Mein Kampf PDF
Mein Kampf PDF
Mein Kampf PDF
Resumo
Banido ao final da 2ª Guerra Mundial, Mein Kampf, de Adolf Hitler – um misto de livro de
memórias e projeto político do ditador nazista – entra em domínio público em 31 de
dezembro de 2015. Passados 90 anos desde sua publicação e 70 anos da morte de seu autor,
sua reedição provoca acaloradas discussões na Alemanha e no mundo. Documento
histórico? Bíblia nazista? Livro maldito? O misticismo que envolve Minha Luta, título com
o qual foi publicado no Brasil em 1934, reacende a questão do simbolismo do livro
impresso, subjacente na perspectiva de que, ao se restaurar a materialidade de Mein Kampf,
esta devolva poder ao seu conteúdo. As reflexões do historiador francês Roger Chartier
sobre suporte, leitura, apropriação e produção de sentido embasarão teoricamente a
discussão desse tema.
Palavras-chave:
História do livro; Mein Kampf; Adolf Hitler; suporte e produção de sentido; leitura
Introdução
1
Trabalho apresentado no GP Produção Editorial do XV Encontro dos Grupos de Pesquisa em Comunicação, evento
componente do XXXVIII Congresso Brasileiro de Ciências da Comunicação.
2
Doutora em Letras, PUC-Rio, email: eliane.h.paz@gmail.com
3
A lei do copyright foi criada na Grã-Bretanha, em 1710. No Brasil, ela se encontra no Art. 41 – “Os direitos patrimoniais
do autor perduram por setenta anos contados de 1° de janeiro do ano subsequente ao de seu falecimento.” – da Lei nº
9.610 de 19 de fevereiro de 1998 (Fonte: DOU de 20/2/1998).
4
Confiscados pelos Aliados, os direitos autorais foram concedidos ao Governo da Baviera – último domicílio de Adolf
Hitler – para evitar que o livro fosse reeditado. Os direitos autorais pertenciam à editora do partido nazista, a Eher-Verlag.
1
Intercom – Sociedade Brasileira de Estudos Interdisciplinares da Comunicação
XXXVIII Congresso Brasileiro de Ciências da Comunicação – Rio de Janeiro, RJ – 4 a 7/9/2015
A lenda que cerca Mein Kampf propaga que esse é o livro político mais vendido,
porém o menos lido da História. Mesmo na Alemanha, onde se fala muito sobre o libelo de
Hitler, faltam análises fundamentadas de suas origens, estrutura e, sobretudo, da
repercussão entre os seus contemporâneos. O mito que se mantém até hoje é o de best-seller
não lido. Nas palavras do documentarista e jornalista francês Antoine VITKINE, autor de
Mein Kampf: a história do livro5:
5
VITKINE, A. Mein Kampf: a história do livro. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2010.
2
Intercom – Sociedade Brasileira de Estudos Interdisciplinares da Comunicação
XXXVIII Congresso Brasileiro de Ciências da Comunicação – Rio de Janeiro, RJ – 4 a 7/9/2015
3
Intercom – Sociedade Brasileira de Estudos Interdisciplinares da Comunicação
XXXVIII Congresso Brasileiro de Ciências da Comunicação – Rio de Janeiro, RJ – 4 a 7/9/2015
Como no caso dos adultos, muitos sucedâneos de Mein Kampf são utilizados,
minorando a aridez que pode representar um texto de 700 páginas para um
público jovem. Editada em 1933, uma brochura de Paul Sommers, Explicações
sobre Mein Kampf, destina-se especificamente ao contexto escolar. Livros de
imagens comportando alguns trechos são impressos para as crianças. Para repisar
a reivindicação de um espaço vital, promove-se a leitura de A saga dos
camponeses, afresco relatando o povoamento alemão, diretamente inspirado em
Mein Kampf, ou do livro ilustrado A raposa da planície merece tanta confiança
quanto o juramento do judeu, no qual as teorias antissemitas de Hitler são
explicadas à juventude. Outros livros ilustrados reproduzem a autobiografia
idealizada relatada por Hitler em seu livro, como Mamãe, fale-nos de Adolf
Hitler, de Johanna Haarer. (ibid., p. 59)
6
“Foi a mutação do paperback, iniciada em 1935, que permitiu ao livro moderno inserir-se na civilização de massa” (in
ESCARPIT, R. A revolução do livro. Rio de Janeiro: FGV ; INL, 1976. p. 17).
