Incas - A Princesa Do Sol.
Incas - A Princesa Do Sol.
Incas - A Princesa Do Sol.
FOLHA DE ROSTO
DEDICATÓRIA
PRIMEIRA PARTE
Arredores de Pocona (atualmente, na Bolívia), dezembro de 1526
Quito, outubro de 1527
Quito, novembro de 1527
Quito, dezembro de 1527
Quito, janeiro de 1528
Quito, fevereiro de 1528
Tumebamba, dezembro de 1528
Tumebamba, dezembro de 1528
Tumebamba, dezembro de 1528
Tumebamba, dezembro de 1528
Tumebamba, fevereiro de 1529
SEGUNDA PARTE
Sevilha, Espanha, fevereiro de 1529
Sevilha, fevereiro de 1529
Tumebamba, fevereiro de 1529
Sevilha, fevereiro de 1529
Tumebamba, fevereiro de 1529
Tumebamba, março de 1529
Caminho de Toledo, março de 1529
Rimac Tambo, abril de 1529
Toledo, abril de 1529
Toledo, abril de 1529
Rimac Tambo, abril de 1529
Rimac Tambo, abril de 1529
Toledo, abril de 1529
Salcantay, maio de 1529
Toledo, outubro de 1529
Machu Picchu, janeiro de 1530
Cádiz, janeiro de 1530
Machu Picchu, janeiro de 1530
Machu Picchu, janeiro de 1530
TERCEIRA PARTE
Ilha de la Puna, março de 1532
Huamachuco, março de 1532
Tumbez, março de 1532
Tumbez, abril de 1532
Huarnachuco, abril de 1532
Porcon, junho de 1532
Cajas, outubro de 1532
Cajas, noite de 10 de outubro de 1532
Ybocan, novembro de 1532
Huagayoc, 11 de novembro de 1532
QUARTA PARTE
Cajamarca, termas do Inca, 14 de novembro de 1532
Cajamarca, sexta-feira, 15 de novembro de 1532
Cajamarca, 15 de novembro de 1532
Cajamarca, noite de 15 de novembro de 1532
Cajamarca, 16 de novembro de 1532
Cajamarca, 16 de novembro de 1532
Cajamarca, amanhecer de 17 de novembro de 1532
AGRADECIMENTOS
GLOSSÁRIO
Antoine B. Daniel
— Os —
INCAS
Volume Um
A Princesa do Sol
OBJETIVA
ANTOINE B. DANIEL
OS INCAS
VOLUME UM
A PRINCESA DO SOL Tradução: Adalgisa Campos da Silva
Título original
INCA
Princesse du Soleil
Todos os direitos desta edição reservados à EDITORA OBJETIVA LTDA.,
rua Cosme Velho, 103
Rio de Janeiro - RJ - CEP: 22241-090
Tel.: (21) 556-7824 - Fax: (21) 556-3322
www.objetiva.com.br
2001
Daniel, Antoine B.
A princesa do sol / Antoine B. Daniel. - Rio de Janeiro : Objetiva, 2001
367 p. ( Os incas )
ISBN 85-7302-363-5 Traduçáo de : Inca, princeese du soleil
1. Literatura francesa - Romance. 2. Peru - História - Ficção. I. Série. II. Título CDD
843
PRIMEIRA PARTE
Capítulo 1
Arredores de Pocona (atualmente, na Bolívia), dezembro de 1526
***
***
No meio da manhã, as nuvens se rasgam violentamente. Um raio de luz desliza
sobre a floresta antes de pousar sobre as choças. Ao aƟngir os ombros de Anamaya,
ela dá uma gargalhada.
Ela dança, o rosto inteiro iluminado pela alegria. Braços abertos, os pesados
cabelos negros balançando ritmadamente, oferece seu corpo nu ao sol e à chuva
misturados.
- Anamaya! - chama sua mãe.
Na aldeia, ela é a única a andar vesƟda, uma túnica comprida de pano que a
cobre até os joelhos. Às cores estão desbotadas. Mal se disƟngue o padrão de
quadrados, cruzes e losangos cuidadosamente distribuídos. Em alguns pontos, os
rasgões estão costurados com fio de agave.
- É o sol! - grita a menina rodopiando na luz dourada. - Venha, mamãe, venha!
Anamaya corre para a mãe. Agarra-lhe as mãos e tenta puxá-la. A mãe ri, resiste
um pouco antes de sucumbir à alegria da filha.
Elas dançam salƟtando. A lama espirra entre seus pés, salpicando-as enquanto
elas dão gritos agudos. De repente, Anamaya escorrega. A mãe segura-a pelo braço,
levanta-a e abraça-a. Quase cai com a menina. Rindo já com mais calma, as duas
recobram o equilíbrio abraçadas.
- Vamos, mamãe, de novo! - murmura Anamaya no pescoço da mãe.
Com ternura, a mãe mergulha os olhos brilhantes nos da filha.
- Será que você esqueceu a nossa promessa? - murmura ela, fingindo tom de
censura.
Anamaya fecha a cara. Não, ela não esqueceu e isso não tem graça nenhuma.
- Temos mesmo que ajudar a velha bruxa?
- Anamaya! Não é uma velha bruxa, é a avó dos espíritos.
- E daí? De qualquer maneira eu não gosto dela!
A mãe sorri e a puxa. Mãos dadas, elas contornam uma das grandes choças
comunitárias e atravessam o terreiro central. Agora, o sol brilha nas poças que, ao
mesmo tempo, têm a superfície agitada pela chuva fina e constante.
O calor é tanto que a selva está fumegando. Nesgas de bruma, flexíveis e
transparentes, sobem dali.
Elas vêm se rasgar nos chuços da paliçada alta. No canto de uma das choças,
junto a um braseiro, munida de uma longa espátula de madeira de iroco, uma velha
mexe um líquido verde e grosso num jarro de boca larga. Anamaya não consegue
conter uma careta.
- Eu trouxe o pano, avó dos espíritos...
A bruxa examina desconfiada o pedaço de pano. De tão usado, chega a estar
transparente e seus bordados cor-de-rosa desbotaram.
- Vai servir - resmunga ela.
Anamaya fica nas pontas dos pés para olhar o líquido no jarro. - Como sabe que o
espírito está aí dentro? - pergunta à velha.
- Porque eu botei, bobinha.
- Não sou boba. Não estou vendo nada...
- Cale a boca, Anamaya - ordena a mãe sem convicção.
- Por que você vê e eu não? - insiste Anamaya.
- Porque tenho o dom da vidência e você sabe disso! - irrita-se a velha. - E agora,
cale a boca. Obedeça à sua mãe, menina!
Anamaya suspira. Elas esƟcam o pano na boca de uma moringa encardida de
fumaça. A velha verte o líquido lentamente. Um resíduo verde se agluƟna no tecido.
Cheira forte, um odor do fundo da floresta, onde o sol nunca atinge o solo.
Anamaya espreita o espírito, mas só ouve as gotas que caem no fundo da
moringa, cada vez mais lentamente.
Ela gostaria de fazer outra pergunta, mas não tem coragem. De repente, sente um
frescor deslizar em seus ombros ardidos de sol. Levanta os olhos para a sombra que
passa no céu. Larga uma ponta do pano.
O resíduo verde cai na moringa. A velha dá um grito rouco.
-Anamaya! - exclama a mãe. - O que está fazendo!
- Mamãe! O pássaro!
O pássaro é imenso, quase do tamanho de uma choça. O ar zune em uas penas
negras e brilhantes. Ele voa tão baixo que se poderia pensar que iria pousar. Mas
não. Ele vira o pescoço comprido coberto de penugem, empina o bico e recupera
altura sem bater asas.
- Mamãe, olhe como ele é lindo!
No terreiro, as crianças nuas pararam de brincar. Os adultos ficaram imóveis. As
testas raspadas dos homens se franzem mostrando inquietação. Até os velhos saem
das grandes choças e erguem os olhos para o céu, procurando se proteger do sol e da
chuva com a mão.
Nas pontas das asas do pássaro, abertas como dedos, as longas penas brancas
vibram. Agora que ele volta para cima deles, vêem-se suas garras enormes, maiores
que a mão de um homem. Anamaya adivinha o olhar do pássaro. Por um instante, as
pupilas redondas e globulosas procuram seus olhos e neles se fixam. Então ela não
vê mais o que está à sua volta. Só ouve um rumor cada vez mais violento, um
tumulto da noite escura, um tropel, como se houvesse centenas de homens correndo
juntos. Ela quer gritar, mas a mão doce de sua mãe pousa em seu ombro. Uma mão
que deseja tranqüilizá-la e que no entanto está tremendo.
- O condor - balbucia a mãe apertando seus dedos com mais força.
- O mensageiro dos incas - acrescenta a bruxa.
Anamaya abraça-se à mãe que murmura baixinho:
- O condor... Mas o condor não vive aqui. Ele nunca desce das montanhas para a
savana...
Anamaya olha para a mãe. Vê sua boca desfeita, seu rosto empalidecendo.
- Mamãe! Mamãe, o que você tem?
O pássaro bateu asas e ganhou altura. Ele gira em direção ao leste, sobe ainda
mais alto que os bancos de bruma e de repente embica para baixo. Como se
quisesse arremessar-se sobre a aldeia. Mas não, sobe cada vez mais alto. As nuvens
se rasgam e lhe dão passagem em direção aos flancos das montanhas do oeste,
enquanto o azul do céu aparece.
Anamaya treme de emoção e as palavras ficam congeladas em seu peito. Como
se mil gritos repentinos ecoassem nela, pesassem em seu ventre e em seus flancos.
No terreiro da aldeia, as caras conƟnuam viradas para cima, e todos estão
calados também. Tudo está imóvel. Não há mais um barulho. Até a selva se cala.
Então soa uma trompa.
***
- Os incas! Os incas!
A senƟnela pulou a paliçada e está correndo como um bêbado. - Os incas! Eles
estão aqui!
A exclamação lhe escapa dos lábios na hora em que ele cai. Na queda, seu colar
de turquesas arrebenta, as pedrinhas azuis rolam pelo chão e se afogam na lama. Um
sangue escuro escorre de sua têmpora misturando-se à pintura vermelha e preta de
sua cara. A pedra lançada pela funda atingiu-lhe o crânio.
Ánamaya percebe o arrepio que percorre sua mãe da cabeça aos pés. A trompa
conƟnua rugindo, qual fera selvagem, e o rufar dos tambores faz a floresta
estremecer. Urros rasgam o ar. Os homens voam para pegar suas armas nas choças.
Outros já correm para a paliçada, empunhando arcos, as flechas de haste dupla
ultrapassando a aljava. O alarido é insustentável. Anamaya cola o rosto na barriga
da mãe que acaricia febrilmente seus cabelos, seu rosto, suas mãos.
O condor desapareceu da montanha. As nuvens móveis fecham novamente o céu.
Os guerreiros chiriguanos estão acocorados ao pé da paliçada de estacas. Por um
momento, tudo paralisa.
E, de repente, é como se o ar começasse a zumbir. Anamaya vê o céu ficar
arranhado. Uma sombra escura e larga incha como uma nuvem de insetos. E
centenas de flechas perdem o impulso e caem no terreiro.
- Mamãe! - grita ainda Anamaya.
Sua mãe já está debruçada sobre ela, protegendo-a com seu corpo. As duas
fecham os olhos ouvindo os dardos penetrarem com a mesma facilidade na carne dos
guerreiros e nas poças de lama. O sangue escorre com a água, homens choram como
crianças.
O jarro com o líquido verde entornou.
O medo e a morte estão em toda parte. Sua mãe cantarola para tranqüilizar a filha
encolhida, para lhe dizer que está ali, que a menina não deve ter medo. Mas
Anamaya não escuta.
Quando ela torna a abrir os olhos, o terreiro está crivado de flechas de pontas
coloridas. Sobre o corpo dos homens caídos, as plumas fulgurantes parecem flores
semeadas por magia.
- Venha - suspira a mãe.
Puxando a menina pela mão, ela a conduz no campo das flechas no instante em
que o clamor atravessa a paliçada. Homens de capacetes cheios de cores surgem
acima dos chuços inúteis. As fundas giram, as Ɵras de couro dos ayllos zunem no
ar. Engolidos pelo número e o armamento dos adversários, os chiriguanos caem, suas
maças curtas agora inúteis.
- Depressa, depressa - grita a mãe.
Elas correm para a frente, sem se preocupar com os dardos quebrados que lhes
dilaceram os pés. As pedras de funda zunem em seus ouvidos. Um velho de dentes
pretos lhes faz sinal na hora em que leva uma pedrada no peito. Ele cai para trás sem
uma palavra.
- Mais depressa, Anama...
Anamaya sente o choque em sua mão. O tranco vibra até em seu braço. Sua mão
é bruscamente solta. Ela cai para a frente ao mesmo tempo que a mãe. Logo se
endireita.
- Mamãe, venha, por favor!...
A mãe não se mexe. Anamaya não olha o rosto dela. Torna a pegar a mão, tão
quente, tão forte, que a segurava com firmeza um instante atrás, já há tanto tempo.
Ela puxa. O corpo da mãe apenas desliza na terra encharcada.
- Mamãe, rápido, eles estão chegando...
Ela adivinha as túnicas coloridas dos soldados que se aproximam atrás dela.
Atrás dos gritos do combate, há apenas gemidos e, já, algumas risadas. Então,
finalmente, ela tem coragem de olhar o rosto da mãe.
No meio de sua testa, há uma flor vermelho-sangue. Seus olhos estão fechados, e
uma água escura escorre no canto de seus lábios.
Ela sabe.
Ela olha o trapo ainda amarrado na mão de sua mãe, molhado com o líquido
verde onde se escondia o espírito. Ela abre os dedos crispados, pega o pano. Não
ouve as risadas dos soldados vencedores, os gemidos dos moribundos, os gritos de
um bebê abandonado em sua rede, numa choça. Não vê os úlƟmos combatentes que
ateiam fogo à paliçada, depois às choças. Nela só há silêncio, como se todas as
portas de seu coração se fechassem uma a uma.
No rugido furioso do braseiro que carboniza o ar, ela se ajoelha docemente e se
aninha à barriga da mãe.
Já não há mais sopro, não há mais vida, só há um resƟnho de calor que passa e
vai machucar o fundo do seu ser.
É assim que o soldado a encontra.
Quando ele quer leva-la, sem um gemido, ela resiste com todas as forças. Ele tem
de fazer seus dedos largarem o corpo da mãe, ao qual eles se aferram, querendo lhe
dar vida.
Quando consegue separa-las, o homem precisa arrasta-la pela terra e pela lama,
como se ela estivesse inerte.
Viva, mas morta.
***
O oficial inca tem na mão direita uma chuqui, uma lança com a ponta de bronze e
o cabo de madeira de lei guarnecida de plumas de condor. Um colete de couro
protege seu peito. Ele ainda está com o capacete de junco finamente tecido e ornado
com um penacho vermelho e amarelo.
Um cheiro de fumaça acre paira no ar. Apertando o tecido de seda, Anamaya
conserva os olhos obstinadamente baixos. Ela sente o vulto alto e magro do inca.
- Será que finalmente acabamos com esses malditos chiriguanos? - pergunta ele ao
soldado que a trouxe.
- Sim, capitão Sikinchara. Alguns conseguiram fugir para a floresta.
- Está bem.
Ele se vira para Anamaya, o rosto e o corpo inteiro pretos de terra.
- E esta, quem é?
- Não sei, capitão Sikinchara. Ela estava junto de uma mulher morta. Eu a trouxe
para o senhor, porque...
- Olhe para mim, menina - interrompe o oficial. Anamaya não se mexe. Seus dedos
apertam mais um pouco o trapo. O soldado se prepara para agarra-la, mas Sikinchara
o detém com uma ordem breve.
- Olhe para mim, criança - pede ele com uma doçura inesperada.
Ela conƟnua imóvel. Ele entrega a lança e o capacete ao soldado, aproxima-se
dela sem rudeza. Ajoelha-se, e seus dedos finos pegam o queixo da menina. Levanta
o rosto dela para ele. Seu olhar atento capta o raio luminoso de dois olhos azuis.
Sob o efeito da surpresa, ele quase cai para trás.
Anamaya vê o rosto de um homem de nariz nobre, lábios bem desenhados. Vê sua
surpresa.
Vê seu medo.
Capítulo 2
Quito, outubro de 1527
***
A noite passada, como a cada lua nova, ela sonhou com a aldeia na mata. estava
de mão dada com a mãe, e, em volta delas, gritos ecoavam. Um bafo com fogo
queimava seu peito. Quando sua mãe caiu, um silêncio de gelo invadiu-a, um pavor
cheio de incompreensão.
Pareceu-lhe que algumas palavras se formavam nos lábios de sua mãe, palavras
que eram desƟnadas a ela do outro lado da morte, mas que ela não chegava a
compreender. Ela se levantou aos prantos, trêmula de solidão, encolhida contra o
corpo ausente, abraçando o vazio. Enquanto os alvores da aurora clareavam os
corƟnados, ela fechou os olhos para afastar a morte e o medo. Depois, acalmou a
respiração devagarinho para não ser ouvida, imaginando que a voz doce de sua mãe
ainda ecoava no silencio imenso...
Acordou agarrada ao pedaço de pano que ela guarda como um tesouro. O pano
perdeu quase todo o cheiro, conservou só um leve odor de mato que se esvai com o
tempo.
Sua dor, ninguém deve conhecer: ela tem de escondê-la no fundo de seu ser. Ela
pensa nisso enquanto a preparam.
A Casa das Virgens é só cochichos. Enquanto lavam os cabelos de Anamaya e os
penteiam em finas tranças, as Mães lhe lançam olhares de reprovação.
Anamaya fica repeƟndo para si mesma as palavras cruéis de InƟ Palla e o medo
se localiza na boca de seu estômago: se o único Senhor decidir que ela deve morrer
sem ter direito a fugir para o Outro Mundo, será que o puma vai devorá-la? Quando
terminam de penteá-la, as Mães a envolvem num grande pano de tela crua que a
cobre do peito ao tornozelo. Com uma certa brutalidade, elas amarram um cinturão
liso, vermelho, ao redor de seu corpo. Depois colocam uma lliclla em seus ombros,
uma longa capa malva só debruada de branco em volta do pescoço, a qual elas
prendem no peito com um alfinete de cedro.
Finalmente, elas lhe dão sandálias de palha novas em folha, que Anamaya não
consegue calçar direito.
As Mães recuam para examiná-la.
É evidente que suas roupas novas em nada atenuaram sua feiúra, e a repulsa das
Mães é visível. Elas nem ousam olhá-la nos olhos!
Em seguida, fazem-na aguardar muito tempo, sozinha numa sala minúscula e escura.
Seu medo tem todo o tempo para aumentar ainda mais.
***
O sol está no zênite quando finalmente ela e levada para fora da Casa das
Virgens. Dois soldados a esperam. Há luas ela não saía da acllahuasi. Pelas ruelas
estreitas entre os muros altos, os soldados conduzem-na em silêncio até a grande
praça do Palácio Real. No caminho, não encontram ninguém e Anamaya se pergunta
se é por causa dela que a cidade está tão deserta.
Ao chegarem à praça vazia, eles se dirigem à porta estreita do palácio, encimada
por uma verga de pedra onde há uma serpente de vida eterna esculpida. Ali, os
soldados batem com as lanças no chão e ficam imóveis enquanto Anamaya prende a
respiração.
Ela reconhece imediatamente o oficial em traje de gala que aparece à porta do
palácio. Lembra-se de seu nome: Sikinchara. Jamais poderá esquecer seu rosto: era
ele quem comandava os soldados que mataram sua mãe.
Hoje, ele a observa sem receio nem surpresa. Só com um pouco de reƟcência.
Ele é bonito e imponente. Um plastrão de ouro lhe cobre o peito e uma faixa de lã
amarela com duas plumas verdes, curtas e largas, lhe cinge a cabeça, realçando-lhe
os traços. Largos discos de prata lhe cobrem as orelhas, presos por tubos de prata do
tamanho de um dedo, enfiados nos lóbulos distendidos. A cada movimento seu,
essas enormes jóias balançam e faíscam.
Com um simples gesto, ele ordena que Anamaya se aproxime. Como ela não se
mexe, um dos soldados cutuca-a com a lança nas costas. Então ela transpõe o
umbral do palácio. Segue Sikinchara que, com um olhar, obriga-a a permanecer a seu
lado.
Eles atravessam um primeiro páƟo ladeado de grandes casas baixas. De ambos
os lados do caminho calçado, orquídeas brancas e cantuas púrpura cobrem maciços
retangulares. Mas Anamaya mal vê o esplendor dessas flores.
Em seguida, eles passam embaixo de uma espécie de alpendre e ao longo de um
muro de pedras enormes e lisas, com vários nichos onde brilham magníficos objetos
de ouro e de madeira pintada. Finalmente, chegam a uma porta estreita, de montantes
de pedra duplos perfeitamente talhados. Anamaya só tem tempo para ver um outro
páƟo, maior, em cujo centro há uma grande fonte de água fumegante. A voz seca de
Sikinchara ordena:
- Prosterne-se, menina! Prosterne-se diante do seu único Senhor! Ela cai de joelhos,
inclina o busto, põe as mãos no chão e, de soslaio, vê que o capitão avança e passa
a porta. Ela o segue como se Ɵvesse medo, esfolando as mãos e os joelhos nas
pedras ardentes de sol.
Quase é melhor assim, pois agora ela está sob o olhar do Filho do Sol e como se
já começasse a morrer.
Ela ouve ruídos, palavras ditas em voz baixa que ela não entende.. De repente,
leva uma paulada no ombro. Fica paralisada. E é ainda a voz de Sikinchara que
anuncia:
- Meu Único Senhor, eis a menina de que lhe falei.
Não há resposta, somente o sussurro da agitação da água. Finalmente, uma voz
cansada e distante diz:
- Esse banho me cansa. Dêem-me minhas roupas...
Anamaya entrevê as pontas das tangas de dez mulheres que acorrem. Os panos
são lindíssimos, com moƟvos de cores vibrantes. Ela sabe o que está se passando.
Explicaramlhe muitas vezes na Casa das Virgens. As servas entregam ao único
Senhor roupas novas que, depois de tecidas, jamais foram tocadas por mão alguma.
O Filho do Sol designa pessoalmente as jovens que devem ajudá-lo a vesƟr sua
túnica de vicunha, amarrar o cinto, cobrir-se com a capa, colocar a faixa real na
testa...
Ánamaya fecha os olhos e tenta acalmar a respiração. Seu coração bate tão forte
que ela mal ouve a voz abafada ordenando:
- Capitão Sikinchara, mande essa menina se levantar.
Ela recebe um golpe nas costas e Sikinchara resmunga em voz baixa: - Levante-se
diante do seu único Senhor!
Ela se pergunta se terá força suficiente para isso. Levanta-se como se suportasse
uma carga com o triplo de seu peso nos ombros. Quando se põe de pé, fita
obsƟnadamente as pedras do pátio, mas a voz do único Senhor torna a ordenar:
- Olhe para mim, menina! Então ela o vê.
Ele, o único Senhor Huayna Capac, o Inca de todos os incas, o Filho do Sol e Rei
do Império das Quatro Direções!
Ele lhe parece velho. Muito, muito velho...
Apesar da extraordinária beleza de suas roupas, apesar de suas pulseiras de ouro,
apesar do chapelão de plumas coloridas que lhe envolve o pescoço e dos enormes
discos de ouro que lhe distendem os lóbulos das orelhas, apesar do requinte de seu
plastrão de contas de conchas, ele parece frágil como um homem de ossos de ave. A
pele de suas faces é esƟcada e lustrosa como uma cerâmica muito velha. A de suas
mãos de tão enrugada que parece pertencer a outro corpo.
Sentado num trono elevado e coberto de almofadas, ele fita Anamaya nos olhos.
Sem muito espanto e sem receio.
Uma voz aguda e imperiosa diz de repente:
- Único Senhor, veja os olhos desta menina. Nenhuma mulher inca jamais tem
olhos azuis!
- Cale-se, Villa Orna. Deixe-me vê-la.
Quem acaba de falar, Anamaya nunca viu. É um homem que está direita, a uma
boa distância do único Senhor. Ele também possui os brinco dos incas de sangue
real. Mas entre seus lábios finos escorre o sumo verde das folhas de coca que ele
masca.
Sem desviar o olhar dos olhos de Anamaya, Huayna Capac pergunta:
- Ela vem da mata, Sikinchara?
- Sim, meu único Senhor. Destruímos uma aldeia de selvagens chíríguanos. Ela
estava ali com outras crianças e a mãe.
- Onde está a mãe dela?
- Morta, meu único Senhor. Foi aƟngida por uma pedra de funda no ataque da
aldeia. Pode-se adivinhar quem ela era porque ainda estava com uma túnica inca.
- Uma mulher de Cuzco? - Sem dúvida.
- Uma criança impura - resmunga Villa Orna, o homem da boca verde
- Mas seu pai? - pergunta o único Senhor.
Villa Orna faz uma cara de ignorância e de nojo. Huayna Capac vira-se para
Sikinchara.
- Sabe de alguma coisa?
O capitão Sikinchara se cala também e abaixa a cabeça. O Único Senho conƟnua
fitando os olhos de Anamaya, mas há sofrimento em seu olhar. Seu lábios tremem e
de repente seus dedos apertam os braços do trono. Ele esta transpirando tanto que
gotas de suor brotam sob a franja real e deixam sua testa brilhante.
Além do medo de morrer que lhe aperta as entranhas, Anamaya sente outro que a
invade ante a visão da dor que esse homem tão velho suporta, que ela não entende
direito. Tem medo por ele, com ele.
Por um instante, o Único Senhor vacila, as pálpebras estremecendo.
ConemperƟgandose, ele se endireita. Com uma voz abafada, pergunta:
- Villa Oma, o que dizem os adivinhos a respeito dessa menina? O homem de boca
verde resmunga e faz um gesto de desprezo:
- A maioria diz que ela é nefasta. Ela tem olhos azuis, e, como você vê, malfeita. É
magra de busto e maior que nossas meninas! Sangue Inca corre suas veias por parte
de sua mãe, mas é sangue impuro! Ela é do Mundo de safixo e deve voltar para o
Mundo de Baixo!
- Mais um sinal! - murmura o Único Senhor com lassidão, pestanejando.
Ele se cala. Curiosamente, Anamaya tem a impressão de que o velho exausto olha
para ela com benevolência. Como que a contragosto, Villa Oma acrescenta:
- Mas evidentemente nem todos os sacerdotes estão de acordo...
- O que dizem os outros?
- Que ela é um sinal de fausto para seu reino! Que é enviada por Quilla, nossa
Mãe Lua, que lhe promete também a felicidade da viagem no céu, por causa de seus
olhos azuis.
O Único Senhor está ofegante. Apesar de seus esforços para disfarçar seu
sofrimento, Anamaya de repente compreende.
Ela sabe, como se já o visse deitado e sem respirar, que o Filho do Sol está
morrendo. Logo ele tomará o caminho invisível que o conduzirá para junto de seu
Pai, no Outro Mundo!
E ela tem de conter as lágrimas que lhe vêm aos olhos.
O Único Senhor ainda não tirou os olhos dela. Pergunta:
- Que nome ela tem?
- Anamaya.
Mal Sikinchara responde, o Único Senhor abafa um lamento e comprime o ventre
com as mãos. Anamaya adivinha o pavor que gela o capitão. Mas, de novo, o Único
Senhor se controla e pergunta, com uma voz apenas audível:
- E você, Villa Oma, o que acha?
- Ela deve desaparecer! - resmunga Villa Oma. - E logo. Oferecendo-a ao puma,
se você quiser meu conselho. Que ele se alimente dela e que ela desapareça! Que
jamais volte a constrangê-lo, nem neste mundo nem no outro. InƟ nosso Pai não quer
ver um ser como esse viver!
- E se ela tiver sido enviada por Quilla minha Mãe?
- Então poderíamos tomar seu coração como oferenda, mas...
O Sábio Villa Orna não termina a frase. O Único Senhor de repente emite um
gemido rouco. Dobra-se à frente para vomitar uma bílis líquida no rebordo do trono.
Seu sofrimento súbito se torna tão intolerável que ele escorrega do trono e cai de
joelhos. Homens e mulheres, senhores e servas, todos os que o rodeiam ficam
apavorados e imóveis. Anamaya, por reflexo, esboça um movimento, mas logo se
contém. Ninguém tem o direito de tocar no único Senhor!
Sikinchara já a agarra pelos ombros para afastá-la. Mas, com os traços
deformados por um esgar de dor, o único Senhor encara-a e a chama: -Ajude-me!
Menina, ajude-me!
O velho estende as mãos encarquilhadas e trêmulas para ela como se quisesse
atravessar seu corpo. De sua boca bem aberta sai um suspiro rouco enquanto seu
peito se agita sob a túnica. Debruçando-se à frente, ele se arrasta de joelhos e agita
as velhas mãos:
- Ajude-me!
Então não há mais nem Senhores, nem proibições, então ela já não tem medo
nenhum de morrer. As lágrimas conƟdas durante tanto tempo lhe turvam a visão e
finalmente lhe escorrem pelo rosto.
Capítulo 3
Quito, novembro de 1527
***
***
***
***
Quando o sol volta ao horizonte, Anamaya está exangue como se lhe Ɵvessem
esvaziado o coração.
Cem vezes, ela quase dormiu. Cem vezes, com a mão livre, ela se arranhou até
Ɵrar sangue das coxas para não deixar seus olhos se fecharem. Cem vezes, as
pupilas amarelas do puma penetraram-na e a mantiveram desperta.
Agora, no dia que vem raiando, seu corpo está tão entorpecido que ficou
insensível e gelado como se esƟvesse coberto de neve. Seu espírito está congelado
e as frases pronunciadas pelo único Senhor Ja se apagaram.
Mas, de repente, enquanto as pálpebras dos Poderosos, sempre de pé no páƟo, se
fecham, enquanto as cabeças caem de cansaço, o murmúrio cessa. Anamaya
estremece, a nuca rígida, os olhos arregalados.
Em seus dedos tão entorpecidos, ela sente uma ponta de fogo. O Único Senhor
treme de novo respirando alto e depressa.
Seu velho rosto ficou amassado durante a noite, como se os ossos das mandíbulas
e das têmporas tivessem derretido.
Mas suas pupilas, opacas como a noite que ele acaba de atravessar, ardem com
um fogo tão violento quanto o que funde o ouro, e esse fogo penetra no azul dos
olhos de Anamaya como se, juntos, eles pudessem ir para o Outro Mundo.
Ela não tem medo, mas seu coração se dilacera e se abre a todas as dores. Ela vê
diante de si sua mãe morta na aldeia e o rosto do velho. Uma onda de tristeza lhe
esmaga o peito. As lágrimas rolam em seu pescoço.
O soluço que ela deixa escapar, todos escutam, até o fim do páƟo. E todos
estremecem de medo.
No entanto, o único Senhor se agarra uma úlƟma vez à mão de Anamaya, com
tanta força que a faz cair em cima de seu leito, e ele grita:
- Menina Anamaya! Filha do lago, filha de Quilla! Que sua vida seja longa deste
lado do mundo! Pois hei de me lembrar de você quando estiver perto de meu Pai
Sol!
Ele cai para trás e acabou-se. Está morto.
Um imenso gemido se levanta no pátio real.
Como uma onda quebrando, Anamaya escorrega no chão.
Capítulo 4
Quito, dezembro de 1527
- Será que você é uma menina sem cérebro e sem memória? Ouve e não
compreende as palavras? O Único Senhor passa uma noite inteira lhe falando sem
que a repercussão disso em você seja maior do que o barulho que faz uma folha de
coca entre os seus dedos?
Há horas, o Sábio Villa Oma faz as mesmas perguntas. Ela só tem uma resposta,
que repete, cabisbaixa:
- Não sei, Poderoso Senhor, não sei mais. Não entendi... Ele falava, falava! Dizia
palavras que não conheço. Eu não queria esquecer. Mas o puma me olhava e tudo se
apagou...
- O puma olhava para você e tudo se apagou!
Há tanta ironia amarga e raivosa nesse sarcasmo que Anamaya vira o rosto.
- Acalme-se, Villa Oma! - intervém secamente Atahualpa.
Villa Oma bate com o punho em seu plastrão de ouro e dá dois passos para o
lado, como se esse movimento pudesse absorver um pouco de sua raiva.
No quarƟnho escuro, mobiliado apenas com um leito e um grande jarro vazio, o
ar fica irrespirável.
Villa Oma puxa a capa e se vira, agitando a mão com veemência:
- Poderoso Senhor Atahualpa, meu irmão de linhagem! - exclama. - Eu o respeito,
mas me parece que você não avalia a gravidade da situação. Há uma lua o seu pai
Huayna Capac se foi para o Outro Mundo. Ele parƟu sem designar um sucessor.
Talvez, na confusão da agonia, ele tenha confiado o úlƟmo desejo a essa menina,
mas pronto! Ela olhava para os olhos de uma pele de puma e tudo se apagou! Villa
Oma aproveita um silêncio para fitar Anamaya com nojo. Ela sente os joelhos
bambearem e a vergonha lhe gelar o peito.
- Assim - conƟnua o Sábio em tom glacial -, assim o Império vive dias sem luz.
Nenhum Inca pode pretender colocar a borla imperial na cabeça. O Império das
Quatro Direções está sem centro. InƟ não tem mais nenhum Filho para nos governar!
Acha que isso pode durar sem que nosso mundo se quebre? Atahualpa! Atahualpa!
Você poderia ser o único Senhor... - Você sabe por que recusei, Villa Oma! InúƟl
tornar a falar nisso. - O que importa o moƟvo! Sua recusa forçou Huayna Capac a
tomar decisões ruins enquanto ele estava doente e já meio no Outro Mundo.
- Villa Oma, meça suas palavras!
- Essa não é a verdade simples? Quem ele designou para o seu lugar? Seu úlƟmo
filho que não tinha uma lua de idade! Um bebê! E os oráculos foram péssimos.
Os adivinhos afirmaram que era uma escolha execrável. Infelizmente, devastado
pela doença, seu pai se obstinou...
- Você não está me contando nada de novo, Villa Oma. Está se repeƟndo e sendo
desrespeitoso!
- Então vou lhe dar uma notícia, chegada hoje ao amanhecer...
- Diga.
- Os sacerdotes foram a Tumebamba para colocar a Fita real na testa desse bebê,
já que ele era o designado. E ao chegarem, o bebê já estava tão morto quanto o pai!
O silêncio súbito pesa sobre eles como um vento frio. Anamaya, sem querer, ouve
atentamente. Permanece o mais imóvel possível. Adivinha a respiração lenta de
Atahualpa e o ranger dos dentes do Sábio, que pergunta:
- O que vai acontecer agora? Diga, Atahualpa, você que sabe!
- Os clãs poderosos de Cuzco colocarão sem hesitar a Fita real na testa de meu
irmão Huascar - admite Atahualpa sombrio. - Ele é que foi designado em segundo
lugar...
- Sim! Mas os oráculos foram tão negaƟvos quanto com o bebê! E mesmo que
Ɵvessem aprovado essa escolha, você conhece Huascar tanto quanto eu. Ele é
imprevisível. Por enquanto, submete-se de bom grado aos Ɵos e Ɵas de Cuzco que
querem reinar sem divisão e só têm ódio no coração por todos os clãs do Norte.
Ninguém pode saber o que ele quer fazer das Quatro Direções, mas uma coisa é
certa: vai ser com sangue. Ele gosta de fazer sofrer! E vai nos escolher como
inimigo. Eis do que será feito o amanhã. Acha isso sensato? Eu lhe digo. Tenho
medo da cólera de InƟ nosso Pai. Tenho medo das lágrimas de Quilla e da ira de
Illapa! Atahualpa, só você pode manter o rio unido e poderoso!
Com uma voz controlada, Atahualpa responde simplesmente:
- Não. Huascar usará a borla. Assim quis meu pai Huayna Capac.
Furioso, Villa Oma bate o pé com tanta violência que Anamaya se assusta. O
Sábio agita na direção dela um dedo seco e duro como uma ponta de lança. Na
penumbra, seus lábios e seus dentes esverdeados pela coca parecem pretos e lhe
fazem uma boca vazia e terrível de onde as palavras saem troando:
- O que sabe sobre isso? Ele confiou a verdade dele a essa garota! Uma noite
inteira! Temos de saber o que lhe disse. Basta ela se lembrar!... Ah, Atahualpa!
Confie-a a mim, deixe que eu lhe arranque a pele se for preciso. Prometo-lhe que
antes desta noite...
- Não, Villa Oma - interrompe Atahualpa com um tom que não permite réplica. -
Você não vai fazer nada disso.
Por um breve instante, os dois homens se enfrentam com o olhar. Anamaya está
prestes a desabar quando o Sábio finalmente se dirige para a porta estreita do
aposento. Com uma ordem seca, Atahualpa o chama.
- Ouça com atenção, irmão Villa Oma! Sei que você fala para o meu bem, e não
esquecerei disso. Mas quero respeitar as escolhas de meu pai, mesmo que elas não
me agradem. Se ele achou que essa menina lhe foi enviada por nossa Mãe Lua, é
porque Ɵnha seus motivos.
Villa Oma suspira. Após uma hesitação, volta para perguntar: - O que quer que eu
faça?
- O que deve ser feito. Você ouviu como eu ouvi quando meu pai disse: "Menina
Anamaya! Filha do lago, filha de Quilla! Que sua vida seja longa deste lado do
mundo... " Ele a designou para que ela fosse a guardiã de seu "Irmão-Duplo". Assim
será.
Villa Oma sacode a cabeça, o rosto cansado. Como se esƟvesse dando uma aula
a um aluno insuportável, diz:
- Isso não existe. Os Irmãos-Duplos nunca tiveram Esposa.
- Pois bem, doravante isso vai exisƟr. Você mesmo anunciará aos sacerdotes: essa
menina será a Coya Camaquen do Irmão-Duplo.
- Eles não vão querer isso! Deixe-me botá-la no fosso dos pumas e ela vai se
lembrar.
- Não! O Único Senhor Huayna Capac a quer perto dele e aqui. Os Senhores
presentes na noite da passagem dele para o Outro Mundo viram e ouviram isso tão
bem como nós.
- Essa menina não passa de uma selvagem! - protesta ainda Villa Oma. Não sabe o
que é uma Coya Camaquen, nunca viu o Irmão-Duplo! Cabe a você fazer o que for
preciso para que ela fique sabendo. E logo... - Atahualpa! Ela não é uma verdadeira
inca; por que deveríamos lhe confiar nossos segredos? É contra a tradição e contra a
lei... Se você esƟver enganado, sabe o que acontecerá conosco?
- Não posso me enganar seguindo a vontade de meu pai.
- Quem pode dizer? Se nosso erro for grande demais, o Sol não transporá mais as
montanhas do leste! Você quer que na manhã do dia igual à noite ele permaneça no
Mundo de Baixo? Que o tempo pare e que a gente acabe?
Cada uma dessas palavras é um golpe no coração de Anamaya. Mas Atahualpa
ordena com sua voz calma:
- Pare de gemer, Villa Oma, e faça o que lhe peço.
O Sábio fica um instante de olhos fechados, mas acaba cedendo, vencido. Então,
com um movimento rápido, segura o queixo de Anamaya com os dedos duros como
pau. Levanta seu rosto e encara-a com seus olhos escuros:
- Menina Anamaya! Você ouviu? Agora vai me obedecer em tudo. É assim que
meu irmão Atahualpa quer. E prometo-lhe que se algum dia sua língua e sua
memória se soltarem para que você conte a outra pessoa que não eu o que o único
Senhor lhe disse antes de morrer, cortarei seu coração em pedacinhos! Ele larga o
rosto da menina com tanta violência que é quase como uma bofetada. Enquanto sai
sem um olhar para Atahualpa, os joelhos dela bambeiam e ela desaba no leito
estreito. Seu orgulho nada pode, o pavor lhe Ɵra o fôlego, ela soluça, a boca aberta,
mal contendo um pequeno grito. O Senhor Atahualpa a observa um instante,
hesitando, depois dá um passo e se inclina. Com as pontas dos dedos, toca em seu
ombro, esboça uma carícia com as costas da mão.
- Olhe para mim, menina - ordena com doçura.
A discussão com o Sábio deixou o branco de seus olhos mais vermelho que
nunca. Mas um ligeiro sorriso paira em seus belos lábios.
- Não chore, menina Anamaya - diz ele baixinho. - Seja forte e digna. Não tenha
medo do Sábio. Ele grita muito, mas não é tão mau quanto parece. Ele quer o nosso
bem...
Atahualpa perscruta-a como se procurasse ainda alguma coisa no enigma de seus
olhos azuis. Não sorri mais. Seu rosto está de novo severo quando ele anuncia:
- Não tenha medo de ninguém. Vou protegê-la tanto quanto meu Pai quiser lá do
Outro Mundo.
***
***
***
A cada ruído, cada visita, o Anão se esconde. Quando a noite avança, ele se deita
ao lado dela, na esteira, e os dois conversam.
Ela lhe conta sobre o ataque da aldeia, a morte de sua mãe, o capitão Sikinchara,
a estranha paixão odiosa que lhe dedica InƟ Palla, seu medo agora que o segredo
confiado por Huayna Capac está nela e que todo mundo quer possuí-lo.
Ele lhe fala da corte e suas intrigas, dos ódios das concubinas, da crueldade dos
Poderosos. Conta-lhe também o segredo que Atahualpa esconde no coração, o
verdadeiro moƟvo por que ele não pode ser o Inca. Diz-lhe para não confiar em
ninguém senão na palavra escondida dentro dela, a que o único Senhor depositou e
que dorme em seu seio.
Eles não confessam que têm medo de ser separados, agora que se encontraram,
mas prometem velar um pelo outro o mais que puderem.
Ele a faz rir baixinho e ela o chama de "meu Senhor" enquanto ele a chama de
"Princesa". Na solidão da noite, eles largam a pele de suas solidões terríveis, as
camadas de seus medos acumulados.
Quando a aurora se aproxima, o Anão diz a Anamaya que logo vão matá-lo, ele
sabe.
E com todas as forças, ela se agarra a ele, como se esƟvesse se afogando,
pedindo-lhe que não morra, que não a deixe.
Capítulo 5
Quito, janeiro de 1528
***
Mais cinco vezes, nos vinte e cinco dias seguintes, o Sábio Villa Oma leva
Anamaya ao pátio do Sol onde ninguém tem o direito de entrar, exceto os sumos
sacerdotes.
Mais cinco vezes, ela vê o único Senhor se mumificar. Ora seco pelo sol e por
camadas de relva e salitre, ora congelado à noite por blocos de gelo cobertos de
palha trazidos da montanha expressamente para isso.
Nas úlƟmas vezes, o corpo não está mais deitado mas sim manƟdo sentado por
escoras de junco. Suas pernas estão dobradas e seus calcanhares, enfiados sob as
coxas, tão secas que têm apenas a grossura dos ossos. Afinal, na úlƟma de todas, o
Corpo seco do único Senhor não está mais nu, mas sim coberto por um magnífico
tecido de vicunha. Um diadema de plumas encima seu rosto tranqüilo.
Isso causa uma impressão tão forte que, por um instante, na penumbra, Anamaya
julga ver os lábios se moverem e os olhos se fixarem nela.
A cada uma de suas visitas, Villa Oma perde um pouco de seu ar rude. Sua voz
torna-se paciente quando ele manda que ela pronuncie sempre as mesmas frases
diante da estátua do Irmão-Duplo. Com calma, lembra-lhe que o mundo tem três
partes. Uma está debaixo de seus olhos e se chama o Kay Pacha. Contém as
montanhas, os lagos, os animais, os homens e as coisas que eles produzem. Contém
suas guerras e suas alegrias, os nascimentos e as doenças. Contém a ordem e a Lei
dos Incas de Cuzco, os Príncipes do Império das Quatro Direções e os únicos
Senhores humanos que o Sol considera seus filhos.
