Farsa Dos Almocreves PDF
Farsa Dos Almocreves PDF
Farsa Dos Almocreves PDF
Gil Vicente
Transcrição e atualização ortográfica
Iba Mendes
Do ano de 1526.
Livro Digital nº 918 - 1ª Edição - São Paulo, 2018.
Teatro - Literatura Brasileira.
Gil Vicente
(1465/1466 — 1536/1540)
***
***
***
É isso!
Iba Mendes
FARSA DOS ALMOCREVES
Esta seguinte farsa foi feita e representada ao muito poderoso e excelente Rei D.
João, o terceiro em Portugal deste nome, na sua cidade de Coimbra, na era do
Senhor de 1526.
FIGURAS:
FIDALGO
PAJEM
CAPELÃO
OURIVES
PERO VAZ
(Almocreves)
VASCO AFONSO
OUTRO FIDALGO
(O fundamento desta farsa é que um fidalgo de muito pouca renda usava muito
estado, e tinha capelão seu e ourives seu, e outros oficiais, aos quais nunca
pagava: e vendo-se o seu Capelão esfarrapado e sem nada de seu, entra dizendo)
CAPELÃO
Pois que não posso rezar,
Por me ver tão esquipado,
Por aqui por este arnado
Quero um pouco passear
Por espaçar meu cuidado.
E prosarei o romance
De Yo me estaba en Coimbra,
Pois Coimbra assim nos cimbra,
Que não há quem preto alcance.
(Grosa)
1
Quando aquilo vi mesquinho,
Entendi que era cilada
Contra os cavalos da corte
E minha mula pelada.
CAPELÃO
Senhor, já será razão.
FIDALGO
Avante, padre, falai.
CAPELÃO
Digo que em três anos vai
2
Que sou vosso capelão.
FIDALGO
É grande verdade: avante.
CAPELÃO
Eu fora já do Infante,
E pudera ser que del-rei.
FIDALGO
À bofé, padre, não sei.
CAPELÃO
Si, senhor, que eu sou d'estante,
Ainda que cá me empreguei.
FIDALGO
Não vo-lo hei de negar:
Fazei-me uma petição
De tudo quanto requereis.
CAPELÃO
Senhor, não me prolongueis,
Que isso não traz conclusão,
Nem vejo que a quereis.
Porque me fiz polo vosso
Clericus et negociatores.
FIDALGO
Assi vos dei eu favores,
E disso pouco que eu posso
Vos fiz mais que outros senhores:
3
De renda nem doutro 'bem,
Que dar-lÉ homem de comer,
Que é cada dia um vintém,
E mais muito a seu prazer?
CAPELÃO
E do vestir não fazeis conta?
E esse comer com paixão,
E dormir com tanta afronta,
Que a coroa jaz no chão,
E outros carregozinhos
Desonestos pera mi.
Isto, senhor, é assi.
E azemel nesses caminhos,
Arre aqui e arre ali,
FIDALGO
Assi fiei eu de vós
Toda a minha esmolaria,
E daveis polo amor de Deus,
Sem vos tomar conta um dia.
CAPELÃO
Dos três anos que eu alego,
4
Dá-la-ei logo sem pendenças:
Mandastes dar a um cego
Um real por endoenças.
FIDALGO
Eu isso não vo-lo nego.
CAPELÃO
E logo daí a um ano,
Pera ajuda de casar
Uma órfã, mandastes dar
Meio côvado de pano
De Alcobaça por tosar.
FIDALGO
Padre, boa conta dais.
Ponde tudo num item,
E falai ao meu Doutor,
Que ele me falará nisso.
CAPELÃO
Deixe Vossa Mercê isso
Pera el-rei nosso senhor,
E vós falai-me de siso.
5
FIDALGO
Em quantas missas me achastes?
Das vossas digo eu porém.
CAPELÃO
Que culpa vos tem Samora?
Por vós estão elas nos céus.
FIDALGO
Mas tomai-as para vós,
E guardai-as muito embora,
Então pague-vo-las Deus:
Que eu não gasto meus dinheiros
Em missas atabalhoadas.
CAPELÃO
E vós fazeis foliadas
E não pagais ó gaiteiro?
Isso são balcarriadas.
FIDALGO
Todo o fidalgo de raça,
Em que a renda seja curta,
É por força que isso faça.
6
Padre, mui bem vos entendo:
Foi sempre a vontade minha
Dar-vos a el-rei ou à Rainha.
