Crítica Impressionista Por Antonio Candido
Crítica Impressionista Por Antonio Candido
Crítica Impressionista Por Antonio Candido
dito e inteligente como um especialista, sem perder ao mesmo tempo confiança nas
próprias reações. Impressionista foi de certo modo o grão-padre da crítica moderna
de jornal, Sainte-Beuve, que penava a semana inteira sobre as suas laudas e fichas,
nutrindo a impressão com os filtros da sapiência. Impressionista é todo aquele que
prepara um artigo de uma semana para outra, baseado mais na intuição que na pes-
quisa, e se exprimindo sem espírito de sistema. De tais impressionistas se fez a crítica
moderna, dando não raro pistas ao erudito, ao historiador, ao esteta da literatura, e
deles recebendo a retribuição em pesquisa e explicação. Por que suprimi-los? O sé-
culo XIX, que nada teve de estúpido, como quis um brilhante energúmeno, mas foi
um dos momentos mais elevados da história do homem, — o século XIX, se não
criou, desenvolveu e deu forma nobre ao jornalismo crítico. E Thibaudet, um dos
maiores da grei, nos lembra que a crítica moderna é ininteligível sem a aliança com o
jornal e o liberalismo. Não podemos, é claro, restringir o estudo da literatura à apre-
ciação individual, baseada em leitura rápida; mas dificilmente conceberemos um crí-
tico verdadeiro que seja incapaz dela. Criticar é apreciar; apreciar é discernir; discernir
é ter gosto; ter gosto é ser dotado de intuição literária.
Estas reflexões me vieram à leitura da presente coletânea de Plínio Barreto,
que encarna, admiravelmente, as melhores e mais sólidas qualidades do jornalismo
crítico. Na literatura, passeia a sua cultura e a sua sensibilidade, oferecendo aos ou-
tros a messe da excursão. Não é um teórico nem um erudito, não é um esteta nem
um novo retórico; é um crítico. Lê, sente, pensa, intui certos traços esclarecedores e
organiza as impressões em torno de alguns princípios solidamente estabelecidos, mas
apresentados com leveza. As vigílias de estudo, a riqueza de informação, a solidez do
conhecimento, — lendárias nesse asceta da inteligência, — são apenas pressupostos
na densidade elegante dos ensaios. Fiel às tradições humanísticas, fiel às concepções
oitocentistas de jornalismo crítico, fiel sobretudo à linha francesa de equilíbrio, de-
coro e razão, parecer-lhe-iam por certo descabidas as glosas e exegeses, as notas e as
alegações. A família de espíritos a que pertence tira da conversa polida e espirituosa a
diretriz da prosa escrita. Nada mais longe do arquivo e do documento, pois a letra
deve aparecer como molde da vida, dos interesses que formam o tecido da condição
humana. Neste sentido, a crítica de jornal é civilizadora, desbastando o tecnicismo
das especialidades para ressaltar o traço que vincula o leitor à experiência da obra.
Criticar, então, é mostrar o humano, “ondulante e diverso”, sob os caprichos da
forma.
Por isso, a crítica de Plínio Barreto é essencialmente de conteúdo. Embora
saiba caracterizar os estilos com mão segura, em breves indicações, sentimos no
fundo dos seus artigos, como nos mestres franceses, que o interesse real é a face do
homem refletida ou transfigurada nas artes. Nos presentes ensaios é clara esta busca,
este interesse constante e profundo, não obstante sereno e ponderado. Em cada um
deles, sentimos o crítico escolhendo exemplos, traçando linhas, concentrando forças
para ressaltar o aspecto humano. Seja a definição dos indivíduos exemplares, como
Voltaire, Machado de Assis, Euclides da Cunha, Monteiro Lobato; seja a exposição
de situações humanas, como nos estudos sobre Os interesses da companhia, de Gilberto
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remos, sobre Mário de Andrade, caracterização mais justa e penetrante que a do es-
tudo sobre Belazarte. É que, para os críticos, como este, cientes da sua tarefa, voltados
para o sentido humano da literatura, paira sobre as preferências a acerada disponibi-
lidade do gosto, captando beleza onde estiver, e oferecendo ao leitor o espetáculo de
um espírito livre, nutrido no comércio sereno dos livros, sem tecnicismo nem dog-
ma, liberal e jornalístico no melhor sentido do Thibaudet.
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