- O Sol vive no Mundo de Cima. Ali, circulam sua Irmã Esposa Lua e seu Irmão
Illapa, o Raio. E sob os seus pés, Coya Camaquen, há a mansão dos Ancestrais...
- Mas onde está o único Senhor agora? - espanta-se Anamaya.
- Por toda parte, menina. Perto de seu Pai Sol no Mundo de Cima. Perto dos
ancestrais no Mundo de Baixo. E aqui conosco, graças ao seu Irmão-Duplo e a você
que o ouve... Se conseguir!
Villa Oma esboça um sorriso. Agora, quando zomba dela, já não o faz com raiva
nem desprezo.
- É por isso que dizemos que ele está no Outro Mundo - acrescenta. - Este Outro
Mundo é o da felicidade. Mas, para alcançá-lo, é preciso ter vivido aqui sem
cometer erros, sem trair a Lei de Cuzco. E morrer.
O sábio masca um instante sua coca em silêncio, depois conclui balançando a
cabeça:
- Você não deve morrer sem que o único Senhor lhe peça para fazê-lo! E não deixe
o Irmão-Duplo. Está entendido?
Será que ela entende realmente? Ela não tem certeza.
***
É na manhã desse dia que, pela primeira vez, ela revê o poderoso Senhor
Atahualpa. Ele entra em seu quarto enquanto ela está comendo sozinha. Surpresa,
quase vira o prato de sopa e batatas.
Imediatamente, ela se inclina e se ajoelha junto ao leito, mas Atahualpa diz com
gentileza:
- Pode se levantar e me olhar, Coya Camaquen. Ela obedece um tanto receosa.
Todavia, o olhar de Atahualpa lhe dá confiança. Ela o acha lindo e forte como na
primeira vez em que o viu, embora sua boca esteja mais preocupada e severa. Ele
diz:
- Anamaya, estou saƟsfeito com você. O Sábio me diz que você aprende rápido,
que obedece e parece forte.
Ela cora, inclina docemente a cabeça para agradecer. E a pergunta imediatamente
irrompe:
- Coya Camaquen, você agora se lembra das palavras do único senhor?
Com tristeza, ela balança a cabeça:
- Não, Poderoso Senhor. Eu não me lembro...
- Nem uma palavra?
- Não... Mas...
- Mas?
Ela se endireita e olha-o nos olhos para que ele avalie sua sinceridade:
- Sei que as palavras estão em mim. Só acho que o único Senhor não quer que eu
me lembre hoje.
Atahualpa contempla-a em silêncio por um breve instante antes de se aproximar.
Lança um olhar na direção do corƟnado da porta antes de perlar com uma voz tão
baixa que mal se ouve:
- Tem certeza?
- Não - responde Anamaya no mesmo tom. - Não, eu não posso certeza. Mas
quando estou com o Irmão-Duplo, sinto que não esqueci. Só que as palavras não
podem sair da minha boca.
Um raio de alegria brilha nas pupilas escuras e rodeadas de vermelho de
Atahualpa. Com um gesto espantosamente doce, ele aproxima a mão e, com as
pontas dos dedos, afaga seu braço.
O silêncio que se segue prolonga-se até ele murmurar ainda:
- Seja prudente, Coya Camaquen, seja prudente! Posso protegê-la aqui, mas
pessoas que não são do meu clã podem lhe fazer mal.
- Por que, Poderoso Senhor? Por que elas haveriam de querer isso?
- Porque essas frases que você guarda em você podem decidir o futuro do Reino.
Desconfie, menina Anamaya, seja prudente em suas palavras, sobretudo depois da
grande cerimônia.
- A grande cerimônia?
- Você vai ver... Confio em você. Acho que meu Pai fez uma boa escolha, ainda
que estranha. Mas seja vigilante, pois os homens do clã de meu irmão Huascar não
são bons. Eles também vão querer conhecer as palavras que estão em seu corpo!
Mais tarde, novamente sozinha na noite, Anamaya fica em pânico. O silêncio
fechou-se sobre ela como as mandíbulas de um abismo.
O silêncio em volta dela gelando o palácio. O silêncio dentro dela congelando-a.
Será mesmo como disse o Senhor Atahualpa: as palavras que estão seu coração e
que dali não saem são tão importantes? E por quê?
E, sobretudo, por que ela?
Ela não estaria mais apavorada se uma pedra lhe esmagasse a nuca e lhe
amassasse o peito.
Por que ela?
Ela ainda é apenas uma jovem menina! O que fez para ter de suportar um fardo
tão pesado?
E o que acontecerá se ela se enganar? Se as palavras não esƟverem nela, se ela
simplesmente as esqueceu, cansada demais de ouvir o Único Senhor Huayna Capac
falar sem parar?
Seu olhar se embaralha. Ao lado de seu leito, a chama curta da lamparina
desagrega-se atrás de suas lágrimas.
Ela tem medo, tanto medo! E ninguém pode vir ajudá-la. Desde que é Coya
Camaquen, o Anão não pode mais aproximar-se dela. Talvez até tenha medo dela...
Ela está sozinha. Sozinha nos três mundos descritos pelo Sábio De repente ela
estremece.
No canto mais escuro do aposento, parece-lhe ter visto, num relance, o olhos
amarelos de um puma colados nela. Ela morde os lábios para não gritar Seus dedos
arranham o cobertor.
Sim, dois olhos de ouro a contemplam. O puma contempla-a. Ela adivinha suas
orelhas redondas, seu focinho palpitante, as pontas de suas presas Ela está sem
fôlego. Palavras se formam nela, sem poder sequer transformar se em som:
- Não me mate, puma! Não me mate, preciso viver muito para acompanhar o
IrmãoDuplo. Eu lhe suplico, puma, não me devore. Deixe-me viva e e saberei me
lembrar disso!... Como veio, o puma se apaga. A sombra é apenas sombra.
Anamaya só adormece muito mais tarde, ainda sentada e trêmula.
***
***
Nessa noite, Anamaya não consegue conciliar o sono, tão opressivo e o silêncio
do palácio.
Ela chora aos prantos.
Quantos foram até as pedras sagradas, ao redor de Quito, para oferecer o coração
e a vida daqui ao único Senhor Huayna Capac? Quantos tomaram o caminho dos
ancestrais para ir para o Outro Mundo e ali servir ao único Senhor?
Milhares!
Todas as suas esposas, todas as suas concubinas e suas criadas, todos os seus
eunucos conquistados na guerra, seus escravos, seus servos, grandes ou pequenos!
Todos deixaram a vida daqui! O cheiro de sangue e de morte empesteia o ar da
cidade. Esse cheiro enjoaƟvo e nauseabundo que ela senƟu pela primeira vez no dia
em que os incas atacaram sua aldeia na floresta.
Antes do amanhecer, não agüentando mais, ela se levanta e vai para o páƟo. A
lua brilha, redonda e tão luminosa que lança sombras nas lajes. Por um instante,
Anamaya diz a si mesma que está perdida, esquecida num mundo deserto.
Depois, de repente, milhares de gemidos vibram docemente na noite, como se
todas as almas que foram se unir ao único Senhor lhe dessem adeus.
Capítulo 7
Tumebamba, dezembro de 1528
***
Obedecendo às ordens de Villa Oma, Anamaya não deixa mais o Irmão-Duplo de
ouro. Muitas coisas mudaram em volta dela.
Ninguém ousa agora zombar dela ou do azul de seus olhos. Os Senhores dos clãs
do Norte, como os de Cuzco, consideram com respeito seus mínimos movimentos.
Com respeito mas também com inquietação e impaciên cia. Todos esperam que ela
se lembre das palavras do único Senhor, ou que ele se manifeste por seu intermédio,
para confirmar ou revogar a nomeação de Huascar.
Nessas condições, a aparência da Coya Camaquen já evoluiu bem em alguns
meses. Anamaya ganhou segurança, já não se espanta com os olhares que a
observam, as criadas que se curvam diante dela.
Acostumou-se às longas esperas das cerimônias, tanto noturnas como diurnas, às
discussões intermináveis dos sacerdotes, aos sacrifícios constantes...
Seu corpo também mudou. De manhã, quando veste a túnica finamente tecida, ela
percebe que suas pernas se alongam, suas ancas se arredondam. Dia a dia, a silhueta
de menina vai deixando-a enquanto, lentamente, o corpo de mulher vai se delineando
nela à medida que seu coração e seu espírito endurecem.
Ela já tem menos medo da solidão e as lágrimas lhe chegam mais raramente.
O Anão seguiu o cortejo desde Quito, mas eles têm pouquíssimas oportunidades
de trocar algumas palavras. Às vezes, com um olhar para a mulƟdão, ela reconhece
sua presença e seu coração se aquece...
Ela está habituada às mudanças de humor de InƟ Palla, ora afetuosa como uma
irmã, ora contundente como uma pedra de funda!
As noites passadas junto ao Senhor Atahualpa acabaram de transformar a princesa
numa verdadeira jovem mulher sem abrandar-lhe o gênio, muito pelo contrário. Mas
sua beleza é grande. Ela é tão perfeita quanto pode ser uma mulher inca. Suas
formas são opulentas, seus traços, suaves e firmes, seu rosto, redondo, sua testa,
bastante abaulada no prolongamento do nariz. Sua boca parece o vôo desfraldado de
um falcão. E desde que chegou a Tumebamba, os olhares dos jovens a tornam mais
resplandecente que nunca.
Às vezes, Anamaya queria ser como ela, tão bela, tão despreocupada, arrogante e
versátil... Outras, pede a Inti que a preserve disso!
Mas hoje é um grande dia, o dia da corrida do huarachiku. Por uma vez, Anamaya
será como as outras jovens, e ela deve essa transgressão à regra às intrigas de InƟ
Palla. Foi ela quem forçou Atahualpa a insisƟr junto aos Anciãos para que
Ànamaya fizesse parte das virgens que darão assistência a um dos concorrentes.
Durante todo o dia da terrivel corrida, ela vai apoiá-lo, encorajá-lo.
Na verdade, até essa noite, isso era uma alegria para Anamaya. Mas InƟ Palla
conseguiu estragar essa felicidade.
Dias atrás, quando, pela manhã, ela lhe explicava a ordem das próximas
cerimônias, InƟ
Palla, os olhos brilhando, de repente apontou o indicador para as encostas íngremes e
as gargantas que dominavam a cidade.
- A corrida será a prova mais dura. Só os verdadeiros valentes chegarão ao fim! E
os primeiros serão respeitados como Poderosos entre os Poderosos! Eles terão de
lutar contra o frio, a chuva, a montanha e o medo. Só comerão um pouco de milho
cru, nada mais. Ficarão tão cansados que não se agüentarão em pé, mas assim
mesmo será preciso continuar...
- Mas eles já estão jejuando há uma semana -exclamou Anamaya. - Não poderão
correr tanto tempo!
- Sim, justamente. Eles terão de atravessar as três gargantas, esquecer a fraqueza e
se entregar a Inti...
- E se não conseguirem?
Um brilho feroz passou pelo olho de Inti Palla.
- Eles não serão nada, envergonharão seu clã. Se lhes restar um pouco de coragem,
eles se jogarão num abismo ou morrerão sufocados antes da chegada! É o melhor.
Diante da risada cruel de InƟ Palla, Anamaya ficou chocada. Mas InƟ Palla tem
razão, Anamaya bem sabe: assim funcionam a Lei e a ordem do Império das Quatro
Direções. É preciso sempre vencer e conquistar. Senão, não há felicidade possível
no Outro Mundo.
E a princesa acrescentou após alguma reflexão:
- Este ano, os rapazes dos clãs de Cuzco não devem ganhar. Isso aumentaria o
apeƟte deles pelo poder. Infelizmente, não posso ajudar os nossos rapazes, pois não
sou mais virgem. Mas você poderia!
- Você acha?
- Eu perguntarei para você...
- Mas não, é impossível! E o Irmão-Duplo? Villa Oma jamais aceitará que eu o
abandone, por um dia sequer!
- Talvez aceite! - insisƟu InƟ Palla. - Aliás, você não o abandonaria realmente, já
que ele controla a corrida do alto do templo. Ele vai vê-la e você vai vê-lo...
Entusiasmada com sua idéia, Inti Palla abraçou Anamaya com uma risada divertida:
- Confie. Atahualpa vai aceitar! Sei como se deve pedir algumas coisas para
conseguilas...
E, de fato, ela conseguiu.
***
***
***
Quando é dado o sinal, quando o som das trompas ecoa por todo o vale, até no
fundo dos abismos antes de tornar a subir para os picos, toda a energia de Manco é
liberada. Ele esquece as dúvidas, o cansaço, esquece a enormidade da prova e a
chuva fria, para só pensar na felicidade de correr.
Ele desce a primeira encosta ágil como um puma, poderoso, feliz e livre. Se não
Ɵvesse que poupar o fôlego, gritaria de felicidade.
Inicialmente, o caminho segue para o norte: após a brevíssima descida, os
corredores devem imediatamente subir num cume escuro, uma elevação de aspecto
modesto mas que esconde um terrível amontoado de pedras onde cada passo é
desgastante. Só depois, prosseguindo para oeste, virá a longa descida suave que os
levará ao sopé do Huanacauri. O apu, o Senhor-Montanha que os vê e os desafia. Se
chegarem ao cume e sobreviverem à descida, uma curva fará com que eles não
passem longe do platô do templo do Sol, antes de terminar pela penosa subida, ao
longo da ravina onde se encontram as virgens, até o morro que eles acabam de
deixar.
Paullu se mantém bem atrás dele. Juntos, eles ultrapassam sem dificuldade o
grosso dos corredores nas primeiras curvas da descida, mas no terrível monte de
pedras, de repente, o cansaço torna seus membros pesados. E a chuva de repente
vem em rajadas e fusƟga o rosto, muito mais contundente que as tiras dos tios, há
pouco.
Logo, logo, Manco sente a respiração se acelerar e encurtar. Seus pulmões ardem
e suas pernas enrijecem. Ele ouve a respiração rouca de Paullu se afastar. Ao longe,
como um barulho engolido pela imensidão dos vales, os gritos dos primogênitos que
os seguem e os impelem também se apagam. Seu corpo vira um inimigo dolorido.
Ele se vira e vê Paullu fazendo caretas, os olhos saltados, abrindo a boca,
fazendo-lhe sinal para ir em frente, para não esperá-lo...
Depois, a alguns passos dele, surgem os vultos de alguns rapazes do clã do Norte.
Manco adivinha num instante o olhar de desprezo de Guaypar, o mais corajoso deles,
que já está ultrapassando todo mundo.
Então a raiva ajuda-o a levantar as pernas mais depressa, sem ligar para as pedras
que cedem sob suas solas de corda.
Ele logo sente que torna a ganhar terreno e recobra o fôlego. Mas Guaypar passa
ágil nas pedras, levantando bem as sandálias.
Manco esquece as pontas de fogo que cortam seus músculos, as brasas que
incendeiam seus pulmões, esquece tudo de seu corpo e só pensa em correr como se
seu espírito se tornasse uma força separada.
Em pouco tempo, ele emparelha com Guaypar num caminho que mal dá passagem
para dois.
Eles estão lado a lado, lutando na velocidade, os lábios contraídos num mesmo
gemido de esforço. Então Guaypar cede. Seu ombro desliza, seu rosto recua. Suas
mãos agarram o ar à frente cada vez mais perto...
Quando Manco o ultrapassa, no esforço desesperado para ficar emparelhado com
ele, Guaypar se desequilibra e bate com o cotovelo em Manco. Por um instante, o
jovem príncipe sente-se agarrado pelo vazio antes de se refazer. Quase
involuntariamente, ele dá um grito de vitória que ecoa nas pedras. Guaypar pena
para segui-lo.
Sem se virar, Manco adivinha que agora os outros estão muito atrás. Paullu
também. Apesar das promessas, o suƟl Paullu não conseguirá acompanhá-lo. Mas
Manco confia nele: ele não vai ficar entre os últimos, carregando o infame calção
negro...
AƟngido o cume, pedra no meio das pedras, Manco desce a encosta. Suas
passadas ficam cada vez maiores, aumentando sua dianteira.
O olhar fixo no desfiladeiro próximo, a exaltação de ser tão forte no meio de
todas as coisas vivas o invade. Ele é homem entre as pedras, os insetos e as almas.
"Sou o vento, sou a chuva, sou a luz." Parece-lhe que do céu, mas também de detrás
de cada rochedo, há um olhar amigo seguindo-o. Olhos que estão em toda parte, um
olhar já familiar.
Estranhamente, enquanto a corrida parece que não irá terminar nunca, sua
respiração se acalma, mas, insensivelmente, ele vai mais devagar antes das primeiras
encostas do Huanacauri. Lá em cima, a picada se estreita ao longo de uma falésia a
prumo. Não é mais que uma linha verƟginosa esƟcada sobre o vinco de uma rocha.
Manco conhece o poder da verƟgem. Sabe que nas encostas muito abruptas o
coração lhe falta, ele pode ficar paralisado, incapaz de dar mais um passo. Ele se
preparou para isso, se esforçou para vencer esse momento de absoluto pavor que o
congela.
Infelizmente, na hora em que o precipício se aproxima, ele faz o que não deve.
Corre olhando para o vazio.
E é como se já se visse caindo entre as pedras. Suas pernas tremem. Um arrepio
frio lhe
eriça a nuca, lhe aperta os rins. O vazio parece aumentar a cada passo, bizarro,
quase sorridente, como se o abismo o chamasse.
Então Manco se escora na pedra. Agarra-se a ela. A alguns passos dali, há apenas
um bloco de pedra a ser contornado para que o caminho dê numa larga encosta de
relva... Mas para chegar lá, é preciso largar a rocha, enfrentar o vazio. Aceitá-lo. Ele
não consegue.
O suor o inunda. A chuva se mistura às suas lágrimas de fúria. Em volta dele, os
ruídos lhe chegam numa bruma: os gritos daqueles que caem e se ferem, os
chamados, os encorajamentos.
E a zombaria de Guaypar quando passa por ele a toda, às gargalhadas:
- Manco! Manco! Você vai cair e não vai ter nem o calção negro para segurá-lo!
Você não passa de um covarde, filho de Cuzco!
Guaypar tem razão. A covardia o ampara como, há pouco, a coragem. A vergonha
o protege como, há pouco, o senƟmento de invencibilidade. Ele pode permanecer ali
até a noite cair, até suas mãos largarem a pedra. Seu corpo será encontrado no pé da
encosta, desarƟculado. Tanto se lhe dá. Onde está ela, a voz de seu ancestral? Sua
certeza de que ele é o mais forte?
De tudo isso nada resta. O pânico. Seu coração que bate com a velocidade de
uma asa de colibri.
- Manco!
É a voz familiar de Paullu. Ele não precisa de explicação para entender. - Me dê a
mão...
Manco obedece. Recua, pé ante pé, os membros trêmulos, até a laje onde o irmão
o espera.
- Respire devagar. Deixe comigo. Vou passar à sua frente. Vou guiá-lo. Paullu
passa à frente do irmão, dá um único passo e contorna a pedra que o detinha.
- Agora venha. - Não consigo. - Se eu consigo, você consegue.
Se eu consigo, você consegue. É a frase que os liga desde a infância, a que faz
deles gêmeos de alma.
Manco avança, um dedo de cada vez. Guiado pela voz do irmão que lhe diz
palavras que ele não entende. Quando está perpendicular ao vazio, sentese
renunciando, caindo...
A mão de Paullu agarra-lhe o pulso.
- Fique comigo, irmão.
Lá em cima, perto do cume, Manco vê que muitos corredores os ultrapassaram.
Paullu não lhe dá tempo de lamentar o tempo perdido:
- Corra, meu irmão amado! Corra, você é o melhor e me orgulho de você.
- É mentira, sou o mais covarde...
- Você é corajoso e forte, Manco, além do mais, você tem um irmão que o ama e
vai
ajudá-lo sempre... Vá, ganhe por nós dois!
Seu coração recomeça a bater, ele enxuga a chuva que lhe turva os olhos. "Sou o
vento...", pensa ele, levantando os pés mais pesados que granito...
***
A praça está cercada por um longo cordão de ouro sustentado por forquilhas de
ouro e prata. No centro, arde o fogo à prova de chuva. Folhas de coca e de milho
estão sendo queimadas ali, exalando um cheiro doce e estonteante.
Manco tem a boca pastosa. Sua língua e seu palato conservam o gosto acre e
lancinante da chicha.
Enquanto a alguns passos dele Villa Oma e os sacerdotes louvam a valenƟa dos
guerreiros, as imagens da corrida passam e repassam em sua mente.
Ainda de longe em seus músculos, ele sente sua força, sua terrível verƟgem e a
embriaguez da vitória.
Impelida por um turbilhão de ar quente, a fumaça da coca envolve o Irmão-Duplo
de ouro de Huayna Capac. Esconde um instante o rosto daquela a quem chamam
"Coya Camaquen". Depois os olhos azuis, a boca meiga e bem desenhada de
Anamaya tornam a aparecer. Numa fração de segundo, seus olhares se encontram.
Ao lado dele, o irmão Paullu viu esse contato. Ele sorri e pergunta em voz baixa:
- Você a acha bonita?
- Não sei... Ela não é realmente como as outras. De onde vem?
- Da floresta, parece.
Os sacerdotes aproximam-se dos noviços.
Mergulhando uma pena numa Ɵgela de sangue de lhama, eles fazem um risco no
rosto dos rapazes. Depois vem a hora dos juramentos.
Para Manco, é como se as palavras de fidelidade ao Sol e de obediência ao Inca
fossem pronunciadas por outro que não ele. Ele só tem pressa de uma coisa: ouvir
as palavras que o designam finalmente como um auqui, um verdadeiro guerreiro.
Sendo o vencedor da corrida, ele é o primeiro a receber o calção branco. Depois,
as sandálias de junco, a túnica vermelha com a faixa branca, a Ɵara e o diadema de
plumas de onde pendem os discos de ouro e prata...
O povo olha para ele. Os pais, os clãs, os nobres de Cuzco e de Quito, todos o
contemplam com os olhos cheios de admiração, mas também, às vezes, de ciúme.
Manco se levanta, orgulhoso. Em seguida chega a vez do grupo de frente com Paullu
e Guaypar. Se seu irmão lhe lança um olhar afetuoso, os olhos de Guaypar emitem
chispas de raiva diante do sorriso um tanto irônico do vencedor. Longe de abaixar a
cabeça como os perdedores que agora recebem o vergonhoso calção negro, ele
exprime um desafio cheio de orgulho, uma ameaça apenas velada.
As horas passam, as danças sucedem aos cantos. As risadas e os gritos de
parabéns
enchem a esplanada. Manco vai curvar-se diante dos mais velhos guerreiros que o
examinam com um olhar sorridente, pousam a mão em seu ombro...
Mas faça ele o que fizer, seu olhar sempre volta para a jovem Anamaya, a esposa
do Irmão-Duplo de ouro.
Quando afinal termina o ritual, as virgens se aproximam dos rapazes com potes de
chicha. Elas oferecerão bebida aos jovens guerreiros e ficarão perto deles durante a
úlƟma noite da prova que os meninos passam ao relento. Embriagados de cerveja,
eles vão enfrentar a pureza de Mama Quilla e os espíritos dos Anciãos do Outro
Mundo, os bons e os maus.
Pasmo, Manco vê Anamaya encaminhar-se para Guaypar. Manco mostra-a a
Paullu e exclama:
- É esse cão que ela apóia?
- Certamente ela não teve escolha, Manco! Ela pertence ao clã de Atahualpa.
- Os clãs, Paullu, sempre esses malditos clãs! Não se falava em clãs quando o
grande Manco Capac fundou nossa dinasƟa. E posso lhe dizer que eu não pensava
nos clãs de Cuzco quando corria há pouco!
- O problema não é você pensar nisso, meu irmão; basta eles pensarem. As jovens
que lhes foram designadas se aproximam, sorriso nos lábios, olhos baixos. Elas são
muito moças, pequenas, lindas como bonecas e cheias de respeito ao entregarem os
potes. Manco bebe toda a chicha em longas talagadas. A bebida foi feita naquela
manhã. Seu frescor agridoce sacia seu palato, sua garganta e todo o seu corpo
fatigado.
As jovens virgens vão imediatamente encher os potes bebidos nas enormes jarras
que os criados inclinam com cordas. Ánamaya, como as outras, vai encher seu pote
na grande macca finamente pintada. A cerveja corre aos borbotões, seu amargor
impregna o ar, um tanto nauseante.
A úlƟma invocação a InƟ termina. Pouco a pouco, a embriaguez sobe e o
cansaço de repente fica imenso. Em alguns minutos, entontece os rapazes. Já os fez
dobrar os joelhos e fechar os olhos. Vem-lhes o desejo, imenso, de se deitar ali
mesmo e dormir. Manco sente ainda os olhares que o vigiam. Fecha os olhos para
respirar melhor e se levanta.
- Manco?
Paullu puxa-o pela manga da túnica. Quando ele torna a abrir os olhos, Anamaya
está à sua frente.
- Ah, é você! - exclama ele maldizendo a verƟgem que o domina. - Eu não lhe
agradeci, Anamaya. Talvez você tenha impedido que eu morresse hoje! Ela esboça
um gesto de negação:
- Ela só não o deixaria ganhar a corrida! Quando eu mal andava, as serpentes já
corriam entre os meus pés... Aprendi a fazer amizade com elas. Ela lhe mostra o
bracelete em seu pulso, com duas serpentes entrelaçadas. Ele mal repara. Não se
acostuma com seus olhos azuis. Admira a silhueta franzina e ao mesmo tempo
sólida.
- A serpente não é símbolo de sabedoria?
- É o que dizem.
- Por que você atrai os olhares, Anamaya? Ela dá um sorriso infantil.
- Não tanto quanto você hoje, nobre guerreiro. Anamaya encontra o olhar severo
de Villa Oma fixado nela. Com sinal imperioso, ele ordena que ela se afaste. Ela
saúda os dois irmãos com uma mesura:
- Tenho que encontrar o rapaz que estou apoiando. Mas desejo a vocês uma linda
noite. Que Mama Quilla lhes seja doce!
Quando ela se afasta, Manco se vira, zombeteiro, para Paullu: - Então, o que acha,
irmão? Nós a achamos bonita ou feia?
- Não como as outras, em todo caso... Mas você viu, o Sábio a controla como um
velho marido ciumento! E não acho que ele aprova nossa companhia para a protegida
dele!
***
Desde que a noite caiu, Anamaya soube outra vez o que era medo.
No páƟo da cancha arde um fogo tranqüilizador, mas que dá aos olhos de
Guaypar um brilho cada vez mais demente. Sem parar, desde que escureceu
totalmente, ele bebe, afogando na chicha a humilhação sofrida.
Seus goles são pequenos e suas mãos tremem tanto que ele derrama no unku tanta
cerveja quanto a que bebe. Mas a embriaguez o leva para longe sem lhe dar sono. O
arem volta dele fede. Às vezes, ele se levanta e estende a mão para a Mãe Lua,
como se nela pudesse mergulhar os dedos, abre a boca para dar um grito que não
vem. Depois, deixa-se cair, tateando para encontrar o pote de álcool.
- Está vazio - gane ele. - Vá buscar para mim, menina dos olhos azuis!
- Você já está bêbado, Guaypar... - tenta Anamaya. - Talvez você deva descansar.
- Vá buscar a chicha! - gesticula Guaypar. - Vá buscar a chicha e não discuta!
Quando Anamaya se levanta, ele tenta agarrar-lhe a coxa. Com um giro que faz
sua túnica esvoaçar, ela lhe escapa, mas ele segurou o tecido e o puxa. Com uma
joelhada seca, Anamaya se desvencilha dele, e ele se deixa cair de lado fazendo
troça:
- Ele lhe agrada, hein, o meu irmão Manco!
- Guaypar...
- Vi como você olhava para os dois! Mas você não passa de uma menina do
mato. E depois, ele é de Cuzco! Você não vai tê-lo nunca...
- Eu sou a esposa do Irmão-Duplo do seu pai, acima de tudo! Não esqueça!
- Eu sei, eu sei! A Coya Camaquen! Pois sim! Villa Oma teve que encontrar um
nome só para você!
Guaypar se deixa cair para trás, o rosto deformado pela paixão.
- Manco é um trapaceiro! - resmunga ele como se se dirigisse ao céu tanto quanto
a Anamaya. - Logo todo mundo vai saber que ele trapaceou... Anamaya se lembra
das palavras rancorosas de Inti Palla contra Manco. E Manco ganhou!
Nessa noite, que deveria ser a noite da força e da alegria, ela se sente triste por
causa das sombras e das ameaças. Sim, há entre os clãs de Cuzco e de Quito ondas
de ódio que tudo devastam. Mas Guaypar se levantou cambaleando e aponta o
indicador para ela:
- E ele trapaceou com a sua ajuda, Coya...
- Minha ajuda?
- Você foi quem o fez ganhar!
- Não seja idiota! Eu simplesmente o salvei de uma serpente...
- InƟ Ɵnha posto uma serpente no caminho dele e você fez com que ela fosse
embora. Isso não é uma trapaça? Você fez com que esse cão sarnento, que nem
mesmo é irmão de Atahualpa como eu, ganhasse! Você nos traiu!
- Eu não queria...
Anamaya se cala. Não adianta nada responder. Guaypar está bêbado demais para
entender por quê. É preciso simplesmente esperar que ele apague e se deixe levar
pela embriaguez.
Mas, cambaleando, Guaypar consegue se pôr de pé. - Venha grunhe ele.
- Venha atrás de mim.
- Aonde?
Guaypar fita Anamaya com uma intensidade nova. Em vez de responder, ele
brinca balançando a cabeça:
- É verdade que você e bem bonita no seu gênero! Você me agrada, menina do
mato. Mais até que qualquer outra menina, mas você é má! Anamaya morde os
lábios e recua. Com brutalidade, Guaypar lhe agarra o braço e a arrasta sem mais
uma palavra. Rude, faz com que ela atravesse o páƟo. Ao ver que ele pretende sair
da cancha, ela resiste. Ele então, com as forças que lhe restam, torce-lhe o braço e a
empurra à frente apesar de seus protestos.
A embriaguez ganhou todas as ruas. Ninguém presta atenção neles. Pelas portas
das canchas, ouvem-se cantos, gritos, às vezes ainda sons de flautá ou um breve
rufar de tambores. As fogueiras projetam sombras loucas. No cruzamento das ruas,
aƟrados no chão, jazem homens inconscientes, cobertos com o próprio vômito. Em
toda parte, o cheiro de chicha empesteia o ar.
De repente, Guaypar pára cambaleando diante de um muro de construção
esmerada e grita:
- Manco! Paullu!
Sua voz rouca ainda ecoa quando ele empurra Anamaya à sua frente, entrando na
cancha dos dois irmãos.
- Guaypar!
Com alívio, Anamaya vê o vulto alto e nobre de Manco se erguer diante do fogo.
Ele não parece bêbado, embora tenha os olhos vermelhos e a respiração ruidosa.
- Largue-a! - ruge ainda Manco apontando para Anamaya. - Largue a Coya, você
não tem nenhum direito de trata-la assim!
Paullu também se levantou. No escuro, ele se aproxima com passos lentos:
- Vá para casa, Guaypar - diz com uma voz calma. - Você deve continuar a prova...
- Irmãos! - zomba Guaypar dando um empurrão tão violento em Anamaya que ela
tropeça e cai de joelhos. - Eis os irmãos de quem você tanto gosta! Uns trapaceiros,
sempre juntos para esconder melhor a covardia deles!
Manco precipitou-se para levantar Anamaya. Paullu brinca:
- Você não vesƟu um calção negro, Guaypar? Ficaria muito bem em você, negro
como a noite que está no seu coração!
Manco, cerrando os lábios enfurecido, puxou a capa para trás e avança, cerrando
o punho.
- Não, Manco... - protesta Anamaya. - Ele não sabe o que está fazendo...
Mas é tarde demais. Com um rugido, Guaypar enfia a mão direita na manga da
túnica. Quando a reƟra, a lâmina em forma de meia-lua de um tumi brilha à luz do
fogo. Guaypar corta o ar à sua frente com dois movimentos secos, depois dirige a
faca de cobre para o rosto de Manco.
- É agora que você vai correr, Manco! E muito! Tanto quanto eu mandar. Paullu se
esgueira para junto de Anamaya, agarra-a pelos ombros e a faz recuar enquanto
Manco dá dois passos para o lado, ágil como uma onça do deserto.
- Olhe! - chia Manco, sem nenhuma entonação na voz. - Veja só quem fala de
covardia! Ele pega o tumi para lutar com quem está desarmado.
- Trapaceiro! Raça de Cuzco! Vocês lá são todos uns trapaceiros! Acham que são
os mais nobres, mas vocês trapaceiam...
Um rugido sai da sombra que os cerca. Agora há gente em volta deles, criados e
também Ɵos, irmãs, Ɵas... E ninguém diz nada. Quem está bêbado pode dizer
loucuras tiradas da embriaguez. Mas Manco é o insultado e cabe a ele responder.
- Está na hora, Guaypar! Há muito tempo que eu esperava esse momento. Venha!
Venha me enfiar essa sua faca na garganta... Venha, se conseguir! Os dois rapazes
estão rodando agora em volta do fogo. Guaypar parece ter ficado um pouco mais
sóbrio. Mas quando quer pular as brasas, Manco se esquiva facilmente. Com um
movimento ágil, ele se inclina para o lado, levantando as duas mãos ao mesmo
tempo: com uma delas, agarra o braço de Guaypar e o imobiliza contra seu ombro;
com a outra, segura a mão que empunha o tumi. Enfurecido, desvencilha-se e gira
nos calcanhares. Seu braço direito descreve um círculo em cima do fogo e a lâmina
da faca desliza na face de Guaypar, que recua com um grito de dor. O sangue jorra
do ferimento. Guaypar passa os dedos no rosto e olha com incredulidade para a mão
ensangüentada.
- Volte para casa, Guaypar - repete Paullu. - Ainda é tempo!
- Não, meu irmão - exulta Manco. - Não dá mais tempo!
Mas como se o sangue o Ɵvesse despertado, Guaypar aƟra longe a faca e pula
em cima de Manco, segurando-o pela cintura. juntos, os dois rolam para o lado do
fogo, espalhando as brasas num jato de fagulhas. Anamaya dá um grito, e Paullu
precisa contê-la antes que ela se precipite para apartar os rapazes.
- Deixe! Deixe-os: isso precisa acontecer!
Manco e Guaypar lutam no chão, tão atracados que o sangue de um suja o outro.
Os arquejos são pontuados de gemidos de dor quando um leva um soco, é esfolado
ou sofre uma torção. Depois, de repente, Anamaya vê Guaypar rolar para o lado, o
unku se rasgando ruidosamente. Na mesma hora, Manco se levanta e pula em cima
dele, caindo de joelhos em sua barriga, os dedos já apertando sua garganta pegajosa
de sangue.
- Foi você que jurou ter a valenƟa do guerreiro? - pergunta Manco com uma voz
apenas perceptível. - Respeitar a honra?
Guaypar não responde. Abre a boca e procura sorver o ar num arquejo. Mais alto,
Manco pergunta ainda:
- jurou ou não jurou, por nosso Pai InƟ e nossa Mãe Lua? Por nossos ancestrais e
pelas almas de todos os únicos Senhores?
Anamaya sente que Manco já não controla a raiva ela repele a mão de Paullu e se
aproxima:
- Manco, por favor, deixe-o... Mas Manco já não ouve.
- Foi você que insultou a virgem que vela aqui sobre meu pai?
Suas mãos largam a garganta de Guaypar, seus punhos se cerram e golpeiam o
rosto do irmão odiado com uma raiva de guerreiro. O lamento que sobe da garganta
de Guaypar não o detém mais que os gritos de Anamaya. Ao redor, o círculo dos
pais se fechou mas ninguém intervém. Anamaya quer agarrar os braços de Manco
quando vê, nos olhos negros do jovem inca, as chamas do fogo dançarem. E é como
se todo o ódio que Guaypar carregasse ali se consumisse...
- Basta!
A ordem soou seca na noite. Anamaya ergue os olhos ao mesmo tempo que
Manco levanta o braço. Diante do fogo, um homem com vestes de sacerdote estende
a mão e ordena ainda:
- Basta, Manco! Não o mate.
Anamaya reconhece um dos Ɵos de Manco. O homem olha rapidamente para ela,
com uma expressão carregada de desconfiança, e acrescenta:
- A lição está dada e ninguém vai esquecer. Não se insultam impunemente os clãs
de Cuzco.
Manco se afasta de Guaypar e se levanta lentamente. Anamaya encontra o olhar
de Paullu, que ficou calado, imóvel, durante todo o combate. Há tristeza em seus
olhos enquanto ele observa o irmão recobrar o fôlego.
Cuspindo sangue, resfolegando, Guaypar rola sobre si mesmo para se pôr de
joelhos penosamente. Consegue se levantar, procura a ajuda de Anamaya, que não
lhe estende a mão. Num úlƟmo esforço, ele se levanta, as mãos espalmadas na
barriga, e encontra força suficiente para dizer:
- Você está amaldiçoado, Manco. Vai arder antes de chegar ao Outro Mundo! A
sua alma nunca será livre!
Manco limpa o sangue dos dedos e replica:
- Amaldiçoado está quem fala em amaldiçoar.
Enquanto Guaypar deixa a cancha cambaleando, Anamaya hesita. Por um instante,
seu olhar fica colado ao de Manco.
- Preciso segui-lo - diz ela afinal. - Preciso velar sobre ele esta noite, mesmo que
ele se engane a seu respeito.
Manco lança um olhar a Paullu antes de responder, a voz estranhamente vibrante
de doçura após tanta violência:
- Eu sei, irmã dos olhos azuis...
- Cuide-se, Manco, e não tenha medo de serpentes.
- Infelizmente você não estará sempre à beira do caminho para falar com elas e
desviálas de mim! Na fumaça que escurece a noite, o vulto de Anamaya já
desaparece.
Capítulo 10
Tumebamba, dezembro de 1528
- Acorde, Anamaya.
Ela tem as pálpebras pesadas. Gostaria de ficar deitada na esteira. Puxa a manta
em que está enrolada. Villa Oma olha para ela com dureza. Ele entrou no quarto sem
fazer o menor barulho, os pés calçados com sandálias de palha deslizando em
silêncio no chão de pedra. Como acontece freqüentemente, com aquela silhueta alta
e aquela boca de cantos esverdeados, sua aparição súbita parece carregada de
ameaças.
- Acorde, depressa!
- O que está acontecendo?
- Não discuta. Levante-se e venha atrás de mim!
Anamaya tenta pôr a cabeça no lugar. Há apenas dois dias, a iniciação dos
rapazes terminou. Há apenas duas noites, Manco e Guaypar lutavam e se
insultavam. Apenas dois dias de paz e um novo drama já se anuncia!
Ela se levanta, olha com pena para aquela sua cama quente e aconchegante. A
claridade está começando a entrar pelo cortinado que dá para o pátio.
- O que fiz de mal?
- Não sei o que você fez. Mas a sua presença em Tumebamba talvez não seja uma
coisa boa!
- Eu não quis a luta entre Guaypar e Manco...
- Quem está lhe falando dessas criancices?
O tom de Villa Oma desperta definiƟvamente Anamaya e a faz estremecer. De
um nicho ao lado da janela, o disco de prata de Mama Quilla, Mãe Lua, brilha
docemente no escuro, como se chorasse. Os dedos secos de Villa Oma se crispam
sobre o corƟnado. Sua voz surda ecoa como um trovão:
- O Corpo seco do único Senhor não está mais no templo.
Anamaya abre a boca sem poder respirar, como se Ɵvesse levado um soco no
estômago. Com uma voz apenas audível, suspira:
- O que está dizendo?
- Você me ouviu. A múmia de Huayna Capac desapareceu.
- Mas como? Como e possível?
Villa Oma ergue os olhos em sinal de impotência. Ele parece mais alto e mais
magro ainda no escuro. A raiva e a angústia abriram sulcos profundos em seu rosto.
- Ao nascer do sol, fui com os sacerdotes à sala do templo de InƟ - prossegue
ele. - O nicho estava vazio. A múmia não está mais no pedestal.
- Mas quem... quem ousou fazer isso?
- Quem? Como?... Só uma coisa e certa: você, menina, é que será acusada deste
crime!
- Eu? Eu! Por quê? Você não pode me acusar de uma maldade dessas, Villa Oma,
você sabe!...
- Eu não a estou acusando, Anamaya! - diz o Sábio com um suspiro de cansaço. -
Outros, infelizmente, ficarão bem felizes de se encarregar disso! Você é a Coya
Camaquen. Seu papel não é proteger a múmia do Irmão Duplo? Não foi isso que
Huayna Capac mandou você fazer na noite da passagem? Dar-lhe apoio neste mundo
aqui enquanto ele ia para o outro?
As lágrimas turvam a vista de Anamaya. Mas a injusƟça é tão violenta que ela
logo as seca com as costas da mão. Ela já não é mais a menina apavorada que era
levada ao Inca. A ira vibra em sua voz:
- E por que eu faria uma coisa dessas?
Com um gesto, Villa Oma repele a pergunta:
- Pouco importam os seus moƟvos! Você é a protegida de Atahualpa. Se
necessário, eles inventarão uma mentira!
- Não entendo...
- É mesmo? Você ainda não entendeu que a gente de Cuzco nos odeia e que tudo é
motivo para nos afastar...
Villa Oma se interrompe. Gritos ressoam no páƟo. Deformado, berrado a plenos
pulmões, o nome de Anamaya vibra no ar como um insulto.
- Bem, eles não perderam tempo - diz calmamente Villa Oma. - Prepare-se, minha
filha. É a eles que você tem que convencer de sua inocência.
***
- É ela!
- Ela que fez nosso Senhor Huayna Capac desaparecer!
- Sacrilégio, sacrilégio! O Mundo vai perecer! Inti vai se vingar de nós!
- Essa menina de olhos azuis é maléfica! InƟ quer que ela vire cinza, Quilla quer
que ela seja jogada no rio!
O páƟo do palácio de Huayna Capac é imenso. No entanto, está tão repleto
agora que os recém chegados, irritados, gesticulando, permanecem diante da porta
encimada por uma verga representando uma serpente dupla. Todos são nobres de
Cuzco, todos pertencem ao clã de Huascar. Alguns vociferam e brandem suas maças
morơferas de pedras negras finamente polidas. Outros agitam lanças, alguns giram
fundas ou os machados de obsidiaria...
No centro do páƟo, os principais chefes de linhagem formaram um círculo. Eles
discutem, murmuram e se encaram; embora as palavras ainda sejam medidas, os
olhares não enganam. Todos estão vidrados em Ánamaya, ladeada por Atahualpa e
Villa Oma, que permanecem impassíveis e calados.
- Os sinais são nefastos desde que essa menina está entre nós! - grita um velho. -
Ela é sacrílega!
- Você a protege para nos atrapalhar, Atahualpa! - clama um guerreiro ricamente
vestido e apontando sua lança de plumas de seis cores para Anamaya.
Um rugido de aprovação se eleva em volta dele. O homem tem a testa cingida por
uma faixa de general, seu unku é tecido de vicunha e decorado com todos os
quadrados e triângulos dos mais altos clãs. Ele sorri, com um ríctus de arrogância na
boca:
Adivinhamos a sua manobra! Você quer impedir que a múmia de Huayna Capac
chegue ao Templo único de Cuzco! Tem medo que ela se instale ao lado dos
ancestrais da Origem do Mundo, pois então, Huascar, nosso único Senhor, terá o
poder de seu pai para reinar! Eis por que você mandou essa menina dar sumiço na
múmia...