4
Intercom – Sociedade Brasileira de Estudos Interdisciplinares da Comunicação
XXXVIII Congresso Brasileiro de Ciências da Comunicação – Rio de Janeiro, RJ – 4 a 7/9/2015
5
Intercom – Sociedade Brasileira de Estudos Interdisciplinares da Comunicação
XXXVIII Congresso Brasileiro de Ciências da Comunicação – Rio de Janeiro, RJ – 4 a 7/9/2015
Uma exceção foi feita à França, o país “mais frequentemente mencionado e o mais
violentamente atacado” na obra e que, para Hitler era, e sempre seria, “o inimigo mortal, o
inimigo impiedoso do povo alemão” (ibid., p. 77), quanto a uma eventual tradução, parcial
ou integral, de Mein Kampf:
6
Intercom – Sociedade Brasileira de Estudos Interdisciplinares da Comunicação
XXXVIII Congresso Brasileiro de Ciências da Comunicação – Rio de Janeiro, RJ – 4 a 7/9/2015
7
Fonte: https://cpdoc.fgv.br/producao/dossies/FatosImagens/DIP
7
Intercom – Sociedade Brasileira de Estudos Interdisciplinares da Comunicação
XXXVIII Congresso Brasileiro de Ciências da Comunicação – Rio de Janeiro, RJ – 4 a 7/9/2015
reimpresso em 1962, pela editora paulista Mestre Jou. A edição seria apreendida logo após
a publicação da Portaria de 26 de julho de 19628 que proibiu, “em todo o território nacional,
a edição, a distribuição e a venda do livro”. Com a ditadura militar, iniciada em 1964,
permaneceu vetada. Em 1983, apesar da interdição, foi publicada pela paulista Editora
Moraes. Em 1987, a Editora Pensamento, de São Paulo, lançou sua versão, baseada na
edição de 1934 da Globo. Em 1990, foi a vez da gaúcha Editora Revisão lançar a sua. Uma
nova edição da Editora Moraes, rebatizada como Editora Centauro, saiu em 2001, sendo
reimpressa em 2004 e 2005. Novas tiragens foram suspensas após uma série de processos
na Justiça em que os donos da Centauro foram acusados de racismo.
Se Mein Kampf, em sua versão impressa, nunca deixou de ser editado e distribuído,
com o advento da internet descolou-se de sua materialidade e tornou-se acessível, mundial e
gratuitamente, a todos os leitores. É possível adquirir, na World Wide Web, exemplares
impressos na língua inglesa em plataformas comerciais internacionais como o Ebay e a
Amazon, e, no Brasil, no site Estante Virtual, que agrupa sebos de todo o país. Nele há
desde uma versão de 1933, em alemão gótico, até edições em português das diferentes
editoras nacionais que o publicaram. Também é fácil encontrar longos trechos do manifesto
de Adolf Hitler, ou mesmo a obra integral, em formato eletrônico, em diversos idiomas,
incluindo o português, para download gratuito, ou à venda em formato e-book. Desde
novembro de 2012, a versão em inglês em formato digital está disponível nos websites da
Amazon por US$0,99 e do iTunes por US$2,99, tendo chegado à lista de mais vendidos nas
lojas online, encabeçando a categoria “Propaganda e Psicologia Política”, após ter sido
baixado mais de 100 mil vezes. Todos esses formatos, naturalmente, desprovidos de
comentários críticos de especialistas e com bem poucas restrições legais.
De fato, qualquer leitor conectado à rede pode, nos dias de hoje, além de consultar,
baixar, copiar e recortar, recompor Mein Kampf, ser coautor do libelo de Hitler. Devido às
características intrínsecas a todo texto eletrônico – ser móvel, maleável, aberto,
fragmentado – também ele se tornou passível de ser uma obra múltipla, polifônica, coletiva.
Para uma geração em que o livro é apenas mais uma forma de texto, ler o escrito de Hitler
na internet é uma experiência que pode ser amplificada por toda uma série de arquivos
digitais disponíveis em áudio, vídeo, texto etc. que enriquecem a narrativa numa cadeia
8
Fonte: http://www.jusbrasil.com.br/diarios/2896719/pg-8-secao-1-diario-oficial-da-uniao-dou-de-27-07-1962/
8
Intercom – Sociedade Brasileira de Estudos Interdisciplinares da Comunicação
XXXVIII Congresso Brasileiro de Ciências da Comunicação – Rio de Janeiro, RJ – 4 a 7/9/2015
hipertextual de referências. Daí o anúncio do IfZ quanto a uma possível versão também em
formato e-book do Mein Kampf comentado, para atender a esse público.
