deus,
mas no homem e nas criaturas que o cercam; estas, sendo limitadas por definição, trazem em si à
possibilidade de falhar e, de fato, falham.
Acrescenta a fé cristã: o mal teve início no mundo quando o primeiro homem se afastou de Deus,
tomando diante do Senhor uma atitude que carecia da devida ordem. Em consequência deste mal
moral, os males físicos (as doenças, as calamidades e a morte) entraram na história; com efeito, uma
vez rompida a harmonia do espírito do homem com seu Criador, a carne se revolta contra o espírito
dentro do homem e, fora do homem, as criaturas inferiores deixam de servir devidamente ao homem.
E qual a causa do primeiro mal ou da rebelião do homem contra Deus? - É a livre vontade do
primeiro pai, que Deus não quis constranger quando lhe pediu a sua opção consciente e livre (por
Deus ou contra Deus).
O mal, porém, não diz a última palavra da história, segundo a fé cristã. Deus mesmo fez-se
homem, tomando a si os sofrimentos e a própria morte do homem; santificou-os, transfigurou-os, de
modo que atualmente pelo próprio sofrimento e pela morte o homem obtém a sua redenção.
Depreende-se assim que o mal não é incompatível com a existência de Deus; em última análise,
ele se deve ao abuso que o homem fez de sua liberdade. Note-se, porém: Deus nunca teria permitido
que se desencadeasse o mal no mundo se, em sua sabedoria, não houvesse decretado tirar do próprio
mal um bem ainda maior. - Por certo, esta explicação cristã dada ao problema requer fé. Contudo o
homem sincero verifica que só pode entendera existência do mal mediante a fé, ou seja, admitindo a
existência de um Ser supremo capaz de suplantar o mal e dar um sentido à desgraça humana.
Ainda diante do humanismo moral, os cristãos hão de excitar em si, e despertar nos seus
semelhantes, a consciência de que a Lei de Deus, longe de deprimir os valores humanos, os suscita;
as leis morais que o Senhor incutiu aos homens, não são normas arbitrárias, mas são condições de
vida e harmonia; são o complemento da obra que Deus fez, quando deu a cada ser a sua estrutura
característica.
Não se diga que o homem não precisa de Deus para ser bom cidadão. A história de todos os
tempos, marcadamente a de nossos dias, ensina que todo ser humano traz em si um tanto de egoísmo,
egoísmo que, cedo ou tarde, é capaz de solapar as mais belas e altruístas iniciativas; somente por
amor a Deus é que o homem ama retamente a si e ao próximo. Se a Religião não é o fundamento da
união dos homens entre si, estes dificilmente se entendem (é o que a Bíblia ensina no episódio da
torre de Babel; cf. Gn 11,1).

2.4. Humanismo social


O Cristianismo, embora afirme a primazia dos valores espirituais, não dispensa seus seguidores de
se empenhar na construção da Cidade dos homens ou nas tarefas de índole social, política, científica,
técnica, que solicitam o homem de hoje. Os cristãos se empenharão, portanto, por evitar certas
expressões de mística mal concebidas, como se o Cristianismo apregoasse o individualismo ou a fuga
diante dos grandes apelos do mundo. As vocações ao eremitismo e à vida enclausurada conservam o
seu pleno valor, mesmo na Igreja do séc. XX; exprimem o primado do espiritual sobre o material, do
eterno sobre o temporal; da fidelidade das almas contemplativas Deus quer fazer depender a
distribuição de suas graças e a solução dos grandes problemas com que se debate a humanidade de
hoje. Ao lado, porém, das vocações contemplativas, Deus suscita as de vida ativa; principalmente aos
fiéis leigos compete a missão de entrar nas estruturas deste mundo, de modo que por elas seja o
Criador glorificado:
"A índole secular caracteriza especialmente os leigos...É especifico dos leigos, por sua própria
vocação, procurar o Reino de Deus exercendo funções temporais e ordenando-as segundo Deus.
Vivem no século, isto é, em todos e em cada um dos ofícios e trabalhos do mundo. Vivem nas
condições ordinárias da vida familiar e social, pelas quais sua existência é como que tecida. Lá são
chamados por Deus para que, exercendo seu próprio oficio guiados pelo espírito evangélico, a modo
de fermento interior contribuam para a santificação do mundo" (Const. "Lumen Gentium" no 31).

Lição 3: Ateísmo como postulado


Deus e o homem não fazem concorrência um ao outro. Somente um Deus falsamente concebido
pode parecer entravar as nobres aspirações do homem; na verdade, tais aspirações foram dadas à
criatura pelo próprio Criador e só se realizam verdadeiramente na fiel adesão do homem a Deus.
Ademais note-se: basear-se em postulado gratuito é infra-lógico, é colocar-se em plano inferior ao
da razão humana.

APÊNDICE: A PALAVRA DA FÉ
A Santa Igreja deseja ardentemente que seus filhos se empenhem por dissipar os mal-entendidos
que afastam da verdadeira fé os homens contemporâneos.
Contudo nem sempre são suficientes os argumentos da inteligência para fazer frente ao ateísmo
contemporâneo, tão complexo e variegado em seus matizes. O cristão pode mesmo sentir-se, por
vezes, assustado pelas dimensões do movimento ateu. Pseudo-argumentos, aparato científico e
campanhas anti-religiosas apresentam-se com tal requinte que o ateísmo pode por vezes parecer
fadado a seduzir o mundo inteiro.
Que dizer então?
O cristão lembrar-se-á de que a fé é dom de Deus e de que o próprio Deus é o Senhor do seu
Reino. Em conseqüência, os discípulos de Cristo hão de recorrer ardorosamente aos meios
sobrenaturais afim de que Deus se manifeste aos homens de hoje. E esses meios sobrenaturais são:
a) a oração. É mediante a oração que os arautos de Deus obtêm luz e força para falar
devidamente aos homens; é mediante a oração que a graça desce aos corações daqueles que estão
afastados do Senhor. A oração é o grande recurso para todas as horas e todos os problemas. Desde
toda a eternidade, Deus decretou dar as suas graças mediante a colaboração dos homens, que se faz
primeiramente pela oração;
b) o testemunho da vida integra, coerente com o Evangelho até as últimas conseqüências. É o que
recomenda o Concílio do Vaticano II:
"O remédio a ser levado ao ateísmo deve-se esperar não só de uma adequada exposição
doutrinaria mas também da pureza de vida da Igreja e de seus membros Pois compete à Igreja tornar
presente e como que visível Deus Pai e seu Filho encarnado, renovando-se e purificando-se
incessantemente, sob a direção do Espírito Santo. Isto se obtém primeiramente pelo testemunho de
uma fé viva e adulta formada, capaz de perceber de modo lúcido as dificuldades e supera-las.
Inúmeros mártires deram e dão um testemunho preclaro desta fé. Esta fé deve manifestar a sua
fecundidade penetrando toda a vida dos fiéis, também a profana, impulsionando-os à justiça e ao
amor, sobretudo para com os necessitados. Para a manifestação da presença de Deus contribui enfim
sobremaneira a caridade fraterna dos fiéis, que em espírito unânime colaboram para a fé do
Evangelho e se apresentam como sinal de unidade" (Const. "Gaudium et Spes" no 21).
Em conclusão: quem considera atentamente os grandes traços do ateísmo contemporâneo, verifica
que ele contém uma mensagem (transmitida de maneira dura, mas assaz eloqüente) e aguarda uma
resposta dos cristãos; essa resposta, a S. Igreja em seu Concílio a esboçou, pedindo aos seus filhos
que a ponham fielmente em prática.

Da Encíclica "Fé e Razão" (no 46-48)


"Não é exagerado afirmar que boa parte do pensamento filosófico moderno se desenvolveu num
progressivo afastamento da revelação cristão até chegar explicitamente à contraposição. No século
passado, este movimento tocou o seu apogeu. Alguns representantes do idealismo procuraram, de
diversos modos, transformar a fé e os seus conteúdos, inclusive o mistério da morte e ressurreição de
Jesus Cristo, em estruturas dialéticas racionalmente compreensíveis. Mas a esta concepção,
opuseram-se diversas formas de humanismo ateu, elaboradas filosoficamente, que apontaram a fé
como prejudicial e alienante para o desenvolvimento pleno do uso da razão. Não tiveram medo de se
apresentar como novas religiões, dando base a projetos que desembocaram, no plano político e
social, em sistemas totalitários traumáticos para a humanidade.
No âmbito da investigação científica, foi-se impondo uma mentalidade positivista, que não apenas
se afastou de toda a referência à visão cristã do mundo, mas sobretudo deixou cair qualquer alusão à
visão metafísica e moral. Por causa disso, certos cientistas, privados de qualquer referência ética,
correm o risco de não manterem, ao centro do seu interesse, a pessoa e a globalidade da sua vida.
Mais: alguns deles, cientes das potencialidades contidas no progresso tecnológico, parecem ceder à
lógica do mercado e ainda à tentação de um poder demiúrgico sobre a natureza e o próprio ser
humano.
Como consequência da crise do racionalismo, apareceu o niilismo. Enquanto filosofia do nada,
consegue exercer certo fascínio sobre os nossos contemporâneos. Os seus seguidores defendem a
pesquisa como fim em si mesma, sem esperança nem possibilidade alguma de alcançar a meta da
verdade. Na interpretação niilista, a existência é somente uma oportunidade para sensações e
experiências onde o efêmero detém o primado. O niilismo está na origem de uma mentalidade difusa,
segundo a qual não se deve assumir qualquer compromisso definitivo, porque tudo é fugaz e
provisório.
Quanto seja perigoso absolutizar esta estrada, fi-lo notar já na minha primeira carta encíclica, ao
escrever: "O homem de hoje parece estar sempre ameaçado por aquilo mesmo que produz, ou seja,
pelo resultado do trabalho das suas mãos e, ainda mais, pelo resultado do trabalho da sua inteligência
e das tendências da sua vontade. Os frutos desta multiforme atividade do homem, com grande
rapidez e de modo muitas vezes imprevisível, passam a ser não tanto objeto de "alienação", no
sentido de que são simplesmente tirados àqueles que os produzem, como sobretudo, pelo menos
parcialmente, num circulo consequente e indireto dos seus efeitos, tais frutos voltam-se contra o
próprio homem. Eles são de fato dirigidos, ou podem sê-lo, contra o homem. Nisto parece consistir o
ato principal do drama da existência humana contemporânea, na sua dimensão mais ampla e
universal. Assim, o homem vive mergulhado cada vez mais no medo. Teme que os seus produtos,
naturalmente não todos nem a maior parte, mas alguns e precisamente aqueles que encerram uma
especial porção da sua iniciativa, possam ser voltados de maneira radical contra si mesmo".
Na sequência destas transformações culturais, alguns filósofos, abandonando a busca da verdade
por si mesma, assumiram como único objetivo a obtenção da certeza subjetiva ou da utilidade
prática. Em consequência, deu-se o obscurecimento da verdadeira dignidade da razão,
impossibilitada de conhecer a verdade e de procurar o absoluto...
À luz disto, creio justificado o meu apelo veemente e incisivo para que a fé e a filosofia
recuperem aquela unidade profunda que as torna capazes de serem coerentes coma sua natureza, no
respeito da recíproca autonomia. Ao desassombro (parresia) da fé deve corresponder a audácia da
razão".
PERGUNTAS
1) Que se entende por "ateísmo, fenômeno pós-religioso "?
2) Como corrigir as deformações da religião que o ateísmo rejeita ?
3) Diga sumariamente o que é "ateísmo, fenômeno de promoção humana".
4) Como responder aos que se escandalizam com a existência do mal no mundo?
5) Como responder aos que julgam que fé e ciência são incompatíveis entre si?
6) Como responder aos que julgam que a religião se opõe ao progresso da civilização ?
MÓDULO 11: O ATEÍSMO (III) - CAUSAS
Como visto em nosso Módulo g, o ateísmo não é um fenômeno espontâneo ou natural na história
do gênero humano. É sempre uma atitude pós-religiosa; supõe a Religião e constitui como que uma
réplica à mesma.
Também o ateísmo contemporâneo se apresenta ocasionado por circunstâncias próprias de nossos
tempos. Procuraremos, neste Módulo, enumerar os principais fatores que, próxima ou remotamente,
dão lugar ao ateísmo.
A pesquisa das causas que geram o ateísmo de nossos dias, é especialmente recomendada pelo
Vaticano II:
"A Igreja tenta descobrir no pensamento dos ateus as causas ocultas da negação de Deus,
consciente da gravidade dos problemas que o ateísmo levanta. E, guiada pela caridade para com
todos os homens, julga que esses problemas devem ser submetidos a um sério e mais aprofundado
exame" (Const. "Gaudium et Spes" no 21, 2).
Entre as causas do ateísmo contemporâneo, enunciam-se as seguintes:
- o aguçamento do senso crítico da humanidade. Esse aguçamento é motivado pelo progresso das
ciências "exatas" e da técnica, pelos da psicologia das profundidades, pela rápida circulação de
ideias, pelo pluralismo vigente nas sociedades democráticas, pelo esfacelamento da família e de suas
tradições;
- a onda de emancipação política, econômica, social, racial, intelectual e também... religiosa;
- a afirmação da consciência comunitária. Julgam muitos que, para atender a seus deveres sociais,
devem desdizer a Religião, que seria "alienante";
- a descoberta da história. Esta gera o senso do relativismo, que vai sendo aplicado à verdade, e à
verdade religiosa;
- a dissipação da vida moderna;
- a Religião mal apresentada e vivida suscita descrença e afastamento em muitas pessoas.
Analisemos mais detidamente cada um desses fatores.

1. Aguçamento do senso crítico


O homem de hoje, sacudido por duas guerras mundiais sucessivas, é, com razão, exigente de
autenticidade; tende a "repensar" a civilização e as antigas instituições, a fim de se livrar de falsos
princípios ou falsos valores. O cidadão do séc. XX se sente adulto, quer evitar atitudes ingênuas ou
infantis, pede provas que o persuadam, rejeita o que não seja funcional...
Esse espírito critico é, de modo especial, aguçado por certos elementos da vida moderna, como
a) o progresso das ciências ditas "exatas" (a Física, a Matemática...). O cultivo de tais ciências
pode levar o homem a julgar que não há certeza fora desses ramos do saber; os princípios e as
conclusões do saber humanista (Filosofia, Direito, Moral, Religião...) podem, conseqüentemente,
parecer vagos e discutíveis, já que não caem sob o regime da Matemática. - Ora a Religião é, por si
mesma, o contato com o Mistério e o Transcendental; suas proposições não são irracionais, mas
também não podem ser todas demonstradas pelas ciências exatas, pois ultrapassam o alcance destas.
Dai a distância entre a mentalidade do homem moderno (que desde seus primeiros anos vive numa
civilização cientificista, brincando com trens elétricos, mecânicos, etc.) e a mentalidade religiosa.
Esta continua tendo seu pleno valor; todavia o homem de hoje se lhe tomou, em grau maior ou
menor, impermeável, declinando facilmente para o indiferentismo religioso e o ateísmo.
Nos países marxistas, a propaganda atéia é sistematicamente levada a efeito como se fosse serviço
prestado à "ideologia científica" (tal é o nome do ateísmo naquelas regiões).
b) O progresso das ciências psicológicas. A psicologia das profundidades cultivada por Freud
levou a descobrir as riquezas e os recantos da alma humana; certos tipos de comportamento são
explicados como conseqüências de recalques e complexos... Ora muitos psicólogos e analistas
modernos, a partir do próprio Freud, interpretam a Religião precisamente como resultado de um sério
desvio psicológico; segundo o fundador da psicanálise, a Religião é uma grande ilusão que está
fadada a se extinguir. Em conseqüência, muitos jovens e adultos se põem a duvidar da autenticidade
de suas atitudes religiosas, tendendo facilmente a interpretá-las como deformações de sua verdadeira
personalidade.
c) O progresso da técnica proporciona ao homem moderno faculdades que lhe dão a impressão
de poder dispensar Deus e Seu auxilio; muitos dos favores que os povos outrora pediam a Deus, o
cidadão contemporâneo os pode obter mediante os recursos da técnica.
d) A rápida circulação de ideias, em nossos dias, favorecida pelos meios de comunicação de
massa, põe o homem em contato com os mais diversos modos de pensar e viver (no plano civil,
nacional e no plano religioso), sugerindo-lhe a relatividade dos vários pontos de vista. O ecleticismo
e o indiferentismo assim se instauram em lugar da verdadeira fé religiosa.
Aqui não se pode deixar de observar quão grande é a responsabilidade dos que dirigem a imprensa
escrita e falada; caso atendam ao sensacionalismo e ao lucro comercial mais do que à difusão da
verdade, causam enorme dano ao público. Este dano é tanto mais ponderoso quanto se sabe que
muitos e muitos camponeses e cidadãos modernos não recorrem a outras fontes de informação fora
do rádio, da televisão, dos jornais e das revistas ilustradas.
e) O pluralismo vigente nas sociedades democráticas ocasiona a afirmação e propagação dos
mais diferentes conceitos e costumes; o cidadão, principalmente quando carece de meios ou tempo
para estudar, é constantemente interpelado por sentenças e opiniões contraditórias, que o
desnorteiam, induzindo-o por vezes ao ceticismo parcial ou total no tocante à Religião. Com esta
observação não se quer negar a legitimidade do pluralismo ou da existência de diversas atitudes na
sociedade. É preciso, porém, que cada cidadão trate de averiguar o que há de certo e errôneo em cada
proposição que lhe é transmitida; caso não o faça, arrisca-se a ceder á confusão e à descrença.
f) O fim do regime de Cristandade. Por "Cristandade" entende-se a civilização inspirada pelo
Cristianismo tanto em suas instituições religiosas como em sua organização civil. Ora, a partir do
século XVI, registra-se a laicização crescente da vida pública; o Estado se separa da Igreja e governa
como se Deus e a Religião fossem valores meramente relativos e opcionais. Com isto não se quer
dizer que, em nossos tempos, todo e qualquer Governo deva professar determinado Credo religioso.
É preciso, porém, que o Estado reconheça e favoreça a Religião e suas manifestações na vida dos
súditos.
g) O esfacelamento da família e de suas tradições. Motivos profissionais e econômicos levam
muitos trabalhadores a emigrar de uma nação para outra, deixando seus familiares, por tempo mais
ou menos longo, na pátria. Além disto, razões de ordem moral (adultério, divórcio...) acarretam
freqüentemente a dissolução dos lares. Ora a família está intimamente associada à Religião; é no lar
que esta começa a ser transmitida e vivida. Por isto, com a ruína da família registra-se também o
abalo da Religião.
Estes diversos fatores que integram a vida moderna, produzem inegavelmente o criticismo em
relação aos valores invisíveis. Não poucas pessoas falam conseqüentemente de uma "desmitização"
da Religião, desmitização que consiste não somente em eliminar os mitos ou os conceitos religiosos
infantis e defeituosos que por vezes desfiguram a verdadeira Religião, mas também em erradicar o
próprio conceito de Deus e a Religião como se fossem mitos.

2. A onda de emancipação
Em nossos dias, é cada vez mais realçada a dignidade da pessoa humana, dignidade que se
manifesta principalmente na autonomia que compete ao ser humano.
O crescente desejo de autonomia leva a procurar emancipação ou libertação... Na verdade, a época
moderna vem assistindo a uma série de movimentos de emancipação:
a) emancipação política, que se manifesta na repulsa do colonialismo e na ascensão das nações
jovens do Terceiro Mundo;
b) emancipação econômica: as classes trabalhadoras procuram tornar-se mais e mais
proprietárias;
c) emancipação social: a mulher vai adquirindo o lugar que lhe compete na sociedade, em
antítese à posição inferior a que era relegada: a mulher vota, a mulher estuda, a mulher lidera. -
Também os jovens tendem à emancipação,
d) emancipação racial: os homens de cor procuram dissipar qualquer preconceito racial;
e) emancipação intelectual: reivindica-se hoje em dia a liberdade de pensamento e de expressão.
Nesta série de movimentos "emancipacionistas", coloca-se também a emancipação religiosa. A
Religião vem a ser considerada por muitos como tutela, tutela a ser rejeitada por uma humanidade
"adulta".
Na verdade, a Religião é a elevação do homem a Deus. Ora "servir a Deus é reinar", é consecução
da verdadeira soberania e liberdade!
Muitos chegam a julgar que negar a Deus é condição necessária para que se salve ou promova a
pessoa humana; Deus seria obstáculo ao progresso. Quanto menos o homem for religioso, dizem,
tanto mais será homem.
São palavras de Sartre:
"Se Deus existe, o homem é o nada. Se o homem existe, Deus não existe" (Le Diable et le Bon
Dieu ).
"Ser homem é tender a ser Deus... O homem é fundamentalmente desejo de ser Deus" (L'Être et
le Néant ).
Anteriormente dizia Nietzsche:
"Todos os deuses estão mortos, queremos agora que viva o Super-Homem"(Assim falou
Zaratustra ).

3. Afirmação da consciência comunitária


Registra-se no mundo um processo de socialização crescente. Esse processo desperta nos homens
o senso da história e dos deveres que lhes cabem no decorrer dos séculos; o horizonte dos indivíduos
e dos povos se dilata cada vez mais, no tempo e no espaço.
Ora a descoberta dessa dimensão horizontal da existência e das tarefas que ela implica, parece a
não poucos homens estar em conflito com o ideal religioso. A Religião é tida como "alienante" ou
como fator que trava o dinamismo das sociedades e da história. São conhecidas as frases dos grandes
mentores do comunismo, das quais vai aqui destacada a seguinte, devida a Lenine:
"A religião, berçando na esperança de uma recompensa celeste o homem que sofre a vida inteira
na miséria, ensina-lhe a paciência e a resignação. Quanto àqueles que vivem do trabalho alheio,
ensina-lhes a praticar a beneficência neste mundo, oferecendo-lhes assim uma fácil justificativa da
sua existência de exploradores, vendendo-lhes a preço barato bilhetes de participação na felicidade
celeste. A religião é o ópio do povo; a religião é uma espécie grosseira de água-ardente espiritual, na
qual os escravos do capital afogam o seu ser humano e as suas justas reivindicações em favor de
uma existência digna do homem".
Palavras análogas encontram-se nas obras de Karl Marx e dos marxistas contemporâneos.
4. A descoberta da história
A partir de Darwin, os homens têm mais e mais a consciência do fator "evolução" e de seu
significado; as ciências empíricas manifestam cada vez mais as mudanças e transformações por que
têm passado, passam e passarão o gênero humano e as realidades sensíveis.
"Tudo muda!" Esta verificação sugere relativismo. Em vista disto, muitos perguntam se a própria
verdade não está sujeita a mudança ouse ainda existe propriamente verdade nos setores, da Filosofia
e da Religião. A Religião com suas "verdades" não seria algo de contingente, algo de associado a
formas de cultura e civilização já ultrapassadas? Respondendo positivamente a o estas dúvidas, não
poucos homens aderem ao indiferentismo religioso e ao ateísmo.

5. A dissipação da vida moderna


A civilização contemporânea é, evidentemente, dissipante: é a civilização do barulho e da pressa.
As grandes aglomerações urbanas dificultam ao homem o encontro consigo mesmo no silêncio e na
solidão; o cidadão, vivendo em apartamentos e escritórios, vai perdendo o contato o com a natureza;
os meios de comunicação de massa (rádio, televisão...) interpelam continuamente a pessoa, queira-o
ou não. Enfim divertimentos e solicitações se multiplicam, tornando a vida variada e atraente.
Ora este quadro geral tem sua repercussão na orientação religiosa dos homens: diminui-lhes as
possibilidades de se recolher, ler ou estudar, justamente num período da história em que o senso
critico se torna mais exigente (exigente de maior reflexão). Os valores transitórios assim tendem a
polarizar a atenção dos homens, o que favorece o agnosticismo.
As características de civilização que acabam de ser apontadas, verificam-se principalmente no
mundo ocidental. Elas tendem, porém, a recobrir a terra inteira, de sorte que também no Oriente -
cuja população é profundamente religiosa - a indiferença e a descrença se vão implantando.
Resta agora examinar outra categoria de elementos que favorecem o moderno ateísmo.

6. Religião depauperada e ateísmo


Observa o Concílio do Vaticano II:
"O ateísmo, considerado em seu conjunto, não tem a sua origem em si mesmo; é, antes, originado
por causas diversas entre as quais se enumera uma reação crítica contra as religiões e, em algumas
regiões, sobretudo contra a religião cristã. Por esta razão, na gênese do ateísmo, grande parte podem
ter os crentes, na medida em que, negligenciando a educação de sua fé, ou usando de falaz exposição
da doutrina, ou cometendo faltas na sua vida religiosa, moral e social, se poderia dizer que mais
escondem do que manifestam a face genuína de Deus e da Religião" O (Const. "Gaudium et Spes" n o
l9, 3).
É certo que os homens tendem a julgar Deus e a Religião pela apresentação que de tais, valores
propõem os homens ditos "religiosos". Ora o Cristianismo, nos séculos XVIII e XIX, ressentiu-se
profundamente da influência daninha de correntes de pensamento heterogêneas: o racionalismo de
Kant e outros autores, o positivismo de Comte, o jansenismo, a mentalidade, barroca com sua
piedade exuberante, mas carente de teologia profunda...
Pode-se admitir que, não dando lúcido testemunho de sua fé, os cristãos tenham decepcionado
seus semelhantes, induzindo-os à indiferença (talvez não seja fácil ao homem o crer que a verdade
continua a ser verdade, mesmo quando seus adeptos não a traduzem devidamente).

APÊNDICE
REFLEXÃO SOBRE O ATEÍSMO
Os estudiosos verificam que o ateísmo contemporâneo não é o resultado de uma pesquisa ou de
um estudo do problema de Deus, mas é simplesmente uma opção. Em outros termos: quem afirma
que Deus não existe, não o diz porque tenha certeza do que assevera, mas simplesmente porque
escolheu dizê-lo. O ateu moderno não se interessa pelas questões atinentes a Deus e à Religião; não
examina provas da existência ou não-existência de Deus; mas simplesmente opta por não crer em
Deus. Sua posição não se deriva de uma clareza intelectual adquirida por raciocínios, mas se baseia
apenas na livre recusa de admitir Deus.
Há quem diga que a explicação do universo dada pela ciência nos liberta da existência de Deus.
Pois bem; o ateu aceita esta afirmação sem cuidar de a averiguar.
"A pretensão, sustentada pelo ateísmo moderno, de ser o resultado da ciência serve para mascarar
o incontestável fato histórico de que o ateísmo se deriva de um protesto de índole irracional, protesto
para o qual as razões objetivas são de importância secundária. À luz da psicologia moderna, devemos
asseverar que esse protesto ocorre por motivos, ao mesmo tempo, conscientes e inconscientes, e que
as aparatosas razões científicas que o ateu aduz, servem para mascarar a si e aos outros a realidade
dos fatos" (Siegmund, Storia e diagnosi dell’ateismo moderno, tr. it., l961, pág. 534).
Observa o Pe. Inácio Lepp, que durante longos anos aderiu ao marxismo:
"Poucos são os incrédulos de hoje, principalmente entre as pessoas cultas, que o sejam por
motivos rigorosamente racionais. Os argumentos racionalistas contra a religião geralmente não têm
valor para o ateu senão porque o ateu tem razões de ordem existencial para não crer" (Psychanalyse
de l’athéísme moderne, Paris, 196l, 19s).
Por sua vez, escreve Verneau:
"O ateísmo contemporâneo não é tanto a negação de Deus quanto a recusa de crer nele... A
negação é uma tomada de posição objetiva; a recusa é puramente subjetiva. O ateísmo, em nossos
dias, não é uma posição tomada pelo espírito ou...pela razão enquanto tende para a verdade, como
seria o juízo "Deus não existe". Este juízo seria de índole metafísica; ora o que caracteriza a
mentalidade da nossa geração...é a recusa de entrar nessa ordem de considerações, nas quais a razão
supera o plano de experiência... do fenômeno, e afirma por via lógica a existência do
transcendental...
Mas, se o ateísmo não se nos apresenta como uma verdade metafísica, então que é? Uma escolha,
consciente e deliberada, a respeito do bem ou do último fim do homem ou, em última análise, a
respeito do próprio homem. O ateu não quer crer em Deus para poder crer no homem recusa-se a
admitir a existência de Deus para que o homem possa existir ou, como se diz, sair do seu estado de
alienação, libertar-se psicologicamente de todo sentimento de independência, afirmar-se como
liberdade absoluta, fazer-se ou criar-se por si" (citado por G. Girardi, Riflessioni sull’ateismo. Roma
pág. 62).
Na verdade, essa atitude do ateu equivale a um ato de fé, uma fé às avessas, cujo conteúdo não é
adesão a Deus, mas, ao contrário, uma tomada de posição contra Deus. Com efeito, o ateísmo não é
algo de evidente, que se imponha ao raciocínio; o ateísmo simplesmente não é evidente, como
também não é evidente por si a fé cristã (com seus sagrados mistérios). Isto, de um lado, deveria
levar os cristãos a compreender o ateísmo dos ateus e, de outro lado, deveria impelir os ateus a
"repensar" a sua incredulidade, desde que tomassem consciência de estar aderindo a algo de que não
têm evidência. "O ateísmo é uma fé... A incredulidade é, antes do mais, uma crença" (Henry,
L'athéisme d’aujourd’hui, em L’athéisme, tentation du monde, réveil des chrétiens? Paris p. 37s).
Ora a "fé" (ou a posição) dos que não crêem em Deus, é artificial e pouco humana. Muito mais
razoável é a atitude dos que admitem Deus, pois se torna difícil, se não impossível, admitir que o
universo eo homem se expliquem sem um Ser Infinito e Transcendente. Com efeito, muitos ateus,
para sustentar o seu ateísmo, fecham os olhos a certas questões, como as que dizem respeito à origem
do mundo, do homem, à morte e ao sentido geral da existência humana; julgam que tais questões não
devem ser colocadas, pois implicam "ficções" absurdas.
Eis, por exemplo, como, desde Lucrécio († 55 a.C.) até Sartre e Simone de Beauvoir, há quem
procure afastar qualquer reflexão sobre a morte:
"Enquanto existimos, a morte não está presente; e, desde que a morte se torna presente, não mais
existimos. A morte, portanto, nada é, nem para os vivos, nem para os mortos, pois, para aqueles que
são, ela não é, e aqueles para quem ela é, não são mais" (Lucrécio, citado por Roger Mehl em Le
vieillissement et la mort, P. U.F. ).
Nesse "raciocínio" há um sofisma, pois na verdade a morte nos está sempre presente, sempre
impregnada e atuante no ser humano desde que ele nasce. Impõe-se, pois, a todo homem a reflexão
sobre a morte ou sobre o "donde" e o "para onde" vamos; sem clareza nestes pontos, o homem
dificilmente se realiza.
O episcopado polonês, em Carta Pastoral coletiva de 15/VI/1967, propôs as seguintes
considerações sobre o assunto:
"O ateísmo se coloca falsamente contra a experiência milenar de todo o gênero humano. Ontem,
como hoje, o homem é instintivamente levado a reconhecer a existência de Deus. E o que se verifica
não somente nos povos primitivos que sobreviveram até nossos dias, mas também nas nações mais
evoluídas. Essa unanimidade universal dos povos fica sendo um fato irrefutável e atesta que o
ateísmo está em desacordo com a natureza humana.
O Concílio nos ensina que o ateísmo ‘faz o homem decair da sua nobreza nativa’. Deus criou o
homem inteligente e livre, mas principalmente ‘como filho Ele o chamou à sua intimidade e ao
consórcio da sua própria felicidade’ (Const. Gaudium et Spes 21). A negação da existência de Deus
separa o homem da fonte dos mais profundos valores humanos.
Numa palavra, o ateísmo é contra o homem. O Papa João XXIII, de santa memória, bem , o
afirmou numa de suas encíclicas: ‘O homem separado de Deus torna-se terrível para si mesmo e para
seus irmãos’ (enc. Mater et Magistra 4, 1).
O ateísmo deixa sem resposta as questões mais angustiantes que todo homem deve enfrentar: o
sentido da vida, o sentido do sofrimento e da morte. ‘Assim muitas vezes os homens, mergulham no
desespero. Só Deus lhes pode responder de maneira cabal e irrecusável, Ele que nos convida a uma
reflexão mais profunda e a uma procura mais humilde’ (Const. Gaudium et Spes 21)" (La
Documentation Catholique no 1512, 3/III/68, col. 422).
Estas observações feitas ao ateísmo estão longe de significar que se devam distanciar, cristãos e
ateus, ignorando-se ou hostilizando-se mutuamente. O cristão deverá sempre distinguir entre o
ateísmo e os ateus; rejeitará aquele, e amará sinceramente a estes, mantendo-se aberto ao diálogo
com todos os homens.

PERGUNTAS
l ) Que se entende por aguçamento do senso critico ? Dê algum exemplo. Como influi no ateísmo?
2) Que se entende por onda de emancipação ? Dê algum exemplo.
3) Que se entende por afirmação da consciência comunitária? Como influi no surto do ateísmo?
4) Que relação existe entre descoberta da história e ateísmo?
5) Dissipação da vida moderna e ateísmo têm afinidade entre si?
6) E a religião mal apresentada pode estar relacionada com o ateísmo?
7) Que quer dizer "fé às avessas" atribuída aos marxistas?
Parte II. Creio em Deus
Após abordar o fenômeno religioso, típica demonstração do ser humano inteligente, nosso estudo
dá um passo à frente, procurando as razões pelas quais o homem aceita um Deus Único e a revelação
que esse Deus faz de si mesmo. Dai a segunda Parte do nosso tratado: CREIO EM DEUS.
Compreenderá duas secções 1) as provas da existência de Deus; 2) a noção de Revelação Divina e os
critérios que autenticam a Revelação.

MÓDULO 12: PROVAS DA EXISTÊNCIA DE DEUS (I)


Lição 1: Generalidades
Distinguem-se duas séries de provas da existência de Deus: a das provas metafísicas (ditas "as
cinco vias de S. Tomás") e a das provas morais; as primeiras partem da realidade objetiva do
universo; as demais partem da realidade moral, verdade é que recorrendo também a princípios
metafísicos. Trata-se, pois, de demonstrações a posteriori (a partir da experiência), e não a priori (a
partir do conceito mesmo de Deus, como querem os ontologistas e o argumento ontológico de S.
Anselmo).
Tais provas têm todas a mesma estrutura, que convém examinar, para se tornar mais fácil a
compreensão de cada uma delas. Eis os elementos dessa estrutura comum:
1) O ponto de partida é sempre um fato real, percebido com plena evidência nas suas notas
concretas. Esse fato real é geralmente o encadeamento de seres ou fenômenos que se sucedem e se
imiscuem uns nos outros e assim formam séries que têm seus anéis solidamente articulados. Tal fato
é chamado "o condicionamento universal".
2) O nexo necessário entre essa base real experimental e a existência de Deus é a intuição de que
estamos diante de seres ou fenômenos contingentes, que devem ter sua razão suficiente fora de si. O
princípio de causalidade explica tal dependência eleva à conclusão de que deve existir uma causa
absolutamente primeira, não condicionada nem contingente.
3) Essa causa primeira é real, porque o ponto de partida do raciocínio é real e não apenas um
conceito mental. única, porque infinitamente perfeita e não depende de outra. Chamamo-la Deus.
As cinco vias de São Tomás são válidas de modo perene. Em nossos dias, há quem não lhes dê
valor, talvez por falta de hábito filosófico ou em virtude de mentalidade positivista empirista,
influenciada por preconceitos contra a Metafísica.
Examinemos agora as vias (metafísicas)de Santo Tomás.
Lição 2: Primeira Via - a partir do movimento
a) Partimos do fato de que no mundo existem muitos movimentos. O termo "movimento", no
caso, não significa apenas deslocamento, mas tem o sentido geral de mudança ou de passagem da
potência para o ato; é o vir-a-ser que caracteriza as coisas deste mundo.
b) Ora qualquer ser que muda (é movido), requer o influxo de algum movente que seja distinto
dele. - De fato; quem precisa de mudar para adquirir uma perfeição, não possui tal perfeição em ato,
mas apenas em potência (enquanto pode vira tê-la). Por outro lado, mover é comunicar, dar, e, para
poder dar uma perfeição, é preciso já tê-la em ato, pois ninguém dá o que não tem. Por conseguinte,
para que alguma coisa se mova ou mude, deve receber algo (que ela não tem) de outro ser (que
chamamos movente), porque ninguém dá a si mesmo o que ele não possui.
c) Na série de seres movidos-moventes, não é possível proceder ao infinito.
d) Portanto deve haver um primeiro movente que não seja movido por outrem, mas que tenha em
si mesmo a razão de ser do seu movimento; é o primeiro movente imóvel, absoluto ou Deus:
DEUS
movido → MOVENTE NÃO MOVIDO
movido → movente
movido → movente
movido → movente
Detenhamo-nos um pouco na proposição c.
Proceder ao infinito significa retroceder sem fim... Observamos, porém, que uma série composta
unicamente de moventes-movidos não pode dar a razão suficiente das respectivas mudanças; em tal
série todos os moventes são subordinados ou condicionados, são simplesmente intermediários. Por
isto, por mais que se aumente o número dos moventes intermediários, sempre faltará o movente
independente, a fonte primeira, razão suficiente do movimento transmitido; se não, para dispensar a
locomotiva, bastaria aumentar o número dos carros da composição! Uma série indefinida de
moventes-movidos poderia ser comparada a um canal que se prolongasse muito, mas fosse destituído
de fonte; ora, se não há fonte, não há nem intermediários (ou canal) nem há efeito. Um conjunto
numeroso (diga-se: infinito) de espelhos a refletir uma imagem não dá conta, por si só, da imagem
neles espelhada; cada um apresenta uma figura refletida, dependente, que supõe a figura que se
espelha, absoluta.
Poder-se-ia replicar que o processo do movimento se verifica desde toda a eternidade; por isto não
tem princípio. Neste caso, porém, seria desde toda a eternidade que a série dos moventes
dependentes exigiria um Movente Absoluto, independente; o simples fato de haver movimento o
pede; o tempo ou a duração é apenas medida do fato, mas não constitui uma fonte de energia.
Existe, portanto, um princípio de todo movimento, que por si mesmo possui sua atividade, sem
depender de outro. E tal Movente absoluto é chamado Deus.
Santo Tomás considera a prova a partir do movimento a mais manifesta de todas. As duas
seguintes lhe são muito semelhantes. Por isto, antes, porém, de as explanar, importa-nos deduzir
algumas conseqüências do fato de haver um primeiro Movente imóvel:
a) O Primeiro Movente imóvel é infinitamente perfeito. Sim, toda mudança implica perfeição.
Portanto, pelo fato de ser absolutamente imóvel, o Primeiro Motor possui toda perfeição ou possui a
plenitude do ser. Com outras palavras: é Ato puro.
b) O Primeiro Movente imóvel é espiritual, pois a matéria se desgasta, é essencialmente
imperfeita. Sendo espiritual, o Primeiro Movente deve ser também dotado de inteligência e de livre
vontade, pois estas são propriedades essenciais dos seres espirituais.
c) O Primeiro Movente imóvel é eterno, ou seja, não teve começo nem terá fim, pois a
temporalidade é a medida do movimento.
d) O Primeiro Motor imóvel é todo-poderoso, pois é princípio do movimento do universo inteiro;
por conseguinte, por seu poder está presente a tudo aquilo que ele move ou a todo o universo.
Lição 3: Segunda Via - a partir da causalidade
A segunda via parte do fato de que existem múltiplas causas neste mundo, concaternadas entre si
numa linha de dependência e subordinação: a fruta de uma árvore, por exemplo, supõe a árvore, a
árvore supõe a fecundidade da terra; esta supõe a ação do sol e da chuva; estes, por sua vez, supõem
outros fatores... Já que é impossível o processo ao infinito, é necessário admitir finalmente uma
primeira causa causante e não causada ou a causa Absoluta, que é Deus:
CAUSANTE
causada... → NÃO CAUSADO,
causada → causante O ABSOLUTO,
causada → causante DEUS
causa causada → causante

À guisa de objeção, há quem diga que a causalidade poderia ser circular: os elementos do
universo seriam entre si causas recíprocas; a matéria se transformaria em energias diversas, para
depois retomar ao seu estado original e assim indefinidamente. Tal era a posição de filósofos gregos,
que não tinham a noção de criação; tal é também de Nietzsche († 1900), que falava do "eterno
retomo".
Respondemos: a prova apresentada é independente de evolução (causalidade) linear ou circular; a
circularidade refere-se à transmissão de energia, mas não explica a fonte dessa energia e da causal
idade respectiva. Restaria explicar a existência do universo concebido como um todo.

Lição 4: Terceira Via - a partir da contingência


O mundo físico é composto de seres contingentes. A realidade que vemos, não era e veio a ser.
Ora, se tudo fosse contingente, não haveria começo do ser, nada existiria - o que é falso. Donde se
conclui: ou Deus, o Ser Absoluto, Necessário, não contingente, existe e é a razão suficiente de todos
os demais seres, que são contingentes..., ou nada existe.
Deus não recebeu o ser (existência). Ele é o ser (existência). Todos os demais receberam o ser
(existência).
O panteísmo levanta uma objeção. Admite, sim, um ser necessário, não, porém, um Deus pessoal
(isto é, inteligente e livre, cheio de amor e bondade); o ser necessário seria o próprio mundo tomado
como conjunto e concebido como um ser único e infinito. Panteísmo vem precisamente de pan (=
tudo) e theós (= Deus) em grego; tudo (o universo) seria a Divindade, substância neutra e poderosa.
Respondemos: o panteísmo é ilógico, pois identifica a Divindade (que, por definição, é perfeita,
absoluta, eterna) com a realidade material (que é imperfeita, contingente e passageira). Com outras
palavras: o todo, que é a soma das partes, não pode ser de natureza diferente das partes. Ora o mundo
é composto de seres contingentes e limitados. Por isso, o mundo também é contingente e imperfeito,
como cada uma de suas partes, não existe por si mesmo. Daí concluir-se que a existência do mundo
só pode ser compreendida se há um ser existente por si mesmo, que é Deus.

Lição 5: Quarta Via - Os graus de perfeição


Em síntese, este argumento procede do fato de que existem perfeições em graus limitados neste
mundo (existem mais amor, menos amor, mais bondade, menos bondade...)
Desta realidade se deduz a existência de um ser ilimitadamente perfeito, que é Deus 4. - Antes de o
explanarmos, proponhamos algumas noções fundamentais.

5.1. Conceitos básicos


a) Uma coisa é perfeita (per facta, acabada) quando nada lhe falta do que convém à sua natureza,
isto é, quando está totalmente atualizada ou em ato. É im perfeita, quando está em potência para

4
Já Platão († 347 a. C. ) propunha tal argumento, quando exortava a alma a amar a beleza, elevando-se da beleza das cores, das formas, do corpo, para
a beleza da alma e das belas ações, para a beleza das ciências... até contemplar a Beleza em si mesma isenta de acréscimo ou diminuição, "bela em tudo,
sempre e em toda parte( "beleza que não reside num ser diferente dela mesma..., mas que existe eternamente e absolutamente por si mesma e em si
mesma; da qual participam todas as outras belezas, sem que o nascimento destas ou a sua destruição lhe traga a menor diminuição ou o menor
acréscimo, nem a modifique em qualquer coisa que seja" (Banquete 211 C).
adquirir ulterior atualização. Donde ato, por si, diz perfeição; potência diz im perfeição, capacidade
de perfeição.
b) Uma perfeição pode ser:
- simples ( pura), quando o seu conceito diz somente perfeição, sem envolver noção de alguma
imperfeição, de modo que em qualquer hipótese é sempre melhor possuir essa perfeição do que não a
possuir; por exemplo, bondade, sabedoria, justiça, vida...
- mista, quando o seu conceito implica alguma imperfeição; por exemplo, racionalidade,
sensibilidade, corporeidade... A racionalidade só chega à verdade mediante silogismo, ou seja, de
modo lento e sujeito a erros; melhor seria a intuição direta.

5.2. Explanação
a) Existem nos seres deste mundo perfeições simples diversamente limitadas: mais amor, menos
amor,... mais bondade, menos bondade...
b) Ora uma perfeição simples não tem em sua essência a razão suficiente de alguma limitação. Ela
não implica nenhuma imperfeição ou nenhuma falta dessa mesma perfeição. Assim na essência da
justiça, da bondade, da beleza..., enquanto tais, não está contida alguma negação de justiça, bondade,
beleza...
Se portanto alguma perfeição simples existe em grau limitado, ela não subsiste por si mesma e em
si mesma, mas é causada por outrem e recebida numa potência que dela participa segundo a própria
capacidade, e não mais; João é sábio limitadamente, porque não é a própria sabedoria subsistente,
mas dela tem uma participação proporcionada à sua capacidade, isto é, à sua potência de saber, que
passa progressivamente ao ato.
Fica, pois, evidente que uma perfeição simples limitada é necessariamente uma perfeição
participada, recebida num ser como causada por outro.
c) Sendo real a existência de perfeições simples limitadas, real também deve ser a existência da
causa. Tal causa é a própria perfeição existente por si em sua plenitude ou em grau infinito: a
Bondade mesma, a Justiça mesma, o Amor mesmo...
d) Ocorre, porém, que perfeições simples subsistentes de modo ilimitado, implicam-se umas as
outras num único ser infinitamente perfeito, que é Deus.
De fato, qualquer perfeição infinita inclui na sua essência a própria existência. Esta existência
infinita inclui em si todas as modalidades de existência; por identidade, ela é todos os modos de
existência: é a Bondade, a Justiça, o Amor...
Por isso no ser infinitamente perfeito as várias perfeições não constituem realidades distintas;
cada perfeição significa explicitamente aquela perfeição e implicitamente bondade, justiça, amor,
verdade... Nós as distinguimos por causa da limitação da nossa inteligência, incapaz de exprimi-las
todas num conceito único, que deveria ser infinito.
Em conclusão: a Quarta Via nos leva ao conhecimento de Deus como Ato Puro, Ser infinitamente
perfeito, Existência mesma subsistente5. Ora tal é o constitutivo mais íntimo da natureza divina, a sua
essência metafísica, da qual, como de sua raiz, segundo o nosso modo de entender, se derivam todos
os atributos de Deus. Esse Ser Supremo, na Quarta Via, aparece como:
- causa exemplar, que todos os seres imitam pelo fato de participarem limitadamente de suas
perfeições;
- causa final, para a qual todos tendem;
- causa eficiente, da qual todos os seres recebem a existência participada.

PERGUNTAS
1) Que são provas metafísicas e provas morais da existência de Deus?
2) Qual a estrutura geral das provas metafísicas?
3) Exponha a primeira via de Santo Tomas.

5
Na verdade, o finito não se explica senão pelo Infinito; o imperfeito não se explica senão pelo Perfeito: o múltiplo não se explica senão pelo Um; o
composto não se explica senão pelo Simples; o ato mesclado com potência não se explica senão pelo Ato Puro; o que muda, só se explica pelo
Imutável; o contingente só se explica pelo Necessário.
4) Que predicados tem o primeiro Movente imóvel?
5) Que é Panteísmo? É aceitável aos olhos da razão?
6) Que é perfeição simples?... mista?
7) Exponha a Quarta Via de S. Tomas.

MÓDULO 13: PROVAS DA EXISTÊNCIA DE DEUS (II)


Examinemos neste Módulo a quinta via de S. Tomás, que perfaz os argumentos metafísicos.
Lição 1: Quinta Via - ordem e finalidade no universo
Tal argumento é também chamado finalista, porque parte da atividade des seres que agem para um
fim, em oposição à atividade casual. É outrossim dito "a prova cosmológica" (de cosmos = ordem,
beleza, universo ordenado). Eis como procede:
a) Quem considera o universo, não pode deixar de nele verificar ordem estupenda de corpos
sabiamente coordenados dentro de proporções "astronômicas", ou seja, que escapam às cifras com
que o homem habitualmente lida na terra.
O "microcosmos" ou o mundo do átomo reproduz simetricamente a estrutura do "macrocosmos"
ou, mais precisamente, do sistema solar; as minúsculas dimensões e as enormes velocidades dos
corpúsculos que giram dentro de um átomo atingem por sua vez cifras astronômicas.
No mundo dos viventes, a harmonia dos elementos que constituem um vegetal ou um animal
causa surpresa, dada a complexidade das funções concatenadas em vista da conservação e da defesa
da vida. Basta recordar a estrutura de um olho, de um ouvido. Tenha-se em vista outrossim que,
quando se extrai um rim de um organismo doentio, o outro logo se desenvolve além das proporções
necessárias ao metabolismo normal. Por que isto? - Porque a natureza parece querer possuir uma
reserva, "prevendo" o caso eventual de se tornar necessário o trabalho equivalente ao de dois rins.
Tais exemplos se poderiam multiplicar.
b) Tão maravilhosa ordem, tão segura tendência a um fim supõem exista uma inteligência que as
tenha concebido e produzido.
Ordem significa adaptação de diversos elementos entre si em vista de certa finalidade a ser obtida.
Ora a adaptação supõe a intuição de um efeito ainda não existente na realidade concreta, mas
existente idealmente, ou seja, num intelecto, de modo espiritualizado, superior ao modo corpóreo,
sensível. Ordem supõe a intuição da natureza íntima ou da essência de cada um dos seres que estão
para ser adaptados; supõe o conhecimento daquilo que é perene e latente sob os fenômenos sensíveis
e variáveis que cada corpo dá a ver. Somente quem percebe a estrutura íntima dos seres, sabe utilizá-
los como meios para obter determinado efeito.
Pois bem, um conhecimento tal é característico de um espírito ou de um ser dotado de inteligência
(inteligência e espírito se evocam mutuamente). Só a inteligência é capaz de comparar e apreender as
qualidades que podem relacionar ou ligar elementos aparentemente desconexos entre si.
Quem realiza a análise física e química de um relógio, parece explicar perfeitamente as
propriedades de cada uma das suas peças: a resistência dos metais, a força das molas, o processo das
alavancas, etc. Contudo esse estudioso não explica a escolha de tais peças, nem a sua associação em
um maquinismo apto à contagem do tempo. A razão de ser de tal associação não é indicada pela
análise das peças do relógio; não se acha latente em nenhuma de suas molas; nenhuma, por sua
natureza, explica por que está assim correlacionada com as demais tal razão de ser está, sim, contida
fora do relógio, num ser real existente; foi este que por sua inteligência concebeu e realizou a
combinação de elementos necessária ao fim preconcebido de marcar o tempo.
c) O Ser Inteligente que, por via destes raciocínios, se chega a descobrir, há de ser absoluto,
ilimitado, incriado, pois a Ele se deve não apenas o ato de dispor em ordem alguns ou muitos seres
que Ele concebe em sua mente (deixando de parte outros seres possíveis), mas igualmente o de
conceber o plano do universo inteiro e de cada um de seus componentes.
Essa causa total da ordem natural só pode ser o Autor dessas essências, Aquele que as tirou do
nada e as criou. Por conseguinte, a Inteligência Ordenadora é também a Inteligência Criadora. Com
outras palavras: a Inteligência Ordenadora, para explicar totalmente a ordem (= ser causa total da
ordem), deve necessariamente ser subsistente por si mesma (não depende de outrem), infinitamente
perfeita e criadora, atributos estes que convêm unicamente ao ser que chamamos Deus.
Assim a ordem do universo é a grande janela aberta sobre o além, pela qual vemos passar a
sombra de Deus: "Deus é o invisível evidente" (Victor Hugo). - A quem lhe pedia uma prova da
existência de Deus, Nevhon († 1704) indicou o firmamento e disse uma palavra: "Vede!"
Lição 2: Objeções
Levantam-se algumas objeções contra a Quinta Via.

2.1. Desordens e anomalias no mundo


No universo apontam-se muitas imperfeições e males, que parecem depor contra a apregoada
ordem do mundo.
- A propósito observamos:
Não se trata, no argumento, de saber se o mundo é ou não o mais perfeito possível. Deus podia ter
feito um mundo que nos pareceria melhor: o homem teria asas, quatro olhos, etc.; mas não o quis,
porque criou livremente; escolheu um entre os muitos mundos possíveis. De resto, a noção de "o
melhor mundo possível" é ilógica; não pode haver um mundo bom no grau superlativo, isto é, em tal
grau que não se lhe possa acrescentar mais bondade, pois o mundo é um conjunto de criaturas
limitadamente boas, às quais sempre se pode atribuir mais bondade; uma série de Perfeições finitas
nunca realizará a Perfeição Infinita; pode ser uma série quilométrica, sim, mas sempre finita. No
mundo atual as desordens se devem não ao Criador, mas às criaturas, como passamos a demonstrar a
seguir.

2.2. O mal no mundo


1. Notemos, em primeiro lugar, que o mal não é uma realidade positiva, mas uma carência; é a
ausência de um bem devido. Sim; há dois tipos de ausência: a de um bem que não é devido (a falta
de olhos na pedra), e a de um bem devido (a falta de olhos no homem); a primeira não é um mal, ao
passo que a segunda o é.
Da mesma forma, as trevas não são algo de positivo, mas são a ausência de luz.
2. Por conseguinte, o puro mal não existe; o mal supõe sempre o bem como suporte; é uma
carência que sobrevém ao bem. Comparemos ente si o bombeiro (extintor de incêndios) e o ladrão:
ambos devem ser corajosos, hábeis, sagazes, inteligentes... ; a diferença, porém, está em que no
bombeiro tais valores são aplicados a uma finalidade reta (salvar vidas), ao passo que no ladrão
carecem da orientação para a reta finalidade.
3. Existem dois tipos de mal:
- o mal físico: carência na linha material (cegueira, doença, miséria...);
- o mal moral: carência da reta ordem na linha do comportamento livre do homem (pecado,
vícios...)
4. O mal não tem causa direta. Ele é indiretamente causado por um agente imperfeito, que seja
capaz de falhar em sua atividade. Tal agente só pode ser a criatura; nunca poderá ser Deus; Este, por
definição, é perfeito.
No plano físico, as criaturas são responsáveis pelas deficiências genéticas, pelos terremotos, pelas
tempestades, pelos incêndios... Estes decorrem do exercício das leis naturais; têm sua explicação na
própria natureza das criaturas.
No plano moral, os males (pecados, crimes, guerras...) decorrem do abuso da liberdade humana.
5. Deus não quer impedir o mal decorrente das limitações das criaturas; para tanto, Ele teria que
intervir artificialmente e a todo momento, para coibir o exercício das leis naturais ou da liberdade
humana; teríamos então um mundo de marionetes. Por conseguinte, Deus permite o mal; Ele não o
quer, mas deixa que as criaturas o cometam. Todavia Ele nunca o permitiria se não tivesse recursos
para tirar do mal bens ainda maiores. É S. Agostinho que afirma: "Deus julgou melhor tirar do mal o
bem do que não permitir a existência de mal nenhum" (Enchiridion XXVIII).
Assim o primeiro pecado tornou-se ocasião para que nos fosse dado o Salvador Jesus Cristo, com
uma riqueza de graças nunca antes possuída: "Ó feliz culpa, que nos mereceu tal e tão grande
Redentor!" (Liturgia da vigília de Páscoa). Quanto aos demais casos de tribulação, não nos é sempre
possível assinalar os bens que Deus tinha em vista ao permitir o mal; como quer que seja, cremos que
a Providência Divina não falha, mesmo quando deixa que uma mãe pereça sem ter educado seus
filhos ou que uma criança inocente seja atormentada pela dor. - O fato é que já os antigos pagãos
reconheciam o valor positivo do sofrimento ao dizerem “pathos-mathos; o sofrimento é escola".

3.3. O acaso
O acaso é o cruzamento contingente, isto é, não necessário, nem previsto, de duas causas
independentes uma da outra, das quais cada uma age em vista de um fim determinado. Assim, por
exemplo, dois amigos se encontram por acaso numa cidade para onde cada um, sem saber do outro,
fora a negócios. Vê-se, pois, que o acaso supõe sempre duas ou mais causas que agem com ordem e
finalidade. Os fenômenos ditos casuais só são casuais para quem ignora as causas que os produziram;
por isto o acaso propriamente não existe como sujeito real.
De resto, a reflexão e o bom senso recusam a hipótese de que este mundo tenha sido produzido
por acaso.
Com efeito, imagine-se que alguém coloque em sua sacola os tipos de imprensa que se empregam
na composição de um jornal; agite o todo na esperança de que tais tipos se disporão entre si de modo
a dar o texto da edição do jornal do dia seguinte. Tal esperança, embora não fosse absurda por
completo, seria tão improvável que deveria ser tida como irrisória.
Considere-se a vida. A proteína é o elemento básico de todos os organismos vivos. Para facilitar
os cálculos, admita-se que uma molécula de proteína tenha 2.000 átomos, de duas espécies apenas,
com peso molecular 20.000 e 0,9 de assimetria (a realidade é muito mais complexa). A probabilidade
de se formar por acaso uma molécula de proteína seria de 2,02x10-321, ou seja, um número decimal
com 320 zeros depois da vírgula (0,000...202). Supondo-se um total de 500 trilhões de lances por
segundo num volume de matéria igual ao do globo terrestre, o tempo necessário para se obter uma
molécula de proteína, segundo o cálculo das probabilidades, seria de 10243 bilhões de anos. Ora a
idade da terra, a partir do seu resfriamento, não passa de 2x10 9 anos, ou seja, dois bilhões de anos
apenas.
Admita-se, porém, que a molécula de proteína foi a que se formou "por acaso" em primeiro lugar,
sem esperar tantos bilhões de séculos. Admita-se até que a mesma combinação se efetuou duas vezes
consecutivas. Crer, porém, que se tenha dado ainda outra vez equivale a crer num milagre. Mais:
admitir que em tempo extremamente curto o mesmo fenômeno se tenha dado bilhões de vezes
equivale a negar a aplicação do cálculo das probabilidades a esse problema.
É preciso observar outrossim que, para formar uma célula viva, são necessários milhares de
moléculas. Num ser vivo há bilhões de células; e a paleontologia ensina que bilhões de seres vivos
apareceram sobre a terra num período de tempo extremamente curto. É impossível, portanto apelar
para o cálculo das probabilidades a fim de explicar pelo puro acaso a existência da vida sobre a terra.
Por isso, dizia Voltaire († 1778), não sem sarcasmo: "Encham um saco de pó; lancem-no numa
pia. Agitem com força durante muito tempo, e hão de ver sair lá de dentro quadros, violinos, jarras
de flores e coelhos!"
Vítor Hugo († 1885), o grande poeta francês, definia o acaso como "um prato feito pelos
espertalhões para que o comam os tolos".
Muito diverso é o depoimento de Einstein, que servirá de conclusão às considerações destas
páginas:
"Uma profunda fé na racionalidade do edifício do mundo e um ardente desejo de aprender o
reflexo da razão revelada neste mundo deviam animar Keppler e Newton no seu longo e solitário
estudo... Somente quem consagrou a sua vida a objetivos análogos, pode ter noção clara do que
sustentaram esses homens; eles tiveram força para, entre mil insucessos, permanecer com os olhos
fixos no objetivo que haviam escolhido... Um contemporâneo disse, e não sem razão, que, em nossa
época tão Imbuída de materialismo, os verdadeiros sábios são apenas aqueles que são profundamente
religiosos... O sábio é penetrado do senso de causalidade dos acontecimentos... A sua religiosidade
consiste na atônita surpresa diante da harmonia das leis da natureza, na qual aparece uma razão tão
superior que, em comparação com ela, as mais engenhosas formas do pensamento humano, com as
suas diretrizes, parecem apenas um pálido reflexo... Não há dúvida, tal sentimento é bastante
semelhante ao que, em todos os tempos, animou as produções dos grandes espíritos religiosos"
("Comment je vois le monde". Ed. Flammarion, p. 21).

PERGUNTAS
1) Queira explanar a Quinta Via de S. Tomas.
2) Sustenta-se a Quinta Via diante da presença de tantos males no mundo?
3) Qual seria o melhor mundo possível?
4) O acaso explicaria a ordem no mundo?

MÓDULO 14: PROVAS DA EXISTÊNCIA DE DEUS (III)


Explanadas as provas metafísicas da existência de Deus, voltamo-nos para os argumentos ditos
"morais", ... morais porque têm o comportamento humano como ponto de partida. O pensamento
moderno se interessa muito pelo homem ("o ponto homem", como se tem dito) e seus problemas
concretos. Sendo assim, embora permaneçam plenamente válidas as vias metafísicas que
demonstram a existência de Deus, dedicaremos este Módulo à exposição do fenômeno humano
enquanto é base para se reconhecer a existência de Deus.
Consideraremos: 1) as grandes aspirações do ser humano; 2) o senso moral ou a responsabilidade;
3) o testemunho de todos os povos;4) duas objeções; 5) conclusão.