- Vamos queimar os pés dela, e ela vai dizer onde a escondeu!
Numa reentrância afastada do páƟo, Anamaya percebe o perfil aquilino de Manco
e o rosto nobre de Paullu. Ambos mantêm os olhos baixos, cheios de
constrangimento. Também pertencem ao clã Huascar. Quisessem eles ajudá-la,
seriam impotentes...
Em frente, onde estão reunidos os parentes de Atahualpa e os homens de Quito,
ela vê Guaypar. O rosto dele está marcado, a face esquerda coberta por um
emplastro de ervas seguro por uma gaze fina. Mas os lábios intumescidos estão
repuxados por um sorriso crispado.
De repente, sobrepondo-se à algazarra, a voz forte de Atahualpa vibra como a
corda de um arco:
- Vocês ainda têm muitas palavras inúteis para pronunciar?
Ele não deixa transparecer minimamente a cólera que faz as pontas de seus dedos
tremerem. Os gritos cessam, de repente. O braço estendido, a mão espalmada para o
chão, ele aponta para a gente de Cuzco:
- Nenhum de vocês acredita realmente que a Coya Camaquen, aquela que meu pai
escolheu para acompanhar seu Irmão-Duplo, possa ser a autora desse rapto
sacrílego. Ninguém pode acreditar que eu me oponha à vontade de Inti e à volta de
meu pai a Cuzco.
Virando-se para a direita, Atahualpa designa um velho com a testa cingida com o
disco de ouro dos Grandes Poderosos:
- Colla Topac estava presente, com os outros Grandes Poderosos, quando o único
Senhor Huayna Capac escolheu a Coya Camaquen antes de parƟr para o Outro
Mundo. Ele é que foi encarregado por meu pai de fazer respeitar suas vontades de
acordo com o Costume, antes que meu irmão Huascar se cingisse com a borla. Ele é
que deve levar meu pai a Cuzco. Ele é que o fará entrar no templo de Coricancha.
- É verdade - exclama o velho. - Eu sou o Legatário e nenhum de nós, eu sou
testemunha disso, tem desejo mais caro do que ver nosso único Senhor voltar à sua
cidade querida! E não acho que a Coya Camaquen pudesse fazer isso de que vocês
a acusam: o próprio Filho do Sol depositou sua confiança nela.
- Os que gritam mais alto entre vocês - prossegue Atahualpa - deveriam ser mais
comedidos... Quem sabe se esses mesmos não são os blasfemadores?
Um curto silêncio parece gelar o ar da cancha.
Depois irrompe uma voz estridente:
- Você está nos acusando? Está nos ameaçando, Atahualpa? A nós, o clã do seu
irmão Huascar! O filho mais amado do seu pai! Como ousa? Dessa vez, a raiva de
Atahualpa explode:
- Eu não ouso mais que vocês, que insultam aquela que meu pai escolheu e
cospem nela!
Não podendo mais agüentar, Anamaya se adianta para o centro do círculo.
Levanta a mão aberta e diz com voz forte:
- Não briguem por mim!
Todos os olhares voltam-se para ela.
- Conduzam-me ao templo, para perto do meu esposo o Irmão-Duplo. Ele me dirá
onde está a Múmia.
Villa Oma e Atahualpa têm um mesmo olhar estupefato.
- Sabe o que está dizendo? - murmura o Sábio de lábios verdes. Anamaya faz que
sim com a cabeça. Na verdade, as palavras que ela acaba de pronunciar
surpreendem-na tanto quanto ao Sábio! Não foi a sua vontade que as formou em sua
boca. Elas saíram de seus lábios por si mesmas, cheias de segurança. Agora, seu
coração se aperta, o suor da angúsƟa lhe molha as palmas das mãos. Contudo, o
murmúrio que percorre a mulƟdão contém a mesma dose de surpresa que de
respeito. Lá embaixo, Manco e Paullu levantaram a cabeça e encaram-na, os olhos
brilhantes. Guaypar não está mais sorrindo. Um grito, de novo, rasga o silêncio:
- Atahualpa! Se essa menina não encontrar o Corpo seco de nosso Senhor Huayna
Capac, vamos jogar as entranhas dela no lixo!
Um rugido de aprovação percorre a multidão.
Sob o olhar preocupado de Atahualpa, a mão de Villa Oma se fecha com firmeza
em volta do braço fino de Anamaya. Ela sente o orgulho que vibra em sua voz
quando se volta para a multidão e diz:
- Ameacem! Ameacem! Mas vejam: ela não tem medo de vocês!
***
O caminho entre o palácio e o templo não é muito longo. O calor é opressivo.
Anamaya sente-o pesar na sua nuca e fazê-la respirar mais devagar. A cidade inteira
está tomada por um humor doenƟo. Grupos de homens se comprimem nas ruelas
estreitas, a raiva e o medo marcam seus rostos. Alguns resmungam insultos quando
ela passa por eles. Mulheres aparecem à porta das canchas e seguem-na com o olhar,
fazendo caretas.
Ela caminha emperƟgada, olhos fixos na capa esvoaçando nos ombros altos de
Atahualpa. Está aliviada de senƟr a seu lado, caminhando no mesmo passo rápido,
Villa Oma e os soldados da escolta.
Eles entram no templo deserto, a sala dos nove nichos, sem outra cobertura senão
a imensidão do céu que a domina.
Anamaya percebe o murmúrio vivo da água nas canalizações das fontes. Em cima
dos muros de pedras esplendidamente encaixadas, o sol poente traça sombras suƟs e
desenha animais e deuses. Nichos se alinham ao longo da parede, encimados por um
friso de ouro martelado de losangos, trapézios, formas oblongas como ovos de
pássaro.
No nicho central, encontra-se o Irmão Duplo em ouro. Mas a seu lado, a base
onde a múmia se manƟnha a escura dos mundo daqui e de baixo está vazia.
Anamaya mal ousa olhar para ela.
Villa Oma rodeia-a como se pudesse enxergar pistas. Finalmente, diz a Atahualpa:
- Tenho certeza que de que os homems do seu irmão é que cometeram essa
maldade imbecil!
- È provavel. Mas eles perderam a razão. Numca se viu tamanho insulto feito ao
nosso pai.
- É o sinal de que Huascar e a gente dele estão minados pelo medo.
- Medo? E por quê? Eles sabem que meu respeito pelas palavras de meu pai é
absoluto! Sabem que não quero colocar o llautu sagrado em minha fronte. Não quero
ser o único senhor. Você sabe, Villa Oma! Eles todos sabem: os sinais são contra
mim...
- Nem todos... Você tenta demais se convencer disso! E Huascar sente. Ele é como
um bicho sente mais do que pensa. Mas, á maneira dele, ele vê mais longe que você:
tem medo das forças que cercam você. Tem medo dela...
Villa Oma mostra Anamaya e acrescenta:
- Eles receiam que ela se lembre das palavras do Único Senhor na noite da
passagem dele. Receiam que o irmão duplo lhe dite a verdadeira vontade de seu pai!
Atahualpa contempla por um instante o rosto de ouro, calmo mas impenetrável,
do Irmão - Duplo. Esboça um gesto como se quisesse tocá-lo, mas se emenda, virá-
se para Anamaya e pergunta:
- E você, menina, acha, como o sábio, que eu não sei escutar a vontade de mau pai?
- Acho que você não sabe que é meu poderoso senhor!
Mal essas palavras saem de sua boca, Anamaya abafa um grito e tapa a boca com
as mãos.
- Perdão! Perdão... Essas palavras saíram de mim sem que eu as pensasse!
- Ouça-a - murmura Villa Oma. - ouça-a, ela fala com a vontade de Huayna Capac,
eu sinto!
Os olhos um tanto vermelho de Atahualpa vão do sábio á menina. Mas o olhar de
Anamaya é atraido pelo nicho do Irmão-Duplo. Em seu rosto esculpido, um raio de
sol veio pousar com uma precisão de uma ponta de lança...
- Encontre a múmia Anamaya - murmura Atahualpa. - Encontr-a!
Na hora em que ele se vira, o sol desliza por seu capacete e pelos discos de suas
orelhas. Anamaya sente os reflexos de ouro penetrarem nela e vibrarem em seu peito
como se formassem nela outras palavras, ainda desconhecidas e impossíveis de
pronunciar.
Capítulo 11
Tumebamba, fevereiro de 1529
***
Quando ela surge, esbaforida, perto da parede de Illapa, Villa Oma está ali à sua
espera, um vulto branco na noite. Ela pára diante dele, sorrindo.
- Ele falou com você, não foi?
Anamaya faz que sim com a cabeça sem saber o quanto seus olhos brilham na noite.
- E você sabe onde ele está? - Venha.
Agora cabe a ela conduzir o Sábio. Quase correndo, eles voltam para a cidade,
passando
ao longo dos muros, esgueirando-se pelas ruelas e diante das portas das canchas
adormecidas.
Quando eles se aproximam do Templo, dois jovens sacerdotes de traços ainda
adolescentes precipitam-se ao seu encontro. Os sacerdotes têm a cabeleira
desgrenhada e parecem tomados por uma grande agitação.
- Sábio Villa Oma! Sábio Villa Oma!
O sábio lhes impõe calma com um gesto seco.
- Sábio Villa Oma! A Múmia voltou!
- Eu sei - diz o Sábio olhando para Anamaya.
Na sala dos nove nichos, o Corpo seco do único Senhor Huayna Capac está
sentado em seu pedestal.Mama Quilla ilumina sua máscara de ouro, a finíssima
cobertura de vicunha e de pêlos de morcego que o recobre: Ele está ali, como se dali
nunca Ɵvesse sido Ɵrado. Seu rosto de metal luminoso está virado para a estátua do
Irmão-Duplo. Villa Oma poderia jurar que nele se desenha uma espécie de
sorriso.Ele, o velho Sábio astucioso e sólido, estremece enquanto Anamaya
murmura:
- Ele me garantiu que nunca se afastou de mim...
Villa Oma levanta os braços numa prece intensa e olhar esgotado pousa com
ternura em Anamaya.
- Vamos ter que tomar conta de você, menina. O Único Senhor Huayna Capac vem
visitála quando quer. Você viaja entre os mortos, vai ao Mundo de Baixo e volta...
Sua vida ficou preciosa demais para nós todos!
Em sua voz orgulhosa, Anamaya percebe um estremecimento de medo.
- Você já não quer me dar para o puma?
- Quero. Mais do que nunca, pois agora sei que o puma a protege. Por um instante,
Anamaya se lembra dos dois olhos amarelos do puma no escuro e do abandono que
a invadiu, mais forte que seu medo, mais forte que a morte.
Nela, ecoam sem parar as palavras do único Senhor, seu amo: "Permaneça em
meu hálito e confie no puma..."
SEGUNDA PARTE
Capítulo 12
Sevilha, Espanha, fevereiro de 1529
***
Naquela noite, durante mais de uma hora, os nervos à flor da pele, uma náusea na
garganta, Gabriel anda de um lado para o outro no cárcere estreito. Quatro paredes
de pedra encardida, tendo como únicas aberturas uma porta de madeira e uma fenda
de venƟlação onde os ratos se esgueiram. Uma lâmpada de sebo pende em cima de
uma Ɵna fétida que serve de latrina. Há enxergas amontoadas ao longo das paredes.
Após ter comparƟlhado esse antro sórdido com dois mercadores de tecido de
Cádiz, depois com um padeiro, há dois meses, ele tem como companheiro um monge
estranho de nome Bartolomé.
Embora ainda muito jovem, ele é calvo. Na medida em que se pode vêlo na eterna
penumbra da prisão, seu olhar é tão pálido como uma bruma matinal, ora cinza, ora
azul.
O dedo médio e o indicador de sua mão direita são curiosamente colados um ao
outro pelo que parece ser um acidente de nascença. Uma mesma carne os une e os
recobre como se formassem, num surpreendente gesto de bênção, um dedo só.
É um homem de poucas palavras. Jamais se queixa, ou confessa seu medo.
Muitas vezes já vieram buscá-lo para interrogatórios, e, uma noite, os guardas
Ɵveram de levá-lo até sua enxerga. Ele gemeu durante a noite mas, de manhã, não
respondeu a nenhuma das perguntas de Gabriel. Ele nem sabe por que foi preso. No
entanto, parece ser menos um desejo de dissimulação que o confina ao silêncio do
que uma estranha sabedoria.
A menos que este monge seja um óƟmo ator e um dos espiões que a Santa
Inquisição espalha por suas masmorras para recolher as indiscrições dos
prisioneiros. Do momento em que se desce embaixo da terra, tudo é possível!
No entanto, é com uma voz áspera que frei Bartolomé ordena de repente: - Pare de
ficar andando, don Gabriel! Deite-se e acalme-se. O senhor se esgota inutilmente.
Gabriel estremece e obedece. Encolhe-se em sua enxerga e fica imóvel um
instante. Depois, adivinhando o olhar claro de frei Bartolomé sempre pousado nele,
murmura:
- Estou com medo! Amanhã eles vão me dar os instrumentos. Não posso fazer
nada, estou com medo.
O monge balança a cabeça e fica calado. Gabriel lhe é grato por isso. Palavras de
consolo só lhe excitariam a raiva e a vergonha.
Por todos os santos, por que ele não destruiu o bilhete de doña Francesca? No
próprio dia que o recebeu, adivinhou toda a sua imprudência!
De repente, apesar de sua desconfiança, a vontade de falar lhe devasta o peito. O
que importa se o monge foi colocado junto dele por seus carrascos! Ele precisa falar.
Dizer a verdade agora, como se pudesse livrar-se dela e es quecê-la! Esquecer o
suficiente para ter coragem de se calar, amanhã, quando os ferros dilacerarem seus
membros...
- Frei Bartolomé, ouça-me! Eles estão completamente enganados. Imaginam o que
não aconteceu. Eram só palavras, entende? Amor, êxtase, divina paixão, liberdade,
suavidade, gozo, possessão... Palavras! Só palavras... Mas eles nunca acreditarão
em mim.
- Nunca, com efeito.
- Eu poderia no entanto explicar a eles que...
- Não explique nada - diz surdamente o monge tratando-o pela primeira vez com
mais intimidade. - Não diga nada! Urre de dor se quiser, mas fique calado.
Gabriel estremece. Ouve os seus próprios dentes batendo. Endireita-se e senta-se
para melhor se controlar.
- Ela, sei que já torturaram. Ela teve que confessar sabe Deus o quê... Negação do
papa, apostasia, heresias luteranas! Que nos entregamos a bacanais...
- Não. Ela não disse nada, senão eles não precisariam de você.
- Acha? Eles querem me ouvir dizer que éramos amantes... Que bobagem!
- Vocês não eram?
- Palavras, estou lhe dizendo.
- Infelizmente, meu amigo! As palavras lhes bastam amplamente... Um silêncio
percorrido por um ruído de fricção indisƟnto acompanha um instante os terríveis
pensamentos que os atravessam.
- Amanhã - prossegue Gabriel -, quando esmagarem meus polegares, quando
queimarem meus pés, furarem minhas mãos...
- Não se esqueça do esquartejamento e do piche nas feridas!
Um brilho no olho do monge faz Gabriel sorrir. Por uma fração de segundo ele
esquece o terror que o sufoca. Frei Bartolomé lhe devolve o sorriso e pousa a mão
fria em seu pulso molhado de suor:
- Não deixe sua imaginação correr, don Gabriel. Sempre haverá tempo para temer
os instrumentos amanhã.
- Você conhece isso, não é?
- Conheço.
- E...?
A mão de frei Bartolomé larga o pulso de Gabriel. Seu olhar vai se perder nas
paredes da masmorra enquanto as veias de seu pescoço se dilatam.
Maquinalmente, ele massageia os dedos doentes.
- Você não pode saber nada sobre você enquanto eles não vêm com os ferros ou o
fogo - murmura ele afinal. - Sim, o conhecimento que lhe chega então é fulgurante!
- Você falou?
Bartolomé não se mexe. Um sorriso distante ilumina seu rosto juvenil e tão sábio.
Ele levanta os dois dedos juntos para Gabriel.
- Guarde silêncio, meu irmão. E agora, descanse.
***
Ele sonha e a porta de sua cela transforma-se em persiana. Não é nem liberdade
nem luz que passa o umbral da masmorra, mas sim uma horda pegajosa de serpentes.
Um verdadeiro rio de répteis, que o engole, envolve sua garganta, puxa seus pés!...
Ele desperta aos urros. já não está sonhando e os guardas que Ɵram os ferros de
seus tornozelos são bem reais.
- Ei! Você precisa acordar! - rosna um aguazil de cabeça descoberta. Gabriel olha
seus ferros caírem e pergunta ingenuamente:
- Está na hora?
- Parece. Ande, levante!
- Aonde está me levando?
- Não sabe?
No escuro, o olhar intenso de Bartolomé fixa-o. Mas nem um nem outro tem
tempo de fazer um gesto, ou dizer uma palavra. Ele é empurrado na escada, depois
nos corredores, e em alguns minutos, sem entender, vê-se no guichê da prisão.
Ali, os aguazis de guarda ignoram-no como se ele não exisƟsse! Um guarda
escuro destranca as fechaduras, a porƟnhola de ferro se abre e, do outro lado, na
praça, a aurora é pálida.
E a situação, ridícula! Tornam a empurrá-lo. Ele tropeça na soleira, machuca um
dedo do pé numa pedra do calçamento. Vira-se a tempo de ver a porta se fechar
atrás dele. Ei-lo sozinho do lado de fora, na praça del Rosario. As pernas e os pulsos
livres. O céu vasto e puro no alto!
Ele murmura:
- Quer dizer?...
Não acredita. Não quer nem pronunciar a palavra! Agora também desconfia das
palavras!
Mas um cão passa trotando e mija tranqüilamente na porta da prisão. Depois, o
animal atravessa a praça até a Cuesta del Rosario. Acompanhando-o com o olhar,
Gabriel ali vê uma carruagem atrelada a uma parelha. Um coche negro e prateado,
todo luzidio, tendo na porta um escudo que ele logo reconhece.
Ele fica boquiaberto.
A sege do marquês de Talavera... A sege de seu pai!
A porta se entreabre. Uma mão enluvada acena em sua direção. No banco do
cocheiro, um lacaio o observa.
Confuso, Gabriel atravessa a praça. Lentamente, o frio do calçamento enregela
seus pés descalços. Quando ele chega suficientemente perto do coche, uma voz bem
conhecida ordena:
- Então suba, bugre idiota! Quer que a cidade inteira admire o estado em que você
se encontra? Ele obedece, como sempre fez. Mal se senta, a viatura se põe em
marcha. O luxo da carruagem e o suntuoso gibão de Segóvia de seu pai de repente
fazem-no tomar cotesciência de seu estado. Seus calções, antes pretos, estão
cinzentos de tão empoeirados e sua camisa aparece através de um enorme rasgo em
sua casaca. Suas meias são um buraco só até os joelhos e há muito suas botas foram
confiscadas pelos guardas da prisão com a desculpa de que os ferros arranhariam o
couro.
O marquês seguiu o mesmo pensamento. Ele desvia os olhinhos negros com um
esgar de desgosto enquanto aponta com o dedo enluvado para um pacote no assento:
- Nossa, como você fede!... Aí há roupas limpas. Vai vesƟ-las daqui a pouco...
Ah! Que fedor!
Gabriel esboça uma reverência divertida:
- Estou desolado, senhor.
- Com toda a razão! Sua liberação me custou três mil e duzentos ducados! O
rendimento anual das minhas terras de Almeria. Tudo isso por suas elucubrações
com essa desavergonhada!
- Senhor, eu...
Num solavanco, o chapéu balança, mas as mãos do marquês estalam com firmeza.
- Não, não! Nem uma palavra! Não quero ouvir nem uma palavra sua! Está
acabado. Até agora só tomei conta do senhor pela honra do meu nome, paguei o
colégio pela honra do meu nome. E desde o início o senhor não parou de arrastar
esse nome junto aos loucos e os heréƟcos! Santo Deus! O marquês de Talavera
suspeito de apostasia porque seu bastardo arrasta os colhões junto aos luteranos!...
Três mil e duzentos ducados! Genuflexões, súplicas, promessas humilhantes, dois
meses de angúsƟa e de idas e vindas na penumbra para Ɵrar meu nome do Santo
Oficio, eis o que o senhor me custou! Mas isso acabou e acabou bem. PromeƟ à
Sua Excelência o Inquisidor Geral que o senhor iria desaparecer. Apago-o de minha
existência com a mesma simplicidade com que nela o fiz entrar...
O marquês Ɵra do bolso do gibão uma carta com um lacre vermelho que estende
à frente como um rato morto.
- Eis os papéis de um emprego que lhe espera em Nápoles com os frades
dominicanos. Uma derradeira bondade cristã me impele a lhe oferecer um futuro!
Anote bem que, daqui para a frente, o senhor está terminante mente proibido de dizer
que me conhece!
Um advogado riscou a sua existência de todos os meus registros...
- Repudiado, não é? - resmunga Gabriel. - Como uma puta que se rejeita...
Ele está ofegante, a voz esganiçada de fúria. Grita para que freiem os cavalos e,
quando a carruagem pára, pega a carta ainda na mão do pai. Rasgaa e joga os
pedaços nos assentos ao mesmo tempo em que atira as palavras como pedras:
- O senhor jamais me conheceu senão como um constrangimento!... Sem nunca ter
Ɵdo qualquer coisa sua, eu nada quero do senhor. Rejeitado pelo senhor, eu o
rejeito. Desprezado, eu o desprezo e o odeio. Que eu não use mais o seu nome?
Com o maior prazer: um dia, o senhor ouvirá o meu.
A boca do marquês abre e fecha como a de um peixe fora d'água. Gabriel salta do
coche e bate a porta. Segurando as rédeas, o cocheiro hesita. Uma bengalada ecoa
no vidro. A viatura se põe em marcha, a porta torna a ser aberta e a trouxa de roupas
cai na rua.
Gabriel zomba mas está gelado como um cadáver. Seu coração palpita. Quando o
barulho da carruagem se afasta, ele tenta engolir o choro. Dá três passos para se
apoiar numa parede, mas os soluços secos explodem aos borbotões em sua garganta.
Ele começa a tremer todo, e as pernas lhe faltam. Cai de joelhos, como um
homem morrendo, indiferente ao olhar dos passantes matinais.
Capítulo 14
Tumebamba, fevereiro de 1529
***
- Uma bola de fogo? Uma bola de fogo do tamanho de uma estrela? Colla Topac, o
velho Legatário, repete as frases de Anamaya como se não conseguisse acreditar
nela.
Villa Oma já havia pedido sua ajuda e suas palavras quando o Corpo seco do
único Senhor desapareceu, pois é ele quem vai levar a múmia a Cuzco, quem detém
a Lei, até que um Filho do Sol seja reconhecido por todos.
Na luz morƟça de uma lamparina a óleo, ele parece tão velho que é diİcil
acreditar que esteja vivo. Suas costas são redondas como uma pedra, seu rosto,
magro e sulcado de rugas como o de uma múmia. Mas seus olhos têm uma
intensidade extraordinária, como se fossem a única coisa viva em seu rosto.
Por um instante, ele perscruta o olhar azul de Anamaya à luz das tochas. Depois,
com uma agilidade inesperada, vira as costas e se volta para Villa Oma:
- Tem certeza que Atahualpa está bem de saúde? Villa Oma faz que sim:
- Eu me cerƟfiquei disso, Legatário. Agora, precisamente, ele está dormindo com
as concubinas. Parece que fez honra a duas antes de adormecer.
- Então o que acha do que a Coya Camaquen disse? Bom sinal ou mau sinal?
- Não sei, Legatário! E é exatamente por isso que eu gostaria que você ouvisse
esse relato. Repare que a bola de fogo vem do sudeste. Da direção de Cuzco.
- Mas também do lago de todos os nascimentos - corta o Legatário. - Do Titicaca!
- Então - aprova Villa Oma - isso pode significar duas coisas. O fogo de Illapa
Raio destruirá em breve o Senhor Atahualpa. Ou o fogo de InƟ o escolherá como
sucessor de Huayna Capac!
Essas palavras são tão carregadas de significado que os dois homens se calam
para dar ao silêncio tempo para apagá-las. Finalmente, o Legatário segura o braço de
Anamaya e o aperta suavemente. Na brasa de seu olhar, Anamaya adivinha tanto
atenção quanto ternura:
- Coya Camaquen, você é mocíssima e eu sou velhíssimo. Mas tanto você quanto
eu sabemos a importância do que você viu, não é? Impressionada demais para
responder, Anamaya apenas balança a cabeça.
- Eu lhe pergunto outra vez: a bola de fogo chegou até o coração de Atahualpa?
- Não, Poderoso Senhor. Ela se apagou na testa dele.
- E...?
- Não sei - balbucia Anamaya. - Fiquei com medo.
- Medo?
- Achei que o Senhor Atahualpa fosse morrer.
- E não acha mais?
Anamaya está assustada com as palavras que poderia dizer. Abaixa a cabeça,
boca fechada.
- Ela vê, Legatário - intervém Villa Oma. - Mas ainda é uma criança. Não pode
entender o que vê. Não importa, nós temos que tomar uma decisão. E sou eu que lhe
faço a pergunta com todo o devido respeito. Se o sinal é nefasto, devemos
interromper o caminho do Corpo seco de Huayna Capac? Ele deve permanecer
aqui?...
- Certamente não! - exclama o velho. - A Lei manda que o Corpo seco volte a
Cuzco. Ninguém pode infringir a Lei e velarei para que isso não aconteça. Do
contrário, a ira de nosso Pai Sol cairá sobre nós!
- Talvez ela já esteja nos aƟngindo, Legatário! - insiste Villa Oma. - Talvez isso
signifique que Cuzco nas mãos de Huascar o Louco é como uma bola de fogo
prestes a nos exterminar! Talvez seja isso o que a Coya Camaquen viu: Quilla nos
avisa e quer nos salvar de uma viagem sem volta.
- Talvez seja isso ou o contrário! - protesta com voz firme o Legatário. - Mas só
existe uma Lei, Sábio Villa Oma, e você a conhece. Eu iria a Cuzco com o Corpo
seco de nosso único Senhor, mesmo se Ɵvessem que me apedrejar. E você vai me
acompanhar, você e a Coya Camaquen, pois o dever de vocês é esse.
O Sábio passa a mão cansada no rosto encovado pelo cansaço. Seus dedos tremem.
Anamaya sabe em que ele está pensando. Vinte vezes nos úlƟmos dias, na
esperança que Atahualpa recebesse um sinal claro de seu pai Huayna Capac, os
adivinhos se reuniram para decifrar sua vontade nas brasas da coca, na contagem das
estrelas ou nas vísceras dos lhamas!
E, todas as vezes, o que eles decifram não fala de outra coisa senão da agitação
iminente do Império das Quatro Direções. E, todas as vezes, nada indica aquele que
será o próximo Filho do Sol.
- Prometa uma coisa, Legatário - pede de repente Villa Oma falando tão baixo que
é preciso fazer esforço para escutá-lo.
- Diga.
- Atahualpa não vai acompanhar o Corpo seco a Cuzco. Ele não deve se encontrar
cara a cara com Huascar, senão, você sabe, como eu, haverá guerra. Ele se despedirá
do pai aqui, em Tumebamba. E, sobretudo, não vai saber de nada que a Coya
Camaquen viu. Para que lhe inspirar medo quando os homens de Cuzco já estão
fazendo isso? Nós vamos lhe pedir apenas que ele fique no Norte para manter a
ordem do Império...
O velho Legatário balança a cabeça com cansaço enquanto Villa Oma pousa
aquela mão descarnada no ombro de Anamaya e acrescenta:
- E você, Coya Camaquen, não vai dizer nada a ninguém...
***
Anamaya não tem tempo de procurar o sono. Antes dos primeiros alvores da
aurora, como se habitado por um pressenƟmento, Atahualpa mandou chamá-la a seu
páƟo. Ele a convida a comparƟlhar de seu pão e das frutas da floresta quente
trazidas diariamente para ele.
Esforçando-se ao máximo para esquecer o medo que a atormenta, ela se prosterna
diante dele sorrindo.
Na verdade, seu coração está dividido entre o alívio de ver o Poderoso Atahualpa
vivo e forte como sempre, e a lembrança lancinante e incompreensível da bola de
fogo.
Quando terminam de tomar uma taça de suco de alfarrobeira, Atahualpa pergunta:
- Meu pai não lhe falou?
Anamaya sente o frio da mentira na base da espinha.
- Não, Poderoso Senhor - responde com um fio de voz.
Atahualpa contempla-a um instante, lança um olhar para o céu que empalidece, e
suspira.
- O Legatário não quer que eu acompanhe vocês até Cuzco. Suponho que tenha
razão. Os oráculos são confusos demais e os clãs de Cuzco, loucos demais. Vou
senƟr sua falta, menina Anamaya. Gosto que você esteja perto de mim.
Emocionada com o tom de Atahualpa, Anamaya abaixa mais a cabeça para que
ele não veja o seu olhar brilhante.
- O silêncio das montanhas é grande e bonito - prossegue Atahualpa suavemente. -
O silêncio de meu pai Huayna Capac é pesado, o silêncio de Inti é terrível.
- Ele logo vai falar, Senhor - atreve-se Anamaya.
- Acha mesmo, Coya Camaquen?
A voz de Atahualpa de repente está tão esperançosa que Anamaya morde os
lábios para conter as palavras.Atahualpa dá uma risadinha rouca, tão rara que ela
levanta a cabeça. Seus olhares se encontram. O de Atahualpa está cheio de
ansiedade, mas também de afeição. Isso lhe dá uma expressão estranha, menos forte,
menos pesada, talvez um tanto envelhecida. Anamaya contrai os lábios mas não
consegue conter as lágrimas que saltam de seus olhos. O sorriso de Atahualpa se
amplia. Na palidez do primeiro dia, o branco de seus olhos está menos vermelho,
mas o cansaço das noites inchou suas pálpebras.
- Não - diz ele baixinho. - Não, você não tem certeza.
Estende a mão e os dedos pousam no ombro de Anamaya. Tateando, como se
receasse
não tocar numa carne de verdade e quente, ele acaricia seu rosto.
- Mas fico feliz que me diga isso para me dar prazer. Está certo.
Ele reƟra a mão, olha as pontas dos dedos como se eles conservassem um
vesơgio da carícia. E de repente, aponta para o leste cada vez mais claro e exclama:
- Vejo chegar o tempo das guerras, vejo InƟ manchado de sangue! Eu queria
quebrar o silêncio antes que ele vire sangue. Não quero ser aquele que trouxe a
confusão para o Império das Quatro Direções... Não quero ser aque le que joga os
clãs uns contra os outros! Mas não posso permanecer no silêncio de meu pai.
Anamaya só tem o tempo de senƟr a violência das palavras. O vulto alto e magro
de Villa Oma aparece à porta em forma de trapézio e diz:
- Está na hora, Senhor! É preciso que vá para o lugar sagrado. Eles o esperam.
Atahualpa deixa seu olhar pesar um instante em Anamaya.
- Vamos - diz ele levantando-se enquanto ela se prosterna. - Acompanhe-me até o
Corpo seco de meu pai.
***
Desde cedo, como em todas as manhãs anteriores, eles marcham num calor
espantoso para a estação. Don Francisco vai à frente, seguido por Pedro o Grego e,
mais atrás, por Gabriel e Sebastian emparelhados.
Atrás deles, o cortejo é dos mais estranhos. Dois lhamas, dos seis que
atravessaram o AtlânƟco, vão saracoteando nas pontas das correias amarradas à
sela do Negro SebasƟan. Eles mascam o nada como se fosse comida, e, arregalando
os olhos grandes de corça, parecem contemplar o campo de Castela com um espanto
virginal.
Mais atrás, dez alabardeiros do Rei cercam despreocupadamente três carroças
desconjuntadas, quase transbordando de objetos inauditos.
No banco de uma carreta, como ícones preciosos, dois índios do país do ouro,
vesƟdos com túnicas coloridas, exercitam-se no castelhano com os almocreves.
Muitas palavras lhes escapam, mas a coisa diverte enormemente os espanhóis que
não conseguem evitar introduzir alguns horrores no que estão ensinando.
Desde um quarto de légua, com o canto do olho, SebasƟan vigia o semblante
contraído de Gabriel. Finalmente, pergunta com uma ponta de ironia:
- Don Gabriel, me diga, todos os espanhóis da Espanha são tão orgulhosos quanto
o senhor?
Gabriel fuzila-o com o olhar.
- Todos os escravos negros das índias são tão impertinentes quanto você?
- Olá, Vossa Graça! - diz SebasƟan às gargalhadas, revirando os olhos fingindo-se
de apavorado. - Sei quem eu sou... Negro e escravo, não esqueço nunca. Mas nem
por isso deixo de ser um dos que descobriram o reino de ouro do Peru!...
- Aonde você quer chegar?
- À cara crispada que o senhor faz toda vez que o Capitão o chama de "aprendiz"!
Gabriel dá de ombros com despeito.
- Há muito tempo que sou bacharel e não aprendiz! Esse marmanjo iletrado
certamente não sabe a diferença entre uma coisa e outra! Mas eu queria sobretudo
saber de uma vez por todas se ele vai me contratar para acompanhá lo quando ele
parƟr outra vez para as índias... Há quinze dias eu lhe disse que colocava minha
pena, meu saber e minha vida a serviço dele! Ele nem se deu ao trabalho de me
responder. Para ele, eu não sou mais que um seixo dessa estrada!
- Quem lhe dá de comer desde Sevilha? Quem pagou sua cama em Elcija,
Córdoba, Morena e cada uma das etapas desde que parƟmos? Quem olha enviesado
para o senhor três vezes por dia? Quem lhe pediu para ler uma carta do irmão
Hernando quando o Grego poderia muito bem ter-se desíncumbido dessa tarefa de
confiança?
Gabriel olha para o Negro com uma prudência onde a esperança começa a despertar.
- Está falando sério? - Não se pode mais...
- Mas pelo sangue de Cristo! Por que ele não me diz simplesmente que me
contrata para acompanhá-lo na conquista do Peru?
- Porque simplesmente, don Gabriel, enquanto o Rei Carlos não o Ɵver designado
oficialmente para essa empreitada, o Capitão Pizarro não é absolutamente nada. No
momento, ele só pode oferecer sonho. E sonho, don Gabriel, é uma mercadoria que
ele já vendeu muito. E que lhe trouxe muitos aborrecimentos...
Por um instante, Gabriel cavalga em silêncio na poeira levantada pela caravana e
reflete sobre as palavras de SebasƟan. É obrigado a convir que são sábias. Há dias,
ele vive num sonho que o Capitão Pizarro nem precisou lhe vender. Deixar a
Espanha, atravessar os oceanos e colocar a imensidão entre ele e as violências
humilhantes da Santa Inquisição. E para sempre longe desse pai que nunca foi seu
pai! Lá, naquele pais desconhecido, ele poderia ser outro homem.
Sim, lá ele encontrará a glória e seu nome terá repercussão. E depois voltará para
vingar-se de todos os que o humilharam!
- Diga a verdade - pergunta ele de repente a SebasƟan. - Acha que don Francisco
convencerá o Rei a nomeá-lo Governador?
O rosto fino e simpático do Negro abre-se com um sorriso largo:
- Até hoje, eu não vi nada, homem, bicho nem mesmo oceano que esteja à altura
de resistir ao Capitão.Imite a paciência dele, don Gabriel!
***
São quase cinco horas quando Pedro o Grego puxa as rédeas de seu meio-sangue.
Como um menino maravilhado, ele aponta para o panorama suntuoso que acaba de
aparecer na saída de um bosque de pinheiros e cedros. - Toledo? - pergunta ele, os
olhos arregalados de surpresa.
Gabriel ri e balança a cabeça.
Enroscada num meandro do Tejo, dominando a água verde, a cidade se ergue
sobre seu promontório como se quisesse se plantar no céu. Na atmosfera ardente da
tarde, as casas formam uma construção de Ɵjolos única encimada pela massa
enorme e soberba do Alcazar.
Toledo. A cidade Rainha do mundo!
No primeiro olhar, mesmo a duas léguas, a cidade diz tudo do poder do grande
Imperador Carlos Quinto que amplia o universo ao sabor de sua vontade.
Gabriel queria caçoar da estupefação do Grego, mas não tem tempo de abrir a
boca. Don Francisco Pizarro puxa as rédeas de sua montaria que dá uma volta
violenta. O olhar férreo do velho conquistador solta chispas de fúria. As palavras
assobiam entre seus lábios cobertos de barba:
- Então, Grego! Com tudo o que você viu do outro lado do oceano, com tudo o
que agüentou ao meu lado, a visão de uma cidade de tijolos ainda o surpreende?
- Me perdoe, don Francisco! É que... Pizarro corta-o com um gesto da mão
espalmada.
- Não gaste a sua saliva! De agora em diante, e em qualquer circunstância, nada
mais o espanta, nada mais o deixa admirado! Entendido, Pedro? Você é aquele que
viu uma cidade de paredes cobertas de ouro! De ouro! Ousaria esquecer?
Ele gira em direção à cidade vermelha reverberando na luz incandescente de
Castela e, com uma voz surda, acrescenta:
- Nós é que vamos fazer esses Grandes de Toledo sonharem!
O olhar duro de don Francisco pula de um homem ao outro. Gabriel, a
contragosto, enrubesce.
- Nós é que trazemos o ouro e o poder de que o grande Imperador Carlos precisa!
troveja don Francisco. - Nós somos o espanto e o espetáculo! E daqui a pouco,
quando passarmos as portas da cidade, nós é que seremos aclamados! E vocês não
se surpreenderão...
A barbicha grisalha do velho conquistador treme de orgulho, seu cavalo escorrega,
pateia de lado. Ele o acalma esporeando-o de leve.
O indicador de don Francisco torna a apontar para o Grego, depois passa para o
peito do Negro Sebastian:
- Vocês dois, nas próximas semanas, não esqueçam nunca isso! Vocês agüentaram
mil mortes e estão vivos. O que fizeram, ninguém fez. O que viram, ninguém viu.
Vocês andaram nas ruas de Tumbez, a fortaleza de pare des revestidas de ouro.
Enfrentaram animais treinados pelos índios! Por minha vontade, descobriram o
reino mais rico das índias! E estamos aqui para receber o que nos é devido: a honra
de conquistar isso! Eu vou sair dessa cidade de Ɵjolos como Governador do Peru e
do reino de Tumbez... Pela Sanơssima com o Menino, digam-me um pouco o que há
aqui, nessa região, que possa surpreendê-los.
Ninguém responde. O cricrilar dos grilos e das cigarras de repente parece
ensurdecedor.
Pela primeira vez desde que parƟram de Sevilha, Gabriel julga adivinhar um
sorriso nos vincos das faces do Capitão Pizarro.
***
Don Francisco estava certo. Eles são o espanto e o espetáculo.
Tão logo sua chegada é anunciada, uma mulƟdão de burgueses, artesãos,
mulheres, servos, velhos, ricos e pobres, comprime-se à Puerta San MarƟn, e ainda
ao longo das muralhas e da ruela tortuosa que sobe até a magnífi ca catedral. Os
moleques vão correndo na frente da estrada que vem de Piedrabuena e escoltam a
caravana aos gritos.
Uma mão na cabeça da sela e outra no punho da espada, don Francisco abre o
cortejo, escoltado três passos atrás pelo Grego Candia, tão majestoso e imenso que
seu cavalo parece pequeno. Na mulƟdão, os homens Ɵram car ros e chapéus
quando eles passam, enquanto eles, a cada dez passos, concedem um gesto de
cabeça e um olhar severo à guisa de agradecimento.
Os dois índios, sorridentes e boquiabertos, sem a mínima aflição, antes
orgulhosos, agora seguram a correia dos estranhos lhamas. Os moleques salƟtam a
seu lado, tentando acariciar a lã dos bichos. Ao ver o belo rosto impassível de
MarƟnillo, suas faces largas, sua tez coriácea e ao mesmo tempo cor de oliva, o
arco de seus olhos amendoados e sua boca cuidadosamente desenhada, as mulheres
tapam a boca aos griƟnhos. Uma delas pega o braço da vizinha e murmura:
- Olhe! Quase se poderia dizer que são homens!
- Mas aquele ali tem cara de mau! - diz a comadre apontando para o rosto mais
fino, mais seco e os olhos volúveis de Felipillo.
Uma pequena tropa de mercenários alemães, acudindo a meia légua da cidade,
cerca os carretos. Sob o sol puro da tarde, o ouro do Peru refulge com todo o brilho.
Movido por um impulso, SebasƟan pula na carroça e pega uma estátua de ouro
representando um homem nu, com o rosto fino e olhos de lápislazúli. Explode um
grito de admiração. Depois o Negro ergue uma máscara enorme, em forma de sol
vermelho-sangue crivada de tirinhas coloridas. Ele a põe no rosto e examina os
basbaques rugindo. O grito de admiração transforma-se em grito de medo, as vozes
das mulheres parƟndo para os agudos. Ele mostra os vasos finamente martelados, as
eİgies de animais nunca vistos, lhamas de ouro, placas de prata cinzelada, potes,
copos, colares de contas, estandartes de plumas costurados com fio de ouro... E todo
esse ouro brilha tanto que ofusca.
O cortejo não pára um segundo, embora a mulƟdão vá ficando cada vez maior.
Os que viram querem ver mais! O povo segue as viaturas mendigando, esgueira-se
entre as montarias, segura as rédeas das mulas até os soldados ameaçarem.
Tomado pela loucura do momento, Gabriel pula por sua vez no segundo carro
contendo as cerâmicas.
Exibindo-as, como se ele mesmo as Ɵvesse trazido do outro lado do mundo,
brande as jarras em forma de rostos humanos, pinta dos e moldados com tanta
precisão e detalhes que parece que vão falar...Depois, são as cerâmicas em forma de
pássaro, pés, mãos, peixes com ou sem dentes, recipientes duplos, pintados de ouro,
de cinabre ou de púrpura, recipientes em forma de lagarto, de mulher, de cabaça,
monstro, ou até de cópula...
Toda a beleza de um povo, todo o saber e a ciência de milhares de anos de
trabalho artesanal desfilam diante das centenas de olhos estupefatos e dão o
testemunho de que um país de verdade, do outro lado do oceano, foi descoberto!
Eles levam mais de uma hora para chegar afinal ao adro da catedral onde essas
maravilhas serão baƟzadas e purificadas de seu espírito pagão. Mas o coração de
Gabriel está em fogo, como se sua longa viagem para o maravilhoso Peru já tivesse
começado.
Capítulo 19
Rimac Tambo, abril de 1529
O caminho real é largo e bem calçado, ladeado por dois muros de altura média, de
alvenaria bem-feita. Quando não havia mais pedras, os construtores usaram chuços
da mesma altura para conƟnuar a obra. Nas subidas, foram traçados largos degraus,
onde o cortejo avança com prudência.
Quando vão se aproximando dos tambos, essas cidadelas imponentes onde são
conservados para o Inca muitos alimentos, panos, cerâmicas, todas essas riquezas de
uma região, começa a movimentação dos mensageiros para preparar a escala.
Em cada cidade, os curacas, os poderosos do local, aproximam-se da liteira onde
está sentado o Corpo seco de Huayna Capac. Com humildade, eles curvam as
costas, colocam uma pedra pesada nos ombros.
Em toda parte, os sinais de respeito à múmia são imensos.
No entanto, o cansaço dos dias abate Anamaya. Ela já perdeu a conta de quantos
se passaram desde a parƟda de Tumebamba. Cada etapa lhe parece idênƟca à
anterior. Há luas, ela renunciou a ficar muito tempo na liteira diante da múmia e do
Irmão-Duplo. Prefere caminhar no meio das mulheres e dos velhos e se fazer
esquecer.
