Annick de Souzenelle - O Simbolismo Do Corpo Humano
Annick de Souzenelle - O Simbolismo Do Corpo Humano
Annick de Souzenelle - O Simbolismo Do Corpo Humano
- Annick de Souzenelle
O Simbolismo do Corpo Humano – Parte 1
"O que está embaixo é igual ao que está em cima e o que está em cima é igual ao
que está embaixo, para realizar o milagre de uma só coisa."
A Tábua de Esmeralda
Continua
O Simbolismo do Corpo Humano – Parte 2
Continua
O Simbolismo do Corpo Humano – Parte 3
Como o Verbo nasce do Silêncio divino, como a Luz sai das grandes Trevas, de
acordo com a mesma lei, no nível da minha experiência, nasceu uma palavra,
brilhou uma luz que não posso "deixar sob o alqueire" (Mt, V:15).
Será tempo, agora, de dar testemunho a essa palavra?
Para dizer a verdade, penso que toda essa obra ou prestará esse testemunho ou
não existirá.
É verdade que o filho pródigo conhece a fome e a solidão no deserto, antes de
preparar o seu movimento de volta para a Casa do Pai, para o Um que o gerou
(Lc, XV: 11.32).
Só mesmo no fundo do abismo, no limite do absurdo, no âmago do desespero,
nessa matriz obscura, é que o Homem pode descobrir essa semente que germinará
e logo será a sua dimensão divina.
O caminho que ele escolheu implica esse parto rude.
De matriz em matriz, a "Grande Obra" se aperfeiçoa.
Já conheci uma ou várias dessas matrizes, conheci a dor de vários partos, mas
desse parto de mim mesma nada mais sei do que a imensa alegria de participar da
vida.
Esta, longe de reduzir-se à cansativa repetição do quotidiano, define-se então como
experiência de conquista do "núcleo".
A caminhada é difícil, pontilhada de trevas e de luzes, de quedas e de vitórias, mas
constantemente apoiada por guias invisíveis, que se revezam de etapa em etapa.
Alguns meses mais tarde, abrindo um dia "por acaso" o Sepher HaZohar, Livro do
Esplendor (livro que, com o Sepher Yetsirah — Livro da Formação — é uma espécie
de "Bíblia dos Qabbalistas"), os meus olhos recaíram sobre esta frase:
"A Espada do Santo, bendito seja ele, é formada pelo Tetragrama; o Yod é o seu
punho, o Vav a lâmina, os dois Hé os dois gumes."
(Zohar, III: 274b.)
Essa é outra experiência inexprimível para quem não a viveu: quando estamos no
caminho certo, o fruto da nossa meditação recebe a sua confirmação.
O Verbo fala, o Espírito confirma.
O Tetragrama-Espada tomou-se, então, o nosso guia.
Pouco a pouco, seu rosto me apareceu: no Yod, o punho, delineia-se a cabeça do
Homem, a fronte que o Cristão toca quando, persignando-se, diz o nome do Pai.
No Vav, a lâmina, aparece a coluna vertebral, formada das energias do Pai na
eterna geração do Filho.
Nos dois Hé, os dois gumes, desenvolvem-se os pulmões, que se prolongam nos
dois braços e nas duas mãos do Homem que o Espírito enche com o sopro da Vida.
O Tetragrama revela, assim, a "estrutura divina" em sua essência trinitária, e a
estrutura trinitária do Homem, sua imagem.
Ele é o arquétipo por excelência, arquétipo a partir do qual "Deus Se faz Homem
para que o Homem se torne Deus".
Esse "axioma" expresso pela primeira vez, parece, por Santo Irineu de Lyon, é
confirmado por todos os Padres do primeiro milênio cristão e por aqueles que, no
Oriente, são seus herdeiros.
Imagem divina, o homem o é ontologicamente.
[Ontologicamente significa "por natureza". Na seqüência do texto, distinguirei a
"ontologia", natureza primeira do Homem, da "túnica de pele", a sua segunda
natureza, acrescentada depois da queda.]
Essa imagem não é atingida por nenhuma das vicissitudes da sua História, nem
mesmo pelo drama que constitui a sua "queda".
Não diz Eva, acaso, ao colocar no mundo seu primeiro filho (Qain): "Ganhei um
homem de estrutura e de vocação divinas."
É mais ou menos assim que percebemos o significado desse (eth) que liga as
duas palavras "homem" e " ", o Tetragrama.
Habitualmente traduzido por "com a ajuda de", esse ―eth‖ introduz geralmente
um complemento direto e colocaria aqui, em aposição, o Nome divino e o nome do
homem.
Se, por outro lado, notarmos que é constituído pela primeira e pela última letra do
alfabeto hebraico, ele indicará um começo e um fim, o Alfa e o Ômega...
Nele, a dimensão crística afirma-se no contexto da queda.
O Homem conserva a Imagem do Arquétipo divino.
Ele perdeu o caminho da Semelhança, mas pode tornar a encontrá-lo.
Todo o dinamismo escatológico está aí.
Cristo, novo Adão, dirá: "Eu sou o caminho."
Por esse novo desenho podemos ler isto: o número 6 simboliza o Homem no
começo da sua formação.
Criado no sexto dia da Gênese, ele recapitula os 6 primeiros dias da Criação.
E nesse sentido que a letra Vav ( ) ligada ao 6 é a conjunção "e".
O homem é conjunção.
Ele liga, de um lado, todos os elementos do cosmos entre si, nas suas contradições
e nas suas complementaridades respectivas
os dois He : – -
5–6-5
e, de outro lado, a Terra e o Céu (o conjunto
e o Yod cujo valor 10 unifica os
dois Hé).
Essa unificação faz o próprio objeto da História do Homem cuja vocação é passar
do 6 ao 10, assumindo os 7, 8 e 9.
Essa passagem do 6 ao 10 completa-se à medida que se realizam os casamentos
sucessivos dos dois Hé.
No plano biológico, a formação de uma criança no ventre da mãe obedece a essa
mesma lei: no 6º mês a criança está formada.
Mas o que se passa no útero durante os 7º, 8º e 9º meses simboliza a vida inteira
da criança entre o seu nascimento e a sua morte.
Esta é uma etapa capital de que falarei ao estudar o sangue.
Quando a criança nasce, ela simboliza o 10, o Yod, a criança divina que é chamada
a pôr o mundo em si no final do "9º mês" da sua história.., o que deveria ser a sua
morte.
O 7 é plenitude, recuperação num nível (os dois He uniram-se plenamente);
implica uma retirada, uma mutação, cujo aspecto negativo ele simboliza.
O 8, que o segue, é uma prova de obstáculo.
Aquele que o ultrapassa atinge um novo "nascimento, a ressurreição", aspecto
positivo da mutação.
O 9 simboliza a perfeição, o acabamento dos mundos criados.
No 10, o Homem atinge a deificação, encontrando a fonte na qual se reintegra, com
ele, todo o cosmos, os mundos visíveis e os invisíveis.
Pondo no mundo a criança divina, o Yod, ele atinge em o seu próprio núcleo e
toma-se o seu Nome.
Todos os nossos Nomes, germes de Vida nos quais Elohim sopra Adão (Gn, II: 7),
estão contidos em
.
Da origem até o 6, durante os seis primeiros dias do Gênesis, assistimos ao
desenvolvimento do Nome Divino , expiração divino-humana.
Do acabamento do sexto dia, no Homem, até a reconquista do 10 por este último,
do Gênesis ao Apocalipse, vamos assistir à inspiração humano-divina.
O Tetragrama-Espada, velado à nossa consciência, correrá em filigrana nesta
segunda parte da viagem.
E é sob o símbolo da Árvore da Vida plantada no meio do jardim do Éden que
vamos receber a luz necessária para guiar essa volta do Homem para Deus.
Contemplemos esse novo Arquétipo, a Árvore sobre a qual tudo se ordena.
Que "túnica de pele" é essa com que Deus cobre então Adão (Gn, 111: 21)?
A expressão "túnica de pele" — Aor — nada mais é que a palavra veRa, "não-
luz", cujas letras foram permutadas.
Vemos como a "não-luz" — veRa — e a "túnica de pele" — Aor — estão
ligadas uma à outra pela mesma força!
Em outras palavras, o Homem é identificado à "não-luz".
Pronunciada ―Iver‖, essa mesma palavra significa "cego".
Cortado do Yod que lhe é retirado, já que ele é o próprio objeto da sua ilusão, o
Homem identificado com é cego.
Ele não conhece mais a sua realidade profunda.
Não sabe mais identificar as energias de que é urdido, os animais que ele é nas
suas estruturas ontológicas.
Ele é, então, reduzido novamente à confusão com o seu feminino, com o seu
potencial energético que, no início, é animal.
Sua "pele" é a sua opacidade a toda consciência real.
Os dois do Arquétipo (ver figura 1), privados do Yod que os liga pela raiz, estão
vagando ao léu.
Continua
O Simbolismo do Corpo Humano – Parte 4
De que modo a Árvore da Vida, perfeita Luz que deve tornar-se Luz, chegou ao
campo de contemplação do místico judeu, sob a forma da Arvore das Sephiroth?
Historicamente falando, essa Árvore nos é descrita pela primeira vez no Sepher
Yetsirah ou Livro da Formação que, com o Sepher HaZohar (Livro do Esplendor
citado anteriormente), formam as duas coletâneas mais importantes da doutrina
esotérica do judaísmo.
Ambos foram conservados até nossos dias.
Não conhecemos os seus autores, mas a tradição hebraica conta que eles contêm
os "mistérios ocultos desde o começo dos tempos", "mistérios transmitidos de
Moisés a Josué, deste aos Anciãos, aos Profetas e a todos aqueles que uma mesma
corrente iniciática liga desde esse começo até nossos dias".
Durante longos anos, essa transmissão foi feita oralmente.
Na época em que o profeta Esdras redige a Torah, o Colégio rabínico sabe que um
sentido misterioso desses textos é confiado a alguns poucos iniciados, de acordo
com um modo de conhecimento transmitido de boca em boca.
O conteúdo desse conhecimento é recolhido na Qabbala, cuja raiz, Qabel, significa
"receber", "conter".
O Qab é uma medida de capacidade (e o Qabbah é um saco de provisões que
conhecemos muito bem!).
Com o passar do tempo, a palavra Qabbala tomou o significado, não mais do
continente, mas do conteúdo, e passou a designar a própria Tradição.
Tradição oral, portanto, cujos primeiros escritos só nos são dados no século XIII,
época na qual numerosas contribuições estrangeiras vieram sem dúvida enriquecer
— ou deslustrar — os dados primitivos.
Que é que podemos considerar autêntico nesses escritos?
O que podemos assegurar é que, tais como estão, esses dois livros, o Sepher
haZohar e o Sepher Yetsirah, têm autoridade enquanto constituem uma Torah oral
e são venerados pelos mesmos motivos que os Livros Sagrados da Torah escrita.
Se, por outro lado, nos colocamos num plano diferente do da História, existe um
método que nos pode permitir reconhecer a Árvore das Sephiroth.
Esse método foi vivido por mim.
Ele permite-me testemunhar a respeito da força, do poder indescritível dessa
experiência.
Quando o profeta — que anuncia, não o futuro, como em geral se pensa, mas os
acontecimentos de ordem arquetípica — vê o "céu aberto" (Ez, 1:1; Jo; Ap, IV: 1,
etc.), ele não pode explicar essa visão participando do esplendor dos esplendores, a
não ser segundo um traçado desesperadamente esquelético, elíptico e seco, no que
toca ao que lhe fora dado ver.
Esse traçado é o que resta da sua visão, mais ou menos como fica entre as mãos
da criança desesperada o pedaço de borracha que fora antes um balão brilhante,
leve, colorido, subindo no ar.
Esse traçado pode ser uma simples figura geométrica.
Então, a partir dela, a criança que somos procura dolorosamente reconstituir "o
objeto".
Ela se alça sobre a mais fina ponta de seu ser para encontrar o que lhe escapa de
forma absoluta
A criança leva muito tempo para compreender que o que lhe ficou entre as mãos é
o símbolo, isto é, a promessa do Arquétipo entrevisto, a semente do fruto que deve
ser, e que toda a sua vida consistirá em percorrer o caminho que leva da semente
ao fruto.
Seria a Árvore das Sephiroth uma semente?
Sabê-lo-emos quando virmos seus primeiros frutos.
E porque as primícias me parecem justas, escrevo estes textos.
Mas, se as primícias são justas, sei também que terrível poder está contido na
Árvore guardada pela Espada de dois gumes: ela dá a vida a quem se tomou
Espada, mas dá a morte a quem não entra em sua "justeza".
"Assim fala o Senhor: a Espada, a Espada, Ela está afiada, ela está polida, É para
massacrar que ela está afiada, É para brilhar que ela está polida." (Ez, XXI: 14).
Pois a Humanidade, e cada Homem em particular, deverá um dia medir forças com
ela.
Nisso é que consiste o Julgamento.
Essas três últimas tríades ou colunas não se impõem por si mesmas como os três
eixos do Tetragrama-Espada?
As duas colunas do lado são os dois gumes, os dois Hé.
A coluna do meio é a lâmina, o Vav.
O Yod, o punho da Espada, inscreve-se na tríade superior da Árvore, nitidamente
distinta das demais.
Ver figura 4 ao final do capítulo
A Árvore das Sephiroth não é esse Nome divino ou
,o Tetragrama, desdobrado na gama simbolicamente reduzida a dez Energias que
exprimem, ao mesmo tempo, a Unidade e a infinita diversidade das Harmonias
Divinas?
Paremos aqui.
Falar mais dessas Energias Divinas e do seu modo de revelação é aprisionar cada
uma delas dentro de um conceito que logo a destrói.
Elas só se propõem a nós segundo um modo de conhecimento de que já falamos e
que só pode ser vencido a título pessoal.
Cabe a cada um ir mais longe e deixar-se levar por novos guias.
O primeiro guia que encontramos relevou-nos o seguinte: o Tetragrama-Espada, a
Árvore da Vida, a Árvore do Conhecimento do Bem e do Mal e a Árvore das
Sephiroth são Um.
Continua
O Simbolismo do Corpo Humano – Parte 5
Uso aqui uma linguagem caricatural apenas para exprimir com vigor as opções
fundamentalmente opostas que o Homem pode tomar.
Opções segundo as quais ou o corpo é vivido — ele é então "imagem do corpo
divino" tendendo a identificar-se com ele — ou é entretido, sofrendo a identificação
com a banalização exterior.
Os primeiros "são os seus corpos", os segundos "têm um corpo", para retomar a
luminosa expressão de que se serve o professor K. von Dürckheim na análise
aprofundada a que se dedica sobre esse tema.
Parece-me importante insistir aqui sobre esse fenômeno de identificação que acabo
de falar, simples projeção da lei ontológica de imagem e de semelhança.
No mito bíblico, o homem, "criado à imagem de Deus", vive na intimidade divina e
é chamado a atingir essa Semelhança.
Separado de Deus, o homem vive na intimidade do mundo sensível cuja
experiência ele faz; isso é o que agora lhe é natural.
A intimidade do mundo interior a si mesmo, ou mundo espiritual, não lhe é natural
senão no acesso ao plano essencial de seu ser, nessa caminhada rumo ao
"Conhecimento" definido acima.
Seja no mundo exterior, seja no mundo interior ao Homem, a identificação de seu
ser (corpo, alma, espírito) é uma realidade que não precisa mais ser demonstrada,
mas que preciso recordar.
Ela é essencial a este meu estudo.
A cabeça tem a forma de um ovo; ela é a matriz do ser divinizado que deve nascer
para a vida divina total, realizada no retomo ao Um, no Yod do Tetragrama-Espada
(o 10 da escada sobe do 6 ao 10).
A iconografia hindu revela esse aspecto no simbolismo da flor de lótus que se abre
no alto do crânio.
Em outras tradições, são os chifres enraizados nesse mesmo lugar que se elevam
em meia-lua e expressam o mesmo simbolismo.
Este não é menos estranho à iconografia cristã que representa o Cristo glorioso
dotado de chifres.
Mas, nesse nível, os chifres tornam-se coroa.
Assim, delineia-se o nascimento "pelo em cima".
Mas é também por esse caminho (a cornucópia) que o Mundo Divino desce até o
Homem.
Em todas as etapas, encontro do Mundo de cima com o mundo de baixo, entre o
"Mi" e o “Má”
O primeiro triângulo, invertido em relação a esse triângulo superior, corresponde,
no plano divino, à tríade Hesed-Din-Tiphereth (Misericórdia-Justiça-Beleza).
Esta contém em si o mistério das leis; leis ontológicas, portanto, e liberadoras.
No plano corporal, esse primeiro triângulo invertido, reflexo da cabeça, corresponde
ao complexo cardiopulmonar.
Ele é a sede do ser espiritual, a matriz do ser divino.
Somente o homem espiritualizado pode entrar no conhecimento das leis
ontológicas.
Entre esses dois triângulos, levanta-se o pescoço.
Quando o Deus da Bíblia se irrita contra o seu "povo de dura cerviz", ele denuncia a
ruptura das comunicações entre o peito e a cabeça.
Tiphereth (a Beleza, o coração) não pode mais refletir o ponto mais alto do
triângulo: Kether (a Coroa).
O coração não é amor divino criador.
Vazio, ele se alimenta então do segundo triângulo invertido, ele é afetividade
sentimental, presa das paixões que o entregam à dualidade e o dilaceram.
Enquanto o coração se nutre do triângulo superior, que é essencialmente uma
ultrapassagem da dualidade, ele é senhor do seu afeto.
Quando ele se alimenta desse afeto, ele é escravo dele.
E no nível do Tetragrama-Espada que se faz a separação entre o Yod, o Divino, e o
Vav, o Homem.
Sem cabeça, incapaz de tomar-se Deus, o homem, nessa situação, recria para si
uma falsa cabeça, com todos os valores que ele deifica, mas que são ilusórios.
Seria preciso que ele se desembaraçasse dessas falsas cabeças, se purificasse dos
valores muito relativos, até mesmo errôneos, que são representados por
inteligências e sabedorias dessas "máscaras".
Estudarei esse último problema no simbolismo da decapitação (particularmente em
João, o Batista, e em São Dionísio), simbolismo que aparece muitas vezes nos
sonhos.
Em contrapartida, quando "Deus sai à frente do seu povo caminhando no
deserto..." (Sl, LXVIII: 7), o povo de Israel é então, verdadeiramente, a
humanidade em marcha rumo à sua deificação.
Quando Moisés desce pela primeira vez da montanha onde recebera as primeiras
Tábuas da lei, encontra um povo "de dura cerviz" que havia substituído sua
verdadeira cabeça pela cabeça do bezerro de ouro (Ex, XXXII).
Moisés, então, quebra essas tábuas.
O simbolismo aqui é claro: Moisés encontra um povo involuído no segundo
triângulo inferior e, por conseguinte, incapaz de conhecer e de viver as leis
ontológicas.
Elas serão substituídas, numa oitava inferior, pelas leis que ainda hoje regem o
povo judeu, símbolo da humanidade prisioneira de seu erro.
Nós as conhecemos todas: são, não apenas as leis morais, mas uma codificação
cuidadosa dos menores detalhes da vida comum, tudo isso simbolizando essas leis
ontológicas, significando-as.
E quando, mais tarde, Cristo convida seu povo a passar do significante ao
significado, da lei ao Arquétipo, Israel não estará mais pronto a segui-lo.
Aliás, não nos vamos enganar: bom número daqueles que se dizem cristãos são
igualmente escravos da lei em seu aspecto moralizante e tranqüilizador.
O Cristianismo não é uma moral, mas uma perigosa libertação no acesso à
consciência das leis ontológicas.
O segundo triângulo invertido (complexo urogenital), reflexo muito mais longínquo
do triângulo superior, é a sede do ser físico e a matriz do ser espiritual.
Ele é a noite da ignorância.
Se ele se nutre do que está em cima desse Mundo Divino que Se reflete no primeiro
triângulo, como acabamos de ver, acabará por levar a termo esse ser espiritual que
ele carrega em gestação.
Se ele se nutre apenas do que está embaixo, dos prazeres sensório-afetivos, ele
deixará o homem de dura cerviz no erro que implicam as trevas psicossomáticas.
Ele não poderá, então, conhecer outra saída que não seja a morte...
A matriz não dará o seu fruto; haverá uma espécie de aborto espiritual.
Notemos, também, que a criança no seio materno está envolta na noite das águas
matriciais.
Ela irá nascer para o mundo físico (Malkhuth, o Reino) pela abertura do colo
uterino.
Este último nada mais é do que o homólogo, embaixo, do colo craniano que se abre
"em flor de lótus", no alto, para dar nascimento ao ser divinizado em seu retomo ao
Um.
Nesse caminho de evolução, caminho de volta, notamos três etapas cujos
harmônicos podem ser encontrados no plano cosmológico:
1) A Malkhuth, o Reino (os pés, plano corporal concreto, "sentir" físico),
corresponde a Terra.