Lição 1: As grandes aspirações do ser humano


1. O homem constitui um grande enigma para si mesmo. É dotado de aspirações fundamentais e
incoercíveis que não encontram adequada resposta na vida presente. Com efeito, todo homem traz
em si o desejo inelutável de felicidade, justiça, verdade, amor...
Ora sabemos quão precária é a felicidade de que alguém possa gozar neste mundo; a exigüidade
das criaturas que nos possam tornar felizes e a certeza de que morreremos, nos impedem de dizer que
encontramos na realidade presente a felicidade a que aspira espontaneamente o nosso ser.
Aos mais belos sucessos se seguem as mais amargas decepções: um diploma, um título de
"doutor" constituem valores, sim, mas, em comparação com nossas aspirações fundamentais, ainda
são muito pouca coisa... Há sempre uma distância entre nossas aspirações e nossas possibilidades,
entre nossas possibilidades e nossas realizações... E, depois de executar - bem ou mal - a sua tarefa, o
homem sabe que entrará na velhice, a qual paralisará as suas atividades. E após a velhice haverá a
queda na grande fossa, em que todo o ser visível do homem é pulverizado. Consciente disto, observa
R. Ikor:
"Alguns Instantes de vida, e depois nada mais, eis o que te Incita a te perguntar com ênfase
singular, diante de cada ato da vida: 'Para que Isto?"'
Pode-se especificar o pensamento de Ikor. À mente de todo homem afloram certas perguntas
espontâneas e inevitáveis: Donde venho? Para onde vou? Qual o sentido desta existência aqui na
terra? Que valor tem o meu semelhante?... a família?
A justiça aqui na terra é frequentemente burlada. A injustiça e a iniquidade se impõem com
facilidade desconcertante. O homem reto e honesto sofre por ser tal, ao passo que os violentos e
indignos prosperam em sua carreira profissional. "O homem é lobo para o homem", como diz o
provérbio latino.
Quanto à verdade, também é notória a dificuldade com que a atingimos; a procura da verdade
exige esforços prolongados, nem sempre compensados. Ademais é, por vezes, árduo distinguir
verdade e erro, tanto no campo das ciências naturais como no setor da filosofia; facilmente o erro é
transmitido sob a forma de sofismas e semiverdades - o que frustra profundamente o ser humano.
No tocante ao amor, o homem é também muitas vezes decepcionado. É-lhe impossível viver sem
amor. Todavia ele dá amor às vezes mesclado de egoísmo, e recebe amor também por vezes
contaminado...
Além do mais, todo homem digno deste nome nutre sempre um Ideal; procura realizar-se e
realizar alguma coisa (um lar, uma profissão, uma obra...) na terra. Verifica, porém, que a
consecução de qualquer nobre meta é penosa e, não raro, frustrada. Ainda em nosso século, Albert
Camus, famoso escritor ateu, lembra o mito de Sísifo como expressão típica da constante insatisfação
ou mesmo decepção que a presente vida impõe ao homem.
Sísifo, na mitologia grega, era rei de Corinto, filho de Eólio e esposo de Meropa. Por um motivo
que os comentadores ignoram, os deuses condenaram Sísifo a fazer rolar uma enorme pedra por
sobre a rampa de uma montanha, até atingir o cume desta. Sísifo, submetendo-se à punição, nunca
conseguia chegar a termo, pois a rocha, impelida para cima, cedo ou tarde se precipitava por efeito
do próprio peso. Comenta Camus:
"Os deuses haviam pensado, com certa razão, que não há castigo mais terrível que o trabalho
inútil e destituído de esperança. Imagine-se todo o esforço de um corpo teso para sustentar a enorme
pedra e fazê-la rolar escarpa acima; e Isto, uma centena de vezes. Imagine-se o rosto franzido, a face
colada contra a pedra ; Sísifo vê a rocha arremessar-se em poucos instantes para este mundo Inferior,
de onde será necessário subir de novo para o cume. Ele desce mais uma vez para a planície" (Camus,
"Le mythe de Sisyphe", p, 161, Idées).
A luta perseverante de Sísifo tem algo de grandioso e heróico, sem dúvida. Segundo Camus e
outros pensadores, ela representa a realidade da vida humana neste mundo, vida que é um continuo
recomeçar em conseqüência de sucessivas frustrações e quedas.
Camus chega a acrescentar que a luta mesma em demanda do píncaro basta para encher um
coração humano; é preciso imaginemos Sísifo feliz... embora saibamos que não atingirá a saciedade.
A Camus não poucos têm respondido que lutar por lutar parece puro desperdício de energia. Mais
ainda: a grandiosidade da luta de Sísifo não deixa de ser marcada pelo absurdo. Sísifo sofre,
renunciando a atingir o único objetivo que possa motivar a luta dolorosa: a posse da felicidade
tranqüila e definitiva. Será necessário que o homem aceite, simplesmente, o seu penar e procure
sufocar em si o desejo incoercível de felicidade?
O homem que hoje trabalha penosamente, nem sempre se reconhecerá (nem aceitará reconhecer-
se) na figura de Sísifo; quem não tem a esperança de adquirir algo mediante os seus esforços, está
destituído da fonte de energias indispensável para pode tentar a luta.
2. As considerações até aqui propostas sugerem a seguinte conclusão: as aspirações inatas que o
homem traz em si, não podem ser frustradas. Se nada houvesse que lhes correspondesse, teriam plena
razão os que, mediante entorpecentes e psicotrópicos, procuram "paraísos artificiais", ou aqueles que
põem fim a si mesmos no suicídio. Diz com acerto Gabriel Marcel: "Se a morte é a realidade última,
todo valor se aniquila no escândalo puro; a realidade está como que ferida em seu coração".
O bom senso, portanto, leva a afirmar que há uma resposta positiva e válida para as grandes
aspirações inatas do ser humano6. Essa resposta, em última análise, é o Bem infinito, o Primeiro
Amor e a Verdade Suprema. E, já que não é possível na vida presente possuirmos plenamente esse
Supremo Valor, existe uma vida póstuma, na qual encontrarão saciedade as mais fundamentais
aspirações do ser humano. Foi o Ser Infinito, Deus, que nos criou, deixando em nós o sinete do
Fabricante (isto é, a sede inelutável do infinito); e é esse Criador quem continuamente exerce sobre
nós o seu atrativo, permitindo que percebamos a exigüidade de tudo que nos cerca (todas as coisas
sensíveis passam, e o homem permanece com insaciável capacidade para usufruir novos e novos
bens).
3. O que acaba de ser dito, pode ser ilustrado pela verificação de certos fenômenos ocorrentes na
natureza. Esta parece excluir a frustração e o absurdo; com efeito,
se tenho olhos, é porque existe a luz para a qual o olho foi feito;
se tenho ouvidos, é porque existem sons e melodias:
se tenho pulmões, existe o ar que lhes corresponde;
se tenho fome e sede, existem os alimentos de que preciso;

6
Note-se bem: não falamos das aspirações que cada homem possa conceber na base de seu temperamento e de sua cultum pessoais, pois tais podem ser
arbitrárias, assemelhando-se por vezes a sonhos utópicos. Trata-se, no contexto acima, dos grandes anelos que todo homem, de qualquer raça ou
cultura, traz em si.
se a mulher tem o senso da maternidade e aspira a ser mãe, existe para ela a maternidade ou o
poder de tornar-se mãe.
Mais ainda:
se as águas do mar sobem por ocasião das marés, tornando-se agitadas e inquietas, sei que essa
agitação não é casual, mas se deve ao atrativo sobre elas exercido pela Lua;
se a agulha magnética se agita dentro da bússola, posso estar certo de que existe um polo Norte
(invisível, sim, mas muito real) que a atrai e só permite que repouse quando devidamente voltada
para o seu Norte.
Assim analogamente, se verifico em mim (anteriormente a qualquer reflexão filosófica ou
religiosa) a sede de certos valores ou mesmo do Infinito, posso estar certo de que tais valores e o
Bem Infinito existem no Além, em correspondência a tais aspirações.
Simone de Beauvoir, imbuída de existencialismo, escreveu muito sabiamente:
"Urna vida, para que seja interessante, deve assemelhar-se a uma ascensão, galga-se um
patamar, e, depois, outro... ; cada patamar não existe senão em vista do patamar seguinte... Se essa
subida, chegando ao auge, retrocede, ela se torna absurda desde o seu ponto de partida"("Lesang
des autres").
Esta frase de Simone de Beauvoir, por muito válida que seja, parece deixar lugar a uma réplica:
Com efeito. Talvez observe alguém: Por que não dizer corajosamente que a vida humana e a
passagem do homem sobre a terra são algo de absurdo? Desgraçado o indivíduo que aspira
utopicamente a melhor vida! Não se diga, pois, que não podem ficar frustradas as aspirações mais
fundamentais da alma humana.
A esta objeção deve-se responder: o universo se apresenta marcado por nota de profunda
harmonia. É o que declaram os estudiosos de qualquer dos reinos naturais: mineral, vegetal e animal
(irracional). Einstein experimentava admiração extática ao considerar a ordem do infinitamente
grande. Aliás, as ciências naturais não seriam possíveis se o universo e a natureza não fossem
inteligíveis ou não fossem o produto de uma inteligência Suprema que concebeu cada uma das
criaturas (grandes e pequenas) e seu maravilhoso inter-relacionamento. Pergunta-se, pois: somente o
homem e sua existência sobre a terra seriam algo de absurdo ou destituído de explicação e razão de
ser?
Vê-se que o absurdo consistiria, antes, em se admitir que somente o setor humano seja marcado
pela nota do absurdo no conjunto das criaturas; parece desarrazoado que, colocado no todo
harmonioso do universo, o homem, e somente o homem, não se beneficie da ordem que se exprime
no conjunto e em cada um dos seus outros setores. Verdade é que, quando se trata do homem, entra
em jogo um fato singular: a liberdade de arbítrio.
Ora a liberdade sempre implica Sim e Não, capacidade tanto de afirmar e confirmar como de
destruir a ordem existente. Compreende-se então que o homem se possa considerar por vezes vítima
de absurdo; o absurdo, no caso, não é originário nem é inerente à natureza, mas deve-se
exclusivamente ao uso desregrado ou ao abuso da liberdade de arbítrio. Vê-se, pois, que as desordens
ou frustrações que o homem possa experimentar nesse mundo, não depõem contra a ordem do
conjunto concebida pela Primeira inteligência. Entre parênteses, pode-se acrescentar que, pelo fato
de existir a inteligência Primeira ou Infinita, os males ou absurdos devidos ao homem não são
irremediáveis, mas poderão ser sempre superados ou redimidos.
Em conclusão: certas interrogações e aspirações espontâneas em todo homem exigem resposta.
Ora, já que tal resposta não é dada na vida presente por alguma das finitas criaturas que nos cercam,
há uma vida póstuma, em que encontramos, sem disputa nem contestação, o Criador ou o Bem
Infinito, resposta aos mais genuínos anseios do ser humano7.
Outra faceta do homem nos interessa agora:
Lição 2: O senso moral ou a responsabilidade
Em todo ser humano, anteriormente a qualquer profissão filosófica ou religiosa, existe o senso
moral...
E que é esse senso moral?
7
Já na vida presente o homem atinge o seu Criador: atinge-O, porém, como peregrino posto em demanda de uma posse mais plena e definitiva.
- Em termos gerais, pode-se dizer que é a persuasão, inata em todo homem, de que não é lícito
tomar qualquer atitude em qualquer situação ou encruzilhada da vida. O homem tem que se
comportar de acordo com uma norma fundamental que ele ouve em seu íntimo: "Pratica o bem, evita
o mal". Seguindo tal princípio, a pessoa tem a consciência de haver cumprido o seu dever- o que é
fonte de alegria e paz. Ao invés, quem transgride tal imperativo, praticando o que lhe o parece ser
mal, é vítima de uma censura interior; desta censura o homem, muitas vezes, deseja desembaraçar-se,
sem, porém, o conseguir.
Qual a base do sentimento moral assim concebido? Procuremos a resposta por via indutiva, ou
seja, analisando um caso concreto e típico:8
"Acho-me só em um consultório de médico. No grande fichário aí colocado, sei que se encontram
os dados pessoais - às vezes 'vergonhosos'- dos pacientes em tratamento. Estou consciente de que
essas fichas de doentes estão protegidas pelo segredo profissional, a tal ponto que não é lícito
revelar o seu conteúdo nem em caso de perquirição judiciária ou de julgamento em tribunal. Por
conseguinte, bem sei que me é absolutamente vedado tomar conhecimento do que diz o fichário do
médico.
Acontece, porém, que o tratamento aplicado ao paciente N. N. despertou a minha curiosidade.
Parece-me ter adivinhado o mal de que sofre. Eu quisera verificar o acerto de minhas conjeturas...
Apodero-mo então da ficha respectiva. Desdobro-a em toda a sua extensão. Leio-a ...
Verifico que meu diagnóstico fora exato - o que para mim foi um triunfo. Todavia esse
contentamento Intelectual é imediatamente acompanhado de um mal-estar profundo o subitâneo em
mim. Cometi grave indiscrição. Sinto-me julgado interiormente: tornei-me culpado de uma injustiça
para com o doente e de um abuso de confiança em relação ao médico.
Este veredicto impõe-se ao meu espírito de maneira categórica, absoluta.
Pergunto-me então: porque esse julgamento sobre mim mesmo tem tanta pujança? E porque a
consequente perturbação é tão persistente o dolorosa?
Tentando responder, faço a seguinte reflexão: Tenho um nariz deformado e, por isto, não sou um
tipo bonito. Isto me entristece não pouco, principalmente porque me dificulta encontrar uma
colocação na sociedade. Mas sei que não sou responsável por essa deformação. E, ainda que tal
deformidade resultasse de um acidente motivado por uma imprudência minha, eu me sentiria
responsável no caso, sim, mas não com a profundidade e a vergonha que a grave indiscrição suscita
em mim. O defeito no rosto atinge apenas o meu corpo e a minha carne; é uma tara física, não
propriamente moral. E eu bem me posso libertar da tristeza ocasionada por minha deformidade,
elevando-me no plano moral, ou seja, impondo-me em tudo como cidadão honesto e digno. Ao
contrário, a minha culpa moral atinge o que há de mais íntimo em minha personalidade: sou
responsável em minha consciência; é no mais profundo do meu ser que experimento a minha
culpabilidade.
Dizia que me sinto responsável! Mas diante de quem? Não perante as paredes, nem perante o
gato, que me contemplava solenemente, quando eu percorria o fichário do médico. Só posso ser
responsável diante de uma pessoa. Então dirá alguém:... diante da sociedade. Ou, mais
precisamente, diante das pessoas com as quais convivo. Elas têm confiança em mim; tratam-me
como um tipo leal o correto. Ora eu já não sou o que elas pensam. Sinto que há um desnível entre o
que pareço ser e o que sou realmente. isto me incomoda. Preciso de ser autêntico, isto é, idêntico à
imagem que a sociedade tem de mim.
Sem dúvida! Mas porque é que outro homem - ou o conjunto dos outros homens - tem o poder de
me constranger a ser autêntico, a ser aquilo que eu pareço ser? - Talvez porque a sociedade está
baseada na confiança mútua e na preocupação de não se fazer a outrem o que não se quer para si
mesmo? Sim; não há dúvida. Mas não basta isto. Não poderia eu simplesmente evitar as más
impressões e os escândalos do meu comportamento externo? Bastaria, para tanto, que eu me
dissimulasse sob a hipocrisia. E, no caso preciso em que me vejo, não bastaria que, após ter
devassado indiscretamente o fichário do médico, eu guardasse com zelo o segredo violado?

8
Para que a leitura seja frutuosa, é de recomendar que o leitor procure acompanhar e viver intimamente as peripécias e interrogações do monólogo que
se segue.
Talvez pudesse, sim, salvar desse modo hipócrita as aparências de honestidade. Mas reconheço
que isto não me satisfaria. Ainda que os homens me aprovassem ou me deixassem passar impune, eu
ouviria dentro de mim uma voz de censura severa. Não seria a voz dos homens, nem seria uma voz
premeditada por mim, mas seria uma voz anterior a qualquer deliberação minha: seria a chamada
'voz da consciência"'.
(Trecho adaptado do livro de J. Javaux, "Prouver Dieu?", pp. 60-62).
Este depoimento - monólogo, vivo e impressionante como é, leva-nos a concluir que dentro de
nós existe uma regra de nossos atos, congênita, que, em última análise, é incutida por Deus. Sem
Deus é inútil justificar a Ética com seus imperativos, nem se vê por que observar normas morais;
estas se tornam convenções artificiais e discutíveis. É o que atesta com muita sabedoria o filósofo
ateu existencialista Jean-Paul Sartre:
"O existencialismo é muito oposto a um certo tipo de moral leiga que deseja suprimir Deus
com o mínimo de inconvenientes possível.
Quando em 1880 alguns professores franceses tentaram constituir uma moral leiga,
disseram mais ou menos o seguinte: 'Deus é uma hipótese inútil o pesada; suprimamo-la; mas é
necessário, para que haja uma Moral, uma sociedade, um mundo policiado,... é necessário que
certos valores sejam levados a sério e considerados como existentes de maneira absoluta; faz-se
mister seja obrigatório em absoluto que sejamos honestos, não mintamos, não espanquemos
nossas esposas, tenhamos filhos, etc., etc. ... Por conseguinte, vamos fazer um trabalhinho que
permitirá mostrar que esses valores existem apesar de tudo, inscritos num céu inteligível,
embora Deus não exista'.
Com outras palavras - e esta é, creio, a tendência de tudo que em França se chama
radicalismo - nada será mudado, se Deus não existir; encontraremos as mesmas normas de
honestidade, de progresso, de humanismo, e teremos feito de Deus uma hipótese ultrapassada,
que morrerá tranqüilamente e por si. Ao contrário, o existencialismo julga que é muito
incômodo que Deus não exista, pois com Ele desaparece toda possibilidade de encontrar
valores num céu inteligível. Não pode haver nenhum bem absoluto, já que não há consciência
infinita e perfeita para o conceber; em parte alguma está escrito que o bem existe, que é preciso
ser honesto, que é necessário não mentir, pois então precisamente nos colocamos num plano em
que há somente homens. Dostoievsky escreveu: 'Se Deus não existisse, tudo seria permitido'. É
este o ponto de partida do existencialismo"("L’existencialisme est-il un humanisme?" (1946,
pp. 34-36).
Em outros termos: ou aceitamos o binômio "Ética-Deus" ou simplesmente negamos a Ética.
Lição 3: Duas dificuldades
Dizíamos que, observando-se a si mesmo, com suas lacunas e aspirações, o homem pode chegar a
Deus. Pergunta-se, porém:
1. Será que esse Deus assim concebido é algo de real e objetivo? Não será simplesmente a
projeção da nossa angústia, ou uma espécie de ficção que nos dá segurança na miséria da nossa
condição humana?
- Em resposta, note-se que a procura de segurança marca, sem dúvida, o comportamento do
homem. Todavia este fato não impede, nem exclui, exista realmente aquele que é capaz de nos dar
segurança. Esta afirmação pode ser ilustrada se voltamos a nossa atenção para um fato de ordem
mais concreta: imaginemos uma criança que, angustiada, procura sua mãezinha em meio à multidão;
essa angústia, por certo, não "cria" mãezinha, mas, ao contrário, é derivada do fato de que mãezinha
existe. Assim, o homem na terra procura o Bem Infinito; nessa sua procura ele não "cria" nem projeta
ficticiamente o Bem Infinito, mas, ao contrário, ele está sendo atraído pelo Infinito, que realmente
existe. Note-se que o desejo do Bem Infinito não é algo de particular ou próprio de algumas criaturas
apenas, mas é comum a todos os homens; na natureza humana há uma relação intrínseca e indelével
ao Infinito.
A prova de que Deus não é simplesmente uma projeção de nosso mundo subjetivo, é
principalmente lúcida no plano da moralidade. Neste, Deus aparece como realmente "Outro", como
alguém que irrompe em nossa vida e a quem às vezes o homem tenta resistir. A propósito vêm as
palavras do Cardeal Daniélou:
'"Faço a experiência de que Ele (Deus) existe, porque me esbarro contra Ele. Se eu O tivesse
fabricado, tê-to-ia, por certo, fabricado de maneira bem diversa. Mas vejo-mo obrigado a me adaptar
a Ele... As coisas são assim, e é preciso que eu as aceite. Assim tomo consciência de que estou na
presença de algo de real, e não de uma criação da minha imaginação ou da minha sensibilidade"
("Scandaleuse Vérité", p. 93).
Muito válido é também o depoimento de Paul Claudel, o grande poeta convertido ao Cristianismo;
"Essa minha resistência (a Deus) durou quatro anos. Ouso dizer que me defendi
heroicamente e que a luta foi leal e completa. Nada omiti. Usei de todos os recursos e tive de
abandonar, uma após outra, as armas que de nada serviam. Essa foi a grande crise da minha
existência, a agonia do pensamento, a respeito da qual Artur Rimbaud escreveu: 'D combate
espiritual é tão brutal quanto a batalha entre homens. Dura noite!"'("Ma conversion ").
Vê-se, pois, que seria gratuito afirmar que Deus não é senão a vã expressão da sofreguidão do
homem, expressão à qual nada corresponde de objetivo. Seja lícito lembrar: não há agulha magnética
agitada sem polo Norte; nem há maré cheia e encapelada sem Lua que atraia as águas.
2. Objeta-se também: os homens têm sede de justiça e felicidade perfeitas. – Podem estar seguros
de que estas ocorrerão em tempos futuros. Todavia não se diga que cada indivíduo ou eu e tu
encontraremos a resposta às nossas aspirações . É somente ao gênero humano como tal ou às
gerações vindouras que tocará viver a ordem perfeita sobre a terra.
- Tal é a mensagem do marxismo. Este professa otimismo em relação ao porvir da humanidade.
Julga, porém, que o indivíduo que hoje luta, poderá deixar de colher o fruto de suas fadigas. Desta
forma, o marxismo reduz o homem à condição de carvão a ser lançado na grande locomotiva da
história e da humanidade. Tal solução deixa naturalmente insatisfeita a sã razão. Esta exige que cada
personalidade seja devidamente levada em- conta. O gênero humano não é simplesmente o "homem
coletivo", mas é uma grande; família, que consta necessariamente de cada um de seus membros e de
todos eles.
Lição 4: Conclusão
1. Refletindo sobre si mesmo, o homem entrevê um mistério que, em última análise, não é senão a
marca de Deus, o Bem Infinito. Em conseqüência, afirmar que Deus existe vem a ser atitude
altamente razoável e sábia. Dizia o filósofo Pascal († 1662): "O último passo da razão consiste em
reconhecer que há uma infinidade de coisas que a transcendem A razão seria extremamente débil, se
ela não chegasse a reconhecer isso". Do seu modo Shakespeare insinua o mesmo, quando atribui a
um personagem do seu "Hamlet" a seguinte afirmação: "Há muita coisa no céu e na terra, Horácio,
que a tua filosofia está longe de imaginar'(I 5).
Em outras palavras: a razão humana se vê diante de um dilema:
- ou adere ao mistério, reconhecendo Deus e a vida póstuma,
- ou cai no absurdo, caso afirme que a vida presente e o homem são interrogações sem resposta
ou sem explicação.
É necessário, porém, que os homens de fé, tendo descoberto Deus através de si mesmos, evitem
fazer caricaturas de Deus, ou seja, evitem conceber Deus à semelhança, por exemplo, de um Grande
Banqueiro ou de um Papai Bonachão. Tais conceitos imperfeitos ou antropomórficos redundariam
em contra testemunho ou dificultariam a muitos homens a descoberta da verdadeira face de Deus.

PERGUNTAS
1) Que entendemos por "provas morais" da existência de Deus ?
2) Que podemos deduzir das grandes aspirações do ser humano?
3) Após ler atentamente o depoimento do estudante de Medicina, que conclusões você tira ?
4) Deus seria uma ficção da nossa mente ?
5) "Ou o mistério ou o absurdo... " Queira explicar este dilema.

MÓDULO 15: DEUS SE REVELA


Uma vez provada a existência de Deus, compete-nos estudar os modos como Deus se manifesta
ou revela ao homem. Ele não pode deixar de ter um diálogo com a criatura racional.
Lição 1: Revelação - que é?
A palavra "revelar" significa "tirar o velum (véu)", "descobrir. Ora Deus se revela de duas
maneiras: a natural e a sobrenatural.

1.1. Revelação natural


É a que se faz mediante a natureza ou a obra da criação. O Criador colocou sua marca ou seu sinal
na criatura. - A revelação natural interpela todo ser humano, de qualquer época ou cultura, de modo
que ninguém fica alheio a Deus que se assinala ou revela.
Ela se exerce em duas modalidades: 1) o universo fala de Deus; 2) a consciência ética fala em
nome de Deus.

1.1.1. O cosmos atesta


Como demonstramos nos Módulos anteriores, o universo (makrokosmos e mikrokosmos) atesta a
existência do Criador e de alguns predicados seus. Por seu raciocínio o homem é capaz de passar do
visível ao Invisível, reconhecendo o Soberano Senhor. S. Paulo o nota em Rm 1,18-22; At 14,16;
17,24s.

1.1.2. A consciência ética fala...


Todo ser humano ouve em seu íntimo uma voz que lhe diz: "Pratica o bem; evita o mal". A
consciência que assim fala, se é bem forma da e cândida, vem a ser a voz de Deus, que chama o
homem a um comportamento reto e digno.
A revelação natural de Deus fundamenta a religião natural, de que vimos alguns espécimens em
nossos Módulos anteriores. Verdade é que essas expressões religiosas naturais do homem nem
sempre são corretas: o politeísmo e o Panteísmo são desvios ilógicos, como também a magia, o
fetichismo, a imolação de crianças... Dir-se-ia que a razão natural, por si só, dificilmente chega a
conceber um sistema perfeito de religião. A grandeza de Deus é tal que o homem só imperfeitamente
a concebe quando entregue ao próprio raciocínio.
Além das modalidades da revelação natural, deve-se registrar a

1.2. Revelação Sobrenatural


Antes do mais, impõe-se aqui a pergunta: que é sobrenatural?
Sobrenatural não significa maravilhoso, portentoso, mas algo que excede as exigências de
qualquer criatura. Faz-se necessário explicar o que sejam "as exigências de alguma criatura".
Numa resposta breve, diremos que são o direito, de alguma criatura, de postular tal ou tal valor.
Assim a criatura que possui olhos, ouvidos, pulmões tem o direito natural de postular (exigir) luz,
som e ar. O sobrenatural não pode ser assim solicitado, pois, numa palavra, é a visão de Deus face-a-
face; só Deus é, por si mesmo, capaz de se conhecer cabalmente. Todavia Ele quer dar à criatura
humana uma participação nessa contemplação imediata da Beleza Infinita. Ora essa participação com
tudo o que a ela se refere ou a ela conduz, é chamada sobrenatural ou a ordem sobrenatural. Portanto
a revelação que Deus faça de si mesmo e de seu plano de salvação, é sobrenatural.
Não se pode provar racionalmente que Deus falou em plano sobrenatural. Justamente o primeiro
artigo da fé católica consiste em professar que Deus se quis revelar mediante os Patriarcas e Profetas
do Antigo Testamento e, em grau máximo, por Jesus Cristo. A razão pode mostrar as credenciais da
Revelação sobrenatural ou as razões para que alguém creia na revelação cristã - tarefa que será
executada na Parte III deste Curso.
O homem, sendo uma criatura intelectual, traz em si a possibilidade de ver Deus face-a-face. Não
o pode verde maneira compreensiva e exaustiva, mas sim de modo dito "apreensivo"; ele vê o
Infinito finitamente, sem fastio nem tédio, não na vida presente, mas na futura ou no além.
Essa revelação sobrenatural se faz pela Palavra. .. - Palavra que é inicialmente oral e aos poucos
vai sendo escrita em parte, ficando sempre algo da Revelação na transmissão (ou tradição) oral.
A Teologia Fundamental adota uma posição criteriológica bem definida, professando a
capacidade, de razão humana, de atingir a Verdade, tanto a verdade natural quanto a sobrenatural.
Esta posição a caracteriza frente a sistemas que negam, total ou parcialmente, o acume da
inteligência humana.
O Papa João Paulo II, em sua encíclica "Fé e Razão" (14 / 09 / 98), enfatiza o papel do intelecto
humano na apreensão da verdade, seja esta filosófica, seja sobrenatural:
67. A teologia fundamental, pelo seu próprio caráter de disciplina que tem por função dar razão da
fé (cf. I Pd 3,15), deverá procurar justificar e explicitar a relação entre a fé e a reflexão filosófica. Já
o Concílio Vaticano I, reafirmando o ensinamento paulino (cf. Rm 1, 19-20), chamara a atenção para
o fato de existirem verdades que se podem conhecer de modo natural e, conseqüentemente,
filosófico. O seu conhecimento constitui um pressuposto necessário para acolher a revelação de
Deus. Quando a Teologia Fundamental estuda a Revelação e a sua credibilidade com o respectivo ato
de fé, deverá mostrar como emergem, à luz do conhecimento pela fé, algumas verdades que a razão,
autonomamente, já encontra ao longo do seu caminho de pesquisa. A Revelação confere a essas
verdades plenitude de sentido, orientando-as para a riqueza do mistério revelado, onde encontram o
seu fim último. Basta pensar, por exemplo, no conhecimento natural de Deus, na possibilidade de
distinguir a revelação divina de outros fenômenos, ou no conhecimento da sua credibilidade, na
capacidade que tem a linguagem humana de falar, de modo significativo e verdadeiro, mesmo do que
ultrapassa a experiência humana. Por todas estas verdades, a mente é levada a reconhecer a
existência de uma via realmente propedêutica à fé, que pode desembocar no acolhimento da
Revelação, sem faltar minimamente aos seus próprios princípios e autonomia.
Da mesma forma, a Teologia Fundamental deverá manifestar a compatibilidade intrínseca entre a
fé e a sua exigência essencial de se explicitar por meio de uma razão capaz de dar com plena
liberdade o seu consentimento. Assim, a fé saberá mostrar plenamente o caminho a uma razão em
busca sincera da verdade. Desde modo, a fé, dom de Deus, apesar de não se basear na razão, decerto
não pode existir sem ela; ao mesmo tempo, surge a necessidade de que a razão se fortifique na fé,
para descobrir os horizontes aos quais, sozinha, não poderia chegar".

1.3. Revelação pública e Revelação particular


A Revelação pela qual Deus revela o mistério de sua vida e o seu plano de salvação, começa com
Abraão (sec. XIX a.C.) e termina com Jesus Cristo. Após a vinda de Cristo, não se deve esperar
revelação de algum novo artigo de fé. Todavia Deus pode-se manifestar, na história da Igreja, a
pessoas ou grupos especiais, transmitindo-lhes alguma mensagem, que corrobora as proposições da
fé em circunstâncias determinadas. Tais revelações são ditas "particulares" para se distinguirem da
revelação pública, que interpela a fé de todos os cristãos. Revelações particulares são, por exemplo,
as de Paray-le-Monial, Lourdes, Fátima, na verdade nada de novo dizem em relação aos artigos de
fé; apenas os confirmam, exortando os fiéis à oração e à penitência.
A Igreja não pode impor à crença dos fiéis nem o presumido fato de uma aparição nem o teor da
respectiva mensagem, de modo que, se alguém não quer crer nas aparições de Lourdes, não está
incluído em heresia. É o que o Papa Bento XIV (1740-1758) declarou explicitamente:
"A aprovação dada pela Igreja a uma revelação privada não é outra coisa senão a permissão
outorgada, após atento exame, para tornar conhecida essa revelação em vista da instrução e do bem
dos fiéis. A tais revelações, mesmo que aprovadas pela Igreja pode-se deixar de dar o assentimento...
desde que isto se faça por boas razões e sem intenção de menosprezo" (De Servorum Dei
Beatificatione II 32,11).
Os mestres recomendam prudência diante de pretensas revelações particulares. São João da Cruz
(† 1590) é severo, afirmando que é necessário não aceitar as revelações particulares quando se
manifestam; é preciso mesmo resistir-lhes como se fossem tentações perigosas, pois podem excitar o
amor próprio e a vaidade da pessoa "agraciada" (Subida do Monte Carmelo II 27,6). Se forem
autênticas revelações, prevalecerão sobre a resistência que se lhes opõe: se forem ilusões, a
resistência não causará prejuízo ao cristão resistente.
Lição 2: Notas típicas da Revelação Cristã
Distinguiremos três traços característicos da Revelação Cristã:

2.1. Historicidade
A Revelação cristã está ligada à história. Ela se desenrola a partir de eventos históricos situados
no contexto da história universal. Nisto ela se distingue do pensamento oriental e da sabedoria grega
ou ainda dos mistérios helenísticos, que não dão atenção à história ou só o fazem esporadicamente.
Ao contrário, a Revelação cristã narra fatos, apresenta pessoas, descreve instituições; o Deus da
revelação é o Deus que intervém e age na história, como insinua o autor de Hb 1.1:
"Muitas vezes e de modos diversos falou Deus outrora aos pais pelos Profetas. Agora nestes dias,
que são os últimos, falou-nos por meio do Filho, a quem constituiu herdeiro de todas as coisas".
Estas afirmações evidenciam a importância que a história tem para o Cristianismo. Quem
empalidece a história ou a nega, põe em xeque a própria Revelação Cristã. Esta não é mera doutrina
ou mensagem, mas é também vivência no tempo e no espaço, de tal modo que se pode afirmar que a
história é um discurso de Deus..

2.2. Estrutura Sacramental


Se a Revelação passa pela história, ela se reveste de sinais - palavras e acontecimentos - que são o
veículo da mensagem divina: as palavras anunciam e os eventos concretizam e ilustram as palavras.
Disto se segue que a transmissão da mensagem revelada, mesmo depois de Cristo, não é a mera
comunicação de um sistema doutrinário; a doutrina só pode ser plenamente apreendida se vivenciada
ou experimentada na prática.

2.3. Progressão das imagens para a realidade


A dimensão histórica da Revelação torna-a dinâmica e progressiva. Da parte de Deus há
promessas - promessas cada vez mais explícitas - e realizações, sendo que estas só mostrarão a
realidade plena na consumação da história. A revelação pode ser comparada a um cone que se abre
cada vez mais, tendo em seu âmago sempre a mesma imagem: Cristo ontem, hoje e pelos séculos
(Hb 13,8):

Importa agora ilustrar quanto acaba de ser dito, comparando-o com outras concepções de
Revelação.
Lição 3: Outras concepções
Analisaremos três noções diferentes de revelação: a protestante, a racionalista, a modernista.

3.1. A concepção protestante


O protestantismo dos primeiros reformadores aceita a noção de Revelação, concebendo-a do
seguinte modo: Deus se manifestou aos homens pelas obras da criação. Todavia o pecado dos
primeiros pais lesou de tal forma a razão humana que esta perdeu o acume para reconhecer Deus
através das criaturas. Por isto Deus quis revelar-se mediante os Profetas e Jesus Cristo, a tal ponto
que somente a revelação bíblica tem pleno valor; menospreza-se assim qualquer conheci mento de
Deus que não seja bíblico. Quanto à Bíblia, fica a critério de cada crente interpretá-la segundo
melhor lhe pareça, com a assistência do Espírito Santo.
Desta maneira, o protestantismo parece exaltar o caráter transcendental da Revelação, pois exclui
qualquer mediação humana. Acontece, porém, que, em vez de preservar a revelação divina, ele a
expõe ao subjetivismo e individualismo de cada crente; desta maneira têm origem as centenas de
denominações protestantes, que vão diluindo cada vez mais o patrimônio da fé, corroído pelas
intuições pessoais dos respectivos intérpretes.
Em resposta a tal concepção protestante, o Concílio de Trento, aos 15 de abril de 1547, definiu o
seguinte:
"O Concílio, seguindo o exemplo dos Padres ortodoxos, recebe todos os livros tanto do Antigo
como do Novo Testamento, já que o mesmo Deus é autor de ambos, assim como as tradições que
dizem respeito seja à fé, seja aos costumes, enquanto provenientes da mesma boca de Cristo ou
ditadas pelo Espírito Santo e conservadas na Igreja Católica com sucessão continua. O Concílio as
recebe e venera com o mesmo respeito e a mesma piedade" (DS 1501).
Isto quer dizer que a única mensagem revelada está expressa de duas maneiras : a escrita e a oral.
A transmissão oral é fiel às origens porque goza da assistência do Espírito Santo prometido por Jesus
Cristo: cf. Jo 14, 25s; 16, 13-15. É a Igreja que goza dos carismas do Espírito para guardar e anunciar
autenticamente as verdades reveladas por Cristo. É assim removido o risco do subjetivismo deletério.

3.2.A concepção racionalista


O Racionalismo (também dito "iluminismo") dos séculos XVII e XVIII não poderia deixar de
questionar a tese de uma revelação de origem transcendente, pois o racionalismo não aceita o que
ultrapassa o alcance da razão.
O racionalismo proclamou a autonomia da razão. A fé em uma mensagem revelada seria desprezo
da razão humana, pois reduz o homem a criatura "de menor idade", sempre a reboque da Igreja. Na
melhor das hipóteses, poder-se-ia conceber a revelação como forma particularmente intensa do
sentimento religioso comum a todos os homens. O Panteísmo de Georg Wilhelm Friedrich Hegel (†
1831) fala de revelação divina; entende-a, porém, no sentido da evolução do Espírito absoluto, que se
faz gradativamente através da história; o Cristianismo não seria mais do que um momento - já
superado - da evolução do Espírito rumo à sua consumação.
Frente a tais teorias o Concílio do Vaticano I (1870) houve por bem reafirmar o fato da Revelação
Divina, que ocorre em duas modalidades:
- a natural: a partir das criaturas, consideradas à luz da razão natural, o homem pode chegar a
Deus como causa do universo e da criatura humana; cf. Sb 13, 1-9; Rm 1,18-32.
- a sobrenatural: Deus fala mediante seus emissários, dando a conhecer sua vida trinitária e os
seus desígnios de salvação:
"Aprouve à sabedoria e à bondade de Deus revelar ao gênero humano por outra via, e
sobrenatural, a si mesmo e aos eternos desígnios de sua vontade; é o que diz o Apóstolo: Depois de
ter já, reiteradas vezes e de numerosas formas, falado outrora aos Padres e aos Profetas, Deus, nestes
últimos dias, falou-nos pelo Filho" (DS 3004).
O texto diz que essa revelação é efeito do amor ou do beneplácito divino; convinha à Sabedoria e
à Bondade de Deus, que quis fazer o homem consorte da vida divina:
"Deus, em sua infinita bondade, ordenou o homem a um fim sobrenatural, isto é, à participação
dos bens divinos" (DS 3005).
Mesmo as verdades de ordem natural foram reafirmadas, "para que pudessem ser conhecidas por
todos, sem dificuldade, com certeza firme e sem possibilidade de erro" (S. Teol. I,1,1; II / II 2,4c).
À revelação da parte de Deus responde a fé da parte do homem. O motivo desta fé é a autoridade
de Deus que fala. A fé, diz o Concílio Vaticano I, adere às coisas reveladas "não por causa da
evidência intrínseca dessas verdades como se pudessem ser percebidas à luz natural da razão, mas
por causa da autoridade do próprio Deus, que não pode errar nem induzirem erro" (DS 3008).
A própria fé é um dom de Deus, dom que Ele concede a toda e qualquer criatura humana. É o que
declara o mesmo Concílio, fazendo eco ao Concílio de Orange II (529) e à tradição patrística e
medieval:
"Ninguém pode aderir ao ensinamento do Evangelho, como é necessário para chegar á salvação,
sem uma iluminação e inspiração do Espírito Santo, que dá a todos a suavidade da adesão e da crença
na verdade" (DS 3010).
Donde se vê que o Sim da fé é livre entrega à moção do Espírito Santo.
Em suma, o Concílio do Vaticano I procurou harmonizar razão e fé como instrumentos que levam
o homem ao conhecimento de Deus.

3.3. O Modernismo
Em fins do século XIX e no começo do século XX registrou-se uma corrente de pensamento dita
"Modernismo". É representada por vários autores que procuraram conciliar os dados da Revelação
com a história, as ciências e as culturas. A humanidade ia progredindo em seu cabedal cientifico e
cultural, parecendo suplantar e esvaziar as proposições da fé. Dai os esforços de harmonização
devidos a M. Blondel, L. Laberthonnière, A. Loisy, G. Tyrell, o Barão von Hügel... Para esses
autores, a revelação dita "sobrenatural" reduz-se a um sentimento religioso cego, que brota das
profundezas do inconsciente, sob a pressão do coração e o impulso da vontade; é uma vaga
experiência religiosa, da qual cada religião é uma expressão.
A Igreja reagiu a essas concepções mediante documentos que tiveram grande repercussão: a
encíclica Pascendi de Pio X (l907), o Motu próprio Sacrorum Antistitum do mesmo Papa (lg10),
o decreto Lamentabili (l907),do Santo Oficio, e decisões da Pontifícia Comissão Bíblica. – Esses
textos são mais apologéticos do que doutrinários. Como quer que seja, afirmam que o objeto da fé é
tudo o que Deus disse, atestou e revelou (DS 3542). O conteúdo do que Deus disse, é chamado
"palavra revelada, Evangelho, doutrina" (DS 3538-3550). Palavra significa que Deus se dirige ao
homem e lhe manifesta seu plano de salvação. O que Deus disse, atestou e revelou, é definido pela
Igreja: palavra revelada, doutrina de fé, depósito divino, confiado à guarda da Igreja para ser
conservado sem acréscimos, alterações, mudanças de sentido ou de interpretação.
Os documentos anti-modernistas foram completados pela Teologia posterior, que se esmerou por
dissipar a idéia de que a Revelação divina é mera comunicação de um sistema doutrinário; ela é,
antes do mais, a manifestação de uma Pessoa, que é a Verdade em pessoa, ponto de chegada de uma
história que culmina em Jesus Cristo.
O Concílio do Vaticano II (1962-65) assumiu essa posição na sua Constituição Dei Verbum sobre
a Revelação. Fala primeiramente da revelação histórica efetuada mediante os Profetas do Antigo
Testamento e Jesus Cristo; só depois menciona a revelação cósmica, invertendo assim a ordem
adotada pelo Concílio do Vaticano I:

"Deus enviou seu Filho, o Verbo eterno que ilumina todos os homens, para que habitasse entre os
homens e lhes expusesse os segredos de Deus ... " (no 4).
Pela revelação divina quis Deus manifestar-se e comunicar-se a Si mesmo e os decretos eternos de
Sua vontade acerca da salvação dos homens, ... para fazer participar os bens divinos, que superam
inteiramente a capacidade da mente humana.
Professa o Sagrado Sínodo que Deus, princípio e fim de todas as coisas, pode ser conhecido com
certeza pela luz natural da razão humana partindo das coisas criadas (cf. Rm 1,20); mas ensina que se
deve atribuir à Sua revelação o fato de mesmo na presente condição do gênero humano poderem ser
conhecidas por todos facilmente com sólida certeza e sem mistura de nenhum erro aquelas coisas
que, em matéria divina, não são de per si inacessíveis à razão humana" (no 6).
Assim toda a Revelação se consuma em Cristo, que é o Logos (a Palavra) feito carne. A Teologia
Sistemática explana o conteúdo da Revelação Divina. À Teologia Fundamental compete apenas
expor a noção respectiva. A credibilidade da Revelação Cristã será estudada na Parte III deste Curso,
quando será considerada a figura de Jesus Cristo.
Passamos a abordar o tema "fé", fé pela qual o homem diz Sim a Deus que fala.

PERGUNTAS
1) Que é revelação?
2) Quantas modalidades de revelação existem?
3) Que é revelação pública ? Que é revelação particular?
4) Qual a concepção protestante de revelação?
5) Que diz o racionalismo sobre a revelação?
6) Que entende o modernismo por revelação ?
7) Jesus Cristo e revelação como se relacionam entre si?
Parte III. Creio em Jesus Cristo

MÓDULO 16: A FÉ
A Deus que se revela, toca ao homem prestar fé. Deus é sempre mais perfeito e sábio que a
criatura. Dai a necessidade de aderir a Ele pela fé. É o que vamos estudar neste Módulo,
considerando somente o que interessa à Teologia Fundamental, isto é, o aspecto psicológico
respectivo ou o embate da inteligência, da vontade e das paixões diante de uma proposição de fé.
Lição 1: Que é a Fé?
O Concílio do Vaticano I (1870),tendo em vista concepções errôneas do século XIX, definiu a fé
nos seguintes termos, que bem resumem o ensino tradicional da Igreja:
"A fé... é uma virtude sobrenatural, pela qual, prevenidos e auxiliados pela graça de Deus, cremos
como verdadeiro o conteúdo da Revelação, não em virtude da verdade intrínseca das proposições
reveladas, vistas à luz natural da razão, mas por causa da autoridade de Deus, que não se pode
enganar nem enganara nós"(DS 3008 [1789]).
O Concílio do Vaticano II, em 1965, retomou o conceito de fé, encarando outros aspectos:
"Ao Deus que se revela deve-se a obediência da fé, pela qual o homem livremente se entrega todo
a Deus, prestando ao Deus revelador um obséquio pleno do intelecto e da vontade e dando voluntário
assentimento à revelação feita por Ele" (Constituição Dei Verbum 5).
Estas duas definições convergem entre si, propondo as seguintes conclusões:
1) A fé não é um sentimento cego, nem meramente emotivo. Afaste-se a afirmação: "Todos temos
que crer em alguma coisa". Essa "alguma coisa" não pode ser algo de vago, indefinido, sentimental,
mas é algo que o intelecto reconhece "inteligentemente".
2) A fé não é mero ato de confiança, mero ato do coração e dos afetos, que se entregam a Deus
como Salvador. Isto quer dizer: a fé tem caráter também intelectual ou inteligente (não meramente
cerebrino ou frio, sem dúvida). É o ato mais nobre do homem, pois aplica a faculdade mais digna do
ser humano (a inteligência) ao objeto mais elevado e perfeito que é Deus. Afaste-se, pois, todo anti-
intelectualismo ao se tratar da fé.
3) A fé é um ato da inteligência..., mas não só da inteligência. É uma atitude da inteligência
movida pela vontade. Com efeito; o objeto proposto pela fé não é evidente por si mesmo (não é claro
à razão, por exemplo, que Jesus é Deus e Homem). A inteligência humana tem o direito (às vezes...
tem mesmo o dever) de estudar cada uma das proposições da fé: Jesus é Deus e Homem. Deus é uno
e trino, Jesus está presente na Eucaristia... Após estudar a documentação respectiva, a inteligência
conclui: não são proposições evidentes como "dois e dois são quatro, o todo é maior do que qualquer
de suas partes"; mas também não são absurdas e contraditórias como "o circulo é quadrado, o
triângulo é redondo"... Se fossem evidentes por si mesmas, a inteligência estaria coagida a dizer-lhes
Sim, como é coagida a dizer Sim a "dois mais dois são quatro". Por conseguinte, feito o exame das
proposições da fé, a inteligência diz ao estudioso: "Se queres, podes crer", e passa para a vontade a
decisão final - o assentimento ou a recusa.
4) Vê-se, pois, que, se a fé não é movida pela evidência intrínseca das proposições reveladas por
Deus, ela nem por isto é cega; ela tem motivos de credibilidade: ela se baseia na evidência
extrínseca. Antes de crer, a inteligência vê que deve crer; existem preâmbulos necessários à fé. Diz
S. Tomas de Aquino: "O homem não acreditaria se não visse que deve crer'(Suma Teológica 11/11
qu. 1, art. 4, ad 2).
5) Por conseguinte, a fé é um ato livre; é um obséquio voluntário prestado pelo fiel à autoridade
de Deus que se revela. É portanto um ato mais nobre do que os atos cujo objeto é tão evidente que
eles se tornam obrigatórios. O ato de fé supõe reflexão e decisão consciente e responsável.
6) Acontece, porém, que a vontade humana pode ser influenciada, consciente ou
inconscientemente, pelas paixões e os afetos do indivíduo. Alguém pode ter posições preconcebidas
contra a fé, pois esta exige mudança de vida que o homem desregrado pode não querer realizar;
quando a verdade não lhe convém, a pessoa tenta "provar' que ela não é verdade e que a evidência
não aparece. Escreveu o filósofo Thomas Hobbes (t 167g): "Se nisto tivessem interesse os homens,
duvidariam da geometria de Euclides" (Sistema da Natureza II 4).

Lição 2: Que diz o Novo Testamento?


No Evangelho freqüentemente a palavra crer (pisteuein, em grego) indica, nos ouvintes, uma
atitude de resposta a uma verdade proposta ou a um ensinamento:
Jo 7, 46: "Se vos digo a verdade, porque não me credes?"
Jo 5, 46s: "Se crêsseis em Moisés, haveríeis de crer em mim, porque foi a meu respeito que ele
escreveu. Mas, se não credes em seus escritos, como crereis em minhas palavras?"
Jo 10,37s: "Se não faço as obras de meu Pai, não acrediteis em mim. Mas, se as faço, ainda que
não acrediteis em mim, crede nas obras, a fim de conhecerdes, e conhecerdes sempre mais, que o Pai
está em mim e eu no Pai".
Jo 11,26s: "Eu sou a ressurreição e a vida,- crés isto? - Sim, Senhor, creio que és o Cristo!".
Rm 10,9:"Se com tua boca confessares que Jesus é Senhor e creres em teu coração que Deus o
ressuscitou dentre os mortos, serás salvo".
O cristão crê num fato que ele considera verdadeiro; e esta fé salva.
C1 2,7s : "...enraizados em Cristo, sobre ele edificados e apoiados na fé, como aprendestes, e
transbordando de alegria. Tomai cuidado para que ninguém vos escravize por vãs e enganosas
especulações da filosofia".
Por conseguinte, a fé é a adesão à verdade; o que não se coaduna com ela, é mentira, é heresia ou
erro.
Hb 11,1: "A fé é a posse antecipada das coisas que esperamos; é a demonstração das coisas que
não vemos".
Esta quase definição da fé põe em claro relevo o aspecto intelectual da fé: ela demonstra ou faz
ver antecipadamente o que o cristão conhecerá plenamente na visão face-a-face da Beleza Infinita.
Tt 1,9: "O epíscopo (= vigilante da Igreja) deve ser de tal modo fiel na exposição da palavra que
seja capaz de ensinar a sã doutrina e refutar os que lhe contradizem".
Mc 16, 1ss: "Ide por todo o mundo e pregai o Evangelho a toda criatura. Quem crer e for
batizado, será salvo; quem não crer será condenado".
Este texto põe em evidência o aspecto livre do ato de fé. Quem ouve a mensagem do Evangelho,
pode aceita-la crendo, como a pode rejeitar recusando crer.
Estes textos são citados para comprovar que a fé não é um sentimento nem um mero ato de
confiança afetiva em Deus, mas, sim, uma atitude de inteligência, que, movida pela vontade livre, diz
Sim à Palavra de Deus, que se revela.
Á guisa de complemento, pode-se acrescentar que ter fé não é algo raro ou extraordinário para o
ser humano. Na vida cotidiana, iodo homem, mesmo o ateu, exercita a fé. ... a fé na autoridade de
quem lhe fala, e na base dessa fé pauta o seu comportamento. É o que se dá, por exemplo, com quem
lê ou ouve o noticiário dos jornais: notícias relativas à economia nacional e internacional lhe são
transmitidas em caráter decisivo; se a fonte de informações é segura, a pessoa não se preocupa com
averiguações empíricas, mas crê e tira suas conclusões concretas. Todo homem crê também nos
historiadores que com seriedade lhe referem o passado. Crê também que N.N. é seu pai ou sua mãe
sem procurar provas fisiológicas ou médicas para crê-lo. Crê no médico que lhe receita um remédio
ou um tratamento...
O Papa João Paulo II lembra estes aspectos na sua encíclica "Fé e Razão":
"Na vida de uma pessoa, são muito mais numerosas as verdades simplesmente acreditadas que
aquelas adquiridas por verificação pessoal. Na realidade, quem seria capaz de avaliar criticamente os
inumeráveis resultados das ciências, sobre os quais se fundamenta a vida moderna ? Quem poderia,
por conta própria, controlar o fluxo de informações recebidas diariamente de todas as partes do
mundo e que, por princípio, são aceitas como verdadeiras? Enfim, quem poderia percorrer
novamente todos os caminhos de experiência e pensamento pelos quais se foram acumulando os
tesouros de sabedoria e religiosidade da humanidade ? Portanto, o homem, ser que busca a verdade, é
também aquele que vive de crenças".
Examinemos agora de mais perto os obstáculos intelectuais e os obstáculos morais que dificultam
ou mesmo impedem o ato de fé.

Lição 3: Obstáculos intelectuais


Assinalam-se dois principais obstáculos: a ignorância religiosa e os vícios de método.

3.3. Ignorância religiosa


O primeiro dos obstáculos intelectuais é a ignorância ou a errônea transmissão das proposições da
fé. Com efeito, não é raro alguém negar as verdades da fé porque não as conhece adequadamente ou
só conhece caricaturas da verdade. Tal é o caso, por exemplo, de quem rejeita a fé porque julga que
ela ensina a criação do mundo em 24 horas, a origem do homem a partir do barro, a da mulher a
partir da costela de Adão... Já Tertuliano († 220), apologista cristão, escrevia aos pagãos: "A religião
cristã vos pede um só coisa: que não a condeneis sem a conhecer.
Pascal(† 1662), filósofo e matemático francês, censurava os que superficialmente abordam as
verdades da fé:
"Julgam ter feito grandes esforços para se instruir porque empregaram poucas horas na leitura de
algum livro da Escritura ou interrogaram algum eclesiástico sobre as dificuldades da fé. Depois disto
ufanam-se de haver procurado em vão nos livros e nos homens "(Pensées sect. III no 194,
Brunschvig II, p.102).
O Pe. Leonel Franca apresenta alguns exemplos de ignorância religiosa que leva a renegar as
verdades da fé:
"Infelizmente é com lacuna de informações e descuidos críticos que se fundamentam conclusões
frágeis e apressadas de certos manuais de história comparada das religiões. Esbatem-se na penumbra
diferenças essenciais, põem-se em relevo semelhanças de superfície, forçam-se analogias até a
identidade; interpretam-se ritos e cerimônias pela materialidade externa dos atos e não pelo
significado íntimo da idéia que as anima e especifica; explicam-se todas as concordâncias por
simples empréstimo ou influências históricas. As conclusões são inesperadas e radicais" (A
Psicologia da Fé, p 17).
O autor se refere aos estudiosos que, por exemplo, afirmam que o dogma da Ssma. Trindade não é
senão o eco cristão de tríades de deuses do Egito e da Índia... ; a maternidade virginal de Maria seria
o mito da Virgem-Mãe transposto para o Credo cristão: o Batismo cristão não seria mais do que uma
das tantas oblações rituais da antigüidade; a ceia eucarística... cópia das refeições sagradas do
paganismo... Somente uma análise superficial pode equiparar as expressões religiosas do
Cristianismo e práticas de outras correntes religiosas: trata-se muitas vezes de manifestações
espontâneas à natureza humana como tal e por isto, encontradas em várias correntes religiosas com
grande semelhança entre si. Diferem, porém, umas das outras pelo espírito ou a visão doutrinária que
inspira cada uma dessas práticas. Em conseqüência, não se pode falar de empréstimo ou dependência
do Cristianismo em relação a outras correntes religiosas.
Além de quanto foi dito atrás, deve-se notar que, em nossos dias principalmente, a fé requer
estudo continuado. Com o passar dos anos as verdades reveladas podem ser penetradas com mais
maturidade. O cristão as contempla numa síntese harmoniosa, que depende da aplicação da mente e
da vivência concreta. Por outro lado, a multiplicação de correntes religiosas, sociedades "místicas",
escolas de Orientalismo... exige do fiei católico uma constante atualização de seus conhecimentos
religiosos, afim de que não se deixe levar por objeções mal construídas e sofismas. Especialmente
importante, no caso, é o estudo da Escritura Sagrada e da História da Igreja.

3.2. Vícios de Método


Há quem se faça de pesquisador autodidata, ás vezes preconceituoso. Tal pessoa dificilmente
atingirá a beleza das virtudes e da fé.
Santo Agostinho, ao descrever seu itinerário espiritual, refere-se a uma época em que ele queria
enquadrar Deus dentro de imagens quantitativas. Este preconceito lhe dificultou o acesso à verdade:
"Queria terna área das realidades invisíveis, uma certeza igual á de que 3+7= 10. ...O que não era
suscetível de uma representação quantitativa, parecia-me não existir!" (Confissões VI, 4, VII, 1 ).
Requer-se do estudioso não uma diminuição do rigor lógico, mas o que já Aristóteles considerava
sinal de maturidade científica: a plasticidade da inteligência que sabe adaptar-se aos múltiplos
aspectos da realidade, procurando em cada aspecto os caminhos que, decorrentes da própria natureza
das coisas, levam á certeza. Trata-se de ser dócil á realidade investigada em toda a riqueza da sua
complexidade.
Os vícios no método de estudo podem levar a uma falsa certeza ou a um saber falso, que é pior do
que a própria ignorância. Já Platão († 347 a.C.) o notava:
Na obra "Leis" um dos interlocutores diz a Platão: "Parece-me que receias entrar nessas questões
por causa da nossa ignorância". Responde o mestre: "Muito mais recearia tratar com pessoas que
tivessem estudado tais coisas, porém mal. No caso não é a ignorância das multidões a mais perigosa,
nem o mais terrível, nem o maior dos males. Ter estudado muito e muito haver aprendido, mas com
métodos viciosos, é mal muito maior" (Leis X 818s).
Com outras palavras: aprender mal é pior do que não aprender. As falsas "verdades" causam
maior mal do que a ignorância.
Um dos mais sérios obstáculos à apreensão da verdade é o preconceito do racionalismo. Este
afirma que tudo pode ser explicado racionalmente. O que a razão não abarca, só pode ser lenda ou
mito. Desse modo fica de antemão excluída a possibilidade de qualquer intervenção extraordinária de
Deus no curso da história. Assim no princípio da investigação científica põe-se um ato de fé, ... ato
de fé num preconceito estabelecido dogmaticamente. Ora a ciência deve ser imparcial; ela não pode
ser cerceada por preconceitos ou por princípios estipulados a priori ou de antemão.

Lição 4: Obstáculos morais


4.1. O orgulho
Ó orgulho é a recusa de qualquer submissão, é a pretensão a uma independência sem limites. É
claro que esta dificulta, se não impede, o acesso a Deus.
O orgulho é excitado pelas conquistas científicas e tecnológicas do homem contemporâneo, que,
ao menos inconscientemente, tende a colocar Deus de lado para ocupar o lugar dele. Aliás, já no
século passado. Pierre Eugène Marcelin Berthelot († 1907), grande químico francês, escrevia:
"Para que a ciência não se fragmente em especialidades, é mister que haja pelo menos um cérebro
capaz de abraça-la no seu conjunto. Esse cérebro creio ter sido eu; receio ser o derradeiro" (citado
por Paul Painlevé, Le Temps, 20 março 1907).
Não é necessário desenvolvera temática, clara por si mesma.

4.2. A sensualidade
A sensualidade é a busca do prazer sexual pelo prazer, sem respeito à finalidade das funções
sexuais. A Moral filosófica não é contrária ao prazer, mas afirma que o prazer é um derivado
decorrente do exercício harmonioso de determinada atividade.
A sensualidade pode escravizar o homem e obnubilar a sua mente. Produz desequilíbrio no
comportamento humano e assim incompatibiliza as pessoas com as verdades da fé.
Esta afirmação é evidente aos pensadores desde os tempos mais remotos. Já Pitágoras, no século
VI a.C., submetia seus discípulos ao longo exercício de virtudes que os preparassem ao estudo da
sabedoria. A ascese era o vestíbulo da escola pitagórica.
Sêneca († 63 d.C.) escrevia: "Se a virtude a que aspiramos, é de tao grande valor, não é porque a
isenção de vícios seja uma felicidade real, mas porque assegura à alma toda a sua liberdade e a
prepara ao conhecimento das coisas celestes, tornando-a digna de conversar com Deus"
(Quaestiones Naturales Prefácio).
Aliás, o Senhor Jesus o confirma no Evangelho, dizendo: "Bem-aventurados os puros de coração
porque verão a Deus" (Mt 5,8).
O impuro não pode conhecer o puro. A maneira de viver condiciona a maneira de ver.
Passemos agora à
Lição 5: Conclusão
Escreve o Pe. Leonel franca em sua linguagem erudita:
"A conquista da verdade religiosa encontra numerosos obstáculos, uns de ordem intelectual,
outros de caráter moral. Na realidade viva das almas, a ação de uns e de outros... funde-se na síntese
de um todo solidário e complexo. As ignomínias do coração procuram sempre a cumplicidade da
inteligência. Os extravios intelectuais raras vezes deixam de refletir-se na desordem dos costumes.
Erro e vicio colaboram freqüentemente em afastar o homem da verdade total.
Destas dificuldades triunfam as pessoas retas e sinceras"(A Psicologia da Fé - Ed. Agir, p 195).
Após quanto acaba de ser exposto, verifica-se que a fé mexe com toda a personalidade do ser
humano: Intelecto (pois é a adesão à Verdade, e não um sentimento cego), vontade (pois vem a ser
entrega total e livre a Deus, que fala e convida) e afetos ou paixões (pois exige ordem e equilíbrio no
mundo afetivo do ser humano, que é, muitas vezes, sorrateiro e traidor). A fé, porém, assim
concebida é o antegozo do encontro final com Deus, que é a Grande Resposta aos anseios humanos.

PERGUNTAS
1) Como se define a fé ?
2) Cite três textos bíblicos que ilustrem a definição de fé.
3) Quais os principais obstáculos de ordem intelectual que se opõem ao ato de fé?
4) Quais os principais obstáculos morais que dificultam o ato de fé?
5) Faça uma reflexão pessoal sobre a temática da fé.