Às vezes, o Sábio Villa Oma deixa o séquito dos Poderosos Anciãos e vem
caminhar ao seu lado. Agora, ele a olha com respeito e, às vezes, quase com temor.
Mas sua companhia é severa, preocupada. A longa coluna da procissão fervilha
diariamente de rumores. Os semblantes são tensos e aflitos... À medida que o Norte
fica para trás, aumenta o medo, sem outro motivo senão a chegada a Cuzco.
O único que sabe romper essa atmosfera carregada é o Anão. Às vezes, ele vai à
frente do cortejo. Com sua túnica vermelha demasiado comprida, recolhe a poeira da
estrada assim como a centena de servos cuja missão e essa e que, incansavelmente,
varrem o caminho à frente das liteiras.
Porém, ele vem se esgueirando cada vez mais para junto de Anamaya e caminha
com seus passinhos rápidos ao seu lado.
- Princesa, está sonhando?
- É você, Senhor, quem me faz sonhar...
O Anão sorri. Ele conhece a ternura das brincadeiras deles. E sua amizade
silenciosa, tão preciosa desde a primeira noite em que se abriram o coração... Nem
um nem outro se parece com aqueles que acompanham a liteira do Inca morto. Os
olhares que se voltam para eles às vezes são tão carregados de inveja quanto de
repulsa. O amanhã, para eles, é cheio de incertezas.
- O que vai acontecer conosco, Princesa? Como saber?
- Eu achava que você era aquela que vê tudo!
- Pode brincar, Senhor! Mas o que eu vejo, você também vê. Os mensageiros indo
e vindo, os rumores de massacres nas aldeias do Senhor Atahualpa. E tudo o que
dizem sobre as iras de Huascar...
O Anão ri com tristeza.
- É porque ele está impaciente para me ver! Parece que vou ser dado de presente a
ele para lhe dar sorte... Mas dizem também que ele odeia tudo o que não seja um
inca bem formado, de cabeça pontuda e pernas compridas! - Pense que ele também
está me esperando - murmura Anamaya.
Por uma vez, eles não conseguem brincar.
Lado a lado, eles vão beirando o rio revolto que, engrossado pelas chuvas da
estação, tem as águas lamacentas e amarelas e ruge como se a própria terra estivesse
sofrendo.
***
- Então, naquele dia, o mar era um chão, só Ɵnha uma brisa soprando de leve, mas
estava tudo cinza.
Não vi quando apareceram no horizonte - explica SebasƟan. - Eu estava na
despensa do castelo de popa do San Cristo bal. Ruiz, o piloto, Ɵnha me posto a
ferros porque fui infeliz em alguma coisa que eu disse e eu estava encarregado da
sopa... O Grego emite um grunhido de nojo.
- Sopa! Você já fez sopa? Não devia ter mais nada sobrando além de farinha de
grão-debico, cabeças de peixe e salmoura de repolho! Pelo que conheço você, você
deve ter usado carunchos para engrossar a sopa! O Negrão só esboça um sorriso e
prossegue:
- Fazia três semanas que a gente navegava para o sul sem saber aonde estava indo
e sem poder atracar, de tão ruim que era a costa... Cada vez que alguém reclamava,
Ruiz respondia: "Estou sentindo! Estou sentindo, eles estão pertinho!"
O sol da manhã penetra fundo no salão de armas da casa colocada à disposição
de don Francisco pelo duque de Bejar, um de seus novíssimos e mui fervorosos
admiradores. A poeira dança nos raios de luz.
Pingando de suor, de camisa e calções, segurando o punho de uma espada nova
em folha, Gabriel bebé as palavras dos companheiros. Camisa aberta em cima do
torso atlético, Candia o Grego coça o rosto com a luva. Lem branças deslizam em
seu olhar e lhe entristecem o semblante. Mas Sebastian já prosseguiu com seu relato:
- Então, eu estava mexendo a sopa. De repente, ouço o Niceño, o que estava de
vigia, começar a gritar: "Vela! Vela! Vela a bombordo à frente! Uma vela, estou
dizendo!"
- Ah! - diz o Grego, a voz toda emocionada, pousando a mão no ombro de Gabriel.
- Eu daria de bom grado os quatorze dentes que me restam para ter estado lá. Pronto,
está vendo, só de imaginar, fico todo arrepiado! - Eram eles então? - murmura
Gabriel.
- Por Deus! - conƟnua SebasƟan com impaciência. - Numa grande balsa muito
bem-feita, parecendo uma mão gigante, com uma vela e um leme. Eram vinte
pessoas, homens e mulheres. A maioria pulou n'água quan do nos viu! Imagine, don
Gabriel: do nível da água onde eles estavam, o San Cristobal devia fazer para eles o
efeito de uma montanha de madeira flutuante! - Mas na mesma hora viram que não
eram selvagens comuns - insiste o Grego. - Eles usavam essas túnicas que você
mostrou outro dia pelas ruas.Parece que ali tinha um... Ah! Nada a ver com nossos
intérpretes, hein, o Martinillo e o Felipillo...
- Esse aí estava duro que nem um pau - corta SebasƟan irritado. - Eu vi! Quase
tão teso como o próprio don Francisco! Olhando para a frente, enrolado numa capa.
Depois, com essas espécies de rolhas de ouro que eles enfiam nas orelhas... Os
olhos brilhantes de excitação, morrendo de vontade de acrescentar alguma coisa, o
Grego brande em silêncio a manzorra aberta diante de Gabriel. E Sebastian
acrescenta:
- Sim, exatamente assim! Os discos de ouro são do tamanho dessa mão! E enfiados
no lóbulo das orelhas deles por um tubo também de ouro. O furo por onde passa o
tubo é tão grande que dá para enfiar dois dedos meus! Por Deus, não estou
mentindo!
Candia continua imóvel, fitando o vazio.
- Não Ɵnha só o ouro das orelhas! - insiste SebasƟan. - Quando o San Cristobal
chegou perƟnho da balsa, Ruiz fez sinais para o índio subir a bordo. Então ele abriu
a capa. Virgem Santa! Estava coberto de ouro do queixo até o umbigo! E ainda nos
punhos... Não é verdade, Pedro?
- Foi o que disseram, o Ruiz e os outros... - murmura ele. Nervosamente, Gabriel
limpa o suor da têmpora e abaixa as pálpebras. Um silêncio se apossa dos três
homens, como num mesmo recolhimento. - Um senhor índio - murmura Gabriel.
Os dois outros só balançam a cabeça.
- Um dos que vai ser preciso enfrentar se don Francisco vier a ser mesmo
Governador do Peru! - ruge o Grego sacudindo-se.
Com um movimento seco, ele corta o ar quente da sala, fazendo as parơculas de
poeira rodopiarem.
- Chega! Está na hora de conƟnuar essa aula. De pé e em guarda! Se um dia você
quiser conƟnuar inteiro diante desses índios, ô aprendiz, vai precisar segurar a
espada de outra maneira! Que diabo, isso não é uma colher de sopa! A sua passagem
da terça à séƟma é um verdadeiro massacre! Vamos, ao trabalho!
O Grego dá alguns passinhos para trás enquanto Gabriel levanta do banco
suspirando.
Coloca-se em posição, os joelhos ligeiramente dobrados, o tronco aprumado. Mas
sua mão, prolongada pela espada, é bem menos ágil e firme do que ele gostaria. O
Grego gira rapidamente o ferro que ele bate contra o dele com uma brutalidade
pouco pedagógica.
- Em terça, posição alta e você anda com a panturrilha esquerda, assim!...
As lâminas Ɵnem. O Grego se afasta e se esquiva à esquerda. Volta, golpeando
de través. E a lâmina de Gabriel ricocheteia como um graveto. Levado por seu
ímpeto, ele se dobra tanto que, não fosse o copo de proteção, cortaria a mão na
espada do Grego.
- Não! Não! - grita Pedro. - A séƟma é um passe de linha baixa, para dentro!
Parece que você já está com as orelhas tapadas pelo ouro de lá! Levante o braço.
Vire o punho para o alto e mergulhe... Assim! Simples como um bom dia, caramba!
Simples não é! Mas Gabriel prossegue com coragem e alguma raiva. Tanto que,
durante alguns minutos, a aula de esgrima dá várias reviravoltas. Um sorriso nos
lábios, SebasƟan vê os dois fazerem suas armas dançarem. Gabriel começa a gostar
do jogo e, logo, ofegante e com um olhar duro, mostra mais segurança, seus golpes
são certeiros, seus movimentos menos forçados. O Grego entra em seu campo e dele
se esquiva com a agilidade de um gato. Seus golpes têm a amplidão da experiência,
sua lâmina vibra, sobe impetuosamente. De repente, Gabriel dá um grito.
- Ah, imbecil! - exclama o Grego, o semblante contraído, dando um pulo para trás.
- Não foi nada - resmunga Gabriel levando a mão ao ombro.
- Está sangrando - observa Sebastian aproximando-se.
- Por que você se jogou em cima de mim?
- Pensei que esƟvesse me esquivando - diz Gabriel em tom digno de pena, o rosto
pálido. - Mas não foi nada...
- Tire essa camisa e mostre - ordena o Grego. - Nunca se sabe!
No entanto, o que eles vêem no ombro de Gabriel, uma vez despida a camisa, não
é só um belo talho, felizmente pouco profundo.
- Ei... O que você tem aí? - pergunta o Grego franzindo o cenho. - Nada de
extraordinário: um sinal de nascença! - explica Gabriel limpando o ferimento com a
camisa.
Com um movimento sem delicadeza, o Grego o faz girar e lhe chapa aquela pata
pesada nas costas.
- Um sinal de nascença talvez... SebasƟan! Isso não lhe lembra nada? - Como não:
o gatão que quis nos devorar na frente de Tumbez! Gabriel se esquiva de seus
comentários cobrindo o ombro com irrita ção. Mas quando espera mais uma dose de
zombaria, depara com olhares pensativos.
- Muito bem, meu amigo - diz o Grego enxugando a testa -, aí está uma
coincidência esquisita!
- Do que estão falando?
- De um felino estranho que vagueia lá no Peru - sorri o Grego. - Os intérpretes
dizem que os senhores índios dão grande importância a esses bichos.
- Isso é só uma mancha e vocês podem dar a ela a forma e os nomes que
quiserem! irrita-se Gabriel. O Grego balança a cabeça olhando para ele sem falar
mais nada.
Mas, enquanto se deixa tratar, e sem abandonar aquela expressão contraída,
Gabriel sente a espera lhe enfunar o coração como uma vela, como uma promessa.
Capítulo 21
Toledo, abril de 1529
***
***
***
***
- Olhe, olhe! Ah, que lindos! Ah, Majestade, meu Rei, são mansos como cordeiros!
E grandes! Mira, mira! É lã de verdade, tão macia que não fica atrás da de nenhuma
ovelha. Aaaah! Que gracinha!
O bufão se esganiça, grita, gargalha. Tem uma voz espantosamente forte para seu
tamanho minúsculo. Enfeitado com rendas, roupas de boneca e um chapelão enorme,
joga os bracinhos para o alto, corre de um lhama ao outro, passa por baixo deles,
afaga-os, agarra-os, pula-lhes no pescoço, esfrega o rosto em seu pêlo, antes de fazer
mais uma cabriola!
Forçando as rédeas, os animais irritados arrastam os dois índios, MarƟnillo e
Felipillo, em volteios incoerentes. Já perdidos e apavorados com a imensidão e o
luxo dos locais, os olhos arregalados, eles trocam frases incompreensíveis.
- Ai, mas como esses tontinhos tagarelam, meu Rei!...
O anão começa a imitar os índios com barulhos grotescos, puxa-lhes a manta,
salƟta entre suas pernas fazendo caretas. E, de repente, fingindo um escorregão, cai
em cima de Felipillo, que acaba indo ao chão junto com ele no espesso tapete. O
lhama solto imediatamente aproveita o ensejo para galopar direto para o trono. Pedro
o Grego pula e captura o animal, que dá um zurro rouco e cospe.
- Mas o que esse aí está fazendo! - exclama o bufão com um horror fingido diante
do lhama. - Não está vendo que está faltando ao respeito com o meu Rei?
- Quando lhama zangado, señor, faz sempre assim ele - articula penosamente
Felipillo.
- Quando lhama zangado... - repete comicamente o anão cuspindo em Felipillo.
O povo cai na gargalhada e até aplaude. EsƟmulado às palhaçadas, ele bate com
o chapéu em Felipillo:
- Meu Rei: esse aí só tem duas pernas, mas não sabe usá-las... E olhe: mesmo sem
ter lã nas panturrilhas, ele pastaria de bom grado os seus tapetes! Gabriel,
apavorado, vê don Francisco ficar lívido de fúria com a afronta. Sua mão enluvada
de couro aperta violentamente o punho da espada. As narinas vibrando, ele se volta
para o estrado real.
Mas, se a jovem Rainha esboça um sorriso, o rosto de Carlos V permanece
impassível. Seu queixo largo e forte lhe dá uma aparência grosseira que seu olhar
luminoso contradiz completamente. E, por menos atento que se seja, adivinha-se em
seu breve movimento de cabeça e no franzir de suas pálpebras um cumprimento sem
ironia. O peito de don Francisco logo se acalma. Com toda a elegância de que é
capaz, ele enverga aquela silhueta magra e toca o chão com a pluma verde de seu
chapéu.
Pedro o Grego segura a rédea do lhama, Felipillo está em pé, sossegado por um
gesto do Negro Sebastian. Gabriel, por sua vez, se descontrai com um suspiro
discreto.
Os homens estavam de pronƟdão há vinte horas. Don Francisco, não agüentando
mais, mandou que eles se levantassem no meio da noite. Cem vezes mandou que lhe
repeƟssem as mesmas recomendações, cem vezes, pe diu que lhe espanassem o
gibão negro novo em folha, que trocassem a pluma de seu chapéu por uma amarela,
depois uma branca, depois uma vermelha, decidindo-se por uma verde só quando o
dia raiou.
Cem vezes ele havia ordenado que todos os cinco, Pedro o Grego, SebasƟan,
Gabriel ou seu irmão Hernando e os dois índios, se ajoelhassem diante da miniatura
da Virgem!
De manhãzinha, a espera se prolongara no Alcazar, mãos molhadas, olhar vazio,
barriga roncando de fome, a andar pelos jardins magníficos sem ver nada enquanto o
sol esquentava cada vez mais. Ao meio-dia, eles foram con duzidos aos salões onde
as damas de anquinhas e grandes golas de pérolas, rendas de Bruges e jóias os
perscrutavam de perto como animais prestes a serem devorados na arena!
Agora, o crepúsculo não tarda. Eles acabaram de ser introduzidos na sala de
audiências. Todos os objetos de ouro, as cerâmicas e os tecidos do Peru estão
expostos numa mesa comprida. Infelizmente, o aposento é tão grande,
sobrecarregado de objetos, móveis, tapeçarias, corƟnas, quadros, que, apesar do
esplendor estranho daquelas coisas peruanas, sua quantidade parece bastante
modesta!
Tudo o que conta na Espanha está ali. Cem nomes e ơtulos sonoros, vesƟdos,
como se fosse inverno, de seda e brocado, cobertos de enfeites da moda, a barba
lustrada ou as faces empoadas de ruge, conforme o sexo. Os olhares estão cheios de
arrogância e as bocas, por ora, abertas dando gargalhadas.
Gabriel está aflito e envergonhado como se ele fosse don Francisco, esse
descobridor do Peru que está sendo ridicularizado pelas palhaçadas de um bufão...
Mas, com o esboço de um gesto, o Rei corta as risadas e chama o anão assobiando
como se ele fosse um cão.
- Pare, Estebanillo!
A voz é calma, bem compreensível, quando ele acrescenta: - Apalavra é sua,
Capitão Pizarro. Segue-se um silêncio pesado.
Don Francisco parece de repente incapaz de arƟcular uma palavra. Seu irmão
Hernando já vem se adiantando e se inclinando com um sorriso nos lábios mas,
bruscamente, don Francisco o segura.
- Deixe. Eu é que devo falar! - ruge ele baixinho. Empurrando Hernando para o
lado, ele diz, com um tom rude:
- Alteza, descobri um país que é uma mina de ouro e fará a riqueza da Espanha
por todos os séculos vindouros.
O Rei não se mexe. O anão, em pé perto dele, brinca:
Ouro! Ouro! Ouro! Uau, ouro por toda parte, meu Rei!... Ele está dizendo! Porque
esses carneirões aí, eu juro, são de lã!
Ouvem-se algumas risadas, mas, inesperada, é a voz clara da Rainha que as
interrompe:
- Capitão Pizarro, gostaríamos de ouvir da sua boca a história dessa descoberta.
- É uma história longa, Alteza! Mais de dez anos!
- Então, conte-a sucintamente, don Francisco.
Sucintamente, Alteza, é diİcil... Pois isso começou quando descobrimos o mar do
Sul, como chamamos, do outro lado do golfo de Darién. E só isso já foi muito diİcil!
Sou um dos que fundaram a cidade de Panamá com o Governador da época que se
chamava... ahn...
De novo dominado pela emoção, don Francisco fica sem voz. Seu grande corpo
magro treme, tamanha é sua tensão.
- Balboa... - sopra Gabriel sem pensar.
Hernando Pizarro o fulmina com o olhar. Mas don Francisco faz que sim com a
cabeça:
- Sim. O Governador Balboa... Com alívio, Gabriel ouve a voz de don Francisco
se descontrair.
Frase após frase, ele esquenta, fala com mais desenvoltura e vivacidade. E assim,
por quase uma hora, é toda uma epopéia que mantém os ouvintes interessados.
Como foi preciso desmontar uma caravela inteira e transportá la, peça por peça, pela
floresta, do Oceano AtlânƟco ao mar do Sul! Como, sem trégua, foi preciso vencer
os insetos, as serpentes, as feras, os índios, a sede, a fome e a doença! Como só os
mais obsƟnados sobreviveram, e com agressividade e coragem suficientes para
parƟr novamente ao ouvir falar de um país todo coberto de ouro, para lá das
florestas. Como foi preciso vencer os céƟcos, as incertezas, os desesperos, a falta
de dinheiro, a gangrena da dúvida. Como sempre, durante esses anos longos e
intermináveis, foi preciso vencer o próprio mar e todas as misérias imagináveis que a
adversidade do desconhecido pode infligir aos filhos de Deus!...
- E depois um dia, Alteza, pronto! Do nosso navio, vimos aparecer uma cidade na
costa! Uma cidade enorme... A floresta Ɵnha se aberto em volta e exalava perfumes
como só há lá. Ah, acreditem em mim, uma cidade de pelo menos duas mil casas! E
essa cidade inteira cinƟlava, como uma cidade celeste, Alteza! Só quando chegamos
perto é que vimos que o sol se refleƟa num ouro brilhante como ele! Pela graça da
Santa Virgem, muros de ouro! Assim é a cidade de Tumbez! Ah, eu juro!...
Levado pelo ímpeto de seu fervor, don Francisco bruscamente se ajoelha e se
persigna. E todos, em volta dele, automaƟcamente, impregnados pelo fervor do
relato, SebasƟan e Hernando, os índios, o Grego e Gabriel, todos eles se ajoelham e
fazem o sinal-da-cruz!
Um murmúrio de admiração vibra na platéia conquistada da sala de audiências.
Mas, outra vez, é a voz fresca e límpida da Rainha que se levanta: - Don Francisco,
é um belo relato este que acaba de fazer. Mas ouvi dizer que muitos homens
pereceram durante essas terríveis aventuras...
Esquentado como é, don Francisco se levanta com uma rabanada. Negligenciando
o olhar da Rainha, os olhos incandescentes fixos nos do Rei, sem nenhuma das
cortesias exigidas, ele esbraveja:
- Que Vossa Alteza me perdoe, mas essa recriminação não passa de um monte de
asneiras! Se fosse fácil encontrar um país coberto de ouro como o Peru, há muito
tempo Vossa Alteza estaria antes ceando do que me ouvindo! - Bem falado! - ri o
bufão aplaudindo.
- Mas não é verdade, Capitão Pizarro? - pergunta o Rei em seu castelhano canhestro.
- Mortos, houve, infelizmente! Nas índias, morre-se mais, se ouso dizer. Mas me
recriminar por essa adversidade! Sempre deixei aos que me acompanhavam a opção
de voltar...
- Dizem, señor Pizarro, que o senhor manteve cem homens seqüestrados numa ilha
durante um ano e que metade deles morreu...
- Não! Não, Alteza! Eu mesmo me seqüestrei, pois queriam me impedir de
prosseguir. E vinte não sobreviveram, não mais. E sabe o que fiz quando afinal
chegou um navio para nos resgatar?...
Estávamos numa praia, as chalupas esperavam, cada um precisava decidir,
conƟnuar para o sul ou voltar para a cidade do Panamá.
Don Francisco se interrompe, dá um passo à frente e, desencadeando um grito na
platéia, desembainha a espada para brandi-Ia para o alto:
- Eis o que fiz, Alteza! Levantei assim minha espada. E mergulhei-a na areia...
Aliando o gesto à palavra, don Francisco espeta a lâmina no espesso tapete. Com
um rugido de fúria, faz um risco...
- Senhor don Francisco! - exclama a jovem Rainha agitando as mãos. - Por favor!
Tenha cuidado com esse tapete, ele foi confiscado dos otomanos!
Don Francisco se sobressalta. Observa-a franzindo o cenho, faz um vago sinal-da-
cruz, depois, sem se preocupar mais, dirige-se ao Rei:
- Na praia da ilha de Gallo, fiz um risco como este, Alteza, embora mais fundo... E
disse: "Companheiros, meus amigos! Não volto para a cidade do Panamá. Vou mais
longe, para o desconhecido Sul. Quem quiser me acompanhar que cruze esta linha.
Os que o fizerem, escolherão certamente a fome, a sede, as doenças e a morte
talvez... Os outros voltarão para a cidade de Panamá e os dias normais. Eu lhes
agradecerei, pois eles comparƟlharam conosco sofrimentos nunca vistos, um
calvário que merece que eu os ame como amo aqueles... A quem, no entanto, eu
prometo o Peru e seus rios de ouro. Não quero forçar ninguém. Mas um dia, a
coragem receberá o fruto de sua semente! Eu sei!" Eis o que eu disse, Alteza. E a
verdade é que muitos voltaram para o Panamá sem que eu movesse um dedo para os
impedir! Mas treze cruzaram a linha que eu havia traçado e se colocaram ao meu
lado: esses treze, Alteza, são os heróis de uma lenda que será contada durante
séculos!
Na platéia perfumada, mãos de mulheres começam a aplaudir, cabeças severas
de
duques, marqueses, camareiros e conselheiros balançam afirmaƟvamente e emitem
sons de aprovação.
É então que Gabriel, pasmo, vê o Rei Carlos, o quinto Imperador da Europa e seu
mais rico soberano, levantar-se. Um sorriso maravilhado abre sua boca estranha. Ele
se levanta do trono e desce do estrado. Como um homem quase comum, faz um só
gesto designando os índios e os lhamas:
- Fale-me um pouco desses animais estranhos, Capitão Pizarro.
Capítulo 25
Salcantay, maio de 1529
Ainda é noite fechada quando o Sábio toca o ombro de Anamaya para acordá-la.
Um
simples sinal, e ela o segue.
A senda é abrupta. O topo do pão de açúcar foi cortado em plataforma da qual só
foi deixada uma pedra.
- Para entrar aonde vamos, é preciso pedir a autorização dos Apus - murmura Villa
Oma.
Anamaya fica calada: ela renunciou a saber, e sente um mal-estar por isso. As
estrelas se apagaram na aurora ơmida, uma gigantesca montanha sai da noite,
majestosa, maciça e terrível. A distância parece torná-la ainda maior.
- O Salcantay é um dos Apus mais poderosos da região. Ele não deixa ninguém se
aproximar de seus lhamas. Os raros inconscientes que voltaram de lá falaram de uma
dama vermelha antes de enlouquecer totalmente. Mas se você o respeitar, menina,
ele lhe dará sua proteção.
Anamaya fica em silêncio, subjugada pela força do espetáculo. O pico se acendeu
de repente, brasa incandescente aƟçada pelo vento. No momento seguinte, é toda a
geleira que se inflama num turbilhão de vermelho-alaranjados.
- Olhe, Villa Oma: Inti está abraçando Apu Salcantay.
Devagarinho, nesgas de névoa emergiram da floresta, correram ao fundo das
encostas e formaram uma nuvem densa ao pé do maciço.
Villa Oma está agachado diante do rochedo. Coloca ali seis frascos de barro que
ele enche com uma água clara, depois estende no chão um pedaço de pano.
Anamaya não dá muita atenção ao imutável ritual: há medo, mas também alegria em
seu mal-estar.
O Sábio levou a chuspa de coca à boca e sopra-a, concentrado, olhos fechados.
Murmurando, escolhe três folhas, entre as mais perfeitas e mais verdes, e as coloca
delicadamente num canto do tapete; e recomeça com mais três folhas no próximo
canto.
Depois, sem pressa, coloca no centro bonecos em forma de lhama, pequenos
novelos de lã colorida e grãos de milho roxos e pretos.
Insensivelmente, a nuvem começou sua ascensão, escondendo um a um os
primeiros blocos de gelo da geleira. O Apu é ouro. Suas linhas ora doces, ora
cáusƟcas retêm uma aura de luz.
A um olhar do sacerdote, Anamaya sentou-se defronte ao rochedo: de onde ela
está, a rocha reproduz na perfeição a forma do Salcantay.
Na superİcie dos frascos, há grãos ou pós em suspensão que aos poucos
desaparecem embaixo de espumas coloridas: a fermentação funcionou. O Apu aceita
as oferendas.
Então, Villa Oma as pega, uma de cada vez. Anamaya sente que ele pousa uma a
uma em sua cabeça enquanto murmura palavras das quais ela só disƟngue seu nome
e o da montanha. E todas as vezes, o conteúdo é derramado no rochedo.
- A você.
Anamaya dobra cada um dos cantos do tapete, prestando atenção para não
desarrumar
a ordem das oferendas, e, formado o pacote, sopra-lhe três vezes em cima,
debruçada para a montanha.
Villa Oma pega de novo a oferenda e pousa a mão nos cabelos de Anamaya. Ela
sente seu calor. No início, é apenas um suspiro:
- Hamp ú Apu Salcantay, Hamp ú! Hamp ú Apu Salcantay, Hamp ú! Hamp ú Apu
Salcantay, Hamp ú!...
O chamado torna-se murmúrio, depois cresce. E quando a voz do Sábio alcança
os paredões vizinhos, dir-se-ia que todos os picos reclamavam a vinda do Apu num
imenso clamor. Ondas quentes irradiam seu corpo.
O úlƟmo eco foge no fundo do vale e se apaga. No silêncio, o pico luminescente
do Salcantay desaparece atrás da vela pudica da nuvem. Anamaya sabe que está no
coração da montanha. A paz está nela.
***
- Ho! Ho!...
Don Francisco surge de um bosquezinho cerrado de azinheiras e juníperos. A mão
erguida, esporeando a montaria, ele intercepta Gabriel e grita:
- Aonde vai nesse passo, meu filho?
Vindo num trote longo, o cavalo de Gabriel se assusta com essa aparição. Numa
guinada violenta, quase derruba o cavaleiro antes de saltar para uma picada estreita
e disparar num galope desenfreado arranhando os jarretes nos espinhos dos
juníperos.
Deitado no pescoço do cavalo, Gabriel deixa o animal dar vazão ao medo. Com
uma voz doce, ele o acalma, afagando-o sem frear abruptamente seu galope.
Quando, afinal, torna a alcançar don Francisco, o meio-sangue andaluz do velho
Capitão conƟnua no mesmo lugar. Rijo como sempre, mas hoje vesƟdo com seu
gibão anƟgo de veludo desbotado, o mesmo que usava na saída das masmorras de
Sevilha, don Francisco observa-o, com um sorriso irônico.
- Aí está um rapaz que sabe se segurar na sela e não só fazer palavras com uma
pena!
- Monto desde criança! Mas o senhor quase me fez ir ao chão, don Francisco...
- E por que você me seguia? Está na minha cola desde que saímos da cidade!
- Me perdoe, don Francisco, mas... todos os dias, vejo-o saindo para passear bem
cedinho...
- Passear? Tolice. Há trinta anos que medito galopando! Um dia sem galope é
como um dia sem oração!
Com um muxoxo de mau humor, Pizarro bate na garupa de seu cavalo. Num trote
curto, toma a direção do rio.
O dia está cinzento. As nuvens estão baixas, e a umidade forma moles arabescos
de bruma que pairam ao longo do Tejo. Aqui e ali nos campos recém-arados, vêem-
se mulheres e crianças catando os rabanetes remanescen tes. As pontas vermelhas
dos telhados de Toledo desapareceram no entrançado dos morros e dos bosques.
Por sua vez, Gabriel faz seu cavalo andar. Ao alcançar don Francisco, diz num
tom um tanto rude:
- Senhor, por favor! Conceda-me um instante...
- E para quê?
- Preciso saber. Vai me levar para a conquista do país do ouro? Logo chegará a
carta nomeando-o Governador do Peru e...
- O que sabe a esse respeito?
- O senhor será Governador, eu sei. Vi o olhar do Rei enquanto o senhor falava da
conquista!
- O olhar do Rei? Grande coisa! Não sabe que os reis vivem representando desde
que abrem os olhos?
- Não, meu capitão! O senhor lhe agradou. Vai sair da Espanha Governador, tenho
certeza...
Estalando as rédeas, Gabriel impele o cavalo, e dessa vez é ele quem intercepta o
caminho de don Francisco, obrigando-o a parar.
- Senhor, não me deixe mais na expectaƟva inuƟlmente! Ontem, seu irmão don
Hernando garanƟu-me que o senhor não queria saber de mim e que em hipótese
alguma eu embarcaria para as índias em seus navios... Logo de pois, Pedro o Grego
me garanƟu o contrário. Segundo ele, o senhor tem um pouco de amizade por mim...
Don Francisco! Estou numa situação que...
Gabriel não ousa terminar a frase. Com um toque da bota, don Francisco desvia o
meiosangue para colocá-lo no caminho certo e diz, num tom muito áspero:
- Está numa situação que não deve ser fácil, senhor filho do Marquês de Talavera!
- Não sou filho de ninguém, senhor! Gabriel falou alto o suficiente para que don
Francisco se voltasse, o olhar fixo e intrigado.
- Não é o que me disseram.
- Então o senhor está sendo enganado! Doravante, não sou filho de ninguém, e se
lhe afirmam o contrário é so para me prejudicar. Eu sou apenas eu, corpo e alma.
Minha hereditariedade só vai até as pontas das minhas botas.
O que aparece nos lábios do velho conquistador é um sorriso estranho e muito
pouco usual.
- Eis uma frase que eu poderia ter dito há muitos anos!
Ele encara Gabriel como se o esƟvesse vendo realmente pela primeira vez, e o
"aprendiz" afinal se apagasse para dar lugar a um homem de verdade.
- Foi uma besteira muito grande que o mandou para os braços da Inquisição?
- Bastante grande... se até folha de árvore é suspeita de ter maus pensamentos!
Ridícula, se nos atemos à realidade.
- E foi absolvido?
- Melhor que isso, senhor. Agora, da maneira mais oficial do mundo, eu não passo
de uma sombra!
Don Francisco sorri de novo. Mas seu olhar fica mais duro e mais incisivo:
- É capaz de me jurar fidelidade? Uma fidelidade absoluta. Uma abnegação que o
levará a obedecer a mim, exclusivamente a mim, em qualquer circunstância? Isso
deve ter um custo para o senhor, e alto...
- Sim, senhor.
- Por algum moƟvo que desconheço, meu irmão don Hernando o odeia. O senhor
precisará agüentar o temperamento dele. E, sem dúvida, às vezes ceder ao orgulho
dele, que é grande...
- Vou me esforçar para isso, senhor. Meu único desejo é que confie em mim como
confio no senhor!...
Don Francisco, eu não tenho pai. Mas admiro o senhor como admiraria meu
genitor! Juro pela santa Virgem que é sua santa guardiã: eu lhe serei fiel até o sangue
se for preciso!
Don Francisco balança a cabeça devagar, a expressão alƟva. Mas sua boca
treme. Ele mastiga em seco, cofia a barbicha com os dedos crispados.
Depois, com um gesto brusco, reƟra do gibão um envelope grosso, fechado com
um lacre que Gabriel reconhece logo.
- Senhor! Mas isso é a carta real!
- Chegada ontem. Entregue por dois pajens e tudo o que manda o figurino. Por
sorte, Hernando não estava presente. Eu queria rezar um pouco antes de lê-Ia e
finalmente ficar sabendo. Talvez seja uma recusa... Leia isso para mim, don Gabriel.
Febrilmente, com o polegar, Gabriel rompe o lacre. Não precisa de muito tempo
para dar uma risada clara, cheia de alívio.
- Eu não lhe disse? O senhor foi nomeado Governador e Capitão geral de Nova
Castela, chamado nas índias "Peru"... E... uma pensão real de setecentos e vinte e
cinco mil maravedis... Tem muita coisa, senhor, mas está assinado pela própria
Rainha, com data de julho último.
Fala de meus companheiros do Panamá? Que ơtulo para Almagro? Um instante...
Ah! Está aqui: `Don Diego Almagro, que parƟcipou pessoalmente dos trabalhos de
descoberta de Nova Castela e em cujo financiamento empregou seus próprios bens
e... "
- O título!
- AI guacil Mayor de Tumbez" senhor! O posto e os privilégios de capitão da
fortaleza de Tumbez e cem mil maravedis por ano. Mmm. Leia tudo em detalhes,
don Gabriel. Desde a primeira linha e sem omitir uma palavra... E não muito
depressa, por favor.
Gabriel lê, como Pizarro lhe pediu, lentamente, destacando bem as sílabas. E é
como se cada palavra entrasse no seu sangue e o aquecesse no mais fundo de sua
alma - como se ele já esƟvesse atravessando aquelas selvas, subindo aquelas
encostas escarpadas para descobrir aquelas cidades cujos muros são de ouro.
Quando termina, fica um instante fitando a carta antes de ousar olhar de novo
para o Capitão. Pizarro chora - não de maneira ơmida, envergonhada, como um
homem que Ɵvesse medo de ser confundido com uma mulher... Lágrimas belas e
quentes que lhe sulcam as faces e vão se afogar em sua barba.
Gabriel se cala. Pizarro finalmente volta para ele uns olhos brilhantes: - Tudo é
nosso, filho, tudo!
E Gabriel não pensa apenas, maravilhado, que encontrou um país - fantasia, com
um espanto que o perturba, que encontrou um pai.
Capítulo 27
Machu Picchu, janeiro de 1530
Num esơrão só, eles sobem os degraus íngremes que levam às duas colunas de
pedra que dão para toda a luz do céu.
Villa Oma vai à frente. Há no ar uma espécie de ternura, como se a transparência
do céu, o azul do Outro Mundo de Cima ou os verdes inumeráveis das encostas
possuíssem um hausto único, uma respiração contida e calma.
Mas quando chegam entre as colunas, Anamaya só vê um caminho largo, calçado
com tanto cuidado que não há nenhum mato entre as pedras. O caminho sobe ainda
suavemente entre dois pequenos bambuzais onde vice jam grandes orquídeas.
Depois, duzentos passos à frente deles, torna a formar um corte aberto no vazio.
O coração de Anamaya bate tanto que ela tem dificuldade de respirar. Sua nuca,
suas mãos estão molhadas de suor. Não é do esforço. Hoje a marcha não foi longa
nem difícil.
De repente, diante dela, enquanto aparecem as encostas das montanhas distantes,
o Sábio fica imóvel. Seus braços se abrem, os dedos voltados para o chão. Anamaya
chega até ele.
A cidade proibida está ali embaixo.
Jamais seus olhos se depararam com semelhante esplendor. Jamais seu coração
recebeu tanta beleza. Incrustados no entrançado de picos e vales, como uma imensa
e perfeita escultura, seus flancos mergulham, de terraço em terraço, nas encostas
verƟginosas que encontram o rio roncador.
Casas, ruas, templos, pátios, muros e culturas sagrados desenham um tecido
estampado de marrom, ocre e tons suaves ou ácidos de verde, fino e sutil como um
unku real.
Em torno da cidade e até onde a vista alcança, longe no mundo que os homens
não conhecem e erguidas no azul opaco do céu agora carregado de nuvens, as
montanhas envolvem Picchu como guerreiros atentos.
As escarpas vertiginosas se embaralham na claridade vespertina, cortantes como a
crista de um Cumbi e cobertas de um verde infinito até o pico mais alto. Muito
longe, no estreito vale onde corre o rio amarelo semelhante à serpente eterna, já
estão nascendo as brumas da noite.
- Picchu - murmura Villa Oma. - Picchu! Ánamaya estremece, a garganta seca.
Do alinhamento esmerado de tetos de ichu, amarelo-vivo ou cinza, sobem aqui e
ali espirais de fumaça.
Um grupo de homens e mulheres atravessa a longa praça central coberta com um
tapete de relva. As cores vivas de suas túnicas e das capas brilham à luz do poente,
ornamentos de ouro faíscam, enquanto as sombras já estão longas e compactas nos
vales.
- Venha cinco passos atrás de mim - ordena Villa Oma prosseguindo. Mas
Anamaya entende o que vê e fica paralisada. Pelo jogo de luz e sombra do
entardecer, a forma do pico que domina a cidade sagrada do oeste fica evidente. O
puma está diante dela.
Como uma fera saƟsfeita pela longa corrida de uma caçada vitoriosa, a montanha
adormeceu. Focinho nobre para o alto, ela encerra em suas patas poderosas os
templos, as ruas, as casas, os terraços de linhas macias como as dobras de uma
peliça!
- A montanha está viva - murmura Anamaya sem se dar conta de que está falando
sozinha. - A montanha está viva!
Mas ali embaixo, Villa Oma se volta e, com um gesto imperioso, faz sinal para
que ela vá em frente.
Quando chegam perto dos primeiros muros da cidade, ele torna a parar. Aponta
para uma casinha de portas largas num dos terraços sobrelevados. - Vá me esperar lá
- ordena. O tempo que for preciso. Sobretudo não saia dali.
As perguntas se acotovelam na cabeça de Anamaya, mas o olhar do Sábio não
admite réplica. Secamente, sem um adeus, como se esƟvesse demasiado inƟmidado
por aquele local para mostrar sua afeição, ele continua seu caminho.
Ànamaya o acompanha com os olhos enquanto ele desce uma longa escada que,
de repente, faz uma curva abrupta de noventa graus e, mais íngreme, vai beirando um
muro alto. Mas na curva, há uma entrada fechada por um portão de bambu. Villa
Oma pára diante do portão e, sem conseguir entender o que ele diz, Anamaya o ouve
gritar algumas palavras.
Nada acontece por um bom tempo, como se o Sábio tivesse o acesso proibido.
Depois, de repente, o portão basculante se abre lentamente e revela uma rua
estreita entre casas baixas. Surgem três homens, lança em punho mas com a capa
passada no ombro direito à maneira dos sacerdotes. As saudações são longas. Villa
Oma fala muito, curvando-se diversas vezes em sinal de respeito. Finalmente, ele
entra e desaparece atrás dos sacerdotes enquanto o portão de bambu está aberto.
***
Até tarde da noite, Anamaya fica sentada diante da casinha vazia que domina
Picchu.
Acima dela, e enquanto ainda está claro, centenas de camponeses trabalham nos
terraços. Alguns amanham a terra em volta dos brotos jovens de milho que servirão
para fazer a chicha das cerimônias, outros plantam favas sagradas ou, nos terraços
mais baixos, colhem folhas de coca que jovens levam para a cidade em enormes
fardos. Estes vão tão carregados que, quando sobem as escadas íngremes, só se
vêem seus pés.
Há pouco barulho, não se ouvem gritos. Sacerdotes também vão nos terraços,
reconhecíveis por seus unkus sedosos e os brincos enfiados em suas orelhas.Eles
supervisionam o curso da água nos canais de irrigação, contro lam as plantações, às
vezes salmodiam diante dos regos ou simplesmente contabilizam os carregamentos
de coca...
Nem uma vez sequer alguém se aproxima dela. Um grupo de crianças, no entanto,
conduzindo uma tropa de lhamas a uns terraços afastados, sobe as escadas ali perto.
Mas nenhuma delas olha para ela.
É como se ela não existisse. Como se não passasse de uma sombra do Outro
Mundo!
De repente, os blocos de névoa da noite escapam do rio. Sobem a toda entre as
escarpas como pássaros loucos. Uma umidade fresca transforma-se em brisa,
vergando os pés de milho.
É então que se ouve pela cidade o canto das mulheres. Anamaya as vê surgindo
de um bairro mais abaixo. Elas atravessam a esplanada em direção a casinhas
aninhadas no muro de cinta. São muito numerosas, vesƟdas de branco, vermelho e
amarelo, com toucados de ouro na cabeça. Em fila tripla, elas caminham no mesmo
passo, sobem as escadas.
Depois o canto cessa, bruscamente subsƟtuído pelo som de uma trompa que vem
do ponto culminante da cidade, onde surge a pedra que segura Inti, o Pai Sol.
Agora são homens que surgem na esplanada. Mas eles não estão em fila, cada
qual vai para um lado. Anamaya reconhece Villa Oma. Ao lado de um sacerdote
com um pesado cocar de plumas cujas cores agora no escuro são indiscerníveis,
Villa Oma se dirige para uma ampla escada. Após tê-la subido lentamente, ele
desaparece numa comprida construção retangular.
Minutos depois, o breu é absoluto.
As montanhas não são mais que massas indisƟntas que parecem vibrar no escuro
como monstros adormecidos. O céu está carregado de nuvens, sem lua nem estrelas.
Começa uma chuva fina, molhando tudo em alguns segundos. Anamaya refugia-se
na casa. No chão de terra baƟda, não há sequer um banco de pedra, de ichu ou de
adobe para se deitar.
Ela se agacha encostada a uma parede, de frente para uma das portas. Ouve o
silêncio, a chuva. Sente o cheiro da fumaça das lareiras que se espalha no ar
impregnado de umidade. Às vezes, sente-se um cheiro de sopa.
Ela está com fome. Mas entendeu que naquela noite não vai comer. Fica o
máximo possível de olhos abertos para a escuridão como se ainda pudesse ver surgir
uma tocha ou ouvir a voz de Villa Oma chamando.
Mas só se ouve o silêncio da montanha.
Ela adormece sem sequer perceber, esgotada de emoção.
E acorda sobressaltada, julgando ter ouvido o berro de uma onça. Acha que só
dormiu um instante. Mas não. Já não chove e as estrelas brilham intensamente no
céu.
Ela se levanta, sai da casa. Sim, o céu está limpo e faz um calor abafado, como
se o ar
fosse grosso o bastante para ser espremido entre as mãos. A cidade sagrada dorme
no escuro, entre as patas do puma. Isolados, sob o brilho das estrelas, ao longo de
uma escada onde ela viu na véspera uma sucessão de chafarizes, brilham bonecos de
ouro do tamanho de uma criança. Para ver melhor as estrelas e as sombras da
Cidade sagrada, Anamaya se afasta da casa. O sono abandonou-a definiƟvamente.
Sentada nos degraus de uma escada, envolvida em sua manta que mal a protege da
umidade, ela vela como se esƟvesse sozinha no mundo.
Totalmente só.
Gostaria de ouvir o chamado de Huayna Capac, o velho Inca. Gostaria de ouvir
sua voz misteriosa e reconfortante. Mas só há silêncio.
Sem saber por que, ela tem medo de entrar na Cidade sagrada. O maravilhamento
da descoberta passou e ela de repente se sente como antes, quando era pequena,
impotente e sem forças. Quando nada sabia do mundo invi sível, quando ria e nada
temia.Quando não sentia o puma escondido numa montanha...