2) A Yesod, o fundamento (o órgão sexual, plano físico), corresponde a Lua, astro
da noite, cujo crescente é reflexo, embaixo, dos cornos simbólicos do ser divinizado
no alto (é curioso notar que esse mesmo simbolismo dos cornos é usado
espontaneamente pela humanidade inconsciente para significar os atributos da
cornudagem!).
3) A Tiphereth, Coração-Beleza (o plexo solar, plano espiritual), corresponde o Sol.
Nosso sistema solar construído (como todos os outros) à imagem do Arquétipo
universal tem portanto, certamente, seu triângulo superior, de onde lhe vem a
energia... energia essa que é transmitida a Yesod e a Malkhuth, à Lua e à Terra.
Ora, no plano corporal, se nós nos olharmos vivendo, reconheceremos que não é
nosso ser espiritual, nosso Sol, que alimenta nosso ser psicofísico, mas que são
nossas sensações (a Terra) e nossas emoções (a Lua) que fazem o bom e o mau
tempo no nível de nosso plexo solar: sentimos uma alegria, chega a primavera e
nosso coração está em festa.
Chove, faz frio, sentimo-nos mal física ou psiquicamente, ficamos tristes.
A alegria nos sufoca, no nível do peito, mas a dor nos aperta; o estômago então se
contrai até o vômito, até a crise de fígado ou a icterícia, às vezes.
O conjunto do plexo solar é perturbado pela emoção, seja ela qual for, e o ritmo
cardíaco é testemunha dessa perturbação.
Em outras palavras, o homem vive "ao contrário".
Não sendo mais alimentado de cima, seu plexo solar é escravo das informações
recebidas de baixo.
As medicinas psiquiátrica e psicossomática baseiam-se nesse estado de fato.
Elas não tentam "inverter a marcha", mas dar a valores de baixo essa força de
absoluto, capaz de substituir o Absoluto de cima.
É assim que vemos a escola freudiana realizar uma obra justa ao libertar o Homem
do moralismo constrangedor ligado, no Ocidente, ao mundo da sexualidade, mas
fazer obra mais discutível ao erigir esta última como padrão das mais altas
motivações humanas.
A melhor medicina, de acordo com nosso esquema, consistiria em recolocar o
paciente no caminho de uma "marcha para o bem".
Mas tal atitude faria supor, da parte dessa ciência, o reconhecimento da realidade
desse plano espiritual do Homem, desse ser essencial nele, de sua vocação divina.
Se ela tornasse a se enquadrar nessa perspectiva, é certo que o médico voltaria a
ser o sacerdote que foi outrora, sacerdote no sentido de mestre, e não de árbitro
da moral ou de concorrente cornplexado do líder nolítico em que ele se transformou
no Ocidente.
É por efeito de uma verdadeira "inversão da marcha", que ele teria operado
primeiro em si próprio, que esse mestre poderia levar os demais a deter seu
processo de involução para colocá-los, em seguida, no caminho da evolução.
Qualquer outra medicina deixa o Homem num impasse... ou num patamar
necessário durante certo tempo, mas que, de todo modo, exigirá um dia outro
patamar.
Prossigamos em nosso estudo do esquema corporal.
Continua
O Simbolismo do Corpo Humano – Parte 6
Cristo nos dirá: "Estais no mundo, mas não sois do mundo" (Jo, XVII :16-18).
Essas duas dimensões serão muitas vezes expressas nos mitos pela presença de
gêmeos.
As duplas Qain-Abel ou Jacob-Esaú são símbolos vivos disso.
Qaïn e Jacob são homólogos da ontologia do Homem.
O primeiro, Qain (
) é "ninho" (Qen ( )) do Yod, o segundo, Yaaqov ( )é
"calcanhar" (Aqov ()) do Yod.
E veremos no estudo do pé que o calcanhar também é um ninho!
Abel e Esaú são homólogos do Homem de "túnica de pele", natureza acrescentada.
Ambos são identificados com o mundo animal: Abel, guardião de rebanhos; Esaú,
"homem vermelho" peludo, que gosta de caçar, etc.
Mas, para cada uma das duplas, os dois homens são irmãos e, a partir de então, a
natureza profunda, portadora da deificação no Yod, só poderá realizar-se ao
assumir totalmente a túnica animal.
O drama de Qain será matar Abel.
A grandeza de Jacob será assumir Esaú, cujas energias (o direito de primogenitura)
ele não retomará senão quando estiver em condições de cumpri-las
ontologicamente, para colocar no mundo o Messias .
Em outras palavras, seremos mais Abel-Esaú durante a primeira parte da nossa
vida, no primeiro estágio da escalada da nossa árvore, estágio do Haver.
Nesse estágio, totalmente identificados com as nossas energias — o mundo animal
—, não saberemos discernir a direita da esquerda.
"E eu - disse Deus a Jonas, pedindo misericórdia para com a cidade de Nínive,
ameaçada do rigor divino pelo Profeta - e eu não teria piedade de Nínive, a grande
cidade, na qual há mais de cento e vinte mil seres humanos que não sabem
distinguir a mão direita da mão esquerda, e uma multidão incontável de animais!"
(Jn, IV: 11).
Tornar-se Homens, passar pela "Porta dos Homens", é começar a discernir a direita
da esquerda e, ainda mais, a direita ontológica masculina da direita existencial
[Dou a esse termo existencial seu sentido etimológico: "fora do ser", identificando-
o com a nossa natureza "em queda" — a túnica de pele.] feminina; a esquerda
ontológica feminina da esquerda existencial masculina.
Escada é uma palavra, construída sobre a raiz S-K-L, que encontramos em todos os
convites à "escalada": escada, schola, school, escola, esqueleto...
Em hebraico a palavra escada, Selam ( (60-30-600)), é construída da seguinte
forma: guiado ( ) pela árvore da Tradição, apoiando-se ( ) nela, o Homem
caminha em direção à sua realização ( ).
Notemos bem que, no sonho de Jacob, a escada "estava apoiada na Terra e que o
seu topo tocava o Céu".
É importante frisar aqui que a evolução do Homem, a sua própria vida, inscreve-se
entre a Terra e o Céu.
A experiência de Jacob confirma a imagem dos dois pólos de um ímã cósmico, entre
os quais o Homem é a própria vibração.
Se ele larga um de seus pólos, ele não é mais; ele apenas existe, no sentido
etimológico do termo: ele está fora da corrente da vida.
No esquema corporal, os anjos que sobem e que descem são as energias
mobilizadas ao longo da coluna vertebral, elas próprias energias descendentes e
ascendentes, que fazem a força dinamizante do encontro do Homem com o mundo
exterior na primeira parte da sua vida; encontro do Homem consigo mesmo,
quando passa pela "Porta dos Homens"; depois, encontro do Homem com o seu
núcleo, o seu Nome, os esponsais divinos!
Tal é a força de Eros, no nível da coluna vertebral, aquela que une Kether a
Malkhuth , o Rei à Rainha, o Esposo à Esposa.
Desde a queda, essa força mobiliza o Homem exclusivamente no exterior de si
mesmo e o mantém no seu primeiro estágio, infantilizando-o.
Mas pode também obedecer à Voz do Esposo, reencontrar o caminho do seu Nome
e elevar-se, como a seiva da Árvore, rumo ao topo do Homem.
Cada ser humano frui sua vida mobilizando energias, seja fazendo subir a sua seiva
a fim de que sua árvore frutifique, seja gastando-a desde o nascimento, ao pé da
Árvore, nos rebentos e nos galhos baixos...
Se numerosos rituais iniciáticos — e penso muito particularmente naqueles dos
xamãs da tradição hiperboreana — incluem simbolicamente a subida de uma
escada, outros propõem a subida da Arvore.
Eles confirmam que é na "subida da seiva" que reside o próprio sentido da vida do
Homem, o sentido da misteriosa e perturbadora prova que constitui a sua
passagem na Terra entre o nascimento e a morte
Entre dois pólos opostos, antinômicos, que são o nascimento e a morte, entre essas
duas "matrizes", a tradição cristã propunha-nos a própria Pessoa de Cristo que é —
Ele próprio nos revela — "o Caminho, a Vida" (Jo, XIV:6).
Mais adiante, Ele diz de Si mesmo: "Eu sou a Porta."
Se Ele não disse: "Eu sou a Árvore", ele, contudo, identificou-se suficientemente
com a Árvore da Cruz, para que arranquemos desta última o seu segredo.
A Árvore aparece pela primeira vez no mito bíblico, como já vimos anteriormente,
sob a forma da Árvore da Vida e Árvore do Conhecimento plantadas no meio do
Jardim.
Quando o Homem, no capítulo III do Gênesis, é expulso do Éden, os Querubins e a
Espada flamejante guardam a porta do jardim a fim de que ninguém possa entrar
para comer o fruto da Árvore da Vida.
Esse é o início da longa caminhada sem destino do Homem sobre a Terra: o
Homem é expulso de si mesmo, expulso de seu eixo divino; confundido de novo
com o seu feminino, ele é rejeitado ao pé da Árvore, na base da sua coluna
vertebral.
As leis que estruturam a Criação encontram-se, então, voltadas contra ele.
Ele é advertido por aquilo que se convencionou chamar a maldição divina; Deus diz
então a Isha: "Darás à luz no sofrimento."
A expressão "no sofrimento" é Be-Etsev ( ).
Entre os dois Beith ( ), como entre as duas colunas laterais, a coluna do meio
"( ) Ets" significa a Árvore.
Isha representa aqui Adão na sua função feminina.
Adão extirpado da consciência do Yod é chamado a conceber-se a si próprio,
realizando a escalada da Arvore ao pé da qual ele caiu.
Encontrar novamente a consciência do Yod e conceber-se na sua dimensão divina
permanece sendo a única vocação do Homem.
No Livro do Êxodo (cap. III), em que se relata a caminhada do povo de Israel
através do deserto, um terceiro símbolo é introduzido significando a coluna
vertebral da humanidade: a "coluna de nuvem que guiava o povo durante o dia" e
que se transformava em "coluna de fogo para iluminar a noite".
era essa coluna.
Na escuridão desse longo deserto, que é nossa passagem pela Terra, a nossa
coluna vertebral é o guia luminoso daquele que sabe ver.
É a ferramenta de quem sabe trabalhar.
É o caminho daquele que pode subir.
Na índia, a espinha dorsal chama-se brahmadanda ou "bastão de Brahma".
Ao longo desse bastão opera-se a lenta escalada da Kundalini — a serpente de fogo
que tanto se assemelha à serpente de bronze — serpente ardente que Moisés eleva
no deserto (Nm, XXI:8-9), que cura qualquer chaga, que dá vida, e com a qual
Cristo Se identifica, dizendo: "E como Moisés elevou a serpente no deserto, é
preciso igualmente que o Filho do Homem seja elevado..." (Jo, 111: 14).
Nos mistérios cristãos, o Filho de Deus desce, o Filho do Homem sobe.
Essa realidade é vivida no Cristianismo no plano da Pessoa divina que se deixa
captar pela História para elevar o Homem à sua deificação.
Ela é vivida no Hinduísmo no plano do Espírito que se deixa captar pelo corpo para
levar este a abrir ao longo da coluna vertebral os chakras, ou centros de forças.
Essas forças, assim libertadas, impregnam de algum modo o ser a fim de levá-lo,
por graus sucessivos, a participar plenamente da Energia divina.
Os sete chakras principais sobem da base da coluna vertebral (ou chakra
fundamental) até o alto da cabeça (ou chakra coronal) (reencontramos as sephiroth
"Fundamento" e "Coroa").
Entre eles, temos o chakra umbilical, o chakra esplênico, o do coração, o da laringe
e o chakra frontal.
O que, nos mitos, é escada, coluna ou árvore, o que, na tradição chinesa é o Tao, a
Via, caminho de reunificação dos contrários, é, na tradição cristã — como vimos
anteriormente —, a Pessoa de Cristo, que diz de si mesmo: "Eu sou o Caminho, a
Verdade e a Vida" (Jó, XIV: 6).
O que os chineses chamam yin e yang, o que os hebreus ou todas as outras
religiões chamam Energias-Princípios, são, nessa mesma tradição, pessoas vivas
que encamam a dualidade.
É assim que, nos Evangelhos, vemos desenhar-se um afresco de personagens
diversos que vêm, dois a dois, rodear o Cristo.
Observemos primeiro os dois Judas, cujo nome hebraico Yehouda ( )éo
próprio nome divino, o Tetragrarna, ao qual se acrescentou a letra Daleth ( ).
Daleth, a "Porta", corresponde ao número 4, símbolo de parada, e aqui, muito
particularmente, "Porta" da encarnação.
Esse nome de Judas, nome magnífico entre todos, significa verdadeiramente
"encarnação de
", " , inscreve-se na história".
Nascido da tribo de Judá, quarto dos 12 filhos de Israel, morto pela mão de Judas,
último dos 12 Apóstolos, Cristo, entre essas duas "portas" de nascimento e de
morte, é a Vida: a Vida transcende a História e nela se encarna.
Vamos agora até os dois Josés: de um lado, José, esposo da Virgem, vela sobre o
ventre materno, matriz do nascimento do Deus que se fez Homem.
E, por outro lado, José de Arimatéia recolhe o cadáver de Cristo, coloca-o no
túmulo e vela sobre essa matriz de morte que se revela matriz da Ressurreição, de
renascimento, do Homem que se toma Deus.
Entre eles, Cristo, Deus e o Homem é a perfeita unidade do Céu e da Terra, a sua
justa conexão.
Ventre materno e túmulo são dois limites — Soph ( ) em hebraico.
O nome de José, Yosseph ( ) (Yod que se torna limite) é o do verbo Yassoph
"aumentar": não haverá nenhum crescimento sem a aceitação de fazer-se germe e
deixar-se captar o tempo necessário nos limites de urna estrutura.
Dos dois lados da Cruz, símbolo da Árvore da Vida, erguem-se as cruzes dos dois
ladrões: entre dois erros, ergue-se a Verdade.
Um dos ladrões se identifica com a Misericórdia divina; o outro, com o Rigor.
Ao pé da Cruz estão Maria e João, arquétipos do feminino e do masculino.
Sobre a Cruz está Aquele no qual não existe "nem homem, nem mulher" (Paulo, Gl,
111: 28), pois nessa última morte Ele reconquistou a unidade.
Ao redor do Cristo transfigurado sobre o monte Tabor aparecem Moisés e Elias.
Entre o Rigor da Lei e o Fogo do Profetismo, Cristo é a tradição viva.
Há, contudo, mais dois personagens nos quais quero deter-me mais longamente.
São os dois Joões: João, o Batista, de um lado; e João, o Evangelista, de outro.
Na Antiguidade, tempo histórico bem anterior ao Cristianismo, era venerado o deus
Janus.
Representado sob a forma de uma única cabeça com dois rostos — um de velho,
outro de jovem — ele era festejado nos dois solstícios do ciclo do ano.
Veremos, depois, qual o sentido disso.
Esse Janus Bifronte simbolizava o tempo: o passado, pelo seu rosto de velho; o
futuro, pelo rosto de jovem.
O único rosto que não era e não podia ser representado era o do presente, o
inapreensível, o imaterial, o intemporal.
Na pessoa de Cristo, o inapreensível deixa-se apreender, o imaterial encarna-se, o
presente faz-se realidade, o eterno toma-se histórico, o imortal morre e ressuscita
para reintroduzir o Homem em sua dimensão divina.
Rodeado desses dois Joões — João, o Batista, "o velho homem", o homem de
"túnica de pele" (ele se veste com pele de camelo); e João, o Evangelista, o devir,
aquele de quem o Mestre fala tão misteriosamente como se a significar que aquele
já estava realizado (Jo, XXI, 22-23).
Cristo é o "instante".
É no nível do presente que o Homem encontra o seu verdadeiro rosto e pode viver
a sua medida de eternidade.
Na sua dimensão crística, ele sai do tempo estando no tempo; o instante é o ponto
crucial do Homem.
A maior parte dos seres recusa-se a isso, pois o instante é o que existe de mais
difícil para se viver.
Ligado por essência à eternidade, o presente é portador do absoluto.
O Homem vive essa contradição, que consiste em reivindicar o absoluto e em fugir
dele.
Ele o reivindica, pois está moldado em sua essência; e foge dele, porque espera
que a existência o traga a ele e porque o procura, não dentro de si mesmo, mas
fora.
Ele o espera do tempo: seja do passado, que então idealiza e no qual se refugia (é
a atitude de muitos velhos); seja do futuro, que, no seu entender, o encherá do
absoluto (é a atitude do jovem e de muitos dentre nós que vivemos sempre
projetados para a frente).
Quando o instante, em seu aspecto temporal, lhe proporciona uma alegria, então
ele pede que o tempo tenha valor de eternidade: "Ó tempo, suspende o teu vôo
...", canta o poeta.
Não sabendo medir a verdadeira dimensão do presente, o homem foge dele e,
fugindo dele, foge de si próprio e, agindo desse modo, se destrói.
A expressão ocidental do Cristianismo dos dez últimos séculos traduz
dramaticamente essa experiência.
Atualmente dilacerada entre integristas, que se prendem aos hábitos de um
passado muito relativo, e progressistas, que entram em competição com o
progresso exterior que inconscientemente deificam, essa Igreja abandona o seu
eixo tradicional e se destrói.
A tradição não é fruto nem de um passado nem de um futuro: ela é esse tempo
profético que mergulha no intemporal e se encarna no instante.
Os partidos políticos, quer sejam "de direita" (conservadores) ou "de esquerda"
(também eles progressistas) apóiam-se numa muleta que tende a desequilibrar o
outro, tornando a nação "manca" e deixando de encaminhá-la, absolutamente, em
tal contexto, para viver sua vida de adulto, centrada sobre sua verdadeira coluna
vertebral.
Voltando a nosso esquema corporal, é-nos fácil ler em seu lado direito feminino, o
da permanência, a origem, o antigo; em seu lado esquerdo masculino, o do
movimento, o futuro.
Somente a coluna vertebral, encarnando o instante, germe de transcendência das
antinomias, é a vida e a via que leva o homem ou o .grupo, ou a nação, ou a
própria humanidade em sua totalidade, apoiada no eixo de seu ser essencial,
espiritual e divino.
O Homem, sem viver esse eixo, se desinsere da vida e se deixa devorar pelo
tempo.
Esse aspecto devorador do tempo nos é transmitido pelo mito de Cronos — central
na vida da humanidade.
Relatá-lo aqui nos arrastaria numa digressão muito complexa.
Digamos apenas que, filho de Urano, deus do Céu, Cronos, ajudado pelos titãs,
destrona seu pai.
Quem é ele em relação ao filho? O tempo diante da eternidade.
Ele preside ao nosso nascimento, ao nosso amadurecimento, à nossa morte.
Ele é a continuidade, a sucessão, o encadeamento, a repetição no que se relaciona
com a eternidade.
Vemos então Cronos devorar todos os seus filhos: cada instante se anula, devorado
que é pelo futuro que, por sua vez, é imediatamente transformado em passado.
Deveríamos acaso dizer que tudo está perdido, que não existe mais nada em
comum entre Urano e Cronos, entre a eternidade (a que os filósofos também
chamam não-tempo) e o tempo?
O mito continua a nos ensinar: Gea, mulher de Cronos, salva um de seus filhos, um
desses "instantes", que é Zeus: ele é de dimensão divina.
Cada instante pode ser salvo, restituído à sua dimensão eterna.
Então Zeus reinstaura o reino de Urano.
Zeus, esse deus que está em nós, não pode deixar-se devorar; ele combate,
ajudado pelos ciclopes, para engolir os titãs, forças instintivas, e ao próprio Cronos,
no fogo dos vulcões.
Esse fogo do interior da terra é o amor no interior do ser: o amor evolutivo, que
queima no centro do quadrilátero e destrói tudo o que não faz parte do ser divino.
Os ciclopes são esses personagens de olho frontal, portadores do "Terceiro Olho" da
tradição hindu, que a tradição judeo-cristã não ignora quando fala daquele "que
tem o olho aberto" (Nm, XXIV: 3), e de que voltarei a falar mais tarde.
Os ciclopes são as forças do Conhecimento.
Fazem pensar em Shiva, deus da Trimúrti hindu cujo terceiro olho, o olho frontal,
destrói toda manifestação.
Essa destruição é a passagem do tempo para a eternidade, da sucessão para a
permanência que contém tempo e não-tempo.
Cada instante está carregado de eternidade.
A vida está nele.
Ela está no nível da Coluna do Meio.
Simbolicamente, portanto, a coluna vertebral é o caminho do nosso reencontro com
nós mesmos, da nossa potencialidade deificante.
Coluna do Meio, ela é "lugar do Mi", lugar do reencontro do "Ma" e do "Mi", porque
é lugar do reencontro e do casamento da direita com a esquerda, do masculino com
o feminino em nós, do "realizado" com o "ainda-não-realizado".
[]
Esse casamento com o feminino não é possível senão quando, com Adão, o Homem
tomou consciência do seu lado esquerdo e distinguiu, então, a sua direita da sua
esquerda.