Diante da popularidade e da liberdade de circulação e de manipulação de Mein
Kampf no mundo virtual, podemos concluir, então, que proibir sua reimpressão é uma
medida anacrônica, uma vez que o texto de Hitler já se encontra em uma espécie de
domínio público informal? Em outras palavras, por que ainda temer sua versão impressa?
Passemos agora para o tema que, do ponto de vista da história do livro, nos é pertinente:
restaurar a materialidade de Mein Kampf devolverá poder ao seu conteúdo? O que mantém
o simbolismo do livro impresso na era do texto eletrônico? É o que discutiremos a seguir.
4. O poder da forma
Desde que o códice começou a suplantar os rolos de papiro, por volta do século IV
d.C. em Roma, passando pela invenção da impressão com tipos móveis de Gutenberg, na
Alemanha da década de 1450, a humanidade usa o livro impresso para adorar, registrar,
governar e educar. Ao longo de sua existência, a construção desse objeto vem sendo
aperfeiçoada por diferentes inovações tipográficas que culminaram, nas palavras do
historiador americano Robert DARNTON (2010, p. 86), em “uma máquina maravilhosa”,
cujo “design é um prazer para os olhos”, cuja “forma torna o ato de segurá-lo nas mãos um
deleite” e cuja “conveniência fez dele a ferramenta básica do saber por milhares de anos”.
Corporificar o saber é um dos atributos que confere poder a esse objeto. Outra
qualidade que contribui para a sua autoridade é a de encerrar a Verdade exclusiva e
definitiva, como atestam as três religiões monoteístas fundamentadas na sacralidade do
Livro: o Judaísmo, o Cristianismo e o Islamismo. Mas mesmo após sua dessacralização,
decorrente de sua laicização, e sua instrumentalização, via processo industrial, o livro
impresso nunca deixou de ser um ‘objeto de culto’, um bem cultural distinto de quaisquer
outros, até mesmo de seu simulacro eletrônico, e sobre o qual ainda mantém a supremacia.
Para o paleógrafo francês, Michel MELOT (2012, p. 42), é a forma do livro que lhe
preserva a autoridade e, através dela, o livro “em certa medida se autoconsagra, ou se
autovalida”.
Mas, o que é, de fato, um livro? A maioria, senão a totalidade, dos estudiosos que se
dedicam ao assunto, nas diversas áreas do saber que trafegam por essa nova disciplina, a
História do Livro – a saber: a História, a Literatura, a Sociologia, a Comunicação, a
Biblioteconomia, o Design, a Economia, a Educação, entre outras –, concorda, ao menos,
9
Intercom – Sociedade Brasileira de Estudos Interdisciplinares da Comunicação
XXXVIII Congresso Brasileiro de Ciências da Comunicação – Rio de Janeiro, RJ – 4 a 7/9/2015
numa questão: um texto não é um livro. Nas palavras de DARNTON (op. cit., p. 193), um
livro “pode ser descrito como um circuito de comunicação que vai do autor ao editor, ao
impressor, ao distribuidor, ao livreiro e ao leitor”, percurso que resulta, tanto do ponto de
vista formal quanto do jurídico, numa associação indissolúvel entre autor, texto e objeto.
Esse ‘veículo de mensagens’, suporte por excelência de uma cultura escrita que é registrada
em páginas que são viradas, com seus diversos formatos, suas páginas e cadernos colados
uns aos outros, é fabricado pelos elos dessa teia, os quais nos impõem toda uma série de
paratextos – título da obra, nome do autor, prefácio, posfácio, imagens, sumário, anotações,
notas, lombada, capa, quarta capa, entre outros –, certos “protocolos de leitura”, que nos
posicionam, enquanto leitores, em relação a esse texto encerrado entre duas capas. A esse
processo tipográfico o pensador da história do livro, o francês Roger CHARTIER,
denomina mise en livre: “as formas produzem sentidos e (...) um texto, estável por extenso,
passa a investir-se de uma significação e de um status inéditos tão logo se modifiquem os
dispositivos que convidam à sua interpretação” (1999a, p. 13). Ou, como sintetiza Márcia
ABREU, na Introdução a Formas e sentido, de autoria de CHARTIER:
10
Intercom – Sociedade Brasileira de Estudos Interdisciplinares da Comunicação
XXXVIII Congresso Brasileiro de Ciências da Comunicação – Rio de Janeiro, RJ – 4 a 7/9/2015
de uso desse suporte textual, mas que, para nós, é “tão imediata, que parece não poder
jamais ter sido outra coisa senão aquela que é hoje” (CHARTIER, 2001b, p. 19), como:
apoiar o livro em uma das mãos e folheá-lo com a outra; se aproximar de seu conteúdo pelo
texto da quarta capa ou das orelhas; inspecionar seus capítulos no sumário; apreciar a
qualidade gráfica do livro ao observar a escolha do papel, das fontes e da diagramação;
entrar em contato com a obra ao fazer uma leitura silenciosa de suas primeiras linhas; medir
a extensão de seu texto ao buscar a numeração na última página. Em resumo, como afirma
CHARTIER, “não existe a compreensão de um texto, qualquer que seja ele, que não
dependa das formas através das quais ele atinge o seu leitor” (ibid, 1999, p. 17). Todos
esses “protocolos de leitura”, esses sinais tipográficos depositados no objeto livro, acabam
por modelar nossas expectativas e nossas formas de apropriação do texto enquanto leitores.
