Hubert Reeves
“Estamos ameaçados pelas nossas próprias invenções”
Se Hubert Reeves não existisse, seria muito difícil inventá-lo. Só um romancista talvez o
conseguisse, imaginando uma personagem de barbas brancas e olhos profundamente
azuis, um quase-profeta a flutuar no espaço, como o desenhou Daniel Casanave em
muitos dos livros que juntos conceberam. Neles, o velho de barbas começa sempre as
suas divagações à beira de um lago, rodeado de grandes montanhas, e de noite, porque
é quando as estrelas se mostram ao olhar humano. Tal paisagem não será muito diferente
daquela que o próprio Reeves descreve como sendo a sua, nos arredores de Montreal, no
Quebeque, onde nasceu em 1932. Nesse enquadramento surgiu o fascínio pelas estrelas,
que depois passou a vida a observar e a estudar. Formado em Física na Universidade de
Montreal, doutorou-se em Astrofísica na de Cornell, Nova Iorque. Foi investigador e
conselheiro científico da NASA e diretor do Centre National de la Recherche Scientifique,
em Paris. Ensinou no Canadá, na Bélgica, nos Estados Unidos (Universidade de
Colúmbia) e em França. Viajou pelo mundo, visitando observatórios, ligando-se a
organismos ecologistas e humanistas, porque o mundo não é apenas objeto de estudo,
mas de ação. Escreveu mais de uma dúzia de livros de divulgação científica, dois dos
quais — “Um Pouco Mais de Azul” e “Já Não Terei Tempo” (Gradiva) — são obras que
perdurarão como instrumentos de conhecimento e de beleza.
Aos 88 anos, pai de quatro filhos e avô de oito netos, ainda se surpreende com o Universo,
cuja história não se cansa de contar. É um contador inato, um plantador de árvores
milenares, um amante de música, um sábio que tem dúvidas e que sabe muito, incluindo o
que não sabe. Em 1999, alguém se lembrou de dar o seu nome ao asteroide SL6.
Hubert Reeves conversou com o Expresso desde a sua casa em Paris. Quis saber como é
que a expressão “Putain de Facteur Humaine”, por si cunhada, soaria em português. Quis
saber o nosso nome e o que pensamos sobre a existência de extraterrestres. Confessou que,
“no limite perigoso da vida”, dorme o menos possível. É, e sempre foi, um homem
acordado.
No fim, agradeceu-nos a paciência e a escuta. Não, professor, não. Nós é que agradecemos.
MATTHIEU ALEXANDRE/AFP/GETTY IMAGES
Como está a lidar com a pandemia? Suponho que esteja em casa.
Sim, estou em casa. Você também está? Hoje está um bonito dia, tenho cá tudo o que
preciso. Portanto, sinto-me bem.
De repente, estamos todos em casa, unidos por um vírus. O que lhe ocorre
dizer sobre isto?
Trata-se de um estádio do desenvolvimento da vida, um choque entre duas espécies
diferentes, em que cada espécie tenta manter-se viva. O nosso rival prolifera, ameaça-nos,
nós lutamos para exterminá-lo, e isso é bastante normal. Aconteceu muitas vezes. A única
coisa que não é clara para mim é se a poluição e a degradação do planeta a que estamos a
assistir — e a que chamamos ‘a sexta extinção’ — estão ou não relacionadas com este vírus.
Seria interessante saber isto, porque seria uma prova para aqueles que não acreditam na
ecologia. Deve lembrar-se do tsunami na Indonésia, há dez anos. Houve pessoas a tentar
mostrar que aquele evento estava relacionado com a destruição do planeta pela mão
humana. Ora, não estando diretamente relacionado, a verdade é que antigamente as ondas
dos tsunamis tinham uma barreira natural, a das mangueiras, e estas foram cortadas para
fazer belas praias. Penso que estamos numa situação semelhante. A poluição e a
destruição, em particular das florestas, terão tornado esta pandemia mais provável. Não
sou perito neste campo, mas acho que está perto da verdade: a pandemia não foi causada
diretamente pela sexta extinção, mas indiretamente, facilitando as condições para o
coronavírus se expandir tão depressa.