É por isso que a coluna vertebral, já enraizada no triângulo inferior, no primeiro
estágio, quando o Homem começa esse processo de discernimento, de
desidentificação, só se constrói verdadeiramente no segundo estágio, com a
verticalização, na ereção da coluna dorsal.
A coluna vertebral torna-se então, em cada uma das suas vértebras, um leito
nupcial libertador e construtivo de energias, a fim de que o 2 se torne 1, a fim de
que cada um dos de despose o seu contrário e que a luz que mergulha na
treva leve esta à luz total.
A coluna vertebral é, pois, o lugar privilegiado em que se inserem todas as nossas
libertações, todas as nossas realizações sucessivas, mas também todos os nossos
bloqueios, todos os nossos medos, todas as nossas recusas, recusas de evoluir,
recusas de desposar, recusas de amar... e todas as tensões, todos os sofrimentos
que eles geram.
A coluna vertebral insere também os sofrimentos necessários, aqueles dos nossos
partos. Discernir os sofrimentos patológicos dos sofrimentos iniciáticos deveria ser
o papel do verdadeiro médico.
Voltarei a este assunto.
Esses dois termos: realizado e não-realizado explicam dois aspectos essenciais do
verbo hebraico. Eles encontram os dois pólos da Árvore do Conhecimento Tov veRa
.
Tov é o realizado, Ra o ainda-não-realizado; o que se tomou luz e o que
ainda está nas trevas.
Continua
O Simbolismo do Corpo Humano – Parte 7
Malkhuth I
Os pés
Não podemos nos deter no significado profundo dos pés, assim como nos inúmeros
mitos de que são objeto, sem voltar, embora brevemente, ao ensinamento da
Árvore das Sephiroth.
Lembremo-nos de que a Árvore brota das raízes invisíveis do Aïn-Soph, manifesta-
se em Kether, primeira das dez sephiroth, e se expande em Malkhuth, décima e
última sephirah, a sétima das sete sephiroth da Criação.
Em outras palavras, essa Árvore, cujas raízes estão no alto e cuja folhagem está
embaixo, mostra-se-nos como uma árvore invertida.
Ora, o corpo humano, que lhe é semelhante, é uma árvore invertida.
Numa recente comunicação, o doutor Hubert Larcher fazia notar que a linguagem
popular diz que o homem que "planta bananeira" coloca a árvore na posição
correta.
O doutor Larcher prosseguia acentuando que essa postura permite que se ponha
em evidência o verdadeiro pequeno universo que a caixa torácica encerra: a árvore
pulmonar, com efeito, expande-se aí sob o heliotropismo do coração, que toma o
lugar do Sol e, como tal, brilha sob a abóbada "celíaca".
Voltarei ainda a falar a respeito desse triângulo solar.
Só o menciono aqui para ilustrar o realismo dessa Árvore humana, invertida em
relação às árvores das nossas florestas, de que é complemento indiscutível.
Dando oxigênio à árvore pulmonar, a árvore verde recebe dela o gás carbônico que,
por sua vez, na alquimia da clorofila (khlôros: verde), dará o oxigênio.
Representando este último no sangue o papel que conhecemos, podemos apenas
constatar a espantosa complementaridade da clorofila e do sangue, a ponto de
poder falar da complementaridade da "Árvore verde" e da "Árvore vermelha", ou do
"Homem verde" e do "Homem vermelho".
Na verdade, em hebraico, Adão é, etimologicamente, "o Homem vermelho"
(Adamah é a "terra vermelha" e Dam é o "sangue").
O "Homem verde" está longe de ser desconhecido das três tradições bíblicas: já
falei, anteriormente, de São João, o Evangelista, o sempre jovem, aquele que fez o
elo com o divino.
Está intimamente ligado a Elias que, arrebatado pelo carro de fogo, não conhece a
morte.
E, no Islã., Elias é curiosamente confundido com o "Homem de Deus" que vem
instruir Moisés na Surata XVIII do Alcorão, chamada "a Gruta".
A esse homem, a literatura muçulmana chama Khadir, que quer dizer "sempre
verde".
Nas três tradições do Livro (Judaísmo, Cristianismo, Islã), o homem que realizou
todas as mortes e ressurreições e que nasceu na sua dimensão divina é o Homem
verde (num belíssimo romance, Gustav Meyrinck imortalizou o "Rosto Verde").
A árvore verde é imagem do Homem verde, isto é, o homem de dimensão divina.
A Árvore é, então, o símbolo de nós mesmos em nossa norma ontológica e em
nossa vocação escatológica.
Aliás, é extremamente curioso ler no capítulo VIII do Evangelho de Marcos
(versículos 22-26) que o cego curado por Cristo recobra uma primeira visão e
exclama: "Vejo os homens, mas como se fossem árvores que andam."
Então Cristo, num segundo tempo, abre-lhe os olhos para a visão do mundo.
Esses detalhes são de capital importância para o estudo que se seguirá.
Na óptica da árvore invertida, no nível do corpo, os pés — que correspondem a
Malkhuth — são raízes da Árvore humana e frondescência da Árvore divina, cujas
raízes mergulham nas trevas do Ain-Soph.
Malkhuth, o Reino, é o receptáculo de todas as energias divinas vindas do alto.
Décima sephirah, ela é a substância divina incriada e criadora.
Criadora, faz-se Germe na Arvore humana.
Os hebreus chamam-na "a Rainha", aquela a quem são confiados todos os poderes
do Rei (Kether).
Ela também é chamada a "Virgem de Israel".
É aquela que deve conceber e, nesse sentido, é mãe de toda vida.
É a Criação inteira e também cada um de nós em particular, que recapitulamos
toda a Criação.
Na qualidade de sétima sephirah da Criação ou da "pequena face divina", Malkhuth
corresponde ao sétimo dia do Gênese, dia do Shabbat ( ) em que, estando a
Obra concluída, perfeita, Deus Se retira.
Ele Se retira e não Se retira, pois fazendo-Se "base" (
Shet) da Sua Criação ( ),
é nela que Ele se refugia.
Ele Se faz Germe, Germe que a letra Yod ( ), simboliza.
Décima letra do alfabeto, o Yod delineia o Tetragrama divino que os hebreus
chamam HaShem (O Nome) e que recapitula todos os Nomes.
Estes estão respectivamente inscritos no coração de cada um de nós.
Cada um deles constitui o nosso núcleo, que é ainda a nossa "pessoa", aquela a
que somos chamados a nos tornar.
Cada um de nós, homens ou mulheres, é Virgem de Israel, com o peso do Nome,
chamada a trazê-lo ao mundo.
Partindo dos pés, o Homem vivo deve crescer como uma árvore e atingir a cabeça,
em que se multiplicam os frutos.
"Crescei e multiplicai-vos." Foi a ordem que Adão recebeu a partir da sua criação.
Num plano físico, os pés potencializam o corpo do Homem inteiro.
É por isso que a arte da acupuntura, numa das suas abordagens do corpo, é
praticada no nível dos pés, cujas emergências energéticas, pontuadas com
exatidão, retinem sobre os meridianos correspondentes no nível da totalidade do
corpo.
Nessa óptica, os dedos dos pés correspondem à parte cefálica do corpo; o
calcanhar, ao ânus.
Detalhando ainda mais essa óptica, o polegar do pé sozinho pode ser visto como
um pequeno pé.
(O "pequeno polegar" não iria contradizer as minhas palavras!)
Em belíssimos afrescos babilônicos, vê-se o guerreiro ajoelhado diante do rei antes
de ir para a batalha.
Está com um dos joelhos em terra, a planta do pé está voltada para o Céu, com
exceção do polegar.
O polegar repousa então sozinho na terra, como para dela receber, nesse nível
muito preciso de contato, o impulso vital de que o guerreiro necessita.
Esse ponto de contato é então "pontuado" pela terra; tem o nome de "Fonte que
jorra".
Conhece esse ponto de acupuntura o Mestre hindu (Shri Nisargadatta Maharadj)
que diz ao seu discípulo:
"Em Marathi, a palavra pé significa 'início do momento'... Busque o início absoluto,
o forro da fonte, o primeiro instante de consciência..."
Se o discípulo encontrar esse "primeiro instante absoluto", tomar-se-á o verdadeiro
"guerreiro" e poderá partir para a conquista do seu reino interior.
Quando o Homem, em motivações vaidosas que sobressaem no plano de um haver
não justo, despeja para o exterior de si mesmo as preciosas energias contidas no
pé, este último testemunha inchações da alma.
A linguagem popular ironiza a respeito dos chevilles enfies ["artelhos inchados"].
E numerosos incidentes no nível desse membro — fratura, entorse, etc. — não são
outra coisa que a somatização significativa de um erro profundo.
Toda doença é significativa.
A do pé denuncia uma falsa partida no caminho do crescimento.
A primeira partida de todo crescimento é realizada na infância.
O pé está ligado à infância, como vimos, e, especificamente, à infância intrauterina.
Além do mais, em grego, a palavra "criança", Pais —Paidos, está muito próxima da
palavra "pé", Pous — Podos.
Em hebraico, haveria uma perfeita homonímia e, portanto, uma relação íntima.
A vocação do Homem é determinada desde o ventre materno.
Ela está inscrita no Nome que ele recebe do Verbo criador.
Ela também está inscrita, enquanto possível realização, na qualidade da taça
materna, que aí o nidifica.
Pela mãe, desde a infância intrauterina, o Homem pode iniciar essa partida.
Banhando-se ainda nos abismos da sua gênese, o Homem faz a experiência de
Malkhuth.
Não podemos falar, contudo, em caminhada consciente.
Pelo contrário, o adulto, que passou do Haver ao Ser pela "Porta Estreita" do
caminho Hod-Netsah, e que assume conscientemente a plenitude de sua
encarnação, atinge a sephirah Tiphereth.
No esquema das Energias Divinas, Tiphereth (Coração-Beleza), reflexo de Kether e
Ain reúne e manifesta todas as possibilidades divinas em tantos Arquétipos quantas
são as sephiroth e suas antinomias.
Ela é o cubo, o centro da roda solar que liga o alto e o baixo, a esquerda e a direita
e tudo enlaça no fogo divino da harmonia principal.
No nível das energias humanas, aquele que entra nesse turbilhão é precipitado
segundo o vetor dos raios da roda micro e macrocósmica na experiência da maior
profundidade do Centro que reúne todas as possibilidades humanas.
Ele vive o casamento e a transposição de todas as antinomias para atingir a
experiência inefável do coração divino.
O Homem é, então, levado na maior profundeza dos abismos a Malkhuth antes de
ser elevado ao mais sublime.
Não quero antecipar, falando aqui dessa "descida aos lugares inferiores", a não ser
para dizer que somente nesse nível do que é vivido conscientemente é que o
Homem faz a experiência do Malkhuth.
Somente nesse nível ele esposa realmente Malkhuth , a Rainha Virgem e Mãe.
A grandeza dos mistérios de Israel, realizados por Cristo, consiste, essencialmente,
nisso: que o Homem deve esposar a Mãe das profundezas, de que toda mãe
biológica é símbolo, antes de ser elevado até o Pai.
Todo ser humano tem essa vocação.
Mas toda mulher, em particular, tem também a vocação de encarnar Mallchuth e de
ser matriz a cada momento da sua vida, pólo de mutação para si mesma, para os
seus e para a humanidade.
Recusar essa vocação é recusar-se a entrar no plano ontológico.
No mito grego, Édipo desposa a própria mãe.
2. Édipo ou o Pé Inchado
Quem é Édipo?
Seu nome significa "pé inchado".
É filho de Laio ("o Esquerdo") e neto de Labdaco ("o Coxo"), cujo avô é Cadmo,
fundador de Tebas.
Édipo é o rebento de uma família real.
Todo homem é de ontologia real.
Tebas é a cidade santa entre os gregos (o mesmo que Jerusalém entre os hebreus).
O homem que habita a sua cidade interior está consciente da sua coxeadura, da
sua sombra feminina, do seu lado esquerdo a desposar.
Mas o casal Laio-Jocasta é estéril.
Laio e Jocasta encontram-se em Delfos para ouvir do oráculo que terão um filho,
mas que esse filho matará o pai e desposará a mãe.
Édipo é essa criança.
No seu nascimento, Édipo é confiado a um dos servidores do palácio, que deverá
fazer com que a criança desapareça, tendo Laio decidido separar de si esse filho,
cujo destino ele nega que se realize (mas talvez possamos pensar o contrário:
"para que ele se realize"!).
A criança é, então, presa pelo calcanhar a uma árvore da floresta, em que fica
exposta às feras selvagens.
Ela é recolhida por pastores de Corinto, que, passando por lá, levados pela
compaixão, confiam-na ao rei e à rainha desse país.
Adotado por estes, Édipo cresce junto deles até o dia em que, não se sentindo da
sua raça, decide investigar o segredo do seu nascimento.
Parte para Delfos e fica sabendo, pelo oráculo, do destino fatal que lhe está
reservado.
Negando aquele a quem ele considera dramático, Édipo não retoma o caminho de
Corinto, onde moram os que ele crê serem os seus pais.
Toma a estrada de Tebas, a do seu destino real.
Tebas está então assolada por um monstro que guarda a sua entrada e devora
todos os que se apresentam à porta da cidade e não decifram o enigma que ele
lhes propõe.
Laio dirige-se para Delfos para consultar o divino Apoio a respeito dessa
calamidade, enquanto Édipo se aproxima de Tebas.
Os dois se cruzam num caminho ermo e estreito.
O carro do rei esmaga o pé de Édipo.
Furioso, Édipo volta-se contra o condutor e o mata.
Desconhecendo ainda o fato, Édipo matou o próprio pai.
Chega às portas de Tebas, onde fica sabendo que o rei morrera e que a rainha
Jocasta promete a coroa, e portanto a sua mão, àquele que libertar a cidade do
monstro.
Esse temível monstro é uma Esfinge.
Tetramorfo, ele tem pés de touro, corpo de leão, asas de águia e rosto de mulher.
Édipo decide enfrentá-la.
— Qual é o animal que, permanecendo o mesmo, caminha sobre quatro pés pela
manhã, sobre dois pés ao meio-dia e sobre três ao entardecer? — pergunta-lhe a
Esfinge.
— O Homem — responde Édipo, que, de ascendência real e obedecendo à sua
exigência profunda, deixa-a falar por ele.
Então a Esfinge desce do rochedo e dá o poder a Édipo, que entra triunfalmente em
Tebas.
Ele desposa a rainha Jocasta.
Desconhecendo ainda o fato, Édipo desposou a própria mãe.
Dela nascem-lhe quatro filhos: dois meninos, Etéocles e Polinice, e duas meninas,
Ismênia e Antígona.
Mas a alegria desses nascimentos fica ensombrecida por uma nova provação; a
cidade é palco de uma outra temível calamidade: a esterilidade.
Toda a cidade é atingida: as mulheres não têm mais filhos, os animais não têm
mais crias, a terra não dá mais frutos, as árvores são tomadas de sequidão.
Édipo decide investigar sem trégua a causa desse desastre: fica sabendo, então,
através do oráculo, que o desastre está ligado ao assassinato do rei Laio.
Toma-se, pois, essencial conhecer o autor do assassinato, já que é ele também o
da esterilidade.
Édipo continua a investigação e vai consultar o adivinho Tirésias, sábio ancião, cego
para o mundo exterior, mas vidente para o mundo interior.
Tirésias recusa-se a revelar a Édipo o terrível segredo.
Pressionado pelo rei, o adivinho acaba por dizer-lhe: Édipo é o assassino do rei
Laio, seu pai; Édipo desposara a rainha Jocasta, sua mãe.
A Édipo é dado conhecer.
Édipo arranca os olhos de carne, deixa Tabas e, guiado por Antígona, começa sua
longa viagem noturna para o Ático, enquanto seus dois filhos, Etéocles e Polinice,
partilham o trono e acabam por matar-se.
Em Colona, Édipo é detido pelas Erinéias, deusas de cabelos de serpentes e
guardiãs dos infernos.
São chamadas aí Eumênides, nome novo sob o qual apresentam a sua face
benevolente, fazendo entrar na morada dos deuses aqueles que são considerados
dignos disso.
Édipo é introduzido na morada dos deuses.
É importante notar, aqui, que o pé de Édipo, esmagado pela árvore da floresta, é
portador do ferimento original da Humanidade.
Édipo, filho de Eva (se se pode falar assim), está ferido no pé.
Ele já matou o Pai.
No mito, Laio e Jocasta são os pais ontológicos, o rei e a rainha arquetípicos.
Tabas, não nos esqueçamos, é a Jerusalém celeste grega.
Expulso do palácio, das suas normas ontológicas, Édipo sai do Éden.
O mito grego explica a reidentificação do Homem com o mundo animal após a
queda pela exposição de Édipo às feras selvagens.
Édipo toma-se a presa de suas próprias energias.
Mas, da mesma forma que, no mito bíblico, Adão é coberto por uma "túnica de
pele", aqui também Édipo é protegido pelos pastores de Corinto, que permitirão
que ele assuma suas energias, o mundo animal.
Esses pastores simbolizam os pais biológicos.
Criado na casa de seus pais de Corinto, Édipo é o Homem que cada um de nós é na
casa dos pais biológicos: na profundidade da essência real — pois ele é feito à
imagem de Deus e é chamado a entrar na Sua semelhança — e, em sua realidade
cotidiana, sujeito a energias — impulsos animais — que ele não começou a nomear,
a conhecer, a "desposar".
A dimensão ontológica é recoberta pela natureza animal existencial.
Vimos que muitas vezes os mitos exprimem essa dupla realidade do Homem sob o
símbolo da gemeidade: Qain e Abel, Esaú e Jacob, para falar apenas dos mais
célebres entre os hebreus; Castor e Pólux entre os gregos; outros, e
numerosíssimos, na África e alhures.
Os gêmeos sempre significam, para um, o Homem na sua ontologia, portador da
consciência do Yod e, para o outro, o Homem na sua natureza secundária (a do
esquecimento), obliteração da consciência (reidentificação com o animal!).
Esse outro é o Homem ferido no pé!
É assim que veremos Esaú e Jacob no seu nascimento: o primeiro segurando na
mão o pé do segundo, como que para manter aí as energias em fuga e para curar a
sua ferida.
No mito grego, que nos interessa aqui, as duas naturezas coexistem no Homem-
Édipo: a dimensão ontológica que todo homem deve encontrar (de que ele deve
lembrar-se!), para cumpri-la no sentido da semelhança divina, é simbolizada pela
árvore-verde da floresta.
A árvore é "o Homem verde"; o "Homem vermelho” o homem de túnica de pele, é
o próprio Édipo.
Há uma singular simetria entre os dois mitos: a Árvore verde que segura na mão
ou pés do Homem vermelho no momento do seu nascimento é a réplica de Jacob
que segura na mesma circunstância o calcanhar do irmão Esaú.
Estudaremos a aventura desses dois irmãos, mas a similitude dos dois mitos
permite-nos ler desde já, na história de Édipo, a promessa da cura desse herói cuja
a arvore verde segura o calcanhar, que é agora o Homem vermelho acima dos
animais selvagens da floresta (as suas energias), que assim não o devoram.
O homem verde, subjacente em Édipo, é aquele que vai dominar.
Muito depressa, ele arranca Édipo dos seus pais biológicos para levá-lo a propor a si
mesmo a única verdadeira questão do seu ser e da sua existência, questão que
será proposta pela Esfinge,
Mas, primeiramente, o oráculo consultado em Delfos — a consciência do Homem
verde — leva Édipo a diferenciar-se do Homem vermelho (a deixar Corinto) e a
dirigir-se para a cidade real de Tebas, onde reinam os seus pais ontológicos. O
Assassinato de Laio nada mais é do que a repetição formal da ruptura do homem
com as suas normas ontológicas; o ferimento no pé de Édipo, feito pelo carro real é
a repetição formal do ferimento no "Éden".
Agora, para encontrar nele a imagem do Pai, para ressuscitar o Pai na sua
consciência ferida, Édipo deve desposar a Mãe.
Somente desposando a Mãe, "voltando-se para a Adamah, "a terra-mãe de que foi
tirado” (Gn III: 19), é que Adão pode voltar à sua ontologia e realizar-se nas []
originais
Voltar à terra-mãe, a mãe real que governa com o rei a cidade santa interior, é
passar pela “Porta dos Homens".
Um guardião da soleira posta-se na entrada e devora aqueles que, entre os
habitantes, não podem responder ao seu enigma.
Irmão de todos os monstros devoradores dos mitos, esse guardião é, por sua vez,
devorado, isto é, integrado por aquele que apanha as energias-informações que ele
é.
Este torna-se o informado, o que conhece
Esse guardião somos nós mesmos numa dimensão espantosa, enquanto não nos
transformamos nele e para nos transformarmos nele, pois para conseguir isso ele
nos obriga a ir para nós mesmos, para esses esponsais com nós mesmos, com a
mãe interior.
