Teologia Fundamental
Teologia Fundamental
Teologia Fundamental
Apresentação
Caro (a) Cursista,
Você recebe agora um Curso de Teologia Fundamental.
Que é Teologia Fundamental?
Como diz o nome, é aquela disciplina que estuda os fundamentos da Teologia.
- A Teologia, porém, se constrói sobre a fé. A fé, por sua vez, tem que estar fundamentada em
critérios objetivos, que dêem credibilidade às proposições da fé. Sim; o cristão deve saber por que
crê..., e porque crê em Jesus Cristo e não neste ou naquele mestre. Essa credibilidade é obtida
mediante o emprego da razão. A fé precisa da razão, como lembrava o Papa João Paulo II na sua
encíclica "Fé e Razão".
Ora este Curso tenciona corresponder a tal necessidade, apresentando:
l ) o fenômeno religioso ou o fato religioso que acompanha o homem desde os seus primórdios;
2) as razões para crer em Deus;
3) as razões para crer em Jesus Cristo;
4) as razões para crer na Igreja Católica.
Com outras palavras: a Teologia propriamente dita, aprofundando as verdades da fé, constrói um
belo edifício de vários andares. Mas, se não há portas para entrar nesse edifício, a bela construção
fica sendo impenetrável. Pois bem; a Teologia Fundamental propõe as portas para que se entre no
edifício da Teologia propriamente dita. Verdade é que, por vezes, o teólogo recorre à razão para
ilustrar tal ou tal artigo de fé, mas o uso da razão, em tais casos, é janela de terceiro andar, e não
porta. Este Curso pretende ser uma ou algumas portas que podem ser abertas por qualquer pessoa que
aceite o trabalho de girar a chave na fechadura. Lembremo-nos de que, antes de crer, o Apóstolo
Tomé quis tocar em Jesus; e o Senhor lho permitiu. Em nossos dias, Cristo permite a quem o queira,
que o toque ou alcance pela razão antes de nele crer. É certo que muitos fiéis têm uma fé tranqüila e
não precisam de se dar conta das razões por que crêem. Mas, sem dúvida, muitas e muitas pessoas
sinceras, desejam saber por que hão de crer ou quais as credenciais dos artigos de fé. Embora o
cristão não veja o que crê, ele deve poder ver que deve crer; a fé não é um ato cego, mas, ao
contrário, um ato altamente inteligente. Para crer, o homem, longe de renunciar à razão, põe em
exercício a sua inteligência dotada de todo o acume que, lhe é peculiar.
Eis, caro (a) cursista, a proposta deste Curso. Esteja certo (a) de que lhe será de grande utilidade.
Persevere no estudo, e disponha de nós para tirar as suas dúvidas; desejamos ajuda-lo(a) a
caminhar... com a graça de Deus.
O seu
Pe. Estêvão Tavares Bettencourt O. S. B.
bibliografia
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TEOLOGIA FUNDAMENTAL
Parte I. O Fenômeno Religioso
1 . O FENÔMENO RELIGIOSO
MÓDULO 01: O FATO RELIGIOSO
O nosso estudo do fenômeno religioso começa pela verificação do fato religioso. Sobre tal base
serão tecidas as reflexões desta primeira parte do nosso Curso.
Quem percorre o panorama da história antiga e contemporânea, toma consciência de que a
religião é um traço comum aos povos e aos indivíduos até época recente, quando começa a se
difundir o ateísmo. - Examinemos os dados.
1.1. Na pré-história
Por pré-história entendemos o período em que existia o homem sem deixar documentos escritos
que permitam reconstituir a sucessão dos fatos ou história. Vai até 8.000 a.C. aproximadamente.
A religiosidade do homem pré-histórico se manifesta através de vestígios deixados por ele nos
lugares onde habitou; atestam principalmente a crença numa vida póstuma, que é uma das expressões
mais espontâneas do senso religioso.
No paleolítico inferior encontra-se o homem de Neanderthal, com sinais de ritos fúnebres e
ofertas de sacrifício. No paleolítico superior, o Fenerântropo parece ter praticado ritos de
sepultamento e sacrifícios propiciatórios. No período neolítico, encontram-se monumentos
megalíticos ou dolmens (o dolmen é uma pedra chata colocada sobre duas pedras verticais), sinais
religiosos que persistem entre os povos primitivos que ainda hoje vivem como na idade da pedra. Na
idade do bronze, as características religiosas são muito mais numerosas, incluindo geralmente o culto
ao Sol desde a Escandinávia até o Mediterrâneo.
PERGUNTAS
Após fere reler os dados deste Módulo, queira tecer algumas considerações que lhe venham à
mente.
1.2.1. Credo
A religião, sendo a ligação do homem com Deus, professa uma como visão ou uma visão global
de Deus, do mundo e do homem. A religião é abrangente; ela projeta um olhar sobre Deus e tudo o
que existe, avaliando cada realidade à luz da Divindade. O Credo pode assumir três modalidades: o
politeísmo, o panteísmo e o monoteísmo.
l ) O politeísmo, do grego polýs (muito) e theós (Deus). É a religião que professa a existência de
muitos deuses, sendo endeusados os elementos dos quais o homem mais sente a dependência (o sol, a
mãe-terra, o fogo, as pedras, os rios, os astros em geral, as árvores...). Pode tomar a forma de
mitologia, que admite uma divindade superior e outras subordinadas. Pode também aparecer como
totemismo: haverá um lotem, animal sagrado ou planta sagrada, do qual uma família ou uma tribo
seria participante. Assume também a modalidade do animismo, que atribui uma alma ou um
princípio vital a tudo o que se move na natureza, à semelhança do que se dá no homem. O fetichismo
é outra forma de politeísmo: o fetiche seria um objeto portador de poder oculto ou misterioso, objeto
utilizado como talismã (protetor contra inimigos ocultos) ou amuleto ou bentinho dotado de energia
profilática e imunizante. Mais: a magia pode ser classificada sob o título de politeísmo, na medida
em que é um conjunto de práticas tidas como eficazes para obter efeitos maravilhosos (bons ou
maus), da parte dos deuses, práticas cujo segredo misterioso é do conhecimento exclusivo do mago.
2) O panteísmo, do grego pan (todo) e theós (Deus), afirma que tudo (o mundo e o homem) é
Deus. Assume a forma emanatista: o Primeiro Ser se expandiria numa série de seres degradados, cuja
alma ou cuja realidade seria a do Ser Supremo. Pode também ser panteísmo espiritualista, que é
menos grosseiro e reduz toda a realidade (mesmo a material) ao espírito e à sua atividade.
O panteísmo espiritualista é sustancialista, segundo Baruch Spinoza, que admite uma só realidade
(divina) manifestada como extensão e como pensamento, ou seja, como matéria e como espírito.
Existe outrossim o panteísmo de Hegel que professa a idéia (divina) em constante vir-a-ser,... o
panteísmo de Fichte (o Eu absoluto em continua evolução), e o de Gentile (Ato Pensante em
progressão auto criativa). Assim concebido o Panteísmo também é dito monismo.
3) O monoteísmo, de mónos (um) e theós (Deus), professa um só Deus, o que é a única forma
correta de conceber a Divindade; tudo lhe é subordinado como criatura ao Criador. Existe nas três
grandes religiões abraãmicas:
- o judaísmo, cujo monoteísmo não se explica bem aos olhos do historiador como tal, pois tem
origem num povo pequeno, dependente dos grandes impérios politeístas do Egito e da Mesopotâmia,
e se transmite de geração em geração apesar das tendências politeístas de Israel;
- O Cristianismo, que é a consumação do judaísmo, pois é o cumprimento das promessas feitas a
Abraão, aos Patriarcas e aos reis. O Messias é filho de Abraão e filho de Davi e veio preencher as
expectativas do povo israelita;
- o islamismo (que significa submissão) é a fusão da primitiva religião dos beduínos da península
arábica com elementos do judaísmo e do Cristianismo. Professa estrito monoteísmo ou um só Deus
que se revelou a Abraão, a Moisés, a Jesus Cristo e, por último, a Maomé, prometendo o paraíso a
quem morra na "guerra santa" (guerra de conquista).
1.2.3. Ética
O contato com a Divindade deve manifestar-se no comportamento do homem religioso frente a
Deus, aos homens e a si mesmo. Por conseguinte, a religião se exprime na Ética ou na Moral,
orientada pela escala de valores religiosa. Uma religião que não repercuta no comportamento do
homem, dignificando-o e aperfeiçoando-o, é moda ou até hipócrita. Se a Divindade é o Sumo Bem, o
autêntico cultor da Divindade não pode viver uma vida alheia ao Bem, mas, ao contrário, deve tender
a praticar o bem. A religião suscita a Ética, mas não se reduz à Ética, como pensa o filósofo alemão
Kant; segundo este, os preceitos da Ética fundamentam a religião; devem ser observados "como se
fossem mandamentos divinos", embora não o sejam; o dever ético seria um imperativo categórico,
autônomo, derivado da razão prática do homem.
Deve-se reconhecer que os ateus podem levar vida honesta e digna não fundamentada na religião
explicitamente professada; o ateu que não mata, não rouba, não calunia, honra o próximo, segue a lei
natural, que é a lei de Deus incutida no íntimo de todo ser humano.
1
Conta-se que nesse discurso Renan teve uma inspiração e disse: "Quem sabe? Hoje estais aqui à rada de mim; há talvez entre vós algum que mais
tarde se levantará para dizer que foi ruinosa a minha influência a minha influência sobre a juventude". Claudel o disse.
Em seus embates íntimos, Claudel pensou em fazer-se monge beneditino, mas verificou que sua
vocação era outra. Passou por outra crise, que finalmente chegou a equilíbrio tranqüilo. Em suma,
teve uma conversão que durou a vida inteira, o que bem revela quanto a graça encontra resistência no
recôndito de muitas pessoas dilaceradas entre o Bem Infinito e os bens finitos.
PERGUNTAS
1) Qual a mais aceita etimologia da palavra "religião "?
2) Que é o panteísmo?
3) Que é animismo?... Totemismo?
4) Quais são as religiões do Livro?... de que Livro ?
5) Quais são os elementos integrantes do culto divino ?
6) Ética e Religião se identificam entre si?
7) Que é religião natural?... religião revelada ?
PERGUNTAS
1) Que é pré-história ?
2) Que se pode apurar a respeito da religiosidade do homem de Pequim?
PERGUNTAS
1) Quem é o homem de Neanderthal?
2) Como se exprimia a sua religiosidade?
3) Porque é tão sóbria a Paleontologia ? Como pode ser completada?
1.2.Entre os Pigmeus
Tenha-se em vista outrossim a tribo dos pigmeus Efés, estudada pelo etnólogo Paulo Schebesta, o
qual relata um diálogo seu com dois dos anciãos do dá:
"Quem fez o que nos cerca?", perguntou o europeu.
Calaram-se os aborígenes. Mas o explorador continuou:
"Por que oferecemos as primeiras frutas a Toré?"
A nova pergunta foi suficiente para provocar a manifestação de proposições muito caras àquela
gente. Respondeu um dos interpelados:
"Tudo pertence a Toré. Toré tudo fez. Toré fez as árvores. Fez Pucopuco (o ancestral da tribo);
Toré vê tudo: Toré nos vê: ouve o que dizemos. Ele sabe de todo o mal que se comete; castiga os
culpados, e até mesmo os magos, pois Toré fez também os magos".
A seguir, o velho falou do poder de Toré sobre o raio, a morte, as almas etc. Cf. P. Schebesta, Die
Bambuti, die Zwerge vom Congo, l933.
Outro episódio significativo é narrado por M. Briault, que passou quinze anos entre os negros
Pamués, habitantes do Gabão francês (África). Estes aborígenes cultuam um Deus sã, denominado
Nzame (da raiz do bantu mba, que significa "fazer, arrumar, plasmar"). Deus assim aparece, na
espiritualidade daquela gente, como o Grande Artificie, do qual dizem os seus devotos: "É aquele
que nos fez, nosso Pai".
Um dia Briault sugeriu a um grupo de maiorais da terra a idéia de existirem dois deuses supremos;
responderam , porém, decididamente:
"Dois deuses iguais, isso é coisa impossível,- fariam a guerra um ao outro, e o mundo estaria
destroçado".
Há aqui autêntica sabedoria em vestes muito simples: os conceitos de dois deuses iguais pugnam
um contra o outro, excluindo-se mutuamente.
"Deus terá fim ? Morrerá um dia?"
- "E quem colocaria em seu lugar?"
Esta resposta equivale a dizer que Deus é o Ser absolutamente necessário.
Os selvagens acrescentavam: "Nzame não é um homem como nós". E como explicavam isto?
Árdua questão, sem dúvida... Afirmavam sentir a presença de Nzame em toda a parte embora ele
permaneça invisível; comparavam-no ao ar, sem o qual nenhum ser pode viver, o qual (ar), porém,
não tem figura sensível. Asseguravam também que Deus é soberanamente poderoso e bom, não
podendo ser constrangido por encantamentos nem conjurações mágicas. Merece respeito e piedade.
Cf. M. Briault, Polythéisme et fétichisme. Paris l928.
Encontram-se em grau variável entre essas tribos primitivas elementos de magia e superstição;
parecem, porém, importados de outros povos, seus vizinhos mais adiantados, com os quais os infra-
civilizados têm que entrar em contato, para se prover de fogo (quando necessário) ou para realizar
certo comércio. Verifica-se, contudo, que, quanto mais rude e fechada em si é determinada tribo,
tanto mais pura e simples é a sua religião, permanecendo fiel ao monoteísmo.
PERGUNTAS
1) Que é Etnologia? Que estuda?
2) Que notícias difundiu Darwin ao regressar da Terra do Fogo?
3) Que reação suscitou?
4) A que conclusão chegou a Escola de Viena?
1. Quem é Immana?
Os ruandenses aceitam a existência de Deus, e de um só Deus, que eles chamam "Immana", nome
que, segundo alguns lingüistas, quer dizer "Grande Espírito", segundo outros "Aquele que mora
conosco".
Embora não saibam desenvolver uma teologia sistemática, os primitivos fazem afirmações a
respeito de Deus, na sua linguagem cotidiana e simples, que contêm um pensamento teológico muito
reto e profundo. O homem culto que saiba compreender os antropomorfismos e as numerosas
imagens tiradas da agricultura, da caça ou da vida doméstica de um povo primitivo, não poderá
deixar de admirar a sabedoria dos dizeres dos ruandenses.
Eis um catálogo de tais afirmações, distribuídas sob títulos congruentes:
1) Unicidade de Deus
Ntawe uhwana n’Immana: Ninguém igual a Deus.
Ntawuhwanye n'Immana: Não há iguala Deus.
Habimmana: Só Deus importa.
Immana ntihenda indi, iba iyriye: Deus não engana outro Deus; destruiria a si mesmo.
2) Poder de Deus
Eis algumas expressões que manifestam a onipotência divina:
a) Immana é o Criador. Por isto, outro nome que lhe compete , é Rurema, Criador. Dizem
também os ruandenses:
Niyo Ibeshaho byose: é Ele quem dá a vida a tudo.
Niyintunze: É Ele quem dá a vida.
Iyamulemye: Aquele que o criou.
Haba Rurema; Haba Ruhanga; Habumulemyi: O Criador é (existe).
Quanto a Ele, ninguém O criou: Yalihanze (Ele criou a si mesmo), expressão imperfeita para
dizer que Deus é o princípio Absoluto de todas as criaturas.
b) A obra da criação dá a conhecer o poder ilimitado de Immana, poder especialmente realçado
por expressões como:
Immana iruta Ingabo: Deus é maior do que os exércitos.
Immana ikira amaboko marimare: Deus tem os braços compridos.
Immana ikinga ukuboko: Deus fecha o braço, isto é, pode salvar tudo.
Rugaba: o Poderoso.
c) O que o Criador começou, Ele o continua, de sorte que Immana é o Dispensador de todo bem.
Este atributo é o que mais frequentemente ocorre em nomes próprios e em provérbios de Ruanda.
Todos os bens - vida, alimentos, saúde, força, bênçãos, crescimento, leite, colheitas, pousada,
auxílios de todos os tipos - provem, em última análise, dessa fonte única: Immana. Dizem os
ruandenses: Maniraguaba, é Deus quem dá, quem distribui; Itangikunda, Ele dá por amor.
Immana dá gratuitamente, distribuindo as suas dádivas como quer:
Ntihabose: Não dá a todos.
Itangishaka: Ele dá o que quer.
Ntiyabahwanije: Ele não os fez todos iguais.
Immana yaremye byinshi itora bike: Deus criou muitos; escolhe poucos.
Umubaji w’imitima ntiyayiringanije: O Artífice dos corações não os mediu todos do mesmo
modo.
Ntawiha icyo Immana Itamuhaye: Ninguém dá a si o que Deus não lhe deu.
Ntihaba gukanura amaso haba Immana Ikubonera: É vão arregalar os olhos; somente importa
Deus, que vê por ti.
Estas expressões visam apenas a realçara soberania de Deus; não implicam necessariamente
imperfeição ou injustiça em Immana.
3) Saber de Deus
Paralelo ao poder divino, o saber de Deus não eliminado por algum segredo. Poristo dizem os
ruandenses:
Bwimmana: Deus conhece essas coisas.
Biziyaremye: Aquele que os criou, os conhece.
4) Providência Divina
a) As sortes do homem e de todas as criaturas estão nas mãos de Deus:
Agati gateretswe n'Immana ntigahuhwa n’umuyaga: O arbusto plantado por Deus não pode
ser levado pelo vento.
Urwubatswe n’Immana, ntirusenywa n’umuyaga: A casa construída por Deus, nenhum vento
pode derrubá-la.
Immana itera amapfa itegeka naho bazahaha: Deus provoca a fome e manda dizer onde é
preciso reabastecer-se.
Immanga y’Immana fruta ikigarama cy’ijisho: Mais vale o precipício de Deus do que a
planície do nosso olho. O que quer dizer: Mais vale o que Deus manda (embora nos assuste como um
precipício) do que aquilo que nós (pobres criaturas) julgamos conveniente.
Hagenimmana, Bugenimmana, Maniragena, Mbonigena: É Deus quem determina tal pessoa
para tal pessoa (em vista do casamento).
Ndahayo: Eu vivo por Ele.
b) Para designara solicita Providência de Deus, os ruandenses recorrem à imagem do Pastor:
Haragira Immana: É Deus o Pastor!
Immana ikuragire: Deus seja teu Pastor!
Immana ikuragidra uharf cyanga udahali: Deus é teu pastor, estejas presente ou ausente.
c) A Providência Divina não dispensa a atividade do homem. Donde:
Haba Rugira, hakaba umugwi: A Providência aí está, mas existe também o homem de
iniciativa.
Uragirfwe n’Immana ashyiraho n’umuwungeri: Ainda que Deus vigie sobre o teu rebanho,
toma o cuidado de o confiar a um pastor.
Ibitihuse, Immana Irabihambya: Àqueles que procedem com prudência, Deus se chega em
tempo oportuno.
Abagiye Inama, Immana irabasanga: Àqueles que deliberam conjuntamente, Deus vai-se
reunir.
5) Transcendência de Deus
Em presença de Deus, o homem de Ruanda (Munnya-Rwanda) afirma, em última análise, que
Immana é o absolutamente outro, aquele que está acima de todos os seres, e difere de todas as
criaturas, não somente por sua dignidade, mas também por sua maneira de existir. Com efeito,
a) Immana tem dois outros nomes próprios: iyambere, o Primeiro, e iyakare, o inicial.
b) É o Eterno: Uhoraho, Aquele que é sempre.
c) Está acima de outro ser:
Ntakiruta Immana: Nada está acima de Deus.
Harushimmana: Deus é Aquele que está acima.
Niyonkuru: É Ele que é grande.
Ntaklyiruta: Nada há que o supere.
Inyundo ntisumba uwayicuze: O martelo não supera aquele que o forjou.
d) Está em toda parte:
Nta ho Immana itaba: Não há lugar onde ele não esteja.
Nyamugendera hasi no hejuru: É aquele que percorre o céu e a terra.
e) Enfim, Deus não carece de coisa alguma: é o Umudabagizi, o Pleno, Cumulado; o Umutesi, o
Cumulado, Satisfeito; Hatungimmana, é Deus quem possui.
6) Bondade de Deus
a) O Deus transcendente não deixa de ser o Deus bom, amigo do homem. Por isto, é chamado
Rukiza, o Salvador, Ruvuna, aquele que socorre, Nyamutezi, Aquele que estende a mão,
Sebantu,
Pai dos homens, Sebibondo, Pai dos pequeninos.
Diz o ruandense: Niyinkunda: é Ele quem ama.
b) Conscientes disto, os ruandenses oram a immana, que lhes está sempre próximo e atento:
Ndemgimmana: Adoro a Deus.
Nsabimmana: Eu oro a Deus.
Nsabikunze: Oro àquele que ama.
Nsabiyumva: Oro àquele que ouve.
Nsabiyeze: oro àquele que é propicio.
Ndayambaje: Eu o imploro.
Nlyonsaba: É a ele que oro.
Mbonishaka: Vejo que ele me quer ajudar.
Ntezryayo: Ouço a sua palavra.
Mbonimpa: Ele me dará.
Mbonigorore: Ele restabelecerá minha situação
Mboniyankura: Deus me tirará deste estado.
Ntezimmana: Confio em Deus
Umbohore: Desliga-me! .
Mana y’i Rwanda, umpfashe, untabare: Deus de nossos pais, ajuda-me; vem em meu socorro!
Yankundiye: Ele mo concedeu por amor.
Musabyimmana: Peço a Deus, dê vida a esta criança.
Ndagijimmana: Faço-me apascentar por Deus.
Nizeyimmana: Espero em Deus.
Nshmiyimmana: Agradeço a Deus.
Immana irakarama: A Deus se dêem graças!