De um lado está o conhecimento da mente e do outro está o valor, a simpatia ou a
compaixão. Por vezes vão juntos, mas não é obrigatório que assim seja”
Parece que um vírus mobiliza mais do que as alterações climáticas. Agora
falamos muito de ciência e de cientistas, mas eles têm estado sempre a avisar-
nos do que está a passar-se com o planeta.
É verdade. Ao mesmo tempo, é interessante perceber até que ponto isto foi imprevisível.
Há dois anos, ninguém teria adivinhado que os problemas viriam da área da saúde. O que,
para mim, quer dizer que somos muito maus a fazer antecipações e que as predições do
colapso deveriam ser encaradas com um grão de sal: ninguém sabe do futuro. Podemos ter
alguma aproximação, por via do aquecimento global e do aumento do dióxido de carbono,
mas será sempre parcial. E o facto é que, sem que ninguém o adivinhasse, o colapso
esperado não veio de todo de um campo que pensávamos ser perigoso. É uma lição a tirar,
que devemos aceitar sem sermos demasiado suscetíveis às pessoas que nos dizem que o
colapso é o nosso destino, e por aí fora. Temos de ter cuidado. A única coisa a reter de tudo
isto é que, pelo menos quanto à dimensão que este evento está a atingir, um ano atrás nem
sequer foi mencionada. O coronavírus não aparece em nenhum estudo. É a
imprevisibilidade da realidade que quero destacar. A realidade é difícil de prever, e somos
muito maus a fazê-lo.
É possível hoje ser um cientista sem ser ecologista?
Sim, são coisas diferentes. Uma coisa é o conhecimento e outra a atenção que queremos
dar ao futuro dos homens e dos nossos filhos e netos. Conheço cientistas que não têm
crianças, ou que não as consideram importantes, e conheço outros para os quais o futuro é
um tema fundamental. A curiosidade é uma coisa boa, mas não deriva necessariamente no
valor moral ou no sentido de afetividade de alguém. De um lado está o conhecimento da
mente e do outro está o valor, a simpatia ou a compaixão. Por vezes vão juntos, mas não é
obrigatório que assim seja. Nos campos de extermínio, acontecia uma coisa que chocou
muita gente: ao fim do dia, os SS ouviam a 9ª Sinfonia de Beethoven. Não é uma relação
automática. A mente humana é múltipla, diversa. Algumas pessoas serão sensíveis à
compaixão e outras não, e algumas serão apenas grandes cabeças a resolver problemas
matemáticos.
No livro “Já Não Terei Tempo”, escreveu sobre a relação entre astronomia e
ecologia como duas partes do mesmo. Onde é que ambas se encontram?
A astronomia pode ser vista como a história de como nos tornámos pessoas. Fala do nosso
passado, de onde viemos. A ecologia fala do futuro, diz: “Se não te importares, se não
tiveres cuidado, isto é o que vais ter, e talvez tenhas de deixar de estudar astronomia.” A
astronomia averigua como nos tornámos existentes. A ecologia foca-se no modo como
iremos assegurar que continuaremos a existir, no que temos de fazer se quisermos
permanecer vivos.
Temos duas formas de nos autodestruirmos: através de uma guerra nuclear ou da
sexta extinção. Ambas podem eliminar-nos e dependem do nosso autocontrolo”
Porque é que não agimos mais depressa face às alterações climáticas?
É uma boa pergunta. Em França, há uma expressão da qual usamos as iniciais, PFH:
“Putain de Facteur Humaine” [Cabrão do Fator Humano]. Sabe o que quer dizer? Que, se
tiver febre, vai usar o termómetro. Mas, se tiver algo de mais grave, a tendência será
ignorar o que se passa, por ser demasiado ameaçador. Esta é uma razão. Outra é o
dinheiro. Sabemos que o senhor Trump está a fazer muito dinheiro com a indústria do
carvão. Poderíamos inverter a pergunta: qual é o interesse de não se combaterem as
alterações climáticas? Eu penso que quando Trump ou outros governantes tentam travar o
Acordo de Paris, isso acontece porque, sem dúvida, irão perder imenso dinheiro.
Resumindo, é o PFH.
Há futuro para os humanos? Em números astronómicos, iremos perdurar?