CAPELÃO
Isso me vai parecendo
Bom trigo, se der farinha.
Senhor, se me isso fizer,
Grande mercê me fará.
FIDALGO
Eu vos direi que será:
Dizei agora um profácio, a ver
Que voz tendes pera lá.
CAPELÃO
Folgarei eu de o dizer;
Mas quem me responderá?
FIDALGO
Eu.
CAPELÃO
Per omnia secula seculorum.
FIDALGO
Amen.
CAPELÃO
Dominus vobiscum.
FIDALGO
Avante.
CAPELÃO
Sursum corda.
FIDALGO
Tendes essa voz tão gorda,
Que pareceis alinfante
7
Depois de farto de açorda.
CAPELÃO
Pior voz tem Simão Vaz,
Tesoureiro e capelão
E pior o Adaião,
Que canta como alcatraz,
E outros que por i estão.
FIDALGO
Padre, eu hei de ter fadiga,
Mas del-rei haveis de ser:
Escusada é mais briga.
CAPELÃO
Sabeis em que está a contenda?
Direis: é meu capelão:
E el-rei sabe a vossa renda,
E rir-se-á se vem à mão,
E remeter-me-á à Fazenda.
FIDALGO
Se vós fôreis entoado.
CAPELÃO
Que bem posso eu cantar
Onde dão sempre pescado,
E de dous anos salgado,
O pior que há no mar?
PAGEM
Senhor, o ourives sé ali.
FIDALGO
8
Entre. Quererá dinheiro.
Venhais embora cavaleiro:
Cobri a cabeça, cobri.
Tendes grande amigo em mi,
E mais vosso pregoeiro.
OURIVES
Senhor, eu o servirei
E não quero outro senhor.
FIDALGO
Sabeis que tendes melhor?
Eu o dixe logo a el-rei,
E faz em vosso louvor:
OURIVES
Nossa conta é tão pequena,
E há tanto que é devida,
Que morre de prometida,
E peço-a já com tanta pena,
Que depeno a minha vida.
9
FIDALGO
Ora olhai esse falar
Como vai bem martelado!
Folgo não vos ter pagado,
Por vos ouvir martelar
Marteladas de avisado.
OURIVES
Senhor, beijo-vo-las mãos,
Mas o meu queria eu na mão.
FIDALGO
Também isso é cortesão:
Senhor, beijo-vo-las mãos,
O meu queria eu na mão.
OURIVES
Dous marcos bem, ouro e fio.
FIDALGO
Essa é a prata: e o feitio?
OURIVES
Assaz de pouco dinheiro.
FIDALGO
Que vai com feitio e prata?
OURIVES
Justos nove mil reais.
E não posso esperar mais,
Que o vosso esperar me mata.
FIDALGO
Rijamente me apertais.
10
E fazeis-me mentiroso,
Que eu gabei-vos doutro jeito;
E se eu tornar ao defeito,
Não será proveito vosso.
OURIVES
Assi que o meu saleiro peito?
FIDALGO
Ele é dos mais maus saleiros,
Que eu em minha vida comprei.
OURIVES
Ainda o eu tomarei
A cabo de três janeiros
Que há que vo-lo eu fiei.
FIDALGO
Já agora não é razão;
Eu não quero que vós percais.
OURIVES
Pois por que me não pagais?
Que eu mesmo comprei carvão
Com que me encarvoiçais.
FIDALGO
Moço, vai-me ver o que faz el-rei,
Se parecem Damas lá:
Este dia não se vá
Em pagarás, não pagarei.
E vós tornai outro dia cá.
11
E dele recebereis
O mais certo pagamento.
E pagais-me aí com o vento,
Ou com as outras mercês?
FIDALGO
Tomai-lhe vós o tento.
CAPELÃO
Estes hão de ir ao paraíso?
Não creio eu logo nele.
Eu lhes mudarei a pele:
Daqui avante siso, siso,
Juro a Deus que me abroquele.
Vem o Pajem com recado e diz:
PAGEM
Senhor, in-rei sé no Paço.
FIDALGO
Em que casa?
PAJEM
Isto abasta.
FIDALGO
O recado que ele dá!
Ratinho és de ma casta.
PAJEM
Abonda, bem sei eu o que eu faço.
FIDALGO
Abonda! olhai o vilão.
Damas parecem per i?
PAJEM
12
Si, senhor, damas vi,
Andavam pelo balcão.
FIDALGO
E quem eram?
PAJEM
Damas mesmas.
FIDALGO
Como as chamam?