MÒDULO 17: O TESTEMUNHO DE ATEUS


Após ter estudado a fé, interessa-nos levar em conta o que se deu no íntimo de homens e mulheres
que passaram por fase de ateísmo e chegaram finalmente à luz da fé. Trata-se assim de vislumbrar a
luta do ser humano feito para o Infinito e atormentado enquanto não se volta conscientemente para
Ele. Serão considerados apenas vultos do século XX.
1. Alexis Carrel foi Prêmio Nobel em Medicina. Perdeu a fé de sua infância e entregou-se ao
materialismo positivista. Aos poucos, porém, foi tomando consciência de que este não respondia a
perguntas fundamentais de seu coração. Foi a Lourdes, acompanhando uma enferma de câncer
terminal; lá verificou, com todo o rigor cientifico, a cura da moléstia. Isto o impressionou
profundamente, levando-o a uma busca sincera e sequiosa da verdade. Escreveu contra o
materialismo e também centra a religião acomodada ou de fachada, sem porém, chegar a uma crença
definida. No fim da vida, caiu gravemente enfermo; o drama do sentido da vida se aguçou então;
resolveu entregar-se a Deus como um menino e pediu os sacramentos da Igreja. O empurrão decisivo
foi-lhe dado ao presenciar a têmpera forte e heróica de uma orfãzinha. Exclamou então: "Minha
salvação está em que uma pobre ignorante me segure a mão e me guie... Sim, quando se trata de não
morrer como um cão, mas de terminar a vida nobremente, é somente junto aos humildes adoradores
de Deus que os filósofos hão de buscar lições de Lógica".
2. Paul Claudel, famoso poeta francês, aos dezoito anos de idade aderia à incredibilidade e à
devassidão. Ao terminar seus estudos no Liceu Louis-le-Grand, já havia lido os filósofos alemães
ateus, admirava Ernest Renan (sarcástico em relação ao Evangelho) e professava o culto da ciência
como resposta aos seus anseios naturais. Ele mesmo descreveu posteriormente o seu estado de alma:
"Evoquem-se estes tristes anos da década de 1880, a época do pleno desabrochar da literatura
naturalista. Nunca pareceu mais firme o domínio da matéria. Os grandes nomes na arte, na ciência,
na literatura eram todos irreligiosos... Renan imperava. Foi ele quem presidiu à última distribuição de
prêmios do Liceu Louis-le-Grand, à qual eu assisti e creio que fui coroado por suas mãos... Vivia
então na imoralidade e pouco a pouco cai em estado de desespero... Esquecera completamente a
religião; a seu respeito a minha ignorância era de selvagem " (Ver J. Calvet, Le Renouveau
Catholique dans la Litférature Contemporaine, Paris lg27, p. 13g).
Aos vinte anos de idade, por ocasião do Natal, entrou na basílica de Notre-Dame em Paris,
e ouviu o canto do Magnificat, que muito o impressionou, como ele mesmo relata: "Foi então que
se deu o acontecimento que ia mudar a minha vida. Num instante meu coração foi sacudido e passei
a acreditar. Acreditei com forte adesão, com o bem-estar de todo o meu ser, com perfeita convicção,
com certeza isenta de qualquer dúvida; todos os livros, todos os arrazoados, todos os percalços de
minha vida agitada não conseguiriam abalar a minha fé nem mesmo tocá-la... Quão felizes são
aqueles que têm fé! Ó, se tudo isso fosse verdade! mas é verdade! Deus existe! Esta ai! É alguém, um
ser pessoal, tão pessoal como eu! E Ele me ama, Ele me chama!... E eu estive diante de Vós como
um lutador que zombeteia... Vós me chamastes por meu nome. E, como alguém que conhece, Vós
me escolhestes dentre todos os meus companheiros".
Apesar dessas declarações tão explícitas, Claudel ainda lutou dez anos com Deus. Quis fazer-se
beneditino, mas verificou que sua vocação era outra. Passou por outra crise, que finalmente chegou
ao equilíbrio tranquilo. Em suma, teve uma conversão que durou a vida inteira, o que bem revela
quanto a graça encontra resistência no recôndito de muitas pessoas dilaceradas entre o Bem Infinito e
os bens finitos.
3. Ernesto Psichari era neto do incrédulo e sarcástico E. Renan. Após um fracasso amoroso,
tentou duas vezes o suicídio. Fez-se militar e foi para o deserto do Saara; ali percebeu o vazio dos
atrativos das grandes cidades: o contato com a natureza rude e despojada fê-lo pensar; enfrentou os
grandes questionamentos relativos ao sentido da vida. No silêncio, a voz de Deus lhe falou: "Tu me
procuras e eu aí estou nesse desgosto de ti mesmo que te assalta, nesse peso de tua alma cativa e até
no pesadelo horrendo dos teus pecado" (Le Voyage du Centurion, Paris, 1911, p.196).
Pediu então o Batismo, após ter-se preparado devidamente e escreveu a famosa obra "A Viagem
do Centurião", que relata a história de sua conversão.
4. Giovanni Papini desde menino muito leu, procurando satisfazer sua sede de saber. Em busca
da verdade, entregou-se à Filosofia, que o deixou insatisfeito. Passou então para o pessimismo, o
materialismo, o pragmatismo, chegando a tornar-se ocultista e espírita. Era sempre movido pelo
desejo de ser grande e tornar os outros felizes. Entre as reflexões de tal época, lê-se o seguinte:
"Ser Deus! Empreendimento impossível, mas é a soberba meta almejada. Tal é o meu programa e
o de outros... Ainda não acreditava em Deus; Deus não existia para mim, e jamais tinha existido. Eu
queria criá-Lo para o futuro e fazer de mim, homem pobre e miserável, o Ser Supremo, Soberano,
muito rico e poderoso".
Essa pretensão deixou-o prostrado e inspirou-lhe a reflexão:
"Peço, rogo humildemente de joelhos e com toda pujança de minha alma, um pouco de certeza,
uma só, uma pequena crença certa, um átomo de verdade. Mas por que ainda não me encontro com
ela? ... Não posso continuar vivendo assim, vacilando entre a dúvida e a negação, sempre ansioso por
causa de um desejo que renasce todos os dias e abatido pelo fracasso cada vez mais frequente...
Quero uma certeza firme e dela preciso, ainda que seja uma só. Quero uma fé indestrutível, mesmo
que seja uma só. Quero uma verdade autêntica, por pequena e exígua que seja! ...Mas uma verdade
que me faça tocar o âmago mais íntimo do mundo, e me confira o derradeiro e mais firme apoio".
Pôs-se então a procurar mais a fundo nos Evangelhos: "Retornei aos Evangelhos para procurar o
Cristo; entrei nas igrejas para encontrar Deus".
Ele encontrou Deus finalmente refletindo sobre os horrores da Guerra mundial á luz do
Evangelho. Foi então que escreveu a sua famosa "História de Cristo". A firmeza da conversão de
Giovanni Papini transparece na seguinte declaração, que ele escreveu com o próprio sangue:
"Temos necessidade de Ti, de Ti, e de mais ninguém. Só Tu que nos amas de verdade, podes
sentir por cada um de nós o que sofremos; só Tu podes conhecer a solicitude que cada um de nós
experimenta por si. Só Tu podes sentir plenamente quão grande, quão imensa é a necessidade que
temos de Ti nesse mundo e nesta hora".
5. Adolfo Retté foi poeta anarquista, inimigo entranhado da Igreja, entregue aos prazeres do sexo
e da bebida. Certa vez, socialista que era, falou a um auditório de socialistas, propondo teses
materialistas, que rechaçavam Deus em nome da ciência. Terminada a palestra, quatro pessoas foram
pedir-lhe explicações: já que não há Criador, como é que o mundo começou? A Retté foi honesto;
respondeu confessando insegurança. O incidente, porém, impressionou-o; confessou posteriormente:
"Estava profundamente perturbado, sentia-me mal, tinha necessidade de refletir a sós com a minha
consciência". Procurou a solução na floresta: "Mas já não apreciava o encanto da sombra e do
silêncio. O coração pesava-me no peito; tinha vontade de chorar; um remorso estranho e insólito
parecia tumultuar dentro de mim".
Retté começou a duvidar do valor da vida. Caiu no desespero, que o levou a tentar o suicídio. Foi
buscar uma corda: "Então senti-me como que partido em dois: a metade do meu ser queria o suicídio
imediato. A outra metade resistia e parecia estar pedindo socorro, enquanto em torno de mim eu
sentia desencadear-se uma tempestade de blasfêmias e palavrões... Ouvi uma voz celeste que me
gritava: 'Deus, Deus está ai!- Fulminado pela graça, cal de joelhos e entre soluços murmurei: 'Eu te
dou graças, ó meu Deus porte haveres voltado para mim!'"
Após três anos de ansiedade, aos 43 anos de idade. Adolfo Retté fez sua Primeira Comunhão e
tomou-se católico convicto, dedicado ao serviço dos pobres e ajudando muitos irmãos a se levantar.
6. Eva Lavallière era uma atriz de vida desregrada. Como tal, fazia o papel de mulher feliz, mas
carregava dentro de si uma tragédia. Chegou ao desespero e às portas do suicídio. Caiu doente e foi
procurar alivio no espiritismo, mas sem resultado. Voltou-se então para o Catolicismo e perguntou a
uma amiga: "Julgas que Deus me aceitará após uma vida tão devassa?" Pôs-se a ler e conversar com
pessoas amigas e finalmente redigiu uma carta, da qual dizia: "Custa-me muito escrever esta carta e
mais ainda custa-me enviá-la; nela vai proclamada a minha morte ao teatro. Nunca mais
representarei!" Após nova enfermidade, que lhe proporcionou viva experiência de Deus, resolveu
dedicar-se ao serviço dos semelhantes.
7. Thomas Merfon foi educado sem religião e no Ódio ao Catolicismo. Foi fortemente
impressionado pela guerra mundial de 1939-45 e pela enfermidade de pessoas queridas. Estudou
filósofos católicos, mas sem se convencer definitivamente. Refere-se ele a essa época, dizendo:
"Coisa estranha! Eu assimilava tudo, mas encontrava-me vazio de tudo. Devorando prazeres e
alegrias, não encontrava senão angústias, miséria e temor. Nessa extrema desgraça e humilhação,
passei por uma aventura sentimental, na qual fui tratado como fora em muitas outras nos últimos
anos... Como um cãozinho, eu mendigava um pouco de carinho e uma prova de afeto. Tal era a morte
do herói ou do grande homem que eu sonhava ser. A minha derrota foi a ocasião da minha salvação".
Após novas buscas de resposta, leu obras de Newman, que o inspiraram fortemente. Dizia de si
para si: "Que esperas? Que fazes aqui? Sabes o que tens de fazer. Então por que não o fazes?" Pediu
e recebeu o Batismo, mas verificou que se convertera na inteligência mais do que no seu tipo de vida
concreto. Para rematar sua caminhada, entrou no mosteiro trapista de Gethsemani (USA), onde se
aprofundou nas verdades da fé e na prática da ascese; disto resultaram escritos notáveis de projeção
mundial e benéficos para muitos leitores.
8. Tatiana Goricheva nasceu em Leningrado em l947. Estudou Filosofia e Radiotécnica.
Observa:
"Nasci num país em que os valores tradicionais de cultura, religião e moral foram arrancados pela
raiz de maneira planejada e com êxito. Eu odiava tudo e amava a solidão".
Desgostosa da ideologia reinante em seu país, voltou-se para os "ídolos" do Ocidente,
especialmente Nietzsche e o existencialismo ateu (Sartre, Camus). Chegou assim ao "desespero no
qual começa a fé". Após 26 anos de idade, iniciou a luta contra a mentira:
"Cansada e desiludida, eu fazia meus exercícios de Yoga e repetia os mantras. Até aquela fase da
minha vida eu nunca tinha proferido uma oração. Mas o livro de Yoga propunha como exercício uma
prece cristã, ou seja, a oração do Pai Nosso. Comecei a repeti-la mentalmente como um mantra, de
modo inexpressivo e automático. Pronunciei-a seis vezes; após o quê, eu me senti totalmente
transtornada. Compreendi, não na minha inteligência ridícula, mas com todo o meu ser - que Deus
existe. Ele, o Deus vivo e pessoal, que me ama e ame a todas as criaturas. A velha criatura morrera.
Não somente abandonei meus valores e ideais anteriores, mas também meus antigos costumes.
Finalmente meu coração se abriu. Comecei a querer bem ás pessoas... Tomei-me impaciente,
desejando servir a Deus e aos homens. Que alegria e que luz esplendorosa jorraram em meu
coração!"
Tatiana toma consciência de fazer parte da Igreja perseguida e exclama: "Eu também pertenço a
esse povo!" Recebe os sacramentos e põe-se a estudar a Religião em seminários integrados por
intelectuais. Foi presa pela KGB e submetida a interrogatórios. Acabou sendo expulsa da Rússia em
1980; fixou domicílio em Paris.
9. Edith Stein foi judia, discípula do filósofo alemão Husserl ; perdeu a fé. Estudou vários
pensadores alemães, sem encontrar resposta para os seus anseios. Estando em férias, leu a
autobiografia de Santa Teresa de Ávila, que muito lhe falou: "No mesmo instante senti-me cativada,
não pude interromper a leitura até a última página. Quando fechei o livro, disse a mim mesma: 'Aqui
está a verdade!"' Estudou a doutrina católica, foi batizada e entrou no Carmelo. Morreu em campo de
concentração, vítima do nacional-socialismo.
10. Douglas Heyde era secretário do Partido Comunista da Inglaterra e diretor do The Daily
Worker. Tinha que refutar escritores católicos como Chesterton, Belloc e , de cada vez, ficava muito
impressionado. Certa vez, ao entrar numa igreja, num recanto escuro, frente à imagem da Virgem
Ssma., foi profundamente tocado: "Era feliz; dei-me conta de que minha dolorosa peregrinação
terminara. Murmurei: 'Senhora tão meiga e tão boa, sê boa para mim!"'
11. Carlos Nicolle foi Prêmio Nobel em Medicina, pesquisador de doenças infecciosas e Diretor
do Instituto Pasteur. Incrédulo ferrenho, sustentava a tese de que a razão explica tudo. Todavia o
problema do sofrimento humano o perturbava. Procurou esclarecimentos em escolas filosóficas, mas
em vão. Mais tarde diria: "Não foi difícil encontrar de novo, debaixo das cinzas de preocupações
cientificas, o resquício de fé sobrenatural depositado por minha mãe, cujos sentimentos religiosos
eram profundos". Escreveu um amigo seu: "Após ter-se insubordinado contra os fracassos
averiguados por nossos próprios olhos, chegou, por fim, a pôr sua confiança em Deus".
12. Charles de Foucauld foi educado de acordo com seus caprichos infantis. Após a Primeira
Comunhão perdeu a fé e entregou-se à licenciosidade. Fez-se militar no exército francês e foi servir
na África. No seu ritmo de idas e vindas foi seqüestrado. Começou então a repensar sua religião...
Foi procurar um sacerdote para pedir-lhe esclarecimentos e ouviu do padre as palavras: "Ajoelha-te e
confessa-te!" Charles o fez, e disse, mais tarde, ter sido inundado por luz e paz. Fez-se monge
trapista na Terra Santa. Mas preferiu a vida eremítica, que ele passou a viver heroicamente no
deserto do Saara, dedicando-se aos muçulmanos mais pobres. Certa noite, quando rezava, foi
assassinado. Seu testemunho de vida e seus poucos escritos suscitaram numerosos seguidores.
13. Léon Bloy era filho de pai sarcástico frente à religião (discípulo de Voltaire) e mãe religiosa
católica. Recebeu educação contraditória, que nele suscitou lutas internas entre a verdadeira crença
religiosa (sugerida por sua mãe) e os preconceitos (incutidos por seu pai). Aos poucos estes foram
desmoronando, mas com grande sofrimento para Bloy, que ele descreveu em sua obra "A Mulher
Pobre". Acabou pedindo o Batismo, mas nem por isto conseguiu definir o seu ritmo de vida: quis
tornar-se monge beneditino, mas não lhe foi possível, porque caía e recaía em seus vícios. Retirou-se
para um mosteiro cartuxo, afim de lá escrever; mas sua consciência lhe dizia que suas palavras não
correspondiam ao seu tipo de vida. Um belo dia pareceu-lhe ouvir uma voz interior que lhe dizia: "Se
fores dócil à graça, eu te anuncio com certeza alegrias tão profundas, tão intensas, tão puras, tão
luminosas que julgarás estar para morrer". Começou então uma vida nova, que com seus escritos e
conversas levou muitos irmãos a Deus.
As histórias narradas foram colhidas na obra Al Encuentro de Dias, Filosofia de la Religión, de
Jaime Velez Correa S.J. - CELAM, Bogotá l989, pp. 33-43.
O presente módulo não tem questionário, pois tenciona ser um complemento ilustrativo do
anterior (A Psicologia da Fé).

MÓDULO 18: CRITÉRIOS DA REVELAÇÃO (I) - CR. SUBJETIVOS


Em nossos últimos Módulos tratamos de Revelação Divina e Fé.
Para que os homens possam prestar fé à Revelação Divina, aceitando-a de maneira consciente,
deve ser assinalada por critérios de autenticidade ou por motivos de credibilidade. Não se deve crer
em qualquer coisa; a fé tem o direito de pedir credenciais para dizer o seu Sim.
Os critérios de credibilidade podem ser:
a) Subjetivos: paz profunda, segurança firme e felicidade experimentadas pelos fiéis, resposta às
aspirações profundas do ser humano; santidade dos arautos da Revelação.
b) Objetivos: o milagre; cf. Jo 5,36; 10, 37; 14,11; 15,24. a profecia; cf. Jo13,23; 14,2g; 16.4;
Mc13,23
Neste Módulo deter-nos-emos sobre os critérios subjetivos, apresentando um dos mais famosos
que é a chamada "aposta de Pascal".

Lição1: Quem foi Pascal?


Blaise Pascal (1623-1662) foi um matemático, físico e filósofo francês, gênio precoce.
Notabilizou-se pelo estudo da probabilidade. No fim da vida ocupou-se com temas de apologética da
fé. Dai resultou a coleção Pensées (Pensamentos), na qual se encontra a famosa "aposta pascaliana"
(Edição Mi. Brunschwig, pp. 436ss).
O pensamento de Pascal parte do mistério do homem, mistério que é também paradoxo. Pascal o
desenvolve em vários segmentos de sua obra:
"Através do espaço, o universo me engloba e me engole como um ponto; com o pensamento sou
eu que o compreendo"(Br. 348).
"A grandeza do homem é grande pelo fato de que ele se conhece miserável. Uma árvore não se
reconhece miserável" (fragm. 397).
"O homem é apenas um caniço, o mais fraco da natureza, mas é um caniço pensante. Não é
necessário que o universo inteiro se arme para o esmagar; um vapor, uma gota d’água basta para
mata-lo. Mas, mesmo que o universo o esmagasse, o homem ainda seria mais nobre do que aquilo
que o matasse, pois ele sabe que morre, ao passo que o universo ignora por completo a vantagem que
ele tem sobre o homem " (Br. 347).
Daí dizer Pascal:
"Portanto, toma consciência, ó soberbo, do paradoxo que és para ti mesmo" (Br.434).
O paradoxo se exprime também no fato de que "o homem supera infinitamente o homem" (Br.
434).
Pascal quer levar o homem misterioso á plena realização de seus anseios. Num universo que está à
deriva, o homem poderá encontrar o sentido da vida se aceitar a aposta de Pascal.
Lição 2: A Aposta: em que consiste?
1. Pascal imagina estar dialogando com um interlocutor incrédulo. Quer convencê-lo de que o
Cristianismo é a religião verdadeira, que professa a existência de um Deus Pai e Remunerador, "o
Deus de Abraão, de (saque e de Jacó". Não o consegue, porém, porque Deus é distante e sua imagem
fica muito pálida para a razão de quem pesquisa.
Como quer que seja, o incrédulo, senão aceita a argumentação, está um tanto abalado e disposto a
continuar o diálogo. - Pascal então faz como se renunciasse a argumentar: reconhece, no caso, que a
existência de Deus e a religião cristã não são o termo final de um raciocínio ou não podem ser a
conclusão de uma demonstração lógica rigorosa. Mas, acrescenta, impõe-se um dilema: ou Deus
existe ou Deus não existe; é necessário optar por uma dessas proposições contraditórias.
O interlocutor lhe responde que há um terceiro alvitre: não escolher coisa alguma, não se ocupar
com o dilema, pois as duas sentenças são obscuras. Pascal replica: quem não se pronuncia a respeito,
já se pronunciou, pois ficar indiferente é o mesmo que ser contrário (à existência de Deus). Já que,
para o interlocutor, não há evidência objetiva de nenhum dos dois alvitres, só resta apostar.
O interlocutor insiste em que "o correto é não apostar" ou não fazer opção alguma.
Responde Pascal: "É preciso apostar. Não se trata de querer ou não querer. Você embarcou". Faz-
se necessário então escolher, dos dois alvitres, o que tenha mais probabilidade de corresponder à
verdade ou o que faça correr menos riscos. Pois bem; pensando bem, é mais provável a hipótese de
que Deus existe, de modo a fundamentar a aposta. Porquê? - Porque, se alguém opta pela existência
de Deus, não arrisca coisa alguma. Com efeito: verdade é que, se aposto na existência de Deus, terei
de me coibir, renunciando a prazeres ilícitos; isto, porém, nada mais é do que o meu dever, a mim
imposto pela razão, mesmo que eu não queira apostar; o bom senso mesmo me pede que eu seja bom
cidadão, leal, temperante, casto - coisas estas excelentes. Caso eu me engane, tendo erroneamente
apostado por Deus, mesmo assim nada terei perdido; antes, terei vivido honestamente - o que é
valioso. Por conseguinte, se opto por Deus, nada tenho a perder e tudo tenho a ganhar, pois, se a
opção for comprovada como correta, terei lucrado a bem-aventurança celeste e a vida eterna.
E, caso opte contra Deus, que acontecerá? - Se for falsa tal opção, cairei nas mãos de um Juiz
severo, que me condenará, visto que terei optado consciente e voluntariamente contra Ele. Por
conseguinte, diante dos dois alvitres não há como hesitar; e, já que é preciso apostar (pois estamos
embarcados ou em viagem marítima), apostemos por Deus, dizendo: "Ele existe", e sejamos cristãos
por efeito de um cálculo de probabilidades e por decisão de nossa vontade (pois que não podemos ser
cristãos por convicção intelectual).
Responde o interlocutor: "Ó! Esse discurso me empolga, me encanta".
2. Os comentadores julgam que podem propor um paralelo á aposta de Pascal, formulando este
outro dilema:
Você está para confiar um tesouro ou os seus bens a uma nave, que os transportará para além-mar.
Você tem opção entre duas naves:
O comandante da primeira lhe diz: "Confie-me os seus bens. Nada lhe posso garantir em caso de
tempestade, mas afirmo-lhe (sem o poder provar) que não haverá que recear alguma tempestade".
O comandante da segunda nave lhe diz: "Confie-me os seus bens. Eu os garantirei contra todo
perigo e, em particular, contra as tempestades, que (sem que eu possa provar o que digo) são
constantes nos mares que vamos navegar".
A qual dos dois comandantes você confiaria seus bens? Qual o alvitre que lhe parece mais
razoável, o único razoável? Na sua Ignorância do futuro, não podendo prever os acontecimentos,
você raciocinaria do seguinte modo:
"Se confio na primeira nave, que não oferece garantias, procederei como se o perigo de
tempestades fosse ilusório, e, em caso de engano meu, perderei tudo o que possuo. Se, ao contrário,
confio na segunda nave, terei salvado os meus bens, caso o comandante esteja dizendo a verdade,
garantindo-me sua solicitude em caso de tempestade; no caso de não haver tempestade, nada terei
perdido. Portanto, só há vantagem em fazer a segunda opção. É uma aposta bem fundamentada".
Diria Pascal: os seus bens são você mesmo, é a sua salvação eterna. Ora você está embarcado;
você vive e tem que dar um rumo à sua vida, tem que atravessar o mar. Duas filosofias de vida lhe
são propostas (e somente duas):
- o racionalismo, que lhe diz não haver risco em navegar sem Deus; a viagem decorrerá calma até
o termo final, que será o nada, já que a morte, para o racionalista, põe fim a tudo;
- a proposta cristã, que lhe diz que a travessia é cheia de imprevistos e perigos, mas há intenção do
comandante em preservar a carga confiada aos seus cuidados, levando-a ao porto da vida eterna.
Se você é razoável, diante das duas propostas que se lhe apresentam, você optará pela fé. Se a fé é
ilusória, você nada perde. Mas, se o racionalismo é ilusório, você não vai parar no nada ou no
aniquilamento, e sim no inferno ou na condenação eterna; você perderá tudo.
Assim Pascal conclui que a atitude da fé é mais vantajosa ou é a única plausível.
Pergunta-se agora:
Lição 3: Que dizer?
Três observações vêm a propósito:

3.1. Defasagem
A aposta de Pascal podia ter significado no século XVII ou no ambiente de Cristandade (já
evanescente) do século XVII. Em nossos dias, porém, sendo a sociedade pluralista, o dilema
"Cristianismo ou Racionalismo" já não se impõe, visto que muitos Credos e muitas filosofias atéias
oferecem suas perspectivas aos não cristãos. Na sua época, porém, Pascal deve ter impressionado
leitores titubeantes na fé.

3.2. Ou cristão ou condenado?


Não se pode dizer que todo cidadão não cristão está fadado á condenação póstuma. Sem dúvida, o
Catolicismo continua a dizer que existem verdade e erro em matéria de religião; mas admite que
alguém possa estar professando o erro de boa fé ou consciente de que o erro é verdade. Se segue os
ditames de um Credo errôneo, julgando que são imperativos inelutáveis que a consciência lhe impõe,
não será julgado pelo Evangelho, mas pela fidelidade a tais ditames; essa pessoa estará seguindo o
único Deus dentro dos moldes nos quais Deus se lhe quis revelar. A propósito veja-se a Constituição
Lumen Gentium no16:
"O Salvador quer que todos os homens se salvem (cf. I Tm 2,4). Aqueles, portanto, que sem culpa
ignoram o Evangelho de Cristo e Sua Igreja, mas buscam a Deus com coração sincero e tentam, sob
o influxo da graça, cumprir por obras a Sua vontade conhecida através do ditame da consciência,
podem conseguir a salvação eterna. E a divina Providência não nega os auxílios necessários à
salvação àqueles que sem culpa ainda não chegaram ao conhecimento expresso de Deus e se
esforçam, não sem a divina graça, por levar uma vida reta. Tudo o que de bom e verdadeiro se
encontra entre eles, a Igreja julga-o como uma preparação evangélica, dada por Aquele que ilumina
todo homem, para que enfim tenha a vida". Cf. Gaudium et Spes no 22.
Este texto não implica relativismo religioso, pois o Concílio professa que a Revelação de Deus
permanece incólume na Igreja Católica (ver Lumen Gentium no 8), mas reconhece que muitas
pessoas em nossos dias não têm como chegar ao lúcido conhecimento da verdade revelada (não vêm
ao caso os que de má fé ou consciente e voluntariamente se detém no erro).

3.3. Viver como se Deus existisse...


Segundo Pascal, o indivíduo que apostasse na existência de Deus, teria fé manca, pois a fé é um
ato da inteligência movida pela vontade. O apostador, no caso, continuaria ignorando que Deus
existe, mas se afastaria de todo comportamento contrário à Lei de Deus gravada no homem (= lei
natural). Ora esta atitude não pode ser duradoura; será um encaminhamento para a fé plena, pois é de
crer que Deus se revela com clareza a quem se esforça por viver conforme a sua santa Lei. Não há
dúvida, porém, de que o processo proposto por Pascal é valido para desencadear um tipo de vida que,
cedo ou tarde, se deve tornar plenamente cristã; a caminhada para Deus pode começar por uma
aposta. Pascal foi um gênio matemático; em conseqüência, concebeu um itinerário religioso baseado
no cálculo das probabilidades. É algo de singular, que merece respeito e admiração, mas não parece
apto a convencer os incrédulos de nossos dias.

PERGUNTAS
1) Quem foi Blaise Pascal? Como via ele o ser humano ?
2) Que acontece se o homem aposta pela fé em Deus, conforme a aposta ?
3) E... se opta contra Deus?
4) Que significado tem a aposta para o cidadão contemporâneo ?
5) Quem não é cristão, será necessariamente condenado para sempre?
6) Pode alguém ter uma fé meramente intelectual?

MÓDULO 19: CRITÉRIOS DA REVELAÇÃO (II) CR. OBJETIVOS (MILAGRES)


Os critérios objetivos da Revelação Divina são aqueles sinais que todos podem averiguar
independentemente de tendências ou preconceitos pessoais. São dois: o milagre e a profecia.
Estudemo-los sucessivamente.

Lição 1: O Milagre nos Evangelhos


Jesus, principalmente no quarto Evangelho, refere-se aos sinais (semeia) e obras (erga) que Ele
realiza, como motivo de credibilidade. Assim em
Jo 5,36: "Tenho um testemunho maior do que o de João: as obras que o Pai me encarregou de
consumar. Tais obras, eu as faço, e elas dão testemunho de que o Pai me enviou".
Jo 10,37s: "Se não faço as obras de meu Pai, não acrediteis em mim; mas, se as faço, mesmo que
não acrediteis em mim, crede nas obras, a fim de conhecerdes... que o Pai está em mim, e eu no Pai".
Jo 14,11: "Crede-me: eu estou no Pai, e o Pai está em mim. Crede-o, ao menos por causa dessas
obras".
Jo 15,24: "Se eu não tivesse feito entre eles as obras que nenhum outro fez, não seriam culpados
de pecado, mas eles viram e nos odeiam, a mim e ao Pai".
Os milagres são, pois, os sinais que Jesus realiza para facilitar a adesão à sua Palavra: são um
comprovante da Palavra, relativo à pregação de Jesus, que eles confirmam. Por conseguinte não
podem ser considerados como mera ostentação ou show da onipotência divina ou como algo que
tenha sentido em si mesmo; são essencialmente relativos a um estado de dúvida que eles dissipam.
Vejamos agora como a Teologia elabora o conceito de milagre.

Lição 2: Milagre - que é?


A palavra milagre (miraculum) significa algo que causa admiração. Designa um acontecimento
produzido fora das leis da natureza. Não está fora do plano geral da Providência, mas fora do alcance
das criaturas.

2.1. O conceito
A noção de milagre está hoje um tanto desacreditada, porque, de um lado, a medicina e a
parapsicologia têm progredido, explicando fenômenos outrora inexplicáveis e, de outro lado, correm
tantos rumores populares de milagre que o conceito vai caindo em descrédito, visto que está sendo
mal formulado.
Apesar de tudo, a Teologia admite a possibilidade de milagre. E admite, desde que se realizem os
três seguintes requisitos:
1) Trate-se de um fato real... Este deve ser averiguado com exatidão, para que se tenha notícia fiel
à realidade ocorrida. Freqüentemente os relatos de milagres correntes, entre a gente simples devem-
se tão somente à fantasia popular, que os tornou "portentosos".
2) Trate-se de fato real que as ciências naturais contemporâneas ao fato não possam em absoluto
explicar. A Igreja não faz questão de descobrir ou impingir milagres ao público; desde que qualquer
brecha se ofereça para uma elucidação científica, o fato portentoso deixa de ser considerado pelos
teólogos. A Igreja apenas aceita os milagres que, à luz de crítica objetiva e severa, pareçam
realmente ser sinais de Deus.
Duas das notas características das curas milagrosas consistem em que:
a) ocorram em casos de doenças orgânicas e lesões físicas, não nos casos de doenças
funcionais(que podem facilmente ser dissipadas por desbloqueio psicológico),
b) ocorram instantaneamente, pois, quando a natureza e a medicina curam doenças orgânicas,
geralmente o fazem paulatinamente.
Indagará alguém: mas por que basta que a ciência contemporânea ao fato tido como milagroso
não possa explicar tal fato? Não seria mais lógico afirmar que o milagre é um acontecimento que a
ciência jamais, nem daqui a cinqüenta ou cem anos, poderá explicar?
- Não. Se o essencial do milagre consistisse em ser sinal maravilhoso ou portentoso, poder-se-ia
incluir em seu conceito a cláusula de "inexplicável mesmo em época futura" Como, porém, o milagre
é, antes do mais, um sinal,... sinal de Deus que fala aos homens em determinado contexto da história,
basta que nesse preciso contexto os homens não tenham explicação natural para o portento nem
entrevejam alguma pista para chegar á elucidação científica do fato. Se não há realmente nenhuma
explicação ou sombra de explicação no momento e se o quadro dentro do qual o fenômeno se
produziu é digno de Deus, pode-se crer que o Senhor aí tenha proferido sua palavra mais enfática que
é o milagre.
3) O fato histórico inexplicável pela ciência deve ter ocorrido em contexto que possa merecer a
chancela ou a resposta do Senhor Deus. Vê-se, pois, que não basta o aspecto portentoso do fato. Com
efeito; se o milagre é sinal, deve-se inserir em âmbito de diálogo entre Deus e as criaturas. Por
conseguinte, não pode ser milagre no sentido da apologética católica qualquer fato portentoso que
confirme a vaidade, o espírito mercenário ou comercial, os vícios, o charlatanismo... Se, por
hipótese, alguma vez se verifique um fenômeno inexplicável pela ciência em moldura de pecado e
corrupção, dir-se-á que se trata de armadilha do demônio. Tal caso, porém, é tido como
extremamente raro, pois, nos ambientes de vícios, os portentos são geralmente explicáveis pela
psicologia e a parapsicologia...
Exemplo típico de milagre-sinal é o da cura do paralítico em Mc 2,3-12: Jesus, ao vê-lo, perdoou-
lhe os pecados; visto que os circunstantes não acreditavam na validade do gesto do Senhor, Este
mandou que o paralítico se levantasse e andasse. O "sinal" comprovou a autoridade de Jesus; tornou-
se uma palavra mais eloqüente do Senhor Jesus.
Precisamente porque acredita no valor dos milagres, a Igreja exige, para a canonização dos
Santos, milagres comprovados: estes são tidos como sinais de Deus que autenticam as virtudes dos
Santos e possibilitam á Igreja propor tais fiéis como amigos de Deus e intercessores dos homens.

2.2. Como averiguar o milagre?


Para poder falar de milagre na Igreja, requerem-se sucessivas perícias médicas: o exame de cada
caso começa na própria diocese da pessoa tida como virtuosa; os médicos locais estudam o ocorrido
e recolhem toda a documentação atinente ao fato. O material é enviado à Santa Sé, que submete o
caso à "Consulta Médica" da S. Congregação para as Causas dos Santos; uma Comissão de cinco
médicos examina os dados com plena liberdade científica e autonomia de decisão: as discussões
podem tornar-se candentes. Desde que os médicos reconheçam a total inexplicabilidade do caso, este
é levado a exame teológico, que ocorre em duas fases: primeiramente, há uma sessão de teólogos
apenas, que investigam os aspectos religiosos das ocorrências (terá havido aí manifestações
supersticiosas, vã glória ou, ao contrário, autêntica piedade?); depois, o documentário é apresentado
a uma Congregação de Cardeais e Bispos. Os resultados de todas essas perícias são levados ao Papa;
se este os reconhece como válidos, lê-se na sua presença o decreto referente à validade do milagre.
Assim é aberto o caminho para a Beatificação ou para a Canonização da pessoa em foco. O Santo
Padre pode dispensar da exigência de milagres desde que haja evidência de se tratar de um mártir que
derramou o sangue estritamente por fidelidade à fé católica.
Observa o Dr. Marcello Meschini, médico legista de Roma e Secretário dos Processos de
Averiguação dos Milagres na Cúria Romana:
"Para que uma cura seja por nós considerada como cientificamente inexplicável e milagrosa,
precisamos de conhecer bem o diagnóstico e as probabilidades de cura; precisamos também de saber
se foi cura definitiva, completa, obtida sem tratamento adequado e em período de tempo não natural,
isto é, de maneira instantânea ou inexplicavelmente rápida.
Para poder definir isto tudo, requer-se evidentemente uma documentação rigorosa a ser estudada
pela Postulação da Causa, que nem sempre é fácil obter; os peritos podem pedir novas pesquisas e,
mesmo assim, são muitas vezes obrigados a pronunciar-se negativamente por falta de documentos
suficientes".
Vê-se assim como a Igreja é cautelosa no exame dos casos tidos como milagrosos; não lhe
interessam casos fictícios, precipitadamente avaliados.
Pergunta-se agora:
Lição 3: O milagre é possível?
A possibilidade do milagre se evidencia pelo fato de que Deus não está limitado pelas leis da
natureza que Ele criou; por isto pode intervir na atividade das criaturas não somente como causa
primeira e universal, mas também como causa particular, que substitui a ação das criaturas. Tais
intervenções de Deus são raras e não alteram a ordem geral da natureza como tal. Aliás, elas devem
ter sempre um propósito ou uma razão de ser adequada e de relevo, pois Deus não faz exceções às
leis naturais apenas para ostentar sua onipotência; por conseguinte, cada milagre tem sempre a dupla
finalidade de promover a glória externa de Deus e o aperfeiçoamento da criatura; assim os milagres
geralmente ocorrem ou para revelar aos homens uma verdade salutar ou para evidenciar a santidade
de um(a) servo(a) de Deus, estimulo de vida reta e heróica para os demais homens.
Dirá alguém: mas que significa "fugir à ordem natural ou normal dos acontecimentos?" Hoje em
dia os cientistas discutem a respeito de determinismo ou indeterminismo das leis da natureza. Pelo
fato de um fenômeno escapar ao curso comum das leis naturais, pode-se logo dizer que resulta de
uma intervenção extraordinária de Deus? Este é o ponto mais nevrálgico de toda a temática que
estamos abordando.
Em resposta devemos distinguir o plano físico e o metafísico.
No plano físico, as ciências contemporâneas ensinam que o determinismo dos fenômenos
macrofísicos não é senão o resultado de um sem número de reações microfísicas e que cada uma
dessas reações é indeterminada. É a repetição constante dos mesmos fenômenos macrofísicos que
permite estabelecer leis físicas; estas são praticamente tão estáveis que se pode falar de determinismo
absoluto dos fenômenos naturais. - Os cientistas assim falam sua linguagem, suficiente para o bom
entendimento dos pesquisadores entre si.
O plano metafísico vai mais a fundo e afirma o determinismo de cada fenômeno. Sim, afirma que
todo ser contingente deve ter sua explicação ou sua causa adequada ou sua razão suficiente. Não se
pode dizer que qualquer causa produz qualquer efeito; cada causa tem sua capacidade de agir bem
definida e produz efeitos correspondentes e definidos, desde que não seja perturbada em seu agir.
Dato determinismo das leis da natureza, que nem sempre pode ser averiguado, pois fatores estranhos
podem interferir no agir das causas naturais. - Os físicos não entram na metafísica; por isto não
pretendem negar o determinismo metafísico.

Lição 4: Espécimens de milagres comprovados


Nos arquivos da Igreja (Congregação para as Causas dos Santos) há o registro de fatos
portentosos rigorosamente examinados e finalmente tidos como autênticos sinais de Deus ou
milagres. Eis alguns espécimens:
1) Em setembro de 1981 um menino de cinco anos chamado William Guillén saiu a pescar com
seu pai na Lagoa de Calcara. Quando segurava pela cauda um peixe com a mão direita, este lhe
arrancou o dedo mindinho da mão esquerda. Regressando à terra, o pai conseguiu extrair do peixe o
dedo, e a mãe do menino o enterrou. Levada ao Hospital de Calcara, a vítima foi atendida por um
médico, que pediu que lhe levassem o dedo, sobre o qual as formigas já se haviam acumulado. O
doutor sugeriu então que rezassem à bem-aventurada Maria Rosa Molas, implorando a sua
intercessão em prol da recuperação da criança. E procedeu a um implante rudimentar do dedo numa
intervenção cirúrgica que durou apenas vinte minutos e que cientificamente não tinha probabilidade
de êxito. Eis, porém, que ao cabo de seis dias o médico verificou que o dedo havia retornado o seu
lugar exato na mão do menino como se absolutamente nada tivesse acontecido. - O caso foi levado à
Junta Médica da Congregação para as Causas dos Santos, que aos 23/01/ 1987 declarou
humanamente inexplicável a cura assim obtida. Em ulterior instância, os teólogos aos 15/03/1988,
reunidos com os Cardeais e Bispos da mesma Congregação, houveram por bem reconhecer nesse
fato extraordinário um sinal de Deus que autenticava a santidade da bem-aventurada Maria Rosa
Molas: o Santo Padre João Paulo 11 confirmou a sentença e resolveu celebrar a respectiva cerimónia
de Canonização aos 11/12/1988.
2) Uma menina canadense, afetada de leucemia, era vítima também de um tumor retroesternal
(atrás do osso esterno), dentro da caixa torácica - o que lhe acarretava sufocação crescente. Apesar de
sucessivas intervenções cirúrgicas, a situação da menina foi-se agravando ao ponto que os médicos
recomendaram aos pais que a levassem para casa a fim de que morresse entre os seus. Na falta de
esperança de cura, os genitores chegaram a preparar o traje com que a menina seria sepultada. Eis,
porém, que um dos familiares lhes sugeriu começassem uma novena a um "Servo de Deus" cuja
causa estava sendo examinada em Roma. Ora a paciente foi piorando sempre até o último dia da
novena, quando, com enorme supressa de todos , ela se sentou na cama e pediu alimentação. As suas
atitudes doravante eram de uma pessoa sadia. Foi então submetida a rigorosos exames médicos, que
evidenciaram a total inexplicabilidade do fato; todavia antes de emitir um juízo sobra a cura, os
peritos esperaram oito anos, a fim de se certificar de que o tumor não tornaria a aparecer. Após este
prazo, os médicos puderam afirmar a plena inexplicabilidade científica da cura.
3) Um menino indiano nascera como os pés tortos; as plantas dos pés não pousavam sobre o chão,
mas estavam voltadas uma para a outra, de modo que só era possível á criança arrastar-se sobre a
parte lateral dos pés. O médico de sua pobre aldeia natal diagnosticara o caráter definitivo e
irreversível da deformação. Com efeito, o menino, ao crescer, não pudera senão aprendera arrastar-se
com muito cansaço, apoiando-se em duas bengalas. Certa manhã, quando penosamente se dirigia à
escola distante três quilômetros da choupana de sua família, deixou-se cair esgotado numa atitude de
desespero. Sua irmã, jovenzinha, o acompanhava; para consolá-lo, propôs-lhe que orassem. Mas a
quem haveriam de rezar? A menina lhe sugeriu que invocassem a Fundadora do Instituto Religioso
no qual sua tia se fizera freira. Esta, com efeito, dizia muitas vezes que a Madre "fazia milagres".
Dito e feito; as duas crianças invocaram a Madre e logo ocorreu a cura. O enfermo pôde
imediatamente desfazer-se de suas bengalas e caminhar normalmente até a escola, onde todos
conheciam a sua deformação e, por isto, ficaram perplexos. Para dissipar as dúvidas sobre a realidade
dos fatos, pediram ao menino que fosse jogar bola com os colegas; ele o fez, sim, naturalmente
experimentando o grande cansaço de quem treina pela primeira vez.
4) Havia uma menina afetada de piodermite, isto é, uma infecção da pele que se estendia sobre o
rosto inteiro; com o tempo, a doença poderia provocar danos orgânicos, mas no momento limitava-se
a desfigurar a paciente (causando-lhe, sem dúvida, distúrbios psicológicos). Ora a invocação do
Servo de Deus N.N. provocou o completo e definitivo desaparecimento da moléstia no decorrer de
uma noite. O caso foi reconhecido como milagroso e ocasionou a glorificação do "candidato".

Lição 5: Milagres na literatura helenistica antiga


Para ilustrar o conceito teológico de milagre, vão, a seguir, citados casos de portentos narrados
por autores helenísticos antigos.
Sabe-se que em Epidauro (Grécia) havia perto do templo de Asclépio ( o Asclepeion) uma fonte
sagrada; o acesso ao templo era facultado por duplo pórtico; este, com suas arcadas, servia de
dormitório (ábaton)9 posto à disposição dos peregrinos que aguardavam a cura. No ábaton os
sacerdotes praticavam um rito que adormecia o paciente (egkoímesis); este então mergulhava em
sono sagrado, que o dispunha a receber as comunicações da Divindade. Esta, como se pregava,
aparecia durante o sono e explicava ao doente como ficaria curado. Tal sonho era o grande objetivo
da peregrinação. Os enfermos visitados pela Divindade durante a noite davam-se por curados desde a
manhã ou, ao menos, diziam ter recebido as indicações terapêuticas que os curariam. Depositavam
sua oferta no templo e voltavam para casa.
Nas paredes internas do santuário de Epidauro, encontram-se relatos escritos de curas aí obtidas.
Seis desses narram casos de mulheres que, após a aparição da Divindade em sonho ou depois de ter
tido relações com o deus local, deram à luz . Assim, por exemplo:
"Cléo estava grávida havia cinco anos. Por isto, suplicante, foi ao templo do deus; adormeceu no
ábaton. Logo que saiu desse e se viu fora do templo, deu à luz um menino, que, ao aparecer, se
lavou na água da fonte e se pôs a caminhar junto à mãe".
Uma dezena de casos refere-se a doenças da vista. A falta de higiene ocasiona tais moléstias. O
termo "cegueira", em tais relatos, significa "inflamação e abcessos das pálpebras", os quais podem

9
Ábaton, em grego, é lugar inacessível ou santuário.
sertão violentos que a visão cesse. A cura, jorém, de tais males está ao alcance da medicina. Eis
alguns espécimens:
"Um homem foi ter ao templo em súplica. Estava caolho. As duas pálpebras não recobriam coisa
alguma... No templo as pessoas o tinham por muito simplório por acreditar que recuperaria a vista,
pois do seu olho nada ficava senão o respectivo lugar. Enquanto dormia, foi agraciado por uma
visão; parecia que a Divindade lhe preparava um remédio; abria-lhe as pálpebras e nelas derramava o
remédio. Por ocasião da aurora, saiu e enxergou com os dois olhos".
"Um cego perdeu o seu colírio durante o banho. Dormiu no ábaton, sonhou que a Divindade lhe
aconselhava que procurasse o colírio no grande albergue à esquerda, na entrada. Uma vez nascido o
dia, o cego, auxiliado por um escravo, foi procurar o colírio. Entrou no albergue, viu o colírio e ficou
bom".
"Timão de X, foi ferido por um golpe de lança abaixo do olho. Enquanto dormia, teve um sonho;
pareceu-lhe que a Divindade triturava uma erva e lhe derramava algo no olho. Ele está curado".
Há também casos de mudez e paralisia:
"Uma jovem muda perambulava no santuário. Viu uma serpente descer de uma árvore e penetrar
dentro da alvenaria. Espantada, ela chamou o pai e a mãe. Voltou curada".
"Clemenes de Argos estava paralítico. Apresentou-se no ábaton; adormeceu e teve um sonho: a
Divindade o envolveu com uma coberta vermelha, levou-o ao banho fora do recinto sagrado, num
tanque de água muito fria. Tremia de angústias; Asklepios disse-lhe que ele não curava os covardes,
mas, sim, tão somente aqueles que o procurassem com confiança. Ele não lhes fazia mal algum, mas
despedia-os, curados, para casa. Clemenes acordou, tomou um banho, e voltou em perfeito estado".
Há dois casos de feridas purulentas e um de tumor abdominal, que parecem supor uma
intervenção cirúrgica elementar:
"Ferido por uma lança, Evippos tinha a ponta da mesma encravada ha maxila havia seis anos.
Adormeceu no ábaton; a Divindade lhe retirou essa ponta de lança e a colocou em suas mãos.
Quando despontava o dia, ele se foi curado, levando a ponta nas mãos".
"N.N. de X está ferido no peito. A chaga é purulento; foi ter com a Divindade em súplicas.
Dormiu no ábaton e teve uma visão: a Divindade lhe lavou o peito com leite fresco e untou a ferida
com ungüento. Depois de tê-la enxugado, ordenou-lhe que se lavasse na água fria. Ao despertar,
mergulhou na água corrente e ficou curado".
"Um homem sofria de tumor no abdômen. Teve um sonho no ábaton: a Divindade mandou a seus
auxiliares que o imobilizassem e lhe abrissem o ventre. Ele fugiu, mas foi apreendido e atado quando
atravessava a soleira da porta. Asklepios abriu-lhe o ventre, retirou-lhe o abcesso e coseu a ferida ; o
doente foi desatado. Voltou curado; o solo estava coberto de sangue".
Eis ainda dois casos:
"Erasipa de C. tinha o ventre inchado e nada conseguia digerir. Dormiu no ábaton; teve um
sonho; a Divindade lhe fazia massagens sobre o abdômen e a abraçava; depois o deus lhe ofereceu,
numa taça, um remédio, que lhe mandou beber; forçou a vomitar; ela o fez, sujando a sua roupa. Ao
nascer do dia, verificou que o vestido estava todo sujo de vômitos; sentiu-se curada".
"N.N. de X. sofria de um tumor. Entrou no santuário. Não obteve o que pedia. A Divindade não se
mostrou durante o seu sono no ábaton; ele julgou então ter sido esquecido pelo deus e voltou para
casa. Todavia, não podendo suportar por mais tempo a dor, quis suicidar-se transpassando o abcesso
com uma punhalada. A sua filha encontrou-o desfalecido, tomou-o nos braços, retirou o punhal. O
sangue jorrou do tumor e o doente ficou curado".
Outras semelhantes narrações poderiam ser aduzidas. Estas, porém, são suficientes para
evidenciar que os "milagres" de Epidauro são
- fatos que as ciências médicas e a psicologia explicam satisfatoriamente;
- as narrações respectivas devem-se, em grande parte, à fantasia do narrador, que explora a
capacidade de admiração dos leitores;
- diferem profundamente das narrações evangélicas tanto pelo conteúdo como pela forma,
evidenciando que os Evangelistas estão longe de haver plagiado os relatos populares de portentos
antigos.
PERGUNTAS
1) Que é milagre?
2) Como aparece o milagre nos Evangelhos?
3) É possível o milagre ?
4) Que se entende por "princípio de razão suficiente"?
5) Quais as principais diferenças entre milagres hoje comprovados e os milagres helenísticos?

MÓDULO 20: CRITÉRIOS DA REVELAÇÃO (III) CRITÉRIOS OBJETIVOS (PROFECIA)


O segundo critério objetivo da Revelação Divina é e profecia.

Lição 1: Noção e Significado de Profecia


Etimologicamente falando, a palavra "profecia" vem do grego prophetéia e se compõe do verbo
phemí (dizer) e da preposição pro, que pode significar "em lugar de" e "antes de". Donde o duplo
sentido do substantivo prophetéia, profecia: dizer em lugar de ou em nome de alguém (= Deus) e
dizer antes de ou antecipadamente. O profeta, portanto é alguém que fala em nome de Deus ou para
analisar a história presente, contemporânea, ou para predizer o futuro. À Teologia Fundamental
interessa a profecia como predição do futuro.
Se alguém prediz, com antecedência de séculos, o futuro livre, contingente (dependente do livre
arbítrio humano), só o pode fazer por graça de Deus. Julga-se que o profeta é assistido por Deus e,
quando o evento se realiza, é considerado um sinal de Deus; ele tem a chancela de autêntica
intervenção ou revelação divina.
Jesus recorreu à profecia para incutir a certeza de que os acontecimentos preditos seriam genuínos
sinais de Deus. Assim em
Jo 13,19: "Digo-vos isso (a traição de Judas) agora, antes que aconteça, para que, quando
acontecer, creiais que EU SOU".
Comentando, pode-se dizer: a traição de Judas e a morte de Jesus deveriam fortalecer a fé dos
Apóstolos, mostrando-lhes o saber divino de Jesus e a veracidade das Escrituras (Jesus citara, pouco
antes, o SI 41,10).
Jo 14, 28s:"Vós ouvistes o que vos disse: 'Vou e retorno a vós'... Eu vo-lo disse agora, antes que
aconteça, para que, quando acontecer, creiais".
Jo 16,4: "Eu vos digo tais coisas, para que, ao chegara sua hora, vos lembreis de que eu vos havia
dito".
Mc 13,23: "Quanto a vós, ficai atentos. Eu vos predisse tudo".
No Antigo Testamento, o próprio Deus faz questão de enfatizar as suas predições, pois
comprovam que Ele é o único Deus;
Is 45, 21: "Quem proclamou isto desde os tampos antigos? Quem o anunciou desde muito? Não
fui eu, Iahweh? Não há outro Deus fora de mim; Deus justo e salvador não existe a não ser eu".
Is 46,9s: "Lembrai-vos das coisas passadas há muito tempo, porque sou Deus e não há outro! Sim,
sou Deus e não há quem seja igual a mim. Desde o princípio anunciei o futuro; desde a antiguidade,
aquilo que ainda não acontecera. Eu digo: o meu propósito será realizado, hei de cumprir aquilo que
me apraz".
Ver ainda Is 41,26s.

Lição 2: A figura do Messias no Antigo Testamento


Os livros do Antigo Testamento predizem, com séculos de antecedência, traços característicos do
Messias ou do Senhor Jesus - o que contribui para autenticar a pessoa de Jesus Cristo como genuíno
Legado do Pai e arauto de mensagem divina.
Com efeito. A história bíblica é, sim, apesar de todos os escândalos e vicissitudes que os homens
nela disseminaram, um movimento ascensional continuo: um povozinho do Oriente, destituído de
gênio (ao lado das grandes civilizações do Egito, da Mesopotâmia, da Pérsia, da Grécia e de Roma),
por si sempre tendente ao grosseiro e material, pôde ser durante quase 2000 anos o depositário e
defensor da fé num Deus transcendente e em verdades sublimes que nem os grandes filósofos pré-
cristãos souberam conceber (a criação do mundo a partir do nada, a Providência paterna do Criador,
a justa sanção etc.); mostrando-se continuamente incapaz de viver coerentemente com tão elevada
sabedoria, Israel, não obstante, guardou e afinal, após dezoito séculos, transmitiu ao mundo o seu
patrimônio de sabedoria. É isto o que, antes do mais, caracteriza á história sagrada como mensagem
divina, perene. É esta grande visão que deve dominar a interpretação dos acontecimentos particulares
do Antigo Testamento.
Sendo assim, importa chamar a atenção para o fato de que há na Bíblia o que se poderia dizer
"linhas-mestras" ou "fios condutores", que constituem a estrutura, as notas essenciais, desse Livro.
Dessas linhas-mestras, uma é como que a artéria central: a REVELAÇÃO DO MESSIAS.
Na verdade, a figura do Messias foi sendo delineada progressivamente no Antigo Testamento, de
acordo com a capacidade dos homens simples a que a mensagem bíblica se dirigia:
1. Os livros mais antigos de Israel põem em realce principalmente a face humana do Messias:
descrevem-no como Grande Herói, Rei Vitorioso. Tal é o aspecto predominante nos livros históricos
do Antigo Testamento, aspectos que o povo rude, afeito às guerras e pouco dado à Filosofia, mais
facilmente podia apreender.
2. Livros posteriores ao exílio babilônico (587-538), ditos sapienciais, descrevem o aspecto
transcendente do Messias: falam da Sabedoria de Deus como se fosse Pessoa que de toda a
eternidade existe com o Criador e exerce o papel de Medianeira entre o Autor do mundo e o gênero
humano; todos os bens divinos se concentram nessa Sabedoria, cara a Deus e amiga dos homens.
3. Outros livros do Antigo Testamento posteriores ao exílio (587-538) desvendam o aspecto mais
misterioso do Messias: é, sim, Rei Vitorioso, Sabedoria eterna, mas não cumpre sua missão de
beneficiar os homens senão mediante o sofrimento e a morte. Eis o aspecto do Messias Deus e
Homem, que se encontra principalmente nos livros proféticos.
Em esquema (na página seguinte) assim se dispõem os principais traços do Cristo
no Antigo Testamento:
HOMEM (E DEUS) DEUS (E REDENTOR (HOMEM-DEUS)
Data aproximada HOMEM) Data aproximada
1a cena da história sagrada: O Data 720: Nascimento virginal: Is 7, 14; Cf. Mt 1, 23.
Messias é da linhagem da mulher que aproximada 720: O Messias possui a plenitude do Espírito
luta contra a serpente. Gn 3, 15. Séc. V a.C. A Santo: Is 11, 1-9.
Após o dilúvio: Dentre os filhos da Sabedoria só a 600: O morticínio dos Santos Inocentes. Jr 31,
mulher e Semita. Gn 9, 26s. Deus é 15; Cf Mt, 2, 17s.
1800 a.C.: Dentre os semitas, é filho conhecida: Jó 490: A vinda do Precursor. Ml 3, 23s; Cf. Mt 17,
de Abraão. Gn 12, 1-3. 28. 10-13.
1600: Dentre os filhos de Abraão, é Séc. V/IV 540(?): A missão do Messias: ungido para
Rei da Tribo de Judá. Gn 49, 10. a.C. A anunciar a Boa Nova. Is 61, 1s; cf. Lc 4,16-21.
1000: Dentre os filhos de Judá, é Sabedoria, 164: O Filho do Homem, Rei e Juiz.
filho do rei Davi. 2 Sm 7, 4-16; cf. Lc preexistente ao 520: Rei Sobre o jumentinho. Zc 9, 9s; Cf. Mt
1, 31-33. mundo, assiste 21, 5.
720: Oriundo de Belém, aldeia de à Criação: Pr 8, 540(?): O Servo de Javé padecente. Is 42, 1-
Davi. Mq 5, 2-5; cf. Mt 2, 6. 22-36. 7;49, 1-7; 50, 4-9; 52, 13-53, 12.
1240: É grandioso, vitorioso. Nm Séc. II a.C. 520: A Paixão do Messias. Zc 12, 10; 13, 7; cf.
23s, principalmente 24, 17. A Sabedoria Jo 19, 37.
600: Novo Davi. Jr 33, 14-17. procedente da 540(?): O preciosíssimo Sangue; a ressurreição.
720: Príncipe da paz. Is 9, 5s. boca do Is 63, 1-6.
590: O Bom Pastor. Ez 34, 23-31; cf. Altíssimo: Eclo 1240: O sacrifício de Cristo prefigurado pelo
Jo 10,11. 24, 3-21. Cordeiro pascal: Ex 12, 1-14; Nm 19, 12; Cf. Jo 19,
161: O Reino Messiânico inaugurado Séc. II/I a.C. 36.
pela pedra que se desprende da A Sabedoria 1240: A Nova Aliança é prefigurada pela Antiga.
montanha. Dn 2, 31-45. personificada e Ex 24, 3-8; cf. Lc 22, 20; I Cor 11, 25.
720: Reino universal. Is 2, 1-5; 19, transcendente: 600: A Nova Aliança é anunciada
19-25. Sb 7, 22-8, 1. 490: A oblação pura, o sacrifício novo. Ml 1, 11.
600: Reino universal. Jr. 3, 17; 4, 2. ?: O Espírito Santo comunicado pelo Messias. Jl
540 (?) A nova Jerusalém 3, 1-5; Cf. At 2, 17-21.
620: O Juiz universal e o "dia do Senhor". Sf 1,
2-18; 3, 9-11.
720: Renovação da natureza. Is 11, 6-9; 35, 1-10.

Lição 3: O Valor da Profecia


A profecia como tal, proferida a grande distância dos acontecimentos preditos, é realmente um
sinal de credibilidade de tais acontecimentos. Este é o caso das profecias bíblicas. É de notar, porém,
que são geralmente sóbrias, expressas em linguagem nem sempre muito clara. Todavia o conjunto de
tais profecias assinala suficientemente Jesus de Nazaré como Messias.
De modo geral, o caráter profético do Antigo Testamento pode cair em descrédito se o leitor se
põe a interpretar de maneira subjetiva e sem base sólida os textos bíblicos, pretendendo descobrir
profecias onde de fato elas não existem. inflige violência ao texto e prejudica a sadia exegese.
Quanto às profecias pós-bíblicas, apontadas pelos estudiosos no decorrer da história do
Cristianismo, têm menos valor persuasivo do que os milagres, pois a parapsicologia atualmente
reconhece a pré-monição e a pré-cognição como fenômenos naturais. Fica aos cuidados de cada fiel
católico analisar a credibilidade sobrenatural dessas predições e dar-lhes crédito ou não.
O fim do século XX suscitou numerosos profetas e profecias pouco fidedignos, pois fantasiosos e,
por vezes, aberrantes em relação à fé católica. De modo especial, o terceiro segredo de Fátima foi
explorado como pretenso respaldo para predições imaginosas e desmentidas pelo próprio desenrolar
da história. É de notar que as autênticas profecias bíblicas são sóbrias, ao passo que as modernas
predições são minuciosas e muito aptas a satisfazer à curiosidade.
PERGUNTAS
1) Que significa a palavra "profecia"?
2) É valorizada a profecia na Bíblia ?
3) Cite cinco traços da figura do Messias apresentada pelo Antigo Testamento.
4) Porque as profecias pós-bíblicas sofrem descrédito?

III. CREIO EM JESUS CRISTO


A terceira Parte do nosso Curso versa sobre Jesus Cristo. O fenômeno religioso leva a crer em
Deus, e a crença em Deus, segundo a Teologia Católica, leva a crer em Jesus Cristo ou Jesus
Messias.
Examinaremos a figura de Jesus Cristo como quem procura os fundamentos da fé em Cristo. A
Teologia Sistemática estudará Jesus Cristo do ponto de vista da fé, aprofundando a pessoa e a obra
de Cristo. No presente Curso procuramos as razões para crer. A primeira questão que a crítica
formula, é a da existência de Jesus.

MÓDULO 21: EXISTIU JESUS CRISTO?


A crítica radical chegou a negar a própria existência de Jesus Cristo, que alguns quiseram
identificar com uma figura mitológica. Verdade é que, em nossos dias, tal hipótese quase não
encontra seguidores. Como quer que seja, examinemos os documentos-fontes que atestam a realidade
histórica de Jesus Cristo.

Lição 1: O ambiente em que viveu Jesus


À diferença do que se dá com outros chefes religiosos, o quadro em que Jesus viveu, é
eminentemente histórico. O Império Romano do século 1é-nos bem conhecido. Grandes escritores,
cujas obras chegaram até nós, estavam em vida: Tito Lívio, Sêneca, Virgílio...
Um grande número de personagens que acompanharam Jesus, é iluminado por documentos não
cristãos: César Augusto, Tibério César, Pôncio Pilatos, Herodes, Filipe, os sumos sacerdotes Anãs e
Caifás, João Batista...
Além disto, os costumes e a cultura dos homens que cercaram Jesus, correspondem ao que fontes
não cristãs referem a respeito da Palestina.
Jesus, portanto, é uma figura bem situada no tempo e no espaço, o que não ocorre com Orfeu,
Osiris, Mitra...
Os observadores, porém, estranham que a respeito dele tenham tão pouco falado os cronistas
romanos. O fato deixa de ser surpreendente desde que se pondere que Jesus viveu num rincão do
Império Romano (a Palestina). Ademais a obra de Jesus pôde, a princípio, não parecer mais do que
um motim dos muitos que agitavam a Palestina no século I: assim o livro dos Atos dos Apóstolos 5,
36s nos refere o levante de um certo Teudas e o de Judas galileu, que foram frustrados. Somente
quando o Cristianismo penetrou no Império Romano e começou a sacudir as populações e mudar os
costumes é que Jesus e os cristãos chamaram a atenção do grande público.
Ademais é de notar o seguinte: os discípulos de Cristo, a princípio eram chamados Nazarenos. Foi
somente por volta de 48 / 49 em Antioquia da Síria, território pagão, que receberam o nome de
cristãos (cf. At 11,26). Ora nenhum dos adversários do Cristianismo nos primeiros séculos afirmou
que Jesus não existiu; nem mesmo Celso, filósofo eclético, que escreveu veementemente contra os
cristãos, acusando-os e zombeteando-os a vários títulos, ousou declarar: "O vosso Cristo nunca
existiu!"
Apesar de quanto acaba de ser observado, encontramos testemunhos de escritores romanos
relativos a Jesus.

Lição 2: Os testemunhos dos escritores romanos


São três os autores que, de algum modo, se referem a Cristo: Tácito, Suetônio e Plínio o Jovem.
Escreveram no intervalo que vai de 110 a 120.

2.1. Tácito
Tácito foi um historiador que soube exercer espírito critico e se mostrou honesto em seus relatos.
Escreveu em seus Anais, por volta de 116, a respeito do incêndio de Roma ocorrido em 64:
"Um boato acabrunhador atribuía a Nero a ordem de pôr fogo à cidade. Então, para cortar o mal
pela raiz, Nero imaginou culpados e entregou às torturas mais horríveis esses homens detestados
pelas suas façanhas, que o povo apelidava de cristãos. Este nome vem-lhes de Cristo, que, sob o
reinado de Tibério, foi condenado ao suplicio pelo procurador Pôncio Pilatos. Esta seita perniciosa,
reprimida a princípio, expandiu-se de novo não somente na Judéia, onde tinha a sua origem, mas na
própria cidade de Roma" (Anais XV 44).
Tácito conta, a seguir, as horríveis torturas infligidas aos cristãos e se mostra contrário a esse
desumano procedimento. As referências pouco elogiosas aos cristãos mostram que só os conhecia
por ouvir dizer e compartilhava as opiniões do seu tempo. Essa hostilidade mesma torna mais valiosa
a breve notícia que ele nos transmite a respeito de Cristo. Pergunta-se: de onde Tácito recebeu as
informações concernentes a Cristo? - Pode-se crer que as tenha recebido de Plínio o Velho, cujas
Histórias ele muito utiliza. Plínio o Antigo fez parte do estado-maior de Tito, que em 70 invadiu
Jerusalém; pôde assim colher dados sobre Jesus na própria Palestina e os terá passado para o
historiador Tácito.

2.2. Suetônio
Poucos anos depois, em 120, Suetônio, também hábil historiador, escreveu a Vida dos Doze
Césares, em que cita duas vezes os cristãos: uma primeira vez para confirmar que eram perseguidos
desde os tempos de Nero. Na segunda vez, referindo-se ao reinado de Cláudio (41-54), diz que este
"expulsou de Roma os judeus, que, sob o impulso de Cresto, se haviam tornado causa freqüente de
tumultos"(Vita Claudii XXV). A informação coincide com a de Atos 18,2; a expulsão deve ter
ocorrido por volta de 49/ 50. Chrestós é a forma grega equivalente a Christós, que traduz o hebraico
Messias. Suetônio, mal informado, julgava que Cristo se achava em Roma, instigando as desordens.
É lamentável que Suetônio nada tenha dito sobre Jesus ao tratar de Tibério. Mas a notícia
registrada basta para provar que, por volta de 50, isto é, menos de vinte anos após a Ascensão, havia
cristãos em Roma que, por sua pregação, perturbavam a colônia judaica.