Umuntu arasizira, Iyamuemye ntisinzira: O homem dorme, aquele que o criou não dorme.
Ao despedir-se, deseja o amigo ao amigo: Uragahorana Immana, Ubane n’Immana. Possas viver
perpetuamente com Deus!
Estas são as principais noções religiosas professadas e vividas pelos homens primitivos de
Ruanda. Referem os observadores que é com grande fervor que aquela gente fala de Deus e pratica
seus atos de piedade.
2. Reflexão final
Acabamos de catalogar os pontos positivos da alma religiosa de um dos povos primitivos de
nossos dias.
Faz-se mister ainda registrar que, ao lado desses elementos perfeitamente válidos, existem na
religiosidade ruandense pontos deficientes como, por exemplo, práticas supersticiosas. Sabe-se
também que as crenças referentes à vida futura aí são tímidas: os ruandenses admitem a
sobrevivência da alma, mas não tem clara noção de sanção póstuma nem de união com Deus após a
morte. Os benefícios que eles pedem ao Senhor, são geralmente de Índole temporal: saúde e haveres
materiais. (rebanhos, colheitas, fecundidade, vitórias, domínio...), que tornem o homem feliz sobre a
terra.
Como quer que seja, é extremamente valioso o testemunho da fé do povo de Ruanda. E isto
porque corrobora a tese de que o monoteísmo é a forma de religião inicial da humanidade. Esta
tese é de importância capital para que se possa aquilatar o significado da Religião no quadro da
história geral dos homens. Pode-se dizer que Religião - e a Religião pura, de um Deus só - é algo
de tão antigo quanto o homem, em vez de ser (como se tem dito) produto de determinada fase de
cultura. Ao contrário, o politeísmo, o totemismo, o animismo são formas posteriores e decadentes da
religião: com o progresso da civilização, dir-se-ia que o homem não sustentou mais o conceito,
filosoficamente muito elevado, de um Deus só; foi esfacelando esse conceito e repartindo a noção de
Deus entre os elementos de que o agricultor ou o caçador se via dependente: sol, lua, água, fogo,
terra, vegetação, animais... A ignorância, o medo e outras atitudes falhas (que a doutrina bíblica do
pecado original mulo bem explica) concorreram para a decadência das noções religiosas da
humanidade.
Este Módulo, ilustrativo da temática anteriormente abordada, não apresenta perguntas.
b) As cidades. Também a formação e a configuração das cidades foram fortemente inspiradas por
motivos religiosos. Era em torno de um templo ou de um recinto de culto que se ia aglomerando a
população de uma região, dando assim origem a uma aldeia ou cidade; Enéias, por exemplo, fundou
a cidade de Lavinium, levando para o santuário do mesmo nome os deuses de Tróia; na Idade Média
era em torno de uma igreja situada no alto de uma colina, ou em torno de um mosteiro, que
frequentemente se fundavam as cidades (tenham-se em vista os nomes compostos com moutier,
mosteiro: Romainmoutier, Moyenmoutier, Noirmoutier...; em alemão Münster...).
Observe-se também que desde cedo se foram constituindo cidades entre os egípcios, os
mesopotâmios, os cretenses, porque a religião lhes favorecia; julgavam que os deuses queriam
cidades; as grandes cidades gregas nasceram em período de efervescência religiosa. Ao contrário, os
germanos, os celtas, os albaneses só tardiamente conheceram cidades, porque a sua sabedoria
religiosa não as fomentava; foram não raro estrangeiros que entre eles fundaram as cidades.
c) A agricultura. Foi também muito estimulada por concepções religiosas, que atribuíam a certas
plantas um valor sagrado ou uma função qualquer no culto. Tal foi o caso da figueira, que na Índia
traz o nome de ficus religiosa; os gregos diziam que o figo era símbolo de iniciação a melhor vida,
A oliveira gozou de semelhante estima. - O ópio, ao contrário, sendo proibido pelo budismo e o
islamismo, é cultivado com estranha irregularidade no Oriente.
d) Os animais. Também não poucos animais têm recebido veneração religiosa. Em vários casos a
passagem do animal selvagem para o estado de animal doméstico se fez mediante o estado de animal
sagrado. O elefante, por exemplo, antes de ser animal doméstico, era animal sagrado na Índia. No
antigo Egito, os gatos sagrados eram numerosíssimos (descobriram-se milhares de múmias desse
felino); julga-se com probabilidade que foram domesticados por constituírem objeto de culto
religioso. Outros animais entraram no convívio do homem, a fim de honrarem a Divindade pela sua
beleza; assim a íbis, no Egito; o pavão, na Índia; o gamo, no Japão.
e) A indústria. Não menos profunda é a influência benéfica da Religião no desenvolvimento da
indústria. A fabricação de laticínios, por exemplo, está em grande parte a serviço do culto no Oriente;
nos templos do Tibete centenas de lamparinas ardem dia e noite, alimentadas por manteiga; os
"lamas" têm o rosto, as pernas e as mãos untados com manteiga. A fabricação do papel e do livro têm
dependido muito das necessidades do culto e da piedade; o mesmo se dá com os têxteis e a
metalurgia.
f) O comércio. Está claro que as aglomerações vultosas de fiéis motivadas pela religião acarretam
intensificação benéfica do comércio; as primeiras moedas eram objetos estimados por seu caráter
ritual ou seu valor religioso. A contabilidade dos bancos e escritórios tem suas origens nos templos
da Mesopotâmia, onde os sacerdotes, movidos por respeito sagrado, faziam o inventário de tudo que
dizia respeito ao culto e ao sustento do templo.
g) Os transportes, as vias e as pontes devem grande parte do seu incremento ao fervor religioso
de peregrinos e missionários. Não raro a afluência a determinado santuário provocou a abertura de
estradas, assim como a multiplicação e o aperfeiçoamento de veículos. - Em particular, as pontes têm
sido obras de sacerdotes ou de pessoas dedicadas a Deus. Com efeito, os romanos pagãos, por
exemplo, julgando que os rios tinham algo de sagrado, reservavam a construção de pontes a um
grupo especial de sacerdotes. Entre os cristãos da Idade Média, era a caridade que levava os fiéis a
formar confrarias construtoras de pontes: havia os "Irmãos Pontífices", aos quais se devem as pontes
de Avinhão e do Espírito Santo, sobre o Ródano (França).
h) Por fim, note-se outrossim que no surto das artes está em geral a inspiração religiosa; as
primeiras peças literárias das antigas e modernas civilizações são documentos religiosos; costumam
estar redigidos em poesia, que é a forma literária mais correspondente ao entusiasmo sagrado
(tenham-se em vista, por exemplo, as obras de Homero e dos "teólogos" gregos). A pintura e a
escultura não são menos tributárias à Religião.
Em suma, registra-se o seguinte: sempre que nos é dado observar as origens ou as fases iniciais de
determinada cultura, verificamos que as suas diversas manifestações estão todas indistintamente
fundidas com a Religião; é no seio materno da Religião que elas nascem e por muito tempo são
nutridas.
Donde se vê que considerar a Religião como algo de pré-lógico ou como produto da covardia do
homem significa, de certo modo, lançar uma nota de desprezo sobre a própria cultura humana, que
nasceu no seio da Religião.
Vêm a propósito aqui as observações de famoso geógrafo contemporâneo:
"A maioria dos homens atesta sobre a Terra a existência do sobrenatural; a espécie humana, em
graus diversos, mas de maneira geral, é religiosa,- esta, aliás, vem a ser uma de suas características; o
"homo faber et sapiens" é também primordialmente um homo religiosus. Por obra dele, a terra está
impregnada de religiosidade. A pujante tarefa cultural dos homens não foi efetuada somente em vista
da instalação da espécie humana sobre o globo, mas parte muitas vezes grandiosa desses esforços foi
empreendida mais ou menos diretamente a fim de proclamar ou exaltar a existência de seres
sobrenaturais ou sagrados ...
A religião nos aparece como um dos grandes fatores que transformam a face da Terra e, em
qualquer caso, como o motivo de atividades caracteristicamente humanas... À semelhança do
homem, o animal (irracional) lutou contra os elementos da natureza; mas o que somente o homem
fez, foi dar vulto à ideia da Divindade sobre a face do globo. A Geografia religiosa vem a ser a
Geografia mais especificamente humana ... " (P. Deffontaines, Gêographie et Religions. Paris l948,
8.12).
APÊNDICE: A PALAVRA DA FÉ
A Santa Igreja deseja ardentemente que seus filhos se empenhem por dissipar os mal-entendidos
que afastam da verdadeira fé os homens contemporâneos.
Contudo nem sempre são suficientes os argumentos da inteligência para fazer frente ao ateísmo
contemporâneo, tão complexo e variegado em seus matizes. O cristão pode mesmo sentir-se, por
vezes, assustado pelas dimensões do movimento ateu. Pseudo-argumentos, aparato científico e
campanhas anti-religiosas apresentam-se com tal requinte que o ateísmo pode por vezes parecer
fadado a seduzir o mundo inteiro.
Que dizer então?
O cristão lembrar-se-á de que a fé é dom de Deus e de que o próprio Deus é o Senhor do seu
Reino. Em conseqüência, os discípulos de Cristo hão de recorrer ardorosamente aos meios
sobrenaturais afim de que Deus se manifeste aos homens de hoje. E esses meios sobrenaturais são:
a) a oração. É mediante a oração que os arautos de Deus obtêm luz e força para falar
devidamente aos homens; é mediante a oração que a graça desce aos corações daqueles que estão
afastados do Senhor. A oração é o grande recurso para todas as horas e todos os problemas. Desde
toda a eternidade, Deus decretou dar as suas graças mediante a colaboração dos homens, que se faz
primeiramente pela oração;
b) o testemunho da vida integra, coerente com o Evangelho até as últimas conseqüências. É o que
recomenda o Concílio do Vaticano II:
"O remédio a ser levado ao ateísmo deve-se esperar não só de uma adequada exposição
doutrinaria mas também da pureza de vida da Igreja e de seus membros Pois compete à Igreja tornar
presente e como que visível Deus Pai e seu Filho encarnado, renovando-se e purificando-se
incessantemente, sob a direção do Espírito Santo. Isto se obtém primeiramente pelo testemunho de
uma fé viva e adulta formada, capaz de perceber de modo lúcido as dificuldades e supera-las.
Inúmeros mártires deram e dão um testemunho preclaro desta fé. Esta fé deve manifestar a sua
fecundidade penetrando toda a vida dos fiéis, também a profana, impulsionando-os à justiça e ao
amor, sobretudo para com os necessitados. Para a manifestação da presença de Deus contribui enfim
sobremaneira a caridade fraterna dos fiéis, que em espírito unânime colaboram para a fé do
Evangelho e se apresentam como sinal de unidade" (Const. "Gaudium et Spes" no 21).
Em conclusão: quem considera atentamente os grandes traços do ateísmo contemporâneo, verifica
que ele contém uma mensagem (transmitida de maneira dura, mas assaz eloqüente) e aguarda uma
resposta dos cristãos; essa resposta, a S. Igreja em seu Concílio a esboçou, pedindo aos seus filhos
que a ponham fielmente em prática.
2. A onda de emancipação
Em nossos dias, é cada vez mais realçada a dignidade da pessoa humana, dignidade que se
manifesta principalmente na autonomia que compete ao ser humano.
O crescente desejo de autonomia leva a procurar emancipação ou libertação... Na verdade, a época
moderna vem assistindo a uma série de movimentos de emancipação:
a) emancipação política, que se manifesta na repulsa do colonialismo e na ascensão das nações
jovens do Terceiro Mundo;
b) emancipação econômica: as classes trabalhadoras procuram tornar-se mais e mais
proprietárias;
c) emancipação social: a mulher vai adquirindo o lugar que lhe compete na sociedade, em
antítese à posição inferior a que era relegada: a mulher vota, a mulher estuda, a mulher lidera. -
Também os jovens tendem à emancipação,
d) emancipação racial: os homens de cor procuram dissipar qualquer preconceito racial;
e) emancipação intelectual: reivindica-se hoje em dia a liberdade de pensamento e de expressão.
Nesta série de movimentos "emancipacionistas", coloca-se também a emancipação religiosa. A
Religião vem a ser considerada por muitos como tutela, tutela a ser rejeitada por uma humanidade
"adulta".
Na verdade, a Religião é a elevação do homem a Deus. Ora "servir a Deus é reinar", é consecução
da verdadeira soberania e liberdade!
Muitos chegam a julgar que negar a Deus é condição necessária para que se salve ou promova a
pessoa humana; Deus seria obstáculo ao progresso. Quanto menos o homem for religioso, dizem,
tanto mais será homem.
São palavras de Sartre:
"Se Deus existe, o homem é o nada. Se o homem existe, Deus não existe" (Le Diable et le Bon
Dieu ).
"Ser homem é tender a ser Deus... O homem é fundamentalmente desejo de ser Deus" (L'Être et
le Néant ).
Anteriormente dizia Nietzsche:
"Todos os deuses estão mortos, queremos agora que viva o Super-Homem"(Assim falou
Zaratustra ).
APÊNDICE
REFLEXÃO SOBRE O ATEÍSMO
Os estudiosos verificam que o ateísmo contemporâneo não é o resultado de uma pesquisa ou de
um estudo do problema de Deus, mas é simplesmente uma opção. Em outros termos: quem afirma
que Deus não existe, não o diz porque tenha certeza do que assevera, mas simplesmente porque
escolheu dizê-lo. O ateu moderno não se interessa pelas questões atinentes a Deus e à Religião; não
examina provas da existência ou não-existência de Deus; mas simplesmente opta por não crer em
Deus. Sua posição não se deriva de uma clareza intelectual adquirida por raciocínios, mas se baseia
apenas na livre recusa de admitir Deus.
Há quem diga que a explicação do universo dada pela ciência nos liberta da existência de Deus.
Pois bem; o ateu aceita esta afirmação sem cuidar de a averiguar.
"A pretensão, sustentada pelo ateísmo moderno, de ser o resultado da ciência serve para mascarar
o incontestável fato histórico de que o ateísmo se deriva de um protesto de índole irracional, protesto
para o qual as razões objetivas são de importância secundária. À luz da psicologia moderna, devemos
asseverar que esse protesto ocorre por motivos, ao mesmo tempo, conscientes e inconscientes, e que
as aparatosas razões científicas que o ateu aduz, servem para mascarar a si e aos outros a realidade
dos fatos" (Siegmund, Storia e diagnosi dell’ateismo moderno, tr. it., l961, pág. 534).
Observa o Pe. Inácio Lepp, que durante longos anos aderiu ao marxismo:
"Poucos são os incrédulos de hoje, principalmente entre as pessoas cultas, que o sejam por
motivos rigorosamente racionais. Os argumentos racionalistas contra a religião geralmente não têm
valor para o ateu senão porque o ateu tem razões de ordem existencial para não crer" (Psychanalyse
de l’athéísme moderne, Paris, 196l, 19s).
Por sua vez, escreve Verneau:
"O ateísmo contemporâneo não é tanto a negação de Deus quanto a recusa de crer nele... A
negação é uma tomada de posição objetiva; a recusa é puramente subjetiva. O ateísmo, em nossos
dias, não é uma posição tomada pelo espírito ou...pela razão enquanto tende para a verdade, como
seria o juízo "Deus não existe". Este juízo seria de índole metafísica; ora o que caracteriza a
mentalidade da nossa geração...é a recusa de entrar nessa ordem de considerações, nas quais a razão
supera o plano de experiência... do fenômeno, e afirma por via lógica a existência do
transcendental...
Mas, se o ateísmo não se nos apresenta como uma verdade metafísica, então que é? Uma escolha,
consciente e deliberada, a respeito do bem ou do último fim do homem ou, em última análise, a
respeito do próprio homem. O ateu não quer crer em Deus para poder crer no homem recusa-se a
admitir a existência de Deus para que o homem possa existir ou, como se diz, sair do seu estado de
alienação, libertar-se psicologicamente de todo sentimento de independência, afirmar-se como
liberdade absoluta, fazer-se ou criar-se por si" (citado por G. Girardi, Riflessioni sull’ateismo. Roma
pág. 62).
Na verdade, essa atitude do ateu equivale a um ato de fé, uma fé às avessas, cujo conteúdo não é
adesão a Deus, mas, ao contrário, uma tomada de posição contra Deus. Com efeito, o ateísmo não é
algo de evidente, que se imponha ao raciocínio; o ateísmo simplesmente não é evidente, como
também não é evidente por si a fé cristã (com seus sagrados mistérios). Isto, de um lado, deveria
levar os cristãos a compreender o ateísmo dos ateus e, de outro lado, deveria impelir os ateus a
"repensar" a sua incredulidade, desde que tomassem consciência de estar aderindo a algo de que não
têm evidência. "O ateísmo é uma fé... A incredulidade é, antes do mais, uma crença" (Henry,
L'athéisme d’aujourd’hui, em L’athéisme, tentation du monde, réveil des chrétiens? Paris p. 37s).
Ora a "fé" (ou a posição) dos que não crêem em Deus, é artificial e pouco humana. Muito mais
razoável é a atitude dos que admitem Deus, pois se torna difícil, se não impossível, admitir que o
universo eo homem se expliquem sem um Ser Infinito e Transcendente. Com efeito, muitos ateus,
para sustentar o seu ateísmo, fecham os olhos a certas questões, como as que dizem respeito à origem
do mundo, do homem, à morte e ao sentido geral da existência humana; julgam que tais questões não
devem ser colocadas, pois implicam "ficções" absurdas.
Eis, por exemplo, como, desde Lucrécio († 55 a.C.) até Sartre e Simone de Beauvoir, há quem
procure afastar qualquer reflexão sobre a morte:
"Enquanto existimos, a morte não está presente; e, desde que a morte se torna presente, não mais
existimos. A morte, portanto, nada é, nem para os vivos, nem para os mortos, pois, para aqueles que
são, ela não é, e aqueles para quem ela é, não são mais" (Lucrécio, citado por Roger Mehl em Le
vieillissement et la mort, P. U.F. ).
Nesse "raciocínio" há um sofisma, pois na verdade a morte nos está sempre presente, sempre
impregnada e atuante no ser humano desde que ele nasce. Impõe-se, pois, a todo homem a reflexão
sobre a morte ou sobre o "donde" e o "para onde" vamos; sem clareza nestes pontos, o homem
dificilmente se realiza.
O episcopado polonês, em Carta Pastoral coletiva de 15/VI/1967, propôs as seguintes
considerações sobre o assunto:
"O ateísmo se coloca falsamente contra a experiência milenar de todo o gênero humano. Ontem,
como hoje, o homem é instintivamente levado a reconhecer a existência de Deus. E o que se verifica
não somente nos povos primitivos que sobreviveram até nossos dias, mas também nas nações mais
evoluídas. Essa unanimidade universal dos povos fica sendo um fato irrefutável e atesta que o
ateísmo está em desacordo com a natureza humana.
O Concílio nos ensina que o ateísmo ‘faz o homem decair da sua nobreza nativa’. Deus criou o
homem inteligente e livre, mas principalmente ‘como filho Ele o chamou à sua intimidade e ao
consórcio da sua própria felicidade’ (Const. Gaudium et Spes 21). A negação da existência de Deus
separa o homem da fonte dos mais profundos valores humanos.
Numa palavra, o ateísmo é contra o homem. O Papa João XXIII, de santa memória, bem , o
afirmou numa de suas encíclicas: ‘O homem separado de Deus torna-se terrível para si mesmo e para
seus irmãos’ (enc. Mater et Magistra 4, 1).
O ateísmo deixa sem resposta as questões mais angustiantes que todo homem deve enfrentar: o
sentido da vida, o sentido do sofrimento e da morte. ‘Assim muitas vezes os homens, mergulham no
desespero. Só Deus lhes pode responder de maneira cabal e irrecusável, Ele que nos convida a uma
reflexão mais profunda e a uma procura mais humilde’ (Const. Gaudium et Spes 21)" (La
Documentation Catholique no 1512, 3/III/68, col. 422).
Estas observações feitas ao ateísmo estão longe de significar que se devam distanciar, cristãos e
ateus, ignorando-se ou hostilizando-se mutuamente. O cristão deverá sempre distinguir entre o
ateísmo e os ateus; rejeitará aquele, e amará sinceramente a estes, mantendo-se aberto ao diálogo
com todos os homens.
PERGUNTAS
l ) Que se entende por aguçamento do senso critico ? Dê algum exemplo. Como influi no ateísmo?
2) Que se entende por onda de emancipação ? Dê algum exemplo.
3) Que se entende por afirmação da consciência comunitária? Como influi no surto do ateísmo?
4) Que relação existe entre descoberta da história e ateísmo?
5) Dissipação da vida moderna e ateísmo têm afinidade entre si?
6) E a religião mal apresentada pode estar relacionada com o ateísmo?
7) Que quer dizer "fé às avessas" atribuída aos marxistas?
Parte II. Creio em Deus
Após abordar o fenômeno religioso, típica demonstração do ser humano inteligente, nosso estudo
dá um passo à frente, procurando as razões pelas quais o homem aceita um Deus Único e a revelação
que esse Deus faz de si mesmo. Dai a segunda Parte do nosso tratado: CREIO EM DEUS.
Compreenderá duas secções 1) as provas da existência de Deus; 2) a noção de Revelação Divina e os
critérios que autenticam a Revelação.
À guisa de objeção, há quem diga que a causalidade poderia ser circular: os elementos do
universo seriam entre si causas recíprocas; a matéria se transformaria em energias diversas, para
depois retomar ao seu estado original e assim indefinidamente. Tal era a posição de filósofos gregos,
que não tinham a noção de criação; tal é também de Nietzsche († 1900), que falava do "eterno
retomo".
Respondemos: a prova apresentada é independente de evolução (causalidade) linear ou circular; a
circularidade refere-se à transmissão de energia, mas não explica a fonte dessa energia e da causal
idade respectiva. Restaria explicar a existência do universo concebido como um todo.