É o que esperamos. O problema hoje em dia é que somos muito poderosos, temos
armamento nuclear, temos técnicas para cortar as florestas, como a Amazónia, e temos
dificuldades em governar o nosso poder. Estamos ameaçados pelas nossas próprias
invenções, e o melhor exemplo disso foi a Guerra Fria: em vários momentos da Guerra Fria
estivemos muito perto de ter uma guerra nuclear, que poderia ter exterminado a
Humanidade. Felizmente, hoje não estamos nessa situação, mas estamos igualmente
ameaçados. A tensão entre Trump e o Presidente da Coreia do Norte é um exemplo. Eles
ameaçam-se mutuamente com uma guerra nuclear, mas nenhum deles a quer, porque
sabem que, se tal acontecesse, não haveria um vencedor. O poder em termos de
armamento é tão grande que ninguém deseja uma guerra, porque pode não ficar ninguém
para a ganhar. O problema principal é garantir que não usaremos o nosso poder para nos
destruirmos. Temos duas formas de nos autodestruirmos: através de uma guerra nuclear
ou da sexta extinção. Ambas podem eliminar-nos e dependem do nosso autocontrolo.
A dada altura, disse: “A Terra vai continuar, a primavera continuará a florir,
mas o futuro da Humanidade é altamente incerto.”
Sim, podemos não estar cá para ver as primaveras — elas irão sobreviver-nos. Já viu como
é irónico? Talvez, daqui a milhares de milhões de anos, um outro animal, como o
chimpanzé, evolua até desenvolver inteligência. Não sabemos. Sabemos que muitas
civilizações se destruíram a si mesmas — como os incas —, ainda que não saibamos se a
principal ameaça à sua existência era o seu próprio poder. A diferença é que nós temos esse
conhecimento.
É por isso que afirmou que a inteligência é uma dádiva envenenada?
Sim. Se tivesse havido uma guerra nuclear e uns extraterrestres tivessem vindo à Terra e
visto toda aquela contaminação nuclear tóxica, poderiam ter dito: “Bom, para esta pobre
gente, a inteligência foi um veneno, não conseguiram não se envenenar a si próprios.”
Podemos ser apenas um fait divers, um simples episódio cósmico?
Poderia ser esse o caso. Mas isso incluiria o extermínio da espécie humana. E a espécie
humana alcançou muitas coisas que nenhuma outra espécie animal foi capaz de atingir. A
primeira é a cultura, é Mozart, é Van Gogh, um tipo de criatividade que desapareceria
completamente se o ser humano fosse extinto. A segunda é a ciência: nenhuma outra
espécie animal teria chegado à teoria da relatividade de Einstein, construído telescópios
para observar as galáxias ou microscópios para compreender de que somos feitos. A
terceira é a compaixão, nomeadamente o facto de sofrermos quando vemos pessoas a
sofrer. Por isso, construímos hospitais, a Cruz Vermelha e a Amnistia Internacional. Nós,
seres humanos, temos pulsões destrutivas, mas também temos compaixão. Não
suportamos ver alguém sofrer, sentimos o impulso de ajudar. Está na nossa natureza. O
leão ataca o novo macho que nasceu na família. Entre os pássaros, a cria mais frágil ou
doente não será alimentada. Os pais vão deixá-la morrer, alimentando só os que estão de
boa saúde. A Humanidade trouxe ao mundo a cultura, a ciência e a compaixão. Merece ser
preservada.
Tem 88 anos. Qual foi a principal mudança que presenciou no mundo?
O mundo mudou tanto que é difícil nomear só uma. Mas uma transformação muito
importante aconteceu com a internet. É uma forma de comunicação que permite que, se
alguém for maltratado no Irão ou noutro país qualquer, o saibamos de imediato. No
entanto, além da utilidade, de poder estar em contacto e a trocar informação em tempo
real com cientistas de todo o mundo, permite a circulação de muitas falsidades. Essa
convivência não hierarquizada e não monitorizada entre o verdadeiro e o falso modificou
profundamente o comportamento das pessoas.
A astrofísica é a ciência graças à qual olhamos para cima, para o Universo.
Não é também um modo de compreender a nossa pequenez e insignificância?