2.3. Plínio o Jovem


Em 111 chegou à Bitínia e ao Ponto, províncias da Ásia Proconsular (Turquia de hoje), Plínio o
Jovem, com o título de Legado Imperial. Era homem de letras; uma grande parte de seus escritos são
cartas; como bom administrador, guardava uma cópia dos relatórios enviados ao Imperador Trajano,
de modo que, apesar do segredo dos arquivos imperiais, temos conhecimento de boa parte dessa
documentação.
Plínio era um homem sério e inteligente. Em 112 enviou a Trajano uma carta minuciosa a respeito
dos cristãos, Recebera denúncias contra eles, prendera vários, submetera alguns a torturas, inclusive
duas diaconisas; nada, porém, fora apurado que lesasse a boa ordem cívica. Ao contrário, podia dizer
que os cristãos se difundiam cada vez mais e "estavam habituados a se reunir em dia determinado,
antes do nascer do sol, e cantar um cântico a Cristo, que eles tinham como Deus" (Epístolas, 1 X
98). Deste testemunho depreende-se que, desde os primeiros decênios do Cristianismo, o Senhor
Jesus era louvado como Deus.
Plínio atestava que aquela boa gente cristã se comprometia, com juramento, a não roubar, não
mentir, não cometer adultério - o que não podia ser passível de pena. Acontecia, porém, que os
sacerdotes dos deuses se queixavam: os templos se esvaziavam; os vendedores de carne destinada
aos sacrifícios deixavam de lucrar. Sendo assim, Plínio perguntava ao Imperador o que devia fazer
frente aos cristãos; havia de puni-los somente por serem cristãos? - Vê-se que Plínio era, de certo
modo, simpático aos discípulos de Cristo.

2.4. Um falso depoimento


Narram os historiadores uma história que eles atribuem a falsários piedosos. Um certo Trebomus
Rufinus, senador e antigo ministro da cidade de Viena (Vindobona) na Gália, teria escrito a C. Plínio
Cecílio Secundo em 109 ou 110 o seguinte:
"Afirma-se que Tibério propôs ao Senado admitir o Cristo na categoria dos deuses; mas,
examinado cuidadosamente o assunto, chegou-se à convicção de ser perigoso admitir um culto cuja
base era a igualdade absoluta entre os homens. Além disto, parecia inconveniente endeusar um
indivíduo punido com o suplício dos escravos, autorizado por um Procurador Romano".
Tal notícia foi transcrita da obra de Daniel-Rops: "Jesus no seu Tempo". Porto 1953.

2.5. Um relatório de Pilatos a Tibério?


São Justino, mártir, escreveu em 150 aproximadamente a sua "Apologia do Cristianismo"
dedicada ao Imperador Antonino Pio e a seu filho Marco Aurélio. Alude aos "Atos de Pilatos", um
relatório enviado por Pôncio Pilatos a Tibério sobre Jesus Cristo. Todavia não se pode perceber da
referência se Justino conheceu pessoalmente esses escritos ou apenas supunha a existência dos
mesmos. Esta segunda hipótese é mais verossímil, pois, como observa Tácito, os arquivos imperiais
eram secretos e ninguém os podia consultar.
Cinqüenta anos depois, Tertuliano, grande apologista cristão, entendeu os dizeres de Justino no
sentido de uma afirmação da existência dos "Atos de Pilatos"; declara que o processo e a morte de
Jesus foram por Pilatos relatados ao Imperador.
Na verdade, foram tais "Atos" forjados por cristãos imaginosos, os quais se enganaram colocando
o nome do Imperador Cláudio (41-54) em lugar do nome de Tibério (14-37).

2.8. Retrato de Jesus Cristo


Existe uma descrição da personalidade de Jesus atribuída a Públio Lêntulo, governador da Judéia,
antecessor de Pôncio Pilatos, em carta dirigida a Tibério. É obra medieval, destituída de
autenticidade. Ei-la:
"A pessoa de Jesus é de nobre estirpe. Sua aparência é de uma beleza fora do comum, que jaz em
sua majestosa maneira de ser. Usa seus brilhantes cabelos de cor castanha à moda nazarena,
divididos ao meio, cobrindo os ombros. A tez de seu rosto é alva e sem rugas; sua fronte é lisa e bela.
Nada a acrescentar sobre o formato de seu nariz e sua boca. Sua barba curta e espessa, usa-a
exatamente ao estilo nazareno, sem apresentar qualquer cunho excêntrico. Os olhos são semelhantes
aos raios do Sol e, por motivo de seu intenso brilho, é impossível fitar seu rosto por tempo
prolongado. Suas mãos e seus braços são bem formados. É amado por todos; é austero, contudo
alegre. Usa sandálias e anda sempre com a cabeça descoberta. Na conversação é muito amável;
porém, raríssimas vezes deixa-se levar por uma palestra, e, quando Ele está com a palavra, mantém-
se em atitude discreta. Sua aparência é a mais bela possível de imaginar-se, semelhante à sua Mãe,
que é a mais formosa das mulheres vistas aqui nesta região. É considerado um prodígio em sabedoria
por todos os habitantes da cidade de Jerusalém. Nunca estudou; no entanto, conhece toda a ciência.
Comenta-se que nunca se ouviu falar, neste país, sobre outra pessoa que o igualasse. Na verdade, os
hebreus informam que jamais ouviram conselhos semelhantes, instruções tão elevadas como as que
são ensinadas por este Cristo. Muitos judeus o consideram divino e crêem n'Ele, enquanto outros
vêm a mim para condena-lo, por estar em contradição com Vossa Majestade.
É notório que jamais infligiu qualquer mala quem quer que seja, e que somente pratica o bem.
Todos os que o conhecem e com Ele mantém relações, dizem que d’Ele receberam curas e
benefícios.
Publius Lentulus"
LIÇÃO 3: DOCUMENTOS JUDAICOS
3.1. A Tradição rabínica
Os judeus posteriores a Cristo deixaram-nos o Talmud, coletânea de leis e comentários históricos
devidos aos rabinos. Apresentam-nos passagens referentes a Jesus. O valor de tais testemunhos está
em que, embora se oponham à tradição cristã, não negam a existência de Cristo, mas procuram
interpreta-la de maneira a ridicularizar os fundamentos da fé cristã (quem se daria ao trabalho de
desfigurar um personagem lendário?). Eis alguns espécimens mais significativos dessa tradição:
O tratado Sanhedrin 43a do Talmud da Babilônia refere:
"Na véspera de Páscoa suspenderam a uma haste Jesus de Nazaré. Durante quarenta dias um
arauto, á frente dele, clamava: ‘Merece ser lapidado, porque exerceu a magia, seduziu Israel e o
levou à rebelião. Quem tiver algo para o justificar, venha proferi-lo!’ Nada, porém, se encontrou
que o justificasse; então suspenderam-no à haste na véspera de Páscoa".
Este texto parece envolver contradição: Jesus fora condenado ao apedrejamento, mas a pena
aplicada foi a de pender do lenho (crucifixão). A incoerência pode ser explicada pelo fato de que o
apedrejamento era o castigo judaico infligido aos magos e idólatras; dizendo, pois, que Jesus fora
condenado à lapidação, os judeus procuravam justificar a condenação. Contudo a crucifixão de Jesus
era fato demasiado arraigado na tradição judaica para que se pudesse dizer que morrera apedrejado. -
Notemos também a acusação de magia feita a Jesus: supõe que o Senhor tenha realizado milagres (os
milagres de que fala o Evangelho); interpreta-os, porém, em sentido pejorativo como as obras
diabólicas de Cristo (cf. Mc 3,22). Outro pormenor interessante: as narrativas evangélicas dão a
entender que o processo de Jesus se realizou às pressas. Ora o Talmud admite o inverossímil
intervalo de quarenta dias entre a condenação e a execução, intervalo oferecido às testemunhas para
se manifestarem - o que vem a ser uma tentativa de reabilitar os juizes de Jesus.
Em Aboda Zara 40d Jesus é dito Ben-Pandara ou Ben Panthera, filho de Pantera. Esta
expressão aramaica parece ser a deformação do grego huiós tes parthénou (filho da Virgem), título
com que os cristãos designavam Jesus; segundo a intenção polêmica dos talmudistas, o substantivo
comum parthénos foi transformado em nome próprio e passou a designar o pai ilegítimo que os
rabinos atribuíam a Jesus (Maria estaria oficialmente casada comum homem cujo nome no Talmud é
Pappos ou Stada). Teríamos nesta passagem rabinica uma confirmação da antigüidade da fé no
nascimento virginal de Jesus.

3.2. Flávio José


Fora da tradição rabinica, existe o historiador judeu Flávio José (37 - 95),que nas suas
"Antigüidades Judaicas" se refere a Jesus:
"Por essa época apareceu Jesus, homem sábio, se é que há lugar para o chamarmos homem.
Porque ele realizou coisas maravilhosas, foi o mestre daqueles que recebem com júbilo a verdade, e
arrastou muitos judeus e gregos. Ele era o Cristo. Por denúncia dos príncipes da nossa nação, Pilatos
condenou-o ao suplicio da cruz, mas os seus fiéis não renunciaram ao amor por ele, porque ao
terceiro dia ele lhes apareceu ressuscitado, como o anunciaram os divinos profetas juntamente
com mil outros prodígios a seu respeito. Ainda hoje subsiste o grupo que, por sua causa, recebeu o
nome de cristãos"'(XVIII, 63s).
Este testemunho, tão elogioso em relação a Jesus, está sujeito às dúvidas dos críticos. Os louvores
a Cristo podem ter sido interpolados por mãos cristãs, mas é certo que Flávio José assim atesta a sua
convicção de que Jesus fora personagem histórico.
Na verdade, não é de crer que o texto como ele hoje é, seja da pena de Flávio José; se este tivesse
escrito tais dizeres, ter-se-ia feito cristão. Sabe-se, porém, que Flávio José, bajulador do Imperador
Romano, escreveu que o verdadeiro Messias, aguardado por Israel, era incontestavelmente
Vespasiano. Foi em homenagem a este que acrescentou ao seu nome judaico José o nome do
Imperador: Flávio.
Eis como a crítica tem procedido nos últimos três séculos:
Há quem negue a autenticidade das frases em negrito, pois parecem cortar o fio do discurso.
Replicam outros que o estilo é exatamente o de Flávio José. E apoiam-se no fato de que Eusébio,
bispo de Cesaréia no século IV, conhecia o texto e o aceitava. Os adversários contrapõem que os
primeiros escritores da Igreja ignoravam o texto e afirmavam que Flávio José não aceitava o Messias
Jesus.
Autores católicos como Batiffol e Lagrange estão de acordo com o racionalista Guignebert ao
crerem que o texto de Flávio José sofreu interpolações cristãs; todavia há críticos racionalistas e
protestantes como Hamack e Burkitt que defendem a autenticidade.
Giuseppe Ricciotti prefere a sentença já proposta pelo crítico liberal Theodor Reinach, segundo o
qual o texto é, fundamentalmente, de Flávio José, mas foi "melhorado" no século II por algum
copista cristão.
Flávio José, nas suas "Antigüidades Judaicas" XX, 9.1 refere ainda uma notícia que atribui a Jesus
o título de Messias:
"Anano convocou em juízo o Grande Conselho e fez comparecer diante dele um homem, de nome
Tiago, irmão de Jesus, que se chama Cristo".
A referência, apesar de breve, tem sua importância por mencionar o título de Cristo (=Messias).
Resta examinar os documentos cristãos relativos a Jesus.
São, antes do mais, os escritos do Novo Testamento, entre os quais sobressaem os quatro
Evangelhos (Mt, Mc, Lc, Jo). A crítica reconhece geralmente que datam do século I. Pergunta-se,
porém: podemos admitira veracidade ou a fidelidade histórica dos evangelistas?
É o que veremos no próximo Módulo.

PERGUNTAS
1) Porque os documentos pagãos são tão sóbrios a respeito de Jesus?
2) Que nos diz Tácito a respeito?
3) Qual dos outros dois escritores romanos mais lhe interessa? por quê ?
4) Que dizem as fontes rabínicas?
5) Como julgar o depoimento de Flávio José ?

MÓDULO 22: OS EVANGELHOS - FIDELIDADE LITERÁRIA


Após examinar os documentos pagãos e judeus relativos a Jesus, passamos a estudar os
documentos cristãos, que são muito mais numerosos, mas sujeitos a crítica, pois suspeitos de
parcialidade e atitudes preconcebidas.
Começaremos por estudar a crítica literária dos Evangelhos: será que o texto hoje por nós
utilizado corresponde ao de Mateus, Marcos, Lucas e João? - Tal investigação é básica, pois os
Evangelhos são a fonte principal de informações sobre Jesus Cristo, de modo que neles é que se
baseia qualquer posição pró ou contra a divindade de Jesus Cristo. Se o respectivo texto foi
interpolado ou deturpado, já não se presta a um estudo sério.

Lição Única: O texto do Evangelho foi falsificado?


l. Os críticos não alimentam serias dúvidas sobre a autenticidade literária dos textos gregos de Mt,
Mc, Lc e Jo de que hoje dispomos10.
Com efeito, embora tais textos apresentem numerosas variantes (geralmente de pouca monta, pois
versam sobre colocação ou omissão de artigo, emprego de partículas enfáticas, modos e tempos de
verbos, etc.), pode-se reconstituir com grande probabilidade a face do texto original. Existe grande
número de códices antigos e de traduções feitas nos séc. II/III (para o sírio, o copta, o latim...); tais
códices e traduções, confrontados entre si, permitem ao estudioso dirimir as dúvidas concernentes ao
teor dos originais dos Evangelhos. Assim contam-se aproximadamente
85 papiros (datados dos séc. II-IV) que apresentam partes do texto do Novo Testamento;
266 códices maiúsculos11 (dos séc. IV-X) do Novo Testamento;
2.754 códices minúsculos12 (dos séc. X-XVI) do Novo Testamento;
2.135 lecionários13 do Novo Testamento.
Estes dados perfaziam em 1967 um total de 5.236 manuscritos, completos ou fragmentários, do
Novo Testamento. Tal quantidade (que vai crescendo, pois vão sendo descobertos novos
testemunhos antigos e medievais do texto bíblico) pode ser dita "fantástica", desde que se leve em
conta a transmissão das obras dos autores clássicos romanos e gregos.
Na verdade, acontece não raro que só se possui um manuscrito de determinada obra de um
clássico (ao passo que do Novo Testamento existem milhares). E tal manuscrito (cópia do autógrafo
já perdido) disto de seus originais pelo intervalo de séculos. Assim o autor que melhor se pode
conhecer, é Virgílio († 19 a.C. ); ora há um intervalo de 350 anos entre a morte deste poeta e o mais
antigo manuscrito do mesmo hoje conservado. Para Tito Lívio († 17 d.C.), o intervalo
correspondente é de 500 anos; para Horácio († 8 a. C.), é de 900 anos, para Cornélio Nepos († 32
a.C.), 1200 anos; para Platão († 347 a.C.) e Tucídides († 395 a. C.),1300 anos; para Eurípedes (†
407/406 a.C.), 1600 anos.
Note-se também que o mais antigo papiro do Novo Testamento que se tenha, é o de n o 457. Data
do início do século II e apresenta o texto de Jo 18,31-33. 37s (é importante observar que o evangelho
de S. João foi redigido nos últimos anos do século I). Acha-se guardado em Manchester, na John
Rylands Library. Este manuscrito, descoberto em 1935 no Egito, dá a ver que, poucos decênios (os
que correspondem aproximadamente à duração de uma geração humana) após a composição de João
na Ásia Menor, este livro já era lido no Egito.14
O sábio suíço Martin Bodmer constituiu uma biblioteca perto de Genebra, em que se guardam
importantes manuscritos do Novo Testamento: assim o Papyrus Bodmer III ou P 66, que é um
conjunto de folhas de papiro com o texto do Evangelho de São João, conjunto datado do ano 200
aproximadamente e descoberto em 1956. O Papyrus Bodmer XIV-XV ou P 75 data do início do séc.
III; descoberto em 1961, reproduz, quase por inteiro, o terceiro e o quarto Evangelhos.

10
O Evangelho segundo S. Mateus foi originariamente escrito em aramaico, mas este texto inicial se perdeu, de modo que hoje em dia só se possui a
respectiva versão grega, a qual corresponde a nova elaboração a ampliação do texto aramaico. Marcos, Lucas a João escreveram seus autógrafos em
grego.
11
Escritos com letras gregas maiúsculos (unciais, capitais).
12
Escrito com letras gregas minúsculas.
13
Repertórios de leituras a ser utilizadas na liturgia, repertórios compostos em diversas épocas da história antiga e medieval da Igreja.
14
O Pe. José O’Callaghan S.J. julga poder datar de 40-50 o papiro 705 encontrado em Oumran e, provavelmente, portador do texto de Mc 6, 52-53.
Por sua vez, o Prof. Carsten Peter Thiede data de meados do século I três fragmentos papiréceos de Mt 26 encontrados em Oxford.
Outra coleção célebre é designada por "Papiro de Chester-Beatty" (P 45). Encontra-se em Londres
e conserva fragmentos de papiros que foram escritos no século III com o texto dos Evangelhos e dos
Atos dos Apóstolos.
O cotejo dos papiros, dos códices e das traduções antigas do Novo Testamento tem possibilitado
aos estudiosos a confecção de edições críticas do Novo Testamento, tais como as de Merk (católico)
e Nestle (protestante) e - a mais abalizada - a edição de Aland, Black, Martini, Metzger e Wikgren
(comissão mista protestante-católica).
Em suma, o balanço do estudo crítico do texto dos Evangelhos é altamente positivo. Permite
verificar que a transmissão do Novo Testamento através dos séculos deixou inalterado o depósito dos
Evangelistas e Apóstolos e nos fornece hoje sólida base para estudos sobre a pessoa e a obra de Jesus
Cristo. Se o retrato de Jesus que nos veio através dos Evangelhos sofreu falsificação, esta só se pode
ter dado quando os Evangelhos foram consignados por escrito ou antes, pois é inegável que o texto
escrito nos chegou às mãos hoje em estado de alta fidelidade.
2. Afim de que o leitor possa formar um juízo sobre o valor do confronto dos manuscritos, sejam
consignados aqui alguns exemplos ilustrativos:
- o trecho de Lc 22,43s, que refere o suor de sangue durante a oração de Jesus no horto das
Oliveiras, foi posto em xeque já nos primeiros séculos da Igreja por motivos teológicos: e caracteriza
muito fortemente (para alguns cristãos, demasiado fortemente) a natureza humana de Cristo. –O
confronto dos manuscritos demonstrou que tal secção pertence ao teor original de Lc;
- a secção de Jo 7,53.8,11, que narra o episódio da mulher depreendida em adultério, parece ter
constituído uma folha avulsa, que os copistas dos Evangelhos colocaram ora no fim do Evangelho de
São João (após Jo 21,23, ou seja, após o texto continuo dos quatro Evangelhos) ou dentro do
Evangelho de São Lucas (após Lc 21,38) ou também no lugar em que hoje se acha (após Jo 7,52);
- a passagem de Jo 5,4 (um anjo descia na piscina de Bezata e movia a água, de modo a curar o
primeiro doente que nela se projetasse após a moção da água) é tida evidentemente como
interpolação tardia;
- o famoso trecho de 1 Jo 5,6s (testemunho da SS. Trindade) é reconhecido, sem hesitação, como
enxerto praticado no séc. IV por ocasião da controvérsia ariana.
Assim os exegetas estão em condições de restabelecer o texto em seu teor original nos casos mais
controvertidos. Os resultados até hoje adquiridos pela crítica são de tal monta que se pode dizer que a
imagem de Jesus consignada pelos Evangelistas não sofrerá alteração em conseqüência de pesquisas
futuras.
PERGUNTAS
1) Que se entende por " crítica literária dos Evangelhos"?
2) A transmissão do texto dos Evangelhos é melhor do que a dos autores gregos e latinos
antigos? .
3) Qual a conclusão da crítica literária dos Evangelhos ?
4) Cite dois casos de texto mal transmitido.

MÓDULO 23: A FIDELIDADE HISTÓRICA DOS EVANGELHOS (I)


HISTÓRIA DAS FORMAS
A crítica literária dos Evangelhos é favorável à autenticidade do texto sagrado, como acabamos de
ver no Módulo anterior. Compete-nos agora, na base desta conclusão, procurar saber se aquilo que os
evangelistas transmitem é fiel à história ou à realidade dos fatos. A escola mais recente que se
aplicou ao estudo crítico do conteúdo dos Evangelhos é a Escola ou o Método da História das
Formas (MHF). - Proporemos, a seguir, as teses dessa Escola e lhe teceremos comentários.

LIÇÃO 1: O MÉTODO DA HISTÓRIA DAS FORMAS


O Método da História das Formas (MHF) tem suas origens entre os críticos protestantes da
Alemanha. Os seus primeiros arautos foram racionalistas e chegaram a conclusões inaceitáveis à fé
católica; tal foi o caso de Martin Dibelius, K. L. Schmidt, G.Bertram, M. Albenz, todos da segunda
década do século XX. Com o decorrer do tempo, os estudiosos católicos verificaram que o método
como tal é aceitável, desde que assumido numa perspectiva que leve em conta os dados da fé; por
conseguinte, trocados os parâmetros do racionalismo pelos da fé, o método da história das formas
pode ser útil ao entendimento dos Evangelhos. Em conseqüência, ao lado de uma aplicação liberal e
racionalista, existe uma aplicação católica do MHF.
Passamos a expor tal método na sua versão extremada ou racionalista (que tem tido repercussões
deletérias na exegese dos Evangelhos), para melhor mostrar o que tal método tem de negativo e o
que possa ter de positivo.

1.1. A concepção racionalista


No começo do século XX a chamada "Escola (ou Método) da História das Formas" (EHF)
chamou a atenção dos estudiosos para o intervalo que ocorreu entre a pregação oral de Jesus (27-30)
e a fase de redação dos Evangelhos (50-100). Nesses dois, três ou mais decênios, a Boa-Nova foi
sendo transmitida oralmente em diversas regiões: Palestina, Síria, Ásia Menor, Grécia, Roma... Em
cada um desses territórios, os pregadores procuravam dar-lhe um Sitz im Lebem, isto é, um lugar
(uma ressonância) na vivência dos respectivos ouvintes; procuravam fazer que a mensagem se
tomasse resposta adequada aos anseios das populações de cada região. Tais pregadores e seus
ouvintes não terão tido preocupação histórica nem metafísica, mas se terão interessado
principalmente pelos aspectos existenciais e concretos do Evangelho. Em consequência, dizem vários
autores da EHF, a imagem e a doutrina de Jesus foram tomando feitios novos, distanciando-se da sua
face original. Ora os Evangelistas, ao redigir seus escritos, utilizaram os dados dessa pregação dos
Apóstolos e discípulos, de modo que consignaram nos seus Evangelhos uma figura de Jesus que já
não era fiel ao Jesus real e à Boa-Nova primitiva. Por isto, dizem os racionalistas, nos Evangelhos
somos informados a respeito daquilo que as primeiras gerações cristãs professavam (temos o Jesus
da fé), e não a respeito daquilo que Jesus foi e disse realmente (o Jesus da história). Para sabermos o
que Jesus foi e fez, sem desvios nem deturpações, teríamos que eliminar do texto escrito dos
Evangelhos os prováveis retoques e acréscimos que os pregadores e as comunidades antigas
impuseram à mensagem inicial; mediante esse trabalho de "desmontagem" e "expurgo" é que se
poderia tentar chegar à verdadeira imagem de Jesus e da sua pregação.
Ora essa tarefa de "desmontagem" é necessariamente baseada em conjeturas e suposições;
ninguém dos estudiosos modernos possui documentação suficiente para reconstituir minuciosamente
o quadro histórico e geográfico da Igreja nascente, de modo que pode haver até suposições
contrárias entre os autores da EHF.
Ponderando todos estes dados, muitos exegetas críticos são céticos em relação ao valor histórico
dos Evangelhos. Estes só nos ofereceriam o Jesus da fé (isto é, Jesus tal como Ele em projetado pela
fé simples ou simplória dos antigos cristãos, ignorantes e dados à imaginação), e não o Jesus da
história (Jesus como Ele foi e pregou realmente). Entre os nomes mais famosos desta corrente, estão
de Rudolf Bultmann (†1976): este nos diz que o texto atual dos Evangelhos está todo vazado em
linguagem mítica, isto é, imaginosa, quase infantil, de modo que é preciso renunciar a conhecer a
história real de Jesus e o teor genuíno da sua pregação; mas nem por isto os Evangelhos devem ser
jogados fora; na verdade, eles nos transmitem uma mensagem existencial ou vivencial muito
concreta: “Convertei-vos! Passai da vida não autêntica para a vida autêntica”. É isto que resulta da
demitização ou é isto que tão somente se pode extrair do texto dos quatro Evangelhos, conforme R.
Bultmann.
Como se compreende, tais teorias têm séria repercussão na elaboração de um tratado sobre Jesus
Cristo, pois solapam as bases da reflexão teológica. Qualquer afirmação que se queira fazer sobre
Jesus a partir dos Evangelhos (e tudo afinal há de ser deduzido dos escritos do Novo Testamento),
pode ser impugnada como sendo eco da fé simplória dos primeiros discípulos. Entre Jesus, tal como
ele foi, e nós, haveria uma cortina opaca, que não nos deixaria chegar até Jesus; tal cortina seriam as
concepções das antigas comunidades cristãs, que terão elaborado, uma imagem de Cristo não
correspondente à realidade histórica. Retrocedendo através dos séculos, esbarraríamos com essas
primeiras gerações cristãs, que não deixariam contemplar Jesus tal como Ele viveu aqui na Terra.
Procuremos, pois, avaliar o que possa haver de certo no MHF atrás proposto, e o que haja de
tendencioso.
l.2. A crítica das atitudes racionalistas
Distingamos o aceitável e o não aceitável.
l.2.1. Aceitável
1) É certo que o Evangelho, antes de ser escrito, foi pregado oralmente durante decênios. Tal
intervalo é muito importante para se entender o texto escrito dos Evangelhos.
2) É certo também que os pregadores tinham grande interesse em estruturar a fé e a vida dos
ouvintes, tocando em seus anseios mais profundos; o Evangelho é mensagem de salvação. - Até aqui
tem razão a crítica liberal.
1.2.2. Não Aceitável
As premissas apresentadas não implicam que os pregadores e as comunidades cristãs antigas, no
seu afã de responder aos problemas dos homens, se tenham desviado da realidade histórica ou
tenham mostrado desinteresse pela genuína figura de Jesus. Neste ponto começa a crítica equilibrada
a divergir da extremada; ela afirma que, apesar de todas as tramitações históricas e geográficas pelas
quais passou a mensagem de Jesus, esta se conservou integra, fiel a si mesma, ou, se quisermos, ela
se foi desabrochando, como uma semente, com o tempo, vai expandindo suas virtualidades, mas de
maneira sempre homogênea. Em conseqüência, quem crê nos Evangelhos, não crê naquilo que os
antigos cristãos imaginavam simploriamente, mas crê na própria figura e na autêntica mensagem de
Jesus Cristo. - E quais seriam os argumentos em favor desta última asserção? - Ei-los:
a) as primeiras comunidades cristãs não eram "anônimas" 15, mas foram fundadas, chefiadas ou
visitadas pelos Apóstolos. Assim em Jerusalém Pedro aparece como o chefe do colégio dos
Apóstolos: At 1,15-26; 2,14-40; 3,12-26; 4,7-12; 5, 29-32... ; Pedro e João na Samaria: At 8,14-17;
Pedro em Lida e Jope: At 9.32-42; Antioquia aparece em comunhão com Jerusalém: At 11,22s. As
epístolas paulinas dão testemunho do zelo dos Apóstolos pela fiel transmissão e conservação da
mensagem. Conforme Hb 2,3, a tradição cristã remonta até os ouvintes da Palavra; em I Cor15,6 são
mencionadas testemunhas oculares.
b) Os Apóstolos não queriam ser senão testemunhas do que tinham visto e ouvido. Aliás, a
definição de Apóstolo é simplesmente a de testemunha, conforme At 1, 21s. Em At as palavras
"testemunho" e "testemunha" ocorrem 16 vezes, ou seja, de ponta-a-ponta; cf. 1,8; 2,32; 3,15:
4,20.33; 5,32; 8.25; 10,39-41 ; 13,30s: 20,24; 22,15.20; 26,16.22. Vejam-se ainda: Lc 1,1-4; 24,48;
Jo 21,24; 2Ts 1, 10; 1Cor15,3-11; 1Pd 5,1.
c) As comunidades cristãs antigas não deturparam, mas guardaram e explicitaram
homogeneamente a mensagem. Essa preocupação de respeitar e transmitir fielmente aparece em I
Cor11,2.23; 15,2; II Ts 2,14s; 3,6; F14,9; C12,6-8; Gll,8-12; 2,2s.
d) A fé cristã se acha essencialmente ligada a fatos históricos e objetivos de tal modo que, negada
a sua historicidade, o conteúdo mesmo da mensagem cristã se esvazia. É o que S. Paulo afirma a
propósito da ressurreição corporal de Jesus (que, segundo a crítica liberal, seria um grande mito):"Se
Cristo não ressuscitou, vazia é a nossa pregação, vazia também é a vossa fé... ilusória é a vossa fé" (I
Cor 15, 14.17). Ver a propósito Constituição Dei Verbum no 2.
Os Apóstolos eram muito ciosos de distinguir entre mitos (mythoi) e a palavra da verdade; cf. I
Tm 1,3s; 4,7; II Tm 4,4; Tt1,14; II Pd 1,16.
e) No plano da fé acrescentamos que a transmissão da Boa-Nova não decorreu ao léu das
vicissitudes humanas, mas foi acompanhada pelo Espírito Santo prometido por Jesus à sua Igreja; cf.
Jo 14,26; 16, 13-15. O cristão sabe que a palavra das Escrituras é a palavra do próprio Deus infalível,
e não simplesmente a palavra de comunidades de crentes ou de pregadores ambulantes. Está claro
que tal palavra tem seus expressionismos e seus gêneros literários, mas, entendida no sentido que os
hagiógrafos intencionaram, é a Palavra da Verdade.
f) Notamos ainda que as conclusões negativistas apresentadas pelos críticos liberais são
geralmente baseadas sobre hipóteses ("tais palavras não vêm de Jesus, mas de tal ou tal grupo
cristão"); essas hipóteses aos poucos são consideradas como quase certezas e tornam-se, muitas
15
Expressão dos críticos liberais da EHF.
vezes, bases para novas hipóteses; as conclusões decorrentes desse encadeamento de hipóteses são
dadas como certos; assim tais críticos vão tentando destruir a credibilidade dos Evangelhos. - A
propósito observemos o papel das hipóteses na pesquisa científica: o físico, por exemplo, querendo
explicar um fenômeno, constrói legitimamente uma hipótese; se ele a consegue confirmar, o cientista
a incorpora ao seu patrimônio; se comprova o contrário, rejeita-a; se nada consegue, põe de lado,
provisoriamente ao menos, tal hipótese. Mas, se por cima dessa hipótese ele constrói outra hipótese,
já vai deslizando para o terreno da fantasia; as conclusões que se, seguem desse encastelamento de
hipóteses, são cada vez menos prováveis, pois as probabilidades se exprimem por frações que se vão
multiplicando. Assim a probabilidade de 1/10 x 1 /10 = 1/100!
Ora acontece frequentemente, entre os críticos liberais dos Evangelhos, que as suposições são
formuladas sem que se diga que são suposições; outras se lhes encastelam..., e os resultados finais
são apresentados ao público como as mais puras sentenças da moderna pesquisa bíblica. Na verdade,
temos aí preconceitos, e não ciência.
Eis por que tal crítica negativista não pode ser aceita nem aos olhos da fé nem aos da sã razão.
Fica, pois, o campo aberto ao estudioso para retirar dos textos do Novo Testamento os dados
necessários para construir a imagem de Cristo.
g) A crítica costuma distinguir entre o "Jesus da história" (Jesus como realmente viveu na
Palestina) e o "Jesus da fé" (Jesus como foi concebido pela fé dos Apóstolos e discípulos ou Jesus
engrandecido e enaltecido no plano teológico). Assim de Jesus os cristãos antigos terão feito o
Cristo.
Tal tarefa é altamente subjetiva e arbitrária; fundamenta-se em hipóteses e opiniões segundo as
quais cada crítico "acha" ou "é do parecer de" que tal traço de Jesus não corresponde à história real,
mas é acréscimo fictício das comunidades antigas.
Na verdade, deve-se reconhecer que a reflexão sobre Jesus, principalmente após Páscoa e
Pentecostes, levou os discípulos a aprofundar a pessoa e os dizeres do Mestre, como aliás, lhe fora
prometido: "O Paráclito, o Espírito Santo, que o Pai enviará em meu nome, vos ensinará tudo e vos
recordará tudo o que eu vos disse" (Jo 14,26) e "Quando vier o Espírito da verdade, Ele vos
conduzirá à verdade plena" (Jo 16,13). Tal aprofundamento, porém, foi homogêneo ou não fez senão
manifestar aos discípulos o que já estava implícito nas palavras e nos feitos de Jesus; os Apóstolos
não acrescentaram valores novos àqueles que Jesus já trazia em sua vida mortal. Por conseguinte, o
Jesus da fé ou Cristo é o próprio Jesus da história contemplado em toda a sua profundidade. A
demais são Paulo, que tanto exaltou o Jesus da fé, não era um simplório ou um ignorante.
1.3. O MHF em perspectiva católica
A comparação dos três Evangelhos sinóticos entre si manifesta pequenas diferenças, de um para
outro. Ora muitas dessas diferenças podem ser explicadas pelo recurso à história do texto ou
levando-se em conta o intervalo que existiu entre a pregação oral de Jesus (27-30) e a redação
escrita dos Evangelhos (50-100). Eis alguns exemplos:
1) A parábola dos convidados descorteses que se recusam a comparecer à ceia nupcial,
apresenta duas versões:
Lc 14,16.24 Mt 22,1-14
O Senhor convida seus amigos à ceia. Cada qual se O Rei convida seus amigos, que se recusam...5sem
desculpa por não comparecer. 21 “Voltando, o servo darem a mínima atenção...6“agarraram os servos, os
relatou tudo ao seu senhor. Indignado, o dono da maltrataram e os mataram. 7Diante disto, o rei se
casa disse ao seu servo: ‘Vai depressa... e introduze enraiveceu, e, mandando as suas tropas, destruiu
aqui os pobres...” aqueles homicidas e incendiou-lhes a cidade”.
Ora é de estranhar que, segundo Mateus, tenha havido tanta violência da parte dos convidados e da parte do próprio
rei - violência esta que não aparece no texto de S. Lucas. Ora pode-se crer que os pregadores cristãos, após 70 (ano de
destruição de Jerusalém pelos romanos), tenham explicitado o significado da parábola: ela se refere à rejeição do
Evangelho por parte dos judeus; a consequência terá sido o juízo sobre Jerusalém ocorrido em 70, quando os romanos
mataram os judeus e incendiaram a cidade. Terão, pois, os pregadores acrescentado ao texto da parábola em Mt esse
traço, que põe em relevo as conseqüéncias da indiferença dos judeus. A parábola assumiu assim traços de alegoria.
2) O sinal de Jonas... MT 12,38-40
Mc 8,11s “Mestre, queremos ver um sinal feito por ti”. Ele
“Para pôr Jesus à prova, os fariseus pediam-lhe um replicou: “Uma geração má e adúltera busca um sinal,
sinal vindo do céu... Suspirando profundamente em mas nenhum sinal lhe será dado, exceto o sinal do
seu espírito, Jesus disse: ‘Por que esta geração profeta Jonas. Pois, como Jonas esteve no ventre do
procura um sinal? Em verdade vos digo que a esta monstro marinho três dias e três noites, assim ficará o
geração nenhum sinal será dado’”. Filho do Homem três dias e três noites no seio da
terra!”
Verifica-se que o texto de Mt é mais longo que o de Mc. Diante do fato duas hipóteses se
oferecem:
1) Jesus profetizou sua ressurreição como sendo o sinal de Jonas, ou...
2) Jesus falou apenas como Mc refere: mas os pregadores cristãos explicitaram a resposta de
Jesus, apontando a ressurreição como autêntico sinal messiânico. Terão desenvolvido a resposta de
Jesus de maneira fiel e genuína.
Outros exemplos poderiam ser aduzidos. Devemos concluir que é lícito supor, em certos casos, a
explicitação dos dizeres de Jesus por parte das comunidades antigas. Mas
a) não se faça isto precipitadamente ou por preconceito, e, sim, com fundamento no próprio texto
do Evangelho.
b) A ação da comunidade em tais casos seja admitida com maior ou menor verossimilhança,
nunca, porém, de maneira definitiva e excludente, como se o texto do Evangelho analisado só
pudesse ser entendido por recurso aos pregadores cristãos.
c) A ação dos pregadores ou das comunidades cristãs, se ocorreu, foi sempre de modo fiel e
autêntico, desdobrando genuinamente o sentido das palavras de Jesus.
Observadas estas cláusulas, o Método da História das Formas é válido na exegese católica.

Lição 2: A Historicidade dos Evangelhos


Ponderem-se as seguintes razões:
1) Os Evangelhos nos apresentam particularidades históricas, geográficas, políticas e religiosas da
Palestina. Cf. Lc 2,1; 3, 1s (César Augusto e Tibério imperadores, além dos governantes da
Palestina: Pôncio Pilatos, Herodes, Filipe, Lisânias, Anás e Caifás); Mc 3,6; Mt 22,23 (os partidos
dos fariseus, herodianos, saduceus); Jo 5,2 (a piscina de Betesda); Jo 19,13 ( o Lithóstrotos ou
Gábata)... Ora tais peculiaridades supõem testemunhas que viveram antes do ano de 70 d.C., pois em
70 a terra de Israel foi invadida e transformada pelos romanos.
2) Os Apóstolos e evangelistas dificilmente poderiam mentir, pois viviam em ambiente hostil,
pronto a denunciar qualquer desonestidade da parte dos mensageiros da Boa-Nova.
Sem dúvida, a fantasia dos discípulos imaginou muitas lendas a respeito de Jesus. Todavia esses
episódios fantasistas não foram reconhecidos pela Igreja, e por isso passaram a constituir a literatura
apócrifa. Nesta nota-se a tendência a apresentar um Jesus maravilhoso, que desde a infância
surpreende seus pais e amiguinhos pelos prodígios que realiza. O estilo dos Evangelhos canônicos é,
ao contrário, muito simples e despretensioso, deixando mesmo o leitor diante de passagens que se
tomaram "cruz dos intérpretes" (cf. Mc 3,21; 6,5; 10,10...); tem-se a impressão de que os
Evangelistas possuíam a certeza de estar transmitindo a verdade... verdade que não precisaria de ser
artificialmente embelezada.
3) Os Apóstolos e Evangelistas nunca teriam inventado um Messias do tipo de Jesus. Com efeito,
não cabia na mente dos judeus o conceito de Deus feito homem,... e homem crucificado. São Paulo
mesmo notava que tal concepção era escândalo para os judeus e loucura para os gregos (cf. I Cor
1,23). Os judeus, através dos séculos, tendiam a exaltar cada vez mais a transcendência de Deus,
distanciando-o dos homens.
4) A figura de Jesus é de tal dimensão intelectual, moral e psicológica que seria difícil a rudes
homens da Galiléia inventa-la.
5) Quanto aos milagres em especial, se Jesus não os tivesse realizado, não se explicaria o
entusiasmo do povo e dos discípulos, que sobreviveu à morte do Senhor na Cruz. Com efeito; a
pregação de Jesus não era apta a suscitar fácil entusiasmo: ao povo dominado pelos estrangeiros,
Jesus ensinava o amor aos inimigos; proibia o divórcio, que era habitual em Israel; incutia a
abnegação e a renúncia... Dificilmente um tal pregador teria sido endeusado se não houvesse
realizado sinais que se impusessem aos discípulos. Ao contrário, se admitimos a historicidade dos
milagres de Jesus, compreendemos o fascínio exercido pelo Mestre... Em particular, a ressurreição
corporal de Jesus sempre foi considerada o milagre decisivo que autentica a pregação cristã (cf. I
Cor15,14.17); ora, se não houve ressurreição de Jesus, o Cristianismo estaria baseado sobre mentira,
fraude ou doença mental e alucinação de alguns poucos pescadores da Galiléia; tal conseqüência
seria um autêntico portento, talvez ainda mais milagroso do que a própria ressurreição corporal de
Jesus.

PERGUNTAS
1) Em que consiste o MHF como tal?
2) Como a crítica racionalista o aplica?
3) Como a crítica católica o aplica? Que cláusulas deve ela observar?
4) Porque a crítica racionalista sofre restrições e objeções?
5) Cite três argumentos que fundamentam a historicidade dos Evangelhos.

MÓDULO 24: A FIDELIDADE HISTÓRICA DOS EVANGELHOS (II)


DE(S)MITIZAÇÃO
Entre os mais famosos críticos protestantes do século XX, está Rudolf Bultmann (1884-l976), que
propôs a teoria da de(s) mitização (Entmythologisierung).

LIÇÃO 1: O PENSAMENTO DE BULTMANN


Em 1912 Rudolf Bultmann, exegeta alemão, iniciou seu magistério na cátedra de Novo
Testamento em Magdeburgo, onde ficou até 1951. Teve que enfrentar um problema existente nas
comunidades protestantes: o racionalismo, eliminando dos Evangelhos tudo o que a razão não
consegue explicar, esvaziava a pregação (e, com isto, o culto) protestante. Bultmann quis restituir-lhe
o valor, sem contudo abandonar o racionalismo ou sem voltar a dizer que Jesus multiplicou pães,
curou leprosos, caminhou sobre as águas...
Adotou o pensamento existencialista de Martin Heidegger, e conservou o conceito luterano de fé
fiducial ou fé-confiança, fé que renuncia a procurar motivos razoáveis para crer (Lutero foi arauto
da fé, mas cético em relação ao apoio que a razão possa dar à fé). Na base de tais premissas, elaborou
a seguinte teoria:
1) Não se estuda história como se estudam ciência naturais. Estas são indiferentes à vida do
estudioso e vice-versa16; ao contrário, a história nos interpela ou tem valor existencial 17. Isto quer
dizer: posso considerar com firmeza objetiva as proposições da Física, da Química, da Botânica, mas
sou afetado subjetivamente pelos fatos históricos.
2) Ora a Escritura Sagrada, especialmente os Evangelhos, nos apresentam uma narração de
episódios do passado que nos interpelam.
3) Em todo homem existe um saber existencial a respeito de Deus, vida, felicidade, salvação...
Todo homem pergunta: "Como ser feliz? Onde encontrar a salvação?... a vida?"
Esta pré-compreensão (Vorverständnis) da mensagem bíblica faz que haja sempre uma margem
de subjetividade em todo homem que queira entender a S. Escritura.
Butmann diria: "Falar de Deus é falar de mim", "A ação de Deus na história não pode ser
apresentada com objetividade”18.
4) Por conseguinte, nas páginas bíblicas o estudioso moderno encontra a expressão do sentimento
religioso de outras pessoas ou dos antigos cristãos ; narram a ação de Deus envolvida na
subjetividade dos narradores.

16
O foto, por exemplo, de que a distância da Terra à Lua veria de 363.000 km a 406.000 km (no perigeu e no apogeu) não intentem na vida do
estudioso.
17
Recordar por exemplo, os dias 07/09/1822 ou 13/05/1888 mexe com o íntimo de quem lembra a independência do Brasil ou o fim da escravatura.
18
Bultmann afirmava, contra os adeptos da uma exegese objetiva e científica, que “só se pode explicar um texto, caso se tenha uma relação interior
com a realidade de que trata o texto”.
5) Consequentemente, o pesquisador deve renunciara saber o que Jesus de Nazaré disse e fez; o
estudioso só pode conhecer como as primeiras gerações entendiam, dentro das suas categorias
subjetivas, os ditos e os feitos de Jesus. Entre Jesus de Nazaré e nós existe a cortina intransponível
das primeiras gerações cristãs e dos autores do Novo Testamento; não nos é possível recuar para trás
destes, a fim de chegar a Jesus tal qual Ele foi.
6) A subjetividade dos antigos cristãos exprimia-se em linguagem arcaica ou mítica. Segundo
Bultmann, é mito toda concepção que relaciona acontecimentos deste mundo com seres do além
(anjos ou demônios): toda concepção que admite Deus a intervir no mundo, à guisa de um ser deste
mundo, por uma ação diretamente verificável. Tais concepções, julga, Bultmann, são contrárias ao
pensamento científico, que só pode conceber a natureza sujeita a leis e ao determinismo de causas e
efeitos. As representações que fazem intervir potências transcendentais na atividade humana (graça,
dons do Espírito, Satã e os anjos maus), são contrarias à consciência que o homem moderno tem, de
ser o sujeito de suas próprias ações.
Para Bultmann, o Novo Testamento apresenta uma imagem do mundo mítica. – Com efeito; o
mundo aí aparece dividido em três regiões: céu, terra, região subterrânea. Na terra admitem-se
milagres; o homem está sujeito à ação de potências do além (Deus e seus anjos, Satanás e os
demônios). A salvação se deu na plenitude dos tempos mediante a Encarnação: o Filho de Deus, ser
divino preexistente, manifesta-se na Terra como um homem. Sua morte na Cruz expia os pecados
dos homens. Sua ressurreição é o começo de uma mudança cósmica que anula a morte, introduzida
no mundo por Adão. O ressuscitado foi elevado ao céu, à direita de Deus. Voltará sobre as nuvens
dos céus para concluir a obra da salvação, havendo então a ressurreição dos mortos.
O crente que está unido a Jesus pelo Batismo e a Ceia, está associado à ressurreição de Cristo;
Este lhe confere o penhor do Espírito Santo e a filiação divina.
Ora, segundo Bultmann, isto tudo é linguagem mítica, inaceitável para o homem de hoje,
impregnado de cientificismo.
7) A pregação cristã não pode exigir do crente contemporâneo que ele adote a cosmovisão mítica
clássica. É preciso, pois, de-mitizar (entmythologisieren).
Que é de-mitizar, segundo Bultmann?
- Não consiste simplesmente em eliminar os mitos do Evangelho e guardar o que seja histórico,
real (isto seria des-mitizar)19; tal tarefa foi executada pelos teólogos e pregadores racionalistas
anteriores a Bultmann, esvaziando a mensagem bíblica. De-mitizar significa deduzir das
representações míticas (aparentemente históricas e objetivas) do Evangelho uma mensagem
existencial; as imagens míticas (Encarnação do Filho, morte expiatória, ressurreição, ascensão...) têm
apenas a função de carregar e transmitir a mensagem existencial dos Evangelhos.

8) E qual é essa mensagem existencial?


- É o convite a passar da vida não-autêntica (ou do pecado, do reino das trevas, do império de
Satanás) para uma vida autêntica, vida de (é. A vida não-autêntica consiste em viver do que é
visível, daquilo de que podemos dispor e que nos confere segurança. A vida autêntica consiste em
viver do invisível, daquilo de que não podemos dispor.
Assim o homem moderno procurará no Novo Testamento não uma história realmente ocorrida
nem uma antropologia científica, mas uma compreensão de si próprio, que o coloca diante de uma
decisão: "Converte-te... muda de vida"!
Crer é abrir-se ao futuro, abandonar-se radicalmente a Deus numa atitude de desprendimento em
relação ao mundo; é usar este mundo como quem não o usa (cf. I Cor 7, 29-31). Existir assim é
tornar-se "nova criatura" (II Cor 5,17).
Tal existência só se faz possível mediante o acontecimento "Cristo" (Christugeschehen), que é
a ação de Deus revelando ao homem seu amor. Todavia é preciso desembaraçar este acontecimento
das representações objetivantes (Cristo era Deus Filho feito homem; em taumaturgo, ressuscitou dos
mortos...), que no Novo Testamento lhe dão um caráter mítico. Crer na Cruz de Cristo não é

19
O sufixo des significa retirar, destruir; assim desdizer, desfazer, desconcertar, desanuviar...
contemplar um acontecimento que se tenha dado fora de nós, mas é tomar sobre si a Cruz de Cristo e
deixar-se crucificar com Ele.
Em complemento, diz Bultmann: Deus não é um dado objetivo, como a pedra, a água, o ar são...;
Ele não é acessível nem ao cientista nem ao historiador nem ao filósofo. Ele só pode ser reconhecido
na fé e pela fé, que nos põe em xeque com nossa ciência e nossas pesquisas. Quem trata a Bíblia
como matéria de ciência fria e objetiva, não tem fé; é racionalista. A fé nada tem que ver com a
razão.
Como se vê, o Credo de Bultmann não professa os doze clássicos artigos, mas ressume-se numa
palavra existencial : "Converte-te!"
Passemos agora a uma avaliação.

LIÇÃO 2: CONSIDERAÇÕES CRÍTICAS


O pensamento de Bultmann pousa sobre duas premissas que, para ele, são decisivas: a oposição
entre a fé e a razão, que redunda em antítese entre subjetivo e objetivo. Examinemos estas premissas.
l) Se o ato de fé é totalmente cego, dispensando-se da credibilidade que fornecem a história e as
ciências da antiguidade (a arqueologia, a paleontologia, as crônicas e os anais dos reis...) por que o
cristão crê em Cristo mais do que em Buda ou Maomé?
A fé cristã supõe os fundamentos da razão; não é apenas confiança cega. A razão tem uma
linguagem informativa, que comunica o desconhecido, distinguindo do erro a verdade e permitindo
assim que o homem diga Sim às verdades da fé. O conhecer pelos sentidos e pela razão é anterior ao
querer e à confiança que alguém possa conceber. Note-se o interesse dos Apóstolos em conservar a
verdade recebida objetivamente, sem mescla de adaptações subjetivas; cf.
I Tm 1,3s: "Recomendei-te que permanecesses em Éfeso,... para admoestares alguns a ... não se
ocuparem com fábulas (mythois) e genealogias sem fim".
I Tm 4,7: "Rejeita as fábulas (mythois) ímpias".
2Tm 4,4: "Desviarão seus ouvidos da verdade, orientando-os para fábulas (mythois)".
Tt 1,14: "Não dêem ouvidos a fábulas (mythois) judaicas".
II Pd 1,16:"Não foi seguindo fábulas (mythois) sutis... que vos demos a conhecer o poder... de
nosso Senhor Jesus Cristo". Ver ainda I Cor 15;1-8.
Estes textos evidenciam que os Apóstolos tinham consciência de que circulavam pregadores de
mitos em seu tempo, e faziam questão de distinguir da Palavra (Lógos) da Salvação tais estórias.
Os irracionalismos de hoje são muitos e nocivos: onde não funciona a razão, funcionam as
emoções e a violência, funciona o dogmatismo ideológico, o existencialismo subjetivo ("cada um na
sua...").
Verdade é que Deus é transcendente; ultrapassa os limites da razão humana. Por isto, não posso
falar de Deus e do homem de maneira unívoca; mas também, quando aplico a Deus os conceitos da
lógica, não estou cometendo equivoco. A analogia preserva a transcendência de Deus e, ao mesmo
tempo, permite que falemos de Deus e penetremos sempre mais no seu mistério. Assim posso dizer
que os conceitos de amor, bondade, verdade... se realizam em Deus, mas não se realizam como se
realizam no homem; Deus é Amor, mas não é amor limitado como o homem é; é Bondade, mas não
limitada como a do homem.
2) A recusa de verdades objetivas, a redução das proposições de fé a categorias subjetivas de
pensamento são premissas insustentáveis. Com efeito; a história bíblica, além de ser mensagem para
mim, é realidade em si. O Cristianismo é essencialmente uma religião histórica, à diferença do
budismo ou de uma filosofia religiosa. A linguagem da fé é objetiva; o teólogo reconhece a
roupagem subjetiva que possa ser dada à verdade objetiva; reconhecendo-a, faz o devido desconto,
distinguindo entre roupagem subjetiva e centre objetivo da verdade. Atingir a verdade, também em
historiografia e exegese bíblica, é meta a ser almejada e conseguida.
3) Fazer uma teologia antropocêntrica é destruir a própria teologia ; é colocar Deus a serviço do
homem ou da nossa conversão (passagem psicológica) do não autêntico para o autêntico. A teologia
não pode consistir apenas em fazer-nos passar do não autêntico para o autêntico; a essência da
religião é dar glória a Deus, e não uma introspecção psicológica.
Podemos falar com Deus a partir do nosso relacionamento com Ele, especialmente na oração e nas
assembléias de culto; mas é necessário que possamos abstrair dessa relação subjetiva e particular; se
assim não fosse, os não crentes não poderiam chegar a conhecer Deus. A razão objetiva é o meio de
comunicação entre crentes e não crentes, e não tanto a experiência subjetiva. As provas da existência
de Deus são argumentos racionais, e não experiências subjetivas.
4) A pregação é o anúncio de fatos históricos. Se negamos os fatos históricos, destruímos a
pregação. Buda e os Imperadores Romanos foram divinizados pela pregação dos discípulos; por que
não os aceito como deuses? - Porque sabemos que a pregação só merece fé, se corresponde a fatos
históricos.
5) Bultmann afirma que a cruz não é um acontecimento salvífico por ser a Cruz de Cristo, mas se
torna a Cruz de Cristo por ser um acontecimento salvífico.
Isto significa reduzir a Redenção a uma atitude subjetiva do crente, Dizemos que, se Jesus não se
apresentou como o Messias e Salvador e, por isto, foi crucificado (independentemente da fé dos
pósteros), a Cruz de Cristo não difere das cruzes dos ladrões que com Ele foram crucificados.
6) Não se deve exagerar o contraste entre a mentalidade antiga e a moderna, como se aquela fosse
imaginosa e infantil, e esta rigorosa e adulta. Também o homem moderno tem seus mitos, pois eles
correspondem à estrutura do psiquismo humano; o homem moderno gosta de fugir da realidade
histórica lendo um romance, assistindo a uma novela, acompanhando um filme de ficção; há nomes
míticos que fascinam o homem contemporâneo (Tarzan, Tom Mix, Greta Garbo, Pelé...); são os
astros ou as estrelas, que substituem os personagens das mitologias antigas.

PERGUNTAS
1) Quais são as premissas básicas do pensamento de Bultmann?
2) Que é mito, segundo Bultmann ?
3) Que entende Bultmann por de mitização?
4) Apresente três argumentos que refutam Bultmann.

MÓDULO 25: A FIDELIDADE HISTÓRICA DOS EVANGELHOS (III)


CRITÉRIOS DE AUTENTICIDADE
A crítica admite que os primeiros cristãos tenham acrescentado aos dizeres de Jesus seus próprios
dizeres, de modo que nem tudo nos Evangelhos seria palavra de Cristo.
A propósito já dissemos em nosso Módulo 23 que pode ter havido a explicitação homogênea e
autêntica do pensamento de Jesus no texto do Evangelho. Para esclarecer mais ainda a questão, os
estudiosos estabelecem critérios que caracterizam os autênticos ditos e feitos de Cristo.

Lição Única: Os Critérios de Autenticidade


Distinguem-se critérios primários e critérios secundários.
l. Critérios primários
1) Critério do constrangimento ou da contradição
Consideram-se autênticos os atos e os dizeres de Jesus que teriam constrangido ou criado
dificuldades para a Igreja primitiva. A tendência dos primeiros cristãos seria a de eliminar tudo o que
parecesse diminuir ou rebaixar Jesus, em vez de imaginar e criar tais episódios.
Como exemplos, apontam-se:
a) o Batismo de Jesus, que parece tornar Jesus inferior a João Batista; este pregava o Batismo de
arrependimento para remissão dos pecados. Ver Mc1,4-11; Mt 3,13-17;Lc 3,19-22;
b)Jesus parece ignorar o dia e a hora do juízo final; ver Mc 13,32; Mt 24,36."É bastante
improvável que a Igreja se tivesse dado ao trabalho de inventar uma frase que enfatizava a ignorância
do seu Senhor ressuscitado"20
c) Em Mc 3,21 Jesus é tido como "louco" pelos familiares;

20
Na verdade, Jesus não ignorava a data do juízo final, pois isto deporta contra a sua qualidade de Deus Filho e Messias. Todavia não estava no âmbito
de sua missão de Messias e Mestre revelar aos homens tal data.
d) Menciona-se ainda a traição de Judas (Mt 26,47-56; Mc 14, 43-52; Lc 22,47-53; Jo 18.2-11), a
negação de Pedro (Mt 26,6Q-75 e paralelos), o brado de Jesus na Cruz (Mc15,34, citando o SI 22,1).
2) Critérios da descontinuidade
Também dito "critério da originalidade ou da dissimilaridade", afirma ser autênticos os atos e os
dizeres de Jesus que não podem ser originários do judaísmo de seu tempo nem da Igreja primitiva.
Assim, por exemplo, a peremptória proibição do divórcio (Mc10,2-12 e paralelos), a recusa do
juramento (Mt 5,34-37), a recomendação da justiça nova e interiorizada, que ultrapassaria a dos
judeus, levando a imitar o Pai Celeste (Mt 5,17-48).
3) Critérios da múltipla confirmação
Admite como autênticos os dizeres e feitos de Jesus atestados em mais de uma fonte
independente. Assim Jesus proclamou o "reino de Deus ou dos Céus" conforme Marcos, Mateus,
Lucas, João e Paulo. Esta mesma expressão é encontrada em diversos gêneros literários (parábolas,
bem-aventuranças, preces, narrativas de milagres...). Além disto, registram-se como elementos
amplamente documentados
- as curas praticadas por Jesus;
- a especial atenção aos proscritos da sociedade, especialmente aos pecadores e publicanos
(coletores de impostos);
- a ênfase sobre o mandamento do amor; cf. Jo 13,34s.
- a recomendação do perdão em número indefinido de vezes; cf. Mt 18,21s;
- a nova compreensão do preceito do Sábado; cf. Mc 2,27s.
- uma ética radical, que chega a pedir o abandono de tudo para seguir Jesus; cf. Lc 9,57-62
- os dizeres relativos ao Filho do Homem, expressão típica de Jesus; cf. Mc 10,45;
- o "Amém, amém... (em verdade, em verdade...)eu vos digo"; cf. Mt24,34;25,12;
- a consagração do pão e do vinho na última ceia; Mt 26,26-2Q; Mc 14,22"25; ICor 11.23-26; cf.
Jo 6,51-58;
- a proibição do divórcio: Mc lo,1ls; Lc 16,18; 1Cor 7,1os;
- a expulsão dos vendilhões do Templo: Mc 11,15-1Q; Jo 2,14-22.
- as altercações com os fariseus: cf. Mt 22,15-22.34-40.41-46.
4) Critério da coerência
Segundo este critério, as palavras e ações de Jesus que se enquadram bem dentro de dados
firmemente estabelecidos, têm probabilidade de ser históricos. Assim seriam os debates de Jesus com
os fariseus, as palavras relativas ao advento do Reino de Deus.
5) Critério da rejeição e da execução
Este critério leva em conta o fato de que Jesus sofreu um fim violento nas mãos de autoridades
judias e romanas. Consequentemente afirma serem autênticos todos os ditos e feitos de Jesus que
expliquem por que foi ele condenado à morte como "Rei dos Judeus". Jesus devia perturbar e
incomodar(sadicamente) os maiorais da terra; por conseguinte, são históricos todos os dizeres de
Jesus que tenham suscitado o mal-estar e a represália das autoridades. Um Jesus cujos atos e palavras
não tivessem provocado antagonismo entre as pessoas, especialmente os poderosos, não seria o Jesus
histórico.
2. Critérios Secundários
1) Critério dos traços de aramaico
Todas as vezes que se encontrem, na versão grega das palavras de Jesus, traços de vocabulário,
sintaxe, ritmo e rima aramaicos, pode-se ter a certeza da autenticidade de tais dizeres. Este critério se
apoia em dados filológicos elaborados por especialistas em aramaico, como Joachim Jeremias,
Matthew Black, Geza Vermes e Joseph Fitzmyer.
Há quem julgue que este critério só pode ser válido se for corroborado por outros critérios, já que
cristãos de língua aramaica podem ter forjado sentenças que eles atribuíram a Jesus, quando não
eram senão a expressão do pensamento das comunidades nascentes.
Todavia o valor deste critério foi comprovado por uma interessante experiência, a saber: a
tradução dos Evangelhos (escritos em grego) para o aramaico. Diz a propósito o Prof. Gianfranco
Ravasi, eminente biblista italiano:
"Foi possível captar no aramaico os jogos fonéticos subjacentes, com os quais se favorecia a
lembrança e se comprova a fidelidade da transmissão dos conteúdos. A poesia e a prosa literária
hebraica, de fato, estão ligadas à sonoridade, isto é, ao amálgama harmônico dos sons dos
vocábulos..., aos matizes das tonalidades, que se manifestam sobretudo na recitação oral" (citado por
V. Messori, Padeceu sob Pôncio Pilatos? p. 295).
Vê-se assim que a rima dos vocábulos reaparece nas traduções feitas para o aramaico, que era a
língua falada por Jesus e pelos Apóstolos. Observa ainda Gianfranco Ravasi:
"O rabi cristão, como seu colega judaico, levava o discípulo a decorar não só o texto central, mas
também um seu comentário oficial. Por isto nos Evangelhos encontramos frases de Jesus comentadas
por outras frases por ele pronunciadas, talvez em contextos diferentes, mas afins pelo conteúdo. Só
um exemplo elementar: ao lado do Pai Nosso reportado por Mateus, temos o comentário de um dos
seus pedidos principais: 'E perdoai-nos as nossas ofensas assim como nós perdoamos a quem nos tem
ofendido... Pois, se perdoardes aos outros as ofensas recebidas, também o Pai celeste vos perdoará.
Mas, se não perdoardes uns aos outros, o Pai celeste também não perdoará vossos pecados' (Mt 6, 12,
14s) " (ib. p. 296).
Nesse comentário merece atenção ainda o paralelismo "Se perdoardes... se não perdoardes..."; tem
função mnemônica, visando a facilitar a recordação das palavras de Jesus e do seu comentário
oficial.
Em conclusão, escreve Gerhardson: "A própria raiz hebraica da árvore cristã fez com que a
tradição evangélica, ligada ao rabino Jesus de Nazaré, ofereça uma sólida garantia de qualidade e
fidelidade histórica nas palavras de Jesus e nas lembranças sobre Jesus" (ib. p. 297).
É esta uma conclusão frontalmente contrária à dos estudiosos que imaginam nas primeiras
comunidades cristãs uma proliferação fantasiosa de dizeres atribuídos a Jesus.
Deve-se ainda notar aqui a posição de G. Theissen21: pondera que no Evangelho há palavras duras,
inspiradas por um radicalismo total no tocante ao comportamento dos discípulos; assim, por
exemplo, os dizeres de Lc 14,26:"Se alguém não aborrecer seu pai, sua mãe, sua esposa e seus
filhos..., não poderá ser meu discípulo". Pergunta Theissen: pode-se dizer que tais palavras são
oriundas da mente das primeiras gerações cristãs? São elas condizentes com as tendências humanas
mais ‘razoáveis’? Não devem ter tido origem na pregação mesma do Mestre? Quem as terá
concebido e sustentado durante decênios sem que viessem dos lábios do próprio Jesus?
2) O critério da ambientação
Segundo este referencial, têm boa possibilidade de set autênticas as palavras de Jesus que se
referem costumes concretos, procedimentos judiciais, práticas comerciais e agrícolas ou condições
sociais e políticas da Palestina do século I.
3) O critério da vivacidade da narração
Nas narrativas dos Evangelhos, a vivacidade e as minúcias concretas – especialmente quando
essas minúcias não são relevantes para o ponto principal da história – por vezes são tomadas como
indicadores de um relato feito por testemunha ocular.
4) O critério das tendências do desenvolvimento da Tradição Sinótica
Os critérios supõem que a mensagem dos Evangelhos Sinóticos (Mt, Mc e Lc) tenha sido
formulada primeiramente por Marcos; Mateus assumiu e desenvolveu-a (acrescentando-lhe nomes
próprios, transformando o discurso indireto em discurso direto, eliminando palavras e construções
aramaicas, tornando os pormenores mais concretos...). S. Lucas teria desenvolvido ainda mais essa
tradição...
Por conseguinte, julgam os mesmos críticos que, abstraindo dos pretensos retoques feitos por Mt e
Lc, se poderia chegar à forma originária da narrativa evangélica.
5) O critério da suposição histórica
Este critério afirma que se deve dar crédito aos relatos dos Evangelhos até haver provas de que
são global ou parcialmente falsos... Não toca aos adeptos da veracidade provar a fidelidade histórica
dos Evangelhos, mas compete aos que a negam, aduzir provas em contrário. Este critério pode cortar

21
Wonderradikalismus, Literatursoziologische Aspekte der Uberlieferung von Worten Jesu im Urchristentum, em Zeitschrift fur Theologie
und Kirche 70 (1973, pp. 245-271.
o nó górdio nos casos em que os argumentos são extremamente equilibrados e onde o resultado final
parece ser a dúvida permanente.
6) O princípio da "razão suficiente"
É proposto por estudiosos católicos como René Latourelle e Lambiasi: é o critério da explicação
necessária. Afirma que o fato histórico "Jesus Cristo e suas conseqüéncias através dos séculos" não
se explica se não se admite em Jesus uma grandeza de personalidade, manifestada em palavras e
ações marcantes ou mesmo extraordinárias; em consequência, o que os Evangelhos narram de belo e
impressionante a respeito de Jesus, não deve ser descartado facilmente; caso seja eliminado, a figura
de Jesus se torna tão pobre e limitada que não se explica a projeção de sua obra através dos séculos.
Parece, pois, que a própria filosofia concorre para exigir uma "razão suficiente" para o fenômeno
"Jesus Cristo e o Cristianismo".
Há quem julgue que tal critério é válido para valorizar a vida de Jesus em sua globalidade, não,
porém, as suas ações ou as suas palavras em particular. Ao que se pode observar que a globalidade
da vida de Jesus consta de fatos e dizeres singulares; quem solapa estes, solapa a figura de Jesus e
torna inexplicável o fenômeno "Cristianismo".
PERGUNTAS
1) Que se entende por critério do constrangimento ?... da descontinuidade ?... da múltipla
confirmação?
2) Em que consiste o critério da descontinuidade ?
3) Que é o critério da múltipla confirmação?
4) Explique o critério dos traços do aramaico.
5) Que é o princípio da razão suficiente ?