5. As intenções do autor
Com efeito, todo autor, todo escrito impõe uma ordem, uma postura, uma atitude
de leitura. Que seja explicitamente afirmada pelo escritor ou produzida
mecanicamente pela maquinaria do texto, inscrita na letra da obra como também
nos dispositivos de sua impressão, o protocolo de leitura define quais devem ser
a interpretação correta e o uso adequado do texto, ao mesmo tempo em que
esboça seu leitor ideal. Deste último, autores e editores têm sempre uma clara
representação: são as competências que supõem nele que guiam seu trabalho de
escrita e de edição; são os pensamentos e as condutas que desejam nele que
fundam seus esforços e efeitos de persuasão. (ibid., 2001b, p. 20)
Podemos citar como exemplo dessa “mecânica literária” o que Hitler comenta de
sua obra no Prefácio de Mein Kampf: “Com esse livro eu não me dirijo aos estranhos, mas
aos adeptos do movimento nacional-socialista que ao mesmo aderiram de coração e que
aspiram esclarecimentos mais substanciais” (HITLER, 2001, p. 6). O apelo emocional
implícito nesse paratexto, ao mesmo tempo em que instrui o leitor sobre o conteúdo da
obra, “coloca-o onde o autor deseja que ele esteja”, criando uma série de expectativas sobre
o que aquele que ‘aderiu de coração’ ao nacional-socialismo vai encontrar em suas páginas,
e como ele deve, supostamente, se relacionar com elas. Da mesma forma, e em
11
Intercom – Sociedade Brasileira de Estudos Interdisciplinares da Comunicação
XXXVIII Congresso Brasileiro de Ciências da Comunicação – Rio de Janeiro, RJ – 4 a 7/9/2015
contrapartida, a edição comentada que está sendo preparada pelo IfZ traz consigo uma série
de paratextos que construirão um subtexto a Mein Kampf e que, na declaração de seu
diretor9, Andreas Wirsching, atuarão como um livro “anti-Hitler”. No site do instituto10, são
dados detalhes sobre o trabalho que está sendo feito pela equipe de historiadores:
6. O contrapoder do leitor
“Um texto só existe se houver um leitor para lhe dar um significado”, assevera
CHARTIER em A ordem dos livros (1999, p. 11). O papel que o leitor assume em suas
9
Fonte: http://www.dw.com/pt/edi%C3%A7%C3%A3o-comentada-de-minha-luta-sair%C3%A1-em-2016/a-
18271632?maca=bra-rss-br-top-1029-rdf
10
Fonte: http://www.ifz-muenchen.de/?id=550 (texto em tradução livre pela autora)
12
Intercom – Sociedade Brasileira de Estudos Interdisciplinares da Comunicação
XXXVIII Congresso Brasileiro de Ciências da Comunicação – Rio de Janeiro, RJ – 4 a 7/9/2015
reflexões não deixa dúvida de que, apesar de o livro ter sempre pretendido “instaurar uma
ordem; fosse a ordem de sua decifração, a ordem no interior da qual ele deve ser
compreendido ou, ainda, a ordem desejada pela autoridade que o encomendou ou permitiu
sua publicação” (ibid., p. 8), ela fracassou em anular a liberdade do leitor, pois que “cada
leitor, a partir de suas próprias referências, individuais ou sociais, históricas ou existenciais,
dá um sentido mais ou menos singular, mais ou menos partilhado, aos textos de que se
apropria” (ibid., pp. 20-21). E “mesmo limitada pelas competências e convenções, essa
liberdade sabe como se desviar e reformular as significações que a reduziram” (ibid., p. 8).