Mal o dia começou a raiar, enquanto todo o seu corpo está insensível por causa
da umidade, a porta da cidade se abre.
Os três sacerdotes que acolheram Villa Oma na véspera vêm até ela e, mais por
gestos do que por palavras, ordenam-lhe que os siga.
***
- Prometa a Mama Quilla manter a boca fechada para sempre, não revelar a
ninguém o caminho que a trouxe aqui nem o que você vê!
De pé entre duas muretas que lhe batem na cintura, Anamaya está na ponta de
uma plataforma. Ela domina um despenhadeiro tão verƟginoso que parece que o
fundo do vale lá embaixo pode caber na palma de sua mão.
Atrás dela, o Sumo Sacerdote Huilloc Topac esbraveja sua ordem. Sua boca é
fina como a de Villa Oma, esverdeada de coca. Mas seus olhos têm um tom cinza
estranho. Segundo Villa Oma, são as centenas de noites de observação das estrelas
que branquearam assim suas íris.
- Olhe para Mama Quilla e faça-lhe sua promessa! - ruge mais uma vez o Sumo
Sacerdote.
Anamaya fita as cristas denteadas da montanha mais alta barrando o horizonte do
oeste. As nuvens se rasgam aí, desvelando as dobras das encostas que a vegetação
cobre como um pelego. E, como se o céu, o vento e a chuva obedecessem a Huilloc
Topac, de repente surge uma faixa azul. No centro dela, a lua brilha branca e pura,
quase cheia.
- Prometo, Mama Quilla - diz Anamaya em voz alta - , prometo nunca revelar
nada sobre a Cidade sagrada! Ficarei calada sobre os caminhos que levam a ela e
guardarei no coração o que vir ali. Que me arranquem a boca se eu quebrar essa
promessa...
Mal ela se cala, sente pesar-lhe no ombro a mão bruta de Huilloc Topac. Ele a
obriga a se debruçar no muro de pedra, projetando o corpo para a frente e agarrando-
se à pedra como pode.
- Olhe o vazio lá embaixo, menina. Olhe com atenção, pois é onde você será
jogada se violar sua promessa! Ninguém jamais deve ouvir falar de Picchu!
Ninguém deve saber que ela existe. E mesmo se o seu Senhor Atahualpa lhe
perguntar, você deverá responder com o silêncio. Entendeu bem?
Huilloc Topac solta-a para que ela possa se voltar e lhe responder fitando-o nos
olhos:
- Entendi, Poderoso Sacerdote.
Afastado, Villa Oma conserva os olhos fechados. Tudo em sua postura fala de
sua humildade e de quão humilde ele quer ser aqui.
- Agora, acompanhe-me, menina prodígio!
Há na voz de Huilloc Topac tanto ironia quanto desprezo.
Ele gira nos calcanhares, no caminho de pedra flanqueando o precipício, e toma a
direita na primeira escada que sobe ao posto sagrado das observações. Anamaya o
acompanha e ouve às suas costas o leve ruído das sandálias de Villa Oma.
***
Há quatro dias, ela está dentro das muralhas de Picchu. Há quatro dias, é manƟda
num aposento minúsculo, com um reboco ocre nas paredes mas sem nenhuma
decoração, sem nichos para eİgie alguma. Há quatro dias nin guém, homem, mulher
ou criança, dirigiu-se a ela. Nem mesmo Villa Oma que ela entreviu uma vez apenas,
bebendo a chicha sagrada com os sacerdotes em volta da Intihuatana, a pedra onde o
Sol se sustenta.
Às vezes, quando ela queria se aproximar do bairro dos templos, das fontes de
ouro, da huaca do Condor, erguiam-se mãos e, com gritos furiosos, ordenavam-lhe
que recuasse. Ela passou uma tarde inteira agachada na soleira das oficinas dos
joalheiros, vendo-os martelar os lhamas de ouro, os brincos, incrustar as esmeraldas
e as plumas nos chapéus e peitorais. Mas nenhum ourives lhe concedeu um olhar.
As crianças esbarravam nela quando corriam, como se não a vissem, as mulheres
sentadas de dez em dez diante dos teares desviavam os olhos quando ela se
aproximava como se, com um olhar, ela pudesse sujar a maravilhosa obra delas... E
quando finalmente voltava para seu aposento solitário, ela encontrava no chão uma
Ɵgela de chuño, uma mistura de favas. Mas sem nunca ver a mão que lha trazia!
- Você precisava poder jurar diante de Mama Quilla murmura VilIa Oma,
alcançando-a no alto da escada. - E todos esses dias, o céu esteve encoberto.
- Mas por que não veio me ver? - exclama Anamaya, surpresa de finalmente estar
ouvindo sua voz.
- Fale mais baixo! Na presença do Sumo Sacerdote só podemos falar baixinho!... E
eu não podia vir visitá-la porque, antes da sua promessa, ninguém Ɵnha o direito de
vê-la nem de se dirigir a você.Era como se a sua aparência física ainda não estivesse
em Picchu.
Diante deles, Huilloc Topac vem vindo depressa pela ruela que leva à esplanada.
Bruscamente, ele dobra à esquerda, embrenha-se numa viela estreita, uma das que
haviam sido vedadas até agora a Anamaya. Como ela hesita, Villa Oma Ihe dá um
empurrãozinho.
- Você tem direito! E não se aflija. Huilloc Topac é um homem severo e taciturno,
mas é justo. E conhece a realidade do céu como ninguém. Há vinte anos que ele vive
aqui e passa as noites falando com as estrelas. Além do mais, ele é irmão de Colla
Topac. Só ele pode ainda ter o poder e a vontade de rèstabelecer a ordem...
A sala onde Anamaya entra acompanhando o Sumo Sacerdote é muito estranha.
As paredes são de pedras encaixadas à perfeição e de textura regular, cujo volume
vai diminuindo para o alto. Este é o sinal de um local de grande importância. Duas
janelas em trapézio dão para o vale de Wilcamayo e delas se podem avistar os picos
de oeste assim como a serpente amarela do rio fervilhante. Mas a sala não tem teto.
E, no chão, duas grandes bacias de granito, pouco fundas, contêm uma água muito
límpida. Sentados a um canto, diante de um bambu com uma quanƟdade de quipus
pendurados, jovens sacerdotes contam diligentemente os nós dessas espécies de rede
de cordames. Às vezes, com grande agilidade e rapidez, eles acrescentam um nó,
outras, desmancham um fio inteiro. É assim que, através das luas e das eras,
conserva-se a memória do Império e dos altos feitos dos Incas.
Huilloc Topac faz sinal para que os sacerdotes saiam do aposento e, quando
ficam a sós, volta-se para Anamaya e pergunta secamente:
- Então, você viu o cometa e achou que o sinal estava lá. Atahualpa deve ser o Inca?
Anamaya fica tão surpresa com a brutalidade da pergunta que não responde logo:
- Huayna Capac, quando passou para o Outro Mundo, passou a noite inteira
conversando com ela - murmura Villa Oma constrangido.
- E ela encontrou o puma na...
- Eu sei! - corta Huilloc Topac. - É ela que eu estou interrogando. Responda,
menina dos olhos azuis!
- Sim, Poderoso Sacerdote. Eu vi o cometa e sei que meu Senhor Atahualpa deve
ser o Inca.
- Você sabe! - Sei.
- Sabe também o que aconteceu ao poderoso Colla Topac.
- Quando ele morreu, eu estava segurando as mãos dele. Ele também sabia. Por
isso foi torturado e morto de maneira tão atroz.
- Ah!
Com um gesto de dor, Huilloc Topac vai até as bacias de granito e se curva diante
delas. A água, naquele momento, reflete apenas a passagem das nuvens.
- Vi sombras na noite - murmura ele. Vi escuridão na escuridão. Estrelas se
ausentaram e há vazios no céu... eu nunca havia feito observações como essa!
Seu tom recolhido e preocupado encoraja Villa Oma, que desta vez diz com vigor:
- Se não fizermos nada, o Império dos Quatro Lados vai se desmembrar! A guerra
entre Atahualpa e os clãs de Cuzco vai devastar tudo. E se a força for igual dos dois
lados, o Império vai se esboroar.
- Você pede que eu tome um parƟdo, Villa Oma! Eu sou um sacerdote das
estrelas. Não sirvo nem a Cuzco nem a Atahualpa. Sirvo a InƟ, Quilla e todos
aqueles que nos criaram e nos protegem!
- Precisamente, Huilloc Topac! Não estou pedindo que escolha um clã, mas que
salve a nós todos, os Filhos do Sol. Estamos quebrando o equilíbrio! Estamos
tomando a força dos Ancestrais sem lhes fazer nenhuma ofe renda. E vim com esta
menina pois os Anciãos do Outro Mundo confiam nela. Dê-lhe a pureza e a energia
de ouvir a voz deles. Que Huayna Capac ordene sua vontade por ela antes que seja
tarde demais! Aqui, só ela pode receber este dom! E nós também rezamos aqui. Não
há lugar mais sagrado...
- Pureza e energia! - resmunga Huilloc Topac olhando para Anamaya. - Se ela
conseguir agüentar, faremos uma oferenda amanhã de manhã! Enquanto isso, que ela
vá se banhar nas Vinte Fontes. Avise as mulheres para prepará-la...
Capítulo 28
Cádiz, janeiro de 1530
A noite inteira, ela senƟu a umidade encostar em sua pele e penetrá-la, apesar da
proteção das paredes e das cobertas. Antes de adormecer, no poente, ela ficou muito
tempo debruçada numa janela, o olhar caindo como uma pedra no vale em cujo
fundo o Wilcamayo rugia. Está ali, perƟnho, esse vazio magnífico, e na umidade do
ar, cada vez que abre os olhos, ela se vê voando ali leve como um pássaro.
As palavras de Villa Oma e as dos sacerdotes passam por sua cabeça como
mariposas: a guerra parece muito distante neste local onde os deuses convidaram os
homens contanto que estes se fechassem em segredo. E no entanto Villa Oma disse e
repeƟu - a guerra está próxima, a guerra já está aí.
- Amanhã, quando o dia raiar... - murmurou ele antes de deixá-la para a noite.
Então, a noite toda, exasperada pelas emoções dos úlƟmos dias, ela espera o
alvorecer Ɵritando. Amanhã, quando o dia raiar? Ela ouve os cânƟcos abafados que
atravessam a noite e mais evocam lamento do que festa: as vozes rodeiam-na,
chamando-a para juntarse a elas. Ela se agita em vão. Amanhã, quando o dia raiar?
Ela procura um claro na abertura sobre o vale, chama silenciosamente o Inca Huayna
Capac. Mas não aparece nenhuma luz no vale, nenhuma voz vem ajudá-la.
Quando os primeiros raios do sol aƟngem os picos nevados de uma cordilheira
distante, ela está dormindo profundamente e Villa Oma vem sacudi-la para despertá-
la. Ela abre os olhos sobressaltada:seu coração está aos pulos. A claridade que
penetra em sua pequena cela ainda é cinzenta. Ela se levanta e arruma o tupu, o
alfinete que segura sua manta.
- Está na hora - diz simplesmente Villa Oma.
Eles atravessam as ruelas estreitas da cidade, subindo para o templo do Sol cuja
cúpula ela vê. Sem que ela queira, seu olhar é incessantemente atraído para as
montanhas, o vale e o rio roncador. Quando ela vira para trás, a luz invade o Huayna
Picchu e faz brilhar o ouro em seu rochedo ocre.
Na frente do templo, o sacerdote Huilloc Topac os espera. Sua roupa branca é de
fina lã de vicunha, e ele está com seu barrete sagrado. Um sol dourado cobre-lhe a
testa.
Villa Oma curva-se diante dele.
O olhar de Anamaya é atraído pelo grupinho de yanaconas, os que saem do
templo carregando uma rampa, uma liteira decorada bem menos ricamente do que a
da múmia, mas coberta como esta com um cumbi de textura finíssima.
Ela treme.
Embora o sol já se tenha levantado, o ar conƟnua úmido. Em cima da Porta do
Sol, concentram-se algumas nuvens.
O grupinho sobe devagar para a casa do guarda, ao longo da espetacular
superposição
de terraços das culturas sagradas - do malva da quinoa até o ouro fulgurante do
milho. Ninguém diz uma palavra.
À frente, caminham o Sumo Sacerdote e o Sábio, depois os yanaconas com a
liteira, outros servos com seis lhamas brancos. Anamaya fecha o cortejo. Quando
eles se afastam dos prédios, ela vê que estão tomando o rumo da Porta do Sol, o InƟ
Punku por onde ela primeiro avistou a cidade. O caminho é perfeitamente calçado e,
apesar da ladeira, avançase sem esforço. Eles sobem mais alto que os terraços de
milho. Ela ergue os olhos para a montanha cujo pico se destaca acima deles como
uma asa de pássaro no céu azul ainda pálido.
Machu Picchu. O velho pico. Murmurando essas palavras para si mesma,
Anamaya sente a apreensão lhe apertar o estômago e o peito.
De repente, o sacerdote deixa o caminho do InƟ Punku e vira à direita para subir
uma escada que vai dar direto na encosta, para o Machu Picchu. Anamaya corre
para alcançar o sacerdote e Villa Oma. Ao passar, olha para dentro da rampa. Em
vão.
- Aonde vamos?
Villa Oma esboça um gesto apontando para o cume.
- O que vamos fazer?
O tom ansioso em sua voz irrita o Sumo Sacerdote, que se volta severamente para
ela, depois para Villa Oma.
- Como essa menina ousa se dirigir a nós desta maneira?
- Só estou perguntando o que vamos fazer.
- Uma oferenda a Inti - diz a voz cansada de Villa Oma.
- Os lhamas?
Villa Oma não responde. O olhar de Anamaya volta-se para a liteira. Villa Oma
desvia os olhos.
***
O caminho fica mais estreito e mais íngreme; sobretudo, eles entraram numa zona
de floresta onde a vegetação é tão cerrada que esconde o céu. Touceiras de
orquídeas amarelas, vermelhas e cor-de-rosa despontam aqui e ali naquele mar de
folhagem. Em toda parte - à beira do caminho, descendo os rochedos - vê-se água
correndo.
Quando eles emergem acima da floresta, ela se vira, e o choque da cidade lá
embaixo lhe Ɵra o fôlego. É como se ela Ɵvesse baƟdo asas e esƟvesse voando no
alto, podendo ver a ordem perfeita dos terraços, das casas e dos templos, com a
mancha verde da esplanada central.
Depois, ela ergue os olhos e avista o cume do Machu Picchu, que se destaca
negro no céu de um azul mais intenso a cada instante.
- Eu não lhe ensinei, desde o primeiro dia, não a trouxe para conhecer? A voz de
Villa Oma a surpreende: é quase queixosa.
- Eu não lhe contei o nosso longo caminho para a luz e não a iniciei na
compreensão da guerra cujo fogo já nos devora?
- Você queria me dar ao puma e foi por ordem de Huayna Capac que me deixou
viver.
- Eu lhe contei tudo, trouxe-a aqui, a nosso lugar mais sagrado, e agora...
- Não estou entendendo, Villa Oma.
De cada lado do caminho erguem-se dois panos de muro. O coração de Anamaya
bate mais depressa: neste lugar, a montanha revela seu mistério. Os yanaconas
pousam a liteira. A tela fina do cumbi tremula como se soprada por uma leve brisa.
Uma menina desce. Não tem mais que dez anos. Há um fio de coca escorrendo na
comissura de seus lábios. Está vesƟndo um simples anaco branco, Ɵngido de
vermelho na cintura. Mergulha os olhos negros e intensos nos de Anamaya, que neles
não vê sorriso nem medo. Nada. Anamaya entende e a revolta a emociona.
- É isso que queria me contar? Que ia sacrificar essa criança?
- Cale-se!
A voz de Villa Oma recuperou a qualidade imperiosa. Os servos abaixam a
cabeça e os lhamas se agitam nas pontas das rédeas.
- O universo vai ser sacudido, a guerra já está incendiando o céu, Viracocha agita
o oceano, uma grande virada se prepara... E você me fala da vida dessa criança?
Capacocha, nossos pais praƟcavam esse sacriİcio, bem como os pais deles, e foi
assim que os incas se tornaram os senhores. E você, a menina dos olhos azuis, quer
interromper a ordem do universo, impedir que o sangue volte à terra?
Cada palavra do Sábio acerta Anamaya no coração.Sim, ela seguiu seu
ensinamento, e sua estada na cidade secreta permiƟu-lhe o acesso ao mais profundo
da alma inca. Sim, ela sabe que é preciso dar vidas para que a Vida conƟnue. Sim,
ela está infelicíssima diante das perturbações que se anunciam. E no entanto, diante
do olhar sem expressão daquela menina, algo profundo nela, algo recalcado há luas e
luas, volta à flor de seus lábios.
Ela abaixa os olhos, fecha-os um instante para fugir da luz. Villa Oma se cala. Ele
sabe que ela está se submetendo. - Vamos - diz simplesmente.
Anamaya dá alguns passos em direção à menina.Acaricia seus cabelos, lhe dá a
mão.
- Venha - diz baixinho -, vou ficar com você.
- E enquanto avançam na trilha, ela sente a mão da menina na sua, quente como
um bichinho que se entrega a ela.
Capítulo 30
Machu Picchu, janeiro de 1530
O caminho é ladeado por uma barreira de -rochedos, alta como uma muralha de
fortaleza.
Anamaya caminha sem tremer para não assustar a criança agarrada à sua mão.
Quando se abre uma falha no rochedo, ela não se detém, esgueira-se pela brecha
levando a menina no colo. Ela só se vira depois de estar do outro lado, na trilha
estreita que agora só domina um abismo imenso, assustador, no fundo do qual a
cidade parece minúscula.
Só há céu e, no meio do céu, um pássaro planando, mancha negra no horizonte das
nuvens e montanhas, um raio no céu.
O próprio pico da montanha, bem acima de sua cabeça, é uma pluma de pássaro
perdida no céu, à mercê dos ventos.
Vazio embaixo, vazio em cima - quase não há mais terra, só há céu e ar, não há
nada mais a segurá-la no mundo senão esta mãozinha na sua.
***
Justo antes do cume, na estreita faixa de terra que as separa do céu, há uma mesa
de oferenda escavada na huaca. Ao longe, para além das nuvens, ergue-se o
Salcantay em sua eternidade nevada. Um manto de bruma faz-se e desfaz-se, como
se Ɵras de uma fina lã de vicunha flutuassem no céu ao sabor do vento. Num piscar
de olhos, clareia e depois escurece.
Anamaya senta-se com a menina nos joelhos. Pega suas mãos e entra com ela
numa espécie de embalo, de embriaguez. A criança também mascou coca, também
bebeu chicha e está indiferente à idéia de ser sacrificada. Às vezes, Anamaya sente
seus dedos pegando a cabeça de uma das serpentes de seu bracelete de ouro e
enganchando-se aí.
Se se levantarem e derem alguns passos, elas voarão sobre as asas do condor
antes de mergulhar no rio cujo ronco, lá no fundo do vale, não passa de um vago
rumor.
Diante da buaca, os criados preparam uma fogueira para as primeiras oferendas:
milho, quinoa, coca... Depois virão os lhamas. Depois a menina. Anamaya não tem
mais medo. Não está mais revoltada.
Não foi a Villa Oma que se submeteu: foi ao universo inteiro, às montanhas, às
nuvens, ao sol e à sombra.
Seu olhar paira em volta da paisagem, do pássaro também, sobe com as nuvens
que agitam o céu e desce até as casas da cidade secreta que, daqui, parecem seixos,
grãos de areia. Ela murmura no ouvido da menina uma espécie de cantiga, embala-a.
A bruma formou uma massa cada vez mais compacta que desce no vale e aos
poucos esconde a cidade. O céu azul-pálido ficou quase branco. O pássaro se
afastou e só há os uivos do vento.
Ela vê o puma.
Sua sombra gigantesca invade o Huayna Picchu, a montanha que domina a cidade
e a protege com toda a sua jovem força. Seus olhos são dois rochedos e sua boca, a
sombra de uma greta; suas orelhas estão em pé como se ele fosse dar um bote, e
suas patas mergulham no oceano de bruma.
Anamaya sorri: o puma é seu amigo.
- Não tenha medo - murmura ela no vento para a menina -, não tenha medo e olhe o
puma...
O sangue dos lhamas foi recolhido nos vasos de ouro. Os sacerdotes e o Sábio
estão em frente a elas.
Elas se levantam. Anamaya com as mãos pousadas nos ombros da criança, cujo
corpo agora faz parte do seu.
- Agora - diz Villa Oma.
Na hora em que Anamaya abre os braços, ouve-se uma trovoada roncar no
horizonte e atravessar o céu.
O condor. O pássaro da força e da morte enche o céu inteiro com seu estrondo e
vem trazer sua sombra bem em cima de suas cabeças.
O ar está negro.
O sacerdote suspende a mão onde brilha o tumi de prata.
***
- Sou Huayna Capac - diz Anamaya com uma voz firme que domina o vento e as
primeiras gotas de chuva - ,sou o Inca cujo reino viu a força do Império das Quatro
Direções.
"Vejo tudo o que vocês vêem, mas vocês não me vêem. Vejo o Sol se escondendo
e a Lua se deitando, vejo os turbilhões sacudindo a terra e o céu. "Vejo o caos, vejo
o sangue correndo em vão, vejo o universo revirado, vejo exércitos rolando ao longo
das torrentes como pedras, vejo o irmão batendo no irmão, o filho matando o filho,
ouço o grito das mulheres que são mortas e estupradas.
"Choro lágrimas de verdade."
O peito de Anamaya sobe suavemente e sua respiração está curta. Ela não ousa
erguer os olhos para o condor e uma bruma dança diante de seus olhos escondendo o
sacerdote, o Sábio, a própria menina, que, para ela, não são mais que sombras. É ela
quem fala, mas não é ela quem fala.
- Vejo homens se dilacerarem por cupidez, vejo a fome lhes devorar o ventre e o
espírito, vejo secas as fontes, e fechados os caminhos de luz e sombra pelos quais
conhecemos os universos.
"Vejo somente a dor descendo as escadas que vão ao coração da terra. "E depois,
vejo meu Irmão-Duplo, meu irmão de Sol tendo de fugir, de se esconder na sombra
antes de ressurgirem plena luz, depois de muitas luas, para anunciar o próximo
pachacuti."
Ela se cala.
Não vê a faca voltar à mão do sacerdote, não vê o olhar negro de Villa Oma e o
pânico dos servos.
Não ouve o condor se afastando.
Quando o sol que voltou bate em sua nuca, ela sacode a cabeça, desperta do sonho.
- Menina Anamaya - diz o Sábio -, menina dos olhos de lago, não sei o que nos
anuncia, mas acredito em você...
- Eu mesma não sei.
- Por isso acredito em você. Entendeu agora por que a sua revolta era inútil?
Anamaya faz que sim com a cabeça, murmurar:
- Vocês não sacrificaram a criança...
- Não seja arrogante. Não ache que foi por sua causa. Chegou o sinal...
- Isso eu sei, Villa Oma.
Os criados levaram às costas as carcaças ainda quentes dos lhamas. A bruma
dissipa-se lentamente e pode-se ver a cidade brilhando no meio de seu estojo de
esmeralda.
Com passos lentos, ela desce pelo cume estreito, e volta ao rochedo pelos
degraus íngremes...
Esse tempo todo, ela vê a cidade cujos muros e tetos de palha ficam mais níƟdos
a cada passo.
Esse tempo todo, ela pensa que o universo inteiro será destruído pela guerra. As
palavras de Villa Oma e as de Huayna Capac, as visões e as vozes: tudo fala de
sangue, de morte, de destruição.
Esse tempo todo, ela se pergunta o que o puma, diante dela, preso à montanha,
queria lhe confiar.
E esse tempo todo, ela sente a mão da menina na sua e uma felicidade silenciosa,
impossível de expressar ou compartilhar, bate em seu peito como um segundo
coração.
TERCEIRA PARTE
Capítulo 31
Ilha de la Puna, março de 1532
***
No banco de areia, ao cair da tarde, os olhos perdidos nas cristas alaranjadas das
montanhas ao longe, SebasƟan e Gabriel ficam em silêncio. A tagarelice dos índios
é como um murmúrio misturando-se ao som da arrebentação.
Gabriel Ɵrou a camisa e examina a pele ressecada de seu torso e de seus braços,
sulcada pelas carências e as privações.
Sebastian faz desenhos na areia. O que é?
- Olhe bem... Foi lá, na praia de Tumbez, que o Grego e eu o vimos pela primeira
vez...
Gabriel começa a rir.
- O gato grande! Aquele que eu tenho no ombro, não é?
- Não acha que já era hora de você encontrá-lo?
Com um simples risco, SebasƟan deu vida à força e à selvageria do animal. O
olhar de Gabriel desliza sobre o felino, atravessa o oceano, a praia invisível ao
longe, a floresta e as montanhas; a certeza de sua promessa o embriaga.
***
Foi talvez à meia-noite que ele escutou o primeiro uivo.
No segundo, definitivamente desperto, Gabriel desvencilha-se das cobertas e se
levanta, adivinhando Sebastian já de pé a seu lado.
- Bocanegra! - exclama Gabriel. - O coitado está padecendo um marơrio! Talvez
esteja arrancando outra verruga...
Outro grito, mais violento, rasga a noite e vibra, sobrepondo-se ao estrondo
conơnuo da arrebentação.
- Não! - diz SebasƟan. - Bocanegra não põe a boca no mundo por causa de uma
verruga. Mas por trinta dessas porcarias! É outra coisa.
Ambos pensam a mesma coisa.
Na mesma hora, levantam-se de um pulo e saem de debaixo das árvores
retorcidas onde encontraram refúgio e correm pela duna de areia.
Está mais escuro do que dentro de um forno, mas os uivos repeƟdos de
Bocanegra os guiam tão bem como um farol. Quando a proximidade da água torna a
areia dura, Gabriel desembainha a espada com tanta violência que a lâmina assobia
no ar.
Os gritos de Bocanegra se transformam, viram chamados bem claros: - Socorro,
companheiros! Eles estão nos roubando. E estão me matando!... No escuro, Gabriel
adivinha a vela da balsa retesada pela brisa. A embar cação, já afastada da praia,
empina de través ao passar uma onda, enquanto os gritos redobram.
- Índios traidores desgraçados! - berra Sebastian. - Estão nos abandonando...
Dominado pela raiva, Gabriel corre ao encontro das vagas cuja espuma risca a
escuridão. Empunhando a espada acima da cabeça, por um instante, parece-lhe que
pode chegar até a popa da balsa se conƟnuar correndo. Ele vê disƟntamente
Bocanegra, imobilizado contra as toras por dois índios, levar uma cacetada de um
terceiro. Os gritos cessam. Só se ouve o movimento lancinante do oceano. Depois a
voz de Sebastian:
- Don Gabriel, nada de loucura! Volte, volte. Vai se afogar...
Mas a fúria é forte demais. Ela o impele tanto quanto a correnteza. Ele corta uma
primeira onda, quebrando com o punho a parede d'água. A popa da balsa está apenas
uma espada à frente, e o brilho dos olhos do índio que segura o leme é aflitíssimo!
Depois, de repente, quando a água se ergue como uma fera rugindo, Gabriel
sente-se pesado como chumbo. Suas botas, seus calções, até as mangas de sua
camisa estão encharcados.
A onda quebra em cima dele, enrola-o, amassa-o como uma bolacha de barro.
A lâmina de sua espada bate em seu rosto, ele está de pernas para o ar, só há
água por todo lado, e um rugido que anuncia a morte o ensurdece enquanto seus
membros parecem querer se separar dele.
Ao bater com a cabeça na areia do fundo do mar e engolir água salgada, ele sente
o fogo da asfixia explodir em seu peito. Por uma fração de segundo, tem lucidez
suficiente para ter consciência da ironia de morrer afogado às portas de um mundo
novo.
Depois, seu pé encontra a firmeza do fundo e, num esforço desesperado, impele-o
para a superİcie. Engasgado com a água que bebeu, ele dá braçadas furiosas e
alcança a balsa. Com um pontapé, os índios poderiam em purrá-lo para a água; com
uma cacetada, poderiam abatê-lo como fizeram com Bocanegra. Mas parecem
pasmos de vê-lo surgir, como um fantasma, do fundo das águas.
- Agüente, don Gabriel - grita a voz de Sebastian bem perto dali.
O Negro alcançou-o e isso é demais para os três índios que pulam n'água e tentam
fugir a nado.
Gabriel, exaurido, só tem força para subir na balsa. Mas SebasƟan mergulha para
pegar o índio menos rápido; joga-o na balsa como se ele fosse um embrulho e sobe
também, bufando e cuspindo.
- Se tentar fugir - diz Sebastian pegando o índio pelo pescoço -, eu como você.
O rapaz, ainda adolescente, treme de medo. Sebastian e Gabriel recobram o fôlego.
- O que fazemos com ele, don Gabriel? - Se quiser comê-lo, por mim, pode.
Para ser sincero, minha cabeça confusa antes concebeu o plano de incitá-lo a nos
guiar até Tumbez. Se o senhor não vir nenhum inconveniente nisso, naturalmente.
- Sebastian? - Don Gabriel? - Pensei que você não soubesse nadar.
- Infelizmente tenho que confirmar isso; a não ser que chame de nadar os
movimentos desordenados que meus membros fazem para sobreviver a esse horror -
diz ele apontando para a massa escura do oceano.
O mar acalma um pouco. SebasƟan mostra o remo de leme ao rapaz índio que o
pega, após uma breve hesitação. Gabriel deixa a felicidade de estar vivo e a chuva
de estrelas que ilumina o céu encherem seu coração.
- Sebastian?
- Don Gabriel?
- Eu lhe devo a vida. E para dizer tudo, ainda por cima, vou lhe pedir um favor...
Você teria a bondade de me chamar só de Gabriel?
SebasƟan não responde. Parece mergulhado na contemplação do mar. Depois,
vira-se para Gabriel e lhe dá a mão. Gabriel o puxa para si e os dois se abraçam,
como irmãos.
Capítulo 32
Huamachuco, março de 1532
***
Cercada por Guaypar e sua escolta, protegida da chuva por uma barraca levada
pelas criadas, Anamaya atrai todos os olhares quando vai da cancha das Esposas ao
palácio do curaca onde reside Atahualpa.
No entanto, uma vez transposto o muro que cerca o palácio, quando a escolta se
dispersa no primeiro páƟo e as criadas voltam para onde vieram, Guaypar esboça
um gesto para segurá-la. Recusando o contato por reflexo, Anamaya se afasta
bruscamente, fazendo tilintar as tirinhas de ouro e prata entrelaçadas em sua touca.
- Me dê um instante! - exclama Guaypar, a voz alterada. - Anamaya, não tenha
medo de mim!
Anamaya está prestes a replicar energicamente quando vê no olhar de Guaypar
tanto confusão quanto medo.
- O que quer de mim?
- Que você me perdoe!
- Guaypar, eu...
- Não, deixe-me falar! As palavras vêm inchando na minha garganta há anos e hoje
estão me sufocando! Anamaya, eu era só um garoto louco, cheio de vaidade!...
- Já esqueci, e o único Senhor...
- Anamaya, me ouça! Sei que você se lembra daquela noite em Tumebamba, a
noite do huarachicu. Eu estava humilhado pela minha derrota, embriagado de chicha,
estava tomado pelas sombras ruins. Os demônios bebiam meu sangue, mas... mas
isso foi há muito tempo, muito mesmo. Há quatro solsơcios de inverno! Quatro
vezes o ciclo das estações se passaram desde então! Eu era uma criança e você
também. Hoje sou um soldado, e o nosso único Senhor me nomeou capitão depois
da batalha da ponte de Angoyacu...
- Sim, eu sei que você foi muito corajoso. Dizem que você capturou dois generais
de Huascar - aprova Anamaya com doçura.
- Sim - exclama Guaypar levando a mão ao ferimento, os olhos brilhando de
orgulho. Sim! Não sou mais aquele fraco vaidoso que Manco, o falso irmão do
nosso Inca, humilhou na sua frente!
Anamaya deixa passar essa lufada de orgulho. Guaypar prossegue, num tom mais
baixo, mas com o mesmo ardor.
- Você também mudou. É... É a mulher mais bonita do Império das Quatro
Direções! Nenhuma outra tem a metade da sua beleza. Nenhuma tem o poder do seu
olhar, nenhuma tem a força e a doçura da sua boca...
- Por favor, Guaypar...
- Anamaya, me ouça! Desde aquela maldita noite, não se passou uma lua sem que
eu pense em você. Até durante a batalha de Àngoyacu, você estava na minha
cabeça! Fui o primeiro a ver a sua beleza, Anamaya! O primeiro... E durante esse
tempo todo, fiquei calado. Evitei-a. Agora, estou junto do nosso único Senhor e me
preparei para...
- O que espera de mim, capitão Guaypar? - Que seja minha esposa!
- Está louco! Sabe que pertenço ao Irmão-Duplo!
- Ah! - protesta Guaypar com um gesto de cólera. - Isso é só um ơtulo que
Atahualpa
lhe deu quando nem sequer era o Inca! Hoje ele é, e em grande parte graças a você.
Ele pode anular o que fez...
Sufocada, Anamaya procura as palavras que poderiam fazer Guaypar ouvir a voz
da razão. Mas vê no olhar do jovem capitão uma imensa e sincera angúsƟa que a
perturba. É certo que ele não é mais aquele adolescente embriagado de chicha de
Tumebamba. No entanto, a embriaguez que o domina hoje não é menos violenta. E a
causa é ela própria.
- Minha alma daqui só respira por você, Anamaya! - geme Guaypar. - Seu Esposo
o Irmão-Duplo é feito de ouro e não sabe o que é o sofrimento do amor. Ao passo
que eu estou sangrando e ardendo. Minhas entranhas queimam só de pensarem você.
Eu lhe digo: as torturas que o pérfido Huascar inventa não são nada em
comparação...
O tremor de seus lábios, o estremecimento que percorre todo o seu corpo
apagando a sua voz só comprovam a veracidade de suas palavras. Com a garganta
apertada pela emoção, Anamaya recua.
Jamais alguém the fez uma declaração semelhante. Ela sente a dor do rapaz como
se seus dedos tocassem uma chaga aberta. No entanto, no entanto tudo nela sabe que
deve se fechar a essa súplica.
Com a maior doçura possível, diz:
- Não me lembro de nada daquela noite de Tumebamba, capitão Guaypar. E vou
esquecer esse instante também. Pois não posso nem quero ouvir as suas palavras.
Mas agradeço a sua coragem. E espero que InƟ o torne o maior e o mais feliz dos
generais de nosso Senhor Atahualpa. E agora, você deve me levar a ele antes que ele
fique muito impaciente.
Um esgar de dor e de raiva impotente desfigura Guaypar, quando Anamaya vira
as costas e vai indo para o pátio.
Mas ela não vê.
***
Há algum tempo, cada vez que encontra o Único Senhor, Anamaya fica
impressionada com sua mudança física.
Atahualpa não é mais o homem esbelto e vivo que a encorajava, protegia e
impressionava com um único olhar.
Ele não perdeu nada de sua força, ao contrário.Desde que, em Quito, durante
uma imensa cerimônia, colocou a borla real na cabeça, desde que é o Inca, tudo nele
só exprime poder e dominação. Mas de tanto beber jarros de chicha durante
cerimônias intermináveis, de tanto mergulhar desesperadamente na embriaguez
sagrada para procurar ouvir os ancestrais, seu corpo ficou mais pesado. Hoje, ele
tem o rosto inchado e o queixo pesado. Também engordou na cintura. E depois, o
branco de seus olhos está mais vermelho de sangue do que nunca, como se seu
coração extraísse daí um excesso de energia. Isso lhe dá um olhar estranho, negro e
púrpura, em que é diİcil adivinhar os pensamentos e que sempre parece portador de
tempestades assim como de uma insaciável tristeza.
Quando Anamaya se prosterna diante dele, joelhos e mãos no chão, a cabeça
inclinada, sua pergunta é mais direta que impaciente:
- Meu pai Huayna Capac não lhe falou mais? - Não, meu Único Senhor.
- Ah!... E por quê?
- Porque ele não tem nenhum motivo para fazer isso...
- Nenhum motivo? Está maluca?
Anamaya percebe toda a amargura e a fúria que fazem vibrar a voz de Atahualpa.
Sempre prosternada, pergunta:
- Posso lhe falar com toda a sinceridade, meu único Senhor?
- Você sempre falou, não vejo por que se calaria hoje!
- Bem-amado Senhor, não entendo o seu receio nem a sua impaciência. Você
travou nove batalhas contra o seu irmão louco de Cuzco. Huascar só ganhou duas.
Você foi a Quito e, conforme a vontade de InƟ, os Poderosos do Norte, os Sábios e
os Ancestrais colocaram em sua cabeça a mascapaicha e a pluma do curiguingue.
Você é nosso Inca, o único Senhor do Império das Quatro Direções. Amanhã, você
vai travar uma úlƟma batalha contra os soldados de Huascar. Vai entrar como
vencedor na cidade sagrada de Cuzco.Então poderá fazer reinar uma era de paz
depois de uma era de guerra. E não haverá mais ninguém no Império que não lhe
deverá a vida, a comida e a bebida...
Anamaya se cala. Mas como Atahualpa nada diz, ela prossegue num tom mais
insistente:
- Meu único Senhor, você não tem nenhum moƟvo para desconfiar ou ter medo. É
verdade que seu pai Huayna Capac já não me fala há muito tempo. Mas isso é
porque agora você é forte e poderoso. InƟ e Mama Quilla estão a seu lado. Você
combate com a violência do puma e anda à sombra do condor... Isso basta.
Com um tom surdo, Atahualpa ordena:
- Levante-se, Coya Camaquen, e olhe para mim...
Anamaya vê quase um sorriso nos lábios de Atahualpa. Há muito tempo não via
isso.
- Sei que acha que estou mudado diz ele. - Mas você ficou séria como um
sacerdote! Sim, Villa Oma formou-a bem: você está na idade em que as outras
mulheres procuram um esposo, mas você é severa e gosta de discutir, como as mães
delas!
- Só com você, meu único Senhor. Pois lhe devo a vida.
- Não sei quem deve mais ao outro, menina dos olhos azuis! Depois de passar
pela Cidade-cujo-nome-não-se-diz, você veio a mim. Eu estava envergonhado por ter
perdido uma batalha. Estava preso num buraco na terra e foi você quem adivinhou
como me Ɵrar dali. Fazendo de conta que eu Ɵnha virado uma serpente! Ao se
lembrar disso, Atahualpa não pode evitar um sorrisinho.
- Às vezes, penso nisso, e vejo-a colocando a pele da serpente na mureta de
Ɵjolos enquanto os soldados roncavam! Foi um dos momentos mais divertidos da
minha vida!
Mas logo o semblante de Atahualpa recupera toda a ansiedade. Ele deixa o trono
bruscamente, aproxima-se tanto de Anamaya que ela sente sua respiração:
- Sim, você me garanƟu que eu podia ir a Quito e vencer os generais de Huascar.
Mas meu pai Ɵnha vindo vê-Ia. Como quando você viu a bola de fogo, ou na
Cidade-cujo-nomenão-se-diz e como em Tumebamba, quando o corpo dele
desapareceu. Sempre que foi preciso, meu pai Huayna Capac lhe mostrou o
caminho! Sempre o Outro Mundo se abriu para você. E agora há silêncio! Por quê?
- Quem sabe isso não muda quando eu chegar à cidade sagrada e encontrar o meu
esposo o Irmão-Duplo?
- Ainda falta entrar ali!
- Você vencerá Huascar, meu único Senhor! Eu sei...
- Não! - explode Atahualpa, o olhar vermelho de sangue de repente a soltar
chispas. Não é de Huascar nem dos soldados dele que tenho medo. Eles estão nas
úlƟmas. É de Cuzco! Os clãs de Cuzco é que parecem um poço negro na minha
frente! Eles nunca me aceitaram, como se eu fosse somente o filho de uma mulher do
Norte. Mas nas veias da minha mãe corria o sangue do pai do meu pai. Pouco se
lhes dá que eu seja também o filho do Inca deles! Somos tantos filhos! Eles dizem
que sou impuro. Para eles, eu não passo de um bastardo! Anamaya! Só há uma
pessoa, uma só, que poderia aplacar meu sofrimento, é meu pai. Se ele finalmente
viesse a você... Se me dissesse por sua boca que está comigo contra os homens de
Cuzco. Mas ele está calado... Ou se ao menos você se lembrasse do que ele lhe
disse na noite da passagem. Se ao menos isso lhe voltasse.
Anamaya se prosterna, sacudindo a cabeça com desolação e compreendendo
afinal a dor que corrói o Inca há tantos dias:
- Não, meu único Senhor. Isso nunca me voltou.
Atahualpa olha para ela um instante. Faz menção de tocá-la e acaba se
aproximando da entrada do aposento. Do lado de fora, os guardas logo se curvam.
Ele espera um pouco, depois acrescenta, mostrando a névoa que envolve os picos
em volta de Huamachuco:
- Lá em cima há um oráculo poderoso. Catequil sabe ler o tempo que vem.
Amanhã vamos vê-lo.
Capítulo 33
Tumbez, março de 1532
***
- Eu sabia que não se podia contar com ele! Recostado num monte de areia,
Hernando Pizarro espuma de raiva tanto quanto as ondas e aponta um dedo
ameaçador para Gabriel.
Entre a praia e os navios que finalmente ancoraram no início da tarde ao largo da
costa, o desembarque foi interrompido por ser demasiado perigoso. Só aquele
punhado de homens e cavalos conseguiu chegar em terra firme e agora está isolado
dos barcos e das balsas.
Apesar da aflição, don Francisco não deixou a sela desde aquela chegada heróica.
Seu olhar corre sem cessar para além da imensa praia, procurando uma passagem no
verde cerrado do manguezal, como se já pudesse ver Tumbez no meio.
- São apenas objetos de uso pessoal, meu irmão - diz ele.
- Mandaremos vir outros...
- Doze camisas de linho, um par de botas e três gibões que valem o preço de um
cavalo, uma cota de malhas sobressalente... É isso que você varre com um gesto
bem displicente, meu irmão!
- Eles quase morreram por isso, meu irmão. E eu preciso de cada um desses homens.
- Desses! - murmura Hernando enojado.
Don Francisco contrai os lábios de irritação e, ainda todo molhado, dá um toque
com o calcanhar no cavalo para afastá-lo do mau humor do irmão. É o momento que
SebasƟan escolhe para subir a praia com presteza, mostrando um ponto na entrada
do rio que corta em dois o mangue e desemboca, amarelo de lama, no mar do Sul.
- Outras balsas! Cinco ou seis... Estão vindo para cá... - Índios? - pergunta don
Francisco.
- Estão muito longe para que eu possa ver.
Mas a dúvida dura pouco, pois o Grego, que já fora fazer o reconhecimento na foz
do rio, volta correndo, levantando uma esteira de areia escura e espantando nuvens
de caranguejinhos vermelhos que infestam a praia.
- Soro, Governador! É Soro que finalmente está de volta! - grita ele quando chega
perto.
- Ele nos ouviu! Ele entendeu. Com essas outras balsas vamos poder desembarcar
mais rápido amanhã! - exclama Gabriel.
- E o que Soro entendeu? - reclama Hernando massageando a coxa dolorida. - Ter
um ferro na perna não me tampa as orelhas, que eu saiba! Eu também gostaria de
entender...
Gabriel procura o olhar de don Francisco. O Governador balança a cabeça
sinalizando uma aprovação severa antes de impelir o cavalo para um grupo de
fidalgos que tenta se secar.
- Conseguimos avisar o capitão Soto da traição dos índios antes que ele pisasse
em terra - diz apenas Gabriel apontando para SebasƟan. Hernando faz uma
expressão de quem não entendeu nada, esperando a seqüência que não vem. Após
um silêncio desagradável, emite um "Ah" cheio de azedume.