PAJEM
Não as chamava ninguém.
FIDALGO
Ratinhos são abantesmas,
E quem por pajens os tem.
Eu hei de fazer por haver
Um pajem de boa casta.
PAJEM
Ainda eu hei de crescer:
Castiço sou eu que basta,
Se me Deus deixa viver.
Pois o mais o deprenderei,
Como outros como eu per i.
FIDALGO
Pois faze-o tu assi,
Porque hás de ser del-rei,
Moço da Câmara ainda.
PAJEM
Boa foi logo cá a vinda.
13
De pão, porque os lavradores
Fazem os filhos paçãos.
Cedo não há de haver vilãos:
Todos del-rei, todos del-rei.
FIDALGO
E tu zombas? PAJEM
Não, mas antes sei
Que também alguns cristãos
Hão de deixar a costura.
Torna o Capelão.
CAPELÃO
Vossa Mercê por ventura
Falou já a el-rei em mi?
FIDALGO
Ainda jeito não vi.
CAPELÃO
Não seja tão longa a cura
Como o tempo que servi.
FIDALGO
Anda el-rei tão ocupado
Com este Turco, com este Papa,
Com esta França, com esta trapa,
Que não acho vão azado,
Porque tudo anda solapa.
CAPELÃO
Senhor, queria conclusão.
14
FIDALGO
Conclusão quereis? Bem, bem,
Conclusão há em alguém.
CAPELÃO
Conclusão quer conclusão,
E não há conclusão em nada.
Senhor, eu tenho gastada
Uma capa e um mantão;
Pagai-me a minha soldada.
FIDALGO
Se vós pudésseis achar
A altura de Leste a Oeste,
Pois não tendes voz que preste,
Perequi era o medrar.
CAPELÃO
E vós pagais-me c'o ar?
Mao caminho vejo eu este. (Vai-se)
PAGEM
Deve-o el-rei de tomar,
Que luta coma danado.
Ele é do nosso lugar;
De moço guardava gado,
Agora veio a bispar.
FIDALGO
E cá chama-se Cotão,
Mais fidalgo que os Azedas.
Satisfação me pedia,
Que é pior de fazer
Que queimar toda Turquia;
15
Porque do satisfazer
Nasceu a melancolia.
(Vem Pero Vaz, almocreve, que traz um pouco de fato do Fidalgo, e vem tangendo
a chocalhada e cantando)
PERO VAZ
"A serra é alta, fria e névosa,
"Vi venir serrana gentil, graciosa."
Apre cá ieramá,
Que te vás todo torcendo,
Como jogador de bola.
Uxtix, uxte xulo cá,
Que t'eu dou irás gemendo
E resoprando sob a cola.
16
Ao corpo de mi Tareja,
Descobris-vos vós na cama.
Parece? Dix, pera vossa ama:
Não criarás tu i vareja.
Mando-vos eu suspirar i
Pola padeira de aveiro,
Que haveis de chegar à venda,
E então ali desalbardar,
E albardar o vendeiro,
Se não tiver que vos venda...
PERO VAZ
Hôu, Vasco Afonso, onde vás?
VASCO AFONSO
Uxtix, por esse chão.
17
PERO VAZ
Não trais chocalhos nem nada?
VASCO AFONSO
Furtaram-mos lá detrás
Um fi d eputa ladrão
Na venda da repeidada.
PERO VAZ
I bebemos nós à vinda.
VASCO AFONSO
Cujo é o fato, Pero Vaz?
PERO VAZ
Dum fidalgo. Dou ó diabo
O fato e o seu dono com ele.
VASCO AFONSO
Valente almofreixe traz.
PERO VAZ
Toma o mu de cabo a rabo.
VASCO AFONSO
Pardeus, carrega leva ele.
PERO VAZ
Uxtix, agora não paceram eles,
E lá por essas chamecas
Vem roendo as urzeiras.
VASCO AFONSO
Leixa-os tu, Pero Vaz, que eles
Acham aqui as ervas secas,
E não comem giesteiras.
E quanto te dão por besta?
18
PERO VAZ
Não sei, assi Deus me ajude.
VASCO AFONSO
Não fizeste logo o preço?
Mal hás tu de livrar desta.
PERO VAZ
Leixei-o em sua virtude,
No que ele vir que eu mereço.
VASCO AFONSO
Em sua virtude o leixaste?
E trá-la ele consigo,
Ou há de ir buscá-la ainda?
Oh que arama te fretaste!