4
Já Platão († 347 a. C. ) propunha tal argumento, quando exortava a alma a amar a beleza, elevando-se da beleza das cores, das formas, do corpo, para
a beleza da alma e das belas ações, para a beleza das ciências... até contemplar a Beleza em si mesma isenta de acréscimo ou diminuição, "bela em tudo,
sempre e em toda parte( "beleza que não reside num ser diferente dela mesma..., mas que existe eternamente e absolutamente por si mesma e em si
mesma; da qual participam todas as outras belezas, sem que o nascimento destas ou a sua destruição lhe traga a menor diminuição ou o menor
acréscimo, nem a modifique em qualquer coisa que seja" (Banquete 211 C).
adquirir ulterior atualização. Donde ato, por si, diz perfeição; potência diz im perfeição, capacidade
de perfeição.
b) Uma perfeição pode ser:
- simples ( pura), quando o seu conceito diz somente perfeição, sem envolver noção de alguma
imperfeição, de modo que em qualquer hipótese é sempre melhor possuir essa perfeição do que não a
possuir; por exemplo, bondade, sabedoria, justiça, vida...
- mista, quando o seu conceito implica alguma imperfeição; por exemplo, racionalidade,
sensibilidade, corporeidade... A racionalidade só chega à verdade mediante silogismo, ou seja, de
modo lento e sujeito a erros; melhor seria a intuição direta.
5.2. Explanação
a) Existem nos seres deste mundo perfeições simples diversamente limitadas: mais amor, menos
amor,... mais bondade, menos bondade...
b) Ora uma perfeição simples não tem em sua essência a razão suficiente de alguma limitação. Ela
não implica nenhuma imperfeição ou nenhuma falta dessa mesma perfeição. Assim na essência da
justiça, da bondade, da beleza..., enquanto tais, não está contida alguma negação de justiça, bondade,
beleza...
Se portanto alguma perfeição simples existe em grau limitado, ela não subsiste por si mesma e em
si mesma, mas é causada por outrem e recebida numa potência que dela participa segundo a própria
capacidade, e não mais; João é sábio limitadamente, porque não é a própria sabedoria subsistente,
mas dela tem uma participação proporcionada à sua capacidade, isto é, à sua potência de saber, que
passa progressivamente ao ato.
Fica, pois, evidente que uma perfeição simples limitada é necessariamente uma perfeição
participada, recebida num ser como causada por outro.
c) Sendo real a existência de perfeições simples limitadas, real também deve ser a existência da
causa. Tal causa é a própria perfeição existente por si em sua plenitude ou em grau infinito: a
Bondade mesma, a Justiça mesma, o Amor mesmo...
d) Ocorre, porém, que perfeições simples subsistentes de modo ilimitado, implicam-se umas as
outras num único ser infinitamente perfeito, que é Deus.
De fato, qualquer perfeição infinita inclui na sua essência a própria existência. Esta existência
infinita inclui em si todas as modalidades de existência; por identidade, ela é todos os modos de
existência: é a Bondade, a Justiça, o Amor...
Por isso no ser infinitamente perfeito as várias perfeições não constituem realidades distintas;
cada perfeição significa explicitamente aquela perfeição e implicitamente bondade, justiça, amor,
verdade... Nós as distinguimos por causa da limitação da nossa inteligência, incapaz de exprimi-las
todas num conceito único, que deveria ser infinito.
Em conclusão: a Quarta Via nos leva ao conhecimento de Deus como Ato Puro, Ser infinitamente
perfeito, Existência mesma subsistente5. Ora tal é o constitutivo mais íntimo da natureza divina, a sua
essência metafísica, da qual, como de sua raiz, segundo o nosso modo de entender, se derivam todos
os atributos de Deus. Esse Ser Supremo, na Quarta Via, aparece como:
- causa exemplar, que todos os seres imitam pelo fato de participarem limitadamente de suas
perfeições;
- causa final, para a qual todos tendem;
- causa eficiente, da qual todos os seres recebem a existência participada.
PERGUNTAS
1) Que são provas metafísicas e provas morais da existência de Deus?
2) Qual a estrutura geral das provas metafísicas?
3) Exponha a primeira via de Santo Tomas.
5
Na verdade, o finito não se explica senão pelo Infinito; o imperfeito não se explica senão pelo Perfeito: o múltiplo não se explica senão pelo Um; o
composto não se explica senão pelo Simples; o ato mesclado com potência não se explica senão pelo Ato Puro; o que muda, só se explica pelo
Imutável; o contingente só se explica pelo Necessário.
4) Que predicados tem o primeiro Movente imóvel?
5) Que é Panteísmo? É aceitável aos olhos da razão?
6) Que é perfeição simples?... mista?
7) Exponha a Quarta Via de S. Tomas.
3.3. O acaso
O acaso é o cruzamento contingente, isto é, não necessário, nem previsto, de duas causas
independentes uma da outra, das quais cada uma age em vista de um fim determinado. Assim, por
exemplo, dois amigos se encontram por acaso numa cidade para onde cada um, sem saber do outro,
fora a negócios. Vê-se, pois, que o acaso supõe sempre duas ou mais causas que agem com ordem e
finalidade. Os fenômenos ditos casuais só são casuais para quem ignora as causas que os produziram;
por isto o acaso propriamente não existe como sujeito real.
De resto, a reflexão e o bom senso recusam a hipótese de que este mundo tenha sido produzido
por acaso.
Com efeito, imagine-se que alguém coloque em sua sacola os tipos de imprensa que se empregam
na composição de um jornal; agite o todo na esperança de que tais tipos se disporão entre si de modo
a dar o texto da edição do jornal do dia seguinte. Tal esperança, embora não fosse absurda por
completo, seria tão improvável que deveria ser tida como irrisória.
Considere-se a vida. A proteína é o elemento básico de todos os organismos vivos. Para facilitar
os cálculos, admita-se que uma molécula de proteína tenha 2.000 átomos, de duas espécies apenas,
com peso molecular 20.000 e 0,9 de assimetria (a realidade é muito mais complexa). A probabilidade
de se formar por acaso uma molécula de proteína seria de 2,02x10-321, ou seja, um número decimal
com 320 zeros depois da vírgula (0,000...202). Supondo-se um total de 500 trilhões de lances por
segundo num volume de matéria igual ao do globo terrestre, o tempo necessário para se obter uma
molécula de proteína, segundo o cálculo das probabilidades, seria de 10243 bilhões de anos. Ora a
idade da terra, a partir do seu resfriamento, não passa de 2x10 9 anos, ou seja, dois bilhões de anos
apenas.
Admita-se, porém, que a molécula de proteína foi a que se formou "por acaso" em primeiro lugar,
sem esperar tantos bilhões de séculos. Admita-se até que a mesma combinação se efetuou duas vezes
consecutivas. Crer, porém, que se tenha dado ainda outra vez equivale a crer num milagre. Mais:
admitir que em tempo extremamente curto o mesmo fenômeno se tenha dado bilhões de vezes
equivale a negar a aplicação do cálculo das probabilidades a esse problema.
É preciso observar outrossim que, para formar uma célula viva, são necessários milhares de
moléculas. Num ser vivo há bilhões de células; e a paleontologia ensina que bilhões de seres vivos
apareceram sobre a terra num período de tempo extremamente curto. É impossível, portanto apelar
para o cálculo das probabilidades a fim de explicar pelo puro acaso a existência da vida sobre a terra.
Por isso, dizia Voltaire († 1778), não sem sarcasmo: "Encham um saco de pó; lancem-no numa
pia. Agitem com força durante muito tempo, e hão de ver sair lá de dentro quadros, violinos, jarras
de flores e coelhos!"
Vítor Hugo († 1885), o grande poeta francês, definia o acaso como "um prato feito pelos
espertalhões para que o comam os tolos".
Muito diverso é o depoimento de Einstein, que servirá de conclusão às considerações destas
páginas:
"Uma profunda fé na racionalidade do edifício do mundo e um ardente desejo de aprender o
reflexo da razão revelada neste mundo deviam animar Keppler e Newton no seu longo e solitário
estudo... Somente quem consagrou a sua vida a objetivos análogos, pode ter noção clara do que
sustentaram esses homens; eles tiveram força para, entre mil insucessos, permanecer com os olhos
fixos no objetivo que haviam escolhido... Um contemporâneo disse, e não sem razão, que, em nossa
época tão Imbuída de materialismo, os verdadeiros sábios são apenas aqueles que são profundamente
religiosos... O sábio é penetrado do senso de causalidade dos acontecimentos... A sua religiosidade
consiste na atônita surpresa diante da harmonia das leis da natureza, na qual aparece uma razão tão
superior que, em comparação com ela, as mais engenhosas formas do pensamento humano, com as
suas diretrizes, parecem apenas um pálido reflexo... Não há dúvida, tal sentimento é bastante
semelhante ao que, em todos os tempos, animou as produções dos grandes espíritos religiosos"
("Comment je vois le monde". Ed. Flammarion, p. 21).
PERGUNTAS
1) Queira explanar a Quinta Via de S. Tomas.
2) Sustenta-se a Quinta Via diante da presença de tantos males no mundo?
3) Qual seria o melhor mundo possível?
4) O acaso explicaria a ordem no mundo?
6
Note-se bem: não falamos das aspirações que cada homem possa conceber na base de seu temperamento e de sua cultum pessoais, pois tais podem ser
arbitrárias, assemelhando-se por vezes a sonhos utópicos. Trata-se, no contexto acima, dos grandes anelos que todo homem, de qualquer raça ou
cultura, traz em si.
se a mulher tem o senso da maternidade e aspira a ser mãe, existe para ela a maternidade ou o
poder de tornar-se mãe.
Mais ainda:
se as águas do mar sobem por ocasião das marés, tornando-se agitadas e inquietas, sei que essa
agitação não é casual, mas se deve ao atrativo sobre elas exercido pela Lua;
se a agulha magnética se agita dentro da bússola, posso estar certo de que existe um polo Norte
(invisível, sim, mas muito real) que a atrai e só permite que repouse quando devidamente voltada
para o seu Norte.
Assim analogamente, se verifico em mim (anteriormente a qualquer reflexão filosófica ou
religiosa) a sede de certos valores ou mesmo do Infinito, posso estar certo de que tais valores e o
Bem Infinito existem no Além, em correspondência a tais aspirações.
Simone de Beauvoir, imbuída de existencialismo, escreveu muito sabiamente:
"Urna vida, para que seja interessante, deve assemelhar-se a uma ascensão, galga-se um
patamar, e, depois, outro... ; cada patamar não existe senão em vista do patamar seguinte... Se essa
subida, chegando ao auge, retrocede, ela se torna absurda desde o seu ponto de partida"("Lesang
des autres").
Esta frase de Simone de Beauvoir, por muito válida que seja, parece deixar lugar a uma réplica:
Com efeito. Talvez observe alguém: Por que não dizer corajosamente que a vida humana e a
passagem do homem sobre a terra são algo de absurdo? Desgraçado o indivíduo que aspira
utopicamente a melhor vida! Não se diga, pois, que não podem ficar frustradas as aspirações mais
fundamentais da alma humana.
A esta objeção deve-se responder: o universo se apresenta marcado por nota de profunda
harmonia. É o que declaram os estudiosos de qualquer dos reinos naturais: mineral, vegetal e animal
(irracional). Einstein experimentava admiração extática ao considerar a ordem do infinitamente
grande. Aliás, as ciências naturais não seriam possíveis se o universo e a natureza não fossem
inteligíveis ou não fossem o produto de uma inteligência Suprema que concebeu cada uma das
criaturas (grandes e pequenas) e seu maravilhoso inter-relacionamento. Pergunta-se, pois: somente o
homem e sua existência sobre a terra seriam algo de absurdo ou destituído de explicação e razão de
ser?
Vê-se que o absurdo consistiria, antes, em se admitir que somente o setor humano seja marcado
pela nota do absurdo no conjunto das criaturas; parece desarrazoado que, colocado no todo
harmonioso do universo, o homem, e somente o homem, não se beneficie da ordem que se exprime
no conjunto e em cada um dos seus outros setores. Verdade é que, quando se trata do homem, entra
em jogo um fato singular: a liberdade de arbítrio.
Ora a liberdade sempre implica Sim e Não, capacidade tanto de afirmar e confirmar como de
destruir a ordem existente. Compreende-se então que o homem se possa considerar por vezes vítima
de absurdo; o absurdo, no caso, não é originário nem é inerente à natureza, mas deve-se
exclusivamente ao uso desregrado ou ao abuso da liberdade de arbítrio. Vê-se, pois, que as desordens
ou frustrações que o homem possa experimentar nesse mundo, não depõem contra a ordem do
conjunto concebida pela Primeira inteligência. Entre parênteses, pode-se acrescentar que, pelo fato
de existir a inteligência Primeira ou Infinita, os males ou absurdos devidos ao homem não são
irremediáveis, mas poderão ser sempre superados ou redimidos.
Em conclusão: certas interrogações e aspirações espontâneas em todo homem exigem resposta.
Ora, já que tal resposta não é dada na vida presente por alguma das finitas criaturas que nos cercam,
há uma vida póstuma, em que encontramos, sem disputa nem contestação, o Criador ou o Bem
Infinito, resposta aos mais genuínos anseios do ser humano7.
Outra faceta do homem nos interessa agora:
Lição 2: O senso moral ou a responsabilidade
Em todo ser humano, anteriormente a qualquer profissão filosófica ou religiosa, existe o senso
moral...
E que é esse senso moral?
7
Já na vida presente o homem atinge o seu Criador: atinge-O, porém, como peregrino posto em demanda de uma posse mais plena e definitiva.
- Em termos gerais, pode-se dizer que é a persuasão, inata em todo homem, de que não é lícito
tomar qualquer atitude em qualquer situação ou encruzilhada da vida. O homem tem que se
comportar de acordo com uma norma fundamental que ele ouve em seu íntimo: "Pratica o bem, evita
o mal". Seguindo tal princípio, a pessoa tem a consciência de haver cumprido o seu dever- o que é
fonte de alegria e paz. Ao invés, quem transgride tal imperativo, praticando o que lhe o parece ser
mal, é vítima de uma censura interior; desta censura o homem, muitas vezes, deseja desembaraçar-se,
sem, porém, o conseguir.
Qual a base do sentimento moral assim concebido? Procuremos a resposta por via indutiva, ou
seja, analisando um caso concreto e típico:8
"Acho-me só em um consultório de médico. No grande fichário aí colocado, sei que se encontram
os dados pessoais - às vezes 'vergonhosos'- dos pacientes em tratamento. Estou consciente de que
essas fichas de doentes estão protegidas pelo segredo profissional, a tal ponto que não é lícito
revelar o seu conteúdo nem em caso de perquirição judiciária ou de julgamento em tribunal. Por
conseguinte, bem sei que me é absolutamente vedado tomar conhecimento do que diz o fichário do
médico.
Acontece, porém, que o tratamento aplicado ao paciente N. N. despertou a minha curiosidade.
Parece-me ter adivinhado o mal de que sofre. Eu quisera verificar o acerto de minhas conjeturas...
Apodero-mo então da ficha respectiva. Desdobro-a em toda a sua extensão. Leio-a ...
Verifico que meu diagnóstico fora exato - o que para mim foi um triunfo. Todavia esse
contentamento Intelectual é imediatamente acompanhado de um mal-estar profundo o subitâneo em
mim. Cometi grave indiscrição. Sinto-me julgado interiormente: tornei-me culpado de uma injustiça
para com o doente e de um abuso de confiança em relação ao médico.
Este veredicto impõe-se ao meu espírito de maneira categórica, absoluta.
Pergunto-me então: porque esse julgamento sobre mim mesmo tem tanta pujança? E porque a
consequente perturbação é tão persistente o dolorosa?
Tentando responder, faço a seguinte reflexão: Tenho um nariz deformado e, por isto, não sou um
tipo bonito. Isto me entristece não pouco, principalmente porque me dificulta encontrar uma
colocação na sociedade. Mas sei que não sou responsável por essa deformação. E, ainda que tal
deformidade resultasse de um acidente motivado por uma imprudência minha, eu me sentiria
responsável no caso, sim, mas não com a profundidade e a vergonha que a grave indiscrição suscita
em mim. O defeito no rosto atinge apenas o meu corpo e a minha carne; é uma tara física, não
propriamente moral. E eu bem me posso libertar da tristeza ocasionada por minha deformidade,
elevando-me no plano moral, ou seja, impondo-me em tudo como cidadão honesto e digno. Ao
contrário, a minha culpa moral atinge o que há de mais íntimo em minha personalidade: sou
responsável em minha consciência; é no mais profundo do meu ser que experimento a minha
culpabilidade.
Dizia que me sinto responsável! Mas diante de quem? Não perante as paredes, nem perante o
gato, que me contemplava solenemente, quando eu percorria o fichário do médico. Só posso ser
responsável diante de uma pessoa. Então dirá alguém:... diante da sociedade. Ou, mais
precisamente, diante das pessoas com as quais convivo. Elas têm confiança em mim; tratam-me
como um tipo leal o correto. Ora eu já não sou o que elas pensam. Sinto que há um desnível entre o
que pareço ser e o que sou realmente. isto me incomoda. Preciso de ser autêntico, isto é, idêntico à
imagem que a sociedade tem de mim.
Sem dúvida! Mas porque é que outro homem - ou o conjunto dos outros homens - tem o poder de
me constranger a ser autêntico, a ser aquilo que eu pareço ser? - Talvez porque a sociedade está
baseada na confiança mútua e na preocupação de não se fazer a outrem o que não se quer para si
mesmo? Sim; não há dúvida. Mas não basta isto. Não poderia eu simplesmente evitar as más
impressões e os escândalos do meu comportamento externo? Bastaria, para tanto, que eu me
dissimulasse sob a hipocrisia. E, no caso preciso em que me vejo, não bastaria que, após ter
devassado indiscretamente o fichário do médico, eu guardasse com zelo o segredo violado?
8
Para que a leitura seja frutuosa, é de recomendar que o leitor procure acompanhar e viver intimamente as peripécias e interrogações do monólogo que
se segue.
Talvez pudesse, sim, salvar desse modo hipócrita as aparências de honestidade. Mas reconheço
que isto não me satisfaria. Ainda que os homens me aprovassem ou me deixassem passar impune, eu
ouviria dentro de mim uma voz de censura severa. Não seria a voz dos homens, nem seria uma voz
premeditada por mim, mas seria uma voz anterior a qualquer deliberação minha: seria a chamada
'voz da consciência"'.
(Trecho adaptado do livro de J. Javaux, "Prouver Dieu?", pp. 60-62).
Este depoimento - monólogo, vivo e impressionante como é, leva-nos a concluir que dentro de
nós existe uma regra de nossos atos, congênita, que, em última análise, é incutida por Deus. Sem
Deus é inútil justificar a Ética com seus imperativos, nem se vê por que observar normas morais;
estas se tornam convenções artificiais e discutíveis. É o que atesta com muita sabedoria o filósofo
ateu existencialista Jean-Paul Sartre:
"O existencialismo é muito oposto a um certo tipo de moral leiga que deseja suprimir Deus
com o mínimo de inconvenientes possível.
Quando em 1880 alguns professores franceses tentaram constituir uma moral leiga,
disseram mais ou menos o seguinte: 'Deus é uma hipótese inútil o pesada; suprimamo-la; mas é
necessário, para que haja uma Moral, uma sociedade, um mundo policiado,... é necessário que
certos valores sejam levados a sério e considerados como existentes de maneira absoluta; faz-se
mister seja obrigatório em absoluto que sejamos honestos, não mintamos, não espanquemos
nossas esposas, tenhamos filhos, etc., etc. ... Por conseguinte, vamos fazer um trabalhinho que
permitirá mostrar que esses valores existem apesar de tudo, inscritos num céu inteligível,
embora Deus não exista'.
Com outras palavras - e esta é, creio, a tendência de tudo que em França se chama
radicalismo - nada será mudado, se Deus não existir; encontraremos as mesmas normas de
honestidade, de progresso, de humanismo, e teremos feito de Deus uma hipótese ultrapassada,
que morrerá tranqüilamente e por si. Ao contrário, o existencialismo julga que é muito
incômodo que Deus não exista, pois com Ele desaparece toda possibilidade de encontrar
valores num céu inteligível. Não pode haver nenhum bem absoluto, já que não há consciência
infinita e perfeita para o conceber; em parte alguma está escrito que o bem existe, que é preciso
ser honesto, que é necessário não mentir, pois então precisamente nos colocamos num plano em
que há somente homens. Dostoievsky escreveu: 'Se Deus não existisse, tudo seria permitido'. É
este o ponto de partida do existencialismo"("L’existencialisme est-il un humanisme?" (1946,
pp. 34-36).
Em outros termos: ou aceitamos o binômio "Ética-Deus" ou simplesmente negamos a Ética.
Lição 3: Duas dificuldades
Dizíamos que, observando-se a si mesmo, com suas lacunas e aspirações, o homem pode chegar a
Deus. Pergunta-se, porém:
1. Será que esse Deus assim concebido é algo de real e objetivo? Não será simplesmente a
projeção da nossa angústia, ou uma espécie de ficção que nos dá segurança na miséria da nossa
condição humana?
- Em resposta, note-se que a procura de segurança marca, sem dúvida, o comportamento do
homem. Todavia este fato não impede, nem exclui, exista realmente aquele que é capaz de nos dar
segurança. Esta afirmação pode ser ilustrada se voltamos a nossa atenção para um fato de ordem
mais concreta: imaginemos uma criança que, angustiada, procura sua mãezinha em meio à multidão;
essa angústia, por certo, não "cria" mãezinha, mas, ao contrário, é derivada do fato de que mãezinha
existe. Assim, o homem na terra procura o Bem Infinito; nessa sua procura ele não "cria" nem projeta
ficticiamente o Bem Infinito, mas, ao contrário, ele está sendo atraído pelo Infinito, que realmente
existe. Note-se que o desejo do Bem Infinito não é algo de particular ou próprio de algumas criaturas
apenas, mas é comum a todos os homens; na natureza humana há uma relação intrínseca e indelével
ao Infinito.