Eis um exemplo simples do exercício dessa liberdade: mesmo tendo Hitler, no prefácio de
seu livro, se dirigido a um leitor ideal, “adepto do movimento nacional-socialista”, o leitor
real que folheou/folheará seu exemplar poderia, como bem nos lembra DARNTON (op.
cit., p. 11), sentir-se desobrigado de ler esse paratexto, “mesmo que essa liberdade nem
sempre seja bem-vinda para o autor”. Por outro lado, sua liberdade de apropriação de um
texto se apresenta sob diversas formas. Por exemplo, para marcar sua presença no livro
impresso ele pode ‘se inscrever’ nas margens do texto, nas folhas em branco, nas
contracapas da encadernação. Ao preencher esses espaços com a sua ‘voz’, vale dizer, ao
registrar neles seu diálogo com o autor do livro, ele passa a possuir mais do que a obra
impressa, passa a possuir seu texto, tornando-se uma espécie de coautor dele, confirmando
o que destaca CHARTIER das inferências de D. F. McKenzie sobre a sociologia da leitura:
“novos leitores criam novos textos” (1999, p. 14).
Uma última questão: ler Mein Kampf em 2016 não resulta na mesma produção de
sentido que ler Mein Kampf em 1925, em 1933, ou em 1945. À parte o “horizonte de
expectativas” – conceito caro à Estética da Recepção, mas que CHARTIER descarta
justamente por esta perceber a obra como um texto abstrato cujas formas tipográficas não
interferem na produção de sentido do texto pelo leitor –, as práticas através das quais o
leitor se apropria do texto são histórica e socialmente variáveis. Nas suas palavras:
As obras não têm sentido estático, universal, fixo. Elas estão investidas de
significações plurais e móveis, que se constroem no encontro de uma proposição
com uma recepção. Os sentidos atribuídos às suas formas e aos seus motivos
dependem das competências ou das expectativas dos diferentes públicos que dela
se apropriam. Certamente, os criadores, os poderes ou os experts sempre querem
fixar um sentido e enunciar a interpretação correta que deve impor limites à
leitura. Todavia, a recepção também inventa, desloca e distorce. (1999, p. 9)
13
Intercom – Sociedade Brasileira de Estudos Interdisciplinares da Comunicação
XXXVIII Congresso Brasileiro de Ciências da Comunicação – Rio de Janeiro, RJ – 4 a 7/9/2015
intenções investidas por seu autor na obra original e dos “dispositivos de intromissão nas
formas materiais que o texto irá assumir” (ibid., p. 18) inseridos por seus editores, sua
leitura é prática cultural autônoma e móvel, e irá variar segundo as convenções, os usos, os
protocolos e as competências leitoras próprios a cada público leitor e em conformidade com
o espírito e as maneiras de ler – “coletivas ou individuais, herdadas ou inovadoras, íntimas
ou públicas” (2001b, p. 78) – de seu tempo. A mensagem que fica, por fim, é que a leitura
não se limita ao texto lido: ela está sempre na ordem do efêmero.
Conclusão
14
Intercom – Sociedade Brasileira de Estudos Interdisciplinares da Comunicação
XXXVIII Congresso Brasileiro de Ciências da Comunicação – Rio de Janeiro, RJ – 4 a 7/9/2015
Penal, que criminaliza com a prisão a incitação ao ódio racial. Falta esclarecer como serão
tratadas as edições comentadas de editoras comerciais. O fato de o governo da Baviera ter
anunciado que não tomará qualquer medida para impedir a publicação da edição que o IfZ
propõe lançar no início de 2016 é um sinal de que as versões críticas deverão ser
consideradas uma exceção pelas autoridades alemãs.
Referências bibliográficas
BÁEZ, F. História universal da destruição dos livros: das tábuas sumérias à guerra do Iraque. Rio
de Janeiro: Ediouro, 2006.
CHARTIER, R. Formas e sentido. Cultura escrita: entre distinção e apropriação. Campinas, SP:
Mercado de Letras ; Associação de Leitura do Brasil (ALB), 2003.
_____. Cultura escrita, literatura e história. Porto Alegre: ARTMED Editora, 2001a.
DARNTON, R. A questão dos livros: passado, presente e futuro. SP: Companhia das Letras, 2010.
HACKETT, A. P. 60 years of best sellers: 1895 – 1955. New York: R. R. Bowker Company, 1956.
KORDA, M. Making the list: a cultural history of the american best-seller (1900-199). NY: Barnes
& Noble Books, 2001.
MELOT, M. Livro,. Cotia, SP: Ateliê Editorial, 2012. (Coleção Artes do Livro, 9)
VITKINE, A. Mein Kampf: a história do livro. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2010.
15