Não sei se somos insignificantes, depende do ponto de vista. Não somos muito grandes,
mas somos os campeões do pensamento abstrato. Somente nós nos ocupamos da
matemática e a aplicamos para descobrir coisas tão diversas. Não sei se existirão seres
mais inteligentes noutros planetas, mas o cérebro da espécie humana é certamente o
instrumento mais complicado e poderoso no nosso mundo. Não vejo nada que lhe seja
comparável. De novo, este instrumento serve para o melhor e para o pior. Podemos fazer
tanto uma sinfonia de Beethoven ou uma teoria da relatividade como uma bomba atómica
e uma II Guerra Mundial. Somos também a espécie mais numerosa. Em muitos aspetos
somos os melhores, embora haja animais que fazem coisas extraordinárias, como as aves
migratórias — é um mistério que ninguém compreende. O ser humano tentou sempre
dominar os restantes animais, torná-los seus escravos. Isso foi um grande erro. Hoje
sabemos que, se não nos adaptarmos ao ecossistema, em vez de continuarmos a forçá-lo a
adaptar-se a nós, vamos desaparecer.
O que aprendeu a estudar o Universo? O que é que ele nos diz sobre nós
mesmos?
A minha visão é esta: aprendemos algumas coisas sobre astronomia, aprendemos que o
Universo tem 14 mil milhões de anos, que começou por ser muito quente e totalmente
desestruturado. Nos primeiros momentos do Big Bang, não havia galáxias, nem estrelas,
nem planetas, nem seres humanos, nem animais, nem átomos, nem moléculas. Era um
magma desestruturado. Agora, a transformação é enorme. O Universo hoje em dia está
ampla e abundantemente construído — tem grandes estruturas, como galáxias, estrelas e
planetas, e outras mais pequenas, como átomos e moléculas. Portanto, o Universo é um
lugar muito rico, onde numerosas estruturas foram construídas pela força da Natureza.
Isto é talvez o que de mais importante aprendemos com a ciência: a Natureza constrói
estruturas. E uma das suas obras-primas é a espécie humana. Somos provavelmente o
nível mais alto de complexidade que conhecemos, a estrutura mais complexa do Universo.
Vivemos ainda num grande mistério, sem conhecimento do que se passou entre o
início e agora e sem fazermos ideia sobre se houve um antes e se haverá um
depois”
No livro “Um Pouco Mais de Azul”, uma das suas afirmações mais
significativas — e poéticas — é que o Universo tem uma história. Essa história
começou com o Big Bang. Pode explicar o que é?
Digo-lhe o que sabemos sobre o Big Bang. Sabemos que há 14 mil milhões de anos o
Universo era um magma incoerente de partículas elementares e com temperatura
extremamente elevada. Sabemos que, com o tempo, este Universo arrefeceu
progressivamente e que durante o arrefecimento surgiram estruturas — os átomos, as
moléculas, as estrelas, as galáxias. Isto é o que conhecemos com relativa certeza — porque
a ciência nunca é completamente certa —, o que conseguimos documentar e aquilo com o
qual a maior parte dos cosmologistas irá concordar. É a verdade, por enquanto. Mas não
sabemos nada sobre o que o Universo foi antes disso, nem sequer se houve um antes.
Porque, quando se pergunta sobre o que houve antes, assume-se que o tempo estava a
correr antes do Big Bang — e desconhecemos isso. Temos de ter a certeza de que só
falamos do que sabemos e de que concordamos naquilo que não sabemos. Vivemos ainda
num grande mistério, sem conhecimento do que se passou entre o início e agora e sem
fazermos ideia sobre se houve um antes e se haverá um depois. Em relação ao futuro, há
duas possibilidades: o Universo pode expandir-se eternamente ou voltar a colapsar.
É estranho para um leigo perceber que, por causa do tempo que a luz leva a
viajar, podemos aceder ao passado do Universo.
É uma dádiva da Natureza. A vida é uma máquina concebida para pensar o passado. Desde
que aprendemos que o Universo tem uma história, queremos perceber-lhe os pormenores.
E só podemos estar gratos à Natureza por ter feito um instrumento que nos permite ver o
passado — a luz. A radiação fóssil é aquilo que o Universo foi há 14 mil milhões de anos.
Uma vez disse que a vida humana só poderia ter acontecido nesta “pequena
zona privilegiada onde alternam o dia e a noite”. Porquê?