A prova de que Deus não é simplesmente uma projeção de nosso mundo subjetivo, é
principalmente lúcida no plano da moralidade. Neste, Deus aparece como realmente "Outro", como
alguém que irrompe em nossa vida e a quem às vezes o homem tenta resistir. A propósito vêm as
palavras do Cardeal Daniélou:
'"Faço a experiência de que Ele (Deus) existe, porque me esbarro contra Ele. Se eu O tivesse
fabricado, tê-to-ia, por certo, fabricado de maneira bem diversa. Mas vejo-mo obrigado a me adaptar
a Ele... As coisas são assim, e é preciso que eu as aceite. Assim tomo consciência de que estou na
presença de algo de real, e não de uma criação da minha imaginação ou da minha sensibilidade"
("Scandaleuse Vérité", p. 93).
Muito válido é também o depoimento de Paul Claudel, o grande poeta convertido ao Cristianismo;
"Essa minha resistência (a Deus) durou quatro anos. Ouso dizer que me defendi
heroicamente e que a luta foi leal e completa. Nada omiti. Usei de todos os recursos e tive de
abandonar, uma após outra, as armas que de nada serviam. Essa foi a grande crise da minha
existência, a agonia do pensamento, a respeito da qual Artur Rimbaud escreveu: 'D combate
espiritual é tão brutal quanto a batalha entre homens. Dura noite!"'("Ma conversion ").
Vê-se, pois, que seria gratuito afirmar que Deus não é senão a vã expressão da sofreguidão do
homem, expressão à qual nada corresponde de objetivo. Seja lícito lembrar: não há agulha magnética
agitada sem polo Norte; nem há maré cheia e encapelada sem Lua que atraia as águas.
2. Objeta-se também: os homens têm sede de justiça e felicidade perfeitas. – Podem estar seguros
de que estas ocorrerão em tempos futuros. Todavia não se diga que cada indivíduo ou eu e tu
encontraremos a resposta às nossas aspirações . É somente ao gênero humano como tal ou às
gerações vindouras que tocará viver a ordem perfeita sobre a terra.
- Tal é a mensagem do marxismo. Este professa otimismo em relação ao porvir da humanidade.
Julga, porém, que o indivíduo que hoje luta, poderá deixar de colher o fruto de suas fadigas. Desta
forma, o marxismo reduz o homem à condição de carvão a ser lançado na grande locomotiva da
história e da humanidade. Tal solução deixa naturalmente insatisfeita a sã razão. Esta exige que cada
personalidade seja devidamente levada em- conta. O gênero humano não é simplesmente o "homem
coletivo", mas é uma grande; família, que consta necessariamente de cada um de seus membros e de
todos eles.
Lição 4: Conclusão
1. Refletindo sobre si mesmo, o homem entrevê um mistério que, em última análise, não é senão a
marca de Deus, o Bem Infinito. Em conseqüência, afirmar que Deus existe vem a ser atitude
altamente razoável e sábia. Dizia o filósofo Pascal († 1662): "O último passo da razão consiste em
reconhecer que há uma infinidade de coisas que a transcendem A razão seria extremamente débil, se
ela não chegasse a reconhecer isso". Do seu modo Shakespeare insinua o mesmo, quando atribui a
um personagem do seu "Hamlet" a seguinte afirmação: "Há muita coisa no céu e na terra, Horácio,
que a tua filosofia está longe de imaginar'(I 5).
Em outras palavras: a razão humana se vê diante de um dilema:
- ou adere ao mistério, reconhecendo Deus e a vida póstuma,
- ou cai no absurdo, caso afirme que a vida presente e o homem são interrogações sem resposta
ou sem explicação.
É necessário, porém, que os homens de fé, tendo descoberto Deus através de si mesmos, evitem
fazer caricaturas de Deus, ou seja, evitem conceber Deus à semelhança, por exemplo, de um Grande
Banqueiro ou de um Papai Bonachão. Tais conceitos imperfeitos ou antropomórficos redundariam
em contra testemunho ou dificultariam a muitos homens a descoberta da verdadeira face de Deus.
PERGUNTAS
1) Que entendemos por "provas morais" da existência de Deus ?
2) Que podemos deduzir das grandes aspirações do ser humano?
3) Após ler atentamente o depoimento do estudante de Medicina, que conclusões você tira ?
4) Deus seria uma ficção da nossa mente ?
5) "Ou o mistério ou o absurdo... " Queira explicar este dilema.
2.1. Historicidade
A Revelação cristã está ligada à história. Ela se desenrola a partir de eventos históricos situados
no contexto da história universal. Nisto ela se distingue do pensamento oriental e da sabedoria grega
ou ainda dos mistérios helenísticos, que não dão atenção à história ou só o fazem esporadicamente.
Ao contrário, a Revelação cristã narra fatos, apresenta pessoas, descreve instituições; o Deus da
revelação é o Deus que intervém e age na história, como insinua o autor de Hb 1.1:
"Muitas vezes e de modos diversos falou Deus outrora aos pais pelos Profetas. Agora nestes dias,
que são os últimos, falou-nos por meio do Filho, a quem constituiu herdeiro de todas as coisas".
Estas afirmações evidenciam a importância que a história tem para o Cristianismo. Quem
empalidece a história ou a nega, põe em xeque a própria Revelação Cristã. Esta não é mera doutrina
ou mensagem, mas é também vivência no tempo e no espaço, de tal modo que se pode afirmar que a
história é um discurso de Deus..
Importa agora ilustrar quanto acaba de ser dito, comparando-o com outras concepções de
Revelação.
Lição 3: Outras concepções
Analisaremos três noções diferentes de revelação: a protestante, a racionalista, a modernista.
3.3. O Modernismo
Em fins do século XIX e no começo do século XX registrou-se uma corrente de pensamento dita
"Modernismo". É representada por vários autores que procuraram conciliar os dados da Revelação
com a história, as ciências e as culturas. A humanidade ia progredindo em seu cabedal cientifico e
cultural, parecendo suplantar e esvaziar as proposições da fé. Dai os esforços de harmonização
devidos a M. Blondel, L. Laberthonnière, A. Loisy, G. Tyrell, o Barão von Hügel... Para esses
autores, a revelação dita "sobrenatural" reduz-se a um sentimento religioso cego, que brota das
profundezas do inconsciente, sob a pressão do coração e o impulso da vontade; é uma vaga
experiência religiosa, da qual cada religião é uma expressão.
A Igreja reagiu a essas concepções mediante documentos que tiveram grande repercussão: a
encíclica Pascendi de Pio X (l907), o Motu próprio Sacrorum Antistitum do mesmo Papa (lg10),
o decreto Lamentabili (l907),do Santo Oficio, e decisões da Pontifícia Comissão Bíblica. – Esses
textos são mais apologéticos do que doutrinários. Como quer que seja, afirmam que o objeto da fé é
tudo o que Deus disse, atestou e revelou (DS 3542). O conteúdo do que Deus disse, é chamado
"palavra revelada, Evangelho, doutrina" (DS 3538-3550). Palavra significa que Deus se dirige ao
homem e lhe manifesta seu plano de salvação. O que Deus disse, atestou e revelou, é definido pela
Igreja: palavra revelada, doutrina de fé, depósito divino, confiado à guarda da Igreja para ser
conservado sem acréscimos, alterações, mudanças de sentido ou de interpretação.
Os documentos anti-modernistas foram completados pela Teologia posterior, que se esmerou por
dissipar a idéia de que a Revelação divina é mera comunicação de um sistema doutrinário; ela é,
antes do mais, a manifestação de uma Pessoa, que é a Verdade em pessoa, ponto de chegada de uma
história que culmina em Jesus Cristo.
O Concílio do Vaticano II (1962-65) assumiu essa posição na sua Constituição Dei Verbum sobre
a Revelação. Fala primeiramente da revelação histórica efetuada mediante os Profetas do Antigo
Testamento e Jesus Cristo; só depois menciona a revelação cósmica, invertendo assim a ordem
adotada pelo Concílio do Vaticano I:
"Deus enviou seu Filho, o Verbo eterno que ilumina todos os homens, para que habitasse entre os
homens e lhes expusesse os segredos de Deus ... " (no 4).
Pela revelação divina quis Deus manifestar-se e comunicar-se a Si mesmo e os decretos eternos de
Sua vontade acerca da salvação dos homens, ... para fazer participar os bens divinos, que superam
inteiramente a capacidade da mente humana.
Professa o Sagrado Sínodo que Deus, princípio e fim de todas as coisas, pode ser conhecido com
certeza pela luz natural da razão humana partindo das coisas criadas (cf. Rm 1,20); mas ensina que se
deve atribuir à Sua revelação o fato de mesmo na presente condição do gênero humano poderem ser
conhecidas por todos facilmente com sólida certeza e sem mistura de nenhum erro aquelas coisas
que, em matéria divina, não são de per si inacessíveis à razão humana" (no 6).
Assim toda a Revelação se consuma em Cristo, que é o Logos (a Palavra) feito carne. A Teologia
Sistemática explana o conteúdo da Revelação Divina. À Teologia Fundamental compete apenas
expor a noção respectiva. A credibilidade da Revelação Cristã será estudada na Parte III deste Curso,
quando será considerada a figura de Jesus Cristo.
Passamos a abordar o tema "fé", fé pela qual o homem diz Sim a Deus que fala.
PERGUNTAS
1) Que é revelação?
2) Quantas modalidades de revelação existem?
3) Que é revelação pública ? Que é revelação particular?
4) Qual a concepção protestante de revelação?
5) Que diz o racionalismo sobre a revelação?
6) Que entende o modernismo por revelação ?
7) Jesus Cristo e revelação como se relacionam entre si?
Parte III. Creio em Jesus Cristo
MÓDULO 16: A FÉ
A Deus que se revela, toca ao homem prestar fé. Deus é sempre mais perfeito e sábio que a
criatura. Dai a necessidade de aderir a Ele pela fé. É o que vamos estudar neste Módulo,
considerando somente o que interessa à Teologia Fundamental, isto é, o aspecto psicológico
respectivo ou o embate da inteligência, da vontade e das paixões diante de uma proposição de fé.
Lição 1: Que é a Fé?
O Concílio do Vaticano I (1870),tendo em vista concepções errôneas do século XIX, definiu a fé
nos seguintes termos, que bem resumem o ensino tradicional da Igreja:
"A fé... é uma virtude sobrenatural, pela qual, prevenidos e auxiliados pela graça de Deus, cremos
como verdadeiro o conteúdo da Revelação, não em virtude da verdade intrínseca das proposições
reveladas, vistas à luz natural da razão, mas por causa da autoridade de Deus, que não se pode
enganar nem enganara nós"(DS 3008 [1789]).
O Concílio do Vaticano II, em 1965, retomou o conceito de fé, encarando outros aspectos:
"Ao Deus que se revela deve-se a obediência da fé, pela qual o homem livremente se entrega todo
a Deus, prestando ao Deus revelador um obséquio pleno do intelecto e da vontade e dando voluntário
assentimento à revelação feita por Ele" (Constituição Dei Verbum 5).
Estas duas definições convergem entre si, propondo as seguintes conclusões:
1) A fé não é um sentimento cego, nem meramente emotivo. Afaste-se a afirmação: "Todos temos
que crer em alguma coisa". Essa "alguma coisa" não pode ser algo de vago, indefinido, sentimental,
mas é algo que o intelecto reconhece "inteligentemente".
2) A fé não é mero ato de confiança, mero ato do coração e dos afetos, que se entregam a Deus
como Salvador. Isto quer dizer: a fé tem caráter também intelectual ou inteligente (não meramente
cerebrino ou frio, sem dúvida). É o ato mais nobre do homem, pois aplica a faculdade mais digna do
ser humano (a inteligência) ao objeto mais elevado e perfeito que é Deus. Afaste-se, pois, todo anti-
intelectualismo ao se tratar da fé.
3) A fé é um ato da inteligência..., mas não só da inteligência. É uma atitude da inteligência
movida pela vontade. Com efeito; o objeto proposto pela fé não é evidente por si mesmo (não é claro
à razão, por exemplo, que Jesus é Deus e Homem). A inteligência humana tem o direito (às vezes...
tem mesmo o dever) de estudar cada uma das proposições da fé: Jesus é Deus e Homem. Deus é uno
e trino, Jesus está presente na Eucaristia... Após estudar a documentação respectiva, a inteligência
conclui: não são proposições evidentes como "dois e dois são quatro, o todo é maior do que qualquer
de suas partes"; mas também não são absurdas e contraditórias como "o circulo é quadrado, o
triângulo é redondo"... Se fossem evidentes por si mesmas, a inteligência estaria coagida a dizer-lhes
Sim, como é coagida a dizer Sim a "dois mais dois são quatro". Por conseguinte, feito o exame das
proposições da fé, a inteligência diz ao estudioso: "Se queres, podes crer", e passa para a vontade a
decisão final - o assentimento ou a recusa.
4) Vê-se, pois, que, se a fé não é movida pela evidência intrínseca das proposições reveladas por
Deus, ela nem por isto é cega; ela tem motivos de credibilidade: ela se baseia na evidência
extrínseca. Antes de crer, a inteligência vê que deve crer; existem preâmbulos necessários à fé. Diz
S. Tomas de Aquino: "O homem não acreditaria se não visse que deve crer'(Suma Teológica 11/11
qu. 1, art. 4, ad 2).
5) Por conseguinte, a fé é um ato livre; é um obséquio voluntário prestado pelo fiel à autoridade
de Deus que se revela. É portanto um ato mais nobre do que os atos cujo objeto é tão evidente que
eles se tornam obrigatórios. O ato de fé supõe reflexão e decisão consciente e responsável.
6) Acontece, porém, que a vontade humana pode ser influenciada, consciente ou
inconscientemente, pelas paixões e os afetos do indivíduo. Alguém pode ter posições preconcebidas
contra a fé, pois esta exige mudança de vida que o homem desregrado pode não querer realizar;
quando a verdade não lhe convém, a pessoa tenta "provar' que ela não é verdade e que a evidência
não aparece. Escreveu o filósofo Thomas Hobbes (t 167g): "Se nisto tivessem interesse os homens,
duvidariam da geometria de Euclides" (Sistema da Natureza II 4).
4.2. A sensualidade
A sensualidade é a busca do prazer sexual pelo prazer, sem respeito à finalidade das funções
sexuais. A Moral filosófica não é contrária ao prazer, mas afirma que o prazer é um derivado
decorrente do exercício harmonioso de determinada atividade.
A sensualidade pode escravizar o homem e obnubilar a sua mente. Produz desequilíbrio no
comportamento humano e assim incompatibiliza as pessoas com as verdades da fé.
Esta afirmação é evidente aos pensadores desde os tempos mais remotos. Já Pitágoras, no século
VI a.C., submetia seus discípulos ao longo exercício de virtudes que os preparassem ao estudo da
sabedoria. A ascese era o vestíbulo da escola pitagórica.
Sêneca († 63 d.C.) escrevia: "Se a virtude a que aspiramos, é de tao grande valor, não é porque a
isenção de vícios seja uma felicidade real, mas porque assegura à alma toda a sua liberdade e a
prepara ao conhecimento das coisas celestes, tornando-a digna de conversar com Deus"
(Quaestiones Naturales Prefácio).
Aliás, o Senhor Jesus o confirma no Evangelho, dizendo: "Bem-aventurados os puros de coração
porque verão a Deus" (Mt 5,8).
O impuro não pode conhecer o puro. A maneira de viver condiciona a maneira de ver.
Passemos agora à
Lição 5: Conclusão
Escreve o Pe. Leonel franca em sua linguagem erudita:
"A conquista da verdade religiosa encontra numerosos obstáculos, uns de ordem intelectual,
outros de caráter moral. Na realidade viva das almas, a ação de uns e de outros... funde-se na síntese
de um todo solidário e complexo. As ignomínias do coração procuram sempre a cumplicidade da
inteligência. Os extravios intelectuais raras vezes deixam de refletir-se na desordem dos costumes.
Erro e vicio colaboram freqüentemente em afastar o homem da verdade total.
Destas dificuldades triunfam as pessoas retas e sinceras"(A Psicologia da Fé - Ed. Agir, p 195).
Após quanto acaba de ser exposto, verifica-se que a fé mexe com toda a personalidade do ser
humano: Intelecto (pois é a adesão à Verdade, e não um sentimento cego), vontade (pois vem a ser
entrega total e livre a Deus, que fala e convida) e afetos ou paixões (pois exige ordem e equilíbrio no
mundo afetivo do ser humano, que é, muitas vezes, sorrateiro e traidor). A fé, porém, assim
concebida é o antegozo do encontro final com Deus, que é a Grande Resposta aos anseios humanos.
PERGUNTAS
1) Como se define a fé ?
2) Cite três textos bíblicos que ilustrem a definição de fé.
3) Quais os principais obstáculos de ordem intelectual que se opõem ao ato de fé?
4) Quais os principais obstáculos morais que dificultam o ato de fé?
5) Faça uma reflexão pessoal sobre a temática da fé.
3.1. Defasagem
A aposta de Pascal podia ter significado no século XVII ou no ambiente de Cristandade (já
evanescente) do século XVII. Em nossos dias, porém, sendo a sociedade pluralista, o dilema
"Cristianismo ou Racionalismo" já não se impõe, visto que muitos Credos e muitas filosofias atéias
oferecem suas perspectivas aos não cristãos. Na sua época, porém, Pascal deve ter impressionado
leitores titubeantes na fé.
PERGUNTAS
1) Quem foi Blaise Pascal? Como via ele o ser humano ?
2) Que acontece se o homem aposta pela fé em Deus, conforme a aposta ?
3) E... se opta contra Deus?
4) Que significado tem a aposta para o cidadão contemporâneo ?
5) Quem não é cristão, será necessariamente condenado para sempre?
6) Pode alguém ter uma fé meramente intelectual?
2.1. O conceito
A noção de milagre está hoje um tanto desacreditada, porque, de um lado, a medicina e a
parapsicologia têm progredido, explicando fenômenos outrora inexplicáveis e, de outro lado, correm
tantos rumores populares de milagre que o conceito vai caindo em descrédito, visto que está sendo
mal formulado.
Apesar de tudo, a Teologia admite a possibilidade de milagre. E admite, desde que se realizem os
três seguintes requisitos:
1) Trate-se de um fato real... Este deve ser averiguado com exatidão, para que se tenha notícia fiel
à realidade ocorrida. Freqüentemente os relatos de milagres correntes, entre a gente simples devem-
se tão somente à fantasia popular, que os tornou "portentosos".
2) Trate-se de fato real que as ciências naturais contemporâneas ao fato não possam em absoluto
explicar. A Igreja não faz questão de descobrir ou impingir milagres ao público; desde que qualquer
brecha se ofereça para uma elucidação científica, o fato portentoso deixa de ser considerado pelos
teólogos. A Igreja apenas aceita os milagres que, à luz de crítica objetiva e severa, pareçam
realmente ser sinais de Deus.
Duas das notas características das curas milagrosas consistem em que:
a) ocorram em casos de doenças orgânicas e lesões físicas, não nos casos de doenças
funcionais(que podem facilmente ser dissipadas por desbloqueio psicológico),
b) ocorram instantaneamente, pois, quando a natureza e a medicina curam doenças orgânicas,
geralmente o fazem paulatinamente.
Indagará alguém: mas por que basta que a ciência contemporânea ao fato tido como milagroso
não possa explicar tal fato? Não seria mais lógico afirmar que o milagre é um acontecimento que a
ciência jamais, nem daqui a cinqüenta ou cem anos, poderá explicar?
- Não. Se o essencial do milagre consistisse em ser sinal maravilhoso ou portentoso, poder-se-ia
incluir em seu conceito a cláusula de "inexplicável mesmo em época futura" Como, porém, o milagre
é, antes do mais, um sinal,... sinal de Deus que fala aos homens em determinado contexto da história,
basta que nesse preciso contexto os homens não tenham explicação natural para o portento nem
entrevejam alguma pista para chegar á elucidação científica do fato. Se não há realmente nenhuma
explicação ou sombra de explicação no momento e se o quadro dentro do qual o fenômeno se
produziu é digno de Deus, pode-se crer que o Senhor aí tenha proferido sua palavra mais enfática que
é o milagre.
3) O fato histórico inexplicável pela ciência deve ter ocorrido em contexto que possa merecer a
chancela ou a resposta do Senhor Deus. Vê-se, pois, que não basta o aspecto portentoso do fato. Com
efeito; se o milagre é sinal, deve-se inserir em âmbito de diálogo entre Deus e as criaturas. Por
conseguinte, não pode ser milagre no sentido da apologética católica qualquer fato portentoso que
confirme a vaidade, o espírito mercenário ou comercial, os vícios, o charlatanismo... Se, por
hipótese, alguma vez se verifique um fenômeno inexplicável pela ciência em moldura de pecado e
corrupção, dir-se-á que se trata de armadilha do demônio. Tal caso, porém, é tido como
extremamente raro, pois, nos ambientes de vícios, os portentos são geralmente explicáveis pela
psicologia e a parapsicologia...
Exemplo típico de milagre-sinal é o da cura do paralítico em Mc 2,3-12: Jesus, ao vê-lo, perdoou-
lhe os pecados; visto que os circunstantes não acreditavam na validade do gesto do Senhor, Este
mandou que o paralítico se levantasse e andasse. O "sinal" comprovou a autoridade de Jesus; tornou-
se uma palavra mais eloqüente do Senhor Jesus.
Precisamente porque acredita no valor dos milagres, a Igreja exige, para a canonização dos
Santos, milagres comprovados: estes são tidos como sinais de Deus que autenticam as virtudes dos
Santos e possibilitam á Igreja propor tais fiéis como amigos de Deus e intercessores dos homens.