Esses guardiões muitas vezes são mulheres terrificantes, pois é o feminino interior,
como vimos, que detém a força que somos chamados a desposar e que, em última
análise, detém o núcleo, o Nome.
A Esfinge tetramorfa é Ëdipo, cuja realização será simbolizada pelos quatro filhos
que lhe nascerão de Jocasta, quatro dimensões de si mesmo, de acordo com os
seus esponsais cada vez mais profundos consigo mesmo, com as energias da Mãe
“A Esfinge, de acordo com o que certas pessoas dizem, era uma filha bastarda de
Laio..."
Essa versão vem confirmar a leitura do mito, segundo a qual a Esfinge é "irmã de
Édipo"; em outras palavras, seu aspecto feminino ainda-não-realizado.
Ismênia ("força vigorosa") é o touro: primeira etapa da vida, ancoradouro em terra,
fecundidade prometida e promessa da coroa, simbolizada pelos chifres do animal.
Polinice ("numerosas vitórias") é o leão: segunda etapa da vida centrada numa
qualidade solar de amor verdadeiro, que possibilita todas as vitórias sobre si
mesmo (esponsais das energias).
Etéocles ("verdadeira chave") é a águia, guardiã da "Porta dos deuses", que detém
o poder das "chaves" (as nossas clavículas no nível do corpo).
Antígona ("antes do nascimento") é a volta às normas ontológicas, dimensão na
qual só o Homem pode cumprir o Nome que ele é.
Quando a Esfinge propõe a Êdipo a questão essencial, está bem claro que o Homem
verde em Édipo conhece a resposta:
— sobre quatro pés, pela manhã, está o Homem ainda identificado como animal,
aquele que não passou pela "Porta dos Homens";
— sobre dois pés, ao meio-dia, está o Homem no seu processo de verticalização e,
para isso, localizado entre o Céu e a Terra, inserido nos seus dois pólos nutridores,
o Pai e a Mãe, no seu meio-dia, o dia do Mi;
— sobre três pés, ao entardecer, está o Homem que atinge o seu núcleo, o seu
Nome.
Abrindo-o, ele libera a sua energia trinitárials e torna-se Um.
Ele ingressa na semelhança divina.
Só quem está ligado, pela dimensão do Homem verde, ao seu núcleo, ao seu
Nome, pode passar pela primeira Porta.
Édipo passa e desposa a Mãe real.
Em Tebas, só esse casal é fecundo.
Todos os outros, e a própria Natureza, são feridos de esterilidade.
Ë evidente que a esterilidade está ligada ao assassinato do Pai e que aquele que
"não se lembra" é estéril no sentido ontológico desse termo; pois só é fecundo
aquele que se põe no mundo, que nasce em campos de consciência diferentes, em
terras novas.
Aquele que é, pois, ferido de esterilidade em Tebas é aquele de que Édipo ainda
não se lembra.
É preciso que ele se torne totalmente o Homem verde e que, para isso, ele se
lembre do Pai...
Tirésias é a sua memória.
Cego para o mundo exterior, Tirésias — cujo olho interior está aberto — é a
consciência e a força masculina de Édipo.
É apenas na lembrança total daquilo que ele é que Édipo pode desposar totalmente
a Mãe e, portanto, realizar a sua descida ao mais profundo de si mesmo, a sua
descida aos infernos, em que ele encontrará o seu núcleo, o seu Nome.
A própria Jocasta desaparece nesse momento aos olhos do leitor, pois a dimensão
do seu feminino, que Édipo deve agora desposar, só existe na abertura de uma
outra visão, que é cegueira para nós..
Guiado por aquela em que ele se tomou, Antígona, portadora dessa visão das
profundezas, Édipo assume a sua descida aos infernos na mais densa noite.
Com Antígona ("antes do nascimento"), Édipo recobre a sua ontologia, o seu "céu
interior".
"Nessa operação, a águia devora o leão", dizem os alquimistas.
Antígona é quem garante a sepultura dos seus irmãos Polinice, o leão, e Etéocles, a
águia, pois ela os integra a todos.
Édipo apresenta-se, pois, em Corinto, "lugar elevado" — poderíamos dizer
antinomicamente: "o lugar mais profundo" — diante dos três guardiões da "Porta
dos deuses", os guardiões do Nome.
Três e Um.
Édipo passa.
Torna-se o seu Nome.
3. Aquiles ou o Pé Vulnerável
A nada se compara a cólera legendária do "ardente Aquiles", a não ser ao vaidoso
furor de Édipo transbordando no "caminho ermo".
Querendo tornar invulnerável e, portanto, imortal, o filho Aquiles, a ninfa Tétis
mergulha-o, na hora do nascimento, nas águas sagradas do Estige; uma única
parte do corpo da criança ficou de fora: o calcanhar, pelo qual Tétis o segura.
E Aquiles, o "dos pés ligeiros", continua, pelo calcanhar, filho da Terra, mortal.
Em relação ao resto do corpo, que se tomou de essência divina, seu calcanhar está
como que "ferido".
Por aí, esgotam-se todas as suas energias nas atividades guerreiras exteriores à
conquista de si mesmo.
Elas se gastam em cóleras, em paixões aparentemente nobres, em conquistas
grandiosas, mas em nenhum caso elas são investidas na construção de seu ser
divino, da sua qualidade "imortal".
No assédio a Tróia, Páris, guiado por Apoio, deus do Céu, lança uma flecha que fere
o fútil Aquiles no calcanhar.
O herói tem a coragem de retirar a flecha, mas pelo ferimento o sangue corre e se
esvaí...
O homem cai e morre.
O Homem vermelho morre.
Observemos que a flecha divina é raio divino.
O homem é visitado pelo Yod, que o obriga a morrer em sua dimensão de Homem
vermelho para ressuscitar Homem verde.
A história de Aquiles não comporta essa segunda parte.
O helenismo em geral leva a isso, mas não o desenvolve.
É o judeo-cristianismo que lhe dá toda a amplitude.
Ferido no calcanhar, no nascedouro das suas energias, a humanidade, em seus
diferentes mitos, é Eva, esposa de Adão, que, na expressão bíblica, dará à luz o
Yod, o Messias, e este dominará a Serpente: Colocarei inimizade entre ti e Isha, diz
Deus à serpente, entre a tua semente e a semente dela.
Ela te esmagará a cabeça, na qualidade de tu-cabeça e tu ferirás Isha na qualidade
de ela-calcanhar (Gn, III:15).
A dialética cabeça-calcanhar fica plenamente esclarecida, parece-me, depois deste
estudo.
A serpente designada aqui na qualidade de "cabeça" é o falso esposo, ao qual a
humanidade acaba de dar-se, ao qual ela acaba de abrir-se liberando-lhe a
totalidade das suas energias (símbolos do pé aberto ferido).
Enquanto o verdadeiro Esposo divino nutre a Humanidade a fim de que ela cresça e
se tome Esposa, a serpente come aquela cujo ferimento no calcanhar ela assim
aviva constantemente, a fim de extrair daí sua energia.
E quanto é grande e mortal o ferimento, como é abundante o sangue que escorre
dele!
E como a humanidade cega perde aí a sua alma!
E como cada um de nós, ignorante e, não obstante, prevenido, engolfa aí as suas
forças, encontrando a morte ao termo dessa sangria!
Ontologicamente, o Homem só pode conquistar o mundo exterior conquistando o
seu cosmos interior.
Só pode ser senhor da terra exterior, desposando a criação inteira na profundeza
do seu mistério, e não a violentando de fora para dentro, provocando o eriçamento
das "suas urzes e dos seus espinhos".
Desposar a mãe: isso é que é tornar-se deuses, e só então reconquistar o cosmos.
Tudo o mais é ativismo, perda de energia, sangria de morte!
O perigo é tanto mais sutil quanto mais nobre é o móvel, aparentemente útil
(nobreza e utilidade que resultam de nossa condição psíquica).
A maioria das obras chamadas "boas obras", executadas sem a consciência
espiritual, fazem parte dessa sangria!
Contudo, seria longo demais estender-me aqui a este respeito; voltarei a falar nisto
mais adiante.
Façamos antes, imediatamente, a pergunta essencial:
— Como pensar esta chaga?
— Como estancar essa sangria?
A história de Jacob nos colocará no caminho da cura.
Maria Madalena chora, molha com suas lágrimas os pés de Cristo, enxuga-os com
seus cabelos e unge-os com perfumes.
Aqui são introduzidos três novos símbolos: as lágrimas, o perfume e os cabelos,
cada um dos quais será objeto de um estudo a seu tempo.
Não é essa mesma mulher, cujo nome o Evangelho não revela, que, na noite da
paixão, derrama sobre a cabeça de Cristo um perfume de nardo puro, de grande
preço (Mc, XIV:3)?
Dos pés à cabeça, o corpo todo tornou-se perfume.
Continua
O Simbolismo do Corpo Humano – Parte 8
Malkhuth II
Os Joelhos
A única atitude de oração que, pelo que sei, é mencionada na Bíblia é esta:
Mas Elias subiu ao alto do Carmelo e, inclinando-se para a terra, pôs seu rosto
entre os joelhos (I Rs, XVIII:42).
Nesse texto, parece que Elias está ajoelhado e que seu rosto, passando entre os
joelhos, toca a terra.
A prece de Elias é ardente: ele pede chuva para a terra seca; uma passagem para a
fecundidade!
Essa postura de oração, que ainda é de uso entre os muçulmanos, talvez nos ajude
a descobrir o misterioso significado dos joelhos.
Na simbólica astrológica, os joelhos estão ligados ao signo de Capricórnio, signo da
Terra naquilo que a Terra tem de mais pesado, de mais concentrado, de mais
secretamente escondido em suas profundezas hibernais.
Da mesma forma que os pés correspondem a Malkhuth enquanto elemento água,
os joelhos correspondem a essa mesma sephirah enquanto elemento terra.
Nesse sentido, os pés estão ligados ao feto no ventre da mãe; os joelhos, à criança
e ao seu nascimento.
Num plano interior, os pés: ao ainda-não-realizado; os joelhos: ao realizado.
[O Livro do Génesis exprime o não-realizado pelo símbolo "água" ou "úmido", e o
realizado pelo símbolo "seco" ou "terra".]
As Pernas
Dos pés aos joelhos, as pernas simbolizam toda a força de realização do germe até
a sua maturidade, da sua concepção ao seu nascimento.
Se tomamos consciência de que o nosso estado, no momento do nosso nascimento,
é o de um novo germe na matriz cósmica, as pernas simbolizam, então, de um
lado, a força de crescimento da criança no ventre da mãe e, de outro, a força de
crescimento do Homem desde o nascimento à coroação.
Se as pernas são dadas ao Homem para que ele exerça a sua marcha sobre a Terra
exterior, elas são, em essência, a imagem daquelas que lhe permitirão percorrer as
suas terras interiores e que, para isso, se apoiarão sobre novos "pés", sobre novos
germes que reúnem as suas energias: os seus rins.
Força de realização do Homem, as pernas são identificadas com a sua libido e,
nesse mesmo sentido, com as pernas do cavalo.
Se a libido só é assediada no primeiro estágio — o do Haver — do Homem, ela é
essa hemorragia dramática que denuncia o mito na descrição do ferimento no pé.
É nesse sentido que o salmista clama: "Não é no vigor do cavalo que Deus se
compraz. Não é nas pernas do Homem que Ele coloca o seu prazer..."
(Sl, CXLVII: 10).
Agachada no inconsciente do Homem, a libido torna-se senhora e promove todas as
atividades do seu escravo, que ela leva à ruína.
A Ordem dos Cavaleiros ensinava os Homens a montar o seu próprio cavalo, a
tomar nas mãos as rédeas, a fim de que o animal se tornasse servidor e as pernas
obedecessem, então, a uma libido consciente, controlada, e sobretudo reorientada
para a justa realização.
O perfeito cavaleiro conduz o seu cavalo quase que exclusivamente com as pernas.
Faz corpo com ele, e o cavalo toma-se as pernas e a energia realizada do seu
senhor, ao passo que este permanece sendo a cabeça e o coração. (Figura 20)
Se a energia da libido fosse verdadeiramente realizada, o Homem, liberado das leis
do mundo da queda, tendo percorrido todos os seus, espaços interiores, não teria
mais necessidade do cavalo.
É por isso que Deus não coloca nele o Seu prazer, mas na realização daquilo que
ele simboliza.
Ë por isso, também, que o Homem que tem entre as pernas um cavalo é frágil:
suas estruturas interiores não estão em adequação com a força do corcel.
Nesse nível, ele poderá apenas domá-lo, mas não dominá-lo, e as forças
inconscientes do Homem correm o risco, a todo momento, de serem devolvidas de
novo ao animal.
No caso oposto, um ser que negasse a sua animalidade, a sua libido, que é a sua
força viva, como ocorre às vezes com o Homem totalmente celebralizado, seria
como que desprovido de pernas.
Mas seria então desprovido também de toda possibilidade de se realizar.
A escalada para a sephirah Yesod vai trazer-nos um esclarecimento mais preciso
sobre este vasto tema.
Continua
O Simbolismo do Corpo Humano – Parte 9
Yesod.
A sexualidade. A circuncisão
Yesod, nona sephirah divina, é a "base", o "fundamento".
Simboliza uma "realização divina" — se é que é possível usar essa expressão
inseparável do corpo da antinomia "movimento/não movimento".
Ela recebe as energias das oito primeiras sephiroth, focaliza-as, distribui-as e as
"faz florescer" na profusão múltipla e una de Malkhuth.
Yesod parece ser para Malkhuth o que o Áin-Soph é para Kether: as Grandes
Trevas em relação à Manifestação.
Tudo parece passar-se, segundo a tradição cabalista, como se Yesod fosse essa
Pedra de brilho de prata dourada que Ezequiel descreve, espécie de prisma através
do qual o Um-sem-segundo Se faz Segundo e Múltiplo, no esplendor da Criação
emanada perpetuamente da Sua Glória (Hod, sétima sephirah) e que retorna
perpetuamente a Eia.
No nível de Yesod, parece situar-se um dos centros da respiração divina: "pelo seu
Sopro-Verbo Deus cria e renova a face da Terra" (Sl, CIV: 30); pela Sua Inspiração,
Deus entra na sua essência; é o S'habbat.
O próprio princípio do ritmo está aí.
Tudo é respiração — Yesod é dela a morada puntiforme, de onde tudo se precipita
no esplendor dos Mundos, onde tudo vem rematar o Um já acabado, vem
aperfeiçoar o já Perfeito.
Fundamento dos mundos, ato eternamente criador, Yesod é a sexta das sephiroth
da Criação.
Ela corresponde ao sexto Dia da Gênese, o da criação do Homem que, pelo seu
verbo (à imagem do Verbo Divino), é criador.
Com a queda. o Homem desviou-se desse poder.
Tentemos compreender, então, o que se passa para ele na perspectiva da sua
reescalada daqui por diante tão comprometida!
No eixo da Coluna do Meio, cada sephirah é ícone de Ain , arquétipo divino que
não se pode conhecer, mas que se deixa conhecer no NOME, HaShem.
Cada um dos nossos nomes que participam do NOME inscreve-se nessa coluna, em
níveis de realização diferentes, que correspondem às sephiroth
Em Malkhuth, a pessoa de cada um de nós é esculpida no prenome que lhe é dado.
Ela encarna no "Ego", no "eu", em hebraico Ani , feito das três mesmas
letras-energias que o seu arquétipo Ain.
Mas, durante a infância, esse "eu" fica suficientemente indiferenciado, tanto do
próprio arquétipo, no qual ele se banha na sua vida fetal, assim como,
aproximadamente, durante os três primeiros meses após o seu nascimento
biológico, quanto daqueles que o arquétipo substitui pouco a pouco, os pais ou
qualquer autoridade paterna ou materna.
Em Yesod "Fundamento", que se pode traduzir também por "segredo do
Yod ", segredo do NOME, o adolescente entra em ressonância com o seu NOME
secreto.
Por trilhas tortuosas, sente o contato das suas futuras estruturas de adulto.
Começa, então, a descobrir sua personalidade, primeira expressão conhecida da
sua pessoa, que o leva a contestar, até mesmo a rejeitar, as muletas dos pais.
O sopro do Yod o aspira a altas ultrapassagens de si mesmo.
É a idade das maiores exaltações místicas, que se investem nas categorias de todas
as ordens: religiosas, patrióticas, políticas, artísticas, amorosas, etc., todas
eróticas.
É o nascimento do eros nesse nível.
Nesse momento, um grande perigo ameaça o adolescente, o da reidentificação de
si mesmo com o objeto da sua exaltação, que ele então diviniza, pois projeta
inconscientemente sobre ele HaShem, o NOME .
Aí se gera a fabricação das diferentes máscaras, por trás das quais o adolescente
se esconde de si mesmo e petrifica o seu "eu" de homem ilusório.
Ou ainda, é o seu "eu" não exaltado, imediatamente banalizado, que ele
confunde com , e que assume uma afetação totalmente esterilizante.
O Homem não pode mais tomar-se Verbo criador cósmico ao atingir Tiphereth, e
depois Kether, mas ele se autogera na repetição dos seus "eus" sucessivos e
infantis.
Em geral, ele investe, então, a quase totalidade das energias que recebe em Yesod
para fundar a sua descendência, o seu pequeno Reino (Malkhuth) sobre a Terra, de
que ele se faz rei.
É o rebaixamento do devir no nível da banalização.
É essencial notar que essa tomada de consciência com o "eu" — participante do
Shem — participa em profundidade da mesma realidade que a eclosão da
sexualidade nesse nível, o eros desse estágio.
É por isso que o Homem, na maior parte do tempo, fica totalmente fixado aí, seja
nas repressões dessa potência vital condenada às proibições, seja no
desfraldamento da sua quase divinização.
Toda sephirah da trilha do Meio — lugar do Mi, que une o Mi ao Ma — é expressão
de equilíbrio e de harmonia conquistados a partir das oposições essenciais.
Nesse sentido, Yesod é também chamado Tsedeq, "Justiça" (mais exatamente
"Justeza").
Yesod pede para ser vivido com justeza.
Melkitsedeq, apresentado no Gênesis como "rei da paz", e cujo nome significa "rei
de justiça", pede a Abraão o dízimo dos seus bens.
O dízimo, o décimo, é o símbolo do Yod, que assim deixa conhecer a sua exigência
profunda: urna parte das energias desse estágio deve ser consagrada à própria
construção do NOME.
Ela implica asceses, ocultamentos que concernem os dois aspectos eróticos da
realidade do Homem em Yesod: o seu "eu" e a sua sexualidade.
O rito da circuncisão, que estudamos adiante, esclarece esse grande tema.
Mas digamos agora que toda ascese que fosse esmagamento é falsa; toda recusa
de ascese é igualmente falsa.
A aquisição da liberdade não se faz na licença, estranha a todo arquétipo, mas na
"justeza", ícone do arquétipo.
Ícone do arquétipo é também Sod, o "segredo" (do latim secentere: "pôr de lado"),
que participa do "sagrado".
Yesod dá, então, nascimento às primeiras vértebras da coluna vertebral que são
chamadas "sagradas".
Toda função que diz respeito a esse nível é sagrada.
Que a sexualidade se encontre hoje dessacralizada na ilusória perspectiva da
realização do Homem, esse é o fim lógico quando se pensa na finalidade que lhe
creditavam os imperativos religiosos dos últimos séculos: a procriação!
Tentemos discernir, à luz do esquema, o sentido profundo da união dos corpos.
Reflexo de Kether que, no alto, introduz o Homem nos seus últimos esponsais,
Yesod é, embaixo, a entrada da câmara nupcial, santuário onde se realizam as
núpcias secretas do homem e da mulher.
Nos primeiros séculos da Igreja cristã, os casamentos eram celebrados à meia-
noite.
Do mesmo modo, no coração da noite, no coração do inverno interior, o Homem
une-se a si mesmo nas profundezas de Tiphereth.
Nas trevas do abismo, unir-se-á a Deus em Kether.
Toda a coluna do meio focaliza, nos seus diferentes estágios, o mistério do
encontro dos dois que se tornam um.
O prazer preside a essa inspiração universal nos seus diversos graus de
participação no último prazer que o Homem conhece ao entrar na deificação.
Só ela permanece depois do esgotamento dos corpos cujo espasmo Último a morte
assinala.
Toda morte que não introduz o Homem nessa divina união acorrenta-o ao recomeço
na inexorável lei da repetição dos ciclos.
Ela destrói o Homem na "Porta dos Homens", onde os habitantes de Tebas se
deixarão devorar pela Esfinge que a guarda, onde Edom (o Homem vermelho) é
engolido pelo Mar Vermelho, que afasta as suas águas para deixar passar Jacob
transformado em Israel.
Este último está, então, a caminho da "Terra Prometida", da conquista do Triângulo
Superior, da realização do "Homem verde".
Nessa perspectiva, o prazer no nível de Yesod, prazer físico e alegria do coração, é,
em si, bom e justo, é um ícone do Céu sobre a Terra.