A camisa e os calções colados no corpo, o Grego apeia do cavalo, afagao com
ternura antes de dar uma olhadela diplomática para Gabriel:
- Conte-nos a sua noite! Parece que ela foi cheia de prazeres, e eu também não
entendi direito em que zona nós nos embrenhamos...
Em algumas frases, sem floreios inúteis, Gabriel conta o tristç fim de Bocanegra,
raptado e massacrado no meio da noite pelos índios.
- Quanto a mim conclui ele apontando para o mar -, sem o SebasƟan aqui
presente, os caranguejos estariam se divertindo com as minhas tripas a essa hora.
Enquanto o Grego contempla com amizade seu companheiro negro, don Hernando
lança aos três a mesma expressão de cansaço que aos caranguejos obsƟnados que já
estão saindo da areia e vindo, como que para provocar, correr pertinho de suas
botas.
- E foi assim que você deixou minhas coisas afundarem - reclama ele. Com o
devido respeito, don Hernando, eu estava muito ocupado tratando de salvar a pele
para me ocupar com as suas preciosas coisas. Sei que o que você mais queria agora
era mandar que eu fosse resgatá-las a vinte braças de profundidade. Se não se
incomodar, isso ficará para uma outra vida...
Alguns fidalgos riem disfarçadamente. - Nada mau, aprendiz - diz o Grego.
- Esse pânico todo por alguns macacos... - resmunga Hernando, impressionado.
- Esses macacos, como vocês dizem, mataram Bocanegra e queriam nos deixar
morrer
em cima da areia. Como se Ɵvessem intenção de massacrar o capitão de Soto e os
soldados dele que seriam abordados no rio lá embaixo, perto do manguezal...
- E você frustrou sozinho esse plano? - pergunta Hernando com ironia. - E como?
Gabriel olha-o de alto a baixo calado, mas SebasƟan vira-se para o Grego com
uma risadinha.
- Mostramos muita convicção a um guia para que ele nos trouxesse aqui.
Ele aponta para o outro lado do rio, ao norte, onde surgem mais velas das balsas
de Soto.
- A praia é mais estreita e o mangue mais fechado. E o que descobrimos? Dezenas
de índios! Dezenas de sorrisos! Que a Santa Virgem esteja conosco, eu disse a don
Gabriel. Aqueles ali vão querer nos cozinhar mesmo sem pimenta! Ao que ele me
respondeu: "Basta lhes mandar uma mensagem!"
- Nós cortamos a garganta do nosso guia... - prossegue Gabriel, o semblante duro.
- Eles compreenderam - diverte-se SebasƟan. - E graças ao vento e à sorte,
conseguimos vir dar aqui. As ondas nos viraram de ponta cabeça também, mas nos
cuspiram de volta sãos e salvos aqui mesmo! E sobretudo, fora do alcance dos
índios, que não conseguem atravessar o rio por causa da violência da correnteza
ali... Quanto à nossa balsa, ela estava intacta até a delicada chegada de vocês...
- Nós nos escondemos no manguezal esperando as balsas do capitão - prossegue
Gabriel. - E quando ele se aproximou, gritamos e gesƟculamos tanto que ele se
afastou da costa...
Ele se prepara para conƟnuar, mas Hernando Pizarro fica em pé mancando e vira
para o outro lado, já sem ouvir.
- Meu irmão! - grita ele para don Francisco. - Daqui a uma hora será noite. O que
decide?
Com seu cavalo andando a passo, don Francisco aproxima-se sem pressa. Quando
está suficientemente perto, desembainha a espada e faz a lâmina brilhar sob os olhos
de Hernando. Todos podem ver as goơculas que ali cinƟlam, juntam-se e formam
um rego estreito ao longo do fio antes de cair, como que cortadas pelo gume da
lâmina.
- Ao que me parece - diz ele percorrendo com o olhar os homens que o rodeiam -,
ainda não estamos preparados para entrar numa cidade de ouro.
Sobretudo se os indígenas forem propensos à traição. Esse desembarque der reou
os cavalos e a nós também. Não é prudente atravessar o mangue agora... Olhando
para o cinza do oceano e as balsas que agora estão bem perto da barra, don
Francisco acrescenta:
- Soto ainda não está aqui conosco. É melhor esperá-lo... Não teremos tempo de
desembarcar muitos outros cavalos. Sugiro passarmos a noite aqui. E dormirmos
montados, por medida de prudência...
- Você não está imaginando que eu vá me agüentar uma noite em cima de um
rocim se não consigo cavalgar meia légua! - exclama Hernando.
- Não, eu não estava pensando em você, meu irmão - responde suavemente don
Francisco com uma chispa no olhar. - Você pode descansar na areia... Já vi o seu
amigo aili montar de maneira muito honrosa. Você poderia lhe confiar o seu
rocinante. Ele não será demais para preservar a tranqüilidade do seu sono. Afinal,
mereceu-o bem. Devemos a ele ter trocado nossas coisas por nossa vida Apontado
pelo Governador, Gabriel sente-se corar de prazer.
***
O capitão Hernando de Soto não sabe viver sem seu cavalo. Em vez de ir ter com
o grupinho na praia, zarpou para o SanƟago fundeado a seiscentos metros da costa e
conseguiu embarcar na balsa seu inseparável tordilho anda luz. Também provou as
alegrias de um banho nas águas tropicais, mas ei-lo agora subindo a praia, soberbo, a
pingar.
Cumprimenta o Governador e depois faz um sinal de cabeça para Gabriel. -
Prazer em vê-los, meus amigos - diz simplesmente esse homem de poucas palavras.
A noite inteira, eles se agarram às selas, apertando entre as panturrilhas
enregeladas uns cavalos exaustos.
Às vezes, adormecem. Mas o arranhar de um caranguejo na areia desperta-os
sobressaltados. Eles imaginam uivos, bandos de índios vindo do manguezal. No
entanto, ouvem o cacarejar das galinholas e o barulho do oceano de espuma
fosforescente.
No crepúsculo, o mar estava ainda tão violento que só seis fidalgos conseguiram
chegar até a praia com suas montarias. Agora, num total de apenas doze contando
com os soldados de infantaria, isolados dos navios e das balsas que ficaram ao
largo, eles formam uma flor de pétalas hirsutas, cada um diante da noite e da sua
vontade. Alguns têm a espada à mostra, pousada na cabeça da sela, cintilando sob as
estrelas.
As pálpebras pesadas de tanto lutar contra o sono e o medo dos selvagens, eles
sonham tanto com os montes de ouro a esperá-los que o céu lhes parece infestado de
lantejoulas douradas. Com o esgotamento, até os buracos tenebrosos da noite se
transformam em lâmpadas de ouro!
E quando a aurora clareia as brumas do leste, eles não agüentam mais.
O Governador Pizarro à frente, eles transpõem um braço de mar que a maré
descobriu, deixando à vista um lodo grosso, escuro e de cheiro forte. Depois se
embrenham finalmente no mangue.
Um caminho estreito, seco e até bem calçado em alguns pontos esgueira-wsc
entre os troncos loucos das figueiras. No alto, animais indescriơveis agitam a
folhagem das árvores. Por duas vezes, serpentes da grossura de um braço fazem os
cavalos relincharem. Depois ainda um desses monstros de escamas, parecidíssimos
com um tronco podre, mas com uma mandíbula suficientemente violenta para cortar
em dois um bezerro.
No mais cerrado dessa selva opressiva, resta apenas um pouco de céu no alto,
como se a espada de um gigante tivesse cortado as árvores.
Mas índios, eles não vêem nenhum.
Nem nos campos que sucedem aos manguezais quando aparecem ao longe os
muros mais altos de Tumbez.
Agitados, eles fazem os cavalos trotarem.
Quando estão a menos de um Ɵro de besta, o Grego franze o cenho e lança um
olhar para don Francisco, que o retribui, impassível.
Gabriel espera ver os primeiros reflexos do ouro no sol que afinal ultrapassa as
colinas distantes. Mas nada.
Índios uivando, amedrontados ou vociferando, também não há ainda. E eles não
precisam entrar na cidade para ver as casas sem teto, as paredes escurecidas pelos
incêndios, às vezes rasgadas. Ruelas inteiras de escombros, Ɵjolos de adobe
reduzidos a lama, furnas vazias...
O silêncio que os envolve é o da guerra, da pilhagem realizada. Da desolação.
Uma cidade inteira abandonada e devastada! Eis o que é Tumbez.
- Pela Santa Cruz - exclama Soro, fazendo seu cavalo dar uma volta diante do
cavalo de don Francisco Pizarro. - O que nos disse? Aí está a sua cidade
maravilhosa?
Gabriel olha para Pizarro, espreitando a raiva, ou mesmo a dúvida, em seu
semblante orgulhoso. Só vê um vago enfado.
Capítulo 34
Tumbez, abril de 1532
***
- Eles não agüentam mais! - declara secamente Soto Ɵrando os olhos do rosto
ensangüentado do Grego para enfrentar don Francisco. - Não agüentam mais sofrer
tanto por tão pouco. Semanas sem comer, doenças, a traição permanente dos índios,
tudo isso por uma cidade destruída e por promessas... Governador, eles têm razão.
Peço que me diga o que pretende fazer. O que esperamos?
Don Francisco não responde logo. Sua barba treme como quando a raiva lhe ferve
nas veias, porém nada mais transparece.
- Olhe em volta do senhor, capitão de Soro - diz ele afinal com uma voz
estranhamente contida.
De fato, em volta é um esplendor. Aquilo parece um forte, protegido por cinco
muros altos de proteção a toda a volta, com cem passos de distância entre um e
outro. Muros tão bem construídos que resisƟram incólumes ao ataque que destruiu
metade da cidade. No centro, exatamente onde eles se encontram, ergue-se uma
espécie de palácio. Aí os muros têm um acabamento finíssimo, pintados de cores
vivas e moƟvos extraordinários onde se superpõem animais, astros e motivos
rigorosamente geométricos...
- Isso não é indício de um país grande e poderoso? - recomeça don Francisco.
- Não vejo ouro aí.
- Ouro, ouro... Capitão de Soro, sei que gostaria de estar em meu lugar. Mas eu
sonho antes de mais nada em oferecer esse país inteiro à Santa Virgem e ao Rei.
Depois, teremos ouro também. Dado pela própria Santa!
Soto, muito elegante apesar da perda de seus pertences, recém-barbeado, o olho
vivo daquele que há muito sabe comandar, faz um gracejo cheio de desprezo:
- Para cima de mim não, Pizarro! Deixe a Santa Virgem em casa, por favor!
- Soto - ruge Hernando dando um passo à frente, já com a mão no punho da
espada. Fale com respeito com o Governador, senão vai se haver comigo...
Soro contempla-o calmamente. Seu olhar, franzido com um sorriso negligente,
passeia ainda por Gabriel e Pedro, mas logo volta para Hernando. - Os irmãos
Pizarro! E parece que tem até um sobrinho de vocês na tropa. Todos irmãos de um
mesmo pai, mas não...
A espada de Hernando vibra nua no ar, mas a de Soro é logo, erguida. - Devagar,
Hernando - contemporiza don Francisco.
- Ouça o Governador, Hernando. E pense um pouco, se a sua cabeça permiƟr. Se
eu me reƟrar com os meus soldados, vocês perdem o ouro que já me forneceram...
E o Peru! Sem mim, quantos vocês são? Cinqüenta? Sessenta? Com uns vinte
cavalos que mal ficam em pé.
- Com você, não somos muito mais - ruge Hernando.
- Não muito mais, mas o dobro! Já que don Francisco quer conquistar o país antes
do ouro, isso pode ser útil, não é? Bem útil! Sem mim...
- Excelência! Excelência!
Frei Vicente Valverde, um dos dois dominicanos que chegaram até ali vindos da
cidade do Panamá, pára na entrada do aposento ao ver as espadas desembainhadas.
Instintivamente, afasta as mãos num gesto de súplica:
- Meus Senhores! Não podem ter um pouco de sensatez? Não acham que a
situação merece mais sabedoria?
- O senhor felizmente acaba com nossas infanƟlidades, Frei Vicente - ri Soto
guardando a espada. - Mas não com nosso mau humor...
- O que sabe?
Virando-se para don Francisco, Frei Vicente se persigna e diz baixinho, como se
esƟvesse contando um segredo:
- Um índio velho chegou aqui hoje de manhã. Está contando coisas
absolutamente
espantosas a MarƟnillo, nosso intérprete. Precisa ouvir, Excelência. E os senhores
também...
***
***
O sacerdote que guarda a huaca é de uma magreza de dar medo. Seu pescoço tem
três dedos de grossura e ele é tão idoso que sua barba tem alguns fios brancos. Seu
olhar não tem mais cor e ele fica em pé com dificuldade, apoiado num bastão cujo
punho tem a forma de uma serpente enroscada sobre si mesma. A sujeira de seus pés
descalços é repugnante e ele está vestido com uma túnica que lhe bate nos
tornozelos. É uma túnica de pêlos longos - sem dúvida de guanaco com uma
profusão de minúsculas conchinhas róseas penduradas.
Atrás dele, há um grupo de sacerdotes apenas ligeiramente mais jovens e menos
sujos que ele.
Quando Villa Oma está diante dele, o Guardião abre a boca e Anamaya tem um
movimento de recuo: é uma boca totalmente desdentada e o som que dela sai tem a
profundidade de uma espécie de trompa - é a voz dos deuses que passa por essa
casca.
Sei por que você está aqui.
Enquanto o sol sobe suavemente para o seu zênite, Villa Oma dirige a distribuição
das oferendas ao ídolo uma estátua de pedra em forma de homem, e de tamanho
natural. O templo que a abriga é uma sala única, sem teto, cuja janela dá para o
nascente e a porta, para o poente. Os nichos colocados nas paredes contêm muitos
objetos de ouro e são revestidos de ricos cortinados.
Antes de mais nada, os sacerdotes espalham as folhas de coca aos pés do ídolo.
Depois, Villa Oma e Guaypar, de pé em frente à imagem, arrancam um cílio e o
sopram em sua direção. Em seguida, derramam as jarras de chicha murmurando as
palavras propícias.
Eles entregam ao Guardião o resto das oferendas. Este sopra em cima de cada
uma antes de depositá-la no pano de lã: coca, espigas de milho, plumas coloridas...
Depois, os panos são amarrados e queimados no fogo aceso do lado de fora da
huaca bem junto à entrada.
Quando o fogo se apaga, Villa Oma deposita diante do ídolo dois vasos de ouro e
dois de prata. Faz sinal aos rapazes responsáveis pelos lhamas: cada um dos animais
é amarrado a uma pesada pedra e gira em volta dela. Na quarta ou na quinta volta, o
Guardião cravalhe a faca no peito, arranca o coração e o leva à boca enquanto os
sacerdotes recolhem o sangue.
Um zumbido escapa do peito das servas.
Anamaya desvia a vista: iniciada nos mistérios, tendo feito o caminho da Cidade-
cujonome-não-se-diz, ligada por seu juramento, ela sempre recua diante da
necessidade do sacrifício.
O sangue escorre pela comissura dos lábios do Guardião, por seu pescoço, até
sua túnica onde os fios se perdem nas conchinhas róseas, entre os longos pêlos. Sem
uma palavra, ele transpõe a porta do templo, e só Villa Oma o segue.
Anamaya fica com Guaypar, as servas, os pastores e os sacerdotes da huaca. O
vento se levanta e refresca-lhes a nuca. No entanto, o céu está cheio de nuvens
negras e o ar, pesado.
O Guardião foi se colocar atrás do ídolo e seu vulto descarnado desapareceu.
Pelo vão da porta, só se vêem as costas de Villa Oma, curvado como um suplicante,
e a cara terrível do ídolo Catequil, deus da guerra.
- Faça a sua pergunta - diz o ídolo.
- Meu Senhor, o Sapay Inca Atahualpa gostaria de saber que futuro ele tem.
Não há um instante de hesitação. A voz do ídolo ecoa como um trovão no céu de
tempestade.
- Atahualpa derramou muito sangue e os deuses estão zangados. O fim dele é
funesto e está próximo.
Por um momento, as costas de Villa Oma não se mexem e o inteiro prende o
fôlego. Anamaya ouve as batidas de seu coração.
- O fim dele é funesto e está próximo - repete a voz de trovão quando as nuvens se
rompem e as primeiras gotas de chuva começam a cair. Villa Oma se levanta, vira-se
e sai pela porta da huaca. Seu rosto está cor de cinza.
Eles descem a colina sem falar, encurvados sob a chuva grossa que cai. Embaixo,
a aldeia está deserta, como se todos os servos da huaca Ɵvessem entendido a
terrível predição e se escondessem em casa. Ao ver os muros do tambo de
Huamachuco, Villa Orna pára para pegar Guaypar pelo braço.
- Não venha comigo.
- Por quê?
- Podíamos ser dois quando Atahualpa esperava um oráculo favorável Mas devo
estar sozinho para lhe anunciar que não foi.
Guaypar treme de impaciência e frustração. Anamaya pousa com delicadeza a
sua mão na dele. Depois, aponta para as pedras bem alinhadas do palácio do curaca
onde Atahualpa aguarda a resposta do oráculo.
- Sabemos que você não tem medo - diz ela. Guaypar vira para ela seu olhar
inexpressivo.
- Sou o único que sabe do que tenho medo.
- Isso basta, Guaypar - diz o Sábio. - Volte para a sua cancha e aguarde as ordens
do seu Único Senhor.
O olhar de Guaypar não deixou Anamaya; é de uma intensidade assustadora e
Anamaya lê aí senƟmentos tão violentos que tem medo de entendêlos. As palavras
de consolo e de amizade ficam entaladas em sua garganta.
- Eu vou também - diz finalmente Guaypar.
***
- Está ouvindo, Villa Orna?
Os olhos de Atahualpa brilham com um misto de fúria e alegria.
- Huascar foi vencido!
- Estou ouvindo.
- Repita para ele, Sikinchara, palavra por palavra, como acaba de me dizer.
Anamaya reconhece o capitão Sikinchara, o mesmo que a prendeu na floresta há
muitos anos. Cada vez que o vê, não consegue evitar o movimento de medo da
menina que foi e que, em seu coração, continua sendo.
- Nossas tropas infligiram às de Huascar uma derrota cujo fragor ecoa por todas as
montanhas. Seu exército está em fuga, ou destruído, ou do lado de nosso Único
Senhor.
No pátio da cancha, do outro lado dos muros grossos, ouvem-se os gritos de alegria.
- Você parece taciturno, Villa Orna. Não está alegre com a nossa vitória?
- Fui enviado para consultar o oráculo de Catequil, Senhor.
- Sem dúvida ele previu o meu triunfo.
- Não exatamente.
- Não exatamente?
A voz de Atahualpa vibra com uma raiva contida.
- Repita para mim o que o oráculo lhe disse.
Não tenho certeza se está com vontade de ouvir.
Deixe que eu julgue o que tenho vontade de ouvir.
Villa Orna respira fundo.
- Essas foram as palavras do oráculo: "Atahualpa derramou muito sangue e os
deuses estão zangados. O fim dele é funesto e está próximo."
O silêncio cai no aposento do palácio. Atahualpa está sentado num tripé
sobrelevado por uma base. Está usando os atributos reais - a borla, a coroa de
plumas e o sunturpaukar, o cetro do poder. Sikinchara está a seu lado. Villa Orna e
Guaypar estão à sua frente, cabeça baixa, enquanto Anamaya está ligeiramente
afastada. Quando se encontra em sua presença, ela sente a força sombria que emana
do Inca, portador dos raios e do trovão. No entanto, é com uma doçura inesperada
que ele pronuncia aquelas primeiras palavras.
- Fale-me desse oráculo.
Villa Orna obedece: conta da marcha noturna, da cidade, das oferendas, do velho
sacerdote com a túnica de conchinhas rosadas. Depois, repete as palavras: "fim
funesto e próximo".
Atahualpa dá uma risada.
- E você acredita nesse oráculo?
- Villa Orna não diz nada.
- Responda, você que chamam de Sábio e que com efeito só diz palavras sábias.
Acredita?
- Não quero lhe responder, Senhor.
- E você, Anamaya? Ela permanece calada.
- Vocês têm medo - diz Atahualpa -, medo dessa huaca que é minha inimiga como
meu irmão Huascar.
Sua voz esforça-se para ficar calma, mas Anamaya detecta nela um tom de
descontrole, de inquietação profunda.
- E você, Guaypar? - pergunta ele afinal. - O que diz?
- Digo que é preciso destruir o que se opõe a você, Senhor.
- Eis aí o meu irmão - diz Atahualpa.
Capítulo 36
Porcon, junho de 1532
***
***
***
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O homem com os gatos no peito - Felipillo explicou a eles que era chamado de
curaca, quer dizer, chefe - mulƟplicou os sinais de amizade e deferência. Deu
ordens para que os espanhóis fossem maravilhosamente instalados em seu palácio,
que criados lhes trouxessem comida - milho, carne-seca, bolachas. Os limites de sua
impassibilidade são traídos por seu medo diante dos cavalos - ele fez de tudo para
não precisar se aproximar dos animais.
Apesar dos protestos - pois a promessa sempre adiada do País do Ouro esquenta
o sangue de muitos - , Soro ordenou que os homens explorassem, em grupos de seis,
cada casa da cidade. Prometeu os mais severos casƟgos para os atos de pilhagem
ou qualquer espécie de roubo ou assassinato.
O palácio consƟtui-se de um páƟo interno com salas únicas dispostas em
quadrilátero à sua volta. À noite, as tochas foram acesas, iluminando as paredes de
onde pendem tapeçarias da mesma lã que a túnica do chefe - algumas delas com
moƟvos geométricos, outras representando flores ou bichos.
A noite caiu e com ela veio um frio intenso. Servos de olhos baixos trouxeram-
lhes mantas de uma lã fina mas que os aquece maravilhosamente. Soto, Gabriel e
Felipillo estão sozinhos com o curaca.
O rosto deste não se mexe. Ele abre a boca como se fosse falar e torna a fechá-la.
Depois seus olhos se franzem até formarem apenas uma fenda e todos os seus
traços se alteram.
Ele chora.
Capítulo 38
Cajas, noite de 10 de outubro de 1532
Na noite escura, SebasƟan se deitou ao lado de Gabriel, numa esteira cuja maciez
os repousa das agruras do caminho.
Ainda há uma tocha acesa na parede e as brasas canto do aposento. Gabriel está
semiadormecido.
- Tem mulher aqui - diz Sebastian.
Gabriel se levanta.
- O que você está dizendo?
- Lembra-se daquele grande prédio pelo qual passamos quando entramos na
cidade? Pois bem, é uma espécie de convento com mulheres, estou lhe dizendo,
dezenas, centenas de mulheres: velhas, moças, algumas feias, mas também...
Gabriel sente-se completamente desperto. - E o que...
- Nada, o que está pensando! Nós não desobedeceríamos às ordens do
Governador, nem às do capitão Hernando de Soro!
Tenho algumas dúvidas, amigo.
Nós nos contentamos em beber algumas taças de uma estranha bebida fermentada
que eles produzem em quanƟdades sobrenaturais. O gosto de milho é bastante
desagradável, mas, diabos, essa bebida aquece o coração! Um brilho nos olhos
negros de SebasƟan faz Gabriel sorrir. - E além de esvaziar algumas taças
amigáveis?
- Nada, eu garanto, eu juro! Há uma maneira de falar com as mulheres que vocês
brancos nunca vão compreender, com essa brutalidade besƟal de vocês! Nós temos
uma delicadeza que escapa a vocês e nos permite...
- Paz, Negro.
- Conte-me antes a que aƟvidades sérias vocês se dedicaram enquanto eu
executava importantes missões diplomáticas.
Gabriel suspira.
- Ouvimos o chefe deles nos contar suas desgraças.
- Desgraças enormes, garanto!
- Até Soto, que já viu muita coisa, ficou emocionado.
- Conte.
- Chegamos aqui neste país no meio de uma guerra que dois irmãos estão travando
entre si para ver quem é o chefe único. E nosso curaca não pagou o tributo ao lado
certo.
- Os enforcados?
- Aqueles e muitos outros. Ele diz que a cidade foi pilhada, parcialmente
destruída, que os habitantes foram massacrados, muitos se refugiaram nas
montanhas... Diz que o exército do Rei vencedor seqüestra os filhos e as filhas dele,
deixa os depósitos de provisões vazios... O acampamento que vimos é o dos
vencedores: a noơcia da nossa chegada fez com que eles se reƟrassem para algum
lugar a dois dias de marcha. Mas o curaca treme só de pensar que eles podem voltar
e praƟcar outros atos de vingança. Pelas lágrimas dele passam lembranças de
torturas e crueldades que nós nem imaginamos...
Sebastian se cala. Depois:
- O que diz Soto?
Ele diz que é uma boa notícia.
***
***
Uma nuvem de chuva passa pelo tambo e vai embora. Enquanto Atahualpa ficou
só no palácio, Villa Oma e Anamaya saíram da cancha.
Em todos os lugares do Império das Quatro Direções, Anamaya não pode evitar
admirar
a harmonia reinante, a perfeita organização - aqui ela vê a kallanka, a sucessão de
celeiros onde se guardam as reservas, à beira dos primeiros terraços onde o trigo e a
quinoa são culƟvados, num nível mais baixo, a huaca que se ergue bem no
alinhamento da montanha que domina Ybocan. Mais alguns dias de marcha e eles
estarão em Cajamarca, uma das principais cidades de Chinchaysuyu, para celebrar a
vitória de Atahualpa e a consolidação definitiva do Império.
Mas Anamaya vê essa nuvem que passa e volta, sem deixar o tempo firmar.
- O que acha disso, Villa Oma?
- Estou indo para Cuzco com o coração apertado, menina.
- O que quer dizer?
- Não gostei do que ouvi hoje de manhã. Sikinchara é um soldado fiel, mas tenho
dúvidas quanto à inteligência dele... E Guaypar e corajoso, mas impulsivo...
Anamaya não diz nada.
- Atahualpa acha que ele está preparando um pachacuƟ, uma reviravolta, uma
transformação do mundo do qual ele será o dono... Mas ele não vê os sinais, não
ouve os homens...
- Não é culpa dele se os homens lhe mentem ou se não enxergam...
Villa Oma sacode a cabeça em sinal de negação.
- Além do mais, temo pelo destino de Cuzco...
- Por quê? Chalkuchima não é quem manda na cidade?
Villa Oma esboça um sorriso amargo:
- Parece que só quem manda na cidade é a loucura. Eu mesmo fui o primeiro a
encorajar Atahualpa a se revoltar contra Huascar e as loucuras dele...
- E isso era necessário - aprova Anamaya.
- Sem dúvida... Mas agora, o ódio virou uma planta louca! Atahualpa projeta uma
vingança tão desmedida quanto a demência do irmão. Ele me encarregou de assumir
as rédeas do clero de Cuzco que Huascar quis reformar. Mas eu não estou indo só.
O general Cuxi Yupanqui vai comigo, e ele tem instruções precisas: nenhum
parƟdário do usurpador deve permanecer vivo, nem suas mulheres, nem o mais
moço de seus filhos. Só as jovens que ainda não Ɵverem conhecido homem serão
poupadas para vir engrossar as fileiras das concubinas do único Senhor. Ele deixou
bem claro que nem seus próprios irmãos e irmãs deviam escapar do casƟgo. São
clãs inteiros que vão desaparecer, como o do pai do próprio Huayna Capac. Não
estou gostando disso, Anamaya, isso não condiz com a tradição do Império, não
condiz com a nobreza dos Incas nem com a religião do Sol... Um chefe vulgar de
tribo é que se vinga pelo sangue e pela matança...
- Atahualpa não pode ter ordenado uma coisa dessas!
Villa Oma olha para Anamaya com uma ternura raríssima nele.
- Você mesma viu o que aconteceu com o ídolo de Catequil! O ódio que ele tem
de Huascar é cego. E medos antigos o assaltam...
- Há várias luas, os olhares se voltam para mim buscando uma verdade que eu não
tenho, Villa Oma.
- Eu sei, menina, e no entanto a confiança que deposito em você (lembra-se como
ela demorou a se desenhar) é integral e sólida. Eu a levei à cidade secreta e hoje lhe
abro o segredo do meu coração:Atahualpa não é o homem que salvará o Império das
Quatro Direções...
- Então quem é?
O grito escapou da boca de Anamaya, assustando um jovem pastor que subia de
volta para a esplanada com seu rebanho de lhamas castanhos, transpondo com
elegância os amplos terraços. Ela prossegue com mais calma:
- Então quem, Sábio, pode salvar o Império?
- Não sei, menina. Enquanto isso, você pode ajudar Atahualpa.
- Como?
- Ele se fia em você como em ninguém. Você é aquela que "viu" o triunfo dele,
aquela que o salvou da prisão... Se você pudesse ver o futuro dele, dizer-lhe que
esse futuro passa pela paz do Império e o perdão dos clãs de Cuzco...
Ela o interrompe com vivacidade, mas sem levantar a voz.
- Está pedindo que eu "veja" o que não vejo?
Villa Oma fita-a intensamente.
- Peço que detenha um desastre...
- Não posso menƟr, Sábio. Acho que se eu fizesse isso, o próprio Huayna Capac
voltaria do Mundo de Baixo para me censurar...
Villa Oma suspira.
- Você tem que nos ajudar, Coya Camaquen!
A voz de Villa Oma treme. Seu olhar brilha com uma inquietude que ela nunca
viu nele desde a morte dos Poderosos Anciãos na estrada de Cuzco.
- Então me ajude, Sábio - murmura ela.
- O que quer dizer?
- Mande trazerem de volta meu esposo o Irmão-Duplo para junto de mim.
- Impossível! Ele está onde deve estar: no templo das origens, perto do Corpo seco
do único Senhor Huayna Capac...
- Se quiser minha ajuda, Sábio, mande que o tragam para perto de mim.
- Sabe o que está me pedindo? Jamais um Irmão-Duplo foi separado do seu
Senhor! O
que seria de nós se lhe acontecesse alguma desgraça?
- Tenho de estar junto dele, Villa Oma! Não posso menƟr. Mas o poder do Irmão-
Duplo talvez ajude o único Senhor Huayna Capac a me visitar, a me falar, a me levar
ao Outro Mundo. É a única solução para que eu volte a ser como antes. Não me
pergunte por que, mas eu sei...
O sol agora está forte, e nada, no frescor do ar, parece poder perturbar a paz.
- Mando-o para você assim que chegar a Cuzco, bem escoltado.
- Não devemos contar a Atahualpa?
- Não! É melhor isso ficar entre nós, menina!
Anamaya aquiesce. No entanto, na subida para o palácio, suas pernas fraquejam:
crescer, pensa ela, é guardar segredos pesados demais para a gente, é senƟr
emoções que não podem ser compartilhadas com ninguém.
***
Um atrás do outro, dois raios rasgam o céu de aço no fundo do vale. A trovoada
rola entre as encostas abruptas como se lhes martelasse os flancos.
Quando o barulho se afasta, o cão de Pedro MarƟn de Moguer late para o céu
como se ali esƟvesse vendo um índio para morder. Os raios e a trovoada acabaram
de excitar o animal, um masƟm de Nápoles, do tamanho de um bezerro, branco
como leite, mas de olhos tão negros e loucos como os de seu dono, um marujo
corpulento de queixo quadrado que se juntou à expedição com Benalcazar. Por um
moƟvo que Gabriel ignora, Moguer sempre se oferece como voluntário para as
missões de reconhecimento. Será que espera ser o primeiro a pôr a mão nos tesouros
prometidos?
Gabriel olha para os dois, o homem e seu canzarrão, com um nojo que ele custa a
reprimir.
Eles vão como batedores e só estão um quarto de légua à frente do grosso da
tropa conduzida pelo Governador. Mas em algumas curvas, ganharam altura
suficiente para dominar a névoa concentrada em cima do rio e perder de vista a
longa coluna embaralhada que avança para Cajamarca.
"Cento e oitenta homens e cinqüenta e sete cavalos", Pizarro gosta de repeƟr, não
para lembrar-lhes o número ridículo daqueles que parƟram para a conquista desse
vasto e poderoso Império, mas antes para disƟngui los de todos os que se juntam a
eles, dia após dia, durante seu avanço rumo ao centro do Império: as centenas de
escravos mesƟços ou negros, vindos do istmo, e sobretudo os milhares de índios, os
tallanes, os chimus, aqueles cuja aldeia foi incendiada porque eles não pagaram o
tributo, todos os que têm um moƟvo ou outro para detestar os incas ou para querer
vingar-se deles.
O caminho agora é estreito. Sobe no flanco da encosta, às vezes junto a falésias
verƟcais, com largura apenas suficiente para a passagem de um homem ao lado de
um animal.
Há muito tempo, a pequena tropa de vanguarda segue a pé. Os homens avançam
de cabeça baixa, o morrião inclinado sobre a testa para evitar que a chuva os cegue,
puxando as montarias por uma rédea passada sobre a espádua.
Os cavalos estão nervosos e esgotados. Pessimamente alimentados há semanas,
estão com as costelas de fora, e as cilhas das selas lhes raspam tanto o pêlo que
lustram o couro. Em alguns dias, eles transpuseram gargantas suficientemente
elevadas para conhecer a geada da madrugada, resfriando-se no esforço da subida.
Em outros, no fundo dos vales abafados, morcegos carnívoros, quase do tamanho de
falcões, atacaram-nos dilacerandolhes a garupa ou a espinha...
E, agora, a tempestade transforma numa torrente de lama amarela a picada que
costeia uma escarpa coberta de moitas ralas. Placas de rocha, talhadas em forma de
degraus, drenam pequenas cascatas furiosas que tornam a marcha escorregadia e
perigosa. A terra à beira do caminho é escavada pela água e desmorona com baques
surdos sob o casco dos cavalos.
O ronco da trovoada mal se acalmou e mais um raio corisca nas nuvens. Como
uma serpente de fogo, percorre montanhas na horizontal, como se procurasse reuni-
las.
Os cavalos escorregam, o passo mais seco, as narinas palpitantes. Suas orelhas
em pé não param de mexer. Com a mão enluvada, Gabriel puxa a rédea enquanto,
com a outra, afaga o focinho da montaria numa carícia tranqüilizadora.
Mas no mesmo instante, alucinado pelo fragor da tempestade, o cão de Moguer
começa a uivar desesperadamente. Em alguns pulos furiosos, precipita-se diante de
Pedro, que abre a marcha. Pára atravessado no caminho, o peitoral arfando, o
traseiro arqueado. E torna a uivar para o fundo distante do vale escondido sob a
chuva, os olhos saltados mais alucinados do que nunca. - Cão idiota, cale a boca! -
grita Pedro o Grego voltando-se para Sebastian, Gabriel e Moguer. - Segurem os
cavalos, essa besta vai assustá-los.
A bocarra aberta para o dilúvio, as presas brilhando de ferocidade, o masƟm
hesita, trota no rio de lama sujando o pêlo claro. Depois, esgueirase entre os homens
e os animais rosnando. Passa tão encostado nos jarretes do cavalo de Pedro que o
andaluz abre as pernas e desloca uma pedra com um coice.
Depois de quicar três vezes, a pedra cai na ravina, leve como as gotas de chuva.
- Santo Deus, Moguer! - explode o Grego, a barba pingando como uma esponja. -
Segure esse seu pangaré horroroso! Estou lhe dizendo que ele vai jogar todos nós lá
embaixo!
Fechando a marcha, o gordo Moguer, suando em sua cota de algodão encharcada
apesar do capote de couro que o cobre dos ombros às coxas, puxa penosamente um
cavalo. O pobre animal foi extorquido de um doente de verruga agonizante, numa
pseudodoação. Hoje, o animal semi-roubado mostra-se em péssimo estado. Feias
mordidas de vampiros tornaram a abrir e purgam um pus amarelado que a chuva não
dilui. Sua respiração é ruidosa. Ele avança arregaçando os beiços por causa da febre
e com os olhos muito esbugalhados.
Quando, chamado por Moguer, o masƟm se precipita para ele com os dentes à
mostra, o cavalo se apavora. Com um relincho agudo, o animal balança a cabeça
procurando morder e empina diante do cão aos uivos. A rédea foge das mãos
dormentes de Moguer, enquanto o cavalo quase o derruba com um coice. Mas aí, a
terra conƟda por alguns tufos de capim desmorona sob suas patas traseiras com um
barulho surdo.
Com o peso, o cavalo cai, enquanto Moguer grita. O pobre animal, jogando as
patas à frente, tomba de lado, batendo numa rocha com a barriga magra. Dá um
úlƟmo coice com as patas dianteiras, o que o afasta da falésia. Então, relinchando
de pavor, cai no abismo.
Sob o olhar petrificado dos conquistadores, por um instante, ele parece flutuar.
Bate com a garupa num arbusto, gira de pernas para o ar. Ventas à frente, bate
primeiro num monte de pedras que desmorona ruidosamente sob o seu peso. Já de
pescoço quebrado, o bicho rola para dentro de um poço cheio d'água, umas trinta
toesas mais abaixo.
- Pela Santa Virgem - assobia o Grego sacudindo a cabeça.
Todos olham para o animal como se, apesar de tudo, esperassem que ele se
levantasse.
- Eu lhe avisei! - protesta ainda Pedro.
O olhar ainda assustado, Moguer ergue pesadamente os ombros.
- Ora - responde ele fingindo calma. - Ele estava doente. Não duraria muito...
Todos vêem a falsa desenvoltura conƟda nessas palavras. SebasƟan diz
devagarinho em tom de brincadeira:
- Cavalo que se ganha rápido se perde rápido!
Moguer levanta a cabeça, a boca cheia de raiva:
- Você aí, seu preto, você...
Mas não tem tempo de terminar o insulto; Gabriel mostra o fundo do vale:
- Olhem! Olhem!
De debaixo dos arbustos pingando de chuva, do meio do mato, de detrás dos
rochedos, surgem cerca de vinte índios. Toda a prudência arrulada pela curiosidade,
eles se aproximam do cadáver do cavalo e o cercam.
Ao vê-los, o cão que estava calado começa a laƟr novamente. Os índios ficam
imóveis e erguem o rosto acobreado para os espanhóis. Mas estão longe demais para
temer o que quer que seja. Quando o primeiro deles ousa esƟcar a mão para o
cadáver do cavalo, o Grego estala a língua e continua a marcha:
- Claro que eles nos vigiam! O que acham? Noite e dia. Quando vocês estão
roncando, eles estão contando os pêlos das suas narinas. São como moscas. E nós
caímos no pote de mel!
***
***
- O Senhor Guaypar diz que don Gabriel é um homem e um guerreiro corajoso.
Está escuro, e há fogueiras acesas em volta da aldeia. Elas cercam Huagayoc com
a claridade e os ruídos de uma cidade efervescente.
A tropa conduzida por don Francisco instalou-se ali em menos de uma hora,
erguendo suas tendas de algodão ou apenas se reunindo em volta do fogo enquanto o
Governador, seus irmãos e os capitães eram convidados para uma refeição no
palácio do curaca pelo embaixador Sikinchara.
E agora, a barriga cheia de assado de lhama, bolachas de milho cozidasnas pedras
e guarnecidas com uma estranha raiz redonda, de polpa clara, é; doce e firme, e de
uma quantidade de cerveja além da conta, as conversações prosseguem.
Foi o jovem Senhor que acompanhava o embaixador Sikinchara quem falou
primeiro. Depois a voz de MarƟnillo, o segundo intérprete, se levanta, num
castelhano meio ciciante e dançante como as labaredas do fogo que volteiam em
cima das brasas.
- O Senhor Guaypar agradece a don Gabriel por ter abaƟdo o animal selvagem
que mata as crianças...
À tarde, quando SebasƟan levantava Gabriel que estava prostrado dian te do
cadáver impressionante do menino degolado, quando Pedro o Grego segurava
Moguer, desaƟnado por ter perdido no mesmo dia o cavalo e o cão, seus olhares já
haviam se cruzado com uma certa simpatia.
Os aldeões acorreram para a criança morta, chorando e gemendo. Os Senhores
índios não se mexeram, contentando-se em observar a disputa entre Gabriel e
Moguer com uma curiosidade fria. c
Mas aquele jovem Guaypar de repente dera um passo à frente. Espalmando as
mãos e fitando Gabriel nos olhos, ele dissera algo incompreensível. E eis que agora
o jovem se levanta de novo e, com muita seriedade, recomeça na sua manobra,
espalma as mãos e fala.
- O Senhor Guaypar diz que don Gabriel e ele talvez se tornem irmãos o quando
entrarem no Outro Mundo...
Embaraçadíssimo, após um olhar do Governador, Gabriel, por sua vez,se levanta.
Curvando-se numa reverência como se faz em Toledo, ele saúda o índio com um
respeito genuíno. Atrás dele, irrompe uma risada:
- Puxa, irmão - diz Hernando Pizarro às gargalhadas apontando a luva para Gabriel
-, aí está um que não é mais bastardo de todo. Esse nosso caro Gabriel arranjou uma
família...
Risadas percorrem as fileiras dos espanhóis e os dois senhores índios franzem o
cenho.
- Calma, Hernando - replica secamente don Francisco cortando as risadas. - Estão
olhando para nós! Martinillo, peça então a esses príncipes notícias do Rei
Atahualpa...
Enquanto o índio fala, Gabriel torna a sentar-se, rubro por causa da afronta e se
contendo a custo para não esbofetear Hernando. O capitão de Soto puxa-o pela
manga e sopra-lhe:
- Não ligue para o idiota desse Hernando, amigo Gabriel. Ignore-o, ele é só um
fanfarrão e o seu silêncio será um marơrio para ele... Mas nos próximos dias, vigie
sua retaguarda. Moguer conƟnua furioso e tem tanto juízo quanto o cão que você
matou. Pode ter certeza de que ele vai querer se vingar.
Um olhar de don Francisco os reduz ao silêncio enquanto MarƟnillo se curva
diversas vezes diante do Senhor índio cuja arrogância esmaga a assembléia toda:
- Ele diz: o Filho do Sol terminou a guerra que fazia ao irmão Huascar que queria
dividir o Império das Quatro Direções. Com milhares e milhares de soldados, ele
venceu. Huascar, o mau filho e o mau irmão, não é mais nada senão um prisioneiro.
Em breve, ele será como uma cinza diante do único Senhor Atahualpa.
- Fico feliz com essa noơcia - replica don Francisco, o semblante impassível. -
Fico feliz de ouvir que o seu Rei é um grande guerreiro.
- O Senhor Sikinchara diz: não existe maior guerreiro do que o único Senhor
Atahualpa, pois ele é o Filho do Sol. Ele venceu Huascar o louco cercando todo o
exército dele numa linha de fogo que ardeu durante três dias de uma montanha a
outra. Huascar e seus guerreiros não conseguiam mais respirar nem lutar. Eles
suplicaram para que os salvassem, mas os capitães do único Senhor deixaram que
eles morressem queimados como a vegetação da planície onde eles estavam. Nosso
único Senhor Atahualpa é bom com quem o respeita e implacável com quem lhe faz
a guerra. Ficará feliz de encontrar os estrangeiros na planície de Cajamarca. Fica só
a dois dias de marcha daqui. Espera que venham logo e lhes providencia
alimentação e alojamento.
Após essas palavras, um silêncio pesado toma conta dos espanhóis. Se isso fosse
preciso, toda a postura do embaixador Sikinchara, o ríctus de desprezo em seus
lábios, confirmaria a ameaça contida nelas.
Gabriel procura o olhar do jovem índio nobre. Mas o rosto magro de Guaypar
permanece impassível e fechado.