9
Ábaton, em grego, é lugar inacessível ou santuário.
sertão violentos que a visão cesse. A cura, jorém, de tais males está ao alcance da medicina. Eis
alguns espécimens:
"Um homem foi ter ao templo em súplica. Estava caolho. As duas pálpebras não recobriam coisa
alguma... No templo as pessoas o tinham por muito simplório por acreditar que recuperaria a vista,
pois do seu olho nada ficava senão o respectivo lugar. Enquanto dormia, foi agraciado por uma
visão; parecia que a Divindade lhe preparava um remédio; abria-lhe as pálpebras e nelas derramava o
remédio. Por ocasião da aurora, saiu e enxergou com os dois olhos".
"Um cego perdeu o seu colírio durante o banho. Dormiu no ábaton, sonhou que a Divindade lhe
aconselhava que procurasse o colírio no grande albergue à esquerda, na entrada. Uma vez nascido o
dia, o cego, auxiliado por um escravo, foi procurar o colírio. Entrou no albergue, viu o colírio e ficou
bom".
"Timão de X, foi ferido por um golpe de lança abaixo do olho. Enquanto dormia, teve um sonho;
pareceu-lhe que a Divindade triturava uma erva e lhe derramava algo no olho. Ele está curado".
Há também casos de mudez e paralisia:
"Uma jovem muda perambulava no santuário. Viu uma serpente descer de uma árvore e penetrar
dentro da alvenaria. Espantada, ela chamou o pai e a mãe. Voltou curada".
"Clemenes de Argos estava paralítico. Apresentou-se no ábaton; adormeceu e teve um sonho: a
Divindade o envolveu com uma coberta vermelha, levou-o ao banho fora do recinto sagrado, num
tanque de água muito fria. Tremia de angústias; Asklepios disse-lhe que ele não curava os covardes,
mas, sim, tão somente aqueles que o procurassem com confiança. Ele não lhes fazia mal algum, mas
despedia-os, curados, para casa. Clemenes acordou, tomou um banho, e voltou em perfeito estado".
Há dois casos de feridas purulentas e um de tumor abdominal, que parecem supor uma
intervenção cirúrgica elementar:
"Ferido por uma lança, Evippos tinha a ponta da mesma encravada ha maxila havia seis anos.
Adormeceu no ábaton; a Divindade lhe retirou essa ponta de lança e a colocou em suas mãos.
Quando despontava o dia, ele se foi curado, levando a ponta nas mãos".
"N.N. de X está ferido no peito. A chaga é purulento; foi ter com a Divindade em súplicas.
Dormiu no ábaton e teve uma visão: a Divindade lhe lavou o peito com leite fresco e untou a ferida
com ungüento. Depois de tê-la enxugado, ordenou-lhe que se lavasse na água fria. Ao despertar,
mergulhou na água corrente e ficou curado".
"Um homem sofria de tumor no abdômen. Teve um sonho no ábaton: a Divindade mandou a seus
auxiliares que o imobilizassem e lhe abrissem o ventre. Ele fugiu, mas foi apreendido e atado quando
atravessava a soleira da porta. Asklepios abriu-lhe o ventre, retirou-lhe o abcesso e coseu a ferida ; o
doente foi desatado. Voltou curado; o solo estava coberto de sangue".
Eis ainda dois casos:
"Erasipa de C. tinha o ventre inchado e nada conseguia digerir. Dormiu no ábaton; teve um
sonho; a Divindade lhe fazia massagens sobre o abdômen e a abraçava; depois o deus lhe ofereceu,
numa taça, um remédio, que lhe mandou beber; forçou a vomitar; ela o fez, sujando a sua roupa. Ao
nascer do dia, verificou que o vestido estava todo sujo de vômitos; sentiu-se curada".
"N.N. de X. sofria de um tumor. Entrou no santuário. Não obteve o que pedia. A Divindade não se
mostrou durante o seu sono no ábaton; ele julgou então ter sido esquecido pelo deus e voltou para
casa. Todavia, não podendo suportar por mais tempo a dor, quis suicidar-se transpassando o abcesso
com uma punhalada. A sua filha encontrou-o desfalecido, tomou-o nos braços, retirou o punhal. O
sangue jorrou do tumor e o doente ficou curado".
Outras semelhantes narrações poderiam ser aduzidas. Estas, porém, são suficientes para
evidenciar que os "milagres" de Epidauro são
- fatos que as ciências médicas e a psicologia explicam satisfatoriamente;
- as narrações respectivas devem-se, em grande parte, à fantasia do narrador, que explora a
capacidade de admiração dos leitores;
- diferem profundamente das narrações evangélicas tanto pelo conteúdo como pela forma,
evidenciando que os Evangelistas estão longe de haver plagiado os relatos populares de portentos
antigos.
PERGUNTAS
1) Que é milagre?
2) Como aparece o milagre nos Evangelhos?
3) É possível o milagre ?
4) Que se entende por "princípio de razão suficiente"?
5) Quais as principais diferenças entre milagres hoje comprovados e os milagres helenísticos?
2.1. Tácito
Tácito foi um historiador que soube exercer espírito critico e se mostrou honesto em seus relatos.
Escreveu em seus Anais, por volta de 116, a respeito do incêndio de Roma ocorrido em 64:
"Um boato acabrunhador atribuía a Nero a ordem de pôr fogo à cidade. Então, para cortar o mal
pela raiz, Nero imaginou culpados e entregou às torturas mais horríveis esses homens detestados
pelas suas façanhas, que o povo apelidava de cristãos. Este nome vem-lhes de Cristo, que, sob o
reinado de Tibério, foi condenado ao suplicio pelo procurador Pôncio Pilatos. Esta seita perniciosa,
reprimida a princípio, expandiu-se de novo não somente na Judéia, onde tinha a sua origem, mas na
própria cidade de Roma" (Anais XV 44).
Tácito conta, a seguir, as horríveis torturas infligidas aos cristãos e se mostra contrário a esse
desumano procedimento. As referências pouco elogiosas aos cristãos mostram que só os conhecia
por ouvir dizer e compartilhava as opiniões do seu tempo. Essa hostilidade mesma torna mais valiosa
a breve notícia que ele nos transmite a respeito de Cristo. Pergunta-se: de onde Tácito recebeu as
informações concernentes a Cristo? - Pode-se crer que as tenha recebido de Plínio o Velho, cujas
Histórias ele muito utiliza. Plínio o Antigo fez parte do estado-maior de Tito, que em 70 invadiu
Jerusalém; pôde assim colher dados sobre Jesus na própria Palestina e os terá passado para o
historiador Tácito.
2.2. Suetônio
Poucos anos depois, em 120, Suetônio, também hábil historiador, escreveu a Vida dos Doze
Césares, em que cita duas vezes os cristãos: uma primeira vez para confirmar que eram perseguidos
desde os tempos de Nero. Na segunda vez, referindo-se ao reinado de Cláudio (41-54), diz que este
"expulsou de Roma os judeus, que, sob o impulso de Cresto, se haviam tornado causa freqüente de
tumultos"(Vita Claudii XXV). A informação coincide com a de Atos 18,2; a expulsão deve ter
ocorrido por volta de 49/ 50. Chrestós é a forma grega equivalente a Christós, que traduz o hebraico
Messias. Suetônio, mal informado, julgava que Cristo se achava em Roma, instigando as desordens.
É lamentável que Suetônio nada tenha dito sobre Jesus ao tratar de Tibério. Mas a notícia
registrada basta para provar que, por volta de 50, isto é, menos de vinte anos após a Ascensão, havia
cristãos em Roma que, por sua pregação, perturbavam a colônia judaica.
PERGUNTAS
1) Porque os documentos pagãos são tão sóbrios a respeito de Jesus?
2) Que nos diz Tácito a respeito?
3) Qual dos outros dois escritores romanos mais lhe interessa? por quê ?
4) Que dizem as fontes rabínicas?
5) Como julgar o depoimento de Flávio José ?
10
O Evangelho segundo S. Mateus foi originariamente escrito em aramaico, mas este texto inicial se perdeu, de modo que hoje em dia só se possui a
respectiva versão grega, a qual corresponde a nova elaboração a ampliação do texto aramaico. Marcos, Lucas a João escreveram seus autógrafos em
grego.
11
Escritos com letras gregas maiúsculos (unciais, capitais).
12
Escrito com letras gregas minúsculas.
13
Repertórios de leituras a ser utilizadas na liturgia, repertórios compostos em diversas épocas da história antiga e medieval da Igreja.
14
O Pe. José O’Callaghan S.J. julga poder datar de 40-50 o papiro 705 encontrado em Oumran e, provavelmente, portador do texto de Mc 6, 52-53.
Por sua vez, o Prof. Carsten Peter Thiede data de meados do século I três fragmentos papiréceos de Mt 26 encontrados em Oxford.
Outra coleção célebre é designada por "Papiro de Chester-Beatty" (P 45). Encontra-se em Londres
e conserva fragmentos de papiros que foram escritos no século III com o texto dos Evangelhos e dos
Atos dos Apóstolos.
O cotejo dos papiros, dos códices e das traduções antigas do Novo Testamento tem possibilitado
aos estudiosos a confecção de edições críticas do Novo Testamento, tais como as de Merk (católico)
e Nestle (protestante) e - a mais abalizada - a edição de Aland, Black, Martini, Metzger e Wikgren
(comissão mista protestante-católica).
Em suma, o balanço do estudo crítico do texto dos Evangelhos é altamente positivo. Permite
verificar que a transmissão do Novo Testamento através dos séculos deixou inalterado o depósito dos
Evangelistas e Apóstolos e nos fornece hoje sólida base para estudos sobre a pessoa e a obra de Jesus
Cristo. Se o retrato de Jesus que nos veio através dos Evangelhos sofreu falsificação, esta só se pode
ter dado quando os Evangelhos foram consignados por escrito ou antes, pois é inegável que o texto
escrito nos chegou às mãos hoje em estado de alta fidelidade.
2. Afim de que o leitor possa formar um juízo sobre o valor do confronto dos manuscritos, sejam
consignados aqui alguns exemplos ilustrativos:
- o trecho de Lc 22,43s, que refere o suor de sangue durante a oração de Jesus no horto das
Oliveiras, foi posto em xeque já nos primeiros séculos da Igreja por motivos teológicos: e caracteriza
muito fortemente (para alguns cristãos, demasiado fortemente) a natureza humana de Cristo. –O
confronto dos manuscritos demonstrou que tal secção pertence ao teor original de Lc;
- a secção de Jo 7,53.8,11, que narra o episódio da mulher depreendida em adultério, parece ter
constituído uma folha avulsa, que os copistas dos Evangelhos colocaram ora no fim do Evangelho de
São João (após Jo 21,23, ou seja, após o texto continuo dos quatro Evangelhos) ou dentro do
Evangelho de São Lucas (após Lc 21,38) ou também no lugar em que hoje se acha (após Jo 7,52);
- a passagem de Jo 5,4 (um anjo descia na piscina de Bezata e movia a água, de modo a curar o
primeiro doente que nela se projetasse após a moção da água) é tida evidentemente como
interpolação tardia;
- o famoso trecho de 1 Jo 5,6s (testemunho da SS. Trindade) é reconhecido, sem hesitação, como
enxerto praticado no séc. IV por ocasião da controvérsia ariana.
Assim os exegetas estão em condições de restabelecer o texto em seu teor original nos casos mais
controvertidos. Os resultados até hoje adquiridos pela crítica são de tal monta que se pode dizer que a
imagem de Jesus consignada pelos Evangelistas não sofrerá alteração em conseqüência de pesquisas
futuras.
PERGUNTAS
1) Que se entende por " crítica literária dos Evangelhos"?
2) A transmissão do texto dos Evangelhos é melhor do que a dos autores gregos e latinos
antigos? .
3) Qual a conclusão da crítica literária dos Evangelhos ?
4) Cite dois casos de texto mal transmitido.
PERGUNTAS
1) Em que consiste o MHF como tal?
2) Como a crítica racionalista o aplica?
3) Como a crítica católica o aplica? Que cláusulas deve ela observar?
4) Porque a crítica racionalista sofre restrições e objeções?
5) Cite três argumentos que fundamentam a historicidade dos Evangelhos.
16
O foto, por exemplo, de que a distância da Terra à Lua veria de 363.000 km a 406.000 km (no perigeu e no apogeu) não intentem na vida do
estudioso.
17
Recordar por exemplo, os dias 07/09/1822 ou 13/05/1888 mexe com o íntimo de quem lembra a independência do Brasil ou o fim da escravatura.
18
Bultmann afirmava, contra os adeptos da uma exegese objetiva e científica, que “só se pode explicar um texto, caso se tenha uma relação interior
com a realidade de que trata o texto”.
5) Consequentemente, o pesquisador deve renunciara saber o que Jesus de Nazaré disse e fez; o
estudioso só pode conhecer como as primeiras gerações entendiam, dentro das suas categorias
subjetivas, os ditos e os feitos de Jesus. Entre Jesus de Nazaré e nós existe a cortina intransponível
das primeiras gerações cristãs e dos autores do Novo Testamento; não nos é possível recuar para trás
destes, a fim de chegar a Jesus tal qual Ele foi.
6) A subjetividade dos antigos cristãos exprimia-se em linguagem arcaica ou mítica. Segundo
Bultmann, é mito toda concepção que relaciona acontecimentos deste mundo com seres do além
(anjos ou demônios): toda concepção que admite Deus a intervir no mundo, à guisa de um ser deste
mundo, por uma ação diretamente verificável. Tais concepções, julga, Bultmann, são contrárias ao
pensamento científico, que só pode conceber a natureza sujeita a leis e ao determinismo de causas e
efeitos. As representações que fazem intervir potências transcendentais na atividade humana (graça,
dons do Espírito, Satã e os anjos maus), são contrarias à consciência que o homem moderno tem, de
ser o sujeito de suas próprias ações.
Para Bultmann, o Novo Testamento apresenta uma imagem do mundo mítica. – Com efeito; o
mundo aí aparece dividido em três regiões: céu, terra, região subterrânea. Na terra admitem-se
milagres; o homem está sujeito à ação de potências do além (Deus e seus anjos, Satanás e os
demônios). A salvação se deu na plenitude dos tempos mediante a Encarnação: o Filho de Deus, ser
divino preexistente, manifesta-se na Terra como um homem. Sua morte na Cruz expia os pecados
dos homens. Sua ressurreição é o começo de uma mudança cósmica que anula a morte, introduzida
no mundo por Adão. O ressuscitado foi elevado ao céu, à direita de Deus. Voltará sobre as nuvens
dos céus para concluir a obra da salvação, havendo então a ressurreição dos mortos.
O crente que está unido a Jesus pelo Batismo e a Ceia, está associado à ressurreição de Cristo;
Este lhe confere o penhor do Espírito Santo e a filiação divina.
Ora, segundo Bultmann, isto tudo é linguagem mítica, inaceitável para o homem de hoje,
impregnado de cientificismo.
7) A pregação cristã não pode exigir do crente contemporâneo que ele adote a cosmovisão mítica
clássica. É preciso, pois, de-mitizar (entmythologisieren).
Que é de-mitizar, segundo Bultmann?
- Não consiste simplesmente em eliminar os mitos do Evangelho e guardar o que seja histórico,
real (isto seria des-mitizar)19; tal tarefa foi executada pelos teólogos e pregadores racionalistas
anteriores a Bultmann, esvaziando a mensagem bíblica. De-mitizar significa deduzir das
representações míticas (aparentemente históricas e objetivas) do Evangelho uma mensagem
existencial; as imagens míticas (Encarnação do Filho, morte expiatória, ressurreição, ascensão...) têm
apenas a função de carregar e transmitir a mensagem existencial dos Evangelhos.
19
O sufixo des significa retirar, destruir; assim desdizer, desfazer, desconcertar, desanuviar...
contemplar um acontecimento que se tenha dado fora de nós, mas é tomar sobre si a Cruz de Cristo e
deixar-se crucificar com Ele.
Em complemento, diz Bultmann: Deus não é um dado objetivo, como a pedra, a água, o ar são...;
Ele não é acessível nem ao cientista nem ao historiador nem ao filósofo. Ele só pode ser reconhecido
na fé e pela fé, que nos põe em xeque com nossa ciência e nossas pesquisas. Quem trata a Bíblia
como matéria de ciência fria e objetiva, não tem fé; é racionalista. A fé nada tem que ver com a
razão.
Como se vê, o Credo de Bultmann não professa os doze clássicos artigos, mas ressume-se numa
palavra existencial : "Converte-te!"
Passemos agora a uma avaliação.
PERGUNTAS
1) Quais são as premissas básicas do pensamento de Bultmann?
2) Que é mito, segundo Bultmann ?
3) Que entende Bultmann por de mitização?
4) Apresente três argumentos que refutam Bultmann.
20
Na verdade, Jesus não ignorava a data do juízo final, pois isto deporta contra a sua qualidade de Deus Filho e Messias. Todavia não estava no âmbito
de sua missão de Messias e Mestre revelar aos homens tal data.
d) Menciona-se ainda a traição de Judas (Mt 26,47-56; Mc 14, 43-52; Lc 22,47-53; Jo 18.2-11), a
negação de Pedro (Mt 26,6Q-75 e paralelos), o brado de Jesus na Cruz (Mc15,34, citando o SI 22,1).
2) Critérios da descontinuidade
Também dito "critério da originalidade ou da dissimilaridade", afirma ser autênticos os atos e os
dizeres de Jesus que não podem ser originários do judaísmo de seu tempo nem da Igreja primitiva.
Assim, por exemplo, a peremptória proibição do divórcio (Mc10,2-12 e paralelos), a recusa do
juramento (Mt 5,34-37), a recomendação da justiça nova e interiorizada, que ultrapassaria a dos
judeus, levando a imitar o Pai Celeste (Mt 5,17-48).
3) Critérios da múltipla confirmação
Admite como autênticos os dizeres e feitos de Jesus atestados em mais de uma fonte
independente. Assim Jesus proclamou o "reino de Deus ou dos Céus" conforme Marcos, Mateus,
Lucas, João e Paulo. Esta mesma expressão é encontrada em diversos gêneros literários (parábolas,
bem-aventuranças, preces, narrativas de milagres...). Além disto, registram-se como elementos
amplamente documentados
- as curas praticadas por Jesus;
- a especial atenção aos proscritos da sociedade, especialmente aos pecadores e publicanos
(coletores de impostos);
- a ênfase sobre o mandamento do amor; cf. Jo 13,34s.
- a recomendação do perdão em número indefinido de vezes; cf. Mt 18,21s;
- a nova compreensão do preceito do Sábado; cf. Mc 2,27s.
- uma ética radical, que chega a pedir o abandono de tudo para seguir Jesus; cf. Lc 9,57-62
- os dizeres relativos ao Filho do Homem, expressão típica de Jesus; cf. Mc 10,45;
- o "Amém, amém... (em verdade, em verdade...)eu vos digo"; cf. Mt24,34;25,12;
- a consagração do pão e do vinho na última ceia; Mt 26,26-2Q; Mc 14,22"25; ICor 11.23-26; cf.
Jo 6,51-58;
- a proibição do divórcio: Mc lo,1ls; Lc 16,18; 1Cor 7,1os;
- a expulsão dos vendilhões do Templo: Mc 11,15-1Q; Jo 2,14-22.
- as altercações com os fariseus: cf. Mt 22,15-22.34-40.41-46.
4) Critério da coerência
Segundo este critério, as palavras e ações de Jesus que se enquadram bem dentro de dados
firmemente estabelecidos, têm probabilidade de ser históricos. Assim seriam os debates de Jesus com
os fariseus, as palavras relativas ao advento do Reino de Deus.
5) Critério da rejeição e da execução
Este critério leva em conta o fato de que Jesus sofreu um fim violento nas mãos de autoridades
judias e romanas. Consequentemente afirma serem autênticos todos os ditos e feitos de Jesus que
expliquem por que foi ele condenado à morte como "Rei dos Judeus". Jesus devia perturbar e
incomodar(sadicamente) os maiorais da terra; por conseguinte, são históricos todos os dizeres de
Jesus que tenham suscitado o mal-estar e a represália das autoridades. Um Jesus cujos atos e palavras
não tivessem provocado antagonismo entre as pessoas, especialmente os poderosos, não seria o Jesus
histórico.
2. Critérios Secundários
1) Critério dos traços de aramaico
Todas as vezes que se encontrem, na versão grega das palavras de Jesus, traços de vocabulário,
sintaxe, ritmo e rima aramaicos, pode-se ter a certeza da autenticidade de tais dizeres. Este critério se
apoia em dados filológicos elaborados por especialistas em aramaico, como Joachim Jeremias,
Matthew Black, Geza Vermes e Joseph Fitzmyer.
Há quem julgue que este critério só pode ser válido se for corroborado por outros critérios, já que
cristãos de língua aramaica podem ter forjado sentenças que eles atribuíram a Jesus, quando não
eram senão a expressão do pensamento das comunidades nascentes.
Todavia o valor deste critério foi comprovado por uma interessante experiência, a saber: a
tradução dos Evangelhos (escritos em grego) para o aramaico. Diz a propósito o Prof. Gianfranco
Ravasi, eminente biblista italiano:
"Foi possível captar no aramaico os jogos fonéticos subjacentes, com os quais se favorecia a
lembrança e se comprova a fidelidade da transmissão dos conteúdos. A poesia e a prosa literária
hebraica, de fato, estão ligadas à sonoridade, isto é, ao amálgama harmônico dos sons dos
vocábulos..., aos matizes das tonalidades, que se manifestam sobretudo na recitação oral" (citado por
V. Messori, Padeceu sob Pôncio Pilatos? p. 295).
Vê-se assim que a rima dos vocábulos reaparece nas traduções feitas para o aramaico, que era a
língua falada por Jesus e pelos Apóstolos. Observa ainda Gianfranco Ravasi:
"O rabi cristão, como seu colega judaico, levava o discípulo a decorar não só o texto central, mas
também um seu comentário oficial. Por isto nos Evangelhos encontramos frases de Jesus comentadas
por outras frases por ele pronunciadas, talvez em contextos diferentes, mas afins pelo conteúdo. Só
um exemplo elementar: ao lado do Pai Nosso reportado por Mateus, temos o comentário de um dos
seus pedidos principais: 'E perdoai-nos as nossas ofensas assim como nós perdoamos a quem nos tem
ofendido... Pois, se perdoardes aos outros as ofensas recebidas, também o Pai celeste vos perdoará.