Vamos mais longe: esse prazer em Yesod, reflexo do prazer contido em Kether,
também é um meio de atingir este último.
O Ocidente, impregnado de moralismo, quer queira quer não, há tantas gerações,
ainda não está pronto para viver essa proposta.
Que ele, pelo menos, tome consciência da autenticidade do prazer.
Privar-se dele por moralismo é tão falso quanto abusar dele por ignorância, e se
mostra igualmente destruidor e infantil.
O Cristianismo ocidental, há oito séculos, vem tendendo para uma identificação
com a moral.
Para justificar essa "obra da carne", cujo sentido profundo lhe escapava, ele fez do
filho a finalidade do casamento, impondo esse objetivo aos esposos.
É ai que precisamos ver a origem de uma grande parte dos falsos problemas, cuja
resolução mobiliza em nossos dias, tão inutilmente, tantas energias.
O ferimento no pé atualiza-se muito nesse nível...
O filho, ou o um nascido do dois, é a imagem, embaixo, do futuro dos esposos que
tendem para a unidade no alto.
Nesse sentido, ele também é sagrado.
A "Circuncisão"
De Israel nascerá o Verbo, o Logos, o Salvador.
Abraão — primeiro patriarca de Israel — é o seu "Fundamento" Yesod.
Ele é a semente de uma nova humanidade.
É nesse sentido que, segundo a promessa, "Abraão será o pai de uma grande
nação"; essa grande nação responde à ordem do Gênesis (I : 28): "Crescei e
multiplicai-vos."
Não se trata, absolutamente, de multiplicação segundo o número 7, que implicaria
a proliferação dos filhos ou esse "reino da quantidade", denunciado por René
Guénon.
Trata-se, primeiro, de crescer, isto é, de atingir o ponto mais alto da Árvore, a
verdadeira cabeça onde a seiva dá o seu fruto.
A humanidade conhecerá nesse plano somente a multiplicação dos frutos do seu
Ser e não do seu Haver, multiplicação inseparável da unidade atingida.
É então significativo constatar que essa promessa do fruto é feita a Abraão nos
termos de uma aliança que Deus faz com o patriarca e que exige, da parte de
Abraão, a circuncisão de todo filho varão nascido dele e da sua posteridade
(Gn, XVII).
A circuncisão não decorre da lei mosaica, nem de um código que se tomou
necessário pela imaturidade, pela infantilidade de um povo; ela é ontológica a esse
povo que nasce do seio de Abraão e cuja vocação é colocar no mundo o Salvador, o
Messias, o Verbo.
Israel, chamado à Semelhança divina, deve tornar-se verbo.
Quando Israel tiver colocado no mundo Aquele que os cristãos reconheceram como
o Verbo, um primeiro concílio reunirá os chefes da Igreja nascente para resolver o
problema que as separa: deve-se ou não circuncidar os cristãos?
E ficará decidido que a circuncisão não tem mais razão de ser praticada (At, XV): a
humanidade colocou no mundo o Verbo.
Mas Paulo insistirá em que, daí por diante, a circuncisão seja levada ao nível do
coração; depois, ao nível das orelhas (Rm, II: 29).
O apóstolo retoma, aqui, a ordem de transmitida pela boca do profeta
Jeremias:
"Circuncidai-vos para e retirai os prepúcios do vosso coração" (IV,4).
São outras etapas da escalada.
Nós as viveremos mais adiante.
Porque se trata justamente da escalada da seiva que é chamada para a fina ponta
da Árvore a fim de tomá-la fecunda.
"Crescei" ou "sede fecundos" é a mesma palavra em hebraico Perou , na qual
encontramos a raiz Par estudada anteriormente e encontrada em todos os degraus
da construção da Árvore, como que para balizar a subida da seiva.
Contudo, se ela for absorvida pelos ramos baixos, nunca poderá atingir o vértice.
Esse é o motivo pelo qual, em arboricultura, essa escalada da seiva preside a lei do
corte.
O corte é feito a fim de "colocar a árvore em condições de dar frutos".
Essa é a expressão consagrada para essa operação que verifica, assim, sua
justificativa em todos os planos.
Ela toma toda a profundidade da sua significação no plano que nos interessa.
Cortar os rebentos, os galhos baixos, é cortar toda causa de hemorragia.
É colmatar "a ferida", a fim de que cada homem em particular — com toda a
humanidade — dê os seus frutos, "se multiplique" nos seus frutos.
A força do homem passa, então, do órgão procriador ao órgão da palavra criadora.
E, para parafrasear os Padres gregos dos primeiros séculos que resumem o
mistério cristão nesta frase: "Deus Se fez homem para que o homem se torne
Deus", podemos retomar o prólogo do Evangelho de João e dizer: "O Verbo Se fez
carne para que a carne se torne Verbo."
"Verbificar" a carne: essa é a vocação criadora do Homem.
A circuncisão, que é um corte da carne no nível de Yesod para "que ela dê fruto", é
a lei que preside a essa verbificação.
A Brit Milah , ou "aliança da circuncisão", é uma cerimônia realizada em
três tempos.
Num primeiro tempo, chamado Orlah , o prepúcio é cortado.
Or , como estamos lembrados, é a "túnica de pele".
Orlah, corte dessa pele, é o despertar para a luz.
Com efeito, toda a cerimônia vai tender para a descoberta da glande, símbolo da
luz-verbo.
A pele (o prepúcio) é então jogada no "pó” para que a luz apareça.
Num segundo tempo, chamado Priah , as carnes são espalhadas, separadas,
para descobrir Basar , a "carne" original, que é princípio de vida.
Priah é a palavra que quer dizer "frutificação, fertilidade, fecundidade" —
Pri é o "fruto".
É feita da raiz Par , símbolo de fecundidade, e das duas letras sagradas Yah ,
que começam o Divino Tetragrama.
O desnudamento da carne original é o retomo às normas ontológicas do Homem, à
força da sua fecundidade que, nessa perspectiva, não diz respeito à procriação,
mas ao nascimento de Yah, a criança divina que revela o NOME e cujo símbolo é a
criança exterior.
A procriação ligada à queda, no tempo durante o qual temos de dar continuidade a
nós mesmos para atingir esse objetivo, é uma função secundária e preparatória
para esse objetivo.
Num terceiro tempo, chamado Mtsitsah
, que quer dizer "sucção", o Moël (o
circuncisor) suga o sangue a fim de descobrir Nephesh, a alma viva ligada ao
sangue.
Então, a criança toma-se novamente alma viva.
Aqui tocamos o grande mistério do sangue de que falaremos adiante
A Milah é o terceiro sacrifício de sangue ao qual Cristo-Verbo, fazendo-Se
circuncisão do mundo, põe fim.
Na palavra Mtsitsah
, o Nome Divino Yah
está no coração do verbo
Motsets, "sugar".
Em profundidade, o Moel aspira
.
Ele cospe fora todos os véus que separam a criança da sua alma profunda para
devolvê-la ao seu NOME.
Tradicionalmente, uma cadeira destinada a Elias é sempre preparada para essa
cerimônia, à qual o Profeta preside invisivelmente.
A lei nunca está separada do profetismo, sem o qual ela seria estéril.
Segundo a tradição, o papel de Elias é o de impedir que a luz seja recoberta de
novas e satânicas trevas; com esse propósito, Elias recobre ele próprio
invisivelmente a luz com um véu que só será tirado com a vinda do Messias.
Podemos constatar a que ponto se imbricam aqui os mistérios cristãos.
João Batista é esse "Elias que devia voltar" (Mt, XI: 14) e que, identificando-se com
o véu e falando de Cristo, diz:
"É preciso que ele cresça e eu diminua" (Jo, 111: 30).
Se o véu se apaga, é porque a luz veio a este mundo, o Messias está aí.
Tal como o prepúcio, João Batista, o homem de túnica de pele (ele está revestido
de pêlos de camelo), é repelido para que o Verbo apareça.
Ao sugar o sangue para que a alma se torne alma de vida (Nephesh Haia), o Moël
está sendo ícone do Pai, que aspira o sangue do Filho a fim de que o Espírito desça
ao mundo.
Milah (a circuncisão) é também a "Palavra de Yod ".
A circuncisão é também chamada Moul
, que é o "frente a frente".
O Homem começa a ser posto diante de si mesmo até que ele atinja, após as
sucessivas circuncisões que Jeremias e Paulo recomendam, o total frente a frente,
a descoberta do verdadeiro "Eu", o seu NOME.
Esse aspecto da circuncisão dá relevo ao NOME, a verdadeira e misteriosa "pessoa"
— no sentido de "hipostase" — que é cada um de nós.
A circuncisão é, sobretudo aqui, a do "eu".
Circuncidar o "eu", o ego, é levar o outro em conta, sem o que não se pode atingir
o verdadeiro Ani
, o NOME.
O "outro" é, primeiramente, nós mesmos no aspecto , no aspecto não-realizado
de nós mesmos.
O "outro" é, em seguida, todo ser exterior a nós mesmos e de que só podemos nos
aproximar no amor, pois ele é o pólo exterior de uma das nossas energias
interiores que participam de Ra , e que temos de esclarecer, de fazer tornar-se
Tov !
Mesmo a pessoa mais maldosa, a mais inimiga, reflete aquele que somos.
Pronunciada Réa , essa mesma palavra toma-se então "o amigo", o "próximo";
tenho vontade de dizer: somente aquele com quem podemos realizar-nos.
Circuncidar o "eu" é começar a lavrar a terra interior pela qual somos mais
responsáveis do que podemos imaginar.
Cristo diz, falando daquele que não faz esse trabalho:
"A este se tirará até mesmo o que ele não adquiriu" (Lc, XIX: 26)... a este se tirará
até mesmo o seu potencial!
A circuncisão é a base de toda aquisição.
É preciso talhar a árvore para que ela frutifique.
Continua
O Simbolismo do Corpo Humano – Parte 10
Figura 22
Esta última é inseparável da função renal, "orelha" desse estágio, a cujo respeito,
para comodidade de exposição, remeto ao estudo feito no capítulo seguinte.
A esse Hé inferior corresponde o triângulo sephirótico Yesod-Hod-Netsah, em que
nos detemos agora.
Nele, a "respiração genital" está tão bem ligada à formação da criança exterior
quanto à da criança interior, sendo uma — já o vimos — o símbolo da outra.
(É por isso, aliás, tenhamos consciência disso, que uma criança crescerá melhor, no
verdadeiro sentido do termo, na medida em que os seus pais fizerem crescer a sua
própria criança interior.)
A letra é "germe de vida".
É no sopro que Deus nos nomeia.
É em torno do NOME sagrado de cada um de nós que somos "criados", e depois
"feitos".
[Esses dois verbos, Bara (criar) e Assoh (fazer) são bem distintos na narrativa do
Gênesis.]
Se são precisos apenas nove meses para terminar a criança exterior, é preciso uma
vida inteira para fazer a criança interior e conduzi-la do seu estado embrionário
situado nesse nível (imagem) ao estado de Verbo criador ao qual é chamada
(semelhança).
Fundamentalmente, esse triângulo inferior corresponde, assim como os dois outros,
a espaços de mutação, que os chineses conhecem bem e que chamam "campos de
cinábrio".
"Segundo os taoátas, o seu despertar concorre para a busca da imortalidade."
Tenho dúvida de que a verdadeira palavra chinesa não corresponda antes à "busca
da eternidade", pois essa é a ontologia do Homem para os hebreus.
O primeiro campo que nos interessa, aqui, é o espaço de realização da fusão sexual
com o outro.
O campo de cinábrio torácico presidirá à fusão consigo mesmo.
O campo de cinábrio craniano presidirá à fusão com o universal no encontro com o
único.
Admirável mensagem que vem confirmar a dos hebreus!
No nível do campo de cinábrio pelviano — ou do nosso triângulo inferior —
processam-se os encontros com o outro, e o seu fruto bem concreto será o feto,
futuro filho do homem.
Mas, raramente, maternidade-paternidade correspondem a um "despertar" desse
centro.
Quando os taoístas falam do despertar, falam — como os hebreus — de uma nova
"escuta" a uma informação não mais exterior, mas interior, atraindo a abertura
para uma nova consciência.
Nesse mesmo estágio, se exerce uma outra ordem da sexualidade do adolescente:
seu encontro com o seu meio, a sua cultura, com tudo aquilo que concorre para
modelá-lo e que se dedica, no mais das vezes, a banalizá-lo.
Então, ele ou é destruído no seu "Eu" profundo, o seu Yod, ou é selvagemente
provado por esse mundo que não tolera a sua "diferença".
Esse meio exterior é a humanidade em geral, que se pode considerar como
obediente à mesma lei de crescimento que um homem.
Ora, ela não saiu ainda desse primeiro ventre, ainda não passou pela "Porta dos
Homens"; ela é incapaz, por si mesma, de fazer que um dos seus passe por ela.
Suas instituições — escolas, universidades, grupos sociais, partidos políticos de
todos os cantos ou comunidades que se querem muito religiosas — reduzem
qualquer aspiração dos que estão ligados aos seus esquemas asseguradores,
porque estão conformes com a lógica do seu primeiro campo de consciência
absoluta.
É apesar dela, muitas vezes contra ela, que aquele que deve nascer na "Porta dos
Homens" assume sua evolução até o fim.
Nesse estágio, ele faz a experiência de uma solidão desesperadora.
Sempre se está só para nascer e morrer; mas a solidão experimentada nos outros
estágios, por maior que ela seja, não está contudo tachada pela desesperança que
experimenta aquele que, ao partir, ignora tudo do caminho.
Nesse estágio, o adolescente toma consciência da escravidão que o prende, dos
seus medos, dos medos e escravidões do mundo, e do absurdo no qual ele e o
mundo giram.
Ele conhece o sofrimento, a doença e vê a morte chegar.
Dividido entre aquilo que pressente de infinito nele e aquilo a que o mundo o reduz,
terá força de perseverar para descobrir um sentido em tudo isso em algum lugar?
Descobrir o sentido: é isso o despertar.
Tentemos analisar à luz do "Corpo divino" as energias que tecem esse primeiro
campo, e, conhecendo-as, tentemos reuni-las para mobilizar o Yod com justeza e
constituir solidamente o embrião da criança interior.
Penetrando esse primeiro triângulo, no instante da puberdade, o adolescente
recebe as energias das três sephiroth Hod-Netsah-Yesod, nas quais podemos
esquematicamente descobrir as qualidades nascentes daquilo que será o fruto da
Árvore humana.
Esse fruto nos é descrito no Livro do Gênesis: é "bom para comer, desejável aos
olhos, e confortador para conseguir" (Gn, III: 6).
[Traduzo a palavra Nehemod ( ) não segundo a sua acepção corrente
banalizada, "gentil-gracioso", mas aproximando-a da sua etimologia que comporta
calor-energia-desejo e também reconforto-repouso.]
Esses três grandes arautos das ciências humanas de hoje reduzem a esse primeiro
triângulo os arquétipos que, inconscientemente, os inspiram, em lugar de convidar
a humanidade a viver conscientemente esses três componentes energéticos
essenciais à luz do seu respectivo arquétipo, e para atingir cada um deles.
No entanto, só na abertura para a Realidade arquetípica é que poderemos resolver
os grandes problemas que dividem o mundo e nos dividem.
Grandes impulsos de generosidade foram cantados pelo hino de tríades tais como
"Liberdade-Igualdade-Fraternidade".
Essas não são estranhas ao nosso objetivo, mas, reduzidas às categorias infantis
nas quais normalmente são vividas, nada mais fazem do que deslocar os problemas
sem resolvê-los, não sendo geradoras de nenhuma evolução.
Ora, trata-se de subir a escada de Jacob que a nossa coluna vertebral simboliza.
Trata-se de construir as nossas dez primeiras vértebras — cinco sagradas, cinco
lombares — por meio de trabalhos cujo mestre-de-obras buscamos
desesperadamente.
Esse mestre está em nós.
Qualquer mestre, no exterior, só o é verdadeiro se suscita essa dimensão em nós
mesmos.
E um dos meios de suscitá-lo é seguir os passos desses grandes construtores de
reinos interiores, que são os heróis dos nossos mitos.
Colocar nossos passos sobre os deles, nossos corações no coração deles e fazer
descer até aí a nossa inteligência é um caminho, aquele que a prodigiosa riqueza
dos nossos textos sagrados ou profanos nos propõe, pois só é "profano" nesse
legado do inconsciente coletivo o que toca os olhos profanos, como um sonho é
considerado "bobo" por quem não sabe decifrar a linguagem divina.
Todos os mitos acertam a sua conta nas três energias fundamentais Prazer-Posse-
Poder, cujos tentáculos se arrancam tão asperamente e temerosamente no mundo
do TER, reorientando-os para o estágio do SER.
Mas alguns dentre eles privilegiam, antes, um dos aspectos da nossa tríade
essencial.
Vamos, assim, abordar sucessivamente a história do dilúvio — comum a todas as
tradições — ocupando-nos, com Noé, da aquisição do prazer, à qual se opõe o
anárquico e o absurdo, objeto de todo desencantamento.
Depois, a história da passagem dos hebreus no Egito, em que, durante
quatrocentos e trinta anos, esse povo experimenta a mais amarga servidão numa
terra estranha.
Seremos, então, sacudidos nas dez contrações de um nascimento que suscitará
Moisés a viver a Páscoa, a "passagem", e a seguir o divino guia na conquista, na
posse da "terra prometida".
Enfim, uma história de labirinto, a do grego Teseu, que me parece a mais
esclarecedora, pelo negativo, já que a ignorância do herói o conduz à mais
lamentável das ilusões de poder.
Para encerrar este estudo, voltaremos a Jacob e combateremos com ele, durante
toda uma noite — a noite da nossa gestação —, para nascer para a luz.
Seu ferimento nas ancas será a linguagem fundamental dessa etapa.
Depois mergulharemos nas águas do batismo com Cristo, para emergir daquelas
nas quais essa parte matricial do nosso corpo nos retém, a fim de ir com Ele para o
batismo de fogo, no nível do coração.
Assim, realizaremos a primeira parte da nossa viagem interior, viagem ao centro da
nossa primeira terra.
1. 0 Dilúvio
O dilúvio é a própria imagem do caos do mundo, da sua anarquia.
"An-arche" (etimologicamente: "sem arquétipo") significa que o mundo de baixo
(as águas de baixo, Ma) é separado daquele de que ele procede (as águas de cima,
Mi) e ao qual está ontologicamente ligado, no segundo dia do Gênese, pelos
Shamaim, os "céus".
Os céus são, para o Homem, os diferentes campos de consciência ou campos
energéticos de que ele é constituído, mas que, sob o simbolismo das "águas", não
estão ainda realizados.
As energias que os compõem estão dentro de nós ("O Reino de Deus está dentro de
vós" — Lc, XVII: 21), e são elas que, separadas do mundo divino, não têm mais
nenhum sentido.
Elas são objeto da nossa vida passional e psíquica.
São devoradas, como vimos, por Satanás.
O dilúvio é uma impressionante descrição de cada um de nós no seu estado de
inconsciência total (do qual faz parte o que chamamos a "consciência moral" e isso,
cada vez mais perigosamente, pois ela é confundida com um despertar da
consciência).
Impressionante descrição também do estado atual da humanidade.
No tempo de Noé, "os homens multiplicavam-se sobre a Terra e só punham filhas
no mundo".
Com surpreendente concisão, a situação nos é dita: em relação à ordem divina
"crescei e multiplicai-vos", os homens esquecem de crescer e multiplicar-se no
exterior, no "reino da quantidade".
Só põem filhas no mundo, o que significa que nenhum ser — nem homem, nem
mulher — é masculino interiormente, isto é, nenhum se lembra dos seus céus
interiores, das suas energias; nenhum se lembra da sua esposa Isha, que ele tem
de conquistar para realizar-se.
Lembremos que, em hebraico, as palavras "masculino" e "lembrar-se" têm a
mesma raiz
, e que o "feminino" — Niqva — é um "buraco" que contém o
segredo do NOME.
Mas, sem obra masculina, é um buraco vazio.
E o ser humano é totalmente identificado com esse vazio que ele cumula de todos
os ativismos exteriores: essencialmente, ele come, bebe, dorme, reproduz-se,
trabalha (estudaremos a escravidão), no medo e no pânico de perder seus produtos
de consumo, medo que o mina.
Ele sofre, entrega-se como pasto a Satanás; esgotado, ele morre.
E eis o que acontece com Noé — Noah em hebraico —, nome cuja raiz está
ligada às noções de "conduzir" e "repouso", "consolação" também, e
"arrependimento".
Seu pai Lemekh o põe no mundo dizendo: "Este nos consolará das nossas fadigas e
do trabalho penoso das nossas mãos, vindo da Adamah que amaldiçoou"
(Gn, V:29).
A vocação de Noé está inscrita no seu nome: ele se arrepende, consola e conduz ao
repouso, que é o estado de "semelhança", o estado do casamento divino-humano.