MÓDULO 26: A HISTÓRIA DA FORMAÇÃO DOS EVANGELHOS


Uma vez estudada a crítica literária e histórica dos Evangelhos, cabe-nos tentar reconstituir a
história da formação dos Evangelhos, ou - com outras palavras - a maneira como foram escritos num
mundo em que a escrita era difícil e menos usual do que a palavra viva transmitida oralmente.
1. Jesus tem em comum com alguns mestres que a humanidade tem venerado entusiasticamente, o
fato de não haver deixado um só escrito seu. Como no caso de Buda, Confúcio Sócrates, também no
de Jesus, foram os discípulos que consignaram os ensinamentos por escrito. A pouca estima que os
antigos tinham pelas formas escritas, explica tal fato. Platão, por exemplo, dizia no seu "Fedo" que
somente a palavra viva (paidéia) é atuante, ao passo que a palavra escrita vem a ser um meio incerto
ou mesmo uma brincadeira (paidía).
Jesus, tendo pregado, ordenou a seus discípulos que fossem também eles pregar a Boa-Nova (cf.
Mt 28,l9s). Surge então a pergunta: como da palavra oral se fez o Evangelho escrito que hoje
possuímos?
2. Não se julgue que uma ou algumas testemunhas oculares e auriculares da vida de Jesus (por
exemplo, um apóstolo) tenha resolvido, em dada época, redigir finalmente suas recordações
concernentes a Cristo, transmitindo-nos assim o que hoje lemos. Ao contrário, houve entre a palavra
oral de Jesus e os Evangelhos escritos uma história, na qual se podem distinguir quatro etapas:
LIÇÃO 1: QUATRO ETAPAS
Eis as quatro etapas que vamos explanar:
1) A pregação de Jesus aos Apóstolos e Discípulos
2) A pregação dos Apóstolos e imediatos Discípulos de Jesus
3) A pregação dos Discípulos dos Apóstolos
4) Da pregação parcialmente escrita aos textos dos Evangelhos oficializados pela Igreja.
1.1.A pregação de Jesus aos Apóstolos e Discípulos
Se os evangelistas foram fiéis à história, como vimos, devemos dizer que a Fonte da mensagem
evangélica é o próprio Jesus, o Jesus da história.
A palavra do Senhor foi entendida com dificuldade pelos Apóstolos antes da Páscoa (pois ainda
estavam impregnados de conceitos nacionalistas (cf. Mc 4,13; 6,51s; 8,16-20; 9,10...). - Todavia
depois de Páscoa e Pentecostes os Apóstolos compreenderam o sentido dos dizeres e feitos do
Mestre; entenderam que o Jesus, companheiro de viagem pelas estradas da Palestina, é o Kyrios, o
Senhor Ressuscitado, o Messias ou o Cristo (ver Jo 2,22; 12,16...); aliás, o próprio Senhor lhes havia
prometido que o Espírito Santo lhes recordada tudo o que Ele lhes dissera e os levada à plenitude da
verdade (cf. Jo 14,26; 16, 12-14; 7,37-39).
Assim a imagem de Jesus cresceu na mente dos Apóstolos; foi aprofundada e meditada
homogeneamente sob a guia do Espírito Santo. O "Jesus da história" tomou-se o "Jesus da fé"; é o
mesmo Jesus, outrora percebido com hesitações e mal-entendidos, mas finalmente penetrado
autenticamente pela fé e pela experiência dos seus primeiros seguidores.
Ainda se têm nos Evangelhos vestígios ou ecos diretos da pregação de Cristo ou ipsissima verba
Christi (as mesmíssimas palavras de Cristo); vejam-se, por exemplo,
- a secção de Mt 16,16-19, em que se encontram numerosos aramaismos, inclusive o trocadilho
"Pedro-Pedra", que só poderia ocorrer em aramaico com a palavra Kepha, e não em grego (Petros-
Petra);
- as disputas de Jesus com os fariseus a respeito de textos bíblicos utilizados segundo o método
(pesher) dos rabinos antigos: Mt 22,34-40Al -46; Lc11,2Q-32;
- as disputas com os saduceus, que também versavam sobre textos bíblicos interpretados segundo
as escolas dos mestres de Israel: Mt 22,23-33...
- o apelativo "Filho do Homem", utilizado por Jesus, mas totalmente silenciado por São Paulo,
dado o caráter fortemente semita dessa designação.
1.2. A pregação dos Apóstolos e imediatos Discípulos do Senhor
Nas mais antigas comunidades cristãs, os ensinamentos de Jesus eram transmitidos de viva voz.
As testemunhas oculares e auriculares da vida do Senhor referiam os ditos e os feitos do Senhor,
acrescentando-lhes explicações e comentários, sempre que fosse necessário adapta-los a
circunstâncias novas. A Igreja não necessitava de um livro dos Evangelhos, mesmo para pregar aos
não cristãos. Os primeiros missionários eram testemunhas oculares e auriculares de Cristo (cf. At
2,22-24; 3,13-15; 4,20; 5,32;8,5). Dir-se-ia que a própria Igreja viva era como um livro ou uma carta
em que os interessados podiam ler para informar-se. São Paulo mesmo afirmava aos coríntios: "Vós
é que sois nossa carta... que pode ser compreendida e lida por todos os homens" (II Cor 3,2). Por
conseguinte, para São Paulo, cujas cartas se tornaram livros do Novo Testamento, existia um
testemunho maior do que o escrito em papiro, a saber: o testemunho da vida das comunidades cristãs.
O primeiro tema da pregação dos Apóstolos devia ser a Páscoa, ou seja, a Paixão, a Morte e o
triunfo final do Senhor Jesus. Quem acenasse esse primeiro anúncio (querigma), era levado à
catequese ou ao estudo da doutrina e dos feitos de Jesus que durante a vida pública haviam
provocado a condenação do Senhor. A pregação dos Apóstolos podia limitar-se a esses dois
momentos; compreendia as ocorrências entre o Batismo e a Ascensão do Senhor, sem retroceder até
a infância e a vida de Jesus na casa de Nazaré; cf. At 1,21. 22 Foi precisamente o que fez São Marcos
no seu Evangelho; São Mateus e São Lucas acrescentaram episódios avulsos da infância de Jesus (cf.
Mt 1-2; Lc 1-2) sem ter a intenção de fazer uma biografia ou uma narrativa completa da vida do
Senhor.23
Ao transmitir a Boa-Nova, os Apóstolos e discípulos tinham sempre em vista as circunstâncias e
particularidades características dos seus ouvintes.24 Procuravam dar à Palavra de Deus o Sitz im
Lebem, o lugar, a ressonância na vida dos ouvintes.
Assim se foi desenvolvendo homogeneamente a mensagem deixada por Jesus sob forma seminal.
Todo este trabalho foi assistido pelo Espírito Santo para que não houvesse desvio nem perversão,
22
Foi São Pedro mesmo quem fixou os termos da pregação dos Apóstolos: ia desde o Batismo ministrado por João até a Ascensão do Senhor, sendo
que a ressurreição era o primeiro e mais importante. Tenhamos em vista as palavras de Pedro antes da escolha de Matias: "É necessário que, dentro os
homens que nos acompanharam todo o tempo em que o Senhor Jesus viveu em nosso meio, a começar do Batismo de João até o dia em que dentro nós
foi arrebatado, um destes se torne conosco testemunha da sua ressurreição" (At 1,21s). Cf At 10, 37-40.
23
É isto que explica a lacuna existente, nos Evangelhos, entre os 12 e os 27 / 30 anos de Jesus. – Há quem diga que ela se deve a uma hipotética viagem
do Senhor pelo Oriente remoto, de modo que os evangelistas nada sabiam a respeito de Jesus nesse período. Tal hipótese é falsa, pois os Evangelistas
sabiam que Jesus fora carpinteiro (cf Mc 6,3; Mt 13,55). Nada ou quase nada escreveram a respeito de tal período, porque este escapava ao âmbito da
pregação que os Apóstolos tinham em vista. Ver nosso Curso sobro Ocultismo, Módulos 25, 28 e 27.
24
Comparem-se entre si At 13,16-41 e At 17, 22-31. No primeiro caso. São Paulo em Antioquia da Pisídia prega a judeus recorrendo aos textos e feitos
do Antigo Testamento, familiar aos ouvintes. No segundo caso, o Apóstolo em Atenas prega aos filósofos pagãos gregos utilizando não o Livro
Sagrado, mas argumentos filosóficos e testemunhos da tradição do povo ateniense.
como o próprio Senhor o predisse; cf. Jo 14,26; 16,12s. Esta afirmação é essencial para o cristão; não
somente a fé a sugere, mas também argumentos de ordem racional, que adiante serão apresentados.
O cristão crê que o texto escrito dos Evangelhos, embora tenha passado pelas fases preliminares que
uma mensagem escrita possa atravessar, é o eco fiel da doutrina de Jesus, desdobrada organicamente
pelos Apóstolos e discípulos a fim de a encarnar nas diversas comunidades por eles fundadas.
1.3. A pregação dos Discípulos dos apóstolos
A pregação dos Apóstolos logrou êxito, de modo que as comunidades se foram multiplicando. As
primeiras testemunhas de Cristo já não bastavam para apregoar a palavra e celebrar o culto divino;
foram obrigadas a instituir colaboradores que não tinham visto nem ouvido diretamente o Cristo; tais
discípulos indiretos são mencionados em At 11,l9s: 13,1. São Paulo, em Ef 4,11, enumerava os
ministros que exerciam funções nas comunidades: "... apóstolos, profetas, evangelistas, pastores,
doutores", ou seja, arautos da Palavra e da vida de Cristo.
Compreende-se que esses missionários da segunda geração tenham começado a escrever algo da
tradição concernente a Jesus. Este processo lhes sustentava a memória e garantia a fidelidade aos
ensinamentos; além do quê, fornecia aos cristãos um memorial de Cristo mais seguro e duradouro;
foi aliás, em vista desta firmeza na fé que São Lucas escreveu o seu Evangelho para os cristãos de
origem grega (cf. Lc. l, 1-4). Os primeiros escritos da mensagem cristã não eram Evangelhos
completos, mas secções ou folhas volantes avulsas, que continham ou uma série de episódios
doutrinários (apoftegmas) ou um conjunto de parábolas ou as narrações concernentes à morte e
ressurreição do Senhor...
No decorrer da segunda geração cristã, o Evangelho saiu da Palestina, começando a ser apregoado
em ambientes culturais e lingüisticos do helenismo. Por conseguinte, as palavras do Senhor foram
traduzidas do aramaico para o grego- o que teve importância capital.
A fixação por escrito dos ditos e feitos de Jesus deve ter sido favorecida por um precedente, ou
seja, pelo fato de que já o povo de Israel fora paulatinamente consignando por escrito as suas
tradições históricas e doutrinárias; os livros de Israel continuavam a ser lidos e comentados nas
assembléias cristãs. A Igreja sabia ser a verdadeira descendência de Abraão (Rm 4,11) e o autêntico
Israel de Deus (cf. Gl 6,16); por isto conservava os livros de Israel como genuíno patrimônio dos
cristãos. De resto, o próprio Cristo se referia freqüentemente aos escritos do Antigo Testamento, que
ele considerava Palavra de Deus (cf. Jo 10,35; Mt 22,31s); Ele sabia e proclamava que era o Filho do
Homem de Daniel (cf. Dn 7,13; Mc 14,62), o Servidor de Javé de Isaías (cf. Is 52, 13-53,12; Lc
22,37), o Rei que se sentaria à direita de Deus conforme SI 110,1 (cf. Mc 12,36s). Assim como Jesus
explicou aos discípulos de Emaús o que Moisés, os profetas e as Escrituras tinham dito a respeito
dele (cf. Lc 24, 27), assim a Igreja recebeu de Jesus ressuscitado e glorificado uma nova
compreensão das Escrituras (cf. Lc 24,27). Em conseqüência, os cristãos começaram a narrar os
feitos e os ditos de Jesus utilizando termos e passagens do Antigo Testamento (cf. Mt 8,17 e Is 53, 4;
a Igreja sabia que todo o Antigo Testamento fora escrito em vista do Cristo e da nova e definitiva
Aliança (cf. Rm 15,4).
Assim os escritos do Antigo Testamento contribuíram para que se originassem, como sua
continuação, resposta e consumação, os livros do Novo Testamento. A cronologia da origem dos
Evangelhos pode ser assim concebida:
Mt aramaico50
Tradição Joanéia

Mc grego65 / 70

Lc grego75
Mt grego80

João grego100
As datas acima são aproximadas, mas muito prováveis. A primeira redação do Evangelho deu-se
por obra de Mateus na terra de Israel e, por isto, em aramaico. Esta redação serviu de modelo para
Marcos e Lucas, que utilizaram o esquema de Mateus, acrescentando-lhe características pessoais. O
texto de Mateus foi traduzido para o grego, visto que o aramaico entrou em desuso quando Jerusalém
caiu em poder dos romanos no ano de 70; o tradutor, desconhecido a nós, retocou e ampliou o texto
aramaico, servindo-se de Mc (a influência de Lc é mais tênue). Isto quer dizer que o texto grego de
Mateus (único existente, porque o aramaico se perdeu) é, segundo alguns aspectos, o mais arcaico e,
segundo outros aspectos, o mais recente dentre os sinóticos.

1.4. Da pregação parcialmente escrita aos textos dos Evangelhos oficializados pela Igreja
Nem tudo o que Jesus fizera e dissera, podia caber num livro (cf. Jo 20,30s). Mas ao menos os
principais de seus ditos e feitos foram sendo consignados por escrito e transmitidos nas primeiras
comunidades cristãs. Aos poucos concebeu-se entre os discípulos de Cristo a necessidade de se fazer
uma síntese desses episódios que circulavam mais ou menos avulsos ou independentes uns dos
outros. Os Evangelistas se encarregaram de fazê-la na qualidade de escribas ou escritores das
comunidades cristãs. Não intencionavam escrever uma biografia completa de Jesus, mas concatenar
os episódios e fragmentos escritos que eram transmitidos de local a local na Igreja. O quadro
geográfico e cronológico de muitos desses episódios nos Evangelhos ficou sendo genérico e sóbrio: o
agrupamento e a sequência de tais peças literárias obedecia muitas vezes a critérios didáticos e
sistemáticos, mais do que propriamente à ordem de sucessão dos acontecimentos. - Esse processo
não impediu que cada Evangelista colocasse na redação respectiva o seu estilo e o seu enfoque
próprios; cada qual apresentou a figura de Cristo segundo o seu modo pessoal, procurando realçar em
Jesus de Nazaré alguns traços do Salvador prometido a judeus e gentios.

LIÇÃO 2: O TESTEMUNHO DE LC 1,1-4


As etapas que acabamos de assinalar na confecção dos Evangelhos, acham-se atestadas pelo
próprio São Lucas, que no prólogo do seu Evangelho escreve:
"Muitos empreenderam compor uma história dos acontecimentos que se realizaram entre nós,
como no-los transmitiram aqueles que foram desde o princípio testemunhas oculares e que se
tornaram ministros da palavra. Também a mim pareceu bem, depois de haver diligentemente
investigado tudo desde o princípio, escreve-los para ti segundo a ordem, ó excelentíssimo Teófilo,
para que conheças a solidez daqueles ensinamentos que tens recebido" (Lc f, f-4).
Nesta passagem, o Evangelista distingue três momentos:
a) O momento e a função das testemunhas oculares. "Os que viram e se tornaram servidores da
palavra", deram início à tradição do Evangelho. Esta procedeu, pois, de testemunhas; não foi
concebida em escolas, academias ou em sonhos e revelações particulares; os Apóstolos faziam
questão de se apresentar sempre como testemunhas do que Jesus dissera e fizera (veja-se em At 1,
21s a exigência para que alguém seja constituído Apóstolo). Não eram os senhores da palavra, mas
os servidores e ministros da mesma.
b) Os inícios da redação escrita. "Muitos empreenderam compor uma história dos
acontecimentos que se realizaram entre nós". A tradição oral foi-se fixando em fragmentos escritos;
nenhum Evangelho foi redigido de um só lance; na literatura antiga nada havia que equivalesse ou se
assemelhasse a um Evangelho escrito.
c) A redação dos Evangelhos completos. "Resolvi, também eu, depois de haver diligentemente
investigado tudo,... escrever..." A função dos Evangelistas foi, portanto, a de reunir e concatenar,
colocando na sua obra algo de seu gênio pessoal.
Esta temática se completará nu Módulo seguinte.
PERGUNTAS
1) Os Evangelhos foram escritos de maneira continua ou por etapas? Porquê ?
2) Descreva a primeira etapa.
3) Descreva a segunda etapa.
4) Descreva a terceira etapa.
5) Descreva a quarta etapa.
APÊNDICE
Eis testemunhos de antigos escritores cristãos que se referem à origem dos Evangelhos:

S. Irineu († 202) deixou-nos tal notícia:


"Mateus precisamente, entre os hebreus, e também em sua própria língua, fez aparecer uma forma
escrita de Evangelho, ao tempo em que Pedro e Paulo evangelizavam e fundavam a Igreja em Roma.
Depois da morte destes, Marcos, o discípulo e intérprete de Pedro, nos transmitiu igualmente por
escrito a pregação de Pedro. Da mesma forma Lucas, o companheiro de Paulo, consignou em livro o
Evangelho pregado por este. Enfim João, o discípulo do Senhor, o mesmo que reclinou sobre seu
peito, publicou também o Evangelho durante a estadia em Éfeso.
Ora, todos estes nos legaram a seguinte doutrina: um só Deus, Criador do céu e da terra,
anunciado pela Lei e pelos Profetas; e um só Cristo, Filho de Deus" (Contra as Heresias, C. III, 1,
1).
Eis o testemunho de Papias, bispo de Hierápolis (Ásia Menor), datado de 130 aproximadamente:
“E eu não hesitarei em acrescentar às minhas explicações, a fim de garantir sua verdade, o que
aprendi outrora dos antigos e retive muito bem. Porque eu não sentia prazer junto aos palradores
como o faz a maioria, mas junto aos que ensinam a verdade; não me agradavam os que aludem a
estranhos preceitos, mas os que recordam os preceitos dados pelo Senhor à fé, oriundos da própria
verdade. Se por acaso eu encontrava alguém que tivesse estado na companhia dos antigos,
examinava os ditos dos antigos, a saber: o que disseram André ou Pedro, Felipe, Tomé, Tiago, João,
Mateus, ou algum outro dos discípulos do Senhor; e o que dizem Aristião e o ancião João, discípulos
do Senhor. Eu não pensava que as coisas que provem dos livros me fossem tão úteis quanto as que
provém de uma palavra viva e dura doura ".
"E eis o que dizia o ancião a respeito de Marcos, intérprete de Pedro: 'Escreveu com exatidão, mas
sem ordem, tudo aquilo de que se lembrava a respeito das palavras e atos do Senhor. Pois, embora
não tivesse ouvido nem acompanhado o Senhor, mais tarde, como disse, acompanhou a Pedro. Este
dava seus ensinamentos conforme as necessidades, mas sem fazer uma síntese das palavras do
Senhor... Assim, Marcos não errou escrevendo conforme se lembrava. Seu propósito, com efeito, não
era senão o de nada deixar de lado do que tinha ouvido, e nada falsear naquilo que reportava'".
Eis o que Papias conta a propósito de Marcos. Sobre Mateus, diz: "Mateus coligiu, pois, em
língua hebraica as palavras (os logia ) e cada um os interpretou como foi capaz”.
O mesmo Papias se serve de testemunhos tirados da 1 a Epístola de João e 1a de Pedro. Expõe
também outra história a respeito da mulher acusada de muitos pecados diante do Senhor, a que se
alude no Evangelho segundo os hebreus".
As obras de Papias se perderam. Os fragmentos atrás foram preservados por Eusébio de Ceraréia
(† 340 aproximadamente) na sua "História da Igreja" III 39.

MÓDULO 27: A CREDIBILIDADE DOS EVANGELHOS


Uma vez proposta a história da formação do texto atual dos Evangelhos, coloca-se obviamente a
pergunta: essas sucessivas etapas da transmissão oral e escrita não contribuíram para deturpar a
figura e a mensagem originais de Cristo? As preocupações com a disciplina, a liturgia, a apologia das
primeiras comunidades não concorreram para se formar uma nova imagem de Jesus nos primeiros
decênios? Podemos aceitar que os Evangelistas consignaram realmente o Jesus da história e não
apenas o Jesus da fé (ou das concepções subjetivas dos antigos cristãos)? - É o que vamos estudar
neste Módulo.
LIÇÃO 1: A CREDIBILIDADE EM TERMOS POSITIVOS
Os estudos de crítica literária dos Evangelhos (ver Módulo 22), mostrando fidelidade dos códigos
à transmissão do texto sagrado, sugerem-nos que, se houve alterações essenciais na figura de Jesus,
estas alterações se deram no período de pregação oral que antecedeu a fixação dos Evangelhos por
escrito. Ora já este fato suscita dificuldades à crítica liberal. Com efeito,
1) em menos de trinta anos os antigos cristãos teriam concebido uma imagem radicalmente nova
de Jesus; em trinta anos no máximo, o rabino e profeta de Nazaré ter-se-ia tornado o Cristo da fé. Ora
esta hipótese parece não levar em conta a lentidão do processo em que são aureolados ou endeusados
os vultos da história. Enquanto há testemunhas oculares e auriculares de um personagem humano, há
sempre controle sobre as lendas e fábulas respectivas (principalmente no caso de Jesus os adversários
eram ávidos de denunciar qualquer fraude na transmissão da figura e da mensagem de Cristo).
2) Em toda a sua pregação oral e escrita os Apóstolos faziam questão de testemunhar apenas o que
acontecera, distinguindo ciosamente de tal testemunho as fábulas e mitos que certos falsos arautos
tentavam introduzir na pregação do Evangelho (cf. l Tm 1,3s; 4,7; 2Tm 4,3s; Tt1,14; 2Pd 1,16)25.
3) Para controlar a veracidade dos Evangelistas, temos outros livros do Novo Testamento,
principalmente as cartas de São Paulo. Estas foram redigidas - pode-se dizer - antes que os
Evangelhos chegassem à sua atual forma escrita, ou seja, entre 50 e 67. Nos outros livros do Novo
Testamento não se encontram minúcias da vida de Jesus, pois estas não estavam na mira dos
respectivos autores sagrados; mas temos aí o testemunho dos acontecimentos essenciais concernentes
a Cristo: nasceu da mulher e foi submetido à Lei (Gl 4,4); era filho de Davi (cf. Rm 1,14); pregou a
Boa-Nova e realizou feitos maravilhosos (cf. At 1,22; 2,23-36 ; 3,13-15; 4,10; l0,39-41; I Cor 15, 3-
7; Gl 2,20; Cl 2,14s). São Paulo faz eco explícito a certos ensinamentos de Jesus: sabe que Jesus se
opôs ao divórcio (cf. I Cor 7, 10-15; Mc 10, 11s; Lc 16, 18); instituiu a ceia eucarística (cf. I
Cor11,23-25; Mc 14,23s); refere-se aos preceitos que o Senhor estabeleceu (cf. I Cor 7, 10; 9,14;
11,23).
Numa crítica sóbria e serena, pode-se, pois, concluir: há sérias razões em favor da autenticidade
da figura e da mensagem de Jesus que os Evangelistas nos transmitem.
Todavia torna-se necessário agora observar as modalidades dessa autêntica transmissão.

Lição 2: As modalidades do fato positivo


Para completar a nossa noção de fidelidade dos Evangelhos, impõem-se-nos ulteriores
observações:
1) No tocante aos discursos de Jesus, compreende-se que os imediatos ouvintes não tenham
pensado em decorá-los. Por vezes mal entendiam todo o alcance do que Jesus lhes ensinava. Quando,
pois, apregoaram a mensagem de Cristo, não puderam por vezes senão referir o conteúdo dessa
mensagem, recorrendo a linguagem sinônima e variegada. É o que explica as diversidades nas
palavras de Jesus sobre o pão e o vinho nas narrações da última ceia (cf. Mt 26,26-29; Mc 14,22-24;
Lc 22,19s; I Cor11,23-25); na formulação do Pai Nosso (cf. Mt 6,9-13; Lc 11,2-4); no sermão
missionário de Cristo (cf. Mc 6,8s; Mt 10,9s)... Sabe-se também que o vocabulário e o estilo de Jesus
no Evangelho de São João são diversos dos que os sinóticos apresentam.
Contudo, mesmo assim, há passagens em que os críticos julgam poder reconhecer literalmente as
palavras mesmas proferidas por Jesus no seu sabor primitivo aramaico; são "ipsissima verba
Christi" (segundo o estudioso protestante Joachim Jeremias). Assim a expressão "Em verdade, em
verdade (amen, amen) eu vos digo...", com a qual Jesus introduz muitas de suas afirmações, não
tinha paralelo na literatura contemporânea aos Apóstolos; é criação de Jesus literalmente consignada

25
Apenas para facilitar a reflexão do leitor, transcrevemos aqui alguns dos textos citados acima:
I Tm f,3-5: "Torno a lembrar-te a recomendação que te dei quando parti para a Macedônia: devias Permanecer em Éfeso para Impedir que certas
pessoas andassem a ensinar doutrinas extravagantes, e a preocupar-se e com fábulas (mythois) e genealogias. Essas coisas, em vez de promover a obra
de Deus, que se baseia na fé, só servem para ocasionar disputas”.
1 Tm 4, 7: "Quanto ás fábulas profanas (mythois), esses contos extra vagantes de comadres, rejeita-os. Exercita-te na piedade”.
Tt 1,14: "Repreende-os severamente, para que se conservem sãos na fé e não se apeguem a fábulas (mythois) judaicas e aos preceitos daqueles que
viram as costas à verdade”.
II Pd 1,16: "Não foi baseados em fábulas (mythois) ardilosamente inventadas que vos fizemos conhecer o poder e a vinde de nosso Senhor Jesus
Cristo, mas, sim, depois de termos sido testemunhas oculares de sua majestade”.
pelos Evangelistas (cf. Mc 9,1; Mt 26,21; Jo 1,51; 3,3; 13,21). Também certas expressões do Pai
Nosso, como o apelativo Pai e algumas petições ("perdoa-nos as nossas dividas..., santificado seja o
teu nome...") têm genuíno sabor aramaico. Diga-se o mesmo a respeito das palavras com que Jesus
confere o primado a Pedro em Mt 16,17-l9; são o eco imediato da linguagem original de Jesus
("Feliz és tu,... carne e sangue..., Pai que está nos céus..., ligar-desligar). Mais: o uso das parábolas,
tão freqüente como é nos Evangelhos, não pode ter sido criado pelas comunidades primitivas.
Note-se também a expressão "Filho do Homem". Designa o Messias, conforme Dn 7,13. Jesus a
aplicou a si mesmo de maneira constante (cf. Mt 8,20; 11,19; 20,28...). Todavia caiu em desuso
rapidamente, pois no Novo Testamento só reaparece em At 7,56; Ap 1,13; 14,4. É locução aramaica,
que faz ressoar fielmente o linguajar de Jesus.
2) Os Evangelistas intencionaram dar testemunho da vida de Jesus sem Inventar; cf. Lc 1,1-4; Jo
19,35; 20,30s; 21,24s. Isto , porém, não exclui que tenham recorrido a gêneros literários ou
procedimentos estilísticos vigentes entre os judeus. Já que a finalidade sua era anunciar a Boa-Nova
ou fazer que os leitores, lendo os ditos e os feitos de Jesus, reconhecessem o Messias prometido aos
patriarcas, procuraram eles aludir aos fatos históricos de maneira a torná-los transparentes ou mostrar
o significado teológico desses fatos.
É o que acontece, por exemplo, com a genealogia de Jesus reproduzida em Mt 1,1-17.
Evidentemente o Evangelista dispôs os nomes da tabela genealógica em três séries de quatorze
personagens, afim de aludir ao nome de Davi(d) (as consoantes D, V, D em hebraico têm o valor
numérico 4+6+4 = 14). Jesus, aparecendo como o herdeiro de 3 X 14 gerações, era evidentemente
caracterizado (para um judeu) como sendo o Filho de Davi por excelência ou o Rei messiânico. - São
Lucas (3,23-28), ao contrário, apresenta outro tipo de genealogia, passando de Jesus até Adão, para
mostrar que Jesus era o novo Adão, o irmão e salvador de todos os homens
Em suma, há inegavelmente nos Evangelhos modos literários usuais entre os judeus e menos
conhecidos a nós, modernos. É necessário levar em conta tais modos a fim de entendermos a
historiografia dos Evangelistas como estes a entendiam e não como nós a poderíamos entender (se
não estivéssemos prevenidos).
3) É inegável também que os pregadores do Evangelho, ao anunciarem a Boa-Nova aos diversos
auditórios que encontravam, explicitavam-na, pondo em relevo dados importante para tais ouvintes.
A pregação sempre foi algo de vivo, concebido para responder às questões vitais trazidas pelos
destinatários. Assim em Mt 12,39s é explicado o sinal de Jonas que em Lc 11, 29 é somente
mencionado; ora pode-se crer que a explicitação tenha sido feita pelos Apóstolos ao apregoarem os
episódios, após a morte e a ressurreição de Jesus.26
Acontece, porém, que este e outros exemplos de explicitação da mensagem de Jesus concorrem
para levantar dúvidas em certos críticos sobre a autenticidade da figura e da doutrina de Jesus
transmitida pelos Evangelistas.
Que dizerem resposta atais dúvidas?
- É o que veremos sob o título abaixo.

Lição 3: A palavra final


Em última análise, devemos reconhecer que a redação escrita dos Evangelhos temas, traz em si a
marca do estilo e da vida das comunidades cristãs nascentes. Este resultado do chamado "método da
história das formas" é incontestável. A S. Igreja não teve dificuldade em reconhecê-lo mediante a
Instrução da Pontifícia Comissão Bíblica "Sancta Mater Ecclecia" de 21 / IV / Q64.
1. A verificação deste fato, porém, não leva necessariamente a afirmar que houve deturpação da
mensagem de Jesus através das etapas da pregação oral, ou seja, nos trinta anos entre a Ascensão do
Senhor e o início da redação dos Evangelhos. Quem afirma a deturpação, é por conseguinte, nega a
veracidade dos Evangelhos, só o faz na base de princípios filosóficos (do existencialismo, do
26
Comparem-se os textos:
Lc 11,29: “Esta geração... pede um sinal; mas não se lhe dará outro sinal senão o do profeta Jonas. Pois, como Jonas foi um sinal para os ninivitas,
assim o Filho do homem o será para esta geração”.
Mt 12,39s: “Esta geração... pede um sinal; mas não lhe será dado outra sinal senão aquele do profeta Jonas. Do mesmo modo que Jonas esteve três dias
e três noites no ventre do peixe, assim o Filho do Homem ficará três dias e três noites no seio da terra”.
sociologismo), e não simplesmente em conseqüência de suas investigações exegéticas (literárias e
históricas). Quem não adota a filosofia dos críticos liberais, mas procura tranqüilamente auscultar os
textos e a história dos tempos do Novo Testamento, não terá motivos que o obriguem a negar a
veracidade dos Evangelhos. Ao contrário, destituído de preconceito, levará em conta todos os
indícios positivos (atrás brevemente mencionados) que abonam a fidelidade histórica dos
Evangelhos. E aceitará serenamente o testemunho dos Evangelistas.
2. Para um estudioso católico que se deixe orientar não somente por critérios científicos mas
também por sua fé, há nova razão para afirmar a historicidade dos Evangelhos. Com efeito;
Jesus prometeu a seus apóstolos a assistência do Espírito Santo, o qual haveria de os levar à plena
compreensão das palavras de Cristo (cf. Jo 14,17; 16,13). A fé, portanto, ensina que a explicitação e
a aplicação da Boa-Nova fera pelos arautos da Igreja e consignada nos Evangelhos representa o
desdobramento genuíno do doutrina de Cristo. Não pode haver, portanto, diferença essencial entre o
Jesus da história (Jesus que viveu outrora na Palestina) e o Jesus da fé (Jesus afirmado e acreditado
pelas comunidades primitivas).
É nesta altura que se distanciam, uns dos outros, críticos católicos e críticos protestantes liberais.
Todos admitem que o texto escrito dos Evangelhos é o reflexo não somente da memória dos
Evangelistas, mas também da pregação oral dos primeiros decênios. A exegese liberal (Dibelius.
Bultmann), porém, admite, em virtude de posições preconcebidas, que a pregação viva desfigurou a
imagem e o pensamento de Cristo, ao passo que a exegese católica - isenta de preconceitos e guiada
pela consciência de que o Espírito Santo assiste à sua Igreja e inspirou os autores sagrados - afirma
identidade substancial entre a pregação viva de Jesus e o texto escrito dos Evangelhos.
"O Jesus da história fica sendo fundamento necessário sobre o qual se apoia a nossa transição para
o Cristo da fé. Se houvesse, como pretendem freqüentemente certas correntes não-católicas,
contradição entre esses dois termos, nossa fé estaria privada dos feitos sobre os quais a Igreja sempre
a fez pousar... Não colocamos nossa fé num Cristo saldo da fantasia dos homens, mas no Cristo que
Deus nos deu no personagem histórico que tinha por nome Jesus de Nazaré" (J. Michl, "Le problème
de Jesus,” p. 24).

PERGUNTAS
1) Os Apóstolos conheciam fábulas e mitos? Como os julgavam?
2) Pode-se ouvir o linguajar aramaico de Jesus nos Evangelhos ? Cite dois exemplos.
3) Como entender a genealogia de Jesus em Mt 1, 1-17?
4) A intenção dos evangelistas em simplesmente narrar a história?
5) Afinal os Evangelhos merecem crédito? Em que sentido?

MÓDULO 28: QUEM É ESSE HOMEM? (I)


Após ter examinado a credibilidade dos Evangelhos, passamos a lê-los como observadores
curiosos por investigar a identidade desse homem chamado Jesus. É o que faremos neste Módulo e
no seguinte.
A figura de Jesus, no tempo mesmo dos Apóstolos, suscitava interrogações: alguns o aceitavam,
outros não (cf. Jo 9, 29-34; 10, 39-42; 11,45-54). Daí a pergunta do Senhor: "Quem dizem os homens
que eu sou?... Quem dizeis que eu sou?" (Mt 16,13-15). Ora é oportuno, mesmo aos cristãos de hoje,
recolocar tais perguntas, abstraindo de sua fé; procurem ponderar os prós e os contras referentes a
Jesus. Disto só poderão resultar benefícios para a profissão cristã dos que já crêem, e luzes para os
que não crêem. - É o que vamos fazer, considerando Jesus como mero homem, que viveu outrora e
deixou marcas na história. Que tem a sua vida de significativo e característico? A resposta será
valiosa.

l. Quem é esse Jesus?


Há dois mil anos quase, um homem formulou a pergunta a seus amigos: "Quem dizeis que eu
sou?" (Mt 16,15). Através dos séculos a pergunta tornou a ser repetidamente colocada. Era então
simplesmente um carpinteiro que falava a um grupo de pescadores e a um cobrador de impostos.
Vestia-se pobremente, e os que o acompanhavam, eram pessoas sem grande cultura. Não tinham
títulos nem prestigio. Exprimiam-se em aramaico e nunca tinham saído do seu país natal. Aquele
homem era tido como débil e manso pelos violentos; mas os tutores da ordem estabelecida o
julgavam violento; os poderosos escarneciam sua loucura. Dedicava a Deus toda a sua vida, mas os
sacerdotes o viam como um blasfemo e violador do sábado. Muitos seguiam quando pregava pelas
estradas, mas a maioria se interessava mais pelos "feitos maravilhosos ou pela pão que ele repartia"
(cf. Jo 6,26). Na verdade, todos o abandonaram quando se levantou a tormenta contra ele, ficando-
lhe fiéis apenas sua mãe e um discípulo.
Na noite daquela sexta-feira, quando se fechou o túmulo sobre o seu cadáver, ninguém daria um
centavo por sua memória; ninguém pensava que seu nome ainda seria recordado fora do coração
daquela mulher - sua mãe - que se afundava nas trevas da noite e da solidão.
E, apesar de tudo, vinte séculos depois, a história se faz em função daquele homem; os cronistas -
mesmo os que se lhe opõem - afirmam que tal ou tal acontecimento se deu tantos anos antes ou
depois dele. Uma terça parte da humanidade, interrogada sobre suas crenças, usa o nome desse
homem para se identificar. Quase dois mil anos após a sua morte, continuam a ser publicados
anualmente milhares de livros sobre a sua vida e a sua doutrina. A história desse homem inspirou ao
menos a metade das obras de arte que o mundo conhece desde a sua vinda. Todos os anos dezenas de
milhares de homens e mulheres deixam a família para segui-lo, como fizeram os seus primeiros
amigos.
Quem é esse homem por quem tantos entregaram a vida ou se entregaram às mais heróicas
façanhas? Há quase dois mil anos, o seu nome está nos lábios de milhões de agonizantes como fonte
de esperança. Quem é esse personagem que suscita entrega total ou ódio radical até dentro da mesma
família (cf. Mt 10,34-37)? Será ele bálsamo que cura ou espada que fere ou morfina que aliena?
A resposta a estas perguntas se impõe a todo homem que pense. Com efeito; se esse homem é o
que dizem seus discípulos, a existência de cada indivíduo toma rumo e sentido novos; se, porém, ele
foi um impostor, gerações e gerações até hoje sacrificaram em vão o melhor da sua vida.
O mesmo não se dá com outros personagens da história. Que César († 44 a.C.)tenha atravessado o
Rubicão ou não o tenha atravessado, pode ser verdade ou mentira, sem que algo mude no curso da
vida de alguém. Que Carlos V († 1558) tenha sido imperador a Alemanha ou da Rússia, isso nada
tem que ver com a auto-realização dos homens. Que Napoleão I († 1821) tenha morrido, após
derrota, na ilha de Elba ou tenha terminado seus dias como imperador, isto não move nenhum ser
humano a deixar sua casa e suas comodidades para se tomar missionário na África ou na Oceania.
O homem, porém, do qual se trata aqui, exige respostas cabais ou radicais. Ele diz que quem nele
crê salva a sua vida, e quem o despreza, despreza a sua própria vida (cf. Mt 10, 38; 16,24; Jo 12,25;
Lc 9,48). Por conseguinte, os caminhos dos homens mudam de acordo com a resposta que dêem às
perguntas atrás formuladas.

2. Num recanto do Império...


Quando nos voltamos para a época e o mundo de tal homem, a surpresa que experimentamos, é a
de verificar que os poderosos de então mal tiveram consciência da sua existência.27 Roma fizera de
muitos povos uma grande família, num Império poderoso e bem administrado. Após décadas de
terrível violência, Augusto conseguira relativa paz, da qual falavam os poetas; a situação econômica
parecia próspera; a cidade de Roma resplandecia de mármores. Mas através da máscara de um
Império feliz grassava séria crise do mundo pagão; havia a política de "compadres"; a corrupção
moral se associava ao ceticismo filosófico e religioso, de modo que ninguém acreditava em valores
mais nobres.
Ora num rincão do império estava situado o povo judeu, desprezado pelos romanos. Cícero († 43
a.C.) ria-se do Deus dos israelitas, dizendo que "devia ser um deus muito pequeno, pois lhes dera
uma terra tão pequena como pátria". Tácito († 120 d.C.) considerava os judeus "seres repulsivos e
imbecis". Apolônio de Tiana († 96 d.C.) os tinha como "os menos dotados de todos os bárbaros (=

27
Não há dúvida, citam-se documentos de Plínio o Jovem (112), Tácito (116) e Suetônio (120), escritores romanos que referem a existência de Cristo e
de seus discípulos. Ver a propósito Módulo 21 deste Curso.
estrangeiros), razão pela qual não colaboraram com nenhuma invenção para o progresso da
civilização".
Esse pequeno país, que de fato não oferecera nenhuma invenção material ao mundo, ia contribuir
com a maior novidade para a história do gênero humano: ia apresentar a mais pura noção de Deus e o
mais belo programa religioso; ia constituir-se em fronteira pela qual a humanidade se limitaria com a
eternidade."
A Palestina não era um país de luxo: seu tamanho era tão pequeno que S. Jerônimo não ousava
dizer sua extensão para não dar ocasião de zombaria aos pagãos: tinha clima quente e, em parte,
desértico. No setor político ainda menos motivos de entusiasmo apresentava: era a Palestina ocupada
por um invasor que controlava até os centavos dos respectivos habitantes. A tensão era grande: nas
montanhas havia guerrilheiros, que de vez em quando atacavam os ocupantes; em suas andanças o
jovem Jesus terá tido ocasião de encontrar cruzes das quais pendiam os revoltosos condenados. Em
tais circunstâncias, o povo judeu estava dividido: havia os puritanos ou nacionalistas, avessos aos
romanos (fariseus), os grupos radicalmente violentos (os zelotas), os colaboracionistas (herodianos
e saduceus) e os que esperavam a solução do problema por uma próxima intervenção de Deus
(essênios). Fora dos Partidos, havia "o povo da terra", ovelhas sem pastor (cf. Mt 9,36).

3. A espera de Deus
Essa população dividida não deixava de ter, ao menos, uma nota comum: os judeus sabiam ser um
povo diferente dos demais, porque chamados por Deus para desempenhar importante tarefa. Eram
depositários de uma aliança, segundo a qual Deus não abandonaria seu povo, mas o faria berço de
um Salvador, que daria a Israel a hegemonia sobre os demais povos.
Tratava-se, pois, de um povo sustentado pela esperança. Através dos séculos, profetas haviam
surgido que anunciavam a vinda do Salvador. Os tempos em que Jesus viveu, foram um período em
que fervilhava a expectativa de Israel: os homens tentavam entrever a prometida figura do Messias
que se aproximasse; por isto precipitavam-se atrás de um chefe que se dissesse Iluminado pelo
Espírito: seria ele o Messias? Mais de uma vez foram enganados (cf. At 5,36s); os propalados chefes
eram políticos embusteiros. Mas Israel não perdia as esperanças. Continuava procurando.

4. Um Profeta à margem do Jordão


Naquela época apareceu à margem do Jordão um homem misterioso, ascético, chamado João, que
impressionava pelo seu teor de vida e pela severidade de sua pregação. Tinha abandonado a vida
cômoda para estabelecer-se no deserto, onde praticava a mais rigorosa pobreza. Isto não surpreendia
os judeus, pois muito perto de João se encontravam os essênios, monges que levavam vida
semelhante. A novidade que esse homem apresentava, era o anúncio de que o Messias estava às
portas; ele mesmo não era o Salvador, pois o Salvador era muito maior do que João, a tal ponto que
João não seria digno de desatar a correia da sandália do Messias (cf. Jo 1,27). Era, pois, necessário
que todo o povo se preparasse, e preparasse os caminhos, para poder receber o Esperado.
João praticava um rito singular: os fiéis entravam no rio Jordão em sinal de arrependimento, e a
água era derramada sobre suas cabeças como se os purificasse dos pecados.
Um dia, entre os candidatos ao Batismo, apareceu um homem que, à primeira vista, nada tinha
que chamasse especialmente a atenção. Na idade de trinta anos, seu rosto era nobre, a estatura
robusta, o olhar enérgico, espelho de grande força de vontade. Vestia-se, porém, como todos; falava
a língua de todos, e desceu às águas como todos. Ao vê-lo, João perguntou: "Sou eu que devo ser
batizado por ti, e tu vens a mim para que eu te batize?" (Mt 3,14). E pouco depois acrescentou: "Eis o
Cordeiro de Deus que tira o pecado do mundo" (Jo 1,29.36).
Era realmente o Anunciado, o Esperado, o salvador? Um primeiro grupo de homens começou a
segui-lo. Teve assim início a aventura que provocaria a vertente da história.

5. O Impossível retrato
Como era fisicamente o homem que João batizara e identificara? O mundo estaria interessado em
possuir uma estátua dele, como possui as de Alexandre Magno, Sócrates. Platão, Aristóteles... Ele
teria sido retratado pelos pintores ou escultores da época se tivesse nascido em Roma ou na Grécia.
Mas, para os judeus, as imagens eram algo pouco usual e mal visto. Por isto, do homem mais
apresentado na arte sacra de todos os tempos não temos uma só imagem que goze de autenticidade.
Os próprios evangelistas não se preocuparam com os traços físicos de Jesus: não nos dizem se era
alto ou baixo, louro ou moreno, de estatura forte ou débil. Muito se sabe a respeito do seu modo de
pensar e sentir; nenhum traço, porém, do seu semblante... Apenas se pode dizer, segundo São Paulo,
que se comportou exatamente como um homem em tudo, exceto no pecado (cf. Fl 2,7; Hb 2,17;
4,15). A descrição da face de Jesus atribuída a Flávio Lêntulo, procônsul romano, é medieval e
espúria ou destituída de credibilidade.
O Sudário de Turim, cuja autenticidade continua muito provável, revela um Jesus majestoso em
sua simplicidade de condenado à flagelação, à coroação de espinhos e à morte de Cruz. Aliás, era
necessário que fosse robusto para poder palmilhar as estradas da Palestina de Norte a Sul e de Sul a
Norte e para passar noites em oração ou abrigado em grutas ao redor de Jerusalém; cf. Mc 1,35; Lc
6,12.

6. Estupendo equilíbrio
O corpo sadio daquele homem era vivificado por uma alma também sadia, resultando daí uma
personalidade notavelmente equilibrada. Quem examina as páginas da história, verifica que quase
todos os grandes homens tiveram algo de anormal, de louco ou de visionário. Ora nada disto aparece
em Jesus. Vive sofrendo a constante oposição dos fariseus, mas não perde a calma interior. É
membro de um povo passional, mas combina essa índole com impressionante serenidade que
desconcerto seus inimigos; assim, por exemplo, quando estes o quiseram colher em armadilha: Jo
7,53-8,11 (os fariseus lhe apresentaram uma mulher adúltera, que eles queriam apedrejar...); Mt
22,15-22 ("é lícito pagar o tributo a César ou não?"); Mt 22,23-33 (os saduceus perguntam de quem
será esposa no dia da ressurreição a mulher que teve sete maridos sucessivos na vida presente): Lc lo,
25-37 (um legista quis embaraçar Jesus perguntando-lhe qual seria o maior mandamento da Lei de
Moisés...).
O escritor racionalista e critico Adolf von Hamack assim se refere à figura de Jesus Cristo:
"A nota dominante da vida de Jesus é a de um recolhimento silencioso, sempre igual a si
mesmo, sempre tendendo ao mesmo objetivo. Incumbido da mais elevada missão, tem sempre
olhos e ouvidos abertos para todas as impressões da história que o cerca. Que prova de paz
profunda e de absoluta segurança! Viagens e albergues para viandantes, festas de núpcias,
ritos de enterro, os palácios dos vivos e os sepulcros dos mortos, o semeador, o ceifador, o
vinhateiro, os trabalhadores desocupados nas praças, o pastor à procura das ovelhas, o
mercador em busca de pérolas, a mulher no lar a lançar fermento na farinha para o pão, a que
perdeu a sua dracma, a viúva que se queixa no tribunal perante o juiz iníquo, o alimento
corporal e as relações entre Mestre e discípulos, a pompa dos reis e a ambição dos poderosos, a
inocência das crianças, a diligência maior ou menor dos servidores..., todas essas Imagens
davam vida aos seus discursos e os tornavam acessíveis a todos os ouvintes... Além disto, as
suas palavras revelam, em meio à maior tensão, paz interior e alegria espiritual tais como
nenhum profeta as experimentara. Ele que não tinha uma pedra sobre a qual reclinasse a
cabeça, não falava como um homem que houvesse rompido com tudo, como um herói de ascese,
como um profeta extático, mas como um indivíduo que conhece a paz e o repouso interior e
pode dá-lo aos outros. Sua voz possui as notas mais poderosas; coloca os homens frente a uma
opção decisiva, sem deixar escapatória e, não obstante, ele apresenta as coisas mais terríveis
como se fossem as mais elementares e delas fala como se fossem o que há de mais natural; as
mais terríveis verdades, ele as colocava dentro da linguagem semelhante à da mãe que fala a
seu filho".
Na verdade, impressiona a firmeza que Jesus tem em si mesmo; baseia-se em sua extraordinária
lucidez de juízo e em sua inquebrantável força de vontade, Jesus é realmente um homem que sabe o
que quer, e está disposto a realizá-lo sem oscilações. Em sua vida pode ter havido - no horto das
Oliveiras - um momento de temor, mas não de dúvida ou de incerteza. Sua vida foi uma flecha
dirigida à sua meta, um Sim taxativo à sua missão. É alguém capaz de arrancar um olho seu se este
olho o escandaliza (cf. Mt 5, 29s), alguém que não aceita quem põe a mão no ando e olha para trás
(cf. Lc 9,62). Já aos doze anos sentia-se envolvido pelas exigências de sua missão quando disse a
Maria e José: "Não sabíeis que eu devo ocupar-me das coisas de meu Pai?" (Lc 2,4g). É oportuno
pensar que o desfecho da pregação de Cristo era a morte atroz na Cruz conhecida e pressentida, para
se ter noção mais nítida das dimensões da intrepidez da sua vontade.
Todos os seus anos de vida pública, Jesus os viveu entre os homens, cercado de discípulos, mas
sempre só, porque não compreendido por eles. A figura era atraente e, ao mesmo tempo, misteriosa -
o que criava certa distância em relação aos demais homens e lhes impunha uma espécie de respeitoso
temor.
Quem examina em profundidade a pessoa de Jesus, verifica que em seu coração tudo tinha seu
tempo, sua oportunidade e sua medida; era violento, quando necessário, e suave; temível aos
inimigos, mas amigo das crianças; cheio de ternura para com os pecadores, mas
nunca sentimental; dado a opções radicais, mas também realista e conhecedor da fraqueza
humana. Parecia viver simultaneamente no tempo e na eternidade, de modo que se encontra
plenamente á vontade na opção, mas tinha os pés firmes na terra; voltado para o transcendental,
misterioso, mas nunca sonhador exaltado; impressionante por seus gestos, mas nunca teatral;
diferente dos que o cercavam, mas nunca um exibicionista; amante da vida, mas disposto a entregá-la
para não desdizer suas ideias; não suportava os hipócritas, mas era compreensivo para com todos os
que pecavam por fraqueza humana.

7. Homem aberto
O equilíbrio psicológico de Jesus não era o de um estóico. Os filósofos de sua época proclamavam
a apatia em relação a todos os possíveis afetos; tentavam dominar a si mesmos a ponto de nunca se
emocionar. Tais homens tendiam à soberba e ao egoísmo. Ora Jesus era precisamente o contrário.
Os homens se dividem em egoístas e generosos, homens que têm o seu centro em si mesmos,
fechados sobre si, e homens que o têm fora de si, abertos para outros valores. Nesse contexto, Jesus
era totalmente aberto... aberto para os demais homens e aberto para Deus.
A abertura para Deus é o que melhor define sua vida e sua figura; é a força motriz de toda a sua
atividade. Ninguém jamais experimentou uma relação com Deus tão viva, tão pessoal quanto Jesus; a
oração que ele realizava por vezes a noite inteira (cf. Lc 6,12) era a expressão consciente do contato
incessante com Aquele que o tinha enviado.
Aliás, o título de Enviado com que Jesus se identificava (cf. Jo 5, 36s; 6,44-46.57; 7, 16.28;
8,16...) significava bem a sua origem transcendental e a identificação do seu pensar e querer com o
Pai Celeste: isto aparece tanto no episódio do menino de doze anos atrás mencionado (cf. Lc 2, 41-
50) quando no final de sua vida, quando exclamou que " tudo estava consumado" (Jo 19,30) ou que
tudo de que havia sido incumbido se havia executado. Todo o segmento de vida intermediária foi o
cumprimento da vontade do Pai (cf. Jo 6,38). Perante esta desapareciam os demais imperativos ou
atrativos: as cadeias do dinheiro, as honras da sociedade, os aplausos dos homens, a fama dos
milagres... O Pai lhe havia assinalado "a sua hora" e Jesus ia ao encontro desta como uma flecha
dirigida ao seu alvo; cf. Jo 2,4; 7,30; 8,20; 12, 23-27; 13,1; 17,1.
Realmente em toda a história da humanidade não se conheceu trajetória tão decidida, tão
constantemente voltada para o alvo. Um Jeremias, um Paulo, um Agostinho, um Buda, um Maomé
apresentaram desníveis, sacudidelas violentas, mudanças e derrotas interiores. Somente a vida de
Jesus se desenvolveu sem um deslize psicológico e sem um desvio moral. Tanto na sua infância
quanto na sua vida pública e na morte brilhou incontestada no horizonte a luz da vontade de Deus.

8. O Homem para os Outros


Se Jesus teve tanto zelo pelas coisas de seu Pai, ainda teve tempo e interesse para ocupar-se com
as necessidades e misérias dos homens que o cercavam?
A pergunta é importante, pois hoje em dia as pessoas devotas - especialmente os cristãos - são
acusados de tanto olhar para o céu que acabam por esquecer os que sofrem ao seu lado na terra. O
homem moderno repudia a alienação ou a religião que desvie o indivíduo do cumprimento de suas
tarefas na terra.
Pode-se dizer que Jesus entrou decididamente dentro da massa e da miséria humana. Se foi aberto
para Deus Pai, foi aberto também para os homens, seus irmãos, e isto não à guisa de apêndice, mas
em cumprimento de parte essencial de suas tarefas.
Com efeito, o dínamo da vida de Jesus era o amor, amor total sem exceções. Um amor de
realismo pleno, que não é nem o entusiasmo ingênuo de quem diviniza o humano, nem o fanatismo
de quem o maldiz. Cf. Mt 12, 15-21; Mc 6,34.
Muitos outros sábios e filósofos discorreram sobre a condição humana. Alguns a quiseram
revolucionar, mas ninguém entrou tão a fundo na fragilidade do homem como Jesus; ninguém
assumiu tão radicalmente a dor do homem, o seu cansaço, as próprias conseqüências do pecado, que
Jesus fez sua,
Em Jesus há surpreendente mistura de serviço a um elevado ideal e de atenção a minúcias. É
freqüente entre os gênios mergulhar de tal modo na sua tarefa que chegam a ignorar aqueles que os
cercam. Olham tão alto que pisam as formigas do caminho. Jesus não foi assim. Pensava tanto em
converter o mundo, mudando o seu destino, quanto em acariciar crianças, em chorar por seus amigos
ou em dar alimento aos que o seguiam para escutar sua palavra; cf. Lc 9, 11-17. Nunca um chefe de
tão elevada categoria se ocupou com coisas tão comezinhas. Nunca alguém tão voltado para o
espiritual deu tanta atenção aos problemas materiais. Ele esteve realmente com os homens.
... E com todos os homens. Especialmente com os mais necessitados: dedicou-se muito
especialmente aos sofredores, aos pecadores, a mulheres da vida, aos cobradores de impostos (cf. Mt
21,3-15). Chefe que veio para servir e não para ser servido (cf. Mt 20, 24-28) e que se ajoelhou,
como escravo, para lavar os pés de seus discípulos (cf. Jo 13,1-5).
O amor de Jesus aos homens não foi um vago amor à humanidade; foi amor a cada qual das
pessoas que o cercavam. Para muitos grandes lideres, o amor vem a ser um vago humanitarismo.
Declaram amor à humanidade inteira, mas são insuportáveis para aqueles que vivem a seu lado. São
mais preocupados com o rebanho humano do que com as ovelhas que o compõem; julgam mesmo
natural que as ovelhas sofram para servir à coletividade num hipotético futuro mundo melhor. Jesus é
o Bom Pastor que conhece cada uma de suas ovelhas (cf. Jo 10, 1-18) e estaria disposto a deixar
noventa e nove ovelhas felizes para recuperar a desgarrada; cf. Lc 15, 4-7.

9.Amar por amar


Outra característica que diferencia o amor de Jesus do que se costuma geralmente ver na
sociedade, é o seu absoluto desinteresse de qualquer vantagem pessoal. Jesus não é um político que
serve ao povo para acabar servindo-se dele. Foge das honrarias, pede aos discípulos que não se
gloriem de seus feitos (cf. Lc 10,20). Sabe, aliás, que dos homens não receberá outra resposta senão
ingratidão, abandono e morte. Todavia isto não o impede de se dar generosamente. Amar era para
Jesus tão natural quanto queimar o é para a chama. Era o irmão universal, que não podia não amar.
Por isto alguns escritores modernos definiram Jesus como "o homem para os outros", o homem
que não guardou para si nenhuma gota de seu sangue, que renunciou à própria vida para dar vida aos
outros, o homem "expropriado para a utilidade pública".

10. A Pergunta Decisiva


Assim chega o momento da pergunta decisiva: Esse homem extraordinário é simplesmente um
homem ou quem examina a sua vida em profundidade se vê obrigado a concluir como o centurião
que o viu morrer: "Realmente esse homem era Filho de Deus!" (cf. Mc 15,39)? No começo destas
reflexões afirmava-se que a resposta à pergunta: "Quem é Jesus?" é tão decisiva que quem não
encontrou a resposta é desafiado, pela história, a procura-la, pois o Sim ou o Não ditos a Jesus
definem os caminhos dos homens.
Com efeito. Se Jesus não é mais do que um homem maravilhoso ou um gênio excepcional, um
líder espiritual, bastará que os simpatizantes o admirem, acatem e aprendam seus ensinamentos. Mas,
se é Deus na carne humana, tudo muda; altera-se o conceito de existência humana, e surge uma nova
visão de Deus; já não será possível furtar-se a tomar partido por ele ou ...contra ele.
Na verdade, diante de Jesus as posições dos pensadores variam. Os racionalistas do século XIX
teceram uma autêntica teia de aranha em seus argumentos sutis para se convencer de que o
Evangelho é explicável por fatores naturais sem contar com a loucura de que Deus se haja feito
homem em Jesus de Nazaré.
Por isto, nos escritos de alguns racionalistas encontram-se calorosos elogios a Jesus-homem: foi o
ser humano que aprofundou como nenhum outro o conceito de Divindade, o mais importante dos
profetas, o mais elevado reformador moral que a história tenha conhecido. Consequentemente
concluía Renan: "Quaisquer que sejam os fenômenos a se registrar no futuro, ninguém sobrepujará
Jesus. O culto de Jesus rejuvenescerá constantemente; a sua história continuará a suscitar lágrimas
sem conta; o seu martírio enternecerá os corações mais nobres e todos os séculos proclamarão que
entre os filhos dos homens ninguém nasceu que se lhe possa comparar".
Tantos elogios parecem acumular-se precisamente para que os autores se furtem ao salto
definitivo. Elogiam a humanidade de Jesus para não ter que reconhecer algo que revirada a vida de
quem elogiasse a realidade de Deus feito homem. Interessante é que quem em nossos dias relê as
obras dos racionalistas do século passado, tem a impressão de que são mais imaginativas do que
parecem ser os próprios Evangelhos. Para negar o sobrenatural em Jesus, vêem-se obrigados a tantos
exercícios de retórica que os seus dizeres perdem credibilidade.
Para outros racionalistas, a história de Jesus seria a de um hábil chefe de bandoleiros
revolucionários ou a de algum prestidigitador fascinante, a de um parapsicólogo arrebatador de
massas ou a de um doente mental obcecado por um sonho mirabolante ou a de um megalomaníaco
que conseguiu seduzir uns tantos seguidores, também estes alucinados ou doentes mentais...
Acontece, porém, que esse doente obsessivo ou hábil prestidigitador foi o maior homem, o de
maior repercussão na história universal, e as dezenas de doentes mentais que o seguiram
desencadearam o mais nobre e dinâmico movimento religioso, cultural e humanitário registrado em
todos os séculos. Os milagres de Jesus, para os racionalistas, não foram milagres, mas
milagrosamente Jesus, líder iludido e ilusor, tornou-se aceito e acreditado no mundo inteiro. Jesus,
levado por sua "idéia fixa" de ser Filho de Deus, teria, na verdade, movido os homens para os mais
nobres ideais éticos nunca antes e depois apregoados.
Não seria o caso de reformular a resposta racionalista á pergunta: "Quem é Jesus Cristo?". E se
fosse realmente o Filho de Deus ou Deus feito homem?...