Mas, se não perdoardes uns aos outros, o Pai celeste também não perdoará vossos pecados' (Mt 6, 12,
14s) " (ib. p. 296).
Nesse comentário merece atenção ainda o paralelismo "Se perdoardes... se não perdoardes..."; tem
função mnemônica, visando a facilitar a recordação das palavras de Jesus e do seu comentário
oficial.
Em conclusão, escreve Gerhardson: "A própria raiz hebraica da árvore cristã fez com que a
tradição evangélica, ligada ao rabino Jesus de Nazaré, ofereça uma sólida garantia de qualidade e
fidelidade histórica nas palavras de Jesus e nas lembranças sobre Jesus" (ib. p. 297).
É esta uma conclusão frontalmente contrária à dos estudiosos que imaginam nas primeiras
comunidades cristãs uma proliferação fantasiosa de dizeres atribuídos a Jesus.
Deve-se ainda notar aqui a posição de G. Theissen21: pondera que no Evangelho há palavras duras,
inspiradas por um radicalismo total no tocante ao comportamento dos discípulos; assim, por
exemplo, os dizeres de Lc 14,26:"Se alguém não aborrecer seu pai, sua mãe, sua esposa e seus
filhos..., não poderá ser meu discípulo". Pergunta Theissen: pode-se dizer que tais palavras são
oriundas da mente das primeiras gerações cristãs? São elas condizentes com as tendências humanas
mais ‘razoáveis’? Não devem ter tido origem na pregação mesma do Mestre? Quem as terá
concebido e sustentado durante decênios sem que viessem dos lábios do próprio Jesus?
2) O critério da ambientação
Segundo este referencial, têm boa possibilidade de set autênticas as palavras de Jesus que se
referem costumes concretos, procedimentos judiciais, práticas comerciais e agrícolas ou condições
sociais e políticas da Palestina do século I.
3) O critério da vivacidade da narração
Nas narrativas dos Evangelhos, a vivacidade e as minúcias concretas – especialmente quando
essas minúcias não são relevantes para o ponto principal da história – por vezes são tomadas como
indicadores de um relato feito por testemunha ocular.
4) O critério das tendências do desenvolvimento da Tradição Sinótica
Os critérios supõem que a mensagem dos Evangelhos Sinóticos (Mt, Mc e Lc) tenha sido
formulada primeiramente por Marcos; Mateus assumiu e desenvolveu-a (acrescentando-lhe nomes
próprios, transformando o discurso indireto em discurso direto, eliminando palavras e construções
aramaicas, tornando os pormenores mais concretos...). S. Lucas teria desenvolvido ainda mais essa
tradição...
Por conseguinte, julgam os mesmos críticos que, abstraindo dos pretensos retoques feitos por Mt e
Lc, se poderia chegar à forma originária da narrativa evangélica.
5) O critério da suposição histórica
Este critério afirma que se deve dar crédito aos relatos dos Evangelhos até haver provas de que
são global ou parcialmente falsos... Não toca aos adeptos da veracidade provar a fidelidade histórica
dos Evangelhos, mas compete aos que a negam, aduzir provas em contrário. Este critério pode cortar
21
Wonderradikalismus, Literatursoziologische Aspekte der Uberlieferung von Worten Jesu im Urchristentum, em Zeitschrift fur Theologie
und Kirche 70 (1973, pp. 245-271.
o nó górdio nos casos em que os argumentos são extremamente equilibrados e onde o resultado final
parece ser a dúvida permanente.
6) O princípio da "razão suficiente"
É proposto por estudiosos católicos como René Latourelle e Lambiasi: é o critério da explicação
necessária. Afirma que o fato histórico "Jesus Cristo e suas conseqüéncias através dos séculos" não
se explica se não se admite em Jesus uma grandeza de personalidade, manifestada em palavras e
ações marcantes ou mesmo extraordinárias; em consequência, o que os Evangelhos narram de belo e
impressionante a respeito de Jesus, não deve ser descartado facilmente; caso seja eliminado, a figura
de Jesus se torna tão pobre e limitada que não se explica a projeção de sua obra através dos séculos.
Parece, pois, que a própria filosofia concorre para exigir uma "razão suficiente" para o fenômeno
"Jesus Cristo e o Cristianismo".
Há quem julgue que tal critério é válido para valorizar a vida de Jesus em sua globalidade, não,
porém, as suas ações ou as suas palavras em particular. Ao que se pode observar que a globalidade
da vida de Jesus consta de fatos e dizeres singulares; quem solapa estes, solapa a figura de Jesus e
torna inexplicável o fenômeno "Cristianismo".
PERGUNTAS
1) Que se entende por critério do constrangimento ?... da descontinuidade ?... da múltipla
confirmação?
2) Em que consiste o critério da descontinuidade ?
3) Que é o critério da múltipla confirmação?
4) Explique o critério dos traços do aramaico.
5) Que é o princípio da razão suficiente ?
Mc grego65 / 70
Lc grego75
Mt grego80
João grego100
As datas acima são aproximadas, mas muito prováveis. A primeira redação do Evangelho deu-se
por obra de Mateus na terra de Israel e, por isto, em aramaico. Esta redação serviu de modelo para
Marcos e Lucas, que utilizaram o esquema de Mateus, acrescentando-lhe características pessoais. O
texto de Mateus foi traduzido para o grego, visto que o aramaico entrou em desuso quando Jerusalém
caiu em poder dos romanos no ano de 70; o tradutor, desconhecido a nós, retocou e ampliou o texto
aramaico, servindo-se de Mc (a influência de Lc é mais tênue). Isto quer dizer que o texto grego de
Mateus (único existente, porque o aramaico se perdeu) é, segundo alguns aspectos, o mais arcaico e,
segundo outros aspectos, o mais recente dentre os sinóticos.
1.4. Da pregação parcialmente escrita aos textos dos Evangelhos oficializados pela Igreja
Nem tudo o que Jesus fizera e dissera, podia caber num livro (cf. Jo 20,30s). Mas ao menos os
principais de seus ditos e feitos foram sendo consignados por escrito e transmitidos nas primeiras
comunidades cristãs. Aos poucos concebeu-se entre os discípulos de Cristo a necessidade de se fazer
uma síntese desses episódios que circulavam mais ou menos avulsos ou independentes uns dos
outros. Os Evangelistas se encarregaram de fazê-la na qualidade de escribas ou escritores das
comunidades cristãs. Não intencionavam escrever uma biografia completa de Jesus, mas concatenar
os episódios e fragmentos escritos que eram transmitidos de local a local na Igreja. O quadro
geográfico e cronológico de muitos desses episódios nos Evangelhos ficou sendo genérico e sóbrio: o
agrupamento e a sequência de tais peças literárias obedecia muitas vezes a critérios didáticos e
sistemáticos, mais do que propriamente à ordem de sucessão dos acontecimentos. - Esse processo
não impediu que cada Evangelista colocasse na redação respectiva o seu estilo e o seu enfoque
próprios; cada qual apresentou a figura de Cristo segundo o seu modo pessoal, procurando realçar em
Jesus de Nazaré alguns traços do Salvador prometido a judeus e gentios.
25
Apenas para facilitar a reflexão do leitor, transcrevemos aqui alguns dos textos citados acima:
I Tm f,3-5: "Torno a lembrar-te a recomendação que te dei quando parti para a Macedônia: devias Permanecer em Éfeso para Impedir que certas
pessoas andassem a ensinar doutrinas extravagantes, e a preocupar-se e com fábulas (mythois) e genealogias. Essas coisas, em vez de promover a obra
de Deus, que se baseia na fé, só servem para ocasionar disputas”.
1 Tm 4, 7: "Quanto ás fábulas profanas (mythois), esses contos extra vagantes de comadres, rejeita-os. Exercita-te na piedade”.
Tt 1,14: "Repreende-os severamente, para que se conservem sãos na fé e não se apeguem a fábulas (mythois) judaicas e aos preceitos daqueles que
viram as costas à verdade”.
II Pd 1,16: "Não foi baseados em fábulas (mythois) ardilosamente inventadas que vos fizemos conhecer o poder e a vinde de nosso Senhor Jesus
Cristo, mas, sim, depois de termos sido testemunhas oculares de sua majestade”.
pelos Evangelistas (cf. Mc 9,1; Mt 26,21; Jo 1,51; 3,3; 13,21). Também certas expressões do Pai
Nosso, como o apelativo Pai e algumas petições ("perdoa-nos as nossas dividas..., santificado seja o
teu nome...") têm genuíno sabor aramaico. Diga-se o mesmo a respeito das palavras com que Jesus
confere o primado a Pedro em Mt 16,17-l9; são o eco imediato da linguagem original de Jesus
("Feliz és tu,... carne e sangue..., Pai que está nos céus..., ligar-desligar). Mais: o uso das parábolas,
tão freqüente como é nos Evangelhos, não pode ter sido criado pelas comunidades primitivas.
Note-se também a expressão "Filho do Homem". Designa o Messias, conforme Dn 7,13. Jesus a
aplicou a si mesmo de maneira constante (cf. Mt 8,20; 11,19; 20,28...). Todavia caiu em desuso
rapidamente, pois no Novo Testamento só reaparece em At 7,56; Ap 1,13; 14,4. É locução aramaica,
que faz ressoar fielmente o linguajar de Jesus.
2) Os Evangelistas intencionaram dar testemunho da vida de Jesus sem Inventar; cf. Lc 1,1-4; Jo
19,35; 20,30s; 21,24s. Isto , porém, não exclui que tenham recorrido a gêneros literários ou
procedimentos estilísticos vigentes entre os judeus. Já que a finalidade sua era anunciar a Boa-Nova
ou fazer que os leitores, lendo os ditos e os feitos de Jesus, reconhecessem o Messias prometido aos
patriarcas, procuraram eles aludir aos fatos históricos de maneira a torná-los transparentes ou mostrar
o significado teológico desses fatos.
É o que acontece, por exemplo, com a genealogia de Jesus reproduzida em Mt 1,1-17.
Evidentemente o Evangelista dispôs os nomes da tabela genealógica em três séries de quatorze
personagens, afim de aludir ao nome de Davi(d) (as consoantes D, V, D em hebraico têm o valor
numérico 4+6+4 = 14). Jesus, aparecendo como o herdeiro de 3 X 14 gerações, era evidentemente
caracterizado (para um judeu) como sendo o Filho de Davi por excelência ou o Rei messiânico. - São
Lucas (3,23-28), ao contrário, apresenta outro tipo de genealogia, passando de Jesus até Adão, para
mostrar que Jesus era o novo Adão, o irmão e salvador de todos os homens
Em suma, há inegavelmente nos Evangelhos modos literários usuais entre os judeus e menos
conhecidos a nós, modernos. É necessário levar em conta tais modos a fim de entendermos a
historiografia dos Evangelistas como estes a entendiam e não como nós a poderíamos entender (se
não estivéssemos prevenidos).
3) É inegável também que os pregadores do Evangelho, ao anunciarem a Boa-Nova aos diversos
auditórios que encontravam, explicitavam-na, pondo em relevo dados importante para tais ouvintes.
A pregação sempre foi algo de vivo, concebido para responder às questões vitais trazidas pelos
destinatários. Assim em Mt 12,39s é explicado o sinal de Jonas que em Lc 11, 29 é somente
mencionado; ora pode-se crer que a explicitação tenha sido feita pelos Apóstolos ao apregoarem os
episódios, após a morte e a ressurreição de Jesus.26
Acontece, porém, que este e outros exemplos de explicitação da mensagem de Jesus concorrem
para levantar dúvidas em certos críticos sobre a autenticidade da figura e da doutrina de Jesus
transmitida pelos Evangelistas.
Que dizerem resposta atais dúvidas?
- É o que veremos sob o título abaixo.
PERGUNTAS
1) Os Apóstolos conheciam fábulas e mitos? Como os julgavam?
2) Pode-se ouvir o linguajar aramaico de Jesus nos Evangelhos ? Cite dois exemplos.
3) Como entender a genealogia de Jesus em Mt 1, 1-17?
4) A intenção dos evangelistas em simplesmente narrar a história?
5) Afinal os Evangelhos merecem crédito? Em que sentido?
27
Não há dúvida, citam-se documentos de Plínio o Jovem (112), Tácito (116) e Suetônio (120), escritores romanos que referem a existência de Cristo e
de seus discípulos. Ver a propósito Módulo 21 deste Curso.
estrangeiros), razão pela qual não colaboraram com nenhuma invenção para o progresso da
civilização".
Esse pequeno país, que de fato não oferecera nenhuma invenção material ao mundo, ia contribuir
com a maior novidade para a história do gênero humano: ia apresentar a mais pura noção de Deus e o
mais belo programa religioso; ia constituir-se em fronteira pela qual a humanidade se limitaria com a
eternidade."
A Palestina não era um país de luxo: seu tamanho era tão pequeno que S. Jerônimo não ousava
dizer sua extensão para não dar ocasião de zombaria aos pagãos: tinha clima quente e, em parte,
desértico. No setor político ainda menos motivos de entusiasmo apresentava: era a Palestina ocupada
por um invasor que controlava até os centavos dos respectivos habitantes. A tensão era grande: nas
montanhas havia guerrilheiros, que de vez em quando atacavam os ocupantes; em suas andanças o
jovem Jesus terá tido ocasião de encontrar cruzes das quais pendiam os revoltosos condenados. Em
tais circunstâncias, o povo judeu estava dividido: havia os puritanos ou nacionalistas, avessos aos
romanos (fariseus), os grupos radicalmente violentos (os zelotas), os colaboracionistas (herodianos
e saduceus) e os que esperavam a solução do problema por uma próxima intervenção de Deus
(essênios). Fora dos Partidos, havia "o povo da terra", ovelhas sem pastor (cf. Mt 9,36).
3. A espera de Deus
Essa população dividida não deixava de ter, ao menos, uma nota comum: os judeus sabiam ser um
povo diferente dos demais, porque chamados por Deus para desempenhar importante tarefa. Eram
depositários de uma aliança, segundo a qual Deus não abandonaria seu povo, mas o faria berço de
um Salvador, que daria a Israel a hegemonia sobre os demais povos.
Tratava-se, pois, de um povo sustentado pela esperança. Através dos séculos, profetas haviam
surgido que anunciavam a vinda do Salvador. Os tempos em que Jesus viveu, foram um período em
que fervilhava a expectativa de Israel: os homens tentavam entrever a prometida figura do Messias
que se aproximasse; por isto precipitavam-se atrás de um chefe que se dissesse Iluminado pelo
Espírito: seria ele o Messias? Mais de uma vez foram enganados (cf. At 5,36s); os propalados chefes
eram políticos embusteiros. Mas Israel não perdia as esperanças. Continuava procurando.
5. O Impossível retrato
Como era fisicamente o homem que João batizara e identificara? O mundo estaria interessado em
possuir uma estátua dele, como possui as de Alexandre Magno, Sócrates. Platão, Aristóteles... Ele
teria sido retratado pelos pintores ou escultores da época se tivesse nascido em Roma ou na Grécia.
Mas, para os judeus, as imagens eram algo pouco usual e mal visto. Por isto, do homem mais
apresentado na arte sacra de todos os tempos não temos uma só imagem que goze de autenticidade.
Os próprios evangelistas não se preocuparam com os traços físicos de Jesus: não nos dizem se era
alto ou baixo, louro ou moreno, de estatura forte ou débil. Muito se sabe a respeito do seu modo de
pensar e sentir; nenhum traço, porém, do seu semblante... Apenas se pode dizer, segundo São Paulo,
que se comportou exatamente como um homem em tudo, exceto no pecado (cf. Fl 2,7; Hb 2,17;
4,15). A descrição da face de Jesus atribuída a Flávio Lêntulo, procônsul romano, é medieval e
espúria ou destituída de credibilidade.
O Sudário de Turim, cuja autenticidade continua muito provável, revela um Jesus majestoso em
sua simplicidade de condenado à flagelação, à coroação de espinhos e à morte de Cruz. Aliás, era
necessário que fosse robusto para poder palmilhar as estradas da Palestina de Norte a Sul e de Sul a
Norte e para passar noites em oração ou abrigado em grutas ao redor de Jerusalém; cf. Mc 1,35; Lc
6,12.
6. Estupendo equilíbrio
O corpo sadio daquele homem era vivificado por uma alma também sadia, resultando daí uma
personalidade notavelmente equilibrada. Quem examina as páginas da história, verifica que quase
todos os grandes homens tiveram algo de anormal, de louco ou de visionário. Ora nada disto aparece
em Jesus. Vive sofrendo a constante oposição dos fariseus, mas não perde a calma interior. É
membro de um povo passional, mas combina essa índole com impressionante serenidade que
desconcerto seus inimigos; assim, por exemplo, quando estes o quiseram colher em armadilha: Jo
7,53-8,11 (os fariseus lhe apresentaram uma mulher adúltera, que eles queriam apedrejar...); Mt
22,15-22 ("é lícito pagar o tributo a César ou não?"); Mt 22,23-33 (os saduceus perguntam de quem
será esposa no dia da ressurreição a mulher que teve sete maridos sucessivos na vida presente): Lc lo,
25-37 (um legista quis embaraçar Jesus perguntando-lhe qual seria o maior mandamento da Lei de
Moisés...).
O escritor racionalista e critico Adolf von Hamack assim se refere à figura de Jesus Cristo:
"A nota dominante da vida de Jesus é a de um recolhimento silencioso, sempre igual a si
mesmo, sempre tendendo ao mesmo objetivo. Incumbido da mais elevada missão, tem sempre
olhos e ouvidos abertos para todas as impressões da história que o cerca. Que prova de paz
profunda e de absoluta segurança! Viagens e albergues para viandantes, festas de núpcias,
ritos de enterro, os palácios dos vivos e os sepulcros dos mortos, o semeador, o ceifador, o
vinhateiro, os trabalhadores desocupados nas praças, o pastor à procura das ovelhas, o
mercador em busca de pérolas, a mulher no lar a lançar fermento na farinha para o pão, a que
perdeu a sua dracma, a viúva que se queixa no tribunal perante o juiz iníquo, o alimento
corporal e as relações entre Mestre e discípulos, a pompa dos reis e a ambição dos poderosos, a
inocência das crianças, a diligência maior ou menor dos servidores..., todas essas Imagens
davam vida aos seus discursos e os tornavam acessíveis a todos os ouvintes... Além disto, as
suas palavras revelam, em meio à maior tensão, paz interior e alegria espiritual tais como
nenhum profeta as experimentara. Ele que não tinha uma pedra sobre a qual reclinasse a
cabeça, não falava como um homem que houvesse rompido com tudo, como um herói de ascese,
como um profeta extático, mas como um indivíduo que conhece a paz e o repouso interior e
pode dá-lo aos outros. Sua voz possui as notas mais poderosas; coloca os homens frente a uma
opção decisiva, sem deixar escapatória e, não obstante, ele apresenta as coisas mais terríveis
como se fossem as mais elementares e delas fala como se fossem o que há de mais natural; as
mais terríveis verdades, ele as colocava dentro da linguagem semelhante à da mãe que fala a
seu filho".
Na verdade, impressiona a firmeza que Jesus tem em si mesmo; baseia-se em sua extraordinária
lucidez de juízo e em sua inquebrantável força de vontade, Jesus é realmente um homem que sabe o
que quer, e está disposto a realizá-lo sem oscilações. Em sua vida pode ter havido - no horto das
Oliveiras - um momento de temor, mas não de dúvida ou de incerteza. Sua vida foi uma flecha
dirigida à sua meta, um Sim taxativo à sua missão. É alguém capaz de arrancar um olho seu se este
olho o escandaliza (cf. Mt 5, 29s), alguém que não aceita quem põe a mão no ando e olha para trás
(cf. Lc 9,62). Já aos doze anos sentia-se envolvido pelas exigências de sua missão quando disse a
Maria e José: "Não sabíeis que eu devo ocupar-me das coisas de meu Pai?" (Lc 2,4g). É oportuno
pensar que o desfecho da pregação de Cristo era a morte atroz na Cruz conhecida e pressentida, para
se ter noção mais nítida das dimensões da intrepidez da sua vontade.
Todos os seus anos de vida pública, Jesus os viveu entre os homens, cercado de discípulos, mas
sempre só, porque não compreendido por eles. A figura era atraente e, ao mesmo tempo, misteriosa -
o que criava certa distância em relação aos demais homens e lhes impunha uma espécie de respeitoso
temor.
Quem examina em profundidade a pessoa de Jesus, verifica que em seu coração tudo tinha seu
tempo, sua oportunidade e sua medida; era violento, quando necessário, e suave; temível aos
inimigos, mas amigo das crianças; cheio de ternura para com os pecadores, mas
nunca sentimental; dado a opções radicais, mas também realista e conhecedor da fraqueza
humana. Parecia viver simultaneamente no tempo e na eternidade, de modo que se encontra
plenamente á vontade na opção, mas tinha os pés firmes na terra; voltado para o transcendental,
misterioso, mas nunca sonhador exaltado; impressionante por seus gestos, mas nunca teatral;
diferente dos que o cercavam, mas nunca um exibicionista; amante da vida, mas disposto a entregá-la
para não desdizer suas ideias; não suportava os hipócritas, mas era compreensivo para com todos os
que pecavam por fraqueza humana.