Primícias do Messias que virá — diz, referindo-se a Noé, Santo Hilário de Poitiers
que, no seu Tratado dos mistérios, fala das profecias de Lemekh da seguinte
maneira: "que ela não pode ser aplicada plenamente ao Noé em questão... mas
àquele que disse: vinde a mim todos os que estais fatigados e injuriados e eu vos
consolarei. O meu jugo é doce e o meu fardo é leve".
Vê a corrupção do Homem.
Ele se arrepende de tê-lo feito (não criado — que é a obra de Elohim).
O "fazer" é o trabalho interior do Homem, ao qual preside na sua exigência de
crescimento.
Aqui, não se trata do arrependimento de Deus, mas do arrependimento do Homem
na qualidade de , que ele é em potencial.
diz a Noé: "Meu espírito não reinará no Homem para que ele permaneça
virgem" (Gn, VI: 3).
Não nos esqueçamos de que a vocação do Homem é essencialmente o casamento
consigo mesmo para pôr no mundo o que ele é, e entrar, então, no casamento
divino.
"Tanto quanto este (Adão) é carne", acrescenta .
E a palavra "carne" — Basar — é a carne-terra primordial que no seu centro — a
letra — contém o núcleo, o Shem, lugar do último casamento.
"120 anos" lhe são dados para atingi-lo.
" Se põe a trabalhar o coração do Homem".
Ele previne Noé do que vai acontecer.
Depois, o próprio Elohim intervém e diz a Noé: "Chegou a consumação de toda
carne" (Gn, VI: 13).
E essa palavra hebraica Qets, de valor 900 + 100 = 1000, que traduzo por
"consumação", não tem de fato nada a ver com um fim-anulação punitivo, mas
com o fim de um tempo de sono para entrar no da realização.
Qaïts é o "verão", a estação dos frutos, de que o Yod é o fruto essencial.
Com essa finalidade, Elohim ordena que Noé construa uma arca: os acontecimentos
que virão vão tomar conta de toda alma viva e obrigá-la a uma mutação que será
vivida segundo a evolução própria de cada uma.
A arca, a , Tebah em hebraico, é uma palavra de grande importância, pois
reúne as duas letras e , que formam a palavra Bath, a "filha", virgem de
Israel, e que encerram, com exceção do Aleph , a totalidade das letras do
alfabeto — simbolicamente, todas as energias criadas.
Pedindo-lhe que construísse a sua Tebah, Elohim convida Noé a "tomar conta" — a
tomar consciência — de todas as suas energias, isto é, a tomar consciência de si
mesmo enquanto Isha, continência energética que ele deverá penetrar para
desposá-la.
Noé reúne todas as suas energias: os animais, os seres vivos ( Haioth em
hebraico).
Esses "animais" constituem os campos energéticos das diferentes terras que Noé
deverá desposar na sua arca, isto é, em si mesmo.
Poderíamos dizer que Elohim faz Noé passar pela "Porta dos Homens",
introduzindo-o na arca.
Convidando-o a fazer o trabalho que estudaremos no estágio seguinte, e que já
abordamos na grande aventura de Édipo, Elohim conduz Noé para a "Porta dos
deuses".
A arca de Noé é o nosso ser interior.
Então. confirma a ordem de Elohim.
O corvo reveza-se com a pomba para tirar Noé dessa Terra realizada e fazê-lo
descer de novo para um novo campo de consciência, para um novo mar (ou mãe)
interior mais profundo ainda para desposar as suas energias, com que ele fará a
Terra seguinte, emergindo para uma luz ainda maior.
Fora, pouco a pouco, tudo seca...
O corvo e a pomba saem alternadamente para contar-nos essa Grande Obra, na
sua respectiva linguagem.
Ao final de 150 dias, tudo está seco (15 é o número sagrado de ‗Yah‘).
Corvo e pomba não voltam mais.
Dentro, tudo está realizado.
Noé sai da arca com a mulher, e cada um dos seus filhos com a sua.
Notemos bem que todos haviam entrado separados pelo sexo.
Os casamentos foram celebrados dentro da arca.
Quando Noé sai da arca, é o homem totalmente realizado, que pode, dessa vez,
comer o fruto da árvore do conhecimento, pois ele tornou-se o conhecimento: ele
atingiu a unidade.
A saída da arca é a passagem da "Porta dos deuses", além da qual o Homem colhe
a sephirah Daath, o conhecimento, de que voltaremos a falar quando estudarmos a
tiróide, chamada "pomo-de-adão".
Noé planta uma videira, bebe do seu vinho, embriaga-se e despe-se debaixo da sua
tenda.
Esses símbolos são os da embriaguez do conhecimento e do total desvendamento
dos mistérios, assim como da total realização da túnica de pele que se tomou luz.
Noé conhece prazer total e total posse do seu NOME, do qual os nomes dos seus
filhos são o componente triádico de uma unidade a que não se pode nomear.
Apenas Ham - ligado ,ao poder - não age de modo justo.
O filho caçula, Canaan, será o escravo dos seus irmãos.
Todo poder adquirido por magia (desvendamento dos mistérios fora do NOME) é de
Satanás — obra de indiscrição daquele que lança um olhar sobre o mistério que ele
não se tornou, e que vai liberá-lo do lado de fora.
Os judeus acusarão a Cristo por curar os doentes e expulsar os demônios pelo
poder de Belzebu (Mt, IX: 34).
A respeito dos seus dois outros filhos, Noé profetiza, dizendo: "Bendito seja ,
Deus de Shem. Que Deus estenda as posses de Jafé e que ele habite nas tendas de
Shem" (Gn, IX: 26).
Santo Hilário de Poitiers comenta essa passagem dizendo: "A estada de Jafé nas
tendas de Shem é a figura das nações que são introduzidas na fé."
Haveria muito a dizer sobre a vocação das nações e sobre o sentido da História.
Isso não é possível dentro do quadro deste estudo.
A montanha, no alto da qual a arca se detém, simboliza a elevação de Noé; mas o
seu nome precisa a realização da profecia de Lemekh.
Ararat é composto de ‗Aror‘, que é a "maldição", e da letra , de valor 9 (que em
aritmética leva de novo ao zero), e que significa o encerramento de um ciclo.
Ararat é a suspensão da maldição.
É por isso que o dilúvio é seguido imediatamente do estabelecimento de uma nova
aliança entre Deus e a Sua Criação.
"O arco na nuvem" é sinal disso.
A nuvem relaciona-se aqui muito especialmente com as trevas interiores.
O arco na nuvem é a Ponte restabelecida entre Deus e as terras interiores do
Homem, que a queda havia anulado.
E essa "ponte", o arco, é ‗Qeshet‘ ( ).
Ele é Ele-mesmo contido no Shin , no coração da palavra cuja primeira letra
Qof (de valor 100) é o pólo divino incriado, e cuja última letra Tav (de valor
400) é o pólo humano criado.
Os filhos de Noé têm como missão, agora, realizar o NOME HaShem no mundo.
Na visão cristã, é Cristo realizado na árvore de Jessé pelo povo hebreu.
Coextensivamente, toda a humanidade tem por vocação, agora, entrar no NOME —
"nas tendas de Shem" — e atingir essa dimensão.
O estudo que proponho pretende ser uma luzinha nesse caminho real.
A descrição do dilúvio entre os babilônios vem confirmar a da Torah hebraica.
Seu herói, Guilgamesh, parte para a conquista da imortalidade, indo encontrar no
Além seu ancestral Out-Napishtim, a respeito de quem ele sabe ter recobrado esse
estado imortal (diríamos: sua dimensão de eternidade).
Aqui, nos é contada a história de Out-Napishtim que, sob muitos aspectos, é a de
Noé: ‗Ea‘, deus das Águas, avisa Out-Napishtim que se prepare para o dilúvio:
Depois. vemos Out-Napishtim enviar, exatamente como Noé, primeiro uma pomba
que volta, depois uma andorinha que ainda volta, enfim um corvo que não volta
mais.
O barco pousou em terra e Out-Napishtim ofereceu um sacrifício aos deuses. Ea
abençoa-o e diz: "Até aqui Out-Napishtim era apenas um homem, mas, agora, que
Out-Napishtim e a sua mulher sejam Como deuses, semelhantes a Nós. Que
Out-Napishtim vá morar longe, na embocadura dos rios..."
Tal como Noé, saltando da arca com a mulher, Out-Napishtim sai do seu barco com
aquela que ele desposou.
Os dois heróis atingiram a unidade.
A embocadura do rio — volta à unidade primordial — o confirma.
No mito grego, Deucalion e Pyrrha, salvos do dilúvio, são o casal realizado.
Eles repovoam a Terra lançando pedras por sobre os ombros.
A "pedra" — ‗Even‘ ( ) em hebraico, palavra composta de Av ( ), o "pai", e de
Bem ( ), o "filho" — é o símbolo do Homem em que se deu o despertar da
consciência.
Ele participa da vida da "Pedra Angular", que é a Pessoa arquetípica do Filho, o
Messias
.
O Homem despertado, filho do Pai, conhece o caminho da unidade a reconquistar.
É pedra viva aquele cuja consciência nasceu.
Lançada por sobre os ombros dos heróis do dilúvio grego, essas pedras nasceram
daqueles que participaram da experiência da "Porta dos deuses".
Agora, elas são capazes de lembrar-se...
O dilúvio, ‗Maboul‘ em hebraico, é uma palavra que, passada para a nossa língua
vulgar, designa aquele cujos pensamentos são anárquicos, os raciocínios falsos.
Podemos ler essa palavra ‗Ma-Boul‘ e traduzir: "matriz do fruto", ou ainda ‗Be-Moul‘
e traduzir: "na circuncisão" ou "no face a face".
Com efeito, no total "face a face" conosco mesmos é que está o fruto.
O acontecimento difícil, que é o dilúvio, a provação, obriga-nos a descer a esse
"face a face", como vimos, seja qual for o nível em que sejamos apanhados para
fazer isso.
E esse "fazer" consiste em todas as circuncisões sucessivas, em todas as mortes e
ressurreições de nós mesmos para nós mesmos a fim de dar o nosso "fruto", o
nosso NOME.
O dilúvio é uma circuncisão cósmica, um corte da Árvore humana, para fazê-la
frutificar.
3. 0 Labirinto de Cnossos
As ciências modernas trazem à luz o fato fundamental de que a energia é
inseparável da informação.
A palavra informação, aliás, deve ser entendida em dois planos:
— o plano comum, em que compreendemos que uma informação é um
conhecimento dado;
— o plano mais sutil, em que descobrimos, por conhecimento dado, que a
informação tem um papel interior de formador.
Um conhecimento esculpe-nos por dentro, pois é energia.
Ele esculpe, pela mesma razão, o objeto conhecido.
Contraímos, no Ocidente, a esterilizante doença de aprisionar nossos
conhecimentos-informações no intelecto e de só fazer uso deles para engrossar
sempre mais os muros da nossa prisão e abrigar-nos aí numa segurança ilusória.
Vimos que não é nada disso e que o verdadeiro conhecimento é parto de nós
mesmos em terras cada vez mais profundas, cada uma das quais é feita de uma
soma energética informadora, até o último nascimento na terra mais profunda —
Basar — traduzida por "carne", portadora do nosso NOME.
Quando este é atingido e aberto, o núcleo do Shem libera a Energia
eo
Homem-Energia está totalmente informado.
Nosso NOME secreto contém a informação total.
O esquema desse caminho tal como nos é revelado na Torah hebraica é simples,
mas o caminho em si e o objetivo a atingir são infinitamente difíceis.
Parece que a fuga a essa dificuldade constitui o próprio objeto da queda: o Homem
colhe o fruto da árvore antes de tê-lo deixado crescer.
Ham, testemunha dos mistérios do fruto que se tornou o seu pai, e "desvendando-
os por fora" renova a falta.
Enfim, é ele, esse erro, que o Homem repete desde sempre, desdobrando sua
inteligência para adquirir o poder do fruto sem se dar ao trabalho de fazer crescer a
sua árvore nem de tornar-se o seu NOME.
Cada terra a conquistar está ligada a um tempo.
As ciências modernas também descobriram essa unidade espaço-tempo, que tece
cada plano de consciência.
Desde o estado da queda, o tempo é doloroso.
O poeta chora sobre os "espinhos" com os quais ele nos rasga.
Seus "ciclos" formam a raiz Dour em hebraico, raiz que encontramos
indefinidamente repetida depois da queda no símbolo da palavra Dardare, "sarça de
espinhos" que a terra não desposada "fará dai em diante germinar para Adão"
(Gn, 111: 18).
O Homem inconsciente nutre-se dela para efetuar a sua fatigante corrida rumo à
aquisição de terras exteriores e de um renome exterior, no lugar das terras
interiores e do NOME.
Dare-dare, através dos seus ilusórios paraísos, vai em direção da morte.
Ir rápido, até mesmo suprimir o tempo, é o ‗leitmotiv‘ inconsciente de uma
humanidade errante.
Vimos como o guia interior de Israel, o próprio , não contempla o seu eleito
com nenhuma diminuição no tempo.
Nove vezes seguidas "Ele endurece o coração do Faraó" para fazer recuar ainda a
hora da Páscoa, para a qual o povo não está preparado.
Dez vértebras precisam ser forjadas.
Não será sobre três ou quatro vértebras apenas que o corpo do adulto poderá
suster-se de pé.
Ele não adquirirá as bases da sua total verticalização senão na plena formação dos
dez primeiros níveis das suas estruturas.
Mas o Homem está impaciente.
Quando, nesse primeiro estágio, o labirinto não é percebido como matriz que
realiza as águas, mas vivido como abrigo que não conduz a nenhum nascimento,
torna-se então túmulo.
É local de perambulação.
O adolescente — e a adolescente humanidade de hoje — não se dão conta de que
aquele que não mergulha suas raízes no seu NOME, no seu Yod, não as mergulha
mais na terra.
Por mais materialista que ele se faça, ele ainda não está encarnado.
Aí está uma das causas mais profundas do florescimento das teorias
reencarnacionistas de hoje: o que não está encarnado projeta inconscientemente
sua "reencarnação" num outro tempo e fora de si, num novo corpo que ele reduz a
um "veículo" estranho ao seu NOME.
Encarnado de uma forma tão imperfeita, o adolescente — ou o homem que se julga
adulto — foge ainda um pouco mais do seu verdadeiro Eu, do seu Yod, tentando
escapar do labirinto, por sua própria natureza, tão insatisfatório.
Ocultador do caminho do seu NOME, o labirinto pode ainda, muito tarde na vida do
Homem, abrir-se para aquele que tem a humildade de se encontrar nisso e de ver a
sua alienação.
Mas eis que Dédalo e Ícaro deixam que a rainha Pasiphaé traga, do exterior, asas
artificiais.
Incapazes de sair do labirinto pela "Porta dos Homens", a da verdadeira
encarnação, sorvem nos seus valores inconscientes (a rainha Pasiphaé é o
arquétipo-mãe não-realizado neles) os meios técnicos da libertação.
A rainha fornece-lhes asas artificiais, que os dois homens colam nas costas com
cera e que irão permitir que saltem de pés juntos acima do quadrilátero da
encarnação para alçar vôo rumo às alturas da Sabedoria e da Inteligência, ou seja,
rumo às alturas da Coroa! Simples renovação do pecado de Adão no Éden!
"Não voes alto demais, aconselha então ao seu filho o sábio Dédalo, que os ardores
do Sol te queimarão as asas; não voes baixo demais, os vapores do mar te
aspirarão..."
Sublime mediocridade essa sabedoria!
Temível inteligência essa que vai tocar o fogo.
Nada pode deter o desejo de conquista inerente à própria ontologia do Homem:
Ícaro eleva-se tão alto que é brutalmente lançado às águas do mar.
Dédalo arrebenta-se na terra.
"Destruirei a sabedoria dos sábios e anularei a inteligência dos inteligentes", diz
(Is, XXIX: 14; Paulo, I Cor, I: 19).
O maior saber, as mais altas técnicas não passam de ilusões de libertação quando
não são acompanhadas do trabalho, cujo único laboratório é o quadrilátero.
As asas artificiais substituem então as que o Homem adquire aí, tornando-se Águia.
A cera das abelhas substitui a que ele secreta quando assume o seu trabalho solar.
A sabedoria inerente à maior parte das filosofias do mundo põe ordem no estágio
do labirinto, mas não ajuda a sair dele.
Ela põe a máscara do sábio sobre o rosto do tolo.
A sabedoria divina arranca qualquer máscara, mas ela é loucura aos olhos dos
homens.
É nesse sentido que o apóstolo Paulo diz:
"O Senhor conhece os pensamentos dos sábios, Ele sabe que eles são vãos. Que
ninguém se engane a si próprio. Se qualquer dentre vós pensa ser sábio segundo
este século, que se torne louco, a fim de tornar-se sábio, pois a sabedoria do
mundo é loucura diante de Deus" (I Cor, 3:18-20).
O mito grego já preludia a grande revelação judeo-cristã: Dédalo e ícaro são
arrancados da sua ilusão.
A proteção divina atua aqui como no Éden.
Naquilo em que observamos, o pecado do Éden se confirma como sendo uma
recusa de encarnação.
"Sabedoria e Inteligência segundo este século" pertencem a esse mundo
prometéico ou de Qaih (aí ainda os dois mitos se encontram e teremos que falar
deles novamente).
Elas são criadoras de civilizações cada vez mais finamente elaboradas, segundo
valores que não resistem ao guardião da soleira da primeira Porta.
As religiões fechadas na sabedoria de uma moral ou na sabedoria mais sutil de uma
mística desencarnada, as filosofias que reduzem inexoravelmente o Homem à sua
condição animal, bem como aquelas que a negam, as ciências que o levam pelo
jogo da inteligência a edificar apenas o mundo exterior, que proporciona uma
felicidade ilusória, estão prometidas a esse aniquilamento.
Teseu iça a vela negra.
Seu pai, o rei, morre.
Sua carreira, que pretende ser real, termina tragicamente.
Continua
O Simbolismo do Corpo Humano – Parte 11
Quando Cristo desce ao Jordão, Ele faz as águas voltarem para a fonte.
Mil anos antes do acontecimento histórico, o Salmista profetizava-o:
"Que tens tu, ó mar, que fugiste? E tu, Jordão, para retrocederes? Que
tendes vós, ó montes, que saltais como carneiros? E vós, colinas, para
saltar como cordeiros?" (Sl, CXIV: 5-7).
Qual o sentido dessa jubilação cósmica, senão que o mundo reencontra a
sua imagem, que o „Ma‟ reflete de novo o „Mi‟ e se rejubila por beijar em
seu espelho o rosto que lhe dá a beleza, a sua razão de ser?
Que quer dizer isso, senão que, de agora em diante, o Jordão se lançará no
Oceano Primordial, fonte de toda vida, Maím, em quem o „Ma‟ e o „Mi‟ se
enlaçam, como dois irmãos, numa reconciliação admirável?
E o que é verdadeiro para o mundo é verdadeiro para cada um de nós:
nossa coluna vertebral, como o Jordão, carreia energias condenadas à
morte desde que nasceram, no escoamento de inúteis hemorragias.
Que desperte em nós o germe divino, que a ferida se feche, que a corrente
retome e que todo o nosso ser, participando então do ritmo universal,
dance o júbilo do mundo transfigurado.
Descendo às águas do Jordão, Cristo desce ao não-realizado da
humanidade.
Essa imersão, „Tovel‟ em hebraico, é a movimentação do pólo
Tov da Arvore do Conhecimento.
Esse pólo "realizado-luz" só pode ser mobilizado na apreensão do não-
realizado, simbolizado pelas águas.
João, o Batista, é literalmente o "imersor".
O nome do rio, Jordão , pode ser lido -“Yared-Noum”: "descer-
peixe".
Cristo torna-Se peixe para descer às profundezas do não-realizado.
Pode-se ler Jordão ainda como - — Reish-Din: "Princípio do Rigor".
O rigor do caminho exige essa descida rude.
Mas a misericórdia divina está presente, e a voz do Pai se faz ouvir para dar
nome Aquele que o assume: "Seu Filho bem-amado".
Na sua imersão, Cristo refaz o caminho de Adão mergulhando no Sol-treva,
onde ele toma consciência do seu "lado-sombra", consciência do feminino
nele, que ele agora deve desposar para reencontrar suas energias e abrir o
seu núcleo.
Aquilo que Adão, interrompido pela Serpente, não realizou, Cristo vai
encarregar-se de fazê-lo.
Segundo Adão, Ele é o Vav do Arquétipo e liga os dois no
casamento treva-luz.
Vav cósmico, Ele liga o cosmos inteiro ao Yod, o criado ao Incriado: a
teofania do Pai e do Espírito Santo (sob a forma de pomba), que dá nome
ao Filho, confirma isso.
Chamado pelo Pai no mundo do „Mi‟, Cristo também é chamado pelos
homens no mundo do „Ma‟.
João, o Batista, o designa: "Este é o cordeiro de Deus" (Jo, I:29) e mais
adiante: "eu vos batizo com água, Ele vos salgará com fogo."