- Muito me alegra realmente a vitória de seu Rei - prossegue o governador com
uma voz estranhamente doce. - Não duvido que ele seja um grande príncipe cheio de
coragem. Mas e bom que ele saiba que o meu Se nhor é ainda mais poderoso, que
ele governa um mundo muito maior do que esse. Seus servos e seus guerreiros são
tantos que não dá para contar. Eu mesmo, com os poucos guerreiros que me cercam,
já venci príncipes tão poderosos quanto o Rei Atahualpa... E depois ainda temos um
Senhor maior, o Reino dele e na terra como no céu, ele reina sobre o Sol, a Lua e as
estrelas assim como sobre os homens, as plantas e os animais. É ele quem nos dá
nossa força. E é por isso que somos tão poucos. Graças a nosso Senhor Deus, cada
um de nós pode lutar como vinte ou trinta homens comuns... Mas pode dizer a seu
Rei que estaremos em Cajamarca nos próximos dias. Se ele quiser me receber, serei
amigo dele. Mas se quiser a guerra, faço-lhe a guerra como fiz a todos os que se
opuseram a mim, a meu Imperador e a meu Deus.
O semblante de Sikinchara já não exprime nenhum desprezo. Está apenas
contraído e pesado de ódio. O jovem Guaypar levanta-se e murmura uma frase curta
que Martinillo não traduz. Depois, seu olhar procura novamente o de Gabriel.
já não tem mais nada de amigável. É apenas o olhar de um homem pronto para
lutar até a morte sem jamais senƟr o menor receio do adversário. Gabriel não Ɵra os
olhos dele. Esforça-se para dar um sorriso que talvez não passe de um esgar
crispado. Em seus lábios, formam-se palavras que o outro não vai entender:
"Não tenho medo."
Mas ele não tem certeza.
QUARTA PARTE
Capítulo 41
Cajamarca, termas do Inca, 14 de novembro de 1532
As termas do Inca ficam perto da cidade, numa planície onde a terra e a água
estão sempre se misturando. Saindo da estrada real, o estrangeiro se perderia nos
pântanos ou pior - nas fontes de água escaldante que-encontram rios frescos.
É aí que o único Senhor se estabeleceu, que montou o acampamento de seu
exército cujas tendas brancas invadiram a planície e sobem as encostas suaves das
colinas que circundam a cidade.
A noite vem chegando no páƟo da residência do Inca que descansa, ao entardecer
de seu terceiro dia de jejum.
De quando em quando, Anamaya dá uma olhada para o desfiladeiro por onde os
estrangeiros logo vão chegar, lá, acima das casas e dos palácios de Cajamarca, pela
estrada cujos degraus regulares são visíveis mesmo daquela distância. Como serão
eles?
Há dias e luas, ela ouviu o que os espiões disseram, as palavras de desprezo de
Sikinchara, a desconfiança e o ódio de Guaypar; ouviu as descrições sobre a feiúra
daqueles homens e as perversidades de que eram capazes, sua avidez, suas
menƟras... No entanto, ela quer vê-los, encará-los, compreendêlos, talvez - e é mais
que uma simples curiosidade que a anima.
- Anamaya?
InƟ Palla atravessa o páƟo e lhe faz sinal, do outro lado da fonte de águas
misturadas que fica no centro. Anamaya vai ao seu encontro. A concubina conƟnua
com aquele ar triste que assumiu desde que perdeu os favores do único Senhor.
- Ele quer vê-Ia - diz ela com voz neutra.
***
Ele está descansando à sombra, em meio à fumaça dos perfumes que ardem,
impregnando o ar úmido com seus odores pesados. Anamaya adianta-se de cabeça
baixa, encurvada.
- Endireite-se - diz ele com uma voz cansada - e olhe para mim...
Ela hesita. Há tanto tempo ela não escuta essa ordem amigável que a inƟmidade
que os ligava antes parece apenas uma lembrança...
- Endireite-se - repete Atahualpa beirando a violência. - Estamos sozinhos!
- Como quiser, único Senhor.
- Eu quero, sim! E venha cá - acrescenta ele com mais delicadeza -, como você
não
hesitava em fazer.
Ela se aproxima com passos medidos, evitando encontrar seu olhar vermelho.
- Você não era o único Senhor, então...
- Sem você...
- Você já me agradeceu, mas InƟ, Quilla e todos os Poderosos do Outro Mundo é
que fazem o que acontece, único Senhor, e não uma criança que saiu da floresta...
Seu sorriso lança uma faísca.
- Olhe essa pena, menina, e pegue-a...
Ele tem nas mãos a pena do curiguingue, que displicentemente Ɵrou da Ɵara real.
Anamaya não consegue evitar um estremecimento.
- Não tenha medo. Faça o que eu digo...
Ela pega a pena nas pontas dos dedos, tomando cuidado para não tocar na mão do
soberano.
- É leve, não?
Anamaya balança a cabeça. Em sua mão, o peso da pena de cores maravilhosas é
imperceptível.
- Tão leve, menina, e no entanto tão pesada em minha testa que eu perco o sono...
Ela se cala, comovida com o tremor e a sinceridade de sua voz.
- Foi legiƟmamente que a Ɵrei de meu irmão, não? No entanto, jamais esqueço o
que falam nas minhas costas, o que até as pedras clamam, em Cuzco: não fui eu
quem foi escolhido regularmente...
- Mas foi você quem conquistou esse direito, por sua coragem...
- E porque confiei nas suas visões, e também porque você me transformou em
serpente, não?
Ele ri, com um pouco de amargura.
- Eu já lhe disse por que meu pai não me escolheu?
- A sua mãe...
- ... não pertencia a um clã poderoso, continuam repetindo isso. Mas eu sei. Eu sei...
Ele se interrompe, suspira antes de prosseguir.
- Quatro estações depois de eu ter passado com sucesso no huarachiku, meu pai, o
Inca Huayna Capac, enviou-me à frente de um exército para combater uma tribo
revoltada e submetê-la à autoridade dele. Fui derrotado, e, se meu pai não Ɵvesse
vindo ao meu encontro, quem sabe se a derrota não teria sido uma ruína...
- Foi contra os índios canaris, perto do lago de Yaguarcocha? Ele olha para ela,
pasmo.
- Você sabia disso também?
Ela não responde. Lembra-se da primeira noite em que o Anão entrou em seu
quarto, desse segredo que ele trazia... Por um instante, ela pensa naquele que era seu
único amigo, nas piores épocas de sua solidão... Será que ele havia morrido ou
estaria vivo?
Atahualpa continuou fitando-a, procurando adivinhar o mistério de seu silêncio.
Depois, fez um gesto de cansaço.
- Pouco importa, afinal. Lembro-me da minha imprudência, menina, do orgulho
insensato que inflava meu peito... Lembro-me do torpor que me invadiu na derrota,
quando, por minha culpa, caíam milhares de combatentes valorosos. E sobretudo,
lembrome da minha vergonha diante do olhar de meu pai...
Ouve-se uma agitação atrás da corƟna que os protege dos guardas, dos criados e
das mulheres.
- Esse olhar está sempre pousado em mim, assombrar - diz Atahualpa num tom
sonhador.
- Único Senhor! - chama um yanacona.
- O que está havendo?
- É o curaca de Cajamarca.
- Não quero vê-lo agora.
- Nós lhe dissemos, Senhor, mas ele insiste. Atahualpa olha para Anamaya com
uma lassidão infinita.
- Esta pluma do poder - diz ele - tão leve, e tão pesada...
O curaca adianta-se, uma pedra às costas, e pede perdão a seu único Senhor por
perturbá-lo em seu repouso. Atahualpa interrompe-o com um gesto.
- Fale - ordena ele.
- Único Senhor, os estrangeiros não estão a mais que um dia de marcha da cidade.
- Quero - diz Atahualpa com firmeza - que eles se sintam acachapados pelo meu
esplendor...
- Dê-me suas ordens...
- Quero que eles entrem numa cidade deserta, sem nenhum homem e nenhuma
mulher, e que sintam o coração apertado de aflição, que tenham o espírito invadido
por perguntas sem resposta...
- Quando isso deve ser feito?
O grito de cólera escapa dos lábios do Inca.
- Quando disse que eles chegariam, curaca sem cérebro? Amanhã? Então isso
deve ser feito hoje à noite.
- Hoje à noite - repete o curaca.
***
Tarde da noite, Atahualpa pede que ela fique deitada ao lado dele. Ela primeiro
tem medo que ele a confunda com uma concubina. Mas ele lhe fala com abandono e
confiança, com uma voz que murmura como um regato, e ela custa a acreditar tratar-
se do mesmo homem que esbravejava de raiva, ainda há pouco, do mesmo que dava
a ordem dos massacres de Cuzco... Por três vezes, ele se cala por alguns instantes,
sendo a sua respiração o único som audível no escuro, e por três vezes ela pensa
que ele adormeceu. Ao fazer menção de levantar, ela ouve a voz dele dizendo
calmamente: "Fique, não me abandone", com uma aflição tão profunda, tão triste,
que ela sente o coração apertado.
Ela lhe diz que lamenta já não lhe ser úƟl como antes, já não saber dizer as
palavras e ver os sinais do Outro Mundo. Ele interrompe com delicadeza. - Eu não
espero nada - diz além da sua presença, menina dos olhos azuis de lago, só gosto de
você pelo que você é.
Quando o dia começa a raiar, ele a deixa sozinha no leito e se ajoelha diante dela,
para sua confusão. Sem encostar nela, passeia o rosto por todo o seu corpo, dos pés
à cabeça, com uma espécie de devoção animal, como se procurasse um segredo
escondido em seu anato branco, em sua pulseira de serpentes, em suas pernas
compridas ou em suas ancas finas...
Ela se obriga a uma imobilidade perturbada apenas por sua respiração. Quando
termina o passeio, o Inca aproxima bem o rosto do seu.
- Seus olhos - murmura ele -, seus olhos...
Ela fecha as pálpebras e sente a carícia leve como uma asa de borboleta, de seus
lábios em suas pálpebras.
Quando abre os olhos, ele desapareceu.
Capítulo 42
Cajamarca, sexta-feira, 15 de novembro de 1532
***
***
Mal eles saíram do desfiladeiro, a chuva voltou, fina e constante. O declive da
estrada real é tão acentuado que as lajes tornam-se um perigo para os cavalos.
Todavia, os cavaleiros não precisam de nenhuma ordem para apear e segurar os
animais pelas rédeas.
Todos evitam olhar para o fundo do vale. Da imensa cidade de tendas dos índios,
os sons de trompa sobem de quando em quando. Mas o alarido que os próprios
homens fazem basta para não se ouvir mais nada.
O grosso da tropa indígena ficou no alto do desfiladeiro, só os servos e os
carregadores acompanham os espanhóis. Don Hernando reivindicou o privilégio de ir
à frente, juntamente com o embaixador dos incas, Sikinchara, dez homens a pé e
cinco cavaleiros de confiança. Pedro o Grego faz parte desta vanguarda com
SebasƟan. E também o gordo Moguer, a pé e sem cachorro. Gabriel não precisou
declinar do convite para lá estar: este não lhe foi feito. Não importa, ele está feliz de
ir ao lado do Governador, duzentos ou trezentos passos atrás da vanguarda.
A beira da estrada real, as cabanas de junco e de barro amassado com palha dos
pastores estão desertas. Os campos estão desertos. Não se ouve mulher nem criança
chamando. Ás hastes malva de um canteiro de quinoa estão envergadas com o peso
da chuva.
Mais embaixo, a estrada real se estreita e fica tão íngreme que nela foram
construídos degraus. Ali, as choças dão lugar a casas de muro de adobe e às vezes
de pedra. Mas estas também estão vazias.
O ronco do rio torna-se obsedante. Dos pântanos que beiram a colina do norte e
se estendem até os prédios das termas do Inca, sobe de repente uma bruma espessa
qual fumaça. Todos viram a cabeça com desconfiança antes de compreender que se
trata apenas da condensação formada quando o vapor que sai das águas quentes
entra em contato com o ar frio.
Gabriel percebe que o Governador não Ɵrou os olhos da cidade indígena. A
cidade é ainda maior do que parecia do desfiladeiro. E numa reentrância do vale,
atrás das ruas e das casas que se comprimem na imensa praça, de repente, eles
avistam uma fortaleza.
Como a tropa insƟnƟvamente diminui o passo, don Francisco vira-se para
Gabriel e diz num tom alto o bastante para que possa ser ouvido de longe:
- É só um rochedo!
E é verdade. Uma pedra cônica, perfeitamente circular, amarelo-escura e preta
sob a chuva, na qual foi talhado um caminho em espiral! Afinal de contas, aquilo
parece a concha de um caracol! O topo é encimado por uma construção estreita. Don
Francisco aponta para ela com o dedo enluvado e diz ainda:
- É aí que plantaremos a Cruz de Cristo e um campo de rosas para a Santíssima!
Ouvem-se risadas, mas elas são breves. Frei Vicente Valverde se persigna e
murmura:
- Que o Senhor o ouça!
- Ele me ouve - sorri don Francisco.
***
Quando eles entram na primeira rua, quando os cascos dos cavalos batem nas
lajes de pedra assentadas com tanta perfeição, a chuva, de repente, transforma-se em
granizo. Milhares de pedras finas e brancas tamborilando no ferro dos morrióes,
gelando caras e narizes e cobrindo o chão todo de branco.
A praça onde eles finalmente entram também está branca, imaculada, sem
nenhuma pegada.
É uma praça imensa, maior do que todas as praças sagradas dos incas em que
eles já entraram. Maior até, pensa Gabriel com um arrepio que não vem do frio, que
qualquer Plaza Real da Espanha!
Sua forma é irregular, como um retângulo truncado que se transforma em trapézio
e depois em triângulo.
Um muro de adobe mais alto que um homem e de, no mínimo, quinhentos passos
beira-a pelo lado sul e a isola dos pântanos. Os outros lados são ocupados por
esplêndidos prédios cheios de portas. São todos muito com pridos, com mais de
duzentos passos, que é também a largura da praça. E como sempre, há, deslocada
para a esquerda, essa pirâmide com degraus gigantescos onde os índios vão adorar
seus deuses e se entregar aos ritos pagãos.
A chuva de granizo pára tão subitamente como começou. Todos ficam imóveis.
Don Hernando e sua vanguarda não foram mais longe. No silêncio, ouve-se a oração
que Frei Vicente Valverde murmura mecanicamente só para si.
Do outro lado da praça, perto de uma grande porta em forma de trapézio que dá
para o imenso vale, um cão late. Um cão indígena, miúdo e fino como uma cruza de
lebréu mas de pêlo tão curto que parece inexistente. Os masƟns de Nápoles lhe
respondem e imediatamente recebem ordens de calar.
É hora das vésperas. Mas o céu está tão carregado que está escuro como ao
entardecer.
Os semblantes estão fechados e severos. Não é só medo. Gabriel agora conhece
bem as caras do medo. O que vê em volta dele está mais para espanto.
Naturalmente, ninguém esquece a presença das dezenas de milhares de índios do
outro lado do muro, no vale para onde foge o cão que conƟnua a laƟr. Mas, do
fundo das entranhas, no sangue que lateja até as pontas dos dedos, todos sabem que
aquele dia não será como os outros.
Sim, aquele dia de novembro - e que é um dia estranho de verão nessa laƟtude -
será um dia de verdade. Um dia depois do qual nada mais será igual na vida dos
homens como no mundo de Deus.
Só o Governador não muda de cara.
Após ter contemplado a praça, ele se vira para o embaixador Sikinchara como se
esƟvesse aguardando uma palavra, um sinal dele. Mas nada vem. Os lábios
orgulhosos do nobre índio não tremem. Seus olhos não pestanejam.
No meio dos cento e setenta espanhóis presentes, ele é o único, com seus criados,
a estar vesƟdo com cores vivas. Naquela estranha luminosidade invernal que o
tapete de granizo oferece, seus brincos de ouro brilham como o sol desaparecido.
Ele marcha num passo constante e forte, a expressão herméƟca porém serena.
Como pode o irmão do governador, por mais nobre fidalgo que seja, achá-lo
arrogante ou ridículo?, pergunta-se Gabriel impressionado. E perigoso, sem dúvida,
tanto quanto o jovem Senhor de rosto magro que já deve ter seguido para o
acampamento do Rei índio para lhe dar conta da entrevista da véspera.
Então, com uma leve esporeada, don Francisco faz sua montaria trotar até o pé da
pirâmide. Os cascos do cavalo rangem ligeiramente no granizo, ali deixando suas
pegadas.
Ao chegar ao pe da escada, ele puxa a rédea. Dando uma volta ampla, coloca-se
de frente para a tropa, que continua imóvel, e grita:
- Embaixadores, mandem avisar ao príncipe Atahualpa que o enviado de Sua
Majestade Carlos V o aguarda aqui. Que ele nos diga onde vai nos alojar!
***
O Único Senhor Atahualpa ainda tem a pele vermelha do banho quenơssimo que
tomou enquanto chovia granizo. Agora, está descansando numa rede de tela fina
esƟcada entre duas colunas de madeira entalhada no aposento que dá para o páƟo.
Olhos entreabertos, ele vê o granizo derreter e a água fervente da fonte fumegar.
InƟ Palla abana-o para protegê-lo do calor pesado que voltou logo após a
tempestade de granizo. O ar está impregnado dos vapores sulfurosos das águas.
Afastada, sentada entre as Esposas, Anamaya se pergunta se ele está cochilando,
tonto por causa do banho, ou se está pensando, como ela, no que acabam de ver do
outro lado do vale.
A luz era péssima e a distância, grande demais para que disƟnguissem bem os
estrangeiros. No entanto, no flanco abrupto da montanha adivinhava-se o cortejo
deles descendo a estrada real entre os campos de batata e de quinoa.
Não um cortejo muito longo, não uma grande tropa, como anunciaram Sikinchara
e Guaypar. Mas sim um cordão negro e cinzento nos verdes suaves da natureza.
Uma procissão sem nenhuma das cores apreciadas pelos Fi lhos do Sol. So um
cortejo negro, cinzento e descorado, como uma comprida minhoca rastejando até o
leito do vale.
Mas talvez o único Senhor esteja dormindo, pois não move um cílio enquanto se
ouvem barulhos fora do páƟo e Guaypar vem se prosternar sob a rede. Guaypar
permanece prosternado um instante, aguardando a pergunta do único Senhor. Como
esta não vem, sempre de cabeça baixa, ele anuncia respeitosamente:
- Único Senhor, o mensageiro de Sikinchara chegou. Os estrangeiros entraram na
praça...
Atahualpa espera um pouco antes de perguntar: - O que eles estão fazendo?
- Estão no pé do ushnu, em volta do capito deles. Alguns andam de um lado para o
outro nas ruas e entram nas casas como se estivessem procurando soldados
escondidos.
Atahualpa dessa vez abre os olhos e ri para Guaypar.
- O medo nem sempre tem aparência de medo, irmão Guaypar! Ruminahui fez o
que deve?
Desde que amanheceu, único Senhor. Vinte mil soldados cercam a cidade. Eles
estão invisíveis, escondidos atrás dos morros, das árvores, do capim alto. Os
estrangeiros caíram na cilada. Basta você decidir que os queimaremos vivos hoje à
noite, como porquinhos-daíndia!
- Você tem sede de guerra, Guaypar! Mas sabe o que decidimos. A Mãe Lua não
gosta de nos ver lutar de noite e InƟ quer que eu acabe o meu jejum. Faremos isso
tudo amanhã. Será uma grande festa e um grande dia para os filhos de Inti.
- Faremos como diz, único Senhor - admite Guaypar com pesar.
- Que Sikinchara ordene aos estrangeiros que fiquem na praça esta noite. Que
anuncie que eles poderão talvez se prosternar diante de mim amanhã.
Enquanto Guaypar se reƟra, uma pluma do abanador que InƟ Palla agita encosta
no rosto de Atahualpa. Com um muxoxo irado, ele se ergue apoiado num cotovelo,
os olhos soltando chispas. InƟ Palla dá um grito, cai de joelhos e recua
precipitadamente. Enquanto uma outra concubina corre para lhe tomar o lugar, os
olhos demasiado vermelhos de Atahualpa encontram o olhar de Anamaya, que não
baixou as pálpebras.
- São apenas homens, não é, Coya Camaquen? Viracocha não envia ninguém para
me apoiar agora que em breve eu devo ir saudar meus ancestrais em Cuzco...
Sua voz está tão amargurada que Anamaya não encontra palavras para lhe
responder. Ela pensa com espanto na noite que passou a seu lado; com certeza ela
deve ter sonhado...
***
Com a ponta da espada, Gabriel afasta uma tapeçaria. Um pouco de luz entra no
aposento grande e quente, impregnado de odores de terra e relva. Parece vazio.
Quando se prepara para largar o tapete que serve de porta, ouve um grunhido.
Um porquinho-da-índia de pelagem fulva corre entre as Ɵgelas de cerâmica. Depois
outro, e mais dez que de repente proliferam como ratos aos guinchos.
Só então, Gabriel vê, no canto oposto, semi-escondido por um feixe degalhos, um
par de olhos brilhando.
Depois um pé, pequenino. E uma mão minúscula. Uma criança! Gabriel sorri de
alívio tanto quanto de prazer. Passa a espada para a mão esquerda e se abaixa,
murmurando:
- Bom dia, menino.
O menino está petrificado, os olhos arregalados. É bonito, tem as faces sedosas,
boca delineada como boca de mulher. Seus pesados cabelos negros enquadram seu
rosto de feições finas e regulares.
Gabriel se agacha, fazendo as botas estalarem e a espada Ɵnir ao baternas
esporas. Ele descalça a luva direita e estica a mão ampliando o sorriso.
- Não tenha medo - diz, com toda a delicadeza possível. Não tenha medo, menino...
Sua voz soa estranha a seus próprios ouvidos. Ele não tem tempo de pensar na
visão que oferece ao menino, com sua cota acolchoada, suja e ainda úmida, com seu
capacete, sua espada, sua barba que lhe esconde o rosto até os olhos.
Os porquinhos-da-índia guincham cada vez mais e correm para todos os lados.
- Não tenha medo, menino - repete Gabriel. - Sou seu amigo... Como o menino
conƟnua parado, Gabriel se levanta, e, estendendo a mão, faz menção de se adiantar.
Então o menino dá um pulo e atravessa o aposento como um gato.
- Menino!
Porém, pasmo demais para fazer um gesto, Gabriel vê o menino franzir os olhos,
cerrar os punhos diminutos extraindo o que lhe resta de coragem e invesƟr para ele,
evitá-lo por pouco e sair correndo porta afora. Quando ele se volta, o menino já está
atravessando o pátio. Sobe num monte de madeira e pula o muro antes de
desaparecer.
No vão da porta do pátio, Sebastian deixa escapar uma risadinha.
- Eu não queria lhe fazer mal - protesta Gabriel calçando novamente luva.
Sebastian pára de rir. Eles se fitam, olhos nos olhos.
- Eu também, quando era pequeno, corria dos espanhóis - diz o Negro SebasƟan. -
E quase sempre, amigo Gabriel, era com razão!
***
***
***
Atravessado outro rio, eles estão perto o bastante para divisar bem os prédios
onde o Inca mora. E como as barracas dos índios formam uma espécie de muro
branco a perder de vista, de um lado ao outro da planície, da cidade de Cajamarca,
de visível, só há o estranho cone de pedra.
- Capitão - grita um dos homens da escolta. Olhe! Olhe o estandarte no alto do
prédio onde o Inca mora!
Gabriel, como os outros, segue na direção indicada. Na ponta de uma vara,
ligeiramente enfunada pela brisa leve, ele vê a camisa de seda oferecida ao Rei índio
pelo Governador!
Soto solta um impropério. Erguendo a lança, ordena que se faça alto. Chama
Felipillo e manda que o embaixador Sikinchara vá na frente, sozinho, até seuamo
para avisá-lo dos senhores estrangeiros.
Felipillo hesita.
- Bem, traduza, animal! - irrita-se Soto levantando o tom. Como de hábito,
Sikinchara ouve o intérprete, sempre de olho no capitão. Quando Felipillo se cala,
Sikinchara dá um largo sorriso, mostrando os dentes claros. Sem mais cerimônia,
ergue a mão num gesto de despedida e dá uma ordem aos carregadores.
Quando ele está um pouco afastado, Soro pergunta a Felipillo:
- Por que ele estava sorrindo assim?
O mesmo sorriso arregaça os lábios do intérprete:
- Ah... Porque está muito orgulhoso de anunciar a chegada de vocês ao único
Senhor!
Outra vez, o olhar de Soto encontra o de Gabriel.
- Logo saberemos quem, de nossa parte ou da dele, mente melhor - suspira Gabriel.
***
***
***
Por que o único Senhor quis que ela fosse os seus olhos? O que ela vê congela
seu sangue.
O que ela vê lhe queima os olhos.
Os estrangeiros entram no páƟo furiosos. Os animais que prolongam seus corpos
como pernas monstruosas têm olhos enormes, patas com a ponta de madeira e prata,
com as quais batem nas lajes do chão como se quisessem quebrá-las.
E os estrangeiros usam roupas que lhes colam no corpo como se esƟvessem nus.
Uma pele dupla envolve-lhes os pés e as panturrilhas. Uma pele dupla cobre-lhes as
mãos. Mas é visível a força de suas coxas, a estreiteza de suas ancas, e sua
compleição é maior do que a de um índio.
E os rostos...
O rosto deles é coberto de pêlos, em geral pretos, às vezes salpicados de branco.
Um deles, contudo, tem os cabelos dourados como a primeira luz da manhã. Seus
lábios são rasgados e móveis. E embaixo dos capacetes de prata, seus olhos são
vivos e cinƟlantes. Vão de rosto em rosto, olhando sem polidez, encarando até o
único Senhor, olhando as mulheres. Esses homens procuram olhos como se
pudessem penetrar em todas as almas com um único movimento.
E não são feios.
Não, não têm aquela feiúra descrita por Sikinchara e Guaypar! São apenas
homens brancos.
O do rosto coberto de pêlos de ouro tem algo de terno e frágil, até no medo que
faz
suas narinas palpitarem. Seu nariz é fino, seus lábios são muito vermelhos, rasgados
e finos, sua pele, muito clara, branca como leite de alpaca...
Mas aqueles rostos, Anamaya está apavorada com eles. O que ela ve e pior do
que enfrentar os dentes do puma.
O que ela vê nesses seres e nesses rostos pertence ao seu passado, à sua memória.
Ela se lembra da criança Anamaya. Daquela que já era bem grande para seus dez
anos. Daquela que era considerada alta demais e com a pele branca demais e que
provocava risadas nas meninas da aldeia chiriguana na floresta quente.
Aquela de quem zombavam por causa da testa chata e dos lábios muito finos e
muito rasgados.
Aquela que, depois em Quito, era repulsiva às mães e às meninas do acllahuasi
por causa dos olhos...
Então, no momento em que o único Senhor deixa cair o anel, em que o Ɵnido da
jóia nas lajes enche o silêncio pesado do páƟo, Anamaya ergue o rosto para o
estrangeiro de barba dourada, olha para ele como jamais olhou para ninguém.
E sabe.
***
Quando o anel de ouro oferecido por Soro cai da mão cheia de desprezo do Inca,
Gabriel nem ouve o ruído que ele faz.
Ele vê e sente uma vertigem. Olhos azuis.
Incríveis olhos azuis.
Entre as jovens índias suntuosamente vesƟdas, com capas de ouro e túnicas de
cores ricas, há uma, um pouco maior e toda de branco, com uma simples faixa
vermelha cingindolhe a cintura. Ela não tem, ao contrário das outras, cabelos
pesados de azeviche cuidadosamente divididos por uma risca. Os dela são fluidos,
caindo-lhe em finas espirais sobre os ombros, as mechas presas por fios de ouro, e
ela tem uma espécie de diadema, ornado com uma esmeralda e três penas curtas,
uma vermelha, uma azul e uma amarela, pousado na testa.
Tem esses olhos azuis...
E é linda.
Mas não é sua beleza estranha e ímpar que faz Gabriel cair no incêndio de seu
coração. E sua presença.
Como se ele Ɵvesse feito essa longa viagem de Sevilha até aquele vale de um
mundo desconhecido para estar diante dela!
Como se Deus, o desƟno ou o acaso, acumulando as provas em seu caminho, não
Ɵvesse Ɵdo outra vontade. Como se a vergonha de sua bastardia, a humilhação do
Santo Oİcio e a loucura inabalável de don Francisco Pizarro não Ɵvessem Ɵdo outra
razão de ser senão gerar esse instante! Estar ali, agora, diante dessa desconhecida.
Diante dessa mulher de outro universo, de olhos de céu bem abertos, de olhar de
lago.
A verƟgem é tamanha que ele precisa agarrar-se à crina do cavalo para não cair.
Precisa cerrar os dentes para não gemer como uma criança apavorada. Tudo que o
envolve não passa de um vazio a separá-lo dela.
A separá-lo da esperança e já do desejo dessa mulher.
Ele não ouve nem vê mais nada. Só ouve o coração e os olhos dela. Será possível
alguém ter saudades de um rosto desde a primeira vez que o vê? Será possível
alguém saber, com um único olhar, que não poderá respi rar sem o ar desse rosto e o
calor de seus lábios?
Ele sente frio. E parece que só poderá se aquecer se a tocar.
***
***
O Inca não fala para os estrangeiros. Dirige-se somente a um dos Anciãos que o
cercam e este transmite suas palavras ao intérprete Felipillo. E ele diz: Por todos os
lugares por onde passaram, vocês maltrataram meus Poderosos Senhores. Nas
aldeias, maltrataram os curacas, acorrentaram-nos, bateram neles sem nenhum
respeito por mim, o Filho do Sol, o único Senhor desta terra que não é a sua.
Sem respeito, vocês entraram na casa das Virgens e tomaram mulheres. Pegaram
ouro e prata nos templos. Entraram num palácio onde dormia meu pai Huayna Capac
durante sua vida de cá e roubaram as esteiras preciosas. Ao longo de todo o seu
caminho desde o mar, vocês comeram o que não lhes foi oferecido e seus cães
mataram crianças para se alimentar...
O Inca fala muito tempo da crueldade dos estrangeiros. Manifesta toda a sua ira
por virem perturbar a paz do Império das Quatro Direções.
Mas quando ele se cala, don Hernando responde que tudo aquilo é menƟra. Em
sua voz há o tom corajoso da arrogância.
- O Governador é um bom cristão. Não deseja fazer mal a ninguém e só combateu
quem se opunha a ele.
Quando vieram a nós em paz, com sorrisos e presentes, nós também respondemos
com sorrisos e presentes. Quando nos atacaram, então sim, fizemos a guerra e
vencemos todos os que não se submeƟam. Fizemos isso e voltaremos a fazer tanto
quanto for necessário. Sem medo nenhum, pois um único de nós, montado em seu
cavalo, é forte o bastante para combater um exército inteiro do povo daqui!
O Inca ri como se vomitasse todo o seu desprezo. Diz:
- Apeiem de seus animais para descansar e se refazerem.
- Estamos de jejum - responde don Hernando com firmeza - e fizemos voto de não
apear antes de voltarmos ao nosso alojamento... Já vai anoitecer e precisamos levar
uma resposta a meu irmão, o Governador. Gostaria de vir partilhar o pão com ele?
Naquelas rodas de sangue, parece que os olhos do Inca continuam rindo. Ele diz:
- Hoje, agradeço ao Sol meu Pai, a Quilla minha Mãe e ao trovão Illapa por me
terem dado a força para vencer meu irmão Huascar, que não quis respeitar a Lei.
Hoje, estou jejuando também porque meus guerreiros, que andam aos milhares e
milhares, e que só se mexem se eu ordenar, venceram grandes batalhas... Amanhã,
termina meu jejum. Então irei a Cajamarca com alguns de meus Poderosos Senhores.
Esta noite, vocês podem pernoitar nos grandes prédios da praça. No que tem uma
decoração de serpentes, não entrem: é o meu.
Por um momento, o Inca se cala, examina com curiosidade os cavalos. Depois,
acrescenta:
- Antes de tornar a parƟr, é preciso que bebam da cerveja sagrada, pois é assim
que manifesto minha amizade àqueles que não são meus inimigos. Mal ele proferiu
essas palavras, duas jovens se aproximam, trazendo cada uma um grande copo de
ouro, maravilhosamente trabalhado. O Inca bebe de cada um deles antes que uma
das mulheres ofereça um a don Hernando. Depois, repete-se o mesmo ritual, com
copos de prata, para Soro. Mas é então que a jovem de olhos azuis aproxima-se do
Inca.
Ela também lhe oferece dois copos de ouro. O Rei do Peru olha para ela franzindo
o cenho. Os velhos, ali em volta, manifestam sua surpresa. Contudo, o Inca, sem
uma palavra, toma um dos copos. A jovem se prosterna en quanto os lábios do Inca
tocam a espuma branca e acre. Depois, ela se vira e se aproxima do cavalo de
Gabriel e, mergulhando os olhos nos dele, oferecelhe o copo de ouro.
Anamaya viu o olhar de nojo de InƟ Palla para os estrangeiros quando lhes
ofereceu o copo de ouro.
Viu também o desprezo de Sikinchara, o ódio selvagem de Guaypar e seu desejo
de sangue e de guerra. Adivinhou a curiosidade do único Senhor pelos grandes
animais e o prazer que lhe daria possuir alguns semelhantes.
Ela ouviu na voz de Atahualpa tanto raiva quanto astúcia e, finalmente, desdém.
Sente o quanto o único Senhor está convencido de que causa medo aos estrangeiros,
o quanto tem certeza de sua força, da força de seus milhares de guerreiros e do
apoio de seu Pai Sol.
No entanto, eles se enganam. Anamaya sabe.
Essa idéia não vem das palavras violentas do chefe dos estrangeiros que falou.
Em sua voz, detectava-se facilmente fanfarronice e mentira.
Essa idéia vem do silêncio e do olhar do homem de barba dourada. Da segurança
que ele demonstrou ao levar a mão à sua arma quando o chefe estrangeiro proferia
insultos que o intérprete nem ousava traduzir.
Há nele uma ousadia que os outros estrangeiros fingem ignorar. Há nele uma
grandeza que Atahualpa não sabe enxergar. Há nele toda a força de um mundo
desconhecido.
Ela o sente como se ele a tocasse. Como se ele a estreitasse até sufocá-la e a
levasse em seu animal estranho.
Mas todos aqui parecem ignorá-lo.
E essa ignorância cega o único Senhor!
Então, quando ela compreendeu que nenhum dos copos de chicha era desƟnado a
ele, sem temer a ira do único Senhor que não deu essa ordem, ela tomou a iniciaƟva
de encher um.
E ao oferecê-lo a ele, constatou sua surpresa.
Ele Ɵrou a pele dupla das mãos, e seus dedos, longos e brancos, tremiam.
Inclinou-se para ela, e, por uma fração de segundo, pareceu que ele poderia cair nos
braços dela.
Com cuidado, eles evitaram que seus dedos se tocassem. Como ele estava pálido!
Sim, ele também disse a si mesmo que poderia cair nos braços dela.
E, se detestou o gosto acre da bebida, Gabriel não se permiƟu demonstrá-lo.
Enquanto bebeu, como se esƟvesse bebendo seu olhar e sua alma, não conseguiu
deixar os olhos azuis da jovem índia. E acabou gostando do agri doce da cerveja.
Ela estava bem perto do cavalo, imóvel e sem medo. Seu busto estava na altura do
joelho dele, e bastaria que ele fizesse um leve movimento, que o animal desviasse,
para que ele encostasse nela.
Seu coração estraçalhou seu peito.
A cerveja aqueceu-lhe o estômago apertado. Todos os olhos estavam grudados
nele. Gabriel sentiu o peso do olhar sanguinolento do Inca.
Finalmente, devolveu-lhe o copo vazio. Ela ergueu o braço, jogou o rosto para
trás como se lhe oferecesse toda a sua inocência de uma vez só, como se quisesse
que ele pudesse interpretar nela toda a sua pureza.
Mas então, atrás dele, don Hernando anunciou:
- Agora vamos nos despedir, e os estamos aguardando amanhã. O Inca inclinou um
pouco a cabeça, com uma espécie de sorriso:
- Que um de vocês fique conosco esta noite, que seja meu convidado - respondeu
ele.
E, com sua machadinha de ouro, apontou para Gabriel.
- Não - protestou precipitadamente don Hernando. - O Governador não permite!
Temos que voltar a Cajamarca, onde ele nos aguarda. Ele ficaria furioso se
segurassem um de nós...
O Único Senhor sorriu. Todos os Poderosos Senhores sorriram. Todos os
soldados amontoados no pátio sorriram.
Todos perceberam o medo dos estrangeiros.
A ironia iluminou seus semblantes, como se eles dissessem: "Olhem só esses
grandes guerreiros. Eles estão com tanto medo que fogem de nós como porquinhos-
da-índia!"
Todavia, enquanto don Hernando já fazia sua montaria girar, o capitão de Soto
exclamou:
- Esperem! Será que não devemos agradecer ao índio pela hospitalidade? Acho
que os cavalos o interessam. E depois, eles não devem ficar pensando que somos
uns covardes...
E esporeando o animal dos dois lados, começou a dar voltas no páƟo. Ele possui
um cavalo bastante bem adestrado. Usando as esporas e o punho, faz com que ele
ande para a frente e para trás a passo antes de arremeter com ele num galope curto.
Os cascos martelaram as lajes ruidosamente. Cada vez mais rápido, ele girou sobre
si mesmo tão junto que os servos e os guardas se afastaram. O animal bufou e
reclamou, espumando no freio. Afinal, com um grito, Soto fez o cavalo empinar.
Então, alguns índios recuaram, apavorados, e caíram sentados, enquanto outros,
aterrorizados, fugiram.
Don Hernando riu e levou a montaria para fora do páƟo. Quando Gabriel virou-
se uma última vez, não encontrou o olhar azul da índia, mas só o sorriso divertido do
Inca.
***
***
O vento noturno leva o som das trompas e dos tambores até bem longe. Em voz
baixa, encolhidas debaixo das tendas, sem sono, excitadas e apavoradas, as crianças
contam umas às outras como os estrangeiros vão e vêm, meio homens, meio animais,
maiores que os lhamas, dando saltos prodigiosos por cima de muros e soltando
faíscas com seus pés de prata.
Na cancha, o único Senhor recolheu-se em seu quarto e pediu para não ser
incomodado. As termas estão vazias. Tudo está estranhamente calmo. Como as
outras mulheres que não passam a noite perto do leito dele, Anamaya prosternou-se
antes de sair de costas na penumbra do páƟo. Atahualpa não lhe concedeu um olhar.
Os muitos copos de chicha absorvidos, o jejum e a tensão do encontro com os
estrangeiros parecem tê-lo exaurido. Seus olhos estão tão vermelhos que não se
distinguem mais as pupilas.
Anamaya decide ir ao pequeno templo erguido próximo à fonte fervente. Mas, ao
entrar no pátio, Inti Palla põe-se à sua frente.
No escuro, seus olhos faíscam, seus dentes brilham como presas. Sua mão, bruta,
prende o pulso de Anamaya.
- Aonde vai correndo? Encontrá-los? - Encontrá-los? O que está dizendo? - Não
minta! Eu entendi tudo - sibila Inti Palla.
Anamaya tenta desvencilhar-se, mas os dedos de InƟ Palla apertam com mais
força, incrustando o bracelete de ouro na pele.
- Vi como você olhava para eles...
- Me largue - é só o que responde Anamaya, sentindo a raiva lhe subir.
Mas InƟ Palla, com esgares de ódio, agarra-lhe o outro braço e junta as forças
para imprensá-la na parede.
- Eu sempre soube que você era nefasta! - zomba ela. - O Único Senhor nunca quis
me escutar. Agora, vai me ouvir!
- Não sei do que você está falando - murmura Anamaya.
InƟ Palla empurra-a no páƟo. Sob a violência da princesa, Anamaya se retesa,
mas não tenta lutar. Seu peito está em fógo, suas entranhas queimam, como se ela
esƟvesse bebendo a água fervente do tanque. E ela já sabe o que vai ouvir.
- Ah, não banque a grande e nobre Coya Camaquen! - exulta InƟ Palla. - Vi como
você olhou para o estrangeiro. Uma mulher sabe o que isso significa. Você olhava
para ele como se olha para um homem que a gente quer ter entre as pernas!
- Cale a boca! - grita Anamaya.
- Durante anos, fingi ser sua amiga porque o único Senhor a protegia. Mas desde a
primeira vez que a vi, você me causou repugnância. E eu sempre soube que você
quer nos trair...
- É mentira - geme Anamaya repelindo-a.
Rodando o braço, InƟ Palla a esbofeteia. Anamaya se desequilibra e cai no chão,
a cabeça a menos de um palmo do tanque. Respira a plenos pulmões o vapor
fervente que emana dali.
- E eu sei por quê! - ruge a princesa fora de si.
Enquanto Anamaya se levanta, uma enxurrada de imagens e emoções é liberada:
num turbilhão, vêm o sorriso de sua mãe e seus lábios declarando o seu amor, a pele
crestada do velho Inca, o rosto e os cabelos dourados de um homem que mergulha
os olhos nos seus...
- Eu também sei! - grita ela finalmente.
Estupefata, InƟ Palla larga-a com um tranco assustado. Um sorriso estranho nasce
nos lábios de Anamaya, uma calma estranha envolve-a e alguma coisa em seu olhar
azul assusta Inti Palla, que dá um passo atrás.
Pela primeira vez, Anamaya olha para sua falsa amiga sem medo nem admiração.
Ela a vê deformada de ciúme e de ódio, vê-a pelo que ela é.
- Eu sei - repete - e não tenho medo de saber. Sei de onde venho e sei o percurso
que fiz. Sei que um estrangeiro, um homem parecido com esses homens, é meu pai.
Ela ouve as próprias palavras ecoarem na noite.
- São apenas algumas imagens diante de meus olhos, uma sensação na minha pele,
coisas que as crianças falavam na aldeia: um estrangeiro vindo da floresta, a cara
coberta de pêlos, que desapareceu na floresta...
- Você é como eles. É repulsiva como eles!
- Mas eu também sei - prossegue Anamaya ignorando a interrupção - que, a vida
inteira, segui as ordens que o único Senhor, Huayna Capac, colocou em meu coração
na noite em que morreu, quando prometeu que velaria por mim...
Ela se cala, olha com desprezo para o rosto desfeito de Inti Palla.
- Lembra-se que me perguntava em Quito por que eu era tão feia? Eu não faria
essa pergunta. Sei por que você é tão feia. Sei por que o único Senhor não quer mais
tocá-la, por que detesta sentir o cheiro da sua pele e por que a sua barriga lhe dá
nojo...
- Você é louca! - grita InƟ Palla com os olhos cheios de lágrimas. - É o mais
profundo da alma que vejo em sua boca, InƟ Palla. Por baixo da pele lisa do seu
rosto, só há ódio e maldade vil. É toda a podridão do seu coração que brilha em
seus olhos...
- Você é uma bruxa, que veio do Mundo de Baixo para nos destruir - exclama InƟ
Palla entre dois soluços, brandindo as mãos à frente como para se proteger de um
incêndio. Você é uma estrangeira e quer nos dar a eles como já se deu a eles... Quer
que eles venham cá, com aqueles animais, e nos pisoteiem! Enquanto Inti Palla uiva,
Anamaya dá um passo à frente procurando afastar as mãos dela. A princesa recua
em direção ao tanque fervente.
- Ódio - murmura Anamaya -, torrentes de ódio, mentiras miseráveis...
- Você não e como nós! Você quer a nossa morte!
Anamaya não hesita. Com um gesto decidido, segura os punhos que InƟ Palla
brande e aperta-os com uma violência tão grande que poderia quebrá-los.