7. Homem aberto
O equilíbrio psicológico de Jesus não era o de um estóico. Os filósofos de sua época proclamavam
a apatia em relação a todos os possíveis afetos; tentavam dominar a si mesmos a ponto de nunca se
emocionar. Tais homens tendiam à soberba e ao egoísmo. Ora Jesus era precisamente o contrário.
Os homens se dividem em egoístas e generosos, homens que têm o seu centro em si mesmos,
fechados sobre si, e homens que o têm fora de si, abertos para outros valores. Nesse contexto, Jesus
era totalmente aberto... aberto para os demais homens e aberto para Deus.
A abertura para Deus é o que melhor define sua vida e sua figura; é a força motriz de toda a sua
atividade. Ninguém jamais experimentou uma relação com Deus tão viva, tão pessoal quanto Jesus; a
oração que ele realizava por vezes a noite inteira (cf. Lc 6,12) era a expressão consciente do contato
incessante com Aquele que o tinha enviado.
Aliás, o título de Enviado com que Jesus se identificava (cf. Jo 5, 36s; 6,44-46.57; 7, 16.28;
8,16...) significava bem a sua origem transcendental e a identificação do seu pensar e querer com o
Pai Celeste: isto aparece tanto no episódio do menino de doze anos atrás mencionado (cf. Lc 2, 41-
50) quando no final de sua vida, quando exclamou que " tudo estava consumado" (Jo 19,30) ou que
tudo de que havia sido incumbido se havia executado. Todo o segmento de vida intermediária foi o
cumprimento da vontade do Pai (cf. Jo 6,38). Perante esta desapareciam os demais imperativos ou
atrativos: as cadeias do dinheiro, as honras da sociedade, os aplausos dos homens, a fama dos
milagres... O Pai lhe havia assinalado "a sua hora" e Jesus ia ao encontro desta como uma flecha
dirigida ao seu alvo; cf. Jo 2,4; 7,30; 8,20; 12, 23-27; 13,1; 17,1.
Realmente em toda a história da humanidade não se conheceu trajetória tão decidida, tão
constantemente voltada para o alvo. Um Jeremias, um Paulo, um Agostinho, um Buda, um Maomé
apresentaram desníveis, sacudidelas violentas, mudanças e derrotas interiores. Somente a vida de
Jesus se desenvolveu sem um deslize psicológico e sem um desvio moral. Tanto na sua infância
quanto na sua vida pública e na morte brilhou incontestada no horizonte a luz da vontade de Deus.
I. O "IDENTIKIT" DE CRISTO
"Direcionei para Ele toda a minha vida, a única vida que tenho. E por isto sinto , de vez em
quando, a necessidade de contemplar o seu mistério, e de reavivar o identikit de Cristo. Muitas vezes
ouvimos falar de Jesus Cristo; de quando em quando na imprensa escrita aparece alguém que faz
alguma resenha sensacionalista sobre Ele; de vez em quando aparecem interpretações imaginosas da
figura de Jesus Cristo. Mas os únicos testemunhos que nos falam de Cristo, são os Evangelhos. Por
isto ou nos atemos aos Evangelhos ou renunciamos a falar dele. Em conseqüência não direi uma só
palavra que não seja fundamentada, à diferença de quem inventa livros, filmes e discursos.
4. IDEIAS CLARAS
Pode-se compreender que Jesus tinha ideias claras. Muito claras. Quando falava, jamais dizia:
'Talvez, Como creio, Parece-me...'. E não tinha papas sobre a língua, nem mesmo diante dos
poderosos; quem não se lembra de que chamou Herodes 'raposa' (Lc 13,31-33)?
5. HOMEM LIVRE
Uma das notas mais belas de Jesus era a de ser um homem livre. Mesmo frente aos seus amigos.
Quando São Pedro fez sua profissão de fé,... Jesus lhe respondeu com um panegírico jamais dirigido
a um homem (Mt 16,17.20), tanto que São Pedro se deve ter regozijado e quiçá começado a
envaidecer-se. Mas, quando Jesus anunciou a Pedro que o Mestre devia ser condenado à morte e
Pedro já se sentia 'Primeiro-Ministro do Reino de Deus', Pedro tomou Jesus por um braço e O
repreendeu. Jesus nem mesmo o olhou e o tratou com energia: 'Vai-te, Satanás, tu não tens o senso
das coisas de Deus, mas, sim, o das coisas dos homens' (Mt 16,21-23). Eram palavras não usuais nos
lábios de um amigo.
28
Panegírico = discurso em louvor ou elogio (Nota do Tradutor).
Em suma, também Jesus tinha suas preferências entre amigos29; como bem se compreende, os
amigos não são todos iguais. Jesus também amava o seu povo. Sentia-se plenamente hebreu,
israelita, tanto que a previsão da destruição de Jerusalém o levou a derramar lágrimas.
7. ATENÇÃO ÀS PARTICULARIDADES
Há outra coisa na personalidade de Jesus que sempre me impressionou: a sua atenção às
particularidades. Jesus era muito atento às pequenas coisas da vida, mesmo porque sabia que as
poderia aproveitar em parábolas. Lembremo-nos daquela que compara o Reino de Deus a uma
mulher, dona de casa, que toma um pouco de fermento e o lança dentro da massa até que esteja toda
fermentada (Mt13,33). Pensemos também na parábola do amigo fastidioso que foi atendido pelo
amigo que desejava ver-se livre dele (Lc11,5-8). É bem correspondente à realidade.
29
Deus ama a todos os homens, sem dúvida, e dá a cada um as graças necessárias para que chegue à plenitude da vida. Todavia não podemos ditar
normas ou regras ao amor de Deus. Se Jesus manifestava especial atenção a João, Ele o fazia soberanamente, sem lesar os direitos de qualquer outro
Apóstolo, visto que, tudo o que Deus dá aos homens, Ele o dá gratuitamente, sem ter algum débito para com quem quer que seja. (Nota do Tradutor)
O fato é que Jesus terá sido um grande homem, um homem excepcional. Mas, acima de tudo, Ele
é Deus. É o Filho de Deus. Não como todos nós o somos ou como o são todas as criaturas, como a
borboleta... é filha de Deus; Jesus é o Filho por excelência, o Unigênito.30
PERGUNTAS
30
Toda criatura é filha de Deus em sentido amplo, pelo rato de ser o reflexo da sabedoria e da perfeição do Criador. D ser humano, mais do que os
seres irracionais, é imagem e semelhança de Deus. Aqueles que são elevados pela graça a um estado de vida sobrenatural, ainda são mais propriamente
filhos de Deus. Mas Jesus é tal em sentido único, exclusivo: sua natureza humana Intimamente unida à de Deus Filho, é Filho de Deus em sentido
singular. De resto, como Deus, Jesus é inigualável. (Nota do Tradutor).
31
Toda parábola é uma história fictícia, que tem verossimilhança com a realidade histórica costumeira. A parábola dos vinhateiros homicidas deve
deixar de ter verossimilhança histórica porque quer ilustrar o inédito e "incrível" amor de Deus (o dono da vinha) aos homens (os vinhateiros infiéis).
(Nota do Tradutor).
Diga que impressões lhe suscitou a leitura deste texto.
PERGUNTAS
1) Como Jesus afirmou diretamente sua Divindade? Cite dois textos do Evangelho.
2) Como Jesus afirmou indiretamente a sua Divindade? Cite três textos do Evangelho.
3) Que fez Jesus para provar o que dizia? Cite três passagens do Evangelho.
33
Imaginemos o caso de alguém que morre a sós durante a noite, sem a presença de um acompanhante, ou de um suicida que se esconde para pôr fim à
sua vida... Pode-se dizer que não são fatos históricos? Parece absurdo afirmar tal coisa, visto que são fatos ocorridos no tempo e no espaço.
A insistência da Igreja antiga sobre a ressurreição no terceiro dia parece revelar a clara intenção
de afirmar que a ressurreição foi um fato realmente histórico, a ponto de se poder indicar a respectiva
data. Tal intenção é muito clara no discurso de São Pedro proferido em casa do centurião Cornélio:
"Sabeis o que ocorreu em toda a Judéia, a começar pela Galiléia, depois do batismo que João
pregou: como Deus ungiu com o Espírito Santo e com o poder e Jesus de Nazaré, o qual andou de
lugar em lugar, fazendo o bem... E nós somos testemunhas do que Ele fez no país dos judeus e em
Jerusalém. A Ele que mataram, suspendendo-O de um madeiro, Deus ressuscitou-O ao terceiro dia e
permitiu-lhe manifestar-se não a todo o povo, mas às testemunhas anteriormente designadas por
Deus, e nós que comemos com Ele, depois da sua ressurreição dentre os mortos. E mandou-nos
pregar ao povo... " (At 10, 37-42).
Como se vê, a ressurreição ao terceiro dia é inserida entre os fatos históricos de que os Apóstolos
e seus ouvintes são testemunhas.
É verdade que a certeza moral - a certeza da historiografia - ainda não é a certeza da fé. A fé
pertence a outro plano; tem a sua origem e a sua motivação decisiva na atração interior que Deus
exerce sobre a pessoa que Ele chama à fé. Todavia a certeza moral fornece a justificativa à razão do
homem, fazendo que a adesão à fé na ressurreição seja um ato razoável, inteligente, digno, e não
cego ou infantil, imaturo.
Lição 3: Conclusão
O homem do século XX pode crer na ressurreição corporal de Cristo sem recear cair no
infantilismo ou na mitologia. Quem nega a ressurreição, fá-lo não porque ela seja em si um absurdo
ou porque não haja argumentos que a incutam, mas talvez por não ter refletido suficientemente sobre
tais argumentos ou quiçá por nunca ter sido esclarecido a respeito dos mesmos. Quem, ao contrário,
sem preconceitos, sem negar de antemão a possibilidade do milagre, estudar o assunto, perceberá que
crer na ressurreição de Cristo é atitude correspondente às exigências da razão, para não se dizer
"altamente razoável".
De resto, quem professa as verdades da fé, aos poucos encontra nessa própria fé a demonstração
de que não se enganou; a fé se comprova através da experiência ou da vivência respectiva.
PERGUNTAS
1) Que afirma R. Bultmann sobre a ressurreição de Jesus ? Como refutá-lo?
2) Que diz s. Paulo a respeito da ressurreição de Jesus?
3) Os Apóstolos terão inventado o conceito de Messias ressuscitado?
4) Que valor tem o sepulcro vazio?
5) A ressurreição de Jesus é fato histórico?
Lição 3: Conclusão
Para medir a estatura de um homem, não há padrão mais seguro do que o da história. Quantas
pessoas e obras grandes, que pareciam ter envergadura para desafiar os séculos, não vieram a cair no
esquecimento?! Quantas ilusões não se dissiparam sob os golpes do tempo! Quantas mensagens
apresentadas como mais firmes do que o bronze (aere perenniora) conseguiram sobreviver aos seus
arautos?! "Securus iudicat orbis terrarum. - O orbe profere o seu juízo seguro".
Ora em relação a Jesus o veredicto da história foi inteiramente positivo. Pode-se mesmo notar aí
algo de único na sucessão dos fatos humanos: a figura de Jesus tornou-se o centro da história; ela
divide o tempo em duas secções: antes e depois de Cristo. Nem Buda, nem Confúcio, nem Maomé,
nem algum outro líder espiritual ou político obteve tal laudo. Verdade é que os maometanos contam
os anos a partir da Hégira (622 d.C.); trata-se, porém, de uma praxe isolada e restrita; o mundo
inteiro aceita - ao menos nas relações internacionais e oficiais - o nascimento de Cristo como ponto
central da história.
Passando desta verificação de índole histórica para a consideração do impacto que a mensagem de
Jesus exerceu sobre as consciências humanas, registramos um efeito geral sem termos de
comparação. Ver a propósito o Módulo 28 deste Curso.
Surge então oportunamente a pergunta: Seria possível que aquele que de tal modo transformou a
face da terra e o íntimo dos homens, tenha sido um iludido e um ilusor ou impostor? – A história
conheceu, sem dúvida, muitos impostores; mas quantos sobreviveram à sua impostura?! Nietzsche
julgou ser o profeta de nova era, apresentando-se como o carrasco de Deus e o Anticristo; foi vítima,
porém, de sua ilusão, pois terminou os dias em uma casa de alienados. Ao contrário, é inegável o fato
de que as idéias que poderiam ser as ilusões de Cristo, o produto da mente doentia, se transmitiram
aos pósteros e tomaram vulto concreto através dos séculos. Jesus quis ser amado mais do que
qualquer outro ente caro no mundo: mais do que genitores, consortes ou filhos. E esta sua
reivindicação encontrou eco em milhões de corações. Quantos jovens, homens e mulheres, em vinte
séculos de história deixaram os pais, renunciaram a constituir família para amar a Jesus, de maneira
indivisa e total?! Centenas de milhares de mártires preferiram a morte à vida vivida sob o marco da
traição a Jesus. Doutro lado, pode-se lembrar que muitos e muitos perseguiram a Cristo no decorrer
dos séculos. O amor e o ódio são os mais veementes afetos humanos; Jesus foi objeto deles como
nenhum outro herói. Isto significa que a história levou Jesus a sério. Ora a história não leva a sério
nem os iludidos nem os ilusores (impostores).
PERGUNTAS
1) Como se manifestava o vigor físico de Jesus?
2) Cite dois casos que evidenciam a tranquilidade de ânimo de Jesus.
3) Como Jesus demonstrou e perspicácia de sua inteligência ?
4) Jesus teve força de vontade? Como isto se percebe?
5) Jesus foi moralmente integro?
PARTE iV. CREIO NA IGREJA
Tendo estudado o fenômeno religioso, o porquê da fé em Deus e em Jesus Cristo, iniciamos a
quarta Parte do nosso Curso, que tem por título: CREIO NA IGREJA... Igreja que é a continuação de
Jesus Cristo presente entre os homens ou Corpo Místico de Jesus Cristo. Como nas Partes anteriores
deste nosso Curso, procuraremos prescindir da fé para examinar a credibilidade da Igreja ou as
credenciais que justificam a fé na Igreja. Donde o primeiro Módulo desta etapa:
Lição 1: O problema
Tentemos reproduzir algumas das formulações do problema tais como têm sido propostas por
intelectuais racionalistas.
Como pode uma instituição particular, marcada pela contingência e a fragilidade de homens e
mulheres, ser o lugar obrigatório para que se possa encontrar a salvação prometida por Cristo a todos
os homens (cf. Jo lo, lo)?
Porque, para entrarem comunhão com a Verdade de Deus, destinada a todos os homens, devo
passar por determinada instituição e até incorporar-me a esta?
Por que são necessários os dogmas, as normas e os ritos da Igreja para irmos a Deus? Não bastaria
orar ao Ser Supremo, de um modo ou de outro, e oferecer-Lhe o único incenso que lhe agrada: um
bom comportamento ético?
Ou ainda: porque tantas particularidades para nos encontrarmos com o Universal e tantas
realidades contingentes para chegarmos ao Único Necessário?
Tais eram as questões levantadas pelos filósofos do iluminismo (Aufklärung) do século XVIII;
esses espíritos da "época das luzes" tinham na Alemanha seu representante mais típico em Gotthold
Ephraim Lessing (1729-1781).
Refletindo bem, vemos que tais objeções se poderiam estender ao próprio Jesus de Nazaré. Por
que admitir a mediação de Cristo, que se apresentava como a via de acesso a Deus (cf. Jo 10, 9: "Eu
sou a porta..."), ... como "o Caminho, a Verdade e a Vida" (cf. Jo 14,6)? Aliás, o escândalo dos
filósofos racionalistas já era o dos contemporâneos de Jesus, que perguntavam: "Não é este o
carpinteiro, o filho de Maria, o irmão de Tiago, José, Judas e Simão? E suas irmãs não estão aqui
entre nós?" (Mc 6,3).
Em última análise, tocamos o escândalo provocado pelo mistério da Encarnação de Deus ou pelo
âmago da mensagem central do Cristianismo: "O Verbo era Deus... Ele se fez carne e habitou entre
nós" (Jo 1,1.14). Muitas pessoas hoje aceitam ser religiosas (até mesmo cristãs), mas gostariam de
definir elas mesmas o seu caminho para Deus, sem interferência de alguma instituição (religião seria
assunto de consciência apenas ou de foro meramente privado). Reflitamos sobre tal posição.
PERGUNTAS
1) Explique a importância do mistério da Encarnação para o Cristianismo.
2) Como a Igreja se insere neste mistério ?
3) Como a Igreja Católica se distingue das demais comunidades eclesiais cristãs?
4) Porque a Igreja de Cristo tem seu aspecto jurídico?
5) Porque o Senhor Deus quer que os homens vivam o regime da fé ?
l) Rápida expansão
Os antigos não se preocupavam com estatísticas, nem tinham os meios adequados para realizá-las.
Não obstante, podem-se encontrar no decorrer da história documentos sucessivos que dão a ver a
difusão do Evangelho em seus primeiros tempos.
Pode-se dizer que, pouco depois da Ascensão do Senhor, o Cristianismo já contava milhares de
adeptos dispersos ao redor da bacia do Mediterrâneo.
Em 64,o Imperador Nero deu início à perseguição aos cristãos na cidade de Roma. O escritor
romano Tácito refere que foi então martirizada "imensa multidão" (Anais 15,44) de discípulos de
Cristo - o que sugere notável propagação da fé cristã trinta e um anos após a morte do penhor.
Em 112, oitenta e dois anos após a Ascensão, a Ásia Menor se fez ouvir a respeito dos cristãos. -
Plínio o Jovem, Governador da Bitínia (Ásia Menor), escrevia ao Imperador Trajano, dizendo-lhe
que "o contágio dessa superstição havia atingido não somente as cidades, mas também as aldeias e os
campos" (Epístola X). O Cristianismo, na Ásia Menor, modificara a vida social a ponto de inquietar
os partidários da antiga ordem: os templos pagãos estavam mais ou menos desertos, desprezavam-se
os cultos oficiais do Império, o comércio de animais para os sacrifícios pagãos corria sério perigo de
estagnação.
Em cerca de 187, Tertuliano assim se dirigia aos perseguidores no seu Apologético: "Se
quisermos agir não como vingadores clandestinos, mas como inimigos declarados, faltar-nos-ão
efetivos? São talvez mais numerosos do que nós os Mouros, os Marcomanos e os próprios Partos?
Uma população qualquer, limitada a uma região e encerrada em seus confins próprios, será acaso
mais numerosa do que aqueles que estão disseminados por todas as partes da terra? Somos apenas de
ontem, e já enchemos o mundo. Encontramo-nos hoje em tudo que é vosso: nas cidades, nas ilhas,
nas fortalezas, nos municípios, nos pequenos burgos e mesmo nos campos, nas tribos, nas cúrias, no
senado e no foro. Não vos deixamos senão os vossos templos vazios. Sem pegar em armas e sem
mover uma rebelião aberta, poderíamos combater-vos, afastando-nos com o desdém de um recesso.
Dada a grande multidão que somos, se nos separássemos de vós, retirando-nos para um lugar
distante, a perda de tantos cidadãos (não importa quem sejamos nós) solaparia o vosso orgulho de
soberanos do mundo... Convosco ficaria maior número de inimigos do que de súditos. Eis, porém,
que agora é menor o número dos vossos inimigos por mérito desta multidão de cristãos, pois, na
verdade, tendes súditos cristãos em quase todas as vossas cidades e populações".
O leitor fará o desconto exigido pela ênfase de um orador inflamado do Norte da África. Todavia
pode-se dizer que a idéia acima expressa por Tertuliano era, em suas grandes linhas, exata; já no fim
do século II a Igreja, pelo número de seus membros e por sua projeção na sociedade, era um poder
com que o Império Romano devia contar.
No início do ano 300 defronta-se outro testemunho, especialmente valioso porque proveniente de
um pagão. O Imperador Maximino escrevia a Sabatino uma carta, onde se lia:
"Creio que sabeis, tu e todos os cidadãos, como os nossos chefes e pais Diocleciano e
Maximiano, vendo que quase todos os homens abandonam o culto dos deuses e se unem á seita dos
cristãos, com razão estabeleceram... que ficassem de novo chamados ao culto tradicional mediante
pública correção e suplício".
Em 3450 escritor Firmício Materno indagava:
"Em que parte da terra se encontra uma aldeia que não tenha sido conquistada pelo nome de
Cristo? O Oriente e o Ocidente, o Norte e o Sul foram preenchidos pela majestade desse nome. É
verdade que em algumas regiões ainda se movem os membros moribundos da idolatria, mas estamos
próximos do momento em que esta moléstia pestífera estará totalmente erradicada em todas as
localidades " (De errore profanarum religionum).
Tinha, pois, razão o historiador liberal Adolfo Harnack († 1930), quando afirmava:
"É ocioso perguntar se a Igreja teria vencido, mesmo sem Constantino. Um Constantino devia,
cedo ou tarde, aparecer. Como quer que seja, mesmo antes de Constantino, a vitória do
Cristianismo já estava decidida em toda a Ásia Menor e seguramente preparada nas demais regiões
do Império " (Mission und Ausbreitung des Christentums).
O mesmo autor afirmava que em 312 (um ano antes da paz de Milão, outorgada por Constantino
aos cristãos) o Oriente contava cerca de 900 dioceses e o Ocidente 600. Donde concluía Harnack:
"Creio que o Cristianismo se propagou com extraordinária rapidez... Os Padres da Igreja no século
IV tinham razão ao se surpreender com os progressos que a sua fé tinha feito de geração a geração"
(ob. cit.).
Note-se ainda que o Cristianismo, tendo começado a se propagar nas classes mais humildes da
sociedade, não se limitou a estas; já no século II nobres, intelectuais, oficiais da corte e membros da
família imperial foram atingidos pela Boa-Nova. O historiador Eusébio de Cesaréia († 340
aproximadamente) atesta que "toda a corte de Valeriano (253-260) era cheia de homens timorados e
parecia uma igreja de Deus" (História da Igreja V 21).