"É necessário que Ele cresça e que eu diminua."
O Homem de túnica de pele, prepúcio do Verbo, apaga-se, e Cristo-luz
aparece.
A circuncisão de Adão-humanidade está realizada.
a) O prazer do NOME
Ele é o encontro total, o dos esponsais divino-humanos.
Ao comer o fruto, entrando no prazer da embriaguez, Noé vive o pólo
oposto da anarquia, da situação de separação.
Aquele que derruba o muro de separação entra na ressonância do NOME;
ele ouve a ordem, o sentido, a ressonância de cada elemento do mundo
com aquele do qual ele procede no mundo do „Mi‟ e aquele para o qual ele
retorna.
O Homem que entra na ressonância do NOME, no Éden, sai do absurdo, no
sentido etimológico do termo "absurdo", "que vem da surdez"!
É, então, chamado a seguir Noé, a entrar na arca, a reunir todos os
"animais" das suas terras para realizar, no segredo da arca, suas núpcias
com eles.
Seu poder é Basar, a "carne" que Deus selou nas profundezas do feminino
no dia em que esse lado-sombra de Adão lhe é apresentado (Gn, II: 21).
A "profundeza" — Tahtenah — é uma forma construída de
Hatounah, que é o "casamento".
A carne é aquilo que é ontologicamente selado até o mais íntimo dos nossos
últimos esponsais (o que, simbolicamente, a mulher velada descobre, no
mais íntimo dos seus esponsais).
A carne é o selo do NOME na derradeira Terra, derradeira e original.
Ela é o próprio princípio da mais dinamizante e temível força do herói que
nos une ao Esposo divino e nos conduz a Ele.
O drama da queda desviou-nos do Esposo divino.
Para onde se dirige agora essa força terrível do herói?
Em que núpcias são investidas as energias que a compõem?
A que banquete está prometida a nossa carne?
A carne, cujo fruto foi aberto e comido, toma-se a energia desviada, saída
do caminho da semelhança, do caminho da realização.
Ela nutre Satanás através da nossa vida psíquica e passional.
Ela constrói as mais belas e as mais aterradoras civilizações exteriores.
Aterrador na vida passional, o herói não o é menos na banalidade da vida
psíquica cotidiana que, pouco a pouco, com uma perfídia, tanto mais
temível na medida em que está escondida e parece insignificante, arranca
as nossas forças da sua verdadeira finalidade.
Ele nos precipita para a morte.
Mas o Esposo divino ama a Sua esposa, mesmo no coração da sua mais
abjeta prostituição.
Ecônomo infiel, ele dá ao "herói em queda" qualidade de símbolo e poder
recondutor para Ele.
Ele dá ao amor humano qualidade de imagem do Encontro escatológico.
Nossa veste de servidão, túnica de pele tecida pela nossa carne desviada,
pode tornar-se veste de núpcias.
Quando o amor humano entra nessa perspectiva, quando nossas
construções humanas se orientam para esse futuro, eles abrem o caminho
dessa realização e tomam-se portadores de poder de reintegração da carne
na sua realidade ontológica e na sua vocação divina.
"Eis que a realização de toda carne chega", diz Deus a Noé, ordenando-lhe
que reúna todas as suas energias dentro da arca.
Veremos logo o papel que o pâncreas desempenha nessa Grande Obra de
reintegração e de realização.
O Homem que entra na' arca com os seus "animais" deixa a situação de
dilúvio, de anarquia, de desordem.
Deixa, pouco a pouco, a opressão das organizações que, até aqui,
substituíam a ordem, as das leis do mundo que substituíam as leis
ontológicas.
Deixa aquilo que lhe servia de muletas, necessárias por um tempo, mas que
logo se tomam prisão, depois túmulo, para quem não transpõe a Porta: leis
morais e religiosas de um primeiro nível desaparecem.
b) A posse do NOME
Só ela nos liberta de fato de toda escravidão.
Todas as nossas aquisições no mundo são uma compensação inconsciente e
asseguradora para essa única real conquista, que é também a da liberdade,
e cujo caminho é tão difícil de se tomar!
Se "o filho do Homem não tinha onde descansar a cabeça" (Mt, VIII: 20), os
homens têm tetos sobre as suas cabeças.
Ora, o homem que vem perguntar a Cristo como segui-lo é convidado a
desassegurar-se totalmente.
O caminho do NOME nos obriga muitas vezes a deixar a casa, os entes
queridos... mas há abrigos ainda mais sutis: são as cavernas recortadas dos
nossos conhecimentos e dos nossos pensamentos.
Os acúmulos daqueles e as satisfações que estes nos proporcionam
transformam-nos em estátuas: o caminho torna-se um impasse.
"Se me adorares, dar-te-ei todos esses reinos", diz Satanás a Jesus.
Os reinos exteriores não substituirão jamais o Reino interior, que só
podemos conseguir morrendo em cada plano de consciência interior
adquirido.
O saber acumulado pelo exterior, na competição cada vez mais mutilante
dos concursos, mata o Yod.
Hoje em dia, ele mata até mesmo o corpo.
Fico impressionada com o número de graves problemas de saúde, que de
uma hora para outra, ceifam os nossos laureados das Grandes Escolas.
Mais sutilmente esterilizante pode tornar-se "o conhecimento" — resultado
de pesquisas esotéricas ou integração de experiências vividas —, quando
ele é mantido ou conduzido no plano do TER.
Descobriremos, em seguida, a necessidade de nos despojarmos de qualquer
riqueza interior para ter acesso à infinita riqueza divina.
Pois toda verdade num plano não passa de mentira no plano da consciência
superior.
Não podemos possuir a Verdade.
Só podemos deixar que ela nos arrebate.
Mas, nessa etapa do nosso trabalho, o que interessa é ficar atento para.
não viver no Ter aquilo que se relaciona com o Ser.
É inútil estender-nos sobre todas as aquisições mais formais reivindicadas
por uma população que, frustrada de um mais SER, exige um mais TER.
As civilizações do mundo estão sem fôlego.
O Homem está às vésperas de compreender que o Evangelho é essa "Boa-
nova": "Procura primeiramente o Reino, o resto ser-te-ã dado como
acréscimo" (Mt, VI: 33 — Lc, XII: 31).
É uma experiência "insana" receber do Pai-Esposo tudo aquilo de que temos
necessidade na vida exterior e interior, logo que penetramos o Reino
interior.
Mas podemos verificá-la.
Um grande perigo consiste em libertar-se de uma muleta sem cuidar para
que outra mais sutil não venha substitui-la.
Só desviando-nos desse perigo é que podemos realmente fortalecer e fazer
aumentar nossa coluna vertebral, pois então o "Reino" se abre.
Jung exprime isso à sua maneira: "Quando todos os suportes e todas as
muletas estão quebradas e não existe nem mesmo a mínima segurança
prometendo ainda um abrigo em algum lugar, só então se apresenta a
possibilidade de fazer a experiência de um arquétipo que até então se tinha
mantido escondido no absurdo carregado de significação da anima."
Quando o Reino se abre, não temos mais medo de perder.
É-nos dado possuir tudo aquilo de que temos necessidade... até o NOME.
"Atira-te daqui para baixo", diz ainda Satanás a Jesus, a quem ele havia
conduzido ao topo do Templo de Jerusalém.
"Não sabes que os anjos te levarão nas suas mãos de medo que choques o
teu pé contra uma pedra?" (Mt, IV: 6).
c) O poder
O poder de ultrapassagem das leis que regem a relação pervertida do
homem e do cosmos pertence apenas ao homem que encontra as suas
normas ontológicas.
Adão volta-se então para a esposa-mãe, Adamah.
"Com o suor das tuas narinas, comerás o pão até que te voltes para a
Adamah, pois estas preso por ela" (Gn, III: 19).
Esse assunto imenso não pode ser reduzido a algumas linhas.
Terei oportunidade de falar novamente a respeito ao estudar o sangue.
Mostrarei, então, as relações mágicas que o Homem tenta instaurar para
conquistar o poder cósmico.
"No princípio", Adão (esposo da Adamah interior) era também chamado a
tornar-se esposo do cosmos exterior, que devia obedecer a ele e dar-lhe os
seus frutos.
Deixando de desposar sua terra interior — a Adamah —, que o drama da
queda lhe faz esquecer, a terra exterior torna-se hostil a ele; que só sente
por ela desejo de posse e domínio.
Suas relações com ela não são mais de amor, mas de força.
Nessa perspectiva, as virtudes humanas psíquicas que conseguem essa
conquista pertencem a categorias de vontade, de coragem, até mesmo de
heroísmo.
Vimos Teseu morrer de um heroísmo inútil.
O medo está vencido; porém, numa atitude de tensão que não realiza as
energias e, além disso, nos esvazia delas.
Essa atitude aviva cada dia mais o "ferimento no pé".
Voltar ao plano ontológico é abandonar a clava de couro de Teseu para
agarrar, com o verdadeiro herói, a Espada de ouro do NOME; é introduzir-se
no seu eixo para receber a sua força.
Se os mártires na arena não são devorados pelas bestas selvagens, é
porque "desposaram" as energias interiores que correspondem a esses
animais e porque estes respiram o seu perfume no Homem."
Se o lobo torna-se companheiro de São Francisco e a tigresa, de Santo
Isaac, é porque os homens integraram o seu lobo e o seu tigre interiores
respectivos para inverter suas energias devoradoras e levá-los à sua
função-luz.
Esse poder exige um abandono absoluto, um amor absoluto para uma
realização total.
Não há milagre; há apenas retorno e obediência às leis ontológicas.
Todas as técnicas humanas só cuidam de pôr ordem no mundo da queda, o
mundo do Homem, besta selvagem dentre as bestas selvagens.
As religiões vividas de fora, que não reintroduzem o Homem nas suas
normas ontológicas, mas que o bloqueiam em categorias morais que vão
até a exaltação desse falso heroísmo, são apenas comprometimentos com o
mundo da queda.
O evangelista Lucas relata uma impressionante parábola em que Cristo
termina dizendo: "Assim também tu, uma vez feito o teu dever, és um
servo inútil" (Lc, XVII: 10).
Devo tudo o que recebi dos tesouros do Cristianismo àquele que foi o meu
mestre espiritual e o meu mestre de teologia, Mons. Jean de Saint-Denys.
Um dia, querendo ilustrar o que acabava de me explicar a respeito da nítida
clivagem entre esses dois planos, um psíquico e o outro ontológico, ele me
disse: "Eu tinha catorze anos. Durante uma festa que reunia toda a minha
família na nossa casa, meu tio arquimandrita me tomou pelo braço e me
levou para dar uma volta na nossa propriedade. Na galeria dos ancestrais,
ele me convidou a observar com respeito esses homens, muitos dos quais
haviam sido heróis: `Olhe-os bem, meu menino, todos eram homens que
tinham o senso da honra.' Depois ele me levou até a capela. Lá, diante de
cada ícone, uma lampadazinha queimava. Os santos velavam. `Olhe-os
bem', disse-me meu tio, 'estes homens e estas mulheres não tinham o
senso da honra.'"
No momento em que Mons. Jean me disse isso, eu não compreendia bem o
que significava "não ter o senso da honra", eu que, por causa da minha
família, me sentia da raça em que não se brinca com esses valores!
Aprendi, aos poucos, a fechar os olhos para essas virtudes a fim de deixar
penetrar a informação interior que obriga ao gesto justo, mesmo quando
esse gesto não é compreendido entre os que nos cercam e mesmo que nos
arrisquemos a passar por lassos, velhacos, e até mesmo loucos!
Jung expressa isso dizendo que aquele que obedece à sua anima "pode
então suportar injúrias e louvores" (pois os louvores não são uma armadilha
menor!).
O Homem encontra, então, em si, a sua autoridade, no sentido etimológico
do termo (do latim augere: fazer crescer).
Só o Yod faz crescer.
Toda autoridade exterior exercida sobre os outros, ou recebida dos outros,
não passa de poder.
Um adulto — e entendo por adulto o ser que abandonou suas muletas — é o
autor dos seus atos.
Ele é o único responsável por isso.
A responsabilidade implica os esponsais (sponsa) consigo mesmo.
É por isso que não podemos encontrar no nível do quadrilátero nenhuma lei
que emane de um poder.
Aqui, só têm "autoridade" as leis que ditam as nossas estruturas
fundamentais, a ordem cósmica.
E essas leis só podem deixar-se descobrir pelo nosso ser irracional.
Expressas, elas são antinômicas.
É assim, por exemplo, que um Estado não poderá tender para a paz senão
no dia em que suas leis surgirem da realidade-axioma reconhecida pela
consciência coletiva, da igualdade de valor entre a pessoa única e a
sociedade inteira.
Os ideais políticos que dão a primazia a um ou a outro desses dois pólos —
pessoa ou coletividade — estão errados e impõem um poder, fonte — cedo
ou tarde — de conflito.
Essa realidade antropológica é a própria imagem do seu arquétipo divino
que o mistério teológico revela; os "dogmas" cristãos exprimem duas
Realidades antinômicas:
— a coexistência de duas naturezas, divina e humana, na Pessoa única de
Cristo;
— a Unidade Divina em Três Pessoas contendo, cada uma das Pessoas, a
plenitude da divindade.
Longe de serem "dogmáticas" no sentido embaraçoso que esse termo
tomou há um certo número de séculos no Ocidente, essas duas Realidades,
para aqueles que as vivem, são libertadoras.
Quando o termo dogmático designa verdades objetivadas ou uma
autoridade alienante, ele não é mais adequado.
A raiz grega dogma está ligada à de „doxa‟: "o que parece justo" e, muito
particularmente aqui, sinônimo de "louvor".
Mesmo as ciências físicas e matemáticas só podem basear-se em axiomas,
na autoridade de seus "dogmas", pois eles constituem a base necessária de
crescimento e são, portanto, liberantes.
Essas ciências ficaram por muito tempo no seu "primeiro estágio",
descobrindo pouco a pouco as leis imediatas da Natureza.
Ao propor o princípio da relatividade (que, como já disse antes, seria
chamado hoje de "o Absoluto que as aparências recobrem"), Einstein fez
que essas ciências passassem pela "Porta dos Homens".
Agora, elas trazem à luz as leis fundamentais "metalógicas", cuja realidade
só podem expressar por afirmações contraditórias: a luz será considerada
corpuscular e ondulatória ao mesmo tempo; o conhecimento nesse nível é,
ao mesmo tempo, subjetivo e objetivo; a energia é espírito e matéria...
Só as ciências humanas ainda ficam prisioneiras dos nossos dualismos
infantis, pois nossas estruturas psicológicas encontram gigantescas
resistências à sua evolução.
Elas não transpuseram a sua "Porta dos Homens".
Daí o temível hiato que se instalou há pouco entre o Homem e a sua obra,
entre o seu ser e as gestações do seu cérebro que ele é incapaz de
dominar.
A angústia moderna encontra aí uma das suas mais profundas raízes...
Esta é a razão pela qual, por mais paradoxal que isso possa parecer, as
ciências físicas nos obrigam, no momento atual, a passar pela nossa "Porta
dos Homens"; elas nos impelem a encontrar a nossa verdadeira dimensão,
na falta do que elas nos esmagarão.
Nesse sentido, parece-me importante insistir na passagem das virtudes
psíquicas para as virtudes espirituais, ontológicas, participando de uma
outra experiência.
Nessa época, Mons. Jean tinha nos deixado pelo Reino.
Uma noite, sonhei que ele voltava para visitar-nos, aos seus outros
discípulos e a mim.
Ele vinha ensinar-nos de novo.
Mas, num dado momento, ele nos fez compreender que devia partir
novamente; ele não pertencia mais a esta Terra e voltava para a sua.
Ele abraçou a todos, exceto a mim, e dirigiu-se para a porta de saída.
Eu estava aterrada, não compreendia e sofria.
De repente, ele voltou-se, veio na minha direção; eu estava ajoelhada
diante dele, sua estola estava pousada sobre a minha cabeça como no ritual
da penitência, e ele me disse: "Você, Annick, deve ser toda amor."
Depois foi embora.
Esse sonho é um dos que mais marcaram a minha vida.
É verdadeiramente a linguagem das profundezas: eu não tinha de receber
encorajamentos, louvores, calor afetivo do mestre, mas tinha de viver o
batismo de fogo.
Meus companheiros, encorajados pelo abraço do mestre, eram as minhas
energias não-realizadas, frágeis, que, em mim, alimentavam ainda o plano
psíquico e deviam ser purificadas pelo fogo.
Esse sonho fez-me também compreender um aspecto do mito de Qain e
Abel que ilustra, acredito, mais do que qualquer outro, essa clivagem entre
o plano psíquico inerente à queda e o plano ontológico ao qual a "Porta dos
Homens" dá novamente acesso, aquele em que se deve viver o batismo de
fogo.
Qain pode ser lido "ninho do Yod".
Ele é, no par dos dois irmãos, o Homem ontológico.
Abel é o nome da "vaidade", daquilo que é ilusório no sentido de que
não tem realidade em si.
Nesse quarto capítulo do Gênesis, Abel só é nomeado acompanhado do
qualificativo que lhe dá a sua realidade: "seu irmão".
Ele é o "Homem de “túnica de pele", que é apenas "acrescentado" a Qain o
que, aliás, o texto hebraico exprime.
Ele é guardião de um pequeno rebanho, ao passo que Qain é "lavrador da
Adamah"!
"No fim das águas" ou "dos dias" — as palavras "dia" e "água" têm um
plural comum , Yamim —, isto é, "na realização de uma primeira soma
de energias não-realizadas", Qaih e Abel levam uma oferenda a : a de
Abel (os primogênitos do seu rebanho) é "olhada", [Em hebraico, o verbo
"olhar" é feito pelas quatro letras do nome de Jesus, o Salvador. Em
filigrana: o primeiro olhar divino sobre o Homem depois da queda é o de
Jesus, o olhar do Salvador!] a de Qain (os primeiros frutos da Adamah) não
é olhada.
Num primeiro nível não compreendemos!
Qain não compreende!
"Isso o irrita; faz descair o seu semblante", diz o texto: o seu campo de
consciência não é verdadeiramente aquele ao qual o convida o seu Yod!
Isso é explicitamente dito por que, intervindo, filtra então
fundamentalmente esses níveis: "Por que o fogo da cólera sobe em ti e por
que cai o teu nível? Se estás no Tov (o pólo luz) é a ordem; mas, se não
estás no Tov, o pecado se agacha à tua porta; ele traz o seu desejo sobre
ti, e tu o dominas!" (Gn, IV: 6-7).
Cair num outro campo de consciência é identificar-se com o campo da
túnica de pele, é dar-se como alimento a Satanás (que deseja esse
festim!); é entrar, através de Abel, em luta com Satanás para dominá-lo.
Ser Tov é mudar o plano da consciência, é entrar na luz do acontecimento,
na inteligência do seu sentido.
É verdade que , no coração do nome de Qain, "ninho do Yod", exige a
nidificação e submete Qain à prova do amor.
Abel, homem de túnica de pele, homem fraco, cuja inteligência é escrava
dos impulsos animais, tem necessidade de ser encorajado, de ser "salvo".
Relevar a consciência, entrar na inteligência divina do acontecimento é
concordar em nada compreender no momento, é aceitar não se servir da
inteligência de forma masculina, mas deixá-la penetrar pouco a pouco pela
sabedoria divina que, ontologicamente, é masculina, ao passo que a nossa
inteligência ontológica é feminina.
Voltarei a este assunto.
Relevar a consciência é, portanto, renunciar a encontrar o sentido do
acontecimento no nível a que esse acontecimento não pertence.
É "largar mão", é introduzir-se no eixo do Tov, o que a palavra Seeth
exprime; eu a traduzo por "ordem", e não por "digno", como se faz
geralmente; mas esse termo introduz muitas vezes uma virtude psíquica.
"Digno" só é justo na medida em que explica a adequação na ordem
arquetípica, o que é mais bem explicado pela palavra "ordem".
A palavra Seeth pode ser lida: Sheth , (base) do Aleph !
Nessa atitude, a emoção — aqui a cólera do ciúme — não se eleva nem
mesmo no Homem.
Não há nenhum desperdício de energia.
Tudo é Tov!
Mas se o Homem rebaixa o seu campo de consciência, surge a emoção.
Quem será o seu senhor, o Homem ou o Satanás, que se agacha para
devorá-lo?
A luta começa.
No plano psíquico, a luta é extenuante !
Ora, a narrativa do mito mostra-nos Qain e Abel "no mesmo campo do seu
ser", isto é, no mesmo campo de consciência.
Qain foi então rebaixado ao plano psíquico!
Aí ele nem sequer luta.
O seu Yod, o seu Verbo, se volta imediatamente contra Abel.
Ele mata o irmão.
É com o seu Verbo que ele o mata.
É sempre com a nossa potencialidade-Verbo que matamos, seja ela a
espada, a faca ou qualquer das armas mais sofisticadas até a mais pérfida
delas: a língua.
"Que fizeste, voz?", pergunta Deus a Qain enquanto Verbo.