Eu hoje não o diria tão cruamente. Diria que a vida só aparece sob condições estritas. Que,
se certas condições não tivessem sido preenchidas, só teríamos tido o Big Bang. Agora
podemos delimitar as condições da nossa aparição, o que significa que podemos
determinar as condições da complexidade em geral. Esta é uma questão muito debatida
pelos cientistas, e aqueles que possuem uma crença religiosa não têm qualquer problema
em relação a isso, porque a resposta é Deus. Mas para os restantes, e para mim, a pergunta
permanece.
Teve momentos de euforia científica, de pura descoberta?
Estudei a origem dos átomos, onde é que os átomos de carbono, ou de oxigénio, ou de
ferro, foram feitos. Sabemos que foram feitos nas estrelas, mas não fazíamos ideia do tipo
de estrelas. Então, juntamente com os meus estudantes, entre 1960 e 1990, dei o meu
contributo mostrando que, por exemplo, determinados tipos de átomos foram feitos
naquele tipo específico de estrela. Hoje, este campo está muito mais avançado — e mesmo
assim ainda temos problemas em perceber onde é que o urânio surgiu. Seria interessante
saber em que tipo de estrela se formaram elementos radioativos, como o urânio e o tório,
com os quais se podem fazer bombas.
Porque é que se tornou astrofísico?
Em criança, fascinavam-me as estrelas. Vivíamos no Canadá, perto de um grande lago, e
tínhamos noites muito bonitas. Eu procurava as constelações, os planetas, fiz até um
pequeno telescópio, que se transformou numa das minhas paixões. Não foi difícil concluir
que a astronomia era uma coisa à qual valia a pena dedicar a minha vida. Então, quando
fui para a universidade, escolhi o Departamento de Física, porque é a base da astronomia.
Vive na Europa há 55 anos por escolha pessoal. Porquê?
Queria ver o mundo e viajei muito. E um dia fui convidado por uma universidade belga.
Alguns cientistas franceses vieram às minhas conferências e descobrimos que estávamos a
trabalhar em temas semelhantes. Convidaram-me a ficar aqui. Mas mantive um acordo
com a Universidade de Montreal e, até me reformar, passava lá dois meses por ano a
ensinar astronomia e astrofísica.
Uma vez notou que, antes de sermos negros ou brancos, mulheres ou homens,
somos todos parte do Cosmos.
A astronomia cria o sentido de pertença e de origem. As pessoas têm curiosidade em saber
de onde vêm. É uma necessidade generalizada, e a vantagem da astronomia é que ela pode
dizer-nos alguma coisa sobre isso.
Mas tenho ideia de que cunhou um conceito que descreve o lado humanista da
astronomia: a ‘cosmoética’. O que é?
Sabemos que nascemos do Universo. O Universo fez os átomos, que fizeram as estrelas, e
por aí fora. Estamos profundamente ligados à história do Universo. Outra coisa que
sabemos é que, pelo menos na Terra, a nossa presença está ameaçada. Se me perguntar se
temos alguma responsabilidade, a minha resposta será: a nossa responsabilidade agora é
não destruirmos de vez a complexidade do planeta. Garantir que com o nosso
comportamento não eliminamos a Humanidade. Por isso, enquanto presidente da
Associação Humanidade e Biodiversidade, participo em muitos programas de capacitação,
para que as pessoas percebam que estamos em perigo e que as decisões importantes do
planeta — como a de destruir as florestas — não podem simplesmente ignorar este facto.
Todas as nossas ações têm de ser no sentido de assumirmos as nossas responsabilidades
como habitantes do Universo. Até prova em contrário, somos os seus únicos cidadãos —
embora eu ache que deve haver mais alguém.
O facto de hoje estarmos a falar do coronavírus era completamente desconhecido
há um ano. Isso diz-me que o futuro é incerto”
Não estamos sozinhos?
É apenas uma opinião, uma intuição. Não tenho provas. Mas seria estranho estarmos
sozinhos numa tal imensidão.
O que diz aos políticos que negam a crise climática?
Digo o seguinte: se nos interrogarem sobre um campo que não dominamos, a melhor coisa
a fazer é procurar uma autoridade nesse campo e recolher a sua opinião. Aos céticos do
clima, em particular, digo que essa autoridade existe, chama-se IPCC [Intergovernmental
Panel on Climate Change] e integra três mil dos melhores cientistas do mundo. Eles, se
forem interrogados, dirão que o ceticismo é errado, que não há motivos para ser-se cético,
porque o problema existe, está a ser estudado há mais de 30 anos. Hoje sabe-se que a
probabilidade de a atividade humana ser a principal causa do aquecimento global é de
99%. Então, é tudo uma questão de escolha. Pode escolher-se a opinião do amigo que diz
que não concorda com isto ou a de três mil cientistas competentes que dizem que o perigo
é real. Pessoalmente, aconselharia ouvir os cientistas.