2) Os obstáculos à expansão
a) Os destinatários greco-romanos aos quais se dirigia a pregação cristã, achavam-se em nível
moral extremamente baixo: os vícios eram não somente praticados, mas até venerados nas figuras
das divindades do paganismo. A sodomia, o adultério, o lenocínio, o infanticídio, a crueldade
constituíam, por vezes, o espetáculo público tanto dos nobres como das massas.
Foi precisamente a esse mundo que os arautos cristãos pregaram a moral mais pura e exigente:
"Bem-aventurados os que têm o coração puro, ... os que têm o espírito de pobre,... os que choram".
Apresentavam como troféu uma cruz, que, para os antigos, devia ser o que uma forca é para nós.
Quem se convertesse, devia contar coma perspectiva da perseguição e do martírio. Não obstante, em
um século milhões de pessoas aceitaram tal mensagem dura e acolheram o martírio como festa
nupcial.
No séc. II podia S. Justino dizer aos pagãos:
"Nós, que nos afogávamos na impureza, agora abraçamos a castidade; nós que praticávamos a
magia, agora nos consagramos ao Deus bom e eterno. Outrora procurávamos acima de tudo o ouro e
as riquezas, agora os pomos em comum e fazemos que os pobres os compartilhem. Outrora éramos
divididos pelos ódios e as vinganças; considerávamos como estrangeiros os que não eram da nossa
estirpe; agora, porém, convivemos em paz e oramos por nossas inimigos. Isto tudo acontece a partir
do dia em conhecemos a religião de Cristo "(I Apologia 14).
Verdade é que também os filósofos estóicos (Sêneca, Epicteto...) apresentavam ao mundo uma
moral elevada. Mas tiveram poucos seguidores; o estoicismo ficou sendo um fenômeno confinado a
grupos de intelectuais e aristocratas. Ao contrário, o Cristianismo foi contagiante para todas as
categorias da população pagã.
Ainda outros obstáculos ao Cristianismo merecem menção:
b) Jesus era um judeu, filho de estirpe desprezada por todos os povos de sua época, em particular
por gregos e romanos. Mais ainda: os cristãos eram tidos como membros de uma seita judaica,
adeptos de superstição funesta e de uma das crenças mais abjetas que haviam entrado em Roma.
Esse mesmo Jesus passara por réu, condenado ao suplício mais degradante, após processo legal.
Em vista do que, dizia São Paulo que pregar o Cristo crucificado constituía "escândalo para os judeus
e loucura para os pagãos"(1 Cor 1, 23).
c) O Cristianismo se apresentava como religião exclusivista em relação às demais crenças
religiosas. Apregoava monoteísmo rígido, sem tolerar o mínimo vestígio de sincretismo, profligava
até os deuses de Roma - o que parecia pôr em perigo a subsistência de Roma e dava motivo a que os
cristãos fossem acusados de lesa-pátria e ódio ao gênero humano.
d)A conversão ao cristianismo ocasionava freqüentemente dolorosas tragédias de família: por
causa de Cristo, houve filhos que se viram deserdados por seus pais, esposas repudiadas ou mesmo
acusadas por seus maridos diante dos tribunais, crianças martirizadas em presença dos genitores.
Quem se convertesse ao Evangelho, corria o risco de sofrer o confisco de seus bens, a perda de um
cargo público, graves calúnias, miséria e desprezo.
Em uma palavra, pode-se dizer que o Cristianismo encontrou, conjuradas contra si, todas as forças
de que uma sociedade pode dispor: o poder governamental e a opinião pública, a ciência dos
intelectuais e os preconceitos do povo, a policia e as leis... Sustentou a luta durante quase três
séculos, e saiu vencedor.
3) Insuficiência de meios
Os recursos mediante os quais o Cristianismo se difundiu, foram os mais exíguos possíveis.
Os arautos da Boa-nova não eram filósofos, nem oradores, mas um grupo de homens rudes que
não tinham aprendido a falar senão o próprio dialeto; ignoravam os métodos da propaganda, não
tinham em si mesmos nem coragem, nem poder de fascinação nem senso de organização... Não
obstante, foi deles que procedeu a conquista do mundo greco-romano. O mais poderoso Império da
antigüidade se defrontou com uma população de fiéis inermes, que se deixaram degolar e queimar
vivos..., finalmente a vitória coube não ao Império, mas ao ideal dos mártires (em 313, foi
promulgada a Paz de Milão).
Dirá talvez alguém: o Cristianismo prevaleceu porque esposou a causa dos míseros e oprimidos,
despertando neles a esperança de uma redenção social... - Em verdade, não se poderia dizer que os
primeiros arautos do Evangelho hajam prometido aos pequeninos bem-estar terrestre, mudança de
condições econômicas ou sociais, liberdade civil..., ao contrário, o que eles podiam prever para seus
seguidores, eram insultos e perseguições. Donde se pode concluir com São Paulo (1Cor 2, 1-5) que o
sucesso da pregação cristã não se explica por fatores e artifícios humanos, mas unicamente por
intervenção da Providência Divina, que houve por bem produzir com recursos inadequados os mais
estupendos efeitos.
Há, porém, quem recorde, a esta altura, a notável expansão do Budismo e do Islamismo, que hoje
em dia contam milhões de adeptos. - Em resposta, deve-se observar que budistas e maometanos não
sofreram três séculos de perseguição ao nascer. O Budismo ficou confinado aos povos da Ásia.
Quanto ao Islamismo chegou mesmo a servir-se da guerra santa para garantir a sua propagação. Ao
contrário, a difusão do Evangelho no Império Romano se fez mediante pregação e persuasão apenas,
num ambiente hostil.
4) Revolução Moral
Há ainda outro tópico importante a considerar nas origens da Religião Cristã: a renovação moral
que ela acarretou para a humanidade.
Considere-se a família no Império Romano. - As leis civis permitiam o aborto, o infanticídio, a
venda dos filhos... A consciência de Sêneca, um dos maiores moralistas romanos, não se surpreendia
diante de tais crimes; ao contrário, observava:
"Quando matamos os cães furiosos... e submergimos as crianças fracas ou monstruosas, não o
fazemos movidos pela cólera, mas pela razão " (Sobre a ira I, 1. 5).
A mulher, no paganismo, era vilipendiada pela poligamia, o adultério, o divórcio, a prepotência
do marido... Depois de casada, podia ser tratada pelo esposo como um objeto qualquer de
propriedade dele; podia ser repudiada por motivos fúteis ou ser entregue em herança como um ser
inanimado.
O Cristianismo reformou esses costumes: reconheceu na mulher a dignidade da natureza do
próprio homem; de instrumento da volúpia, transformou-a em companheira e conselheira do marido,
destinada a compartilhar com ele as responsabilidades do lar e a educação dos filhos. A Moral cristã
rejeitou o aborto, condenou o infanticídio e proibiu a venda de filhos. Declarou o matrimônio uno e
indissolúvel, e enalteceu o valor da prole. Observa muito bem Giovanni Albanese:
"O pai pagão que incita a ama a lançar o filho recém-nascido ao lixo da rua... O mártir cristão
Leônidas, que descobre o peito de seu filhinho Orígenes adormecido e o beija com veneração como
sendo o templo do Espírito Santo: eis concretizados dois mundos, duas filosofias" (Alfa ricerca
della fede. Assisi l969, pag. 276).
Observe-se também o influxo do Cristianismo sobre a sociedade civil. - A tirania e o despotismo
foram condenados, a autoridade reconhecida dentro dos justos limites. O homem aprendeu, pela
primeira vez na história, que ele é livre do fato e do destino, livre para viver segundo a sua
consciência. O Cristianismo, embora não tenha excitado os homens à rebelião armada, formulou e
difundiu os princípios de igualdade e fraternidade em virtude dos quais seriam paulatinamente
repudiadas aí discriminações baseadas sobre a raça, o sexo, a prepotência, a política, a nacionalidade.
Foi o Cristianismo que pela primeira vez proclamou aos homens: "Já não há judeu, nem grego, nem
escravo, nem livre; nem homem, nem mulher; mas todos sois um sã em Cristo" (Gl 3,28).
O Evangelho ensinou que não há estrangeiros a odiar, nem bárbaros a escravizar, mas apenas, e
em toda parte, irmãos a amar: "Amai os vossos inimigos e orai por vossos perseguidores" (Mt 5,44).
Por isto podia Tertuliano (séc. III) dizer: "Só reconhecemos uma república para todos: o mundo"
(Apologético 38).
O Cristianismo, portanto, foi a grande revolução moral da história. Soube transformar os homens
a partir de qualquer nível moral, elevando-os ao heróico exercício da virtude através de todos os
séculos.
Não há dúvida, nem todos os cristãos são o que deveriam ser. No quadro destas páginas, porém,
basta mostrar que o Evangelho possui a força para transformar os homens, desde que estes se deixem
penetrar por ele. De resto, se tantos cristãos são pouco edificantes, eles o são não em conseqüência
do Cristianismo, mas por incoerência com o Cristianismo, não por serem cristãos, mas por serem
pouco cristãos.
Em conclusão: a rápida expansão do Cristianismo nos primeiros séculos, apesar dos ingentes
obstáculos que encontrou, e da exiguidade de meios com que contou, expansão que marcou
profundamente os rumos da história, esse fenômeno, parece não encontrar explicação satisfatória no
mero jogo dos fatores humanos. É, antes, o sinal de que Deus mesmo é o Autor e Sustentáculo da
Religião Cristã.
PERGUNTAS
1) Que se entende por "Monofisitismo na Igreja "?
2) Diga algo sobre a rápida expansão do Cristianismo
3) Porque o Cristianismo encontrou obstáculos á sua expansão?
4) Com que meios o Cristianismo podia contar para se expandir?
5) Como o Cristianismo revolucionou a sociedade?
6) Que é que se conclui de um exame da história do Cristianismo?
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A pertença à Igreja, embora seja contestada e menosprezada por muitos cristãos, é inerente ao título mesmo de Cristão. Deus não quis santificar os
homens de maneira meramente individual, mas, tendo feito o homem social, quer também atrai-lo a Si em sociedade ou na Igreja. O Evangelho e as
cartas de São Paulo atestam eloqüentemente esta verdade. Cf. Mt 18,1-35; E( Cl.
ideal cristão concebido por ele. Apenas um elemento parecerá essencial a tal cristão: a Bíblia, pois
nesta ele julgará encontrar o mais importante, ou seja, a doutrina de Cristo que, recebida pela fé,
salvará o leitor da Bíblia. Esse cristão poderá ficar fora da Igreja ou sem Igreja, nunca, porém, sem a
Bíblia...
A história que acaba de ser esboçada, é realmente a de não poucos cristãos - católicos e
protestantes -, que se dão por insatisfeitos com as falhas humanas da Igreja em que começaram a
viver o Cristianismo. Vêm a ser angustiados e instáveis, pois nunca encontram a vivência ideal ou a
santidade perfeita entre os homens seus irmãos.
Vê-se, porém, que tal método de procura da Igreja é falho: baseia-se em critérios humanos
(santidade, virtude, bom comportamento dos homens...), que podem decepcionar duramente quem se
queira apoiar neles.
Por isso passamos a encarar outro tipo de procura da verdadeira Igreja de Cristo.
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"Ortodoxa", porque até o século VII (Concílio de Constantinopla III, 681) defendeu sempre a reta fé ( ortodoxia, em grego) em oposição às heresias
do arianismo, do nestorianismo, do monofisismo e do monotelitismo. Tendo conservado a reta fé (sem heresia), os cristãos orientais se separaram de
Roma em lo54 por iniciativa do Patriarca Miguel Cerulário de Constantinopla.
- Deve-se reconhecer a sucessão apostólica nas comunidades orientais separadas de Roma.
Acontece, porém, que, dentre os doze Apóstolos, quis Cristo escolher um - Pedro – para que fosse o
sinal e o fator de unidade do colégio apostólico. Com efeito, disse Jesus a Pedro:
Mt 18,18s: "Tu és Pedro e sobre essa pedra edificarei a minha Igreja. Dar-te-ei as chaves do
Reino dos céus, e tudo quanto ligares na terra será ligado nos céus, e tudo quanto desligares na terra,
será desligado nos céus".
Jo21, 16s: "Apascenta as minhas ovelhas".
Lc 22,31s: "Simão, Simão, Satanás vos reclamou para vos joeirar como o trigo. Mas eu roguei por
ti, a fim de que a tua fé não desfaleça. E tu, uma vez convertido, confirma os teus irmãos".
Donde se vê que Pedro recebeu, como nenhum outro Apóstolo, a missão de conduzir o rebanho de
Cristo. De modo especial, verifica-se que a fé de Pedro é critério para se distinguirem as autênticas
proposições de fé.
Se, conforme as palavras evangélicas acima, Pedro recebeu de Cristo o primado entre os
Apóstolos, compreende-se que o Apóstolo ou sucessor de Apóstolo que não tenha comunhão com
Pedro já não goza da assistência que Cristo quis prometer a Pedro e ao colegiado unido a Pedro.
Mais: Pedro morreu como bispo de Roma: os seus sucessores em Roma são, pois, herdeiros do
carisma ou da graça do primado que Jesus outorgou a Pedro. É por isto que a Igreja de Cristo se
chama "romana"... Romana, no caso, quer dizer "petrina", ou seja, a Igreja que Cristo quis
estabelecer sobre o fundamento visível que se chama "Pedro". Em conseqüência, também se entende
que as comunidades ortodoxas orientais, tendo-se separado de Pedro, já não se beneficiam daquela
promessa de autenticidade integral que Cristo quis fazer à Igreja chefiada por Pedro.
As comunidades orientais separadas, como também as denominações protestantes, conservam
numerosos valores do patrimônio entregue por Cristo aos Apóstolos. Todavia falta-lhes o valor que
garante a incorrupção dos demais: a união com Pedro, pelo qual Cristo quer reger a sua Igreja.
É na Igreja fundada e regida por Cristo que o cristão encontra a Bíblia, ... e não somente a Bíblia,
mas também a autêntica interpretação desta, pois na Igreja continua a ressoar a palavra de Deus oral,
que é anterior á escrita. Cristo não é simplesmente um mestre - como Sócrates ou Aristóteles - que
morreu e nos deixou uma mensagem consignada em livro por seus discípulos. Mas Cristo continua
vivo não apenas na recordação e no afeto dos seus discípulos e, sim, antes do mais, na realidade da
Igreja que dele se deriva diretamente. É portanto, na Igreja que o cristão encontra o Cristo e a Palavra
de Cristo tanto oral como escrita (Bíblia).
São estas algumas ideias aptas a ajudar o estudioso sincero que deseje, no panorama do
Cristianismo contemporâneo, encontrar Cristo e a Igreja de Cristo - dois valores que não se
distinguem adequadamente e são inseparáveis um do outro.
PERGUNTAS
1) Diga em que consiste a primeira maneira de procurar a Igreja de Cristo.
2) Como avaliar essa via?
3) Qual o modo acertado de procurar a Igreja de Cristo?
4) E as falhas existentes na Igreja fundada por Cristo? Que significado têm?
5) E as comunidades ortodoxas que têm a sucessão apostólica? Como avalia-las?
Refletindo...
O problema exige que distingamos o aspecto objetivo e o aspecto subjetivo da religião.
1. Aspecto objetivo
Não se pode dizer que todas as religiões são equivalentes entre si, pois não coincidem entre si
quanto ao Credo: algumas são politeístas (admitem vários deuses), outras são panteístas (identificam
a Divindade, o mundo e o homem entre si), outras são monoteístas (professam um só Deus, distinto
do mundo). Mesmo dentro de cada tronco há correntes e variantes... Ora a verdade é uma só, de
modo que, objetivamente falando, haverá Credos verídicos (em grau pleno ou menos pleno) e Credos
errôneos.
Sem dúvida, o senso religioso inato é o mesmo em todos os homens. Ele tem as mesmas
expressões religiosas, independentemente do Credo que professam; por efeito de sua religiosidade
natural, todos os homens rezam, dobram os joelhos, prostram-se por terra, levantam as mãos ao céu,
e praticam as virtudes ditadas pela Ética natural: o senso religioso ensina a não matar, não roubar,
não caluniar, não adulterar... Todavia, além dessa base natural comum a todas as religiões, cada
religião tem o seu Credo, seu culto e sua Moral própria; neste plano é que se dão as divergências: há
quem creia na reencarnação e quem não a aceite; há quem admita o divórcio, o aborto, o
homossexualismo, a guerra santa, a poligamia ... e quem não os admita.
Em conclusão: objetivamente falando, as religiões não são equivalentes entre si; não são
igualmente verídicas, nem são igualmente boas.
Os católicos, a bom título, dizem que só há uma religião revelada por Deus: a que culmina em
Jesus Cristo e se prolonga através dos séculos no Corpo de Cristo que é a Igreja confiada por Jesus a
Pedro e seus sucessores.
É o que o Concílio do Vaticano II professa na Declaração Dignitatis Humanae no 1:
"Professa o Sacro Sínodo que o próprio Deus manifestou ao gênero humano o caminho pelo qual
os homens, servindo a Ele, pudessem salvar-se e tornar-se felizes em Cristo. Cremos que essa única
verdadeira Religião subsiste na Igreja Católica e Apostólica, a quem o Senhor Jesus confiou a tarefa
de difundi-la aos homens todos, quando disse aos Apóstolos: 'Ide pois e ensinai aos povos todos,
batizando-os em nome de Pai e do Filho e do Espírito Santo, ensinando-lhes a guardar tudo quanto
vos mandei' (Mt 28, 19-20). Por sua vez, estão os homens todos obrigados a procurar a verdade,
sobretudo aquela que diz respeito a Deus e a Sua Igreja e, depois de conhece-la, a abraça-la e a
praticá-la".
Na Constituição Lumen Gentium no 8 lê-se:
"Esta é a única Igreja de Cristo, que no Símbolo professamos una, santa, católica e apostólica
(12), e que o nosso Salvador, depois da sua Ressurreição, confiou a Pedro para que ele a
apascentasse (Jo 21, 17), encarregando-o, assim como aos demais Apóstolos, de a difundirem e de a
governarem (cf. Mt 28, 28), levantando-a para sempre como 'coluna e esteio da verdade' (I Tm 3,15).
Esta Igreja, como sociedade constituída e organizada neste mundo, subsiste na Igreja Católica,
governada pelo sucessor de Pedro e pelos Bispos em comunhão com ele, ainda que fora do seu corpo
se encontrem realmente vários elementos de santificação e de verdade, elementos que, na sua
qualidade de dons próprios da Igreja de Cristo, conduzem para a unidade católica".
2.Aspectosubjetivo
É fato que nem todos os homens chegam ao conhecimento do Evangelho tal como Jesus Cristo o
pregou e continua a pregar na sua Igreja; não têm culpa disto. Todavia têm coração reto e sincero ao
seguir uma filosofia religiosa diferente do Catolicismo: não duvidam de que estão professando a
verdade e a ela devem obedecer, mesmo praticando a poligamia ou crendo que a reencarnação divide
os homens em castas diferentes, que têm que sofrer (uns) ou ser inclementes (outros). A tais pessoas
Deus não pedirá contas do que não tiver revelado ou do que tiverem ignorado sem culpa própria.
Poderão salvar-se não pelo falso Credo que professam, mas pela boa fé ou sinceridade cândida com
que o professam. É o que declara a Constituição Lumen Gentium no 16:
"Aqueles que ignoram sem culpa o Evangelho de Cristo e a sua Igreja, mas buscam a Deus na
sinceridade do coração, e se esforçam, sob a ação da graça, por cumprir na vida a sua vontade,
conhecida através dos ditames da consciência, também esses podem alcançar a salvação eterna.
Nem a Divina Providência nega os meios necessários para a salvação àqueles que, sem culpa, ainda
não chegaram ao conhecimento explícito de Deus, mas procuram coma graça divina viver
retamente. De fato, tudo o que neles há de bom e de verdadeiro, considera-o a Igreja como
preparação evangélica e Dom daquele que ilumina todo o homem para que afinal venha a ter vida".
Ou ainda a Constituição Gaudium et Spes no 22:
"Tendo Cristo morrido por todos e sendo uma só a vocação última do homem, isto é, divina,
devemos admitir que o Espírito Santo oferece a todos a possibilidade de se associarem, de modo
conhecido por Deus, a este mistério pascal".
Assim, de um lado, fica excluído todo relativismo religioso - o que seria relativizar a verdade.
Doutro lado, fica excluído também todo fanatismo cego, que não leva em conta a inocência ou a
candura de quem, sem culpa própria, não adere à verdade, mas se esforça por cumprir o que o único
Deus lhe revela através dos ditames da consciência reta e sincera.
PERGUNTAS
1) Que se entende por "aspecto objetivo" e "aspecto subjetivo" da religião?
2) Objetivamente falando, todas as religiões são equivalentes entre si?
3) Como se explica que todas as religiões ensinem os bons costumes?
4) Que pensar daqueles que de boa fé estão no erro?
5) Qual o lugar que compete a Jesus Cristo no conjunto das crenças religiosas?
A perda do poder temporal teve o mérito de emancipar o Papa das solicitudes e solicitações
dilaceradoras da administração de um Estado. Pode sobressair mais na singularidade da sua missão
espiritual.
PERGUNTAS
1) Descreva sumariamente os antecedentes da fundação do Estado Pontifício.
2) Como foi criado o Estado Pontifício?
3) Porque e como caiu o Estado Pontifício?
4) Como se deu a restauração do Estado Pontifício?
6 Que dizer das "riquezas" do Vaticano?
Caro (a) cursista, você terminou seu Curso de Teologia Fundamental. Foram-lhe oferecidas as
razões para compreender o fenômeno religioso e crer em Deus, em Jesus Cristo e na Igreja. Esteja a
sua fé consciente e amadurecida para que possa iniciar o percurso dos tratados de Teologia
Sistemática, a começar pelo de Deus Uno e Trino.