11. Responde Jesus


Avia mais simples para responder a tal pergunta será a de ouvir o próprio Jesus a respeito. Que
dizia Ele de si mesmo? Como se definiu por suas palavras e por sua conduta de vida?
No começo de sua missão pública Jesus evitou exprimir com toda a clareza a sua Divindade, pois
esta atitude teria parecido blasfema aos judeus, povo estritamente monoteísta. Todavia no decorrer da
sua vida, principalmente em suas últimas etapas, Jesus revelou gradualmente este traço de sua
personalidade ou a sua radical unidade com Deus. Progressivamente apresentou-se como maior do
que todos os profetas, como senhor do sábado (cf. Mc 2,27) e mais nobre do que o Templo de Deus
em Jerusalém (cf. Mt 12,6), como alguém que podia demonstrar com milagres seu poder infinito
sobre à própria morte (cf. Jo 11, 41-43; Mt 9,2-8; Lc 5, 17-26). Jesus centralizou em sua pessoa a sua
própria mensagem (cf. Mt 16, 24s) e pediu radical adesão à sua pessoa, adesão tal que só a Deus se
presta (cf. Mt 10,37-39). Do compromisso dos homens frente a Jesus presente em cada irmão
sofredor depende a sorte definitiva de cada um; Jesus é o critério de julgamento (cf. Mt 26, 31-46).
Quem não cresce nele, seria julgado; quem cresce nele, salvaria a sua alma (cf. Jo 3, 18s). Com
outras palavras ainda: Jesus tinha consciência de ser muito mais do que um homem, muito mais do
que um super-homem. Procedia como só procederia quem soubesse ser um só com Deus (cf. o
perdão dos pecados corroborado por um milagre em Mc 2, 1-12). É impossível exalta-lo como
homem sem reconhecer a sua Divindade; se era mero homem, deve-se dizer que era um louco, um
orgulhoso, um megalomaníaco. Toda a vida e a mensagem de Jesus perdem o seu sentido ou se
convertem em arrogância despropositada se se nega a sua Divindade ou a sua consciência de ser um
só com Deus.
Precisamente tal consciência de ser "o Unigênito do Pai" (cf. Jo 3,16) foi causa das sérias
altercações que Jesus teve com os doutores do judaísmo nas últimas semanas de sua vida. Exclamou
então: "Meu Pai e eu somos um só" (Jo 10,30); "Sal do Pai e vim ao mundo; de novo deixo o mundo
e volto ao Pai" (Jo 8, 42; 16,28); "Não estou só, mas o Pai que me enviou, está comigo" (Jo 8, 16);
"Se me conhecêsseis, conheceríeis também meu Pai" (Jo 14,7); "Quem me vê, vê o Pai... Não crés
que o Pai está em mim e eu estou no Pai?" (Jo 14,9s); "Ninguém vai ao Pai senão por mim" (Jo
14,6), porque "tudo o que o Pai tem, é meu" (Jo 16,15).
Foi isto que Jesus pensou e proclamou. Porque o dizia, havia de morrer. Ora nenhum indivíduo
sadio morre por um sonho.
Está claro que, se procurássemos no Evangelho fórmulas tão nítidas como as que se encontram
nas definições de Concílios e nos tratados teológicos, não as acharíamos; Jesus não disse em
linguagem filosófica que há uma só natureza divina em três Pessoas e que Ele é a segunda Pessoa da
SS. Trindade, consubstancial ao Pai; não disse que, além da natureza divina, ele possuía a natureza
humana assumida no seio de uma Virgem Mãe... Todavia também é claro que a quem procura saber
o que Jesus pensava a respeito de si mesmo, se impõe com muita evidência a conclusão de que Jesus
sabia ser o Filho de Deus em sentido absolutamente único, pessoal e literal. - Conseqüentemente um
dilema se impõe: ou Ele era realmente o que dizia, ou era louco... Mas crer que um louco tenha
conseguido impressionar de tal modo seus discípulos e revolucionara história e a face da terra é
simplório; é fuga da evidência; é postulado de um milagre maior do que o milagre de Deus feito
homem. Mais plausível e racional é crer no mistério da Encarnação, que Jesus afirmava.
Eis as reflexões a que leva uma leitura atenta dos Evangelhos e a consideração dos fatos históricos
ocorridos entre a vinda de Cristo e nossos dias.

12. Palavra final


Em suma, pode-se dizer que "o fenômeno Jesus Cristo" é o maior fenômeno da história. Isto se
torna mais evidente ainda quando se pensa que a mensagem de Jesus Cristo sempre foi proclamada
pelos seus discípulos associada à sua ressurreição. Com efeito, diz São Paulo: "Se Cristo não
ressuscitou, vazia é a nossa pregação, vazia é a vossa fé... Se Cristo não ressuscitou, ilusória é a
vossa fé" (1Cor15, 13.17). Ora a ressurreição era proposição dificílima para todos os pagãos que a
ouviam. Diz Tertuliano († 220 aproximadamente) que mesmo os pagãos mais divergentes entre si se
harmonizavam para contestar a noção de ressurreição de um morto. Não obstante, a mensagem de
Jesus Cristo atravessou e superou essa oposição. Atravessou e superou duras perseguições até 313
(Edito de Milão, Paz concedida por Constantino aos cristãos), de tal modo que, quando Juliano o
Apóstata tentou restaurar o paganismo em 361-363, teve que reconhecer finalmente: "Venceste,
Galileu!"
PERGUNTAS
1) Qual foi o traço de Jesus que mais o(a) impressionou?
2) Quais as impressões que o texto deste Módulo lhe suscita?

MÓDULO 29: QUEM É ESSE HOMEM? (II)


Eis outra leitura do Evangelho feita por quem prescinde da fé e procura objetivamente esboçar a
identidade desse homem chamado Jesus.
O texto que se segue, deve-se ao Cardeal Giacomo Biffi, Arcebispo de Bolonha (Itália), e foi
publicado pela revisa FAMIGLIA CRISTIANA, em Suplemento datado de 41 / 12 / 1996 com o
título GESÙ CRISTO, ÚNICO SALVATORE DEL MONDO.

I. O "IDENTIKIT" DE CRISTO
"Direcionei para Ele toda a minha vida, a única vida que tenho. E por isto sinto , de vez em
quando, a necessidade de contemplar o seu mistério, e de reavivar o identikit de Cristo. Muitas vezes
ouvimos falar de Jesus Cristo; de quando em quando na imprensa escrita aparece alguém que faz
alguma resenha sensacionalista sobre Ele; de vez em quando aparecem interpretações imaginosas da
figura de Jesus Cristo. Mas os únicos testemunhos que nos falam de Cristo, são os Evangelhos. Por
isto ou nos atemos aos Evangelhos ou renunciamos a falar dele. Em conseqüência não direi uma só
palavra que não seja fundamentada, à diferença de quem inventa livros, filmes e discursos.

2. QUE TIPO ERA?


Eis a primeira pergunta, a mais simples: de que tipo físico era esse Jesus? Que homem era Ele? O
Evangelho não responde com precisão. E devo dizer que isto me aborrece um pouco, porque dirigi
toda a minha vida para Ele e nem sei de que cor eram os seus olhos. Era belo ou era feio? - Pois bem;
segundo me parece, era belo. Há um episódio do capitulo 11 do Evangelho de S. Lucas, em que Jesus
se apresenta falando às multidões. De repente uma mulher, lançando um grito de entusiasmo, diz:
'Bem-aventuradas as entranhas que te trouxeram e os selos que te alimentaram!'. Aqui está o primeiro
panegírico28 de Cristo. É redigido em termos muito... corpóreos. O fato é tal que Jesus reprova a
mulher por esquecer a Palavra de Deus, detendo-se apenas sobre a beleza física de Jesus; diz então:
'Bem-aventurados aqueles que escutam a Palavra de Deus' (Lc 11,27s). Nós, porém, agradecemos a
essa mulher desconhecida a ocasião de responder á nossa pergunta preliminar: Jesus era realmente
um homem belo.
3. O SEU OLHAR
Ele tinha também dois olhos estupendos. O olhar de Jesus impressionava a quem O encontrasse.
Os Evangelhos, principalmente o de Marcos, falam, muitas vezes, do seu olhar: penetrante em
Simão, que Lhe foi apresentado por seu irmão André (Jo 1,40-42); afetuoso para com o jovem rico,
que depois foi embora, porque Jesus lhe disse que deixasse tudo e seguisse o Mestre (Mc 10,21s); de
simpatia para com Zaqueu, o chefe dos publicanos, cobradores de impostos, que roubavam, e que
contemplava Jesus trepado numa árvore (Lc 19,1-10). E, ainda, de tristeza ao considerar as ofertas
dos ricos (Mc 12,41-44), de desdém ao ver o que ocorria no Templo (Jo 2,13-17), de dor para com
aquele que o traia (Jo 13,21-30)... Em suma, o olhar de Jesus era o olhar que falava.

4. IDEIAS CLARAS
Pode-se compreender que Jesus tinha ideias claras. Muito claras. Quando falava, jamais dizia:
'Talvez, Como creio, Parece-me...'. E não tinha papas sobre a língua, nem mesmo diante dos
poderosos; quem não se lembra de que chamou Herodes 'raposa' (Lc 13,31-33)?

5. HOMEM LIVRE
Uma das notas mais belas de Jesus era a de ser um homem livre. Mesmo frente aos seus amigos.
Quando São Pedro fez sua profissão de fé,... Jesus lhe respondeu com um panegírico jamais dirigido
a um homem (Mt 16,17.20), tanto que São Pedro se deve ter regozijado e quiçá começado a
envaidecer-se. Mas, quando Jesus anunciou a Pedro que o Mestre devia ser condenado à morte e
Pedro já se sentia 'Primeiro-Ministro do Reino de Deus', Pedro tomou Jesus por um braço e O
repreendeu. Jesus nem mesmo o olhou e o tratou com energia: 'Vai-te, Satanás, tu não tens o senso
das coisas de Deus, mas, sim, o das coisas dos homens' (Mt 16,21-23). Eram palavras não usuais nos
lábios de um amigo.

6. AINDA MAIS LIVRE FRENTE AOS FAMILIARES


Mas não creiais que era um homem duro. Jesus amava muito. Principalmente as crianças. Sabia
compreende-las, dom que raramente nós, adultos, possuímos: geralmente quando conversamos com
elas, só sabemos perguntar quantos anos têm, em que série da escola se encontram... Estas são coisas
que absolutamente não interessam às crianças. Jesus, ao contrário, dizia: 'Deixai as crianças vira
Mim' (Mc lo,15). Depois, chamava os amigos, Jesus tinha um forte sentido de amizade. Por exemplo,
era muito amigo dos seus discípulos; estava particularmente ligado a Pedro, Tiago e João (Mc 5,37;
9,2; 14,33); e, ainda dentre estes, mormente João lhe era amigo (Jo 13,23-25).

28
Panegírico = discurso em louvor ou elogio (Nota do Tradutor).
Em suma, também Jesus tinha suas preferências entre amigos29; como bem se compreende, os
amigos não são todos iguais. Jesus também amava o seu povo. Sentia-se plenamente hebreu,
israelita, tanto que a previsão da destruição de Jerusalém o levou a derramar lágrimas.

7. ATENÇÃO ÀS PARTICULARIDADES
Há outra coisa na personalidade de Jesus que sempre me impressionou: a sua atenção às
particularidades. Jesus era muito atento às pequenas coisas da vida, mesmo porque sabia que as
poderia aproveitar em parábolas. Lembremo-nos daquela que compara o Reino de Deus a uma
mulher, dona de casa, que toma um pouco de fermento e o lança dentro da massa até que esteja toda
fermentada (Mt13,33). Pensemos também na parábola do amigo fastidioso que foi atendido pelo
amigo que desejava ver-se livre dele (Lc11,5-8). É bem correspondente à realidade.

8. UM EPISÓDIO: A MULHER DE MÁ VIDA


Haveria tantos outros episódios a recordar. No capitulo 7 do Evangelho de Lucas conta-se que
Jesus fazia sua refeição em casa de um chefe dos fariseus; em dado momento entrou uma daquelas
mulheres cujo nome não se sabe ao certo... Digamos: uma prostituta. Ela se colocou perto de Jesus e
começou a acariciá-lo e a perfuma-lo (Lc 7,36-50). Era uma cena de enorme gravidade... Jesus,
porém, não se perturbou. Ao contrário, defendeu-a com nobreza.

9. UMA FIGURA HUMANA EXCEPCIONAL?


Dos Evangelhos, portanto, depreendemos uma figura humana excepcional. A tal ponto que,
quando Pôncio Pilatos o apresentou ao povo, disse: 'Eis o Homem' (Jo 19,5).
Eu, porém, digo: eis o ponto de interrogação. Jesus era apenas um homem? Pois a maioria das
pessoas que não crêem, o considera um grande homem, a ser estimado. Esta posição, contudo, é
insustentável, se levamos em conta aquilo que Jesus disse de Si mesmo. Exemplos? Ele se definiu
como 'Filho do Homem', título usado pelo profeta Daniel para indicar um personagem misterioso que
havia de vir dos céus e pôr fim á história (cf. Dn 7,13s; Mt 24,30; 26.64). Com isto Jesus evocava sua
origem celeste e o seu caráter definitivo. Diz Ele também ser maior do que Davi (Mt 22,41-45).
Embora Davi fosse o rei ideal da monarquia e da realeza para os israelitas.

10. É MAIS DO QUE UM HOMEM


Todavia, o que há de mais sério, Ele o disse no sermão da montanha: 'Bem-aventurados os pobres'
(Mt 5,3). Pois bem; naquele discurso, entre outras coisas, disse: 'Ouvistes o que foi dito aos antigos:
Não matarás. Eu, porém, vos digo...' (Mt 5,21s). Considerai bem: com estas palavras, Jesus quase
corrige a Revelação de Deus. E reivindica para si o poder de julgar os homens (Mt 16,27). E quem
pode fazer isto senão alguém que tem consciência de ser Deus? Pensemos em outras coisas que Ele
recomenda: 'Quem perder a vida por causa de Mim, a encontrará' (Mt 16,24-26). Ó! Dar a vida por
alguém não é brincadeira... Mais ainda: 'Dá de comer ao teu irmão, porque nele tu vês a Mim' (Mt
25,35s). Se um discípulo de Mazzini dissesse: 'Ajuda teus irmãos, porque neles deves ver Giuseppe
Mazzini', diria algo que a ninguém comoveria, porque um homem pobre vivo é muito mais
importante do que Mazzini morto. Mas Jesus? Jesus retribui com a vida eterna. É o que São Marcos
diz no seu Evangelho, escrevendo em tom um tanto paradoxal: 'Quem deixar pai e mãe, campos e
casa por causa de Mim, receberá o cêntuplo neste mundo com as perseguições, e a vida eterna' (Mc
10,28-31). Como se dissesse: haverá primeiramente um tanto de maus tratos, mas, depois, a vida
eterna.

11. JESUS É DEUS

29
Deus ama a todos os homens, sem dúvida, e dá a cada um as graças necessárias para que chegue à plenitude da vida. Todavia não podemos ditar
normas ou regras ao amor de Deus. Se Jesus manifestava especial atenção a João, Ele o fazia soberanamente, sem lesar os direitos de qualquer outro
Apóstolo, visto que, tudo o que Deus dá aos homens, Ele o dá gratuitamente, sem ter algum débito para com quem quer que seja. (Nota do Tradutor)
O fato é que Jesus terá sido um grande homem, um homem excepcional. Mas, acima de tudo, Ele
é Deus. É o Filho de Deus. Não como todos nós o somos ou como o são todas as criaturas, como a
borboleta... é filha de Deus; Jesus é o Filho por excelência, o Unigênito.30

12. UMA PARÁBOLA INVEROSSÍMIL


Nos últimos dias de sua vida, Jesus contou uma parábola, uma das mais inverossímeis em sua
estrutura literária: a parábola dos vinhateiros infiéis e homicidas, que ocupavam o terreno do patrão
sem lhe dar os devidos rendimentos. O patrão mandou alguns servidores para fazer a cobrança. Os
vinhateiros os espancaram. O patrão mandou outros, mas os locatários os mataram. O relato aqui me
parece um pouco exagerado; como imaginar que alguém pudesse matar de tal maneira o próximo e
ficar totalmente impune? Eis, porém, que a parábola se torna altamente surpreendente. O patrão
disse: 'Tenho um filho único. Vou mandá-lo, pois hão de temer o meu filho'. Qual é o pai que,
sabendo estar tratando com bandidos, põe em risco a vida de seu filho único? Na verdade, os
vinhateiros resolveram matar também a este, de modo a ficar com o patrimônio do patrão (em que
código está escrito que a herança passa para os assassinos do único herdeiro?). Em suma, a parábola
é toda inverossímil31. Apesar disto, ela se cumpriu ao pé da letra; sim, Jesus morreu fora da vinha,
como diz o texto do Evangelho, ou fora dos muros de Jerusalém. E foi o Pai Celeste que O mandou
(cf. Mc 12, 1-12).

13. DIANTE DELE NÃO HÁ SENÃO QUE SE AJOELHAR


Juntai uns com os outros todos esses dados. Eles reproduzem o retrato de um homem excepcional,
que diz ser Deus. Eis uma provocação. Mas nós temos que aceitar esta provocação. Pois, se alguém
se apresenta de tal maneira, dizendo-se Deus, restam duas alternativas: ou considerá-lo louco (então
não se lhe pode dedicar estima e veneração) ou crer que é verdade o que ele diz. Neste último caso,
não nos toca senão ajoelhar-nos. Não basta dizer: é um grande homem.

14. JESUS RESSUSCITOU! JESUS ESTÁ VIVO!


Na verdade, que é que os Apóstolos foram pregar a respeito dele? Qual é o núcleo da mensagem
cristã? Tudo se resume numa palavra: Ele ressuscitou. Ele despertou do sono da morte. Os Apóstolos
se puseram a viajar afirmando que Jesus ressurgiu e ainda está vivo (At 2,24; 3,15; 5,31). Sim, vivo
ainda hoje! Quando eu ensinava em Milão, no Instituto de Pastoral, dei uma aula sobre a ressurreição
de Cristo. Após a aula, uma senhora procurou-me e perguntou: 'O Senhor quer dizer que Jesus está
realmente vivo...?'-'Sim, senhora: o seu coração bate como o coração da senhora e o meu coração'.
-'Mas então é preciso que eu vá à casa dizê-lo ao meu marido'. -'Bem, minha senhora, vá e diga-o ao
seu marido". No dia seguinte ela voltou e me disse: 'Eu o contei ao meu marido', -'E ele?'.
-'Respondeu-me: Volta a perguntar; talvez tenhas compreendido mal'. Notemos que aquela senhora
era uma catequista. E, apesar disto, estava desconcertada. Eu lhe passei a fita em que estava gravada
a aula, e ela a fez ouvir ao seu marido.

15. SE É ASSIM, TUDO MUDA


Ele acabou por render-se, dizendo: 'Mas, se tal é a realidade, então tudo muda'. Considerai bem, e
dizei-me se não é autêntica a conclusão: se aquele homem belo, bom, excepcional, é realmente Deus,
e se Ele ainda vive entre nós, então tudo realmente muda".
Possa este texto servir para ilustrar a figura de Jesus aos olhos de quem mal a conhecei

PERGUNTAS
30
Toda criatura é filha de Deus em sentido amplo, pelo rato de ser o reflexo da sabedoria e da perfeição do Criador. D ser humano, mais do que os
seres irracionais, é imagem e semelhança de Deus. Aqueles que são elevados pela graça a um estado de vida sobrenatural, ainda são mais propriamente
filhos de Deus. Mas Jesus é tal em sentido único, exclusivo: sua natureza humana Intimamente unida à de Deus Filho, é Filho de Deus em sentido
singular. De resto, como Deus, Jesus é inigualável. (Nota do Tradutor).
31
Toda parábola é uma história fictícia, que tem verossimilhança com a realidade histórica costumeira. A parábola dos vinhateiros homicidas deve
deixar de ter verossimilhança histórica porque quer ilustrar o inédito e "incrível" amor de Deus (o dono da vinha) aos homens (os vinhateiros infiéis).
(Nota do Tradutor).
Diga que impressões lhe suscitou a leitura deste texto.

MÓDULO 30: QUE DISSE JESUS A RESPEITO DE SI MESMO?


Como vimos, a crítica dos Evangelhos leva a afirmar a fidelidade dos mesmos à história, dentro
do gênero literário respectivo (os Evangelhos não são crônicas no sentido moderno, mas
apresentação dos ditos e feitos de Jesus em vista da catequese). Embora os Evangelhos não refiram a
vida de Jesus Cristo segundo a ordem cronológica dos fatos, pode-se dizer que as suas narrações são
fontes fidedignas para reconhecermos a pessoa e a obra de Jesus Cristo..
Procuramos agora deduzir dos Evangelhos uma resposta para três perguntas decisivas:
1) Que disse Jesus a respeito de si mesmo?
2) Tinha sanidade física e mental para propor o que propôs?
3) Era reto e honesto?
Consideraremos a primeira pergunta neste Módulo, e as duas restantes no Módulo seguinte.
Antes de entrar no presente estudo, cabe-nos observar que, em última análise, é a fé que leva
alguém a aceitar a Divindade de Cristo; todavia essa fé pode ser preparada e robustecida pelo exame
científico dos Evangelhos. A razão tem algo a dizer diante da qu estão: "Jesus era Deus?" Não raro é
o uso deficiente ou superficial da razão que leva a negar o que há de transcendente em Cristo; bem
aplicada ao estudo, a razão dissipa numerosas dúvidas e preconceitos, apontando conclusões
positivas.

Lição 1: Que disse Jesus a respeito de si mesmo?


Dentre as afirmações de Cristo, distinguiremos testemunhos diretos e testemunhos indiretos.
1.1. Testemunhos diretos
Jesus se afirmou "Filho de Deus". Verdade é que os israelitas não recusavam tal título aos homens
justos e retos; cf. Sb 2,13.18. Os cristãos também se designavam como "filhos de Deus" (cf. Rm
8,14.19;Mt 5, 9.45). Tratava-se, conforme São Paulo, de filiação adotiva ou da filiação por graça de
Deus. Em consequência, será necessário examinarmos em que sentido terá Jesus entendido a sua auto
afirmação.
É o que procuraremos depreender da análise dos textos do Evangelho.
1 ) O testemunho mais importante é o que Jesus profere perante os seus adversários no Sinédrio
(tribunal dos judeus), dando ocasião a que O condenassem à morte:
Mc 14,61s: "O sumo Sacerdote perguntou a Jesus: 'És tu o Cristo, o Filho de Deus Bendito?' Jesus
respondeu: 'Eu o sou. E vereis o Filho do Homem sentado à direita do poder de Deus vindo sobre es
nuvens do céu'" (cf Mi 26, 63).
Os juízes no Sinédrio entenderam esta afirmação de Jesus como blasfêmia : "Blasfemou ; é réu de
morte!" (Mt 26,65); Jesus parecia-lhes usurpar um título que só a Deus competia. Não interpretaram,
pois, a expressão "Filho de Deus" em sentido metafórico, figurado, mas, sim, em estrito sentido
metafísico. Ademais o "sentar-se á direita de Deus" que Jesus atribui a si mesmo, significa igualdade
com Deus (Deus não tem direita propriamente dita, pois não é corpóreo, mas o "sentar-se á direta",
no caso, indica colocação em plano de igualdade com Deus). A reação do sinédrio ("Blasfemou"!)
revela bem como a resposta de Jesus foi entendida: a blasfêmia se dirige contra Deus diretamente;
Jesus não protestou contra a interpretação dos sinedristas; mas aceitou a morte por ter-se proclamado
"Filho de Deus" no significado próprio desta expressão.
Aliás, também o Evangelho de São João, ao referir o final de uma altercação de Jesus com os
judeus, afirma: "Por esta razão os judeus com maior ardor procuravam tirar-lhe a vida, porque não
somente violava o repouso do sábado, mas afirmava ainda que Deus era seu Pai e se fazia igual a
Deus" (Jo 5,18).
2) No decorrer da sua vida pública, Jesus referiu-se às disposições necessárias para conhecer a
Deus; prorrompeu então em uma afirmação que manifesta o seu singular relacionamento com o Pai
Celeste:
Mt 11,27: "Todas as coisas me foram dadas por meu Pai, e ninguém conhece o Filho senão o Pai;
e ninguém conhece o Pai senão o Filho e aquele a quem o Filho O quiser revelar.
Jesus aqui estabelece nítida distinção entre Ele, que conhece o Pai (isto é, Deus), e outros que não
O conhecem, mas O podem conhecer caso Jesus O queira revelar. Esta distinção supõe que, para
Jesus, conhecer o Pai seja inerente à sua natureza de Filho. Os outros, não tendo a natureza de Deus
(que Jesus tem), não podem conhecer plenamente a Deus a menos que Deus mesmo lhes conceda
esse conhecimento. O que a Jesus compete por natureza (porque é Deus como o Pai é Deus), aos
outros compete por graça, ou seja, por um ato de benevolência do próprio Deus.
Doutra parte, Jesus afirma que conhece o Pai como o Pai O conhece. Isto indica que o
conhecimento que Jesus tem do Pai, é de alcance infinito, porque Deus é infinito. Ora um
conhecimento de alcance infinito supõe uma natureza infinitamente perfeita. É este o motivo pelo
qual os outros homens não podem conhecer a Deus como Jesus O conhece; somente um privilégio ou
uma graça de Deus pode levá-los a conhecer o Infinito face-a-face (mas não exaustivamente).
Mais ainda: as palavras de Mt11,27 dão-nos a entender que a realidade íntima de Jesus é tão
profunda, tão rica e transcendente, que somente o Pai (Deus) a conhece adequadamente; ela
ultrapassa as possibilidades e o alcance de qualquer criatura. Assim Jesus enfaticamente se apresenta
igual ao Pai.
3) Estando certa vez a sós com os discípulos, perguntou-lhes Jesus: "Que dizem os homens a
respeito do Filho do Homem?" Os Apóstolos apresentaram-lhe as opiniões variadas da multidão, às
quais Pedro acrescentou: "Tu és o Cristo, o Filho do Deus vivo". Jesus o confirmou, dizendo: "Feliz
és tu, Simão, filho de Jonas, porque não foi a carne nem o sangue que to revelou, mas o meu Pai que
está nos céus" (Mt 16,13.17).
Perguntamo-nos: que foi revelado a Pedro? - O fato de ser Jesus o Filho de Deus em sentido
próprio. A messianidade de Jesus já se tornara conhecida aos Apóstolos através da convivência e dos
feitos de Jesus. Quanto à Divindade de Jesus, Pedro a reconhecera claramente em virtude de uma
intervenção direta do Pai.
4) Merece atenção também a parábola dos vinhateiros homicidas relatada em Mc12,1-12; Mt 21,
33.46; Lc 20,9-19:
Um homem tinha uma vinha, que ele arrendou a vinhateiros a fim de receber deles os frutos no
tempo oportuno. Mandou-lhes, pois, na época própria três legações de servos sucessivamente para
pedir a parte do produto da vinha que lhe competia. Foram, porém, duramente maltratados. "Restava-
lhe ainda um filho único, a quem muito amava. Enviou-o também por último a ir ter com eles,
dizendo: 'Terão respeito a meu filho!'... Os vinhateiros, porém, disseram uns aos outros: 'Este é o
herdeiro. Vinde, matemo-lo’, e lançaram-no fora da vinha n Nota, por fim, o Evangelista: "Os judeus
procuravam prendê-lo, mas temiam o povo, porque tinham entendido que a respeito deles dissera
essa parábola".
Em tal parábola, o "filho" designa Jesus com toda a evidência, ao passo que o Senhor da vinha
simboliza Javé ou Deus Pai. Segundo alguns críticos, porém, não foi Jesus quem contou essa
parábola; ela terá sido forjada pelas primeiras comunidades cristãs. Contra tal hipótese levantam-se
bons exegetas, que afirmam a índole primitiva e autêntica dessa parábola. De resto, a hipótese da
crítica liberal só faz diferir o problema, pois deixa aberta a pergunta: como as comunidades cristãs
puderam chegar a estabelecer uma afirmação de tão amplas conseqüências? Não será mais reto e
sábio dizer o seguinte: a consciência que a Igreja tinha de que Jesus era Filho de Deus originava-se
da consciência que o próprio Jesus tinha da sua Divindade?
5) No Evangelho segundo são João, a Divindade de Cristo é afirmada em termos ainda mais
explícitos:
No prólogo, diz o Evangelista que " o Lógos" (o Verbo) era Deus"; ora "o Verbo se fez carne e
ergueu sua tenda entre nós. Vimos a sua glória, glória do Unigênito do Pai, cheio de graça e de
verdade" (cf. Jo1, 1.14). Donde se depreende que, segundo o Evangelista, Jesus é Deus feito homem.
Em um discurso aos judeus, exclamava Jesus: "Eu e o Pai somos um só" (Jo 10,30). Um só, em
que sentido? - Têm a mesma natureza; Jesus é Deus como o Pai é Deus. Ouvindo tais palavras, os
judeus se escandalizaram, pois as julgavam contrárias ao monoteísmo - pilastra da religião de Israel
-, e apanharam pedras para lançá-las em Jesus como blasfemo. Ao que Jesus replicou: "Mostrei-vos
muitas coisas boas da parte de meu Pai; por qual delas me quereis apedrejar?" Responderam-lhe
então os judeus: "Não te apedrejamos por causa das obras boas, mas porque, sendo homem, te fazes
Deus" (Jo10,33). - Note-se: se os judeus tivessem mal entendido as palavras de Jesus, Este
certamente os teria esclarecido. Ao contrário, porém, o Mestre insistiu: "Se faço as obras de meu Pai
e não quereis dar crédito às minhas palavras, crede ao menos nas minhas obras, a fim de que saibais e
creiais que o Pai está em mim e eu estou no Pai" (Jo 10,37s).
A afirmação de mútua imanência volta na última ceia, quando Jesus se dirigiu ao apóstolo Filipe
nestes termos: "Quem me vê, vê o Pai. Como podes dizer: Mostra-nos o Pai? Não crês que eu estou
no Pai e o Pai está em mim?"(Jo 14,9).
Passemos agora aos
1.2. Testemunhos indiretos
Existe nos Evangelhos uma fórmula relativamente freqüente que não era usual na linguagem dos
tempos de Cristo: "Em verdade, em verdade, eu te (vos) digo". Esta fórmula é tida como uma das que
se podem atribuir diretamente aos lábios de Jesus. Ela serve para introduzir declarações às quais se
comparam os oráculos dos Profetas do Antigo Testamento, que começavam por advertência
semelhante: "Assim fala o Senhor Deus". Há, porém, uma diferença capital entre as sentenças de
Jesus e as dos Profetas; estes apelavam para Deus a fim de dar autoridade às suas palavras; ao
contrário, Jesus só invocava sua autoridade própria, que Ele mostrava ser igual à de Deus mesmo. -
Embora fossem fortes e claras, as palavras de Jesus nada tinham de soberba ou de vã oratória: os
guardas do Templo enviados para prender Jesus deram o testemunho: "Jamais homem algum falou
como este homem" (Jo 7,46).
Apoiando-se, pois, sobre a sua autoridade própria, Jesus manifestava o desígnio e os preceitos de
Deus, ainda que contradissesse às normas vigentes em Israel.
1) Assim tomou a liberdade de declarar que o que fora revelado na Lei antiga era incompleto:
a) no sermão sobre a montanha, ouve-se seis vezes a antítese: "Ouvistes o que foi dito aos
antigos...Eu, porém, vos digo..." (cf. Mt 5, 17-48). Com este confronto Jesus ultrapassa as normas da
lei antiga, exigindo maior perfeição da parte de seus ouvintes. Por exemplo, ao passo que o adultério
era denunciado pela Lei de Moisés, Jesus reprova até mesmo as más intenções do coração humano;
ao passo que a Lei permitia o talião - "dente por dente"... - Jesus manda tratar o adversário com
magnanimidade.
Tenha-se em vista que o legislador do Antigo Testamento, Moisés, falara em nome de Deus; a Lei
de Moisés era a Lei de Deus, adaptada à compreensão do povo de Israel rude e infantil. Compreende-
se então a "audácia" de Jesus: Ele ousou retocar e rematar o que Deus havia feito. Ora só Deus pode
atribuir a si o domínio sobre as coisas de Deus e o direito de aperfeiçoá-las. E - note-se bem - as
palavras de Jesus no sermão da montanha, em vez de provocar escândalo nos seus ouvintes judeus,
despertaram admiração: "Quando Jesus terminou o discurso, a multidão ficou impressionada com a
sua doutrina. Com efeito, Ele ensinava como quem tinha autoridade, e não como os seus escribas"
(Mt 7, 28s).
b) Em consonância com estas considerações, podem-se citar os dizeres de Jesus em Mc 2,27s: "O
Sábado foi feito para o homem, e não o homem para o Sábado; e, para dizer tudo, o Filho do Homem
é senhor também do Sábado". Jesus acabara de permitir uma justificada transgressão do Sábado. Ora
o preceito do Sábado era dos mais sagrados da Lei de Deus; Jesus, porém, não recusa dizer que Ele é
o Senhor do Sábado.
c) No tocante à pureza e impureza legal, Jesus mostra que a Lei antiga é incompleta; cf. Mc 7,1-
23; Mt 15,1-20.
d) Quanto ao divórcio, extingue o costume vigente em Israel e incute o matrimônio indissolúvel;
cf. Mc 7,1-2; Mt 19,3-9; Lc 16,18.
2) Não somente Jesus proclamou a insuficiência da Lei antiga, mas ainda apresentou-se como
critério de perfeição e salvação. Com efeito,
- mandou que os homens assumissem o jugo (a doutrina) de Jesus sobre as suas espáduas; cf.
Mt11,29s;
- proclamou felizes os que fossem perseguidos por causa dele; cf. Mt 5,11;
- anunciou que os homens seriam julgados na base do que tivessem feito a Ele (Jesus). Dirá Ele no
juízo final: "Vinde, benditos..., tomai posse do Reino..., porque tive fome e me destes de comer; tive
sede e me destes de beber; fui peregrino e me recebestes; estive nu, e me vestistes..." E a quem se
admirar por tais afirmações, Ele explicará: "O que fizestes a um dos meus irmãos, foi a mim que o
fizestes" (Mt 25,31-46). Aos maus Jesus condenará por não haverem assistido aos seus irmãos, nos
quais Jesus se tornara presente.
Estas frases merecem atenção: segundo Jesus, quem dá ou recusa ao próximo, dá ou recusa ao
próprio Cristo. E o juiz das ações boas ou más será Ele, o Cristo. Ora é óbvio que o juiz dos homens
é Deus; Deus é o ponto de referência de toda a lei moral.
- Em outra passagem, Jesus reafirma ser o critério segundo o qual será julgado o comportamento
dos homens: "Se alguém...se envergonhar de mim e de minhas palavras, também o Filho do homem
se envergonhará dele, quando vier na glória do seu Pai com os seus santos anjos" (Mc 8,38: cf.
Mt10,33; Lc 12,9).
3) Jesus reinvindicou para si um amor superior ao que une esposo e esposa, pais e filhos. Ora
amor tão forte somente a Deus pode e deve ser prestado. É o que leva mais uma vez a ver que Jesus
quis afirmar sua dignidade divina e falou como Deus:
"Quem ama pai ou mãe mais do que a mim, não é digno de mim. Quem ama seu filho mais do que
a mim, não é digno de mim " (Mt 10, 37).
A própria vida é outro valor que, segundo Jesus, deve ser subordinado ao amor a Cristo. Pergunta-
se, porém: qual o ser capaz de exigir o sacrifício da vida humana se não Deus? Jesus,
conseqüentemente, se insinuou como Deus quando disse: "Se alguém quiser vir comigo, renuncie a si
mesmo, tome a sua cruz e siga-me. Porque aquele que quiser salvar a sua vida, perdê-la-a; mas
aquele que tiver sacrificado a sua vida por minha causa, recobrá-la-á" (Mt16,24s).
Em suma, à pessoa de Cristo (uma vez clara e devidamente conhecida) ninguém pode ficar
indiferente. É objeto de opção moral; o homem escolhe por Cristo ou contra Cristo: "Quem não está
comigo, está contra mim, e quem não recolhe comigo, dispersa" (Mt 12,30). Ora somente Deus pode
pretender sertão absoluto e inevitável ao homem.
4) Note-se também que Jesus atribuiu às suas palavras uma infalibilidade tal que só pode convir à
Palavra de Deus: "Passarão o céu e a terra, mas as minhas palavras não passarão" (Mc 13,31).
Confronte-se tal afirmação com o que dizem as Escrituras (Is 40,8) sobre a palavra de Deus: "A erva
seca e a flor fenece; mas a palavra de nosso Deus permanece eternamente". Cf. Sl 119,89; 1Pd 1,23-
25.
Jesus tem consciência de ultrapassar, em importância, o profeta Jonas e, em grandeza, o rei
Salomão: "No dia do juízo, os ninivitas se levantarão contra esta geração e a condenarão, porque
fizeram penitência à voz de Jonas. Ora aqui está alguém que é mais do que Jonas. No dia do juízo a
rainha do Sul se levantará contra esta geração e a condenará, porque veio das extremidades da terra
para ouvir a sabedoria de Salomão. Ora aqui está alguém que é mais do que Salomão" (Mt 12,41s).
Impõe-se agora a pergunta:

Lição 2: Que fez Jesus em testemunho do que disse?


Interroguemos o comportamento de Cristo, procurando penetrar, através dos feitos de Jesus, em
sua consciência íntima.
1) Merece especial destaque o episódio do paralítico apresentado a Jesus. Este não o cura de
imediato, mas diz-lhe primeiramente: "Filho, os teus pecados te são perdoados". Os escribas
entenderam estas palavras como blasfêmia : "Quem pode perdoar pecados senão Deus?" Jesus não
recusou a acusação; ao contrário, confirmou-a dando um sinal sensível de que tinha o poder divino
de perdoar pecados; disse, pois, ao paralítico: 'Levanta-te, toma o teu leito, vai para casa" (cf. Mc 2,
3-12).
Em síntese, perdoando os pecados, Jesus exerceu um direito que compete a Deus só; e, curando o
paralítico, mostrou que tal direito realmente convinha a Ele (Jesus).
2) O mesmo poder se manifestou quando uma pecadora ungiu os pés de Jesus. O Mestre aceitou o
seu arrependimento, dizendo-lhe (como dissera ao paralítico): "Os teus pecados te são perdoados"
(cf. Lc 7,37-50).
3) Devem-se mencionar também os milagres de Jesus, que nos Evangelhos têm caráter de sinal
(seméion, segundo o Evangelho de São João) ou comprovante das afirmações de Cristo; cf. Jo 2,11;
20,30.
Verdade é que a crítica racionalista hoje em dia não aceita a historicidade dos milagres de Jesus;
corresponderiam apenas a maneiras de falar alegoristas ou lendárias da antiguidade. Todavia note-se
que tal tese não se deriva simplesmente do exame literário do texto do Evangelho; ela é, antes,
inspirada por preconceitos filosóficos, ou seja, pela afirmação gratuita de que não pode haver
intervenções extraordinárias de Deus na história dos homens.
Importa aqui frisar que os milagres de Jesus no Evangelho fazem corpo com as palavras e os
discursos do Mestre, de sorte que quem nega a autenticidade dos milagres se vê, de certo modo, na
impossibilidade de entender as palavras mesmas de Cristo. Três exemplos sejam citados:
a) Mt 11,2-6: João Batista encarcerado envia alguns discípulos para perguntar a Jesus se era
realmente o enviado prometido por Deus ou se deveria esperar outro; Jesus respondeu referindo as
curas de cegos, paralíticos, leprosos, surdos e as ressurreições de mortos que Ele realizava. - Esta
passagem é tida como muito antiga na tradição oral dos Evangelhos.
b) Mt 11, 20-24: Jesus censurou as cidades da Galiléia (Corozaím, Betsaida, Cafarnaum) por
terem ficado insensíveis aos apelos de Jesus à penitência, apesar das manifestações de poder
(dynámeis = portentos) que o Mestre lhes tinha apresentado. - Passagem igualmente muito antiga.
c) Mc 3,22-30: Os fariseus acusaram Jesus de expulsar demônios mediante Beelzebul. Atestavam
assim que Jesus realizava feitos extraordinários. Jesus, em sua resposta, não negou tais obras, mas
apenas cuidou de mostrar que inconsistente ou vã era a explicação dada pelos fariseus.
4) O principal dos portentos de Jesus foi a sua ressurreição dentre os mortos, cuja autenticidade
histórica tem sido particularmente impugnada pela crítica liberal em virtude de preconceitos. Um
exame tranquilo do assunto pode levará aceitação segura do fato da ressurreição, como se aprenderá
no Módulo 32.
Merece atenção a seguinte reflexão sobre o binômio "palavras-milagres" na vida de Jesus:
"Em Jesus, Deus não se contentou com dizer-nos, por palavras, que nos ama. Em Jesus, a Palavra
de Deus se fez carne e sangue. Em consequência, também o corpo de Jesus - e não somente a sua
linguagem - é portador de amor e de revelação. Deus não se contentou com falar para que o homem
ouça, mas também quis manifestar-se visivelmente para que o homem veja:..
As narrações de milagres nos dizem precisamente que o encontro de Deus com o homem - e do
homem com Deus - não se dá apenas na interioridade do coração e da mente, mas em toda a nossa
existência corporal. E, dado que a nossa corporeidade nos vincula com o mundo, o encontro de Deus
com o homem leva em conta também o fato de que nos encontramos no mundo. A revelação de Deus
ocorre não somente por palavras, mas também por feitos: os feitos contingentes da vida de Jesus"
("Selecciones de Teologia" no 33, 1970, p.94; condensação do artigo de Franz Kampenhaus, "Die
Wunderberichte der Evangelien em "Bibel und Leben" 6 [1965] pp. 122-135).
Em conclusão deste exame de textos do Evangelho, verifica-se que Jesus teve consciência de ser
mais do que um homem,...de estar relacionado com Deus de maneira singular; mais ainda;...de ser
igual ao próprio Deus. Ele afirmou esta sua consciência perante os juizes que o acusavam e, por
causa disto, foi condenado á morte.
Pode-se, porém, perguntar: Jesus não era um doente, paranóico, obcecado por uma idéia fixa, de
modo que sua auto afirmação não passa de expressão psicopatológica? Ou, caso Jesus tenha sido
sadio, não foi um impostor, fraudulento e ilusionista?
É a estas perguntas que vamos responder no módulo seguinte.

PERGUNTAS
1) Como Jesus afirmou diretamente sua Divindade? Cite dois textos do Evangelho.
2) Como Jesus afirmou indiretamente a sua Divindade? Cite três textos do Evangelho.
3) Que fez Jesus para provar o que dizia? Cite três passagens do Evangelho.

MÓDULO 31: A RESSURREIÇÃO DE JESUS – REALIDADE HISTÓRICA?


A ressurreição corporal é a pedra de toque da missão de Jesus ou o sinete colocado pelo Pai sobre
a pessoa e a pregação de Jesus; é o sinal que comprova a autenticidade de Jesus como Deus feito
homem para nos salvar. Dal dizer São Paulo: "Se Cristo não ressuscitou, vazia é a nossa pregação,
vazia também é a vossa fé... Se Cristo não ressuscitou, ilusória é a vossa fé" (I cor15,13.17).
Nenhuma outra confissão religiosa atribui ao seu fundador o privilégio da ressurreição dentre os
mortos. O Cristianismo, porém, o faz e chega a afirmar que, sem a ressurreição de Jesus, não há
Cristianismo.
Ora, a ressurreição de um morto é milagre de primeira grandeza. Por isto a crítica pergunta se não
trata de mito ou ficção; em conseqüência, tem formulado explicações meramente racionais para a
notícia da "ressurreição". Dada a importância capital de tal matéria, desenvolveremos a questão,
abordando: 1) as teorias racionalistas; 2) os textos do Novo Testamento que atestam a fé da Igreja
nascente, e os seus sinais comprovantes.

Lição 1: Teorias Racionalistas


Pode-se dizer que até o século XVIII não havia, entre os cristãos, quem duvidasse da historicidade
da ressurreição de Jesus. Especialmente importante é o testemunho da Igreja nascente: em Corinto,
por exemplo, no ano de 56 os fiéis não aceitavam a perspectiva da ressurreição dos cristãos, mas não
punham em xeque a ressurreição de Jesus, de modo que, a partir desta, São Paulo deduzia a
ressurreição de todos os mortos:
"Se se prega que Cristo ressuscitou dos mortos, como podem alguns dentre vós dizer que não há
ressurreição dos mortos? Se não há ressurreição dos mortos, também Cristo não ressuscitou... Mas
não! Casto ressuscitou dos mortos, primícias dos que adormeceram" (I Cor 15,12.13.16.20).
Examinemos, porém, as proposições dos racionalistas.
1) No século XVIII, Hermann Samuel Reimarus (1694 - 1768) retomou a alegação, dos judeus,
de que o corpo de Jesus fora roubado pelos discípulos para que pudessem proclamar a sua
ressurreição.32 Segundo Reimarus, Jesus foi um Messias político, que queria libertar Israel do jugo
romano. Fracassou, porém. Todavia os discípulos retiraram do túmulo seu cadáver para poder
apregoar a sua ressurreição e apresentar Jesus como o Messias apocalíptico de Daniel 7,13s.
- A própria crítica racionalista rejeitou a teoria de Reimarus como sendo simplória demais e
infundada. Os Apóstolos não tinham ânimo para admitir a ressurreição do Mestre; muito menos o
tinham para tentar impô-la mediante fraude e embuste. Ademais qualquer tentativa de mentira e
falsidade da parte dos Apóstolos cedo ou tarde teria sido descoberta pelos judeus hostis, que
haveriam consequentemente desprestigiado toda a pregação dos discípulos de Cristo - o que na
realidade não se deu.
2) Mais recentemente Karl Friedrich Bahrdt (1741 -1792) e Eberhardt Gottlob Paulus (1761
-1851) propuseram a tese de que Jesus não morreu realmente na Cruze foi sepultado vivo. O sedativo
que Ele tomou quando crucificado e os aromas que as mulheres levaram ao sepulcro para ungi-lo,
terão contribuído para reanimá-lo, comunicando-lhe consciência e vigor necessários para sair do
túmulo, não ao terceiro dia, mas em data posterior. - O estudioso alemão Holger Kersten, em nossos
dias, retomou esta hipótese, acrescentando-lhe um complemento: Jesus, deixando o sepulcro, foi à
Índia, onde terminou os seus dias.
- Tal hipótese também não goza de autoridade, pois é fantasiosa; além do quê, contradiz à
arqueologia, que mostra o local do sepulcro de Jesus em Jerusalém, com sua história através dos
séculos. Levemos em conta outrossim o duro desenrolar da Paixão de Cristo (flagelação, coroação de
espinhos, porte de Cruz, crucificação... ) e principalmente o golpe de lança Infligido a Jesus, "porque
32
Mt 28, 11-15: "Enquanto as mulheres iam a caminho, alguns dos guardas foram à cidade participar aos príncipes dos sacerdotes tudo o que havia
sucedido. Estes reuniram-se com os anciãos e, depois de terem deliberado, deram muito dinheiro aos soldados com esta recomendação: 'Dizei isto: os
seus discípulos vieram de noite e roubaram-no enquanto dormíamos'. E, se o caso chegar aos ouvidos do governador, nós o convenceremos e faremos
com que os deixe tranquilos'. Recebendo o dinheiro, eles fizeram como lhes tinham ensinado. E esta mentira divulgou-se entre os judeus até o dia de
hoje".
os soldados o encontraram já morto" (Jo 19,33). Estas ocorrências não podem deixar dúvida sobre a
realidade da morte de Jesus na Cruz.
3) Certos seguidores da Escola da História das Formas deram à ressurreição de Cristo uma
interpretação nova. Entre eles, destaca-se Willi Marxsen, discípulo de Rudolf Bultmann († 1976):
Marxsen afirma que o que ressuscitou não foi Jesus, mas a mensagem de Jesus; esta parecia fadada a
emudecer por causa da hostilidade dos judeus, mas conseguiu vencer os obstáculos e assim
"ressuscitou", impondo-se aos ouvintes. O que importa, dizem, não é o mensageiro (Jesus), mas a
mensagem (a Boa-Nova); as aparições de Jesus aos Apóstolos narradas pelos evangelistas nada
teriam de objetivo; seriam apenas a maneira como os antigos cristãos formularam a experiência
íntima de que a mensagem de Jesus superara os obstáculos e continuava a viver...O milagre não seria
a ressurreição de Jesus, mas a fé dos discípulos.
- A tese de Marxsen parte de um preconceito dogmaticamente afirmado, mas não demonstrado, a
saber: não pode ser real o que escapa às categorias da razão humana. Ora a ressurreição de um morto
é algo que a razão não explica; dai ser tida como impossível ou como mito,...mito que está sujeito à
interpretação ou hermenêutica atrás proposta. - Tal preconceito é falho, pois a razão humana não é a
medida ou o critério da verdade; a verdade tem amplidão maior do que o alcance da razão. Por
conseguinte, pode haver fatos reais que a razão não explica; só não se pode aceitar que concepções
ilógicas ou absurdas (um circulo quadrado, por exemplo) sejam verdadeiras. Ora a ressurreição de
um morto não é algo de ilógico ou irracional, absurdo.
4) E os mitos orientais? - Certos historiadores afirmam que as "religiões de mistérios" do Oriente
próximo conheciam, no limiar da era cristã, mitos de deuses que voltavam à vida depois de haver
morrido: assim na Ásia Menor, Adonis, Astarté, Atis, Cibele; no Egito, Ísis e Osiris... Tais mitos se
inspiravam no fato de que a natureza morre no outono e renasce na primavera seguinte. Ora as
narrativas evangélicas não seriam senão uma nova edição de tais lendas.
- A propósito observamos que os deuses da mitologia estavam longe de "ressuscitar,
propriamente; a ressurreição ou volta da alma ao corpo nunca foi um ideal, mas, sim, um espantalho
para gregos e orientais (estes tinham o corpo na conta de cárcere da alma). Ademais a ressurreição de
Jesus nada tem a ver com os mitos da vegetação que morre e renasce. ,
Por último, consideremos também que a fé se manifestou desde os primeiros dias da Igreja. Ora a
Palestina não era terreno favorável ao sincretismo religioso; os Judeus, mesmo convertidos ao
Cristianismo, eram ferrenhamente avessos aos mitos pagãos. Para que a infiltração de lendas pagãs
se desse no Cristianismo, teia sido necessário que este tivesse tido origem num ambiente geográfico
e numa população tais como a Síria, a Ásia Menor ou o Egito; além do quê, exigir-se-ia notável
espaço de tempo entre a morte de Jesus e a pregação de sua ressurreição.
Uma vez examinadas as teorias que negam a ressurreição corporal de Jesus, vejamos qual seja

Lição 2: O Testemunho do Novo Testamento


2.1. 1Cor 15, 3-8
O texto mais significativo é a profissão de fé consignada por São Paulo em 1Cor 15,3-8.
Ei-la em tradução literal:
"1 Faço-vos conhecer irmãos, o Evangelho que vos preguei, o mesmo que vós recebestes e no
qual permaneceis firmes.2 Por ele também sereis salvos, se o conservandes tal como vô-lo
preguei...a menos que não tenha fundamento a vossa fé.
3
Transmiti-vos, antes de tudo, aquilo que eu mesmo recebi, a saber que Cristo morreu por
nossos pecados, conforme as Escrituras,
4
e que foi sepultado e que ressuscitou ao terceiro dia conforme as Escrituras
5
o que apareceu a Cefas, depois aos doze.
6
Posteriormente apareceu, de uma vez, a mais de quinhentos irmãos, dos quais a maior parte
vive até hoje, alguns, porém, já morreram.
7
Depois apareceu a Tiago e, em seguida, a todos os Apóstolos.
8
Por fim, depois de todos, apareceu também a mim, como a um abortivo".
São Paulo escreveu tal passagem no ano de 56, ou seja, pouco mais de vinte anos após a Ascensão
de Jesus. Eis, porém, que nesse texto o Apóstolo quer apenas lembrar aos fiéis o que ele lhes
transmitiu de viva voz quando fundou a comunidade de Corinto em 51-52: nessa época Paulo
entregou aos fiéis a doutrina que lhe fora entregue ("Transmiti-vos...aquilo que eu mesmo recebi...").
E quando o Apóstolo recebeu a mensagem?
- Ou por ocasião da sua conversão, que se deu aproximadamente no ano de 35, ou no ensejo de
sua visita a Jerusalém, que teve lugar em 38, ou, ao mais tardar, por volta do ano de 40.
Observemos agora o estilo do texto de I Cor 15, 3-8: as frases são curtas, incisivas, dispostas
segundo um paralelismo que lhes comunica um ritmo notável. Abstração feita dos vv. 6 e 8, dir-se-ia
que se trata de fórmulas estereotípicas, forjadas pelo ensinamento oral e destinadas a ser
frequentemente repetidas. Nesses versículos encontram-se várias expressões que não ocorrem em
outras cartas de São Paulo: assim "conforme as Escrituras", no "terceiro dia", "aos doze", "apareceu"
(expressão que só ocorre soba pena de São Paulo num hino citado pelo Apóstolo em I Tm 3,16).
Estas indicações dão a ver que São Paulo em 1Cor 15,3-8 reproduz uma fórmula de fé que ele
mesmo recebeu já definitivamente redigida poucos anos (dois, cinco, oito anos?) após a Ascensão do
Senhor Jesus. O v.6, quebrando o ritmo do conjunto, talvez tenha sido introduzido posteriormente;
quanto ao v. 8, é por certo uma notícia pessoal que São Paulo acrescenta ao bloco.
Vê-se, pois, que desde os primeiros anos da pregação do Evangelho, já existia entre os fiéis uma
profissão de fé na ressurreição de Cristo formulada em frases breves e pregnantes; tais frases eram
transmitidas como expressões exatas da mensagem dos Apóstolos.
Ora essa fórmula de fé antiquíssima professa a ressurreição corpórea de Cristo como realidade
histórica. Para a comprovar, havia testemunhas oculares, das quais, diz São Paulo, muitas ainda
viviam vinte e poucos anos após a ressurreição do Senhor.
Tal depoimento de primeira hora é um texto pré-paulino, concebido e transmitido pelos discípulos
imediatos do Senhor como expressão da fé comum da Igreja nascente. - É de notar que São Paulo
insiste no peso das testemunhas oculares; muitas ainda viviam e podiam ser interpeladas
pessoalmente; não diz que "creram", mas que viram" (Jesus apareceu-lhes ressuscitado).
O texto de 1Cor 15,1-8 é por Bultmann e sua escola reconhecido como obstáculo sério à sua teoria
racionalista (obstáculo fatal, segundo a expressão usada pelo próprio Bultmann em Kerygma und
Mythos). Paulo terá sido incoerente consigo mesmo:
"Só posso compreender o texto de I Cor 15, 1-8 como tentativa de apresentar a ressurreição como
um fato objetivo, merecedor de fé. Apenas posso dizer que Paulo, levado por sua apologética, caiu
em contradição consigo mesmo" (Glauben und Verstehen I. Tübingen 1964, 54s).
Passemos agora a

2.2. A pregação da Igreja nascente


2.2.1. O destemor dos Apóstolos
Seriam incompreensíveis o êxito e a força persuasiva da pregação dos Apóstolos, se, depois de
haverem feito a dolorosa experiência da Paixão do Mestre, não O tivessem visto realmente
ressuscitado.
Sem o encontro com Cristo vencedor, também não se explicaria a Cristologia pascal (ou seja, a
doutrina concernente a Cristo morto e redivivo) da Igreja antiga. Com efeito, os Apóstolos e os
primeiros cristãos não somente se reconciliaram com a idéia de um Messias padecente, mas também
com a de um Messias ausente, que voltará no fim dos tempos. Levemos em conta outrossim que,
apesar do seu estrito monoteísmo, os Apóstolos no culto sagrado associaram Jesus a Deus Pai,
reconhecendo-lhe grandeza e dignidade divinas. Nada disto teria podido ocorrer, se os discípulos não
tivessem visto o Senhor ressuscitado e se Ele não vivesse de fato na Igreja nascente mediante o
Espírito Santo prometido aos Apóstolos.
A conversão de São Paulo, que de perseguidor se tomou incansável arauto de Cristo ressuscitado,
desenvolvendo atividade admirável e fecunda, é outro fato que dificilmente se poderia entender sem
a realidade da ressurreição de Cristo.
2.2.2. O conteúdo da pregação dos Apóstolos
Em termos mais precisos, perguntamos: que é que os discípulos anunciaram quando começaram a
pregar?
O livro dos Atos dos Apóstolos responde a esta pergunta, apresentado-nos textos muito
significativos:
At 2, 4-40: Pedro, no dia de Pentecostes, explica à multidão o fenômeno das línguas;
At 3,12-26: Pedro, apelando para a obra salvífica de Cristo, esclarece como e porque um
paralítico foi curado à porta do Templo de Jerusalém;
At 4,8-12: diante do Sinédrio (tribunal judaico) Pedro explica as ocorrências da última Páscoa;
At 5,30-32:idem;
At 10,34-43: Pedro, em casa do centurião romano Cornélio, faz uma síntese do plano de Deus,
apresentando a morte e a ressurreição de Jesus como ponto central;
At 13,17-41: Paulo em Antioquia da Pisídia faz o mesmo.
A propósito observamos:
É impossível averiguar o caráter arcaico de tais trechos: neles se encontram, por exemplo, o eco
de locuções bíblicas (At 2,22-24;10,38...) e hebraísmos (At 2,23;2,3;3,20;10,40...)...Isto significa que
estamos diante das camadas mais antigas e das linhas-mestres da pregação dos Apóstolos, dirigida
aos judeus, que constituíram o núcleo inicial da Igreja.
O tema desse anúncio, como se compreende, é Jesus de Nazaré
- anunciado pelos Profetas: At 2,23;2,27;3,18;4,11;5,30s;10,40;13,35...
- figura histórica, pois há referências ao seu nascimento na casa de Davi (At 13,23; 10,37),
ao seu ministério público precedido pela pregação de João Batista (At 2,22;10,37s;13,24-31);
- ressuscitado dentre os mortos, ponto alto de toda a pregação. A ressurreição revela o significado
da existência de Jesus, de tal modo que o Evangelho (a Boa-Nova) é essencialmente o anúncio da
ressurreição. Diz São Paulo em Antioquia: "E nós vos anunciamos a Boa-nova: Deus cumpriu para
nós, os filhos, a promessa feita a nossos pais, ressuscitando a Jesus" (At 13,22). Procurando resumir
numa palavra a missão dos Apóstolos, Pedro diz que a sua tarefa principal é a de ser "testemunhas da
ressurreição" (At 1,22).

2.3. O Conceito de Messias


Notemos que os judeus do Antigo Testamento não tinham o conceito de um Messias que morreria
e ressuscitaria. Esperavam, antes, a vinda do seu reino em poder e glória. Se, não obstante, a ideia da
ressurreição do Messias logo após a sua morte foi apregoada por Pedro e seus companheiros, parece
lógico admitir que os Apóstolos tiveram a experiência de um encontro pessoal com Cristo redivivo
após a morte na Cruz. Sem esta experiência, jamais teriam chegado a proclamar que Jesus
ressuscitara dentre os mortos.
Com outras palavras: a ideia de um Messias não glorioso, mas crucificado, era "escândalo para os
judeus" (cf. I Cor 1,23). O fato de que os Apóstolos a aceitaram, seria um enigma se não tivessem
visto Jesus ressuscitado.
Observa-se mesmo que os Apóstolos, longe de imaginar que Jesus morto voltaria à vida, perderam
o ânimo ao vê-lo presa de seus inimigos, e fugiram. Quando lhes foi dada a notícia da ressurreição,
relutaram para aceita-la; não estavam subjetivamente predispostos a conceber a vitória de Cristo
sobre a morte. Fizeram-no, porém, vencidos pela evidência objetivado fato; cf. Jo 20,9.19-29
(episódio de Tomé); Lc 24,13-35 (os discípulos de Emaús); Lc 24,36-43 (Jesus nega ser mero
espírito, dá a palpar mãos e pés).
Em outros termos: quem lê os Evangelhos, observa que as aparições de Jesus não se dão após uma
expectativa ansiosa dos Apóstolos ou discípulos. Ao contrário, Jesus aparecia de maneira totalmente
imprevista, quando os discípulos menos o esperavam. Nas aparições, é Ele, e somente Ele, quem tem
a iniciativa ou quem vai ao encontro... Jesus também desaparece imprevistamente, quando os
Apóstolos desejariam tê-lo por mais tempo consigo. Estes dados tomam inaceitável a tese segundo a
qual as aparições de Jesus não teriam sido senão subjetivas- visões que, após madura reflexão,
haveriam sugerido a interpretação: "Jesus ressuscitou". Segundo os Evangelhos, os discípulos
tiveram experiência imediata do Senhor Ressuscitado, que eles puderam identificar com o
Crucificado.