InƟ Palla arregala os olhos e geme. Há apenas medo no fundo de seus olhos e, em
seu rosto, o suor, a umidade do ar e as lágrimas se misturam. Num movimento de
dança estranho, Anamaya atrai-a para o tanque como se quisesse mergulhá-la ali. A
princesa resiste com todas as forças. Deixa-se cair de joelhos, cortando a pele fina e
tão resplandecente de sensualidade de suas coxas. O sangue se mistura à terra e ao
suor. A água fervente está tão perto que elas sentem o calor no rosto e a irritação do
enxofre na garganta. Fazendo mais pressão nos braços de InƟ Palla cujo rosto se
contrai de dor, Anamaya se agacha perto dela e a empurra contra a parede do tanque.
- É isso que você queria? - diz baixinho Anamaya. Me mergulhar na água
fervendo? Se livrar de mim? Inti Palla chora convulsivamente.
- Responda.
Inti Palla abaixa a cabeça.
- Olhe bem - diz Anamaya.
Ela larga os braços de InƟ Palla e, com um movimento tão violento que chega a
arranhar-se, arranca o bracelete de ouro, o bracelete das serpentes que ganhara da
princesa, há muitas estações. Brande-o diante dela.
- Lembra-se? Eu era só uma menina apavorada, uma criatura da floresta, tão feia
e disforme que só merecia zombarias... Eu achava que você era como as outras...
Depois, você entrou no meu quarto, um dia, com palavras doces e esse seu sorriso, e
me deu este bracelete, dizendo-se minha amiga... Você era tão linda e eu queria tanto
acreditar em você... É, eu também queria ser sua amiga...
Quando o joga no tanque, o bracelete cai apenas com um leve ruído, como um
seixo ou uma gota de chuva. Afunda cinƟlando, levado um instante pelo fervilhar da
água, depois desaparece entre as flores-de-enxofre vermelhas e marrons que cobrem
o fundo do tanque.
Anamaya se levanta com agilidade. A amizade que morre em seu coração não faz
mais barulho que essa jóia desaparecida.
Sem um olhar para InƟ Palla a se contorcer e sempre a soluçar, ela ajeita a túnica
e se afasta na noite.
***
- Mestre Francisco!!
Como todos os espanhóis, o cirurgião-barbeiro Francisco Lopez, vulgo Pancho,
instala seu material num dos prédios da praça. Suas Ɵgelas de estanho, seus bisturis
para sangrias, suas pinças e seus martelos para dentes, suas navalhas, seus potes de
pomadas e ervas medicinais são arrumados em cima do baú de couro.
Ao ouvir Gabriel chamando, ele se vira e esboça um sorriso.
- Em que posso servi-lo, Gabriel?
- Eu gostaria que pudesse me fazer a barba.
O barbeiro perscruta o semblante de Gabriel, depois o ar diverƟdo de SebasƟan
que o acompanha.
A visita ao Inca o deixou maluco - conclui.
Ele também quer que você corte o cabelo dele - diz Sebastian rindo, com uma
piscadela.
O barbeiro balança a cabeça.
Gabriel! É tarde e o Governador nos convocou para daqui a menos de uma hora...
Então dá tempo.
- Não! E depois, ora, amanhã você vai ter todas as oportunidades para cortar e
aparar o que quiser!
- Eis aí uma observação de homem corajoso - zomba Sebastian.
E por que você quer Ɵrar a barba? recomeça o cirurgião, muito sério. - Ela lhe
assenta como uma luva.
- Para sentir o ar desse dia na cara. Ficou louco mesmo ou está fingindo?
- Pancho, amanhã, quero estar Ɵnindo. Quero que você me faça a barba e me corte
o cabelo. Depois vou deixar o resto da sujeira no rio.
- Madre de Dios! No meio da noite? Com os quarenta mil selvagens gritando em
volta da gente?
Pancho se precipita sobre um de seus frascos e brande-o como o santo sacramento:
- Gabriel, você vai tomar três gotas desse elixir que vai acalmá-lo e fazê-lo dormir,
é isso o que vai fazer!
Sebastian cai na gargalhada:
- Você não entendeu, barbeiro! O señor Gabriel tem um encontro amanhã com uma
mulher.
Gabriel olha desconfiado para o Negro.
Sei quem ela é, essa sua senhora - diz o barbeiro imitando o movimento do
ceifeiro. Nós todos temos um encontro com ela. Mas posso lhe garanƟr, don
Gabriel: ela pouco se importa se usamos barba e cheiramos a azedo!
- Deixem de asneiras vocês dois - diz Gabriel pegando uma navalha em cima do baú.
Ele a abre, sente seu gume na palma da mão, depois aponta-a para a barriga de
Francisco e ordena, num tom tão baixo e grave que os sorrisos se apagam:
- Faça a minha barba, por favor, Pancho, ou você nunca vai saber como é todo
esse ouro do Peru.
***
Anamaya foi correndo descalça até a fonte. Precisava lavar-se de toda impureza,
de todas as palavras que a sujaram, de toda a violência que passou por ela.
Precisava nascer de novo.
Agora ela sai da água quase fervente. Naquele luar prateado e naquele ar frio da
noite, seu corpo nu está fumegando. O banho não apagou as lágrimas que correm em
seu rosto. Ela veste o anaco branco, mas sem enriquecê-lo com nenhuma de suas
jóias. Jogou fora o bracelete das serpentes dado por InƟ Palla, mas seu braço ainda
ostenta o arranhão que ele deixou.
Do outro lado do vale, na encosta, no caminho real que leva a Cajamarca e onde
serpeava pela manhã a estranha minhoca preta e cinza formada pela coluna de
estrangeiros, agora há um interminável cordão de fogo. São as tochas dos milhares
de índios rebeldes que acompanham os homens barbados. Todos aqueles que
Atahualpa conquistou e perdeu. Todos aqueles que prestaram vassalagem a Huascar
e que, hoje, não têm outro meio de se vingar do Único Senhor senão oferecendo o
seu rancor e suas armas ao poder dos estrangeiros.
E o cordão de fogo, como uma corrente de ouro fundido na opacidade da noite,
desliza até a cidade cujos muros ela ilumina.
Cajamarca está tão perto e tão longe!
- Eles vão todos morrer - diz uma voz no escuro. - Guaypar!
O jovem combatente sai da escuridão, torso e pernas nus, vesƟdo apenas com a
huara. Anamaya não pode evitar admirar seu corpo forte, onde os másculos parecem
torrentes numa montanha.
- Ouvi tudo - diz ele. - Sei a maldade que essa mulher tem no coração. E sei que
você não nos traiu. Nunca...
- Obrigada, Guaypar.
- Mas também sei que você não olhava para o estrangeiro como se olha para um
pai...
Ela percebe a amargura em sua voz. - E quero lhe dizer que ele morrerá.
Anamaya fecha os olhos. A dor lhe retesa os membros e lhe punciona os rins.
A lembrança do rosto do estrangeiro está dentro dela. Seu olhar e sua verƟgem
quando ele quase caiu em seus braços ainda estão dentro dela, como uma pedrinha
de fogo a dilacerar-lhe as entranhas.
A atração pelo estrangeiro está dentro dela, onda de esperança e de doçura a lhe
dilacerar o peito. E agora, o medo de que ele morra está dentro dela.
- Deixe-me, Guaypar - murmura.
- Ele morrerá - repete calmamente o guerreiro.
- Ele e os outros. Ele se afasta na noite.
Anamaya se levanta e dá as costas para Cajamarca. Esquadrinha as colinas
escuras a oeste por onde chegará o Irmão-Duplo, se Villa Oma não o esqueceu.
- Venha - balbucia ela. - Venha Irmão-Duplo, venha, eu suplico, e me ajude!
***
***
***
***
- Foi um belo discurso que o Governador fez ontem à noite - diz o Grego. - Gosto
quando don Francisco fala assim. Mas foi só um discurso. E agora é que as coisas
sérias vão começar.
Ele aponta para as montanhas do leste onde, apesar das nuvens, o céu clareia.
Os três conƟnuam sentados ao pé do falconete, no topo da pirâmide, molhados e
enregelados de frio. O alarido do imenso acampamento índio cessou há apenas uma
hora, como por milagre, e de uma vez só. Como eles souberam que já ia amanhecer?
A quanƟdade de fumaça produzida por milhares de fogueiras foi tão grande que se
estagnou em cima do vale, de uma serra à outra, numa camada marrom pesƟlenta,
espessa como as nuvens e irritando os olhos e a garganta.
- Um contra quatrocentos - recomeça o Grego com um sorrisinho. - Vamos saber
como é isso.
- Se você Ɵver tempo - brinca SebasƟan. - É pena que esses bugres nunca
ataquem à noite, pelo menos eu teria a minha chance!
Depois, eles ficam calados um bom tempo, procurando adivinhar menor
movimento na direção das termas.
- Por que está há horas sem dizer nada? - pergunta finalmente Grego a Gabriel. - O
medo, em geral, faz falar.
Gabriel olha para ele e sorri.
- Estou com medo, mas não do que você pensa - diz com uma voz completamente
rouca.
- Então de quê?
Mas Gabriel fica calado, o enigma de seu sorriso nos lábios. Quando o Grego e
SebasƟan param de lhe dar atenção, ele ergue os olhos para as estrelas. "Havia um
sonho por trás do meu sonho", murmura de si para si, "mas eu não sabia."
Capítulo 45
Cajamarca, 16 de novembro de 1532
***
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- Acabaremos com eles hoje à noite mesmo - diz Atahualpa, a voz pastosa.
O Único Senhor bebeu chicha demais. Seus gestos estão tão pesados e lentos
quanto sua voz, seus olhos já não têm aquela força habitual. Ele parece entorpecido,
embriagado por todos os banhos escaldantes tomados durante o jejum assim como
pelos jarros de cerveja sagrada engolidos desde a manhã.Porém, mais do que
embriaguez, enquanto irrompem risadas em volta dele, há em seu rosto, no canto de
sua boca, uma imensa lassidão, uma tristeza infinita.
Anamaya sente um nó na garganta. É levada por uma onda de ternura pelo único
Senhor e está a ponto de atirar-se a seus pés quando alguém lhe aperta o braço.
Ela se vira sobressaltada. Bem junto a ela, o rosto de Guaypar é grave e severo.
- Eu a vi - diz ele com falsa doçura. - Não entendo.
- Eu a vi - repete ele. - Não preciso lhe dizer mais nada. Lembra-se do que lhe
disse ontem à noite?
Anamaya sente-se corar. Baixa os olhos.
- Agora vou encontrar Ruminahui na estrada real - prossegue Guaypar. - O Único
Senhor parece não levar as coisas a sério, mas é só impressão. Daqui a pouco, vocês
vão tornar a pegar o caminho de Cajamarca e entrar na praça. Os estrangeiros ficarão
com tanto medo que fugirão e nós estaremos esperando. Vamos eliminar essa raça
para que ela nunca mais volte para fazer seu trabalho de destruição, nem neste
mundo aqui nem em outro... Seja prudente, Coya Camaquen! Seja prudente. E que
seus olhos azuis não digam aos estrangeiros o que eles devem ignorar.
***
- Alguns levam arcos, outros lanças de cinco pés de comprimento cuja ponta foi
temperada no fogo.
- Já sabemos - diz Pizarro.
- Eles escondem algumas armas e algumas cotas por baixo da túnica - acrescenta
Aldana.
- Quais?
- Sem dúvida, fundas, maças...
Pizarro dá um sorriso de desprezo. Varre o receio com um gesto. - O Rei deles
vem? É só o que me interessa.
- Ele me disse que sim - responde Aldana com uma voz ainda hesitante. Para
maior segurança, o Governador dá novas ordens: que os cavalos e os cavaleiros
sejam trancados nos prédios em volta da praça, que colares de guizos sejam presos
às selas. Que a tropa de infantaria se esconda em outros prédios para poder surgir de
todos os lados e que todos os soldados estejam vestidos com a cota de algodão
acolchoada, e tenham a arma à mão...
- Mas sobretudo - grita ele para se fazer ouvir - precisamos capturálo vivo. A
praça deve permanecer nua como um dorso de mão. É preciso deixá-los entrar sem
que desconfiem de nada. E vocês aí em cima da pirâmi de, escondam-se bem atrás
do parapeito.
Quando eles esƟverem aqui, nenhum Ɵro de arcabuz nem de besta será disparado
antes de eu dar a ordem. E minha ordem será "Santiago"...
***
Da estrada das termas, para se ter acesso à praça, só há uma porta cuja largura é
a conta para a liteira. Por ali, o cortejo não acaba mais de passar. Os servos vêm à
frente, depois os senhores que carregam o Inca, depois as duas outras liteiras onde
vão os curacas, depois as redes, as mulheres.
Os guerreiros ficaram do outro lado do muro, com suas lanças, suas alabardas,
seus machados.
Quando o cortejo desemboca na praça, os tambores e as trompas que não pararam
de tocar calam-se de repente.
O Único Senhor ergue o braço e, só com esse sinal, faz calar também as vozes, os
murmúrios e até o vento.
Não há um só estrangeiro na praça.
- Onde estão eles? - pergunta Atahualpa.
Não temos medo. Foi isso o que disse o estrangeiro dos cabelos de ouro, ela tem
certeza. Anamaya quer aproximar-se da liteira, dizer ao Inca que as palavras de
Sikinchara são mentirosas, desde o início. Mas a multidão é tão densa que ela não
consegue passar.
Ela abre a boca, mas seu grito é abafado pela cantoria que sobe de novo da
multidão.
***
Vocês precisam - diz Pizarro em voz baixa, mas todos o escutam - fazer do seu
coração uma fortaleza, pois não têm outra...
Aqui, no palácio, ele faz o mesmo discurso que fez pouco antes em cada um dos
prédios da praça onde, espremidos uns contra os outros, os cavaleiros e os soldados
de infantaria se dão encontrões, riem nervosamente ou ficam calados, os olhos
perdidos, pensando com uma nostalgia súbita e violenta no torrão da Espanha que os
viu nascer.
- Vocês não têm outro socorro a esperar senão o de Deus, que sabe prodigalizar
Sua ajuda nos momentos mais graves àqueles que estão a Seu serviço. Vocês
encontrarão a coragem de que necessitam: Deus lutará por vocês!
Há lágrimas nos olhos de alguns, mas os punhos se cerram nas luvas.
- Cuidado - diz ele sempre com suavidade - quando chegar a hora, partam para
cima do inimigo com raiva e segurança. Vocês, cavaleiros, sigam direto para a liteira
e tomem cuidado para que os cavalos não tropecem uns nos outros. Eu irei a pé com
a infantaria... Que ninguém ponha a mão no Inca antes de mim.
O olhar de Gabriel deixou o olhar hipnóƟco do Governador. Por um vão, eles
vêem o brilho da procissão parada, a liteira do Inca flutuando, como se carregada
por um mar de homens. E sempre essa cantoria soando como rumores vindos das
profundezas da terra.
"Onde está ela, para que eu a tome nos braços?", pensa ele...
- Irmãozinho?
É a voz severa do Governador.
- Don Francisco?
- Não é hora de sonhar.
Gabriel leva a mão ao punho da espada e aperta-o furiosamente.
- Não estou sonhando, don Francisco.
- Não fique longe de mim.
O Governador falou tão baixo e tão depressa que Gabriel não tem certeza se
entendeu. No entanto, não é possível que ele se tenha enganado: seu coração bate
mais depressa, de orgulho.
***
***
***
É como se o caminho que Frei Vicente fez até o Inca fosse um rasƟlho de fogo na
praça: nenhum dos índios ousa pisar ali.
Gabriel vê o dominicano parar diante da liteira e ouve com clareza as palavras que
saem de sua boca.
- Sou um sacerdote de Deus e ensino aos cristãos as coisas de Deus. Deus ordena
que, entre os seus, não haja guerra nem discórdia, mas sim a paz. Em Seu nome,
rogo-lhe que seja amigo dos cristãos, como eles são seus amigos, pois é o que Deus
quer e o que é bom para você. Estávamos de acordo quanto a nos encontrarmos
pacificamente: por que vir com tantos guerreiros?
O Inca não responde, nem sequer se mexe. Uma imagem passa diante dos olhos
de Gabriel: Frei Vicente afastou as águas para chegar à barca do mestre. Um gesto
seu e ele será engolido - e todos com ele.
- O Senhor Governador - prossegue Frei Vicente - o ama muito, ele o espera em
seu alojamento e deseja vê-lo. Vá falar com ele, eu lhe peço, pois ele não vai cear
sem você.
Dessa vez, mal Felipillo acaba de traduzir, o Inca responde com sua voz
inexpressiva, apenas audível.
São palavras de raiva.
***
O Inca não chega a abrir o livro. Vira-o de todos os lados como se fosse uma caixa.
Gabriel vê Frei Vicente fazer um gesto para ajudá-lo, e o Inca lhe dá um tapa.
Ele acaba abrindo o evangeliário, começa a folheá-lo com impaciência antes de
dar um grito em que se nota raiva e desprezo.
Um murmúrio, logo um rugido, começa a crescer na multidão.
- Senhores, preparem-se - diz a voz calma de Pizarro -, agora chegou a hora.
***
***
Quando o Inca jogou a Bíblia no chão, todos viram Felipillo precipitarse para
pegá-la. Um silêncio explodiu na cabeça do povo como um raio e o grito de Frei
Vicente ressoou dentro do peito de cada um.
- Saiam, saiam, cristãos! Para cima desses cães incréus que não querem as coisas
de Deus: esse aí jogou no chão o livro da nossa Sagrada Lei!
E agora, Frei Vicente corre para o palácio e conƟnua vociferando enquanto corta
a mulƟdão de índios. Estranhamente, os índios não fazem um gesto para retê-lo e o
deixam passar como se ele fosse intocável.
- Não é mais hora de esperar! - berra Frei Vicente, que chegou a dez passos do
Governador. - Não vêem que os campos estão ficando cheios desses selvagens?
Ataque esse cão, Governador! Eu lhe dou uma absolvição prévia! Don Francisco
olha-o esbravejar sem pestanejar.
Momentos antes, com a maior calma, ele havia amarrado seu colete de aço
lustroso de suarda por cima da cota de algodão. Seu capacete esconde-lhe todo o
rosto exceto o olhar escuro. Ele ergue uma mão enluvada de couro grosso para Frei
Vicente cujo peito parece prestes a explodir:
- Agora acalme-se, don Valverde. Tem o seu bispado. Gabriel foi o úlƟmo a
montar. Don Francisco vira-se para ele.
- Vou a pé. Quando eu esƟver com o Inca - murmura ele -, quero que fique perto
de mim.
Todos juntos, eles saem do palácio e dos prédios da praça. O estandarte do
Governador tremula ao vento e um grito sai em uníssono da boca de todos:
"SanƟago!" Então, dos prédios vizinhos surgem os infantes aos gritos, a espada nua
apontada para o céu.
Nos segundos que se seguem, duas detonações ensurdecedoras envolvem o topo
da pirâmide numa fumaça branca. Não quatro como se convencionou, mas Gabriel
não tem muito tempo de pensar na pólvora molhada que os traiu de novo. Um
imenso grito de estupor vem da mulƟdão de índios. Eles têm tempo de ver a
trajetória dos projéteis, quase lenta, aƟngir a entrada da praça, onde explodem
cabeças, esmagam peitos e semeiam um terror sem nome na mulƟdão. A brecha que
abrem é vermelha de sangue e uiva de dor. Estranhamente, súbito, o céu escurece.
Ensurdecido pelo alarido dos guizos amarrados às patas dos cavalos, Gabriel não
precisa bater. A mulƟdão compacta das caras que o cerca se afasta por si mesma
diante dos animais. O Governador caminha com passadas lar gas, como numa
parada, a mão direita no punho da espada, sem sequer fingir que vai desembainhá-la.
À frente, contudo, Juan Pizarro não domina bem o nervosismo de sua montaria,
segurando as rédeas com uma só mão, a outra agarrada à haste da lança como ao
corrimão de uma escada vertiginosa.
Quando estão prestes a chegar à liteira do Inca, Gabriel entrevê os outros
cavaleiros, embaixo da pirâmide, se abaterem sobre a massa de índios. Atrás, as
espadas da tropa de infantaria já estão pingando de sangue, e os homens berram de
novo "SanƟago! SanƟago!" enquanto os cavaleiros atacam, lanças à frente.
Então, qual o movimento de um mar quebrado, uma onda aƟnge os milhares de
índios aglomerados em volta da liteira de seu Rei. Eles desabam uns contra os
outros, se empurram para fugir dos golpes aos quais, incompreensivelmente, não
respondem.
Gabriel, do alto da sela, vê os corpos e as cabeças se amontoarem formando uma
espuma negra. A lembrança da menina de olhos azuis lhe embaralha a vista por
alguns segundos. Ele reza, a contragosto, para que ela não esteja entre aquelas
mulheres que ele adivinha lá embaixo, atrás da liteira do Inca, o rosto desfeito de
medo, jogando as mãos para o alto como se pudessem ser tragadas pelo céu.
Depois, quando estão suficientemente próximos ao Inca para ver bem seus olhos
vermelhíssimos e sua boca denotando um impassível desprezo, empurrados pela
onda, dez guerreiros índios caem diante dos cavalos de Juan e Cristobal, que nada
podem fazer senão pisoteá-los. Enquanto os cascos dilaceram ventres e peitos, eles
erguem olhares pasmos, a boca arƟculando gritos mudos. "Eles não acreditavam!",
pensa Gabriel com uma fúria amarga e quase cruel. "Esses imbecis não quiseram
acreditar em nós!... Logo não haverá mais nenhum em pé e eles nem sequer lutam!
Por quê? Por que esta loucura?"
Como para lhe responder, uma salva de arcabuz ordenada por Pedro estoura
miolos a esmo. Os mortos já atravancam os vivos, a confusão aumenta. O caminho
da liteira se fecha atrás deles como uma areia movediça. Diego de Molina e Juan
Pizarro estão de pé nos estribos, berrando e desferindo golpes de espada à esquerda
e à direita, conseguindo abrir novamente uma brecha para passar.
Gabriel, a cabeça zumbindo, contenta-se em bater com a haste de sua lança. Mas
uma nova salva de arcabuz aumenta ainda mais o pânico. Começa a fuga. Corpos se
levantam acima das cabeças antes de serem engolidos e pisoteados.
A pressão é tão forte que Gabriel sente sua montaria vibrar de pavor entre suas
coxas. O cavalo empina com um relincho desesperado e seus cascos dianteiros caem
em cima das caras que estão por perto, transformando-as numa pasta. Um índio de
orelhas enfeitadas com enormes brincos de ouro agarra sua lança e tenta derrubá-lo.
Num reflexo, Gabriel larga o chuço, puxa as rédeas para fazer o cavalo dar uma
guinada
para a esquerda. O animal entende insƟnƟvamente. Babando, escoiceando e girando
como pião, cava um vazio em volta de si. Quando pára, Gabriel saca a espada e, em
três saltos, alcança o Governador que já está ao lado da enorme liteira do Inca,
abrindo caminho só com a ajuda do escudo. Quase subindo na liteira, don Francisco
consegue agarrar o braço esquerdo do Inca a fim de puxá-lo. Mas, após um instante
de estupefação, o índio se agarra com todas as forças ao braço do trono enquanto,
sob o piso de balsa, cem índios o carregam sem fraquejar acima desse mar de
loucura.
- Aqui - ruge don Francisco. - Droga! Ajudem-me a descê-lo daí!
Dobrados em suas selas, berrando furiosamente, Diego, Juan e Cristobal
começam então a cortar as mãos dos carregadores.
O que Gabriel vê o enregela apesar do suor que lhe escorre pelo rosto. As
espadas cortam mãos, braços, dedos, mas os carregadores, sem um grito, abaixam a
cabeça e sustentam a liteira com os ombros enquanto se esvaem em sangue pelos
membros amputados.
Juan, louco de fúria diante dessa obsƟnação, uiva como um lobo e começa a
cortar gargantas. Mas, como num círculo do inferno onde nada mais tem fim, outros
índios logo vêm substituir os mortos e, por sua vez, se oferecem ao ferro das
espadas!
Na liteira prestes a virar, o Inca luta e resiste. Suas roupas suntuosas viram
trapos. O embaixador Sikinchara vem para junto dele para repelir o Governador, mas
a lança de Molina perfura seu plastrão de ouro. A ponta de ferro em forma de flor-
de-lis sai entre seus ombros e fica cravada na liteira quando ele cai para trás.
Outros Senhores índios finalmente brandem machados de bronze. Com um silvo
indisƟnto, a espada de Gabriel corta o ar já recendendo a sangue e decepa um
braço. O tranco do osso quebrado ecoa até dentro de sua cabeça e ele tem a
impressão de estar acordando no meio de um pesadelo inominável. Um índio agarra
sua perna e nela se engancha com todo o peso. Quando Gabriel torna a erguer o
braço para golpeá-lo, engasgase com um soluço de raiva.
Em pé nos estribos, ele baixa a espada gritando como os outros.
Mas no alarido assustador da praça, seu grito não passa de um sopro de silêncio.
***
O sol desapareceu.
Lá embaixo, por cima das cabeças das mulheres aos gritos, Anamaya vê os
estrangeiros deceparem os braços dos servos e dos Senhores como se ceifassem pés
de milho.
Ela vê os valorosos Senhores se precipitarem para Atahualpa, oferecendo-lhe
suas mãos, suas cabeças, seu sangue e suas vidas sem pestanejar. Mas eles caem
sem parar, seu sangue corre inuƟlmente enquanto os estrangeiros atacam com fúria.
Como parecem brinquedos infanƟs, as fundas que estavam escondidas, armas de
fracos, as maças e os arcos!
- Eu sou o Filho do Sol! - gritou Atahualpa, voltado para o sol. Mas não deu a
ordem de ataque aos milhares de guerreiros!
Não deu a ordem, e todos, obedientes, obsƟnadamente obedientes até a morte, se
fazem massacrar e dilacerar em vão!
Estará embriagado demais de chicha, atordoado demais com a fúria dos
estrangeiros para fazer isso?
O sol já desapareceu. E aquele que foi o seu único Senhor, Anamaya agora vê
lutando, como um simples mortal, para não ser levado pelos estrangeiros que
semeiam a morte.
Em volta, só se ouvem berros e gemidos. Ela é empurrada de um lado para o
outro. É agarrada, tem a túnica rasgada, leva trancos. É um rio de corpos a levá-la,
levantá-la, esmagá-la. É o vento do Outro Mundo que parece soprar uma tempestade
inaudita.
Então ela se lembra das palavras da criança: "O que foi não será mais!" Por que
ela não teve coragem de avisar Atahualpa? Ela não ousa mais olhar para a liteira
porque seria como se já o estivesse vendo sucumbir.
Não é ela, mais que os estrangeiros, quem está na origem da derrota dele?
Terá ela se calado por causa do estrangeiro?
Embora o único Senhor Huayna Capac tenha desejado esse instante atroz, ela não
pode suportá-lo.
Está a ponto de se entregar à loucura que a cerca e a sufoca, prestes a se deixar
cair embaixo dos milhares de pés que pisoteiam o páƟo quando, a oeste, do outro
lado da planície e na sombra tenebrosa das colinas, cintila um raio de ouro.
Sim, lá embaixo, entre as nuvens, um raio de sol varre a floresta e nela se reflete.
Lá, a oeste, no caminho de Cuzco.
Uma mancha de ouro qual uma estrela de paz caída na loucura do massacre.
E ela sabe, ela adivinha.
Ela sente: o Irmão-Duplo!
Aquele que ela esperava.
***
***
***
Gabriel, a cabeça febril, incapaz de apagar o olhar azul que conƟnua lhe
queimando o cérebro, precede o Governador e o Inca, abrindo caminho com seu
cavalo na mulƟdão embriagada de combates. Don Francisco não pára de berrar:
- A vida dele pela sua se lhe acontecer qualquer coisa!
Finalmente, empurram o Inca para uma casa e Pizarro repete mais uma vez aos
guardas:
- A vida dele pela sua se lhe acontecer qualquer coisa!
Ele Ɵra a luva e olha sua mão que está sangrando um pouco. Olha para Gabriel,
as pupilas brilhando de alegria e ferocidade:
- A batalha está ganha, filho!
A batalha?
O olhar de Gabriel se perde no espanto que conƟnua reinando na praça e, ao
longe, na planície.
Trata-se de uma batalha que nunca começou: é preciso haver dois para lutar.
Aquilo é apenas um massacre, uma carnificina e, agora para os índios que podem,
uma fuga enlouquecida.
Ele abre a boca para responder ao Governador. Mas uma certeza - a primeira e a
única naquela confusão - lhe sela os lábios. É a ela que ele deve salvar agora. A
batalha, a verdadeira, é que ela conƟnue viva esta noite e amanhã e sempre. A única
batalha, bem além das ordens de Deus e do Rei e, custe o que custar, de don
Francisco que tem a ternura infinita de chamá-lo por esse doce nome de "filho".
Sem uma palavra, ele volta atrás e, batendo na garupa do cavalo exausto, torna a
lançálo na tormenta.
Lá embaixo, sob a pressão de milhares de corpos, o muro do páƟo cede e
desmorona numa nuvem de poeira. Levados por este pânico novo, cadáveres
pisoteados já se amontoam nos escombros.
Mas ela não se mexeu. Ela o espera.
Ele diminui o passo do cavalo e iça-a pelos ombros sem hesitação. Com uma
confiança inesperada, ela se agarra ao seu pescoço e se deixa suspender. É leve e,
quando ele a suspende por sobre o pescoço do animal, na frente da sela, ela se
ajusta imediatamente a ele tanto quanto ao movimento do animal. Há apenas
cinqüenta passos até a brecha do muro por onde a multidão vai fugindo dispersa.
Em volta dele, os espanhóis prosseguem com sua obra de morte, dando
gargalhadas escancaradas e obscenas, embriagados de violência, indo catar no fundo
de si mesmos os tesouros de crueldade que o medo ali escondeu.
Gabriel vê SebasƟan no topo da pirâmide parecendo gritar-lhe algo que ele não
ouve. A jovem está abraçada a ele, o corpo estreitamente unido ao seu. Nos saltos
do cavalo, os dois são como folhas de relva enlaçadas pelo vento.
Ele sente o perfume da pele da moça, o calor do pescoço dela junto à sua boca.
Apesar de sua cota de algodão imunda, a vida do jovem corpo aquece sua barriga.
SebasƟan conƟnua gritando lá de cima, mas Gabriel conƟnua sem entender,
tentando ao máximo abrir caminho entre os fugitivos.
Ela murmura ou geme em sua língua desconhecida e ele sente seu corpo vibrar.
Num saracoteio do cavalo que transpõe o monte de escombros salpicado de
cadáveres, sua boca bate na têmpora dela. O sabor da pele dela per manece em seus
lábios e, ao senƟ-lo, ele também fica como que embriagado. Mas é então que sente
uma queimação na base da espinha. Com um toque de calcanhar, faz sua montaria
desviar. Ao se virar, ve a figura satisfeita de Moguer brandindo uma lança:
- Vou matar você! Vou lhe arrancar as tripas, seu imbecil!
Balança o chuço, só que já sem força, e a arma ricocheteia nos Ɵjolos. Gabriel
sente o sangue quente escorrendo por sua anca. Os olhos azuis da desconhecida
procuram seu olhar com aflição. Ele se contenta em sorrir e, sem sequer se dar
conta, em estreitá-la tanto que a machuca.
Crianças estão correndo para o pântano, levando uma coroa imunda de plumas
coloridas. Em volta delas, correm também homens, Senhores ou servos, lhamas ou
cães, os plastrões de ouro e as túnicas brancas maculados de pó, de lama e de
sangue. E a mesma perplexidade lhes deforma o rosto.
Finalmente os cascos do cavalo pisam na relva rasteira da planície. Gabriel se
inclina para colher ainda o raio luminoso e desamparado dos olhos azuis, mas eles
estão cheios de lágrimas.
Gabriel começa a tremer. Ela também está tremendo. Enlaça suas finas mãos
morenas às dele, e os dois ficam tremendo, enquanto o cavalo volta por si só a
passo.
O ar está empesteado de morte e desastre. Mas os dois vibram com um amor tão
puro como o primeiro dia da vida.
Capítulo 46
Cajamarca, 16 de novembro de 1532
***
Ela foge para a escuridão em meio aos gemidos e às lágrimas que sobem da terra
como fumaça. Seu passo é seguro, apesar da lama e dos charcos, apesar das águas
escaldantes: o sol desapareceu mas a lua ainda está com ela.
No páƟo da residência do Inca, reina uma desolação nunca vista: os cavaleiros
foram até ali e devastaram, pilharam, violaram tudo - tudo o que é de ouro é levado,
tudo o que é vivo é conspurcado. Às vezes, ouvem-se ainda gritos na noite: eles
rondam, a morte em punho.
A rede onde o Inca repousava, naquela manhã, entre dois pilares de ouro, está
boiando na banheira como um pano velho largado.
- Você não morreu...
É a voz de InƟ Palla. Anamaya volta-se para ela: o rosto vermelho, as roupas
rasgadas a mulher é somente a sombra de seu orgulho. Quando Anamaya pensa que
senƟu tanto medo dela...
- Não morri, Inti Palla. E voltei para fazer o que deve ser feito.
- Você é a mãe de todas essas destruições.
- Cale-se, você não passa de uma idiota. É por causa de gente como você, que não
pensa, nem vale nada, que o único Senhor foi capturado...
InƟ Palla se cala, sem ter mais maldade para responder: chora copiosamente.
Agita os braços como um pássaro tocado por uma flecha.
- Não há mais sol - soluça ela -, não há mais nada...
- Há um mundo ainda - murmura Anamaya para si mesma, afastando -se - e uma
criança para fazê-lo nascer...
- É preciso fugir - geme Inti Palla.
- É preciso viver.
- Tem razão, irmãzinha, é preciso viver - diz uma voz familiar.
E braços fortes abraçam-na, sufocando-a.
***
Meu Deus, como está quente esta noite, meu Deus, como a solidão e o medo
chegam depressa, e como as mínimas sombras são uma ameaça...
De quando em quando, Gabriel leva a mão à cabeça para cerƟficar-se de que
existe. A dor está ali, lancinante, com esse curioso emplastro que ela fez para cuidar
dele antes de desaparecer...
Ela vai voltar.
Ele repete isso para si mesmo diversas vezes mas, agora que perdeu a conta das
horas que passam, já não tem tanta certeza.
Ainda há pouco, havia o calor de sua pele, a maciez de suas mãos, a verƟgem de
seu olhar. Mas agora?
Só resta uma esteira em cima da qual ele tem uma dor nas costas terrível, a
consciência que lhe foge...
Chegam os fantasmas - a censura que ele viu nos lábios de SebasƟan e a cólera
de Pizarro por tê-lo abandonado, talvez traído, no momento crucial. O que vale isso?
A morte.
Ele se dá conta de que pensa nela sem temor. A morte, bem, ela não estava lá em
Sevilha, nas masmorras da Inquisição? Meu pai não me jurou de morte? E a morte
não se arrastava ao meu lado agora mesmo?
É curioso, não me vejo morrer numa cabana de junco, num pantanal, a uma légua
de Cajamarca.
Ele torna a ouvir a entonação de sua voz cujo eco conƟnua cantando em seus
ouvidos. Espere-me: foi isso o que ela disse.
A espera semeia a paz em seu coração.
***
- Quando Villa Oma me disse que você pedia o Irmão-Duplo - explica Manco -,
foi como se você me tivesse chamado...
Eles estão encolhidos um contra o outro no que, até aquela manhã, era o quarto de
Atahualpa. Agora só há um caos - os sinais de uma parƟda precipitada, os vesơgios
de uma pilhagem.
- Ele me falou de você - murmura Anamaya.
- Quem?
- Eu implorava noite após noite para ele falar comigo, e ele ficava calado. Ainda
me chamavam de Coya Camaquen, por força do hábito, imagino, pois eu não via
nada e nenhuma sabedoria me era dada por seu pai, Huayna Capac. Eu quase nem
lembrava que ele tinha prometido velar por mim do Outro Mundo...
- Estávamos na longa estrada vindo de Cuzco, nos escondendo quando uma tropa
se aproximava, pois meu irmão Atahualpa havia jurado vingança, e vingança atroz, a
todos os clãs de Cuzco. Eu vi...
E ele se cala de repente. Ela lhe aperta a mão com ternura.
- Vi o que um homem não pode ver, Anamaya: mulheres degoladas ainda com os
filhos no ventre...
- E Villa Oma?
- Ele foi escondido pelos sacerdotes.
- O Anão?
O grito saiu do coração. Manco contempla-a com espanto.
- O Anão?
Por que me fala dele?
- Essa é uma longa história que não é para esta noite. Peço que me diga só o que
sabe.
- Eu o vi entrar acorrentado em Cuzco.
- E depois?
- Não sei o que foi feito dele. Os palácios dos mais anƟgos panacas foram
profanados, os templos, revirados, meu irmão Paullu escapou de morrer por
milagre... Vi toda a crueldade do mundo, Anamaya, e isso é que me tornou homem,
mais do que o huarachiku... Então o Anão, nesse caos...
- Atahualpa estava cercado de mentiras, de falsos adivinhos, de covardes...
- Ele é quem os ouvia... Não há mais clãs, de agora em diante... Pouco importa: é
tudo igual. Você diz que botaram a mão nele? Tocaram nele?
- Tocaram nele, agarraram-no com duas mãos...
- Quem são esses estrangeiros? Deuses? Ela sente a boca seca quando responde:
- Apenas homens.
Manco torna a se calar. Ela sente nele uma seriedade nova - mas a raiva conƟnua
ali, escondida.
- Na hora em que você vinha chegando com o Irmão-Duplo, ontem à noite, ele
finalmente falou comigo pela voz de uma criança. "Cuide de meu filho que você
salvou da serpente", disse ele, "pois ele é o primeiro nó dos cordões do futuro..."
- Isso foi pouco antes do amanhecer diz Manco. - Eu havia ficado com ele,
sozinho, na tenda. Acordei sobressaltado e uma serpente estava passando pelo punho
de ouro dele, parecida com aquela que você afastou de mim, há muitos anos, durante
a corrida... Saí para olhar o dia raiar nas colinas. Havia guerra por todo lado. No
entanto, me veio uma grande força e uma luz se acendeu diante dos meus olhos, uma
luz de ouro que enchia todo o horizonte.
- É você, Manco. Só resta você...
Ele não responde. Abraça-a e murmura:
- Lembro-me do dia em que você disse que nunca nos deixaria... Lembro-me que,
de manhã, meu irmão Paullu e eu nos perguntamos se você era feia ou bonita...
Instintivamente, o corpo de Anamaya se retesou dentro do abraço.
- O que há? - pergunta Manco.
É a vez dela de ficar calada. No escuro, ela vê os olhos dele tentando adivinhar
os seus. Ela adivinha sua força de jovem felino...
- É preciso partir outra vez, Manco, para Cuzco, com o Irmão-Duplo...
- Eu sei - diz ele. - Mas por que acha que vim, fugindo do círculo das tropas de
Ruminahui, evitando os estrangeiros?...
- Por quê?
- Para procurá-la.
Ela respira fundo antes de responder.
- Estarei com você, Manco, mas não irei com você.
Não entendo.
- Aconteceu...
Ela quer lhe contar a verdade pois, no tumulto novo em que seu coração se
transformou, a menƟra não cabe mais do que antes, mas uma lassidão imensa a
invade. E depois, seria preciso encontrar palavras onde há apenas suspiros, olhares,
uma certeza tão incerta. Então ela não diz nada.
Escuta a respiração pesada dele, e aqueles olhos pousados nela poderiam brilhar
de fúria... Mas Manco se cala. Ele espera, depois não espera mais nada. Levanta-se.
- Eu lhe disse que me tornei um homem - declara. - Aceito o que você me dá e
respeito o que não me dá. Meu futuro se desenha sobre uma aurora de sangue e
quando o mistério me é revelado, vem outro mistério... Amanhã, estarei nas
montanhas e acompanharei o Irmão-Duplo absorvendo a força que vem dele. Mas
não vou esquecer que é por você...
- Eu também não vou esquecer, Manco. - Cuide-se, irmãzinha.
Ele desapareceu na noite depois de tocar seu rosto. Ela treme sem conseguir parar.
Depois, ela também parte na noite, o coração violento, atrás do homem que ela
escolheu como destino.
***
Por estar com calor, ele Ɵrou primeiro a cota acolchoada, depois a camisa. O
suor secou em seu corpo, misturado à poeira e ao sangue. Quando leva o braço aos
lábios, sente um gosto salgado, acre; pelo corpo inteiro, sente os golpes que recebeu.
Uma sonolência toma conta dele, um torpor do qual ele não consegue sair.
Ela entrou na cabana quase sem fazer ruído e ele não se mexeu. Mantém os olhos
fechados para prolongar este momento em que ela está presente e ele ainda não a vê.
Os gritos, os lamentos se afastam na noite que vai se aquietando.
Não se ouve senão a respiração deles e essa tranqüila e eterna fragilidade que os
reúne.
"Há um momento", pensa ele, "em que por uma noite quer dizer para sempre, uma
hora ardente e escura onde não há amanhã..." Ele abre os olhos. Ela debruçou-se
sobre ele com uma ternura inquieta. Sua mão pousa nos lábios, no rosto dele, e ali
traça pequenos desenhos, leves arranhões. Ele se obriga a permanecer imóvel,
violentando-se para conter o impulso que o impele a torná-la nos braços.
Agora, ela está com a mão no peito dele, brincando com seus músculos, com a
penugem em volta de seus mamilos.
Agora, ela volta a seu ombro e toca-o como se esƟvesse descobrindo essa curva
pela primeira vez.
Agora, ela lhe dá pequenos empurrões: ele entende que ela quer que ele se vire e
ele deita de bruços com um suspiro que mistura as dores de seu corpo e o bem-estar
de sua carícia.
Agora ela dá um grito.
"Homens, certamente": foi o que ela respondeu a Manco, mas, o que ela disse com
palavras, suas mãos é que descobrem - a força, a doçura, os ferimentos desse
homem e o arrepio que percorre sua pele quando ela o toca.
Ela se lembra, naturalmente, e todas as portas de suas emoções se abrem como
que sopradas por um vendaval, tudo o que ela procurou esconder no fundo do
coração, todos os seus medos, suas lágrimas, todas essas luas - tudo se esvai e tudo
é simples.
Isso não é uma visão, pois não vem do Irmão-Duplo, do Outro Mundo, isso não
lhe é ensinado por um sacerdote nem por um Sábio.
Está dentro dela.
É mais forte e mais terrível que tudo o que ela conheceu. Se é um medo, vai além
do medo.
Se é um deus, é o mais misterioso e o mais exigente dos deuses.
Isso dá vontade de rir e de chorar, de correr e de se transformar em pedra, de
gritar e de se calar.
Ele obedeceu às suas mãos e lhe oferece a planície ferida de suas costas. Então
ela vê a mancha escura do puma, escondido em seu ombro, encolhido, prestes a dar
o bote.
O grito lhe escapa.
Ela se lembra das palavras do Inca Huayna Capac, à há muitos anos. Confie no
puma... Ela se lembra da pedra dos ancestrais onde os olhos amarelos do puma
esperavam por ela. E ela se lembra da criança que, na noite anterior, lhe disse: "Você
é quem deve ser. Não tenha medo: o puma há de acompanhá-la no futuro."
Seus dedos acompanham a forma do felino, poderoso, atarracado, livre, no ombro
do homem cuja pele se arrepia.
Devagarinho, ela se inclina para ele.
E só lhe resta pousar os lábios sobre a doçura palpitante daquele que, desde
sempre, lhe estava prometido.
Capítulo 47
Cajamarca, amanhecer de 17 de novembro de 1532
AGRADECIMENTOS
GLOSSÁRIO
Este livro fala sobre o povo inca, por isso contem uma sequencia de palavras no
Idioma InƟ e em espanhol para facilitar a sua leitura oferecemos agora um glossário
com as mais usadas.