Queres apostar comigo
Que tu renegues da vinda?
PERO VAZ
Ele pôs desta maneira
A mão na barba e me jurou
De meus dinheiros pagá-los.
VASCO AFONSO
Essa barba era inteira
A mesma em que te jurou,
Ou bigodezinhos ralos?
PERO VAZ
Ora Deus sabe o que faz,
E o Juiz da Samora:
De fidalgo é manter fé.
VASCO AFONSO
Bem sabes tu, Pero Vaz,
Que fidalgo há já agora,
Que não sabe se o é.
Como vai a ta mulher
E todo teu gasalhado?
19
PERO VAZ
O gasalhado i ficou.
VASCO AFONSO
E a mulher?
PERO VAZ
Fugiu.
VASCO AFONSO
Não pôde ser!
Como estarás magoado,
Ieramá!
PERO VAZ
Bofá não estou. —
Uxtix, sempre hás de andar
Debaixo dos sovereiros?
E a mi que me dá disso?
VASCO AFONSO
Por força te há de pesar
Se rirem de ti os vendeiros.
PERO VAZ
Não tenho de ver com isso.
Vai, Vasco Afonso, ao teu mu,
Que se quer deitar no chão.
VASCO AFONSO
Pesa-te, mas desingulas.
PERO VAZ
Não pesa; bem sabes tu
Que as mulheres não são
Todo o Verão senão pulgas.
20
Que eu delia posso ter;
E quanto ao rir das gentes,
Ela faz sua vontade;
Foi-se per i a perder,
E eu não perdi os dentes.
Queria-a eu ir poupando
Pera lá pera a velhice,
Como colcha de Medina;
E ela, mosca Fernando,
Quando viu minha pequice,
Foi descobrir outra mina.
VASCO AFONSO
E agora que farás?
PERO VAZ
Irei dormir à Cornaga,
E amanhã à Cucanha;
E tu vai, embora vás,
Que eu vou servir esta praga,
E veremos que se ganha.
(Vai cantando)
"Disse-lhe, senhora, quereis companhia?
Disse-me, Escudeiro, segui vossa via."
21
PAGEM
Senhor, o almocreve é aquele,
Que os chocalhos ouço eu:
Este é o fato, senhor.
FIDALGO
Ponde todo cobro nele.
PERO VAZ
Uxtix, mulo do judeu!
O fato u se há de pôr?
PAJEM
Venhais embora, Pero Vaz.
PERO VAZ
Mantenha Deus vossa mercê.
PAJEM
Viestes polas Folgosas?
PERO VAZ
Aí estive eu hoje faz
Oito dias pé por pé,
Em casa d'umas tias vossas.
PAJEM
Ora meu pai que fazia?
PERO VAZ
Cavando andava bacelo,
Bem cansado e bem suado.
PAJEM
E minha mãe?
PERO VAZ
Levava o gado
Lá pera Vai de Cobelo,
22
Mal roupada que ela ia.
Uxtix, que mau lambaz!
E vossa mercê que faz?
PAJEM
Estou loução como que.
PERO VAZ
E à bofé cresceis assaz.
Saúde que vos Deus dê.
PAGEM
Eu sou pajem de meu senhor,
Se Deus quiser pajem da lança.
PERO VAZ
E um fidalgo tanto alcança?
Isso é de imperador.
Ora prenda el-rei de França.
PAJEM
Ainda eu hei de chegar
A cavaleiro fidalgo.
PERO VAZ
Pardeus, João Crespo Penalvo,
Que isso seria esperar
De mau rafeiro ser galgo.
23
Por não viver em tristeza,
Não é como nesta terra;
Porque o filho do lavrador
Casa lá com lavradora,
E nunca sabem mais nada;
E o filho do broslador
Casa com a brosladora:
Isto per lei ordenada.
E os fidalgos de casta
Servem os reis e altos senhores,
De tudo sem presunção,
Tão chãos, que pouco lhes basta.
E os filhos dos lavradores
Pera todos lavram pão.
PAGEM
Quero ir dizer de vós.
PERO VAZ
Ora ide dizer de mi;
Que se grave é Deus dos céus,
Mais graves deuses há aqui.
PAJEM
Senhor, ali vem o fato,
E está à porta o almocreve:
Vede quem lhe há de pagar
Isso tal que se lhe deve.
FIDALGO
Isto é com que me eu mato.
Quem te manda procurar?
Atenta tu polo meu,
E arrecada-o muito bem,
E não cures de ninguém.