2.4. O Sepulcro Vazio


O texto de Mc 16,1-8 fala das mulheres que encontraram vazio o sepulcro de Jesus na manhã de
Domingo. A mesma descoberta foi feita por Maria Madalena, segundo Jo 20,1s, e por Pedro,
conforme Lc 24,12.
Perguntamos: qual o valor histórico destas narrações?
Admite-se a realidade do sepulcro vazio na base das seguintes razões:
1) Os Evangelhos dão a entender que Jesus foi sepultado por José de Arimatéia, homem rico, que
se serviu de uma rocha ainda não utilizada para tal fim. Por conseguinte, o sepulcro de Jesus devia
estar em lugar conhecido; a visita das mulheres ao túmulo correspondia bem aos costumes da época.
2) A notícia de que as mulheres encontraram vazio o sepulcro de Jesus, não pode ter sido forjada
pela Igreja antiga; quem a inventasse, não teria apelado para dizeres de mulheres, já que as mulheres
outrora eram tidas como testemunhas pouco fidedignas. Refere São Lucas que as mulheres, tendo
encontrado o sepulcro vazio, "disseram isto aos Apóstolos, mas suas palavras pareceram-lhes um
desvario e eles não acreditaram. Pedro, no entanto, pôs-se a caminho, e correu ao sepulcro.
Debruçando-se, apenas viu as ligaduras e voltou para casa, admirado como que sucedera" (Lc 24, 10-
12). .
3) Os inimigos de Jesus não negaram que o túmulo estivesse vazio, mas unicamente trataram de
explicar o fato por vias diversas. Eis, por exemplo, o que se lê em Mt 28,11-15):
"Enquanto as mulheres iam a caminho, alguns dos guardas foram à cidade participar aos
príncipes dos sacerdotes tudo o que havia sucedido. Estes reuniram-se com os anciãos e, depois de
terem deliberado, deram muito dinheiro aos soldados com esta recomendação: 'Dizei isto: os seus
discípulos vieram de noite e roubaram-no enquanto dormíamos'. E, se o caso chegar aos ouvidos do
governador, nós o convenceremos e faremos com que os deixe tranquilos'. Recebendo o dinheiro,
eles fizeram como lhes tinham ensinado. E esta mentira divulgou-se entre os judeus até o dia de
hoje".
Vê-se, pois, que a tradição do sepulcro vazio é historicamente bem fundada. Ela tem sentido
profundo para os cristãos. Sim; ela quer dizer que a mensagem da ressurreição de Jesus implica algo
mais que o fato de que "a causa de Jesus continua" (Marxsen). Ela incute que existe continuidade
entre o Crucificado e o Ressuscitado; a vida terrestre de Jesus não foi uma fase ultrapassada da
existência de Cristo, mas continua presente no corpo do Senhor. O Cristo que ressuscitou, é o mesmo
que morreu na Cruz; possui o mesmo corpo, embora de maneira diversa. Deve-se dizer também que
a ressurreição de Jesus, à qual ninguém assistiu, deixou de si um sinal impressionante na história
humana: o sepulcro vazio. Eis porque a questão do sepulcro vazio não é secundária ou pouco
importante.

2.5. Fato Histórico


Há aqueles que, embora aceitem o que acaba de ser exposto, afirmam que a ressurreição de Jesus
não foi um fato histórico. E por quê?
- Porque ninguém a viu ou a presenciou.
- Respondemos que, na verdade, ninguém viu Jesus ressuscitar na manhã do Domingo de Páscoa;
os Apóstolos encontraram o sepulcro já vazio. Todavia não se vê por que restringir o conceito de
histórico aos fatos atestados por testemunhas oculares e auriculares. Mais exato é definir como
histórico todo evento que ocorre no tempo e no espaço. Ora a ressurreição de Jesus aconteceu no
tempo e no espaço; por isto deve tida como fato histórico.33 A ressurreição de Cristo, embora se
tenha dado sem testemunhas e no plano dos acontecimentos milagrosos, deixou na história os seus
sinais ou os seus rastos a partir dos quais se cria a certeza – certeza moral, a certeza própria da
historiografia - de que Jesus ressuscitou.

33
Imaginemos o caso de alguém que morre a sós durante a noite, sem a presença de um acompanhante, ou de um suicida que se esconde para pôr fim à
sua vida... Pode-se dizer que não são fatos históricos? Parece absurdo afirmar tal coisa, visto que são fatos ocorridos no tempo e no espaço.
A insistência da Igreja antiga sobre a ressurreição no terceiro dia parece revelar a clara intenção
de afirmar que a ressurreição foi um fato realmente histórico, a ponto de se poder indicar a respectiva
data. Tal intenção é muito clara no discurso de São Pedro proferido em casa do centurião Cornélio:
"Sabeis o que ocorreu em toda a Judéia, a começar pela Galiléia, depois do batismo que João
pregou: como Deus ungiu com o Espírito Santo e com o poder e Jesus de Nazaré, o qual andou de
lugar em lugar, fazendo o bem... E nós somos testemunhas do que Ele fez no país dos judeus e em
Jerusalém. A Ele que mataram, suspendendo-O de um madeiro, Deus ressuscitou-O ao terceiro dia e
permitiu-lhe manifestar-se não a todo o povo, mas às testemunhas anteriormente designadas por
Deus, e nós que comemos com Ele, depois da sua ressurreição dentre os mortos. E mandou-nos
pregar ao povo... " (At 10, 37-42).
Como se vê, a ressurreição ao terceiro dia é inserida entre os fatos históricos de que os Apóstolos
e seus ouvintes são testemunhas.
É verdade que a certeza moral - a certeza da historiografia - ainda não é a certeza da fé. A fé
pertence a outro plano; tem a sua origem e a sua motivação decisiva na atração interior que Deus
exerce sobre a pessoa que Ele chama à fé. Todavia a certeza moral fornece a justificativa à razão do
homem, fazendo que a adesão à fé na ressurreição seja um ato razoável, inteligente, digno, e não
cego ou infantil, imaturo.

Lição 3: Conclusão
O homem do século XX pode crer na ressurreição corporal de Cristo sem recear cair no
infantilismo ou na mitologia. Quem nega a ressurreição, fá-lo não porque ela seja em si um absurdo
ou porque não haja argumentos que a incutam, mas talvez por não ter refletido suficientemente sobre
tais argumentos ou quiçá por nunca ter sido esclarecido a respeito dos mesmos. Quem, ao contrário,
sem preconceitos, sem negar de antemão a possibilidade do milagre, estudar o assunto, perceberá que
crer na ressurreição de Cristo é atitude correspondente às exigências da razão, para não se dizer
"altamente razoável".
De resto, quem professa as verdades da fé, aos poucos encontra nessa própria fé a demonstração
de que não se enganou; a fé se comprova através da experiência ou da vivência respectiva.

PERGUNTAS
1) Que afirma R. Bultmann sobre a ressurreição de Jesus ? Como refutá-lo?
2) Que diz s. Paulo a respeito da ressurreição de Jesus?
3) Os Apóstolos terão inventado o conceito de Messias ressuscitado?
4) Que valor tem o sepulcro vazio?
5) A ressurreição de Jesus é fato histórico?

MÓDULO 32: O PERFIL PSICOFÍSICO E MORAL DE JESUS


Jesus afirmou ser Deus feito homem e deu sinais (fez milagres) para o comprovar. Todavia põem-
se as perguntas: Jesus tinha saúde física e psíquica para merecer crédito? Não era desequilibrado
mental? E, caso não o fosse, era homem reto, honesto, conceituado no plano moral? - É a tais
perguntas que este Módulo procurará responder.

Lição 1: Perfil psicofísico


a) Os estudiosos, após atenta leitura do Evangelho, costumam concluir que Jesus devia ser
fisicamente robusto, dotado de saúde vigorosa.
Durante três anos levou vida intensamente movimentada, caminhando de uma cidade para outra,
exposto a todas as intempéries. Enquanto as aves do céu tinham seus ninhos e as raposas as suas
tocas, Jesus não tinha onde repousar a cabeça (cf. Mt 8,20). Aos seus discípulos deu o conselho:
"Não leveis coisa alguma para o caminho, nem bordão, nem mochila, nem pão, nem dinheiro" (Lc
9,3). Iniciava cedo as suas jornadas (cf. Lc 6,13) e às vezes nem sequer tinha tempo para comer,
cercado como estava pelas multidões (cf. Mc 3,20). Finda a jornada, acontecia que se retirasse para a
solidão e passasse a noite em oração (cf. Lc 6,12; Mt 14,23).
Em seus padecimentos finais, Jesus deu a suprema prova de sua fortaleza física e psíquica,
demonstrando perfeito domínio sobre os nervos, de tal modo que o centurião, estupefato, exclamou:
"Verdadeiramente este homem era Filho de Deus" (Mt 27,54). Observa sabiamente Karl Adam:
"Qualquer temperamento doente ou simplesmente delicado teria cedido ou sucumbido. Nunca em
lugar nenhum Jesus se retirou, nem mesmo nas situações mais enervantes e perigosas. Ele dorme
tranqüilo, repousando sobre o seu travesseiro, em meio à tempestade que agita o lago de Tiberíades;
quando os discípulos O despertam, logo vencendo o sono profundo, Jesus toma consciência da
situação e a domina; cf. Mc 4, 36-41. Tudo isto mostra quão longe estava de ter um temperamento
excitável, nervoso; ao contrário, era sempre senhor dos seus sentidos. Numa palavra, era inteiramente
sadio" (Kafl Adam, Gesù il Cristo. Brescia 1954, p.88).
A respeito de muitos místicos se refere que tiveram êxtases e arrebatamentos, que os tornavam
insensíveis ao mundo visível. Quanto a Jesus, não se sabe que tenha passado por êxtases ou transes
que lhe tirassem o domínio das faculdades sensitivas. Em sua linguagem - que nada tinha de
pomposo ou esotérico - Ele recorria às imagens do mundo que o cercava: as flores do campo, as aves
do céu, as crianças que brincavam nas praças públicas, os pescadores que puxavam as redes e faziam
a triagem dos peixes, a mulher que varre a casa, a festa nupcial, o angariamento de trabalhadores
para a vinha, o administrador que trapaceia, o semeador e a sementeira nos campos, a videira e os
ramos...
b) No plano psicológico, Jesus revelou Inteligência ampla e perspicaz. Em cada situação, sabia
de pronto apreender o essencial, sem perder de vista os particulares. Assim, por exemplo, dizia: "Que
adianta ao homem ganhar o mundo inteiro, se vier a perder a sua vida? Ou que dará um homem em
troca de sua vida?"(Mt 16,26).
À conquista da vida é necessário subordinar tudo: "Se teu olho direito é para ti causa de queda,
arranca-o e lança-o longe de ti, porque te é preferível perder um só dos teus membros a que o teu
corpo todo seja lançado na geena" (Mt 5,29).
Principalmente nas altercações com os judeus, sempre dispostos a insídias, manifesta-se a agudez
de espírito de Jesus. Assim diante da questão do imposto a ser pago a César, responde: "Daí a César
o que é de César, e a Deus o que é de Deus" (Mt 22, 21).
Por mais astutos que fossem, os adversários jamais conseguiram arrancar de Jesus uma palavra
comprometedora.
Nos momentos de tribulação ou de glória é que uma personalidade tem mais ocasião de se
manifestar: pode então facilmente perder o senso da realidade ou superestimar-se. Jesus, porém,
jamais se deixou dominar pelos acontecimentos. Depois da multiplicação dos pães, quando viu que o
povo se dispunha a aclamá-lo rei, fugiu a sós para uma montanha (cf. Jo 6,15). Em vez de desfrutar a
popularidade que os seus milagres lhe angariavam, Jesus impunha silêncio às pessoas que ele
beneficiava (cf. Mc 1,43s; 3,11; 7,36; 8,26).
A vontade de Jesus era resoluta e inabalavelmente firme em demanda de suas metas. Assim as
primeiras palavras que o Evangelho refere de Jesus, com doze anos de idade, patenteiam essa decisão
de vontade frente àqueles que o procuravam: "Não sabíeis que devo ocupar-me com as coisas de meu
Pai?" (Lc 2,49).
Continuamente repetia Jesus: "Vim para... Não vim para..." (cf. Mc10,45; Lc 5,32; 12,49; 19. 10;
Jo 3,15; 10, 10; 18,37...). Tinha consciência de que o Pai o enviara à terra para salvar o mundo
mediante sua Paixão e Ressurreição. Jesus não o esquecia por um momento. Mais de uma vez, os
discípulos quiseram dissuadi-lo de tal obra; Jesus, porém, sempre superou os obstáculos com a sua
vontade tenaz, chegando a censurar severamente a Pedro por não compreender os desígnios de Deus;
cf. Mc 8,32s; Jo 11,8-10; 18,11.
Depois de anunciar o pão da vida, Cristo viu que muitos ouvintes, julgando demasiado duras as
suas palavras, se afastaram do Mestre. Voltou-se então para os doze discípulos que ainda ficavam e
perguntou-lhes: "Quereis vós também retirar-vos?" (Jo 6,68). Jesus colocava claramente a opção
diante de seus Apóstolos sem desdizer às palavras que havia anteriormente pronunciado.
O derradeiro assalto contra a vontade de Jesus proveio da própria natureza sensível do Mestre. Na
noite de sua Paixão, foi acometido de tristeza mortal; pressentia a tempestade que se aproximava, e
começou a ter medo e angustiar-se (único caso em que o Evangelho assinala tais sentimentos em
Jesus; cf. Mc 14,33). Todavia mesmo então Cristo soube manter-se na atitude devida: "Pai, não se
faça o que eu quero, mas o que tu queres!" (Mc 14,36). Jesus não foi apático e insensível, mas teve a
firmeza necessária para subordinar seus sentimentos e emoções à realização de sua missão.
Não é fácil a um herói compreender as fraquezas alheias. Mas também nesse setor Jesus deu
provas de equilíbrio surpreendente. Como norma geral, ensinou aos discípulos que não julgassem o
próximo (cf. Mt 7,1). A Pedro que perguntava quantas vezes deveria perdoar, respondeu: "Setenta
vezes sete" (Mt 18,22), isto é, um sem número de vezes. Aos Apóstolos que queriam fazer descer
fogo sobre as cidades incrédulas, replicou: "Não sabeis de que espírito sois" (Lc 9,55).
Jesus era particularmente compreensivo para com os pecadores. É conhecido o episódio da mulher
adúltera que os fariseus queriam apedrejar. Sem derrogar à lei que mandava realmente punir tal
mulher, disse então muito sabiamente: "Aquele de vós que não tem pecado, lance a primeira pedra"
(Jo 8,8). Eles então foram-se retirando um por um; a sós diante da mulher disse o Senhor: "Mulher,
onde estão os que te acusavam? Ninguém te condenou? - Ninguém, Senhor. - Nem eu te condenarei;
vai e não peques mais" (Jo 8,11).
Jesus foi igualmente benigno para com a mulher infame que penetrou na casa do fariseu Simão.
Em contraste com este, que, por julgar-se justo, condenava interiormente a mulher e Jesus, declarou
o Senhor: "A quem muito ama, muito se perdoa"; e, voltando-se para a mulher, disse: " A tua fé te
salvou; vai-te em paz" (Lc 7,36-50).
O amor aos pecadores sugeriu a Jesus as parábolas mais belas de sua pregação: a do filho pródigo
(Lc15,11-32), a da ovelha desgarrada (Lc15, 4-7) e a da moeda perdida (Lc15,8-10). Pergunta-se
agora: esse homem de inteligência extremamente perspicaz, vontade férrea e extremada compreensão
humana terá levado uma vida Integra? Não terá sido um impostor?
É o que passamos a considerar.

Lição 2. Perfil Moral


Durante três anos Jesus percorreu a Palestina, falando em público, espreitado por seus adversários,
que se sentiam importunados pelo comportamento sincero e leal do Mestre. Mais de uma vez
preparam-lhe armadilhas, afim de poder acusá-lo diante do povo judeu e das autoridades romanas.
Quando finalmente conseguiram prendê-lo e levá-lo aos tribunais de Anãs e Caifás, não puderam
apresentar acusações definidas contra Ele; levantaram-se falsas testemunhas cujos depoimentos não
eram concordes entre si (cf. Mc 14,56). Jesus pôde mesmo desconcertar os seus juizes quando
respondeu a Anãs: "Falei publicamente ao mundo. Ensinei na sinagoga e no templo onde se reúnem
os judeus, e nada disse às ocultas. Por que me interrogas? Interroga aqueles que ouviram o que lhes
disse. Eles sabem o que ensinei" (Jo 18,20-22). Ninguém então replicou coisa alguma, mas um dos
guardas, tomando a defesa do Pontífice, deu uma bofetada em Jesus. Este insistiu: "Se falei mal,
prova-o; mas, se falei bem, porque me bates?" (Jo 18,23).
Pilatos mais de uma vez quis declarar Jesus inocente. Só o entregou por medo de ser considerado
inimigo de César.
A santidade de Jesus é fato único na história. Somente Ele pôde, de cabeça erguida, desafiar os
seus adversários, interrogando: "Quem de vós pode acusar-me de pecado?"(Jo 8,46). - Em sua
sabedoria, os filósofos greco-romanos afirmavam sinceramente a impossibilidade de não pecar.
Assim escrevia Epicteto (120/130 d.C.):"Não pecar é impossível. Apenas nos é dado esforçar-nos
continuamente por não pecar. E, se conseguimos evitar ao menos alguns pecados, já conseguimos
muita coisa"(Dissert. IV 12). Sêneca († 65 d.C.), por sua vez, observava: "Todos temos pecado, uns
mais gravemente, outros menos gravemente... Não somente temos pecado, mas pecaremos até o fim.
Mesmo aqueles que venham a purificar a sua alma de modo que nada os perturbe ou seduza, só
chegam a tal inocência depois de ter pecado" (De clementia 16). O gramático Libânio († 394 d.C.)
afirmava que "não pecar é próprio de Deus só" (epist.1554).
O próprio povo de Israel, visitado pela Palavra de Deus mediante sábios e profetas, nutria
semelhante consciência: "Não há homem que não peque", dizia Salomão ao Senhor (cf. I Rs 8,46). E
o sábio acrescentava em Pr 20,9: "Quem pode dizer: 'Meu coração está puro; estou limpo de
pecado?"
É sobre tão amplo fundo de cena que se deve entender o desafio de Jesus aos seus inimigos:
"Quem de vós pode acusar-me de pecado?" (Jo8,46).
Os dados até aqui registrados permitem-nos agora formular uma breve

Lição 3: Conclusão
Para medir a estatura de um homem, não há padrão mais seguro do que o da história. Quantas
pessoas e obras grandes, que pareciam ter envergadura para desafiar os séculos, não vieram a cair no
esquecimento?! Quantas ilusões não se dissiparam sob os golpes do tempo! Quantas mensagens
apresentadas como mais firmes do que o bronze (aere perenniora) conseguiram sobreviver aos seus
arautos?! "Securus iudicat orbis terrarum. - O orbe profere o seu juízo seguro".
Ora em relação a Jesus o veredicto da história foi inteiramente positivo. Pode-se mesmo notar aí
algo de único na sucessão dos fatos humanos: a figura de Jesus tornou-se o centro da história; ela
divide o tempo em duas secções: antes e depois de Cristo. Nem Buda, nem Confúcio, nem Maomé,
nem algum outro líder espiritual ou político obteve tal laudo. Verdade é que os maometanos contam
os anos a partir da Hégira (622 d.C.); trata-se, porém, de uma praxe isolada e restrita; o mundo
inteiro aceita - ao menos nas relações internacionais e oficiais - o nascimento de Cristo como ponto
central da história.
Passando desta verificação de índole histórica para a consideração do impacto que a mensagem de
Jesus exerceu sobre as consciências humanas, registramos um efeito geral sem termos de
comparação. Ver a propósito o Módulo 28 deste Curso.
Surge então oportunamente a pergunta: Seria possível que aquele que de tal modo transformou a
face da terra e o íntimo dos homens, tenha sido um iludido e um ilusor ou impostor? – A história
conheceu, sem dúvida, muitos impostores; mas quantos sobreviveram à sua impostura?! Nietzsche
julgou ser o profeta de nova era, apresentando-se como o carrasco de Deus e o Anticristo; foi vítima,
porém, de sua ilusão, pois terminou os dias em uma casa de alienados. Ao contrário, é inegável o fato
de que as idéias que poderiam ser as ilusões de Cristo, o produto da mente doentia, se transmitiram
aos pósteros e tomaram vulto concreto através dos séculos. Jesus quis ser amado mais do que
qualquer outro ente caro no mundo: mais do que genitores, consortes ou filhos. E esta sua
reivindicação encontrou eco em milhões de corações. Quantos jovens, homens e mulheres, em vinte
séculos de história deixaram os pais, renunciaram a constituir família para amar a Jesus, de maneira
indivisa e total?! Centenas de milhares de mártires preferiram a morte à vida vivida sob o marco da
traição a Jesus. Doutro lado, pode-se lembrar que muitos e muitos perseguiram a Cristo no decorrer
dos séculos. O amor e o ódio são os mais veementes afetos humanos; Jesus foi objeto deles como
nenhum outro herói. Isto significa que a história levou Jesus a sério. Ora a história não leva a sério
nem os iludidos nem os ilusores (impostores).

PERGUNTAS
1) Como se manifestava o vigor físico de Jesus?
2) Cite dois casos que evidenciam a tranquilidade de ânimo de Jesus.
3) Como Jesus demonstrou e perspicácia de sua inteligência ?
4) Jesus teve força de vontade? Como isto se percebe?
5) Jesus foi moralmente integro?
PARTE iV. CREIO NA IGREJA
Tendo estudado o fenômeno religioso, o porquê da fé em Deus e em Jesus Cristo, iniciamos a
quarta Parte do nosso Curso, que tem por título: CREIO NA IGREJA... Igreja que é a continuação de
Jesus Cristo presente entre os homens ou Corpo Místico de Jesus Cristo. Como nas Partes anteriores
deste nosso Curso, procuraremos prescindir da fé para examinar a credibilidade da Igreja ou as
credenciais que justificam a fé na Igreja. Donde o primeiro Módulo desta etapa:

MÓDULO 33: POR QUE A IGREJA?


Muitas pessoas hoje em dia - até entre as que se dizem católicas - estimam profundamente Jesus
Cristo e estão dispostas a seguir seus ensinamentos, mas fazem restrições à Igreja ou recusam
pertencer-lhe corretamente. Diriam Sim a Jesus Cristo e Não à Igreja. - Este fato merece atenção,
pois afeta gravemente o próprio Cristianismo e sua identidade. Eis porque lhe dedicaremos as
páginas seguintes, procurando analisar a atitude de recusa e delinear a resposta que se lhe pode dar.

Lição 1: O problema
Tentemos reproduzir algumas das formulações do problema tais como têm sido propostas por
intelectuais racionalistas.
Como pode uma instituição particular, marcada pela contingência e a fragilidade de homens e
mulheres, ser o lugar obrigatório para que se possa encontrar a salvação prometida por Cristo a todos
os homens (cf. Jo lo, lo)?
Porque, para entrarem comunhão com a Verdade de Deus, destinada a todos os homens, devo
passar por determinada instituição e até incorporar-me a esta?
Por que são necessários os dogmas, as normas e os ritos da Igreja para irmos a Deus? Não bastaria
orar ao Ser Supremo, de um modo ou de outro, e oferecer-Lhe o único incenso que lhe agrada: um
bom comportamento ético?
Ou ainda: porque tantas particularidades para nos encontrarmos com o Universal e tantas
realidades contingentes para chegarmos ao Único Necessário?
Tais eram as questões levantadas pelos filósofos do iluminismo (Aufklärung) do século XVIII;
esses espíritos da "época das luzes" tinham na Alemanha seu representante mais típico em Gotthold
Ephraim Lessing (1729-1781).
Refletindo bem, vemos que tais objeções se poderiam estender ao próprio Jesus de Nazaré. Por
que admitir a mediação de Cristo, que se apresentava como a via de acesso a Deus (cf. Jo 10, 9: "Eu
sou a porta..."), ... como "o Caminho, a Verdade e a Vida" (cf. Jo 14,6)? Aliás, o escândalo dos
filósofos racionalistas já era o dos contemporâneos de Jesus, que perguntavam: "Não é este o
carpinteiro, o filho de Maria, o irmão de Tiago, José, Judas e Simão? E suas irmãs não estão aqui
entre nós?" (Mc 6,3).
Em última análise, tocamos o escândalo provocado pelo mistério da Encarnação de Deus ou pelo
âmago da mensagem central do Cristianismo: "O Verbo era Deus... Ele se fez carne e habitou entre
nós" (Jo 1,1.14). Muitas pessoas hoje aceitam ser religiosas (até mesmo cristãs), mas gostariam de
definir elas mesmas o seu caminho para Deus, sem interferência de alguma instituição (religião seria
assunto de consciência apenas ou de foro meramente privado). Reflitamos sobre tal posição.

Lição 2: O sentido da Encarnação


Se o Cristianismo não é apenas um caminho, entre outros, que o homem abre para chegar ao
Absoluto, se o Cristianismo é realmente aquilo que ele diz - o caminho de Deus que vem aos
homens, como homem, na história dos homens -, então compreende-se que o Universal (Deus) se
entregue a nós no singular (Jesus) e que o Eterno venha a nós no tempo e através de fatos históricos.
Se o Cristianismo constasse apenas de expressões naturais de religiosidade humana (oração,
silêncio, interioridade, ascese...), ele seria talvez mais aceitável para muitas pessoas, mas não seria
mais do que a expressão do natural anseio do homem para Deus (o que, sem dúvida, já é algum
valor).
O fato de que o Cristianismo está intrinsecamente ligado às particularidades de Cristo e da Igreja,
pode, em primeira instância, incomodar as tendências da razão humana; mas, numa ulterior reflexão,
verifica-se que esse incômodo é altamente precioso, pois significa que, no Cristianismo, o homem
não é entregue apenas ao seu inato desejo de procurar o Absoluto (Deus); ao contrário, ele se
encontra com o Absoluto, que é o primeiro a procurar o homem; defrontando-se com normas e ritos,
em última análise ele entra em contato com o Outro ou com a Transcendência de Deus, que vem ter
com o homem por sua própria iniciativa (ou antes mesmo que o homem procure a Deus).
Em consequência, verifica-se ainda o seguinte: a Igreja-instituição, que se impõe ao homem por
vontade de Cristo e não resulta da espontaneidade religiosa do homem, essa Igreja, com suas normas
e seus ritos, é precisamente a expressão da iniciativa salvífica de Deus; é o prolongamento lógico da
Encarnação e o lugar privilegiado do encontro com Cristo e com o Pai.
Se a Igreja fosse apenas um vasto clube religioso, uma livre associação mística, em que tudo se
decidisse por votações majoritárias, talvez fosse mais "assimilável", porque se pareceria mais com as
democracias contemporâneas; todavia a consequência disto é que o homem, na Igreja, seria dirigido
unicamente por seu senso religioso inato. Justamente o fato de que a vida da Igreja é norteada por
uma Tradição que nos chega a partir de Cristo e dos Apóstolos, confere aos homens a garantia de que
é o Filho de Deus que eles encontram na instituição, e não apenas a sua religiosidade natural (por
mais generosa. que seja).
Em linguagem rigorosamente teológica, dir-se-á: o Cristianismo está centrado no regime do
Sacramento. - Sacramento é uma realidade sensível que encobre, revela e transmite os dons de Deus
aos homens. Assim quis Deus tomar a iniciativa de se comunicar ás suas criaturas. O Sacramento
primordial é a santíssima humanidade de Cristo, por cujos gestos e palavras passava a graça de Deus;
a continuação deste primeiro Sacramento é a Igreja chamada por São Paulo simplesmente "o Corpo
de Cristo" (cf. Cl 1,24). As últimas expressões do sacramento-Cristo-Igreja são os sete ritos
chamados "sacramentos" (que acompanham o homem desde o nascer até o morrer, transmitindo-lhe
a comunhão de vida como próprio Deus). Donde se vê que a existência da Igreja visível é tão
essencial ao Cristianismo quanto o próprio mistério da Encarnação. Um Cristianismo sem a Igreja
instituída por Cristo estaria mutilado.
Põe-se agora a pergunta: visto que, dentro do Cristianismo, existem muitas sociedades com o
nome de "Igreja", serão todas equiparadas entre si? Ou haverá alguma diferença essencial entre elas?
É esta questão que passamos a considerar.

Lição 3: A Igreja confiada a Pedro


Desenvolveremos o título acima por etapas:
1-Jesus quis fundar uma Igreja como lugar permanente do encontro da humanidade com a
salvação trazida por Ele. A Igreja não resulta de um desígnio dos Apóstolos posterior a Ascensão do
Senhor.
Com efeito. Diz Jesus em Mt 16,17-19, referindo-se ao Apóstolo Pedro:
"Bem-aventurado és tu, Simão, filho de Jonas, porque não foram a carne e o sangue que te
revelaram isso, e sim o meu Pai que está nos céus. Também eu te digo que tu és Pedro, e sobre esta
pedra edificarei a minha Igreja, e as portas do Inferno não prevalecerão contra ela; Eu te darei as
chaves do Reino dos Céus, e o que ligares na terra será ligado nos céus, e o que desligares na terra
será desligado nos céus".
Mais ainda: após a Ressurreição, Jesus cumpriu a sua promessa, entregando a Pedro o primado de
Pastor da Igreja:
"Simão, filho de João, tu me amas mais do que estes?" Ele lhe respondeu: "sim, Senhor tu sabes
que te amo". Jesus lhe disse: "Apascenta os meus cordeiros". Uma segunda vez lhe disse: "Simão,
filho de João, tu me amas?" - "sim, senhor, disse ele, "tu sabes que eu te amo". Disse-lhe Jesus:
"Apascenta as minhas ovelhas". Pela terceira vez disse-lhe: "Simão, filho de João, tu me amas ?"
Entristeceu-se Pedro porque pela terceira vez lhe perguntara: "Tu me amas?" e lhe disse: "Senhor
tu sabes tudo; tu sabes que te amor Jesus lhe disse: "Apascenta as minhas ovelhas".
Vêm ao caso outrossim as palavras do Senhor por ocasião da última ceia:
"Simão, Simão, eis que Satanás pediu insistentemente para vos peneirar como trigo; eu, porém,
roguei por ti, a fim de que tua fé não desfaleça. Quando, porém, te converteres, confirma teus
irmãos" (Lc 22.31s).
Estes textos manifestam suficientemente a intenção, de Jesus, de fundar a sua Igreja como
instituição salvífica sob o pastoreio do Apóstolo Pedro e de seus sucessores (se Pedro é o
fundamento visível da Igreja, o Apóstolo e suas funções hão de se perpetuar em seus sucessores, pois
um edifício que perca seu fundamento, desaba fragorosamente).
De resto, o desejo de fundar a Igreja é coerente com a escolha dos doze Apóstolos por parte de
Jesus (Mt 10,3), com a instrução e o envio dos mesmos em missão (Mt 28,18-20), como também
com a instituição da Eucaristia, ceia da nova Aliança a ser renovada perpetuamente pelos discípulos
(cf. Lc 22,20).
2. A Igreja de Cristo é chamada católica, porque é universal ou destinada a todos os homens (sem
distinção de raças ou classes); apostólica, porque fundada sobre os Apóstolos escolhidos por Cristo
(cf. Ap 21,14)34; romana, porque o Apóstolo Pedro, chefe visível designado por Cristo, morreu em
Roma como bispo desta cidade; em conseqüência, os seus sucessores, bispos de Roma, continuam a
desempenhar as funções do primado.
O título romana não nacionaliza a Igreja; é apenas o título que designa a sede do Pastor Supremo
visível. Este tem que ter um referencial geográfico ou uma residência, como Jesus, o Salvador de
todos, tinha um endereço terrestre, a saber: a cidade de Nazaré; donde o aposto "Jesus Nazareno".
"Igreja Romana" e "Jesus Nazareno" são dois títulos paralelos entre si, que não restringem o âmbito
do Cristianismo, mas vêm a ser genuínos ecos do mistério da Encarnação, que está no âmago da
mensagem cristã.
3. Há quem objete que "Jesus anunciou o Reino, mas o que veio foi a Igreja", isto é, Jesus ter-se-á
enganado, imaginando que o fim do mundo estaria iminente (com a instauração do Reino perfeito de
Deus); em consequência, os Apóstolos teriam fundado a Igreja como substitutivo temporal do Reino.
- Examinemos os textos aduzidos em favor desta objeção:
1) Eis as palavras que falam da aparente iminência do Reino:
Mc 9,1: "Em verdade vos digo que aqui estão presentes alguns que não provarão a morte até que
vejam o Reino de Deus chegando com pode".
Mt 10,23: "Em verdade vos digo que não acabareis de percorrer es cidades de Israel até que venha
o Filho do Homem".
Mt 16,28: "Em verdade vos digo que alguns dos que aqui estão não provarão a morte até que
vejam o Filho do Homem vindo em seu Reino".
Para entender estes textos, lembremos que Jesus sempre recusou definir a data do fim do mundo;
chegou mesmo a dizer que Ele a ignorava (não era sua tarefa revelá-la aos homens); cf. Mc 13,32; At
1,7. - Notemos ainda que, nestas passagens do Evangelho, é pouco verossímil a menção de um
retorno físico de Jesus. - Com efeito, na S. Escritura os termos "vir', "visitar, "aparecer", aplicados a
Deus, têm geralmente valor simbólico: anunciam, sim, uma intervenção marcante de Deus na história
dos homens (cf. SI 96,1-6; 97,1,9; 100.1s. ...). É precisamente isto que Jesus quer predizer: em Mt
1035 o Senhor prevê as perseguições que seus discípulos deverão sofrer por parte do povo de Israel
incrédulo; ora as cidades de Israel obcecado serão visitadas e julgadas por Cristo, diz o Senhor, - o
que de fato aconteceu quando os romanos em 66-70 d.C. invadiram a Palestina, sitiaram e destruíram
Jerusalém; a ruína desta cidade significa o juízo sobre o povo endurecido, o fim da antiga Aliança e a
plena afirmação do Reino de Deus inaugurado na Igreja.
2)Vêm agora duas passagens que parecem insinuar o particularismo (e não o universalismo) da
missão de Jesus:
a) Mt 10,5s: "Não tomeis o caminho dos gentios, nem entreis em cidade de Samaritanos. Dirigi-
vos, antes, ás ovelhas perdidas da Casa de Israel".
A noção de uma Igreja universal (católica) seria compatível com tais dizeres?
- Respondendo, notamos que as palavras de Jesus se referem ao primeiro envio dos Apóstolos em
missão evangelizadora; esta é limitada á Palestina, e somente ás cidades judaicas da Palestina (aí
também havia cidades samaritanas). Ora a lógica da pregação fazia dos judeus os primeiros
destinatários da Boa-Nova: os pagãos não seriam excluídos, mas seriam abordados em segunda
instância (sabemos que a própria pregação dos Profetas do Antigo Testamento se dirigia
primeiramente aos filhos de Israel, mas tinha em vista também a vocação dos pagãos numa atitude
universalista; ver Is 2,25; Mq 4,1-3; Is 66, 18-21; Jn 1-4). - Jesus encontrava os judeus como ovelhas
desgarradas36; haviam sido maltratados e abandonados por pastores indignos (cf. Ez 34,1-31; Zc
10,2); no tempo de Jesus mesmo o povo de Israel era mal orientado pelos fariseus (cf. Mt 23,1-39).
34
Uma Igreja que não esteja em contato ou que tenha perdido o contato com os Apóstolos, já não é a de Cristo.
35
É à luz de Mt 10,23 que devem ser lidos os paralelos de Mt 16,28 e Mc 9, 1 (estes dois últimos textos parecem estar fora de contexto em Mt 16 e Mc
9).
36
"Perdidas" em Mt 10, 6 não tem o sentido de "condenadas ( mas, sim, o de "dispersas" fora do aprisco, em perigo de desgarrar-se e perecer.
Por isto o Senhor se dirige aos Apóstolos e os manda ter com essas ovelhas abandonadas; farão as
vezes de pastores de um novo rebanho ou do rebanho messiânico (ao qual se agregarão, após Páscoa-
Pentecostes, também os gentios, cuja vez ou cuja hora terá chegado). Vê-se, pois, que, bem
entendido, o texto de Mt 10,5s não significa restrição definitiva da pregação messiânica, mas apenas
respeita o escalonamento ou a ordem segundo a qual os povos deviam ser chamados ao Evangelho.
b) Mt 15,24: "Não fui enviado senão às ovelhas perdidas da Casa de Israel".
Estas palavras com que Jesus responde a uma mulher cananéia, que lhe pede a cura de sua filha,
correspondem á mais pura ortodoxia judaica, segundo a qual a salvação é para os judeus (ao menos...
para os judeus em primeiro lugar); o mesmo princípio é professado por São Paulo em Rm 1,17-2,9.
Apesar desta tese, Jesus olha para a mulher estrangeira com benevolência; põe à prova a sua fé e o
seu amor; e, vendo quão heróica era tal mulher, não somente lhe concedeu o que pedia, mas ainda lhe
teceu um elogio: "Ò mulher, grande é a tua fé! Seja-te feito como queres!" Aliás, Jesus, diante de um
centurião romano que lhe pedia a cura de seu servidor, exclamou: "Em verdade vos digo que em
Israel não achei ninguém que tivesse tal fé. Mas eu vos digo que virão muitos do Oriente e do
Ocidente e se assentarão à mesa no Reino dos Céus, com Abraão, Isaac e Jacó" (Mt 8, 10s). Também
os Profetas Elias e Eliseu já tinham obtido milagres em favor dos pagãos da Síria (cf. l Rs 17,7-24;
2Rs 8,7). Jesus, portanto, nada fazia de inédito, mas confirmava os traços de universalismo da
mensagem dos Profetas. De resto, Ele disse que todos são filhos do mesmo Pai e têm direito ao
mesmo tratamento (cf. Mt 5, 43-48); o Salvador de Israel seria também o Messias dos pagãos.

Lição 4: Igreja visível e jurídica


l. Jesus não confiou a Pedro e aos Apóstolos apenas a missão de pregar e ministrar os
sacramentos. Ele quis outrossim uma Igreja estruturada e jurídica sob o supremo pastoreio de Pedro
(e não uma comunidade espiritual reunida tão somente pela fé e o amor). isto decorre dos textos já
citados, com referência à função de Pedro e seus sucessores. Outros textos do Novo Testamento
evidenciam esse aspecto orgânico e visível da Igreja. Assim, Por exemplo,
Mt 18,1-22: o sermão comunitário do Evangelho, que propõe normas para a boa ordem eclesial e
que tem seu ponto alto na seguinte passagem: "Se teu irmão pecar, corrige-o a sós,- se ele te ouvir,
ganhaste teu irmão. Se não te ouvir toma contigo mais uma ou duas testemunhas, para que toda
questão seja decidida pela palavra de duas ou três testemunhas. Caso não lhes dê ouvido, dize-o à
Igreja. Se nem mesmo à Igreja der ouvido, trata-o como gentio ou publicano. Em verdade vos digo:
tudo quanto ligardes na terra, será ligado no céu e tudo quanto desligardes na terra, será desligado no
céu " (Mt 18,15-18).
Jo 20,21-23: na noite de Páscoa, disse Jesus aos Apóstolos: "A paz esteja convosco! Como o Pai
me enviou, também eu vos envio... Recebei o Espírito Santo; àqueles a quem perdoardes os pecados,
serão perdoados; àqueles aos quais os m tiverdes, serão retidos".
Mt 28,18.20: "Toda autoridade no céu e na terra me foi entregue. Ide, portanto, e fazei que todas
as nações se tomem discípulos, batizando-os em nome do Pai, do Filho e do Espírito Santo, e
ensinando-os a observar tudo quanto vos ordenei".
Todos estes dizeres do Senhor Jesus foram entendidos pelos Apóstolos de tal modo que eles
começaram a exercer sua autoridade logo após Pentecostes com o pleno reconhecimento dos fiéis. É
o que se depreende do livro dos Atos dos Apóstolos e das epístolas paulinas (especialmente I e II
Cor):
At 4,34s: "Não havia entre eles necessitado algum. De fato, os que possuíam terrenos ou casas,
vendendo-os, traziam o valor da venda, e o depunham aos pés dos Apóstolos. Distribuía-se então a
cada um conforme a sua necessidade".
At 6, 1.6: "Naquele dias, aumentando o número dos discípulos, surgiram murmurações dos
helenistas contra os hebreus. Isto porque, diziam aqueles, suas viúvas estavam sendo esquecidas na
distribuição diária. Os Doze convocaram então a multidão dos discípulos e disseram: 'Não é
conveniente que abandonemos a Palavra de Deus para servir às mesas. Procurai, antes, entre vós,
irmãos, sete homens de boa reputação, repletos do Espírito e de sabedoria, e nós os encarregaremos
desta tarefa. Quanto a nós, permaneceremos assíduos à oração e ao ministério da Palavra'. A proposta
agradou a toda a multidão. E escolheram Estêvão, homem cheio de fé e do Espírito Santo, Filipe,
Prócoro, Nicanor, Timon, Pármenas e Nicolau, prosélito de Antioquia. Apresentaram-nos aos
Apóstolos e, tendo orado, impuseram-lhes as mãos."
Veja-se também todo o capitulo 15 dos Atos dos Apóstolos, que trata do primeiro Concílio da
história, reunido para dirimir uma dúvida que se originam entre os cristãos sobre a obrigatoriedade
ou não da Lei de Moisés.
Em 1Cor 5,3-5; 2Cor2,5-11 há referência à excomunhão infligida pelo Apóstolo a cristãos
delituosos.
Em 1Cor11,23-24 Paulo censura os fiéis por causa de abusos na Ceia Eucarística e baixa normas
para evita-los.
Em 1Cor 14,26-40 o mesmo Apóstolo regulamenta o uso dos carismas e corrige mal-entendidos a
respeito.
Em 2Cor 13, lo lê-se: "Eu vos escrevo estas coisas estando ausente, para que, quando aí chegar,
não tenha que recorrer à severidade, conforme o poder que o Senhor me deu para construir, e não
para destruir".
Os poderes de pregar, santificar e governar, concedidos por Jesus aos Apóstolos, haviam de ser
duradouros ou transmitir-se-iam aos sucessores dos Apóstolos até a consumação dos séculos; se
assim não fora, esfacelar-se-ia a obra de Cristo. Ora este prometeu: "As portas do inferno (ou o poder
da morte) não prevalecerão contra a Igreja" (Mt16,18) e: "Estarei convosco até a consumação dos
séculos" (Mt 28,20).
2. A transmissão das faculdades dos Apóstolos nos é realmente atestada por documentos
diversos:
A epístolas pastorais (112Tm,Tt) mostram o Apóstolo São Paulo a instituir Timóteo e Tito à
frente de comunidades. Ver também Atos 14,23; Tt 1,5, textos que atestam a instituição de
presbíteros para pastorear comunidades recém-fundadas. O Apocalipse, no fim do século I, fala dos
anjos (Bispos) de sete comunidades da Ásia Menor (1,20; 2,1-3,14). .
Mais: os primeiros escritores cristãos após os Apóstolos nos séculos I/II dão a ver a consolidação
da hierarquia da Igreja, com seus bispos, presbíteros e diáconos; os principais nomes a citar são os de
S. Clemente de Roma († 96 aproximadamente), S. Inácio de Antioquia († 107 aproximadamente),
São Policarpo de Esmirna (t156), S. Irineu de Lião († 202)...
3. As considerações até aqui propostas tendem a evidenciar por que um cristão pode e deve
aceitar o sacramento da Igreja, decorrente do Sacramento da Encarnação ou de Jesus Cristo. Esta
proposição é, de resto, muito claramente desenvolvida pela Constituição Lumen Gentium do
Concílio Vaticano II:
"O único Mediador Cristo constituiu e incessantemente sustenta aqui na terra a sua santa Igreja,
comunidade de fé, esperança e caridade, como organismo visível, pela qual difunde a verdade e a
graça a todos. Mas a sociedade provida de órgãos hierárquicos e o corpo Místico de Cristo, a
assembléia visível e a comunidade espiritual, a Igreja terrestre e a Igreja enriquecida de bens
celestes, não devem ser consideradas duas coisas, mas formam uma só realidade complexa, em que
se fundem o elemento humano e o divino. É por isto, mediante uma não medíocre analogia,
comparada ao mistério do Verbo Encarnado. Pois, como a natureza assumida indissoluvelmente e
unida a Ele serve ao Verbo Divino como órgão vivo de salvação, semelhantemente o organismo
social da Igreja serve ao Espírito de Cristo, que o vivifica para o aumento do Corpo " (no 8a).
Passemos agora a uma questão de âmbito mais amplo.

Lição 5: E por que a fé?


O regime da fé é o do claro-escuro e da penumbra - o que vem a ser incômodo para o homem. No
plano físico todos desejam caminhar na luz, e não nas sombras; sempre que estas ocorrem, o homem
procura acender a luz, que lhe oferece segurança e garantia, em vez das incertezas da penumbra. No
plano espiritual, porém, é norma solene do Novo Testamento: "O justo vive ia fé" (Rm 1,17; Gl 3,11;
Hb10,38; cf. Hb 2,4).
Porque a Providência Divina quis dispor que assim nos endereçássemos a Deus?
- A resposta será deduzida da imagem da amizade existente entre os homens. Esta é tomada como
figura do relacionamento entre Deus e as criaturas pelo próprio Jesus em Jo 15,14s 37 e pelo Concílio
do Vaticano 11 em sua Constituição Dei Verbum (sobre a Palavra de Deus):
Aprouve a Deus, em sua bondade e sabedoria, revelar-se a si mesmo e tornar conhecido o
mistério de sua vontade (cf. Ef 1, 9), pelo qual os homens, por intermédio do Cristo, Verbo feito
carne, e no Espírito Santo, têm acesso ao Pai e se tornam participantes da natureza divina (cf Ef 2,
18; 2Pd 1, 4). Mediante esta revelação, portanto, o Deus invisível (cf. Cl 1, 15; 1Tm 1, 17), levado
por seu grande amor, fala aos homens como a amigos (cf. Ex 33,11; Jo 15,14s), e com eles se
entretém para os convidar à comunhão consigo e nela os receber".
Voltemo-nos, pois, para a realidade da amizade entre os homens. - Esta costuma nascer entre duas
pessoas que reconhecem uma na outra pontos comuns ou predicados semelhantes; tal afinidade é
exigida para que possa brotar uma simpatia mútua; é ela que leva um a procurar o outro. Mas
observemos que nenhum amigo se abre plenamente ao amigo no primeiro encontro; é preciso que
haja amadurecimento e progresso do "querer bem" para que aos poucos um se revele ao outro;
somente numa fase evoluída da amizade se dá a plena e íntima manifestação entre amigos.
Ora Deus quis entrar em relacionamento de amizade com o homem. Isto quer dizer duas coisas:
1) Ele se revelou á criatura, manifestando-lhe seu plano de amor mediante palavras e gestos. A
pessoa e a obra de Jesus Cristo são altamente significativas; despertam a atração e o interesse do
homem, provocando assim um começo de aproximação do homem em relação a Cristo e ao Pai;
2) mas a própria figura de Jesus Cristo, se é convincente ou persuasiva, não é constrangedora: não
se impõe ao homem pela plena evidência da sua identidade; resta em Jesus algo de misterioso para
quem começa a aborda-lo.
Deus quis que as coisas fossem tais que a adesão do homem a Jesus e ao Evangelho seja livre e
não forçada. Com efeito; toda verdade evidente me obriga a dizer Sim, ainda que eu não o queira 38.
Tal, porém, não é o caso da mensagem da fé; Deus quer ser aceito e amado livremente por criaturas
livres; a fé é um ato de livre oferta a Deus. Somente com o tempo ou com o progresso da vida
espiritual, com o amadurecimento e a consolidação da fé é que a penumbra se vai clareando, as
sombras se vão dissipando até que cederão um dia à plenitude da luz ou à visão beatifica. No dia em
que virmos Deus face-à-face, não procuraremos outro bem; nossas aspirações serão de tal modo
preenchidas que não nos restará desejo de não aderir a Deus (desejo que sempre nos ameaça na tema,
quando vemos Deus mediante as criaturas ou na penumbra originada pelas coisas criadas). Nossa
vontade se atirará em Deus, sem querer deixar de lhe dizer Sim. Entrementes, porém, só conhecemos
Deus "por espelho e em enigma" (1Cor 13,12); conhecemos o Absoluto como um bem ao qual fazem
concorrência outros bens, em aparência "mais sedutores"; estamos no tempo da peregrinação, da
demanda, da provação e comprovação!
Aliás, o fato de que as verdades da fé ultrapassam o alcance de nossa inteligência, se, de um lado,
nos deixa sôfregos e insatisfeitos, de outro lado é fonte de alegria e paz. Com efeito, como diz
Pascal, o homem foi feito para se ultrapassar constantemente ou pata se realizar em algo maior do
que ele mesmo; o homem é resposta exígua demais para o próprio homem; só o Absoluto ou Deus o
sacia. Por conseguinte, sempre que nos defrontamos com proposições da fé, que transcendem nossa
medida, podemos estar certos de que são elas que correspondem às nossas autênticas medidas.
Os pensadores gregos perceberam este paradoxo, quando definiram o homem como um "ente de
fronteira" posto em equilíbrio instável entre os animais e os deuses; sim, para os gregos, os deuses
eram consumados em sua existência imortal e bem-aventurada; os animais também bastam a si
mesmos, desde que encontrem alimento e o necessário para sobreviver. O homem não é assim: nem
goza da satisfação dos deuses nem se dá por realizado apenas com a sua existência animal; ele é
repuxado, de um lado, pelo peso da sua animalidade e, de outro lado, pela insaciável sede do
Absoluto: não lhe basta viver simplesmente as dimensões do homem terrestre para ser
37
"Ser amigo de Deus" é uma das facetas do relacionamento do homem com Deus, atestado pela Sagrada Escritura desde o Antigo Testamento (cf. Gn
15,6: Gl 3,6; Rm 4,3; Tg 2,23). Há, sem dúvida, outras maneiras de ilustrar esse relacionamento; o homem é dito "filho de Deus" (e, de fato, o é),
conforme 1 Jo 3, 1s Em suma, tudo o que se refere a Deus, transcende qualquer categoria da linguagem e da mente humanas.
38
Assim, por exemplo, dois mais dois são quatro, a soma dos ângulos de um triângulo equivale a dois retos, o todo é maior do que qualquer das suas
partes... são proposições tão evidentes que sou obrigado a aceilá-las, ainda que contrariado (quem tem dividas pesadas, preferiria que 2+2 equivalesse a
3, 9ou menos ...!).
autenticamente humano; os bens que correspondem á medida humana, são incapazes de saciar o
homem. Se há consumação para este, há de ser num valor que ultrapasse os limites da sua natureza.
Em consequência, não há porque nos assustarmos quando verificamos que a mensagem da fé é trans-
racional; é precisamente esta nota que permite á fé levar o homem á sua genuína realização; uma
mensagem meramente filosófica pouco significado teria no caso.
Estas ponderações explicam o porquê do incômodo resultante do claro-escuro da fé: é condição
para que nossa entrega a Deus tenha o valor e a natureza de um gesto livre; é também o indício da
autenticidade mesma da fé. A mensagem de Deus é suficientemente clara para que a adesão do
homem seja razoável e inteligente (não cega, nem meramente senti mental ou emotiva), mas é
também suficientemente obscura para que nosso Sim seja livre ou exija a participação da nossa
vontade.
Comenta sabiamente André Léonard:
"A figura de Jesus Cristo se apresenta com bastante clareza e coerência para que a fé seja
possível e razoável da parte do homem, mas ela comporta também a obscuridade e o mistério
necessários para que a opção da criatura seja livra; quem não aceita, pode dizer-lhe Não. Essa
espécie de pudor metafísico de Deus, ao se revelar, decorre do respeito de Deus ao seu próprio
mistério e da discrição do mesmo frente à liberdade do homem. Poderíamos imaginar um autêntico
namorado que, logo de início, impusesse à pessoa amada a nudez, sem véus, da sua alma, do seu
coração e do seu corpo?" (André Léonard, Les raisons de croire. Paris 1987, p.120).
Feliz o cristão que compreende esse plano de Deus que o interpela e vai atraindo paulatinamente!

PERGUNTAS
1) Explique a importância do mistério da Encarnação para o Cristianismo.
2) Como a Igreja se insere neste mistério ?
3) Como a Igreja Católica se distingue das demais comunidades eclesiais cristãs?
4) Porque a Igreja de Cristo tem seu aspecto jurídico?
5) Porque o Senhor Deus quer que os homens vivam o regime da fé ?

MÓDULO 34: A HISTÓRIA JULGA O CRISTIANISMO


Não é raro ouvirem-se objeções ao Cristianismo provenientes da parte dos historiadores.
Principalmente nos últimos tempos tem-se dito que a obra de Cristo fracassou; e, para prová-lo,
apontam-se quadros "escabrosos", antigos e contemporâneos, de sua história.
As páginas que se seguem, levando em conta essas dificuldades, considerarão primeiramente o
sentido dos episódios obscuros da história da Igreja. A seguir, tentarão chamar a atenção para o que a
história do Cristianismo apresenta de positivo ao lado de seus pontos tidos como escabrosos. O
confronto gerará luz ...

Lição 1: Na fraqueza do homem, a força de Deus


1. Quem considera o fenômeno "Cristianismo", descobre nele aspectos contraditórios: Muitos
deles são positivos. O Cristianismo purificou a mentalidade dos homens, elevou os costumes da
sociedade. Formou e instruiu os povos bárbaros, que se tomaram sustentáculos da civilização
ocidental. Fomentou o cultivo das artes e o estudo das ciências através dos séculos. - Fora do
Ocidente europeu, o Cristianismo educou numerosas populações primitivas, dando-lhes a fé e a
cultura. Grandes nomes de santos e heróis (monges, bispos, cavaleiros, virgens consagradas, mães de
família ...) marcam de ponta a ponta os vinte séculos de história de Igreja.
Inegavelmente, porém, há fases pouco edificantes na história da Igreja. Basta lembrar o século X
(dito "século obscuro" ou "de ferro"), o século XVI (época do humanismo paganizante e da cisão
luterana). Nem todos os supremos Pastores da Igreja foram santos; nem todos os que têm professado
a fé cristã, a viveram coerentemente.
O estudioso liberal, considerando esses episódios sombrios da história, tende a condenara própria
Igreja; tais fases parecem-lhe constituir o mais irrefragável testemunho de que a Igreja nada tem de
sobrenatural e, por conseguinte, não pode pretender ser mestra da verdade.
2. O cristão olha para os mesmos quadros da história com olhar um tanto diferente. Não pretende
esquivar-se à realidade dos fatos. Mas considera as falhas dos homens da Igreja dentro de um quadro
mais amplo, que é o da Encarnação. Explanando esta perspectiva, diz o P. Congar, um dos maiores
teólogos do nosso século, que a comunicação de Deus aos homens "se realiza numa encarnação em
que Deus não segue a sua lógica própria, nem a lógica de espíritos puros, mas uma lógica de
homens".
Isto quer dizer, em outros termos, que a santificação da humanidade não se realiza de maneira
apocalíptica ou milagrosa, mas de acordo com os moldes da condição humana; Deus, tendo criado o
homem livre, julgou que a salvação da humanidade não se deveria dar sem a participação desse
mesmo homem livre. Neste sentido é que se pode dizer que "Deus precisa dos homens".
3. De tais considerações se seguem importantes conclusões para a história da Igreja.
Esta tem por atores homens livres. Os atos desses homens, mesmo que sejam homens de fé e de
grande ideal, não podem deixar de apresentar, como qualquer outro ato humano, suas motivações
humanas (por vezes, mesmo muito humanas), que é possível analisar, e suas limitações humanas, que
é possível avaliar.
Essas limitações podem-se situar
a) na linha da inteligência e do temperamento. Nem sempre os atores da história da Igreja
(bispos, presbíteros ou leigos) tiveram a devida competência humana ou natural para agir, nem
sempre foram devidamente informados antes de decidir, nem sempre compreenderam as situações
em que tinham de intervir - ressentiram-se, por vezes, de estreita visão da realidade - foram, vez por
outra, lentos na tarefa de se adaptar á evolução dos homens e das circunstâncias (porque não
percebiam bem a necessidade de evoluir ou se sentiam sufocados pelas dimensões das obras a
empreender).
Essas limitações deram ocasião ás chamadas "faltas históricas" (deficiências ou lacunas da
história da Igreja), acontecimentos infelizes, que não implicam necessariamente culpa pessoal em
quem as comete, mas que acarretam conseqüéncias as vezes mais pesadas e trágicas do que as de
pecados pessoais.
b) Outro tipo de limitações dos homens da Igreja é o de índole moral. Deve-se reconhecer que
cometeram infidelidades, por vezes graves. A Providência não quis que de tais faltas fossem
isentos nem os santos (estes podem ter cometido erros, de que posteriormente se terão
arrependido), nem os pastores mais elevados (pois infalibilidade papal não se confunde com
impecabilidade).
De resto, os documentos da história da Igreja atestam não somente as falhas acima apontadas, mas
também o reconhecimento dessas falhas por parte dos próprios pastores da Igreja.
Assim o Papa Adriano VI (1522-23) dava as seguintes instruções ao legado que o representaria na
Dieta de Ratisbona, após o cisma de Lutero:
"Dirás que reconhecemos livremente que Deus permitiu esta perseguição da Igreja por causa dos
pecados dos homens, e, de modo especial, dos sacerdotes e dos prelados... A Escritura Sagrada
ensina-nos com ênfase que as faltas do povo têm suas fontes nas faltas do clero... Sabemos que,
mesmo na Santa Sé, anos atrás, foram cometidas abominações numerosas, abusos das coisas
sagradas, transgressões dos mandamentos, de tal sorte que tudo redundou em escândalo"(transcrito
de L. von Pastor, Histoire des Papes t. IX, pág. 103s).
Quando se concluiu o Concílio de Trento, o Cardeal de Lorena, evocando a reforma protestante,
exclamou:
"Tendes o direito de nos perguntar qual a causa de tal tempestade. Quem acusaremos nós, irmãos
Bispos?... Foi por causa de nós que esta tempestade se levantou, meus Padres. ... O juízo começa pela
casa do Senhor (cf. I Pd 4,17). Purifiquem-se aqueles que trazem os vasos do Senhor (cf. Is 52,1 I)"
(cf. Concilium Tridentinum, ed. Görres, t. IX, 1924, pág. 163s).
São Vicente de Paulo, santo como era, observava:
"Foi mediante os sacerdotes que os hereges prevaleceram, o vicio reinou e a ignorância
estabeleceu o seu trono em meio ao povo pobre" (citado por J. Delarue: L’idéal missionnaire du
prêtre d’après saint Vincent de Paul. Paris 1947, pág. 283).
Tais testemunhos, impressionantes por sua sinceridade, e os fatos que eles supõem, nada têm que
surpreenda um fiel cristão. Com efeito, as manifestações de Deus através da sua Igreja estão sujeitas
às condições ordinárias do "humano". Visto que a Igreja - Corpo de Cristo e Templo do Espírito
Santo - é, em sua face externa, constituída de homens que conservam sua personalidade humana,
visto também que Ela é dirigida, segundo a vontade de Cristo, por homens que agem com suas
qualidades e seus defeitos humanos, torna-se compreensível que haja lugar para erro e pecado na
vida dos membros da Igreja. Só tem garantia de infalibilidade o magistério da Igreja (ordinário e
extraordinário) quando se pronuncia sobre questões de fé e de Moral, coma intenção de definir
proposições a ser aceitas por todo o povo de Deus. Ver a parábola do trigo e do joio em Mt 13, 24-
30, 36-43, à p. 172 deste Curso.
O magistério ordinário é o ensinamento cotidiano dos Bispos, espalhados pelo orbe e unidos ao
Bispo de Roma (o Papa). O magistério extraordinário é exercido pelos Concílios Ecumênicos e
pelos Papas, quando têm em vista falar em termos definitivos sobre assuntos de fé e Moral Quem
esquecesse o papel do humano na Igreja, cairia em nova modalidade da antiga heresia dita
"monofisitismo" (séc. V/VIII).
O monofisitismo ensinava que em Cristo a natureza humana fora totalmente absorvida pela
divina, após a ressurreição do Senhor. Essa escola menosprezava a humanidade do Senhor Jesus.
Atitude semelhante é a de quem se surpreende com procedimentos humanos no Cristo prolongado,
que é a S. Igreja.
4. Deve-se mesmo dizer que, para o fiel católico, os aspectos escabrosos da história da Igreja,
longe de ser sinal de inautenticidade dessa Igreja, constituem um dos mais fortes argumentos em
favor da índole sobrenatural dessa sociedade.
Em nossos tempos o Papa João Paulo II tem pedido perdão repetidamente por falhas dos filhos da
Igreja. É de notar que não menciona "falhas da Igreja", mas "falhas dos filhos da Igreja".
Implicitamente retoma a distinção entre pessoa e pessoal da Igreja: pessoa seria a Igreja Corpo de
Cristo, que o Senhor vivifica e ao qual garante a fidelidade ao Evangelho; pessoal seriam os fiéis que
nem sempre obedecem ás normas da Santa Mãe Igreja. O pecado está na Igreja, mas não é da Igreja;
é resquício da velha criatura dentro da novidade da criatura oriunda do Batismo e da inserção em
Cristo. - O vaticanista Luigi Accattoli publicou em 1997 o livro Quando o Papa pede perdão, em
que recolhe 94 textos nos quais João Paulo II pede perdão aos africanos, aos indígenas, aos não
católicos... tendo em vista preparar a Igreja para o terceiro milênio: cf. Ed. Paulinas, São Paulo l997.
A fraqueza dos homens teria feito soçobrar o Barco de Pedro se não fora a constante ação de Deus
mesmo nesse Barco; quanto mais sombrios parecem certos quadros da história da Igreja, mais
concorrem para manifestar a presença e a eficácia do Senhor no desenrolar dessa história. Se a Igreja
subsiste até hoje - e subsiste como foco de luz (verdade) e calor (amor) entre os homens - isto se
deve unicamente ao fato de que é Deus quem a sustenta, garantindo-lhe o exercício de sua missão na
terra, através (e apesar) da fraqueza dos homens que a integram.
Estas considerações se tornam especialmente significativas para quem se detenha um pouco sobre
as origens da Igreja. É então que de maneira particularmente lúcida se evidencia o caráter
sobrenatural da Esposa de Cristo.
Donde o novo título:
Lição 2: As origens do Cristianismo
Tem-se dito que a história da Igreja, principalmente em seus inícios, é autêntico portento de
ordem moral.
Esta afirmação se apoia nos quatro seguintes tópicos:
1) O Cristianismo conheceu, nos seus princípios, rápida e extraordinária expansão,
2) embora tivesse de enfrentar gigantescos obstáculos,
3) e contasse com insuficiência de meios.
4) Produziu assim verdadeira revolução moral.
Consideremos de per si cada uma das proposições acima.

l) Rápida expansão
Os antigos não se preocupavam com estatísticas, nem tinham os meios adequados para realizá-las.
Não obstante, podem-se encontrar no decorrer da história documentos sucessivos que dão a ver a
difusão do Evangelho em seus primeiros tempos.
Pode-se dizer que, pouco depois da Ascensão do Senhor, o Cristianismo já contava milhares de
adeptos dispersos ao redor da bacia do Mediterrâneo.
Em 64,o Imperador Nero deu início à perseguição aos cristãos na cidade de Roma. O escritor
romano Tácito refere que foi então martirizada "imensa multidão" (Anais 15,44) de discípulos de
Cristo - o que sugere notável propagação da fé cristã trinta e um anos após a morte do penhor.
Em 112, oitenta e dois anos após a Ascensão, a Ásia Menor se fez ouvir a respeito dos cristãos. -
Plínio o Jovem, Governador da Bitínia (Ásia Menor), escrevia ao Imperador Trajano, dizendo-lhe
que "o contágio dessa superstição havia atingido não somente as cidades, mas também as aldeias e os
campos" (Epístola X). O Cristianismo, na Ásia Menor, modificara a vida social a ponto de inquietar
os partidários da antiga ordem: os templos pagãos estavam mais ou menos desertos, desprezavam-se
os cultos oficiais do Império, o comércio de animais para os sacrifícios pagãos corria sério perigo de
estagnação.
Em cerca de 187, Tertuliano assim se dirigia aos perseguidores no seu Apologético: "Se
quisermos agir não como vingadores clandestinos, mas como inimigos declarados, faltar-nos-ão
efetivos? São talvez mais numerosos do que nós os Mouros, os Marcomanos e os próprios Partos?
Uma população qualquer, limitada a uma região e encerrada em seus confins próprios, será acaso
mais numerosa do que aqueles que estão disseminados por todas as partes da terra? Somos apenas de
ontem, e já enchemos o mundo. Encontramo-nos hoje em tudo que é vosso: nas cidades, nas ilhas,
nas fortalezas, nos municípios, nos pequenos burgos e mesmo nos campos, nas tribos, nas cúrias, no
senado e no foro. Não vos deixamos senão os vossos templos vazios. Sem pegar em armas e sem
mover uma rebelião aberta, poderíamos combater-vos, afastando-nos com o desdém de um recesso.
Dada a grande multidão que somos, se nos separássemos de vós, retirando-nos para um lugar
distante, a perda de tantos cidadãos (não importa quem sejamos nós) solaparia o vosso orgulho de
soberanos do mundo... Convosco ficaria maior número de inimigos do que de súditos. Eis, porém,
que agora é menor o número dos vossos inimigos por mérito desta multidão de cristãos, pois, na
verdade, tendes súditos cristãos em quase todas as vossas cidades e populações".
O leitor fará o desconto exigido pela ênfase de um orador inflamado do Norte da África. Todavia
pode-se dizer que a idéia acima expressa por Tertuliano era, em suas grandes linhas, exata; já no fim
do século II a Igreja, pelo número de seus membros e por sua projeção na sociedade, era um poder
com que o Império Romano devia contar.