Aquele que não põe no mundo o Yod que é, destrói a si mesmo e destrói
tudo em torno de si.
"A Espada de dois gumes" ou vivifica ou mata.
Ela dá vida ao que passa pela "Porta dos Homens" e mata o outro.
Inverter as energias, passar do psíquico ao ontológico, ainda pode ser
vivenciado à luz da Árvore das Sephiroth.
Retomemos o esquema constituído para o estudo da direita e da esquerda.
O feminino passa para a direita depois da queda; o masculino passa para a
esquerda.
Só a cabeça, imagem do "céu anterior", não sofre a inversão.
Continua
O Simbolismo do Corpo Humano – Parte 12
Mas esse estágio só pode ser vivido se os rins se tornarem, de agora em diante,
fonte de toda a força.
1. Os Rins
Eles são os "pés" do segundo estágio do corpo, o do SER.
Como os pés, eles têm forma de germe.
A perfeição que se atingiu no final do primeiro triângulo-campo de cinábrio implicou
uma morte e levou aquele que a vivenciou a uma consciência nova, de tal modo
que os valores se inverteram.
Ele descobre que a sua força adquirida não passa de fragilidade em relação à força
que ele ainda tem de conquistar.
A perfeição num plano é apenas o germe do plano seguinte.
Os rins são símbolo de força e de fragilidade.
Eles se situam na articulação do primeiro triângulo de água e do novo estágio de
fogo sobre o qual se enxertará o bloco áudio vocal.
Eles participam da vida genital e estão na base da realização do Homem no seu
processo de geração de si mesmo para si mesmo, até o seu tornar-se Verbo.
Lembremos que, à imagem dos órgãos da audição, em relação aos da fonação, com
os quais são confundidos nas primeiras semanas da vida intrauterina, os rins só se
distinguem dos órgãos sexuais ao cabo desse mesmo lapso de tempo.
Mas os rins "se lembram" dos órgãos de procriação como a voz se lembrará muitas
vezes do ouvido e como o feto como um todo se lembrará da sua placenta.
Falarei novamente a esse respeito.
Ao passar pela água do rio Jaboq e ao combater o anjo, Jacob toma-se sangue do
corpo divino-humano que o seu novo nome Israel expressa.
Detido por " que quer fazê-lo morrer" no caminho que o leva ao Egito, Moisés
torna-se sangue.
A sua esposa lhe diz: "És para mim um esposo de sangue" (Ex, IV:25); pode então
corresponder à missão que recebeu de , de ir libertar o seu povo.
Passar pela "Porta dos Homens" é passar da água ao sangue e tornar-se Adão.
Depois da tríplice tentação no deserto, o que se convenciona chamar a "vida
pública" de Cristo — sua vida de homem — começa pela mudança da água em
vinho em Qanah da Galiléia.
Em Qanah, celebra-se um casamento, casamento exterior que depende do primeiro
"campo de cinábrio" (casamento com o outro).
Mas vimos que esse casamento é justo na medida em que se inscreve na dinâmica
dos dois outros casamentos, cujo laboratório são os dois outros campos de cinábrio,
os nossos triângulos: casamento consigo mesmo, depois casamento com o
universal.
Qanah é um nome importante.
Quer dizer "adquirir".
Em Qanah, com esse casamento, começa a aquisição total das energias ainda não
cumpridas, que a mulher desposada simboliza.
Qanah é o contraponto do assassinato que Qain comete ao matar seu
irmão Abel, derramando o seu sangue sobre a Terra.
Em profundidade, derrama todo o seu potencial energético — os seus "animais",
que Abel simboliza — e dá poder à Terra, o cosmos exterior.
Em Qanah, o vinho exterior chega a faltar.
Ele é necessário para o regozijo, símbolo do prazer na aquisição do NOME.
Todo casamento humano conhece esse enfado; todo desejo levado para um objeto
exterior conhece a sua extinção.
"Mulher, ainda não chegou a minha hora" (Jo, 11:4), responde Cristo à Sua mãe,
solicitado por Maria, então testemunha desse incidente.
A hora será aquela em que, na matriz do túmulo, Cristo celebrará os esponsais
universais, em que o Filho do Homem abrirá o seu núcleo; em que o Novo Adão,
derramando a água e o sangue da ferida para o lado, terá realizado completamente
o nome de Adão e se tomará , que Ele é e que Ele revelará então plenamente.
Mas, esperando, num primeiro momento, sob o símbolo do vinho, Cristo muda a
água em sangue.
O segundo momento se realizará na véspera da Sua morte, por ocasião da última
refeição, em que Ele mudará o vinho em Seu sangue.
Derramando Seu próprio sangue sobre a Terra, Cristo recoloca em circulação, no
corpo do Homem, o sangue de Abel.
Se, depois da tentação no deserto, Cristo muda a água em vinho, na Sua primeira
pregação Ele revela aos Seus discípulos: "Vós sois o sal da terra... sois a luz do
mundo" (Mt, V:13-14), a água do primeiro triângulo não é uma água insípida.
A água em que está mergulhada a criança no ventre da mãe, a água do soro
sangüíneo e a água do mar — todas de idêntica composição e, no fundo, a mesma
água do não-realizado — não são insípidas.
Elas têm em si o germe do realizado.
O "Ma" tem o germe do "Mi" no seu seio.
O sal é a criatura viva que permite que todo alimento dê o melhor do seu sabor.
Ele o glorifica.
É a imagem do germe do "Mi" no "Ma", das Águas do alto nas Aguas de baixo, que
não teriam nenhum sabor se não tivessem o germe divino, como o mundo não teria
nenhum sabor se não tivesse a promessa do Reino.
Melah — "sal", em hebraico — é formado das mesmas três letras que "pão",
Lehem .
Energias idênticas, não têm o pão e o sal o seu arquétipo na "carne divina", como o
prova Cristo, que muda o pão no Seu Corpo ao mesmo tempo que o vinho no Seu
Sangue?
Melah
é a movimentação de Moah (a medula) daquilo que há de mais
precioso no âmago do osso, daquilo que vai ser "sutilizado" — Maho - porque
realizado.
O sal é o motor da realização.
Trata-se de uma imensa reserva de energia, que parece estar ali inutilmente e que
elementos bioquímicos repressores impedem de invadir a parte Tov
.
Pode-se pensar que essa invasão, então patológica, possa fazer-se:
— seja por um impulso energético não habitual da parte Ra;
— seja por uma inibição dos elementos repressores;
— seja por um desmoronamento da parte Tov.
Espécie de Vav
que reúne Tov e Ra , esses elementos repressores
desempenham o papel que o Homem desempenha no coração da Arvore
A pele do Homem realizado não tem mais nada a ver com a do homem comum que
ele era; o seu fígado não é mais o mesmo, etc.
Dentro das limitações, o homem inteiro toma-se luz.
Falarei disso mais adiante.
2. O Osso e o Sangue
Tornar-se um homem, tomar-se Adão, passar da água ao sangue, é também
consolidar o seu "osso".
O trabalho dos esponsais consigo mesmo, que começa realmente nesse estágio, é o
dos esponsais com o feminino de cada um de nós, terra por terra (mãe por mãe!),
campo de consciência por campo de consciência, até o último campo, até a última
terra que desvenda o segredo do NOME.
Esse trabalho garante pouco a pouco a verticalização, o que implica a consolidação
da ossatura.
Em hebraico, "osso" é a palavra ‘Etsem’ -
forjada na raiz ‘Ets’ - , que é a
"árvore".
Desde a sephirah Yesod até a passagem pela "Porta dos Homens", o adolescente já
começou a construir a sua árvore.
As dez primeiras vértebras se ergueram, mas como elas são frágeis!
O sacrum — Atsé - — é a "árvore
em germe .
Estejamos bem conscientes de que aquele que passa pela "Porta", se bem que não
pertença mais ao estágio inferior, ainda tem aí por muito tempo um pé!
Fechar totalmente a "Porta" atrás de si é difícil!
O Homem recai às vezes dolorosamente nesse estágio e aí se encontra "rastejando
na poeira", pasto do falso esposo mais de uma vez!
Mas, diferentemente daquele que aí está totalmente identificado, ele retoma suas
informações interiores e se ergue novamente.
A coluna vertebral só se solidificará na sua base à medida que for sendo construída
nas doze vértebras dorsais que pontuam cada um dos nossos casamentos
interiores.
Houlyah , é uma "vértebra" ou o "anel" de uma cadeia ou uma "jóia".
O Nome de Yah o preside, "dança" nele !
A escalada da árvore é a própria dança da vida.
O Yod é a sua alma, que cura o homem "doente" .
É apenas na consciência da sua fraqueza que o "Eu" será forte; é na consciência da
sua doença que ele será curado.
Ora, "a força de uma corrente não é maior do que a do seu elo mais fraco", diz um
provérbio hindu!
O Homem será verificado até que a sua base esteja sólida.
As primeiras vértebras dorsais não se construirão sem essa verificação.
O Yod fortificar-se-á.
O "eu" descoberto em Yesod, e pouco a pouco afirmado, já conheceu talhos —
circuncisões — necessários e conhecerá outros até a descoberta do verdadeiro Eu,
a do NOME.
E o osso, a parte mais solidificada do corpo, leva mais do que qualquer outra à
consciência do Eu.
O termo Etsem , osso, quer dizer também "substância", "essência".
Ele se flexiona para explicar "eu mesmo, tu mesmo, si mesmo...", que se pode ler:
"meu osso, teu osso, seu osso...", o que pertence a cada um no mais íntimo.
Ele é o hipostasis grego, a "pessoa" enquanto ela é única, "ícone divino", criado no
"som" do Verbo, na ressonância do seu NOME.
Quando Adão, levado por Deus às suas profundezas, é posto face a face consigo
mesmo, com o seu "lado sombrio" a fim de que tome consciência do seu não-
realizado e dos esponsais que deve agora realizar, contemplando o seu feminino,
exclama: "Eis aquela que é osso dos meus ossos e carne da minha carne"
(Gn, II: 23).
E poderíamos traduzir: "Eis aquela que é a essência da minha essência..."
Quanto à "carne" — Basar - ontologicamente selada na maior profundeza de
Adão, ela é a sua última terra, aquela que, desposada, revelará o Segredo do
Shem, o NOME.
"Eis aquela que é a essência da minha essência; aquela que, desvendada, dará o
NOME", diz Adão.
Depois da queda, a carne toma um sentido completamente diferente.
Ontologicamente fonte do NOME, ela se toma fonte de Prazer-Posse-Poder, voltada
para o exterior do Homem que investe então as suas energias nas relações com o
mundo exterior.
A carne torna-se o objeto da vida psíquica, e a força erótica que rege as relações
exteriores.
Quando o "Verbo se faz carne" (Jo, 1:14), Ele vem fazer-Se vida psíquica e vida
psíquica do Homem, a fim de retomar dele as energias e reintroduzi-las na sua
vocação de Verbo, a do NOME.
O Verbo fez-Se carne, dizem os Padres, para "verbificar" a carne, devolvê-la à sua
ontologia.
Cristo reintroduz EROS na sua vocação ontológica.
Mas voltemos ao osso, Etsem - .
Suas três letras invertidas formam o verbo Matso - , "estar no meio" (Lugar do
Mi).
Cada osso do corpo é, mais ou menos, em miniatura, uma repetição da coluna
vertebral, lugar em que vêm inscrever-se, sob forma de bloqueios, todos as nossas
recusas de largar de mão, recusas de evoluir, recusas de amar; lugar em que vêm
também resolver-se os nossos conflitos e realizar-se os nossos casamentos
interiores, as nossas liberações.
Lugar em que, numa palavra, se o Yod não está sufocado, o "Ma" vai ao longo da
sua escada ao encontro do "Mi".
É por isso que, no coração do osso, a medula é um dos mais altos locais do corpo,
bem misteriosa também.
Entre os chineses, a medula faz parte das "entranhas curiosas" ou "maravilhosas",
que são encarregadas de garantir a perenidade, a volta ao UNO.
Ela é para eles "a essência, a quintessência".
Nós a encontramos ligada ao cérebro na sua função comum de “principio
ordenador, lei que deve ser difundida em todo o corpo e que a medula mais
particularmente transmite, seja ela óssea com o sangue ou espinal com o influxo
nervoso".
No segredo da medula óssea forma-se o glóbulo vermelho do sangue, parte mais
nobre da tríade glóbulos vermelhos-glóbulos brancos-plaquetas, que constitui a
célula sangüínea.
Todos sabem que, muito esquematicamente, as plaquetas garantem a hemostase
(coagulação); os glóbulos brancos, a defesa do organismo; e os glóbulos
vermelhos, a oxigenação.
O glóbulo vermelho reúne na sua função pneumatológica a do corpo inteiro.
Resume o nome de Adão -
que se pode ler: "Aleph no sangue (Dam)."
Ora, a letra perfila sempre o nome divino de Elohim
Adão é Elohim no sangue.
Isso confirma as Escrituras que insistem na comunhão íntima, para não dizer na
identificação, do "sopro" e do sangue.
O Homem é soprado no seu NOME desde a origem, a fim de que se torne Homem e
volte a Elohim, o Esposo.
Nossa vida é expiração divina no seu ser "criado", inspiração humano-divina Yod
no seu ser "feito" (ou a "fazer"!).
Entre esses dois momentos da nossa História — dos quais um vai do Aleph ao Yod,
o outro do Yod ao Aleph —, momentos que encerram o nosso percurso da imagem
à semelhança, inscrevem-se todas as nossas respirações, em todos os níveis, de
que esta é o arquétipo.
E o glóbulo vermelho do sangue carrega o seu mistério.
Dotado do sopro divino, é ele que impulsiona a energia.
Seria preciso, com Rudolph Steiner, inverter a proposta habitual e considerar o
sangue como propulsor de energia; o coração desposa então essa pulsão; purifica
pelo ar o que os rins purificam pela água.
Na perspectiva desse trabalho, coração e rins estão intimamente ligados.
Mas qual é a operação que, no nível da medula em que ele se forma, dá ao glóbulo
vermelho do sangue a sua energia pulsante?
Parece que ela se passa numa espécie de "apnéia", instante inapreensível entre a
expiração de Elohim e a inspiração do Homem.
Nesse instante, o glóbulo vermelho, formado no segredo da essência do ser, no do
seu "Eu" profundo, o seu NOME, esse glóbulo vermelho é abandonado por Elohim
para que HaShem — o NOME — aí resida.
Nesse shabbat, o glóbulo vermelho perde o seu núcleo.
É uma célula anucleada que é propulsionada no fluxo sangüíneo.
Que se toma esse núcleo?
Ninguém o sabe.
Núcleo da Energia, ele é , cujo recuo permite ao Yod correr no sangue e ao
Homem tomar-se o seu "Eu".
A "medula" — Moah - — tem como vocação "apagar" — Maho - — sutilizar
o mais sutil, para que o outro, inacabado, seja.
Toda a antropologia aí está, em resumo.
No dia do Shabbat, Elohim retira-se para que a Sua Criação, carregada do seu
recuo no NOME , seja lançada no grande jogo da vida.
A vida da Criação tem como vocação tomar-se .
Então ela será, cada um de nós será, desposada de Elohim aparecendo em Glória!
No âmago da medula do osso passa-se o maior mistério divino-humano.
É o recuo do núcleo do glóbulo vermelho do sangue que liberta as energias do
Yod, as energias do "Eu".
Recuo do Aleph, impulso do Yod, constituem a "bomba" arquetípica que determina
a do coração.
Mas é no mistério do sangue que Deus a atrai.
O amor consiste em retirar-se para que o ser amado seja!
O sangue encontra aí a sua fonte de força pulsante.
É apenas porque o o deixa que Adão
pode ir até o Tav , última letra do
alfabeto, última energia a integrar (em grego: do Alfa ao Ômega).
Integrar o Tav é tomar-se Damoth , que é a semelhança!
, até a semelhança que é Damoth
Sua vida a partir da imagem que Adão é
, se passa em tomo do sangue Dam no ritmo que impulsiona o ,
penetrando e retirando-se dele, imprimindo o Yod, a vida!
É em sete dias, o tempo de um Shabbat, que no coração da medula óssea o glóbulo
vermelho perde o seu núcleo.
"No embrião humano, até a quarta semana, só se encontram glóbulos vermelhos
com núcleo, pois os glóbulos sem núcleo o levam, se bem que no terceiro mês os
glóbulos com núcleo nada mais representam do que um terço ou um quarto da
massa total. No nascimento, o sangue não carrega mais do que glóbulos sem
núcleo."
3. O Umbigo e o Coração
Da "Porta dos Homens" à chamada "Porta dos deuses", o Homem sobe
simbolicamente doze espirais sucessivas, cada uma das quais na forma de
uma vértebra dorsal.
De um solstício a outro, rota solar que os doze meses do ano assinalam,
eles próprios inscritos nos doze signos do zodíaco, o Homem avança na
noite da sua História, consciente de viver, além da alternância dos dias e
das noites, dos verões e dos invernos, num outro plano, um longo inverno,
uma longa treva, berço da única primavera, matriz do único sol que
proporciona a Vida.
Encontrará ele esse sol?
Conhecerá essa primavera?
Mensageiro do seu futuro, o corpo do Homem carrega a sua promessa: no
coração mesmo do seu ser está o "plexo solar".
Essa certeza do sol que ele carrega no seu centro atravessou as eras mais
agnósticas, como as suas vértebras "sagradas" lhe garantiram sempre o
"segredo" contido em Yesod.
Na tradição hindu, a escalada da Kundalini nesse estágio abre o Chakra do
umbigo, depois o do coração.
O primeiro, desabrochado em dez pétalas, é o Omphalas, o Centro,
associado enquanto pólo ao "centro do Mundo", sendo o outro pólo
representado pelo coração cujo Chakra é descrito como uma flor-de-lótus
vermelha aberta em doze pétalas.
Esses dois centros, no nosso estudo, serão distinguidos, mas não
separados, unidos e não confundidos.
É, contudo, no nível do coração que se abre a flor-de-lótus cujas doze
pétalas exprimem o dodecanário especialmente ligado ao SER.
No centro do lótus está o seu coração chamado ainda cálice, décimo terceiro
elemento para o qual convergem os doze primeiros.
É para pôr no mundo o Deus-Homem, "Sol de Justiça", que as doze tribos
de Israel trabalham.
Em torno de Cristo, Ele próprio "Sol de Justiça", gravitam os doze
Apóstolos.
Mais tarde ainda, o Ocidente cristão em busca do Santo Graal, o cálice
precioso, constituirá um dos seus últimos mitos em tomo da Távola
Redonda que o rei Arthur e seus doze cavaleiros presidem.
Entre os gregos, Hércules (ou Heracles) sai vencedor dos doze trabalhos
aos quais o submete Euristeu, para realizar, enfim, ao desposar Onfale —
isto é, identificando-se com o Centro do seu ser —, a décima terceira
façanha que lhe dá acesso à morada dos deuses onde Hera o acolhe, deusa
cuja "semente" ele carregava em seu nome.
Seja qual for a qualidade do "centro", do Onfale, do coração da flor, é ele
esse coração, esse décimo terceiro elemento para o qual as doze pétalas, as
doze etapas do caminho, levam.
E esse décimo terceiro elemento, tal como o cubo da roda, ocupa o seu
centro.
Ele é a luz nas trevas, a imobilidade no movimento, o Invariável no coração
do variável, o Princípio na gênese e a vocação do múltiplo.
Aí queima o fogo que não consome.
Aí desperta o amor na "morada do rei" do Cântico dos Cânticos: "Abre-me,
minha irmã, minha amiga, minha pomba, minha perfeita... És bela, minha
amiga, como Thirtsa, agradável como Jerusalém... Sou negra mas sou bela,
filha de Jerusalém... Não prestes atenção na minha tez negra, foi o Sol que
me queimou... Não despertes, não despertes o amor antes que ela o
queira."
Trevas, Sol, fogo, amor, beleza, perfeição, chegamos — tudo no-lo indica —
ao nível da Árvore das Sephiroth, à sephirah Tiphereth.
O que é Tiphereth?
No esquema divino, é a plenitude da Harmonia divina.
Ela reúne todas as cores, todos os sons, todos os perfumes, todos os
ritmos, e os exalta na unidade perfeita do seu encontro.
Ela é a Moderação, ela é a Beleza.
Ela é o Sol divino, Roda suprema de que todos os raios reúnem trevas e luz
e cujo turbilhão tremendo faz explodir todas as possibilidades do Amor
divino.
O amor é dom e também receptividade.
Jato, irradiação infinita, ele é também vazio perfeito e total atração.
Centro de todo movimento, moderação de todo ritmo, ele não pode se fazer
conhecer senão quando se encobre e se limita, engastado nas jóias de toda
vida manifestada, que é a sua radiação e que ele atrai para si.
O homem que atinge esse grau de experiência é atraído, arrebatado no
fulminante turbilhão da roda solar; levado pela força centrípeta do seu
movimento, ele desce às entranhas da