PAJEM
Ele é de apar de Viseu,
24
E homem que me pedem;
Pois a porta lhe abri eu.
(Entra dentro o almocreve e diz)
PERO VAZ
Senhor, trouxe a frasearia
De vossa mercê aqui.
I estão os mus albardados.
FIDALGO
Essa é a mais nova Arábia
De almocreve que eu vi:
Dou-te vinte mil cruzados.
PERO VAZ
Mas pague-me vossa mercê
O meu aluguer, nó mais,
Que me quero logo ir.
FIDALGO
O aluguer quanto é?
PERO VAZ
Mil e seis centos reais,
E isto por vos servir.
FIDALGO
Falai c'o meu azemel,
Porque é doutor das bestas
E astrólogo dos mus,
Que assente em um papel
Per avaliações honestas
O que se monta: ora sus.
25
E ir-vos-eis por agora.
Vossa paga é nas mãos.
PERO VAZ
Já a eu quisera nos pés,
Ó pesar de minha mãe.
FIDALGO
E tens tu pai e irmãos?
PERO VAZ
Pagai, senhor, não zombeis,
Que sou de além do sertão,
E não posso cá tornar.
FIDALGO
Se cá vieres à corte,
Pousarás aqui c'os meus.
PERO VAZ
Nunca mais hei de fiar
Em fidalgo desta sorte,
Em que o mande São Mateus.
FIDALGO
Faze por teres amigos,
E mais tal homem como eu,
Porque dinheiro é um vento.
PERO VAZ
Dou eu já ó demo os amigos
Que me a mi levam o meu.
PRIMEIRO FIDALGO
Oh que grande saber vir,
E que gran saber-me a vontade!
SEGUNDO FIDALGO
26
Pois, senhor, que vos parece?
Desejo de vos servir,
E não quero que venha à cidade
Um quem não parece esquece.
PRIMEIRO FIDALGO
Paguei soma de dinheiro
A um ourives agora,
De prata que me lavrou,
E paguei a um recoveiro,
Que é a dar dinheiros fora
A quem não sei como os ganhou.
SEGUNDO FIDALGO
Ganham-nos tão mal ganhados,
Que vos roubam as orelhas.
PRIMEIRO FIDALGO
Pola hóstia consagrada
E polo Deus consagrado,
Que os lobos nas ovelhas
Não dão tão crua pancada.
SEGUNDO FIDALGO
Guardai vós esse bem tal,
Que a mi hão-me de matar
Bem me queres mal me queres.
27
PRIMEIRO FIDALGO
Por quantas damas Deus tem
Não daria nem migalha.
Olhai que descubro isto.
SEGUNDO FIDALGO
Sou tão fino em querer bem,
Que de fino tomo a palha,
Pola fé de Jesu Cristo.
PRIMEIRO FIDALGO
Eu já não ei de penar
Por amores de ninguém;
Mas dama de bom morgado,
Aqui vai o remirar,
Aqui vai o querer bem,
E tudo bem empregado.
SEGUNDO FIDALGO
Porém lá por vossas vias
Vou-vos esperar, senhor,
28
A rendeiro das jugadas.
Porque galante caseiro
É pera pôr em história.
PRIMEIRO FIDALGO
Mas zombai, senhor, zombai.
SEGUNDO FIDALGO
Senhor, o homem inteiro
Não lhe há de vir à memória
Com a dama o de seu pai;
Nem há mais de desejar
Nem querer outra alegria,
Que só Los tus cabellos niña.
PRIMEIRO FIDALGO
Vós, senhor, vindes tão bravo,
Que eu hei-vos medo já .
Polos santos evangelhos
Que levais tudo ao cabo,
Lá onde cabo não ha.
SEGUNDO FIDALGO
Zombais e dais a entender
Zombando, que me entendeis.
Pois de vós mui alto estou,
Porque deveis de saber
Que se de amor não sabeis,
Não podeis ir onde eu vou.
29
Vireis a ser mais profundo,
Mais discreto e mais subtil,
Porque o inundo namorado
É lá, senhor, outro inundo,
Que está além do Brasil.
PRIMEIRO FIDALGO
Oh palha do meu palheiro,
Que tenho um mundo de palha,
Palha ainda d'ora a um ano;
SEGUNDO FIDALGO
Vou-me; vós não sois sentido,
Sois mui duro do pescoço;
Não vale isso nem migalha:
Pesa-me de ver perdido
Um homem fidalgo insosso,
Pois tem a vida na palha.
30