Tornou-se um divulgador e escreveu dezenas de livros de divulgação cien-
tífica. É importante levar a ciência aos cidadãos?
Sim, primeiro porque muita gente deseja saber e está interessada. A ciência é paga pelos
governos, e os governos são pagos pelos nossos impostos. Então, trata-se apenas de um
retorno: se as pessoas pagam para termos telescópios, temos o dever de devolver esse
gesto, explicando o que descobrimos numa linguagem que possam compreender. Mas
outra razão é que gosto de ensinar, de dar respostas às pessoas.
É otimista? Acha que o bom senso vai prevalecer?
Não sei, não sei. Se me perguntar como será o estado da Terra daqui a 60 anos, pode não
ser bom. É uma questão em aberto, e assim temos de a manter. O facto de hoje estarmos a
falar do coronavírus era completamente desconhecido há um ano. Isso diz-me que o futuro
é incerto.
Acredita em Deus?
Tenho muitas perguntas sobre Deus. Mas não sei o que Deus é. Para mim, é um assunto
importante, mas relativamente ao qual não cheguei a nenhuma certeza.
Mas é possível conciliar ciência e religião?
São duas atividades diferentes da mente. A mente humana tem dois domínios: um é o do
conhecimento — aprender, saber como as coisas são, como o mundo funciona — e outro é o
do valor. A ciência diz-nos como fazer a bomba atómica, mas não será capaz de nos dizer se
devemos ou não fazê-la. Isso é do domínio do valor, no qual se inclui a filosofia ou a
religião. Enquanto a ciência pergunta: ‘o que é?’, a religião questiona: ‘é bom ou mau?’.
Este é um assunto na ordem do dia, na medida em que, cada vez mais, se coloca a questão
da aplicabilidade da ciência e das suas fronteiras éticas.
O que é que ainda o surpreende? O que o emociona?
A amizade, o amor, a música. Ouço música o dia todo, e agora que temos música na
televisão tenho-a ligada enquanto trabalho. Porque gosto muito de ver a cara e a expressão
dos músicos quando tocam. É um acrescento ao prazer da audição.
A música é “a imagem do Universo”, como disse uma vez?
Não há nada mais elevado. As salas de concerto são as minhas igrejas. É o lugar onde sinto
que existe algo maior do que eu.
O conhecimento ajuda a viver, a envelhecer?
Diria que é algo ao mesmo tempo tranquilizador e perturbador. Tranquilizador porque, se
conhecermos a estrutura do Universo, temos mais consciência de onde estão os perigos.
Tem um gato?
Tenho, sim.
Então sabe que, se o levar para uma casa nova, ele vai primeiro percorrer todos os recantos
até se sentir seguro. Acho que a ciência é algo de parecido. Dá-nos um conhecimento do
perigo que não tínhamos na juventude e diz-nos o que podemos fazer em relação a ele.
Mas, por outro lado, coloca-nos frente a frente com a realidade.
Sei que gosta de árvores. Como é isso?
A minha mulher e eu temos uma pequena floresta na nossa casa de férias e temos vindo a
plantar árvores. Sabe que elas comunicam entre si? Plantei várias sequoias e ginkgo
bilobas, porque podem viver mais do que mil anos. Gosto da ideia de que, daqui a mil
anos, estas árvores possam lá estar.
Disse que viver plenamente exige um grande equilíbrio. Viveu plenamente?
Exige um equilíbrio entre a atividade mental e as atividades relacionadas com a
imaginação, a música e as partes irracionais da mente. Eu tentei tê-lo, mas nem sempre
consegui.
Como vê a vida aos 88 anos?
Sei que a vida não vai durar muito mais, que estou a roçar o seu limite perigoso. Por isso,
não me deito antes da uma ou duas da madrugada. Tenho esta ideia de, até onde a saúde
mo permitir, não querer desperdiçar o tempo a dormir.