No início do ano 300 defronta-se outro testemunho, especialmente valioso porque proveniente de
um pagão. O Imperador Maximino escrevia a Sabatino uma carta, onde se lia:
"Creio que sabeis, tu e todos os cidadãos, como os nossos chefes e pais Diocleciano e
Maximiano, vendo que quase todos os homens abandonam o culto dos deuses e se unem á seita dos
cristãos, com razão estabeleceram... que ficassem de novo chamados ao culto tradicional mediante
pública correção e suplício".
Em 3450 escritor Firmício Materno indagava:
"Em que parte da terra se encontra uma aldeia que não tenha sido conquistada pelo nome de
Cristo? O Oriente e o Ocidente, o Norte e o Sul foram preenchidos pela majestade desse nome. É
verdade que em algumas regiões ainda se movem os membros moribundos da idolatria, mas estamos
próximos do momento em que esta moléstia pestífera estará totalmente erradicada em todas as
localidades " (De errore profanarum religionum).
Tinha, pois, razão o historiador liberal Adolfo Harnack († 1930), quando afirmava:
"É ocioso perguntar se a Igreja teria vencido, mesmo sem Constantino. Um Constantino devia,
cedo ou tarde, aparecer. Como quer que seja, mesmo antes de Constantino, a vitória do
Cristianismo já estava decidida em toda a Ásia Menor e seguramente preparada nas demais regiões
do Império " (Mission und Ausbreitung des Christentums).
O mesmo autor afirmava que em 312 (um ano antes da paz de Milão, outorgada por Constantino
aos cristãos) o Oriente contava cerca de 900 dioceses e o Ocidente 600. Donde concluía Harnack:
"Creio que o Cristianismo se propagou com extraordinária rapidez... Os Padres da Igreja no século
IV tinham razão ao se surpreender com os progressos que a sua fé tinha feito de geração a geração"
(ob. cit.).
Note-se ainda que o Cristianismo, tendo começado a se propagar nas classes mais humildes da
sociedade, não se limitou a estas; já no século II nobres, intelectuais, oficiais da corte e membros da
família imperial foram atingidos pela Boa-Nova. O historiador Eusébio de Cesaréia († 340
aproximadamente) atesta que "toda a corte de Valeriano (253-260) era cheia de homens timorados e
parecia uma igreja de Deus" (História da Igreja V 21).

2) Os obstáculos à expansão
a) Os destinatários greco-romanos aos quais se dirigia a pregação cristã, achavam-se em nível
moral extremamente baixo: os vícios eram não somente praticados, mas até venerados nas figuras
das divindades do paganismo. A sodomia, o adultério, o lenocínio, o infanticídio, a crueldade
constituíam, por vezes, o espetáculo público tanto dos nobres como das massas.
Foi precisamente a esse mundo que os arautos cristãos pregaram a moral mais pura e exigente:
"Bem-aventurados os que têm o coração puro, ... os que têm o espírito de pobre,... os que choram".
Apresentavam como troféu uma cruz, que, para os antigos, devia ser o que uma forca é para nós.
Quem se convertesse, devia contar coma perspectiva da perseguição e do martírio. Não obstante, em
um século milhões de pessoas aceitaram tal mensagem dura e acolheram o martírio como festa
nupcial.
No séc. II podia S. Justino dizer aos pagãos:
"Nós, que nos afogávamos na impureza, agora abraçamos a castidade; nós que praticávamos a
magia, agora nos consagramos ao Deus bom e eterno. Outrora procurávamos acima de tudo o ouro e
as riquezas, agora os pomos em comum e fazemos que os pobres os compartilhem. Outrora éramos
divididos pelos ódios e as vinganças; considerávamos como estrangeiros os que não eram da nossa
estirpe; agora, porém, convivemos em paz e oramos por nossas inimigos. Isto tudo acontece a partir
do dia em conhecemos a religião de Cristo "(I Apologia 14).
Verdade é que também os filósofos estóicos (Sêneca, Epicteto...) apresentavam ao mundo uma
moral elevada. Mas tiveram poucos seguidores; o estoicismo ficou sendo um fenômeno confinado a
grupos de intelectuais e aristocratas. Ao contrário, o Cristianismo foi contagiante para todas as
categorias da população pagã.
Ainda outros obstáculos ao Cristianismo merecem menção:
b) Jesus era um judeu, filho de estirpe desprezada por todos os povos de sua época, em particular
por gregos e romanos. Mais ainda: os cristãos eram tidos como membros de uma seita judaica,
adeptos de superstição funesta e de uma das crenças mais abjetas que haviam entrado em Roma.
Esse mesmo Jesus passara por réu, condenado ao suplício mais degradante, após processo legal.
Em vista do que, dizia São Paulo que pregar o Cristo crucificado constituía "escândalo para os judeus
e loucura para os pagãos"(1 Cor 1, 23).
c) O Cristianismo se apresentava como religião exclusivista em relação às demais crenças
religiosas. Apregoava monoteísmo rígido, sem tolerar o mínimo vestígio de sincretismo, profligava
até os deuses de Roma - o que parecia pôr em perigo a subsistência de Roma e dava motivo a que os
cristãos fossem acusados de lesa-pátria e ódio ao gênero humano.
d)A conversão ao cristianismo ocasionava freqüentemente dolorosas tragédias de família: por
causa de Cristo, houve filhos que se viram deserdados por seus pais, esposas repudiadas ou mesmo
acusadas por seus maridos diante dos tribunais, crianças martirizadas em presença dos genitores.
Quem se convertesse ao Evangelho, corria o risco de sofrer o confisco de seus bens, a perda de um
cargo público, graves calúnias, miséria e desprezo.
Em uma palavra, pode-se dizer que o Cristianismo encontrou, conjuradas contra si, todas as forças
de que uma sociedade pode dispor: o poder governamental e a opinião pública, a ciência dos
intelectuais e os preconceitos do povo, a policia e as leis... Sustentou a luta durante quase três
séculos, e saiu vencedor.

3) Insuficiência de meios
Os recursos mediante os quais o Cristianismo se difundiu, foram os mais exíguos possíveis.
Os arautos da Boa-nova não eram filósofos, nem oradores, mas um grupo de homens rudes que
não tinham aprendido a falar senão o próprio dialeto; ignoravam os métodos da propaganda, não
tinham em si mesmos nem coragem, nem poder de fascinação nem senso de organização... Não
obstante, foi deles que procedeu a conquista do mundo greco-romano. O mais poderoso Império da
antigüidade se defrontou com uma população de fiéis inermes, que se deixaram degolar e queimar
vivos..., finalmente a vitória coube não ao Império, mas ao ideal dos mártires (em 313, foi
promulgada a Paz de Milão).
Dirá talvez alguém: o Cristianismo prevaleceu porque esposou a causa dos míseros e oprimidos,
despertando neles a esperança de uma redenção social... - Em verdade, não se poderia dizer que os
primeiros arautos do Evangelho hajam prometido aos pequeninos bem-estar terrestre, mudança de
condições econômicas ou sociais, liberdade civil..., ao contrário, o que eles podiam prever para seus
seguidores, eram insultos e perseguições. Donde se pode concluir com São Paulo (1Cor 2, 1-5) que o
sucesso da pregação cristã não se explica por fatores e artifícios humanos, mas unicamente por
intervenção da Providência Divina, que houve por bem produzir com recursos inadequados os mais
estupendos efeitos.
Há, porém, quem recorde, a esta altura, a notável expansão do Budismo e do Islamismo, que hoje
em dia contam milhões de adeptos. - Em resposta, deve-se observar que budistas e maometanos não
sofreram três séculos de perseguição ao nascer. O Budismo ficou confinado aos povos da Ásia.
Quanto ao Islamismo chegou mesmo a servir-se da guerra santa para garantir a sua propagação. Ao
contrário, a difusão do Evangelho no Império Romano se fez mediante pregação e persuasão apenas,
num ambiente hostil.

4) Revolução Moral
Há ainda outro tópico importante a considerar nas origens da Religião Cristã: a renovação moral
que ela acarretou para a humanidade.
Considere-se a família no Império Romano. - As leis civis permitiam o aborto, o infanticídio, a
venda dos filhos... A consciência de Sêneca, um dos maiores moralistas romanos, não se surpreendia
diante de tais crimes; ao contrário, observava:
"Quando matamos os cães furiosos... e submergimos as crianças fracas ou monstruosas, não o
fazemos movidos pela cólera, mas pela razão " (Sobre a ira I, 1. 5).
A mulher, no paganismo, era vilipendiada pela poligamia, o adultério, o divórcio, a prepotência
do marido... Depois de casada, podia ser tratada pelo esposo como um objeto qualquer de
propriedade dele; podia ser repudiada por motivos fúteis ou ser entregue em herança como um ser
inanimado.
O Cristianismo reformou esses costumes: reconheceu na mulher a dignidade da natureza do
próprio homem; de instrumento da volúpia, transformou-a em companheira e conselheira do marido,
destinada a compartilhar com ele as responsabilidades do lar e a educação dos filhos. A Moral cristã
rejeitou o aborto, condenou o infanticídio e proibiu a venda de filhos. Declarou o matrimônio uno e
indissolúvel, e enalteceu o valor da prole. Observa muito bem Giovanni Albanese:
"O pai pagão que incita a ama a lançar o filho recém-nascido ao lixo da rua... O mártir cristão
Leônidas, que descobre o peito de seu filhinho Orígenes adormecido e o beija com veneração como
sendo o templo do Espírito Santo: eis concretizados dois mundos, duas filosofias" (Alfa ricerca
della fede. Assisi l969, pag. 276).
Observe-se também o influxo do Cristianismo sobre a sociedade civil. - A tirania e o despotismo
foram condenados, a autoridade reconhecida dentro dos justos limites. O homem aprendeu, pela
primeira vez na história, que ele é livre do fato e do destino, livre para viver segundo a sua
consciência. O Cristianismo, embora não tenha excitado os homens à rebelião armada, formulou e
difundiu os princípios de igualdade e fraternidade em virtude dos quais seriam paulatinamente
repudiadas aí discriminações baseadas sobre a raça, o sexo, a prepotência, a política, a nacionalidade.
Foi o Cristianismo que pela primeira vez proclamou aos homens: "Já não há judeu, nem grego, nem
escravo, nem livre; nem homem, nem mulher; mas todos sois um sã em Cristo" (Gl 3,28).
O Evangelho ensinou que não há estrangeiros a odiar, nem bárbaros a escravizar, mas apenas, e
em toda parte, irmãos a amar: "Amai os vossos inimigos e orai por vossos perseguidores" (Mt 5,44).
Por isto podia Tertuliano (séc. III) dizer: "Só reconhecemos uma república para todos: o mundo"
(Apologético 38).
O Cristianismo, portanto, foi a grande revolução moral da história. Soube transformar os homens
a partir de qualquer nível moral, elevando-os ao heróico exercício da virtude através de todos os
séculos.
Não há dúvida, nem todos os cristãos são o que deveriam ser. No quadro destas páginas, porém,
basta mostrar que o Evangelho possui a força para transformar os homens, desde que estes se deixem
penetrar por ele. De resto, se tantos cristãos são pouco edificantes, eles o são não em conseqüência
do Cristianismo, mas por incoerência com o Cristianismo, não por serem cristãos, mas por serem
pouco cristãos.
Em conclusão: a rápida expansão do Cristianismo nos primeiros séculos, apesar dos ingentes
obstáculos que encontrou, e da exiguidade de meios com que contou, expansão que marcou
profundamente os rumos da história, esse fenômeno, parece não encontrar explicação satisfatória no
mero jogo dos fatores humanos. É, antes, o sinal de que Deus mesmo é o Autor e Sustentáculo da
Religião Cristã.

PERGUNTAS
1) Que se entende por "Monofisitismo na Igreja "?
2) Diga algo sobre a rápida expansão do Cristianismo
3) Porque o Cristianismo encontrou obstáculos á sua expansão?
4) Com que meios o Cristianismo podia contar para se expandir?
5) Como o Cristianismo revolucionou a sociedade?
6) Que é que se conclui de um exame da história do Cristianismo?

MÓDULO 35: QUAL É A IGREJA DE CRISTO?


Não é raro hoje em dia encontrar pessoas que se entusiasmam por Cristo, reconhecido e amado
através dos Evangelhos, mas se interrogam a respeito da Igreja de Cristo. A série de Congregações
Cristãs que trazem o nome de "Igreja" é enorme: pentecostais, batistas, presbiterianos, metodistas,
luteranos, anglicanos, adventistas... constituem "Igrejas" ao lado da Igreja Católica. Qual dessas
escolherá o discípulo de Cristo que deseje viver comunitariamente a fé cristã? A qual se filiará?39
A estas questões dedicaremos as páginas que se seguem, tencionando abrir pistas diante de
dúvidas que a esse respeito se põem cada vez mais freqüentemente em nossos dias. – O estilo do
Módulo será intencionalmente sintético, tendo em vista apenas atender ao questionamento proposto.

l. Poderíamos procurar assim...


Obviamente falando, dir-se-ia que a resposta às questões atrás formuladas é a seguinte: a Igreja de
Cristo é a mais santa, a mais fervorosa e missionária das comunidades cristãs. Por conseguinte,
procure o amigo de Cristo qual das diversas Igrejas existentes em sua cidade é a que mais parece
praticar o amor ensinado por Cristo e mais entusiasma os seus membros... Será a Igreja Batista? Caso
julgue que sim, o candidato far-se-á batista. Se julgar que é a Igreja Pentecostal que mais satisfaz aos
preceitos do Evangelho, o amigo de Cristo tornar-se-á pentecostal. Dado, porém, que a Igreja
escolhida não corresponda às expectativas do fervoroso candidato, este poderá tranqüilamente mudar
de Igreja, aderindo a outra ou mesmo ficará sem Igreja, caso em nenhuma encontre a realização do

39
A pertença à Igreja, embora seja contestada e menosprezada por muitos cristãos, é inerente ao título mesmo de Cristão. Deus não quis santificar os
homens de maneira meramente individual, mas, tendo feito o homem social, quer também atrai-lo a Si em sociedade ou na Igreja. O Evangelho e as
cartas de São Paulo atestam eloqüentemente esta verdade. Cf. Mt 18,1-35; E( Cl.
ideal cristão concebido por ele. Apenas um elemento parecerá essencial a tal cristão: a Bíblia, pois
nesta ele julgará encontrar o mais importante, ou seja, a doutrina de Cristo que, recebida pela fé,
salvará o leitor da Bíblia. Esse cristão poderá ficar fora da Igreja ou sem Igreja, nunca, porém, sem a
Bíblia...
A história que acaba de ser esboçada, é realmente a de não poucos cristãos - católicos e
protestantes -, que se dão por insatisfeitos com as falhas humanas da Igreja em que começaram a
viver o Cristianismo. Vêm a ser angustiados e instáveis, pois nunca encontram a vivência ideal ou a
santidade perfeita entre os homens seus irmãos.
Vê-se, porém, que tal método de procura da Igreja é falho: baseia-se em critérios humanos
(santidade, virtude, bom comportamento dos homens...), que podem decepcionar duramente quem se
queira apoiar neles.
Por isso passamos a encarar outro tipo de procura da verdadeira Igreja de Cristo.

2. Outra via de procura


1. Disse Jesus Cristo aos Apóstolos antes de lhes subtrair a sua presença visível: "Ide, ensinai
todas as nações... E eu estarei convosco até a consumação dos séculos" (Mt 28,19s).
Estas palavras projetam luz decisiva sobre o problema: Jesus promete sua assistência - penhor de
fidelidade ao Evangelho - aos Apóstolos e aos seus sucessores até o fim dos tempos.
Isto quer dizer que há um critério objetivo para caracterizar e discernir a verdadeira Igreja ou a
Igreja fundada por Cristo: esse critério é a continuidade apostólica desde os tempos de Cristo até hoje
ou mesmo até o fim dos séculos. Esse critério não oscila com a santidade dos homens e permite que a
Igreja de Cristo seja reconhecida com relativa facilidade. Para tanto, basta examinar a história de
cada uma das denominações cristãs que se apresentam ao observador hoje em dia: a luterana começa
com Lutero (1483-1546), a calvinista ou presbiteriana com Calvino (1509-1564) e J. Knox (1514-
1572), a metodista com J. Wesley (1703-17gl ), a adventista com W. Miller (1782-1849) e Ellen
Gould White, a pentecostal com pastores norte-americanos no início do século XX.
2. No Ocidente, apenas a Igreja Católica pode recuar desde os nossos tempos até a época dos
Apóstolos ou até Cristo sem hiato ou interrupção e recomeço. Verdade é que na história da Igreja
Católica houve Papas, bispos e clérigos pouco dignos, que viveram em contradição com o
Evangelho... Não se devem negar as incoerências morais que houve realmente; mas deve-se
reconhecer que Jesus não quis garantir sua assistência infalível aos mais santos ou mais zelosos dos
seus discípulos, mas, sim, aos que continuassem legitimamente a sucessão apostólica. A santidade
ou, em contra-parte, a miséria dos homens não condicionam decisivamente a obra de santificação
que Cristo quer realizar na sua Igreja através dos homens (santos ou não) que Ele chama para
exercerem o ministério apostólico. Também não é à procura da santidade dos homens (valor relativo
e instável) que os cristãos devem andar, mas, sim, á procura de Cristo, que age pelos homens.
Não há dúvida, é para desejar que os sucessores dos Apóstolos se esforcem decididamente por ser
santos e exercer dignamente as suas funções. Quanto mais responsabilidade Cristo confia a alguém,
mais ele exigirá fidelidade e virtude. Cristo disse mesmo que o amor mútuo seria a grande
característica de seus discípulos (cf. Jo 13,34s). Mas, conhecendo a fraqueza dos homens, o Senhor
não quis condicionar o ministério da sua graça á virtude das criaturas. O Senhor mesmo predisse, em
sua parábola de Mt 13,24-30, que o campo (a Igreja) de Deus teria trigo e joio e não se deveria
arrancar o joio antes do fim dos tempos. Em conseqüência, pode-se mesmo afirmar que uma Igreja
em que não houvesse joio ao lado do bom trigo, não seria a Igreja de Jesus Cristo.
3. Dirá, porém, alguém: a Igreja Oriental, chamada "ortodoxa" 40 separada da Igreja Católica
Romana, conserva ininterruptamente a sucessão apostólica; não foi reformada ou recomeçada como
as denominações protestantes do Ocidente. Porque então não dizer que Cristo lhe presta a assistência
infalível prometida em Mt 28,18-20, como a presta à Igreja Romana?

40
"Ortodoxa", porque até o século VII (Concílio de Constantinopla III, 681) defendeu sempre a reta fé ( ortodoxia, em grego) em oposição às heresias
do arianismo, do nestorianismo, do monofisismo e do monotelitismo. Tendo conservado a reta fé (sem heresia), os cristãos orientais se separaram de
Roma em lo54 por iniciativa do Patriarca Miguel Cerulário de Constantinopla.
- Deve-se reconhecer a sucessão apostólica nas comunidades orientais separadas de Roma.
Acontece, porém, que, dentre os doze Apóstolos, quis Cristo escolher um - Pedro – para que fosse o
sinal e o fator de unidade do colégio apostólico. Com efeito, disse Jesus a Pedro:
Mt 18,18s: "Tu és Pedro e sobre essa pedra edificarei a minha Igreja. Dar-te-ei as chaves do
Reino dos céus, e tudo quanto ligares na terra será ligado nos céus, e tudo quanto desligares na terra,
será desligado nos céus".
Jo21, 16s: "Apascenta as minhas ovelhas".
Lc 22,31s: "Simão, Simão, Satanás vos reclamou para vos joeirar como o trigo. Mas eu roguei por
ti, a fim de que a tua fé não desfaleça. E tu, uma vez convertido, confirma os teus irmãos".
Donde se vê que Pedro recebeu, como nenhum outro Apóstolo, a missão de conduzir o rebanho de
Cristo. De modo especial, verifica-se que a fé de Pedro é critério para se distinguirem as autênticas
proposições de fé.
Se, conforme as palavras evangélicas acima, Pedro recebeu de Cristo o primado entre os
Apóstolos, compreende-se que o Apóstolo ou sucessor de Apóstolo que não tenha comunhão com
Pedro já não goza da assistência que Cristo quis prometer a Pedro e ao colegiado unido a Pedro.
Mais: Pedro morreu como bispo de Roma: os seus sucessores em Roma são, pois, herdeiros do
carisma ou da graça do primado que Jesus outorgou a Pedro. É por isto que a Igreja de Cristo se
chama "romana"... Romana, no caso, quer dizer "petrina", ou seja, a Igreja que Cristo quis
estabelecer sobre o fundamento visível que se chama "Pedro". Em conseqüência, também se entende
que as comunidades ortodoxas orientais, tendo-se separado de Pedro, já não se beneficiam daquela
promessa de autenticidade integral que Cristo quis fazer à Igreja chefiada por Pedro.
As comunidades orientais separadas, como também as denominações protestantes, conservam
numerosos valores do patrimônio entregue por Cristo aos Apóstolos. Todavia falta-lhes o valor que
garante a incorrupção dos demais: a união com Pedro, pelo qual Cristo quer reger a sua Igreja.
É na Igreja fundada e regida por Cristo que o cristão encontra a Bíblia, ... e não somente a Bíblia,
mas também a autêntica interpretação desta, pois na Igreja continua a ressoar a palavra de Deus oral,
que é anterior á escrita. Cristo não é simplesmente um mestre - como Sócrates ou Aristóteles - que
morreu e nos deixou uma mensagem consignada em livro por seus discípulos. Mas Cristo continua
vivo não apenas na recordação e no afeto dos seus discípulos e, sim, antes do mais, na realidade da
Igreja que dele se deriva diretamente. É portanto, na Igreja que o cristão encontra o Cristo e a Palavra
de Cristo tanto oral como escrita (Bíblia).
São estas algumas ideias aptas a ajudar o estudioso sincero que deseje, no panorama do
Cristianismo contemporâneo, encontrar Cristo e a Igreja de Cristo - dois valores que não se
distinguem adequadamente e são inseparáveis um do outro.

PERGUNTAS
1) Diga em que consiste a primeira maneira de procurar a Igreja de Cristo.
2) Como avaliar essa via?
3) Qual o modo acertado de procurar a Igreja de Cristo?
4) E as falhas existentes na Igreja fundada por Cristo? Que significado têm?
5) E as comunidades ortodoxas que têm a sucessão apostólica? Como avalia-las?

APÊNDICE "A IGREJA, MINHA MÃE"


Jacques Loew é alguém que teve itinerário de vida assaz acidentado: freqüentou o Catolicismo, o
protestantismo, as rodas do ateísmo amargurado e cético ; voltou-se para o islamismo e o budismo.
Finalmente fixou-se no Catolicismo, onde se fez frade pregador (dominicano), mensageiro da Boa-
Nova entre intelectuais e operários. Ao completar cinqüenta anos de conversão, escreveu o livro Meu
Deus em quem confio, no qual expõe a sua experiência de Peregrino do Absoluto e reflete sobre
vários temas, entre os quais, a Igreja. Dessa obra vão extraídos os seguintes tópicos:
"Instituição e comunhão, tais são as duas faces através das quais abordei a Igreja. Deter-me aí
seria omitir a palavra que hoje me parece a mais essencial para defini-la, a palavra que une, numa
única realidade, estes dois aspectos - face visível e vida secreta - da Igreja única, palavra que, de
modo especial, é da mais antiga tradição dos séculos cristãos.
Sei que muitos a pronunciam com dificuldade e eu mesmo levei tempo para proferi-la. Sem
dúvida, porque ela se apresentava diluída nos anúncios estereotipados de falecimentos: 'confortado
com os sacramentos da Santa Madre Igreja...'.
Sim; a palavra de que me apodero hoje, após cinqüenta anos de vida na Igreja, é a de Mãe.
Compreendida como convém, conduz ao próprio coração do mistério e exprime a razão de ser da
Igreja...
A célebre frase de São Cipriano: 'A Esposa de Cristo gera espiritualmente filhos para Deus... Para
que alguém possa ter Deus como Pai, procure ter antes a Igreja como Mãe!' não é um isolado brado
de entusiasmo, mas o condensado de séculos precedentes.
De São Paulo, que fala da 'Jerusalém do Alto, nossa mãe', que faz de nós homens livres, de São
João que fala 'à Senhora eleita e a seus filhos às testemunhas dos primeiros séculos, Irineu, Orígenes,
Basílio, Agostinho, esse mesmo pensamento predomina, expresso em tenros semelhantes.
Mãe, a Igreja gerou-me para Cristo. É ela que me dá sua Palavra. Jesus, antes de deixara terra, não
nos legou livro nem código, nem catecismo, mas uma Igreja na qual nasceram os Evangelhos e que,
inspirada pelo Espírito de Cristo, selecionou, de uma coleção de documentos, os escritos do futuro
Novo Testamento. É ela que hoje me diz: 'Toma e lê...'E foi em seu seio que o Símbolo dos
Apóstolos, o autêntico resumo de minha fé, tomou corpo. E quem, se não a Igreja Mater et
Magistra, mãe e mestra de vida, me educou e ensinou cada dia a 'viver segundo a fé' e a discernir o
que é conforme ao Evangelho?
Ainda mais Mãe, a Igreja dá-me vida através dos sacramentos de Cristo: os gestos que Jesus
realizou durante sua vida terrestre foram confiados a ela e atra vês dela chegaram até mim:
alimentam-me, curam-me, restabelecem-me na amizade de Deus, unem-me aos outros. Mãe, ela o é,
minha Igreja, e Mãe de filhos incontáveis! Quanto mais aceito e entro em sua maternidade, melhor se
realiza o meu nascimento nunca terminado em Cristo, e mais me torno, para mim, e para os outros, a
Igreja.
Não se trata de uma teoria. Mãe nunca é teoria. Àquele menino chinês, tão profundamente
compromissado com Deus, ninguém ensinara a resposta que daria aos guardas vermelhos que haviam
fechado a Igreja local e proibido o acesso: 'Vai embora, a Igreja não existe mais!' disseram eles. 'A
que Igreja o senhor se refere? A Igreja sou eu'. Do pequenino chinês desconhecido aos maiores
santos, esta convicção nossa de ser a Igreja, é fonte de discernimento, reconhecemos tarefas a
cumprir - e fonte de humildade, não nos esgotamos em críticas.
Em Roma, um jornalista interpelou Madre Teresa de Calcutá: 'Madre, em sua opinião, que anda
errado na Igreja?' E a resposta brotou imediata: 'O senhor e eu!'
A história da Igreja não dissimula faltas e erros, mas evidencia também que, nestes momentos de
trevas mais densas, surge, de seu próprio seio, um homem ou uma mulher que, de modo misterioso,
traz a luz e o remédio para os males.
Em meio ás piores libertinagens do Renascimento italiano, á brutalidade, ao luxo desenfreado e
aos costumes licenciosos de sua corte, Luís Gonzaga, ele mesmo príncipe do Sacro Império, renuncia
a seu título de Marquês de Mântova; ingressa na Ordem dos Jesuítas, morre aos 33 anos, de peste, ao
assistir às inúmeras vítimas daquela calamidade. Saneou também a Igreja de seu tempo e inúmeros
contemporâneos seus.
De onde vem esta força secreta? De Jesus Cristo, dizem estes servidores da Igreja. Mas o monge
cisterciense Isaac da Estrela lembra-nos as três presenças atuantes de Jesus: em Maria, na Igreja e em
nossa alma:
'No tabernáculo do seio de Maria, Jesus permaneceu nove meses. No tabernáculo da fé - a Igreja -
ele permanece até a consumação do mundo. No conhecimento e no amor da alma fiel, permanecerá
pelos séculos dos séculos' (sermão 61, sobre a Assunção, P. L. 194, 1865).
Nestas três moradas do Senhor nesta proximidade plena de promessas, encontra-se o segredo da
Igreja e daqueles que crêem."
MÓDULO 36: TODAS AS RELIGIÕES SÃO EQUIVALENTE SENTRE SI?
Não é raro ouvir-se que todas as religiões são boas ou são equivalentes entre si. Afirma-se que é
preciso crer, ... em alguma coisa, ... não importa em que coisa. O sentimento religioso seria um
sentimento como a honestidade, a benevolência, o ser metódico..., sentimento que "cai bem" ou que
faz bem à saúde. O aspecto subjetivo da religiosidade prevaleceria. Ademais toda religião prega os
bons costumes e a educação, de modo que não haveria por que preferir um a outro sistema religioso.
É a esta temática que vamos dedicar a nossa atenção.

Refletindo...
O problema exige que distingamos o aspecto objetivo e o aspecto subjetivo da religião.
1. Aspecto objetivo
Não se pode dizer que todas as religiões são equivalentes entre si, pois não coincidem entre si
quanto ao Credo: algumas são politeístas (admitem vários deuses), outras são panteístas (identificam
a Divindade, o mundo e o homem entre si), outras são monoteístas (professam um só Deus, distinto
do mundo). Mesmo dentro de cada tronco há correntes e variantes... Ora a verdade é uma só, de
modo que, objetivamente falando, haverá Credos verídicos (em grau pleno ou menos pleno) e Credos
errôneos.
Sem dúvida, o senso religioso inato é o mesmo em todos os homens. Ele tem as mesmas
expressões religiosas, independentemente do Credo que professam; por efeito de sua religiosidade
natural, todos os homens rezam, dobram os joelhos, prostram-se por terra, levantam as mãos ao céu,
e praticam as virtudes ditadas pela Ética natural: o senso religioso ensina a não matar, não roubar,
não caluniar, não adulterar... Todavia, além dessa base natural comum a todas as religiões, cada
religião tem o seu Credo, seu culto e sua Moral própria; neste plano é que se dão as divergências: há
quem creia na reencarnação e quem não a aceite; há quem admita o divórcio, o aborto, o
homossexualismo, a guerra santa, a poligamia ... e quem não os admita.
Em conclusão: objetivamente falando, as religiões não são equivalentes entre si; não são
igualmente verídicas, nem são igualmente boas.
Os católicos, a bom título, dizem que só há uma religião revelada por Deus: a que culmina em
Jesus Cristo e se prolonga através dos séculos no Corpo de Cristo que é a Igreja confiada por Jesus a
Pedro e seus sucessores.
É o que o Concílio do Vaticano II professa na Declaração Dignitatis Humanae no 1:
"Professa o Sacro Sínodo que o próprio Deus manifestou ao gênero humano o caminho pelo qual
os homens, servindo a Ele, pudessem salvar-se e tornar-se felizes em Cristo. Cremos que essa única
verdadeira Religião subsiste na Igreja Católica e Apostólica, a quem o Senhor Jesus confiou a tarefa
de difundi-la aos homens todos, quando disse aos Apóstolos: 'Ide pois e ensinai aos povos todos,
batizando-os em nome de Pai e do Filho e do Espírito Santo, ensinando-lhes a guardar tudo quanto
vos mandei' (Mt 28, 19-20). Por sua vez, estão os homens todos obrigados a procurar a verdade,
sobretudo aquela que diz respeito a Deus e a Sua Igreja e, depois de conhece-la, a abraça-la e a
praticá-la".
Na Constituição Lumen Gentium no 8 lê-se:
"Esta é a única Igreja de Cristo, que no Símbolo professamos una, santa, católica e apostólica
(12), e que o nosso Salvador, depois da sua Ressurreição, confiou a Pedro para que ele a
apascentasse (Jo 21, 17), encarregando-o, assim como aos demais Apóstolos, de a difundirem e de a
governarem (cf. Mt 28, 28), levantando-a para sempre como 'coluna e esteio da verdade' (I Tm 3,15).
Esta Igreja, como sociedade constituída e organizada neste mundo, subsiste na Igreja Católica,
governada pelo sucessor de Pedro e pelos Bispos em comunhão com ele, ainda que fora do seu corpo
se encontrem realmente vários elementos de santificação e de verdade, elementos que, na sua
qualidade de dons próprios da Igreja de Cristo, conduzem para a unidade católica".

2.Aspectosubjetivo
É fato que nem todos os homens chegam ao conhecimento do Evangelho tal como Jesus Cristo o
pregou e continua a pregar na sua Igreja; não têm culpa disto. Todavia têm coração reto e sincero ao
seguir uma filosofia religiosa diferente do Catolicismo: não duvidam de que estão professando a
verdade e a ela devem obedecer, mesmo praticando a poligamia ou crendo que a reencarnação divide
os homens em castas diferentes, que têm que sofrer (uns) ou ser inclementes (outros). A tais pessoas
Deus não pedirá contas do que não tiver revelado ou do que tiverem ignorado sem culpa própria.
Poderão salvar-se não pelo falso Credo que professam, mas pela boa fé ou sinceridade cândida com
que o professam. É o que declara a Constituição Lumen Gentium no 16:
"Aqueles que ignoram sem culpa o Evangelho de Cristo e a sua Igreja, mas buscam a Deus na
sinceridade do coração, e se esforçam, sob a ação da graça, por cumprir na vida a sua vontade,
conhecida através dos ditames da consciência, também esses podem alcançar a salvação eterna.
Nem a Divina Providência nega os meios necessários para a salvação àqueles que, sem culpa, ainda
não chegaram ao conhecimento explícito de Deus, mas procuram coma graça divina viver
retamente. De fato, tudo o que neles há de bom e de verdadeiro, considera-o a Igreja como
preparação evangélica e Dom daquele que ilumina todo o homem para que afinal venha a ter vida".
Ou ainda a Constituição Gaudium et Spes no 22:
"Tendo Cristo morrido por todos e sendo uma só a vocação última do homem, isto é, divina,
devemos admitir que o Espírito Santo oferece a todos a possibilidade de se associarem, de modo
conhecido por Deus, a este mistério pascal".
Assim, de um lado, fica excluído todo relativismo religioso - o que seria relativizar a verdade.
Doutro lado, fica excluído também todo fanatismo cego, que não leva em conta a inocência ou a
candura de quem, sem culpa própria, não adere à verdade, mas se esforça por cumprir o que o único
Deus lhe revela através dos ditames da consciência reta e sincera.
PERGUNTAS
1) Que se entende por "aspecto objetivo" e "aspecto subjetivo" da religião?
2) Objetivamente falando, todas as religiões são equivalentes entre si?
3) Como se explica que todas as religiões ensinem os bons costumes?
4) Que pensar daqueles que de boa fé estão no erro?
5) Qual o lugar que compete a Jesus Cristo no conjunto das crenças religiosas?

MÓDULO 37: O ESTADO DO VATICANO – POR QUÊ?


Muitos perguntam por que a Igreja Católica possui um Estado territorial independente, dito "o
Vaticano", com seus representantes diplomáticos e sua participação nas reuniões de nível
internacional... Parece desnecessário que isto aconteça. - A resposta a tal pergunta só pode ser dada a
partir da história. A Igreja Católica não arrogou a si o direto deter um território independente, mas
este teve origem na antigüidade por gestos espontâneos de muitos cristãos, que estimavam a figura
do Bispo de Roma (o Papa), como se dirá nas páginas subsequentes.
Passamos a examinar o desenrolar dos acontecimentos que explicam a existência do Estado do
Vaticano contemporâneo.

Lição 1: Os Antecedentes do Estado Pontifício (330 - 747)


De 306 a 337 reinou no Império Romano Constantino o Grande.
Em 313 pelo Edito de Milão concedeu a paz aos cristãos, pondo fim a duzentos e cinqüenta anos
de perseguição.
Muito importante, no reinado de Constantino, foi em 330 a transferência da capital de Roma para
a pequena cidade de Bizâncio na Ásia Menor; esta passou a ter o nome de Constantinopla ou cidade
de Constantino (hoje Istambul). A razão da mudança é a instabilidade a que estava sujeita a cidade de
Roma e, com ela, o Ocidente por causa das invasões bárbaras. Em conseqüência, Roma foi mais e
mais abandonada pelo poder imperial; tomou-se sempre mais importante pelo seu valor religioso
(nela tinham morrido São Pedro e São Paulo e nela vivia o sucessor de São Pedro, o Papa, a quem as
populações do Ocidente mais e mais recorriam para conseguir proteção contra os bárbaros). A
transferência da capital para Bizâncio contribuiu fortemente para que Oriente e Ocidente tivessem
cada qual a sua evolução cultural e religiosa própria.
Roma no Ocidente ficou entregue á administração de um Conselho Municipal, que tinha o nome
de Senado, e de funcionários encarregados de julgar as causas judiciárias e cobrar impostos.
Bizâncio mais e mais se esquecia de Roma, descuidando-se do seu reabastecimento e da conservação
de seus monumentos; as incursões dos bárbaros na península itálica tornavam as condições de vida
da população cada vez mais precárias e dolorosas. Eis, porém, que, em meio à anarquia, uma figura
ia ganhando espontaneamente veneração: a do bispo de Roma, considerado pela população cristã
como o Pai Comum, no qual todos depositavam confiança. Correspondendo a este afeto filial, os
Pontífices Romanos foram-se tornando os tutores do bem público não somente no plano espiritual,
mas também no temporal e social: em 452, por exemplo, o Papa São Leão Magno dirigiu-se ao
encontro de Átila e do exército huno, que se apresentavam para devastar Roma e a Itália meridional,
conseguindo detê-los em Mântua. Na ausência ou na incúria dos oficiais do Imperador Bizantino, era
no chefe religioso de Roma que os homens depositavam a sua esperança de viver melhores dias.
A estima devotada ao Bispo de Roma (=Papa) fazia que muitos nobres, ao morrer ou ao ingressar
no mosteiro, legassem seus bens e territórios ao Pontífice. Assim teve origem, aos poucos, o
chamado "Patrimônio de São Pedro", que constava de terras na Itália e nas ilhas adjacentes. Esses
bens, de extensão cada vez maior, permitiam ao Papa assumir posição de certa independência diante
do Imperador bizantino e do representante deste em Ravena: o Pontífice tinha sob a sua jurisdição
civil grande número de cidadãos, que trabalhavam sob a tutela papal ou eram socorridos por esta nos
hospitais, asilos e orfanatos pontifícios.
Em conseqüência, durante os séculos IV- VII foi-se afirmando naturalmente o poder temporal do
Papa, em virtude do desenrolar mesmo dos acontecimentos.
No século VIII os acontecimentos se precipitaram.
O Papado se viu premido entre duas potências hostis: no Oriente, os bizantinos favoreciam as
heresias ia respeito de Cristo e do culto das imagens), os Imperadores subtraiam terras à jurisdição
eclesiástica dos Papas. No norte da Itália, os lombardos, pagãos ou arianos (heréticos), ameaçavam
constantemente saquear Roma e os territórios meridionais, constituindo um perigo não somente civil,
mas também religioso. Nestas circunstâncias, os Pontífices Romanos se lembraram de recorrer ao
auxilio de um dos novos povos do cenário europeu: os francos, que, desde o batismo de seu rei
Clóvis em 496, constituíam uma nação cristã de crescente valor cultural; em 732, seu mordomo,
Carlos Martelo, tinha conjurado o perigo muçulmano, vencendo os árabes em Poitiers. Os francos
conservavam fidelidade à reta fé e possuíam energias novas, enquanto Bizâncio já significava um
mundo velho, vítima tanto das sutilezas de seu engenho ("bizantinismo" na arte, na filosofia, na
teologia...) como dos exércitos estrangeiros (principalmente dos pensas); o verdadeiro esteio da
cristandade já não estava no Oriente (onde as sutis discussões teológicas debilitavam a fé), mas no
Ocidente, em particular no reino dos francos, onde a fé era empreendedora. Por que então não
apelariam os Papas para estes filhos da Santa Igreja, a fim de propiciar uma ordem de coisas cristã
aos povos cristãos?

Lição 2: A criação do Estado Pontifício (756)


1. Em 747, Pepino, homem inteligente e ambicioso, mas religioso e bem intencionado com a
Igreja, tomou-se o mordomo do palácio real dos francos (os reis então reinavam, mas não
governavam, enquanto os mordomos governavam sem coroa). Pepino quis pôr termo à situação
ambígua do governo dos francos; por isto recorreu ao Papa Zacarias, pedindo-lhe que recobrisse com
a sua autoridade a falta de sangue real e reconhecesse a dinastia de Pepino e dos seus descendentes
(os carolíngios); o Pontífice concordou com Pepino, pois este, se não era o rei de direito, era o rei de
fato. Em 751 Pepino foi eleito rei dos francos na Dieta (= assembléia política) de Soissons, e, a
seguir, ungido por S. Bonifácio e outros bispos. Sucedeu assim ao último rei da dinastia anterior
(merovíngia): Quilderico III.
Pepino em breve teve a ocasião de mostrar sua gratidão ao Papa. O rei lombardo Aistulfo (74Q-
56), depois de ter tomado Ravena aos bizantinos, ameaçava Roma. De novo abandonado pelo
Imperador Constantino V Coprônimo, o Papa Estêvão II pediu auxílio aos francos; foi mesmo à
França, aparecendo em 754 no palácio régio em Ponthion (perto de Paris). Pepino recebeu-o com
todas as honras e prometeu-lhe proteção contra os lombardos; era movido a isto não por meros
interesses políticos, mas por veneração sincera para com o sucessor de S. Pedro. De Ponthion o rei
levou o Papa para Paris, onde este o ungiu, assim como aos seus dois filhos Carlos e Carlomano, reis
dos francos; além disto, conferiu-lhes o título de "patrícios romanos", título que implicava o dever de
proteger Roma e a sua Igreja. Finalmente a amizade entre Pepino e o Papa deu ocasião a novo pacto
travado em 754 em Quierzy: Pepino se obrigava não somente a defender a Igreja de Roma, mas
também a libertar os territórios bizantinos ocupados pelos lombardos.
Em duas campanhas militares (755 e 756) Pepino venceu Aistulfo e, apesar dos protestos de
Bizâncio, doou solenemente por escrito ao Papa os territórios de Comacchio, o exarcado e a
Pentápole (Rimini, Pesaro, Fano, Sinigaglia, Ancona); o documento de doação foi colocado sobre o
túmulo de São Pedro. Estava assim fundado o Estado Pontifício (756), praticamente independente de
Bizâncio, sob a jurisdição do Papa e a proteção dos francos. Na verdade, tal gesto correspondia ao
papel que o Pontífice já vinha exercendo em favor das populações ameaçadas da península itálica.
2. Existe um documento intitulado Constitutum ou Donatio Constantini segundo o qual o
Imperador Constantino Magno doava ao Papa S. Silvestre (314-335) e a seus sucessores, em
agradecimento pelo batismo e a cura da lepra, poder e dignidade imperiais; além disto, conferia-lhes
o domínio sobre o palácio do Latrão, sobre Roma e todas as cidades dos territórios ocidentais; pelo
quê, Constantino transferia a sua residência para Bizâncio. Este documento faz parte de uma coleção
falsa de leis - os decretais do Pseudo-Isidoro -, que teve origem no século IX. Por toda a Idade Média
a Donatio Constantini foi considerada autêntica. Todavia a partir do século XV a sua genuinidade foi
contestada de modo que hoje em dia é reconhecida como falso documento.
A Pepino o Breve sucedeu seu filho Carlos Magno. O rei Desidério, dos lombardos, resolveu
atacar de novo os territórios pontifícios, inclusive marchando sobre Roma. O Pontífice apelou para
os francos: em 773, Carlos interveio cercando Pavia, a capital dos lombardos; durante o sítio, na
Páscoa de 774 o rei dos francos foi a Roma e lá confirmou a doação que Pepino fizera a Estêvão II;
além disto, doou-lhe as cidades de Imola, Bolonha e Ferrara. Canos Magno recebeu do Pontífice
Leão III, em 800, a coroa de Imperador do Império Romano, restaurado no Ocidente com o título de
Império Sacro ou cristão .
3. Esses fatos têm sido calorosamente comentados pelos historiadores. Pergunta-se se não houve
nisso tudo usurpação de direitos, jogo de interesses políticos dos Papas e dos francos.
Após uma reflexão serena, afirmar-se-á que não. Os acontecimentos mencionados não foram
senão a "oficialização" de uma situação que de fato já existia: o Papa já exercia as funções de
soberano no Patrimônio de São Pedro, sem possuir o título respectivo; os mordomos francos, do seu
lado, já governavam o reino (sob a dinastia dos reis merovíngios ditos "fainéants", indolentes),
embora não trouxessem as insígnias de monarcas: Pepino o Breve e Estevão II, Carlos Magno e Leão
III só fizeram tornar a situação definida e patente aos olhos do mundo. A restauração do Império
Romano no Ocidente não pode ser tida como violência cometida contra Bizâncio, nem foi um gesto
surpreendente e brusco, mas o remate orgânico de um processo histórico iniciado em 330 e
lentamente amadurecido no decorrer de mais de quatrocentos anos (até 756, ou melhor, até 800).
4. O Estado Pontifício, fundado em 756, perdurou ininterruptamente até 1870, quando cedeu ao
movimento de unificação da península itálica. Registraram-se, no decorrer desses muitos séculos,
obras grandiosas, que a soberania temporal dos Papas possibilitou: mas verificaram-se outrossim
certos abusos, gestos de prepotência política e de luxo mundano, principalmente no período da
Renascença. A Santa Igreja, guiada pelo Espírito Santo, é a primeira a reconhecer e condenar tais
desvios; ela não se identifica irrestritamente com nenhum de seus membros, mas, na qualidade de
Esposa de Cristo, transcende a todos, até mesmo os mais altamente colocados (pois cada um traz até
certo ponto o lastro de pecado); também não se surpreende ao verificar os abusos de seus filhos;
estão bem na linha da parábola evangélica do joio e do trigo...
Lição 3: A queda do Estado Pontifício
No século XIX desencadeou-se o movimento de unificação da península itálica, sob a hegemonia
do Piemonte-Sardenha. O rei Vitor Emanuel II (1849-1870), do Piemonte, ocupou províncias do
Estado Pontifício e foi proclamado "rei da Itália" aos 27/03/1861, com sua capital em Florença.
Em 1861, portanto, o Estado Pontifício via-se despojado de dois terços do seu território, reduzido
a Roma e à parte mais antiga do Patrimônio de São Pedro, praticamente impossibilitado de subsistir
em virtude do esgotamento financeiro.
Finalmente em 1870, assediaram Roma 60 mil piemonteses comandados pelo general Cardona. A
defesa pontifícia, sob o general Kanzler, só contava com 10 mil soldados. Depois de alguns golpes de
artilharia piemontesa, Pio IX mandou capitular aos 2010911 870. O poder temporal do Papa assim
caia. Em julho de 1871 Vitor Emanuel estabeleceu sua residência no Quirinal, onde outrora haviam
morado os Papas, ficando o Pontífice no Vaticano.

A perda do poder temporal teve o mérito de emancipar o Papa das solicitudes e solicitações
dilaceradoras da administração de um Estado. Pode sobressair mais na singularidade da sua missão
espiritual.

Lição 4: Entre a queda e a restauração do Estado Pontifício


Tendo perdido o poder temporal, os Papas julgaram que em consciência não podiam abrir mão do
direito a total autonomia nos planos político e nacional. Tal autonomia lhes aparecia muito
justificadamente como condição impreterível para a fiel realização de seus encargos de pastores de
almas esparsas por todos os continentes.
É o que afirmava Sua Santidade o Papa Leão XIII em carta escrita em 15 de junho de 1887:
"A suprema autoridade pontifícia, instituída por Jesus Cristo e conferida a São Pedro e aos seus
sucessores legítimos, os Pontífices Romanos, não pode, por sua natureza mesma e por vontade do
seu Divino Fundador, estar sujeita a algum poder terrestre; ao contrário, ela deve gozar da mais plena
liberdade no exercício de suas funções... É necessário que o Sumo Pontífice seja colocado em
condições de independência tais que não somente a sua liberdade não seja entravada por quem quer
que seja, mas se torne mesmo evidente a todos que ela não é tolhida" (L'osservatore Romano
12/02/1929).
O Papa Pio XI disse o mesmo em palavras dirigidas aos professores e estudantes da Universidade
de Milão:
"Em virtude da divina responsabilidade de que está investido o Pontífice Romano, qualquer que
seja o seu nome e qualquer que seja a época em que viva, não pode estar subordinado a poder algum"
(La Documentation Catholique 1929, col. 472).
O mesmo Pontífice, referindo-se ao poder temporal da Santa Sé declarava:
"Não se conhece, ao menos até nossos dias, outra forma de soberania verdadeira e própria que não
seja soberania territorial... A soberania territorial, qualquer que seja a sua modalidade, é condição
que todos reconhecem indispensável à verdadeira soberania jurisdicional" (La Documentation
Catholique 1929, col. 469).
Observe-se que, para a Igreja, a plena autonomia do Sumo Pontífice é, em última análise, não uma
questão política, mas uma questão religiosa, se bem que tenha suas conseqüências nos setores
político e econômico; estes interessam à Igreja apenas na medida em que são necessários ao livre
exercício do ministério apostólico e à instauração do Reino de Deus na terra. Em outros termos: a
independência territorial é, para a Santa Igreja, apenas o símbolo e a condição da independência
religiosa.
Merecem atenção também as ponderações do Papa Pio IX feitas em alocução de 20 de abril de
1849, quando o Estado Pontifício estava prestes a sucumbir:
"É evidente que os fiéis, os povos, as nações, os reis nunca se voltarão para o bispo de Roma com
plena confiança e obediência quando o virem súdito de um soberano ou de um Governo, e souberam
que não está em plena posse de sua liberdade. Pois então poderão sempre suspeitar e recear que o
Pontífice, em seus atos, sofra a influência do soberano e do Governo em cujo território ele resida. E,
em vista deste pretexto, acontecerá muitas vezes que as determinações do Papa não serão
executadas".
As palavras de Pio IX eram realmente sábias e prudentes. É o que se comprova pelo fato de que os
filósofos do século XVIII, desejosos de extinguir a Igreja, se mostravam persuadidos de que a queda
do Estado Pontifício acarretaria a da própria Igreja. Assim, por exemplo, escrevia o Imperador
Frederico II da Prússia ao seu amigo Voltaire em carta datada de 9 de julho de 1777:
"Quando o principado civil dos Papas tiver desmoronado, então seremos vitoriosos e a cortina
cairá. Daremos uma boa pensão ao Santo Padre. E que acontecerá então? A França, a Espanha, a
Polônia, em uma palavra: todas as potências católicas já não haverão de querer reconhecer um
Vigário de Jesus Cristo subordinado em seu próprio território... Aos poucos afastar-se-ão da
unidade da Igreja, e cada um acabará por ter em seu mino a sua religião própria como tem a sua
língua própria " (Voltaire, Oeuvres completes XII. Paris 1817, pag. 64).
Lição 5: A restauração do Estado Pontifício
Os Papas Pio IX (1846-1878), Leão XIII (1878-1903), S. Pio X (1903-1914), Bento XV (1914-
1922) e Pio XI (1922-1939) sempre disseram Non possumus (Não podemos) a qualquer proposta de
renúncia à soberania temporal (as respectivas razões serão mais adiante explanadas).
Finalmente sob Pio XI ocorreu a solução da famosa "Questão Romana". Esta se deve à iniciativa
pessoal e à grande coragem de Pio XI. Foi possibilitada também pela mudança do Governo italiano:
em outubro de 1922 deu-se o advento do Fascismo, que tomou posição favorável à Igreja: o ensino
religioso tornou-se de novo obrigatório nas escolas, os clérigos foram dispensados do serviço militar,
foi oferecida assistência religiosa às Forças Armadas, os crucifixos foram recolocados nos hospitais e
tribunais; igrejas e mosteiros profanados foram, em parte, restituídos, os dias santos católicos
reconhecidos... Benito Mussolini, o chefe do Governo, percebeu a grande conveniência política de
reconciliar a Itália com o Vaticano. As negociações levaram dois anos e meio, terminando com a
assinatura do Tratado do Latrão aos 11 / 02 / 1929, que encerrava sessenta anos de querela entre o
Vaticano e o Quirinal.
Este Tratado reconhecia a absoluta soberania do Papa sobre a pequena Cidade do Vaticano, que é
o menor de todos os Estados independentes: 0,44 km 2, quando a República de San Marino tem 61
km2 e a de Andorra 465 km2. Ao Vaticano tocaria o direito de representação diplomática ativa e
passiva. O Papa, de seu lado, reconhecia o reino da Itália sob a dinastia Savoia e com a capital em
Roma (reconhecia, portanto, a secularização dos antigos territórios pontifícios). Além da Cidade do
Vaticano, o Pontífice dispõe de "lugares extraterritoriais", como as principais basílicas de Roma,
edifícios da Cúria, a Vila de Castel Gandolfo... - Num acordo separado, o Estado italiano se
comprometia a pagar à Santa Sé a quantia de 1.750 milhões de liras a título de indenização.
O Papa Pio XI, por ocasião do Tratado do Latrão, quis explicar o porquê da insistência de cinco
Pontífices em não aceitar simplesmente a perda do Estado da Igreja:
"Podemos dizer que não há uma linha, uma expressão do tratado (do Latrão) que não tenha sido,
ao menos durante uns trinta meses, objeto particular de nossos estudos, de nossas meditações e,
mais ainda, de nossas orações, que pedimos outrossim a grande número de almas santas e mais
amadas por Deus.
Quanto a nós, sabíamos de antemão que não conseguiríamos contentar a todos, coisa que
geralmente nem o próprio Deus consegue...
... Alguns talvez achem exíguo demais o território temporal. Podemos responder, sem entrar em
por menores e precisões pouco oportunas, que é realmente pouco, muito pouco; foi deliberadamente
que pedimos o menos possível nessa matéria, depois de ter refletido, meditado e orado bastante. E
isso, por vários motivos, que nos parecem válidos e sérios.
Antes do mais, quisemos mostrar que somos sempre o Pai que trata com seus filhos; em outros
termos: quisemos manifestar nossa intenção de não tomar as coisas mais complicadas e, sim, mais
simples e mais fáceis.
Além disto, queríamos acalmar e dissipar toda espécie de inquietação; queríamos tornar
totalmente injusta, absolutamente infundada, qualquer recriminação levantada em nome de...
iríamos dizer: uma superstição de integridade territorial do país (Itália).
Em terceiro lugar quisemos demonstrar de modo peremptório que espécie nenhuma de ambição
terrestre inspira o Vigário de Jesus Cristo, mas unicamente a consciência de que não é possível não
pedir pois uma certa soberania territorial é a condição universal reconhecida como indispensável a
todo autêntico poder de jurisdição.
Por conseguinte, um mínimo de território que baste para o exercício da jurisdição, o território sem
o qual não poderia subsistir... Parece-nos, em suma, ver as coisas tais como elas se
realizavam na pessoa de São Francisco: este tinha apenas o corpo estritamente necessário para
poder deter a alma unida a si. O mesmo se deu com outras Santos: seu corpo estava reduzido ao
estrito necessário para servir à alma, para continuar a vida humana e, com a vida, sua atividade
benfazeja. Tomar-se-á claro a todos, esperamo-lo, que o Sumo Pontífice não possui como território
material senão o que lhe é indispensável para o exercício de um poder espiritual confiado a homens
em proveito de homens. Não hesitamos em dizer que Nos comprazemos neste estado de coisas;
comprazemo-Nos por ver o domínio material reduzido a limites tão restritos que... os homens o
devem considerar como que espiritualizado pela missão espiritual imensa, sublime e realmente
divina que ele é destinado a sustentar e favorecer" (trecho da alocução publicada por L'osservatore
Romano de 13 de fevereiro de 1929).
A comparação ilustra fielmente a verdade. Tenha-se em vista que a Igreja, por definição, exerce
autoridade não apenas sobre os corpos e o comportamento exterior dos homens, mas também sobre o
setor mais íntimo e importante dos indivíduos: sobre as almas; e exerce-a independentemente de
fronteiras nacionais, abrangendo centenas de milhões de fiéis do mundo inteiro: onde quer que esteja
comprometido o espírito do homem, mesmo nos planos aparentemente mais indiferentes à religião,
como o esporte, o cinema, a medicina, o comércio, a Igreja tem que estar aí presente, a fim de
orientar a conduta dos fiéis que assim estão em contato com o mundo material.
Tal autoridade é realmente colossal. Em conseqüência, os filhos da Igreja e os homens que
compreendem o que essa autoridade significa, não podem deixar de desejar que tanto poder não sofra
influência de alguma forma estranha, não se torne joguete nas mãos de soberanos políticos, mais ou
menos arbitrários. Por isto, cedo ou tarde havia de aflorar à consciência dos cristãos a ideia de que o
governo e o Chefe Supremo da Igreja devem ser independentes de qualquer soberano político
nacional, devem enfim sertão livres quanto qualquer governo deste mundo. Em caso contrário,
estaria frustrada a sua missão.
Esta última conclusão, a história se encarregou de a comprovar. Com afeito, não faltaram no
decurso dos séculos tentativas das autoridades civis que visavam a submeter o Soberano Pontífice à
jurisdição do monarca de tal ou tal país (que ótimo jogo não seria utilizar a autoridade moral dos
Papas em favor de interesses nacionais!). Quando o conseguiram, a tarefa religiosa da
Igreja se viu enormemente prejudicada. Foi o que se deu, por exemplo, durante o chamado "Exílio
de Avinhão": de 1309 e 1376, os monarcas franceses obtiveram que os Papas residissem em Avinhão
(França), onde, carecendo de soberania temporal, ficaram sujeitos à influência do governo civil.
Neste período, os Pontífices foram perdendo parte da sua autoridade perante a opinião pública
internacional; os cristãos de fé ( o rei Carlos IV da Alemanha, o poeta Petrarca, Santa Brigida, nobre
viúva sueca, Sta. Catarina de Sena) se alarmavam, percebendo que, se a situação se prolongasse por
muito tempo, o Papado deixaria de ter o prestigio sobrenatural e católico
(universal) que deve ter. Basta recordar que o Pontífice João XXII (1316-1334) entrou em conflito
com o rei Luis IV da Baviera, animado de pretensões cesaropapistas; excomungado pelo Papa, o
monarca respondeu que João XXII servia aos interesses da dinastia dos Valois de França; por isto
não hesitou em criar um antipapa (Nicolau V), alegando que a França tinha "seu" Papa.
Tais ideias e fatos evidenciam quão conveniente à missão religiosa da Igreja é a soberania política
(por muito limitada que seja) de que os Pontífices têm tradicionalmente usufruído.

Lição 6: E as "riquezas" do Vaticano?


Quanto ás propaladas "riquezas" do Vaticano, é preciso dizer que os rumores a respeito
ultrapassam de muito a realidade.
Como dito, a Cidade do Vaticano é, do ponto de vista territorial; a mínima do mundo. Quando
após 1870 se discutia a "Questão Romana", diziam muitos que, em caso de restauração da soberania
temporal, um Estado do tamanho da República de São Marinho (61 km2) seria suficiente para os
Pontífices; ora o Estado Pontifício ressurgiu com 0,44 km2 apenas - o que no século passado parecia
incrível. Esse Estado constitui a simples carcaça de uma alma e tem por exclusiva função possibilitar
o exercício das atividades da respectiva alma ou da Igreja.
As obras de arte que se encontram no Vaticano, são, em grande parte, a expressão da fé de
pintores e arquitetos cristãos, que quiseram glorificar a Deus mediante o seu talento. Os Papas -
alguns com prodigalidade talvez excessiva - os incentivaram, porque a Igreja só pode favorecer as
artes que contribuam para a exaltação do Criador.
Os objetos contidos nos Museus do Vaticano foram, em grande parte, doados aos Pontífices por
cristãos sinceros (reis, cruzados, viajantes, exploradores, etc.), em testemunho de fé. Pertencem ao
patrimônio do gênero humano; os Papas não vêem motivo para não os conservar para o bem da
cultura universal.
Ademais, é notório que a Santa Sé esteve em déficit financeiro nos últimos anos. Os diversos
encargos assumidos em prol da evangelização dos povos e em favor do diálogo com todos os homens
têm-na obrigado a despesas cujo montante ultrapassa o seu limitado erário. Daí o recurso anual do
Sumo Pontífice às nações católicas para que o ajudem no cumprimento da missão evangelizadora da
Igreja. Sem dinheiro é impossível desempenhar a ingente tarefa confiada por Cristo aos seus
discípulos.
Não há razão, pois, para que o mundo se detenha sobre as apregoadas "riquezas" materiais do
Vaticano. Volte, antes, a sua atenção para os imensos tesouros espirituais que daquele recanto
territorial emanam para o gênero humano. Queiram-no ou não os homens, é ainda da Santa Sé que se
faz ouvir a palavra da Verdade e da Vida em meio às vicissitudes da hora presente.

PERGUNTAS
1) Descreva sumariamente os antecedentes da fundação do Estado Pontifício.
2) Como foi criado o Estado Pontifício?
3) Porque e como caiu o Estado Pontifício?
4) Como se deu a restauração do Estado Pontifício?
6 Que dizer das "riquezas" do Vaticano?

Caro (a) cursista, você terminou seu Curso de Teologia Fundamental. Foram-lhe oferecidas as
razões para compreender o fenômeno religioso e crer em Deus, em Jesus Cristo e na Igreja. Esteja a
sua fé consciente e amadurecida para que possa iniciar o percurso dos tratados de Teologia
Sistemática, a começar pelo de Deus Uno e Trino.

Bons estudos, com as graças e as luzes do Senhor Jesus!


Pe. Estêvão Tavares Bettencourt O. S. B.
Escreva suas respostas em folhas à parte, e mande-as, com o nome e o endereço do (a) Cursista,
para: CURSOS POR CORRESPONDÊNCIA, Caixa Postal 1362, 20001-970 Rio de Janeiro
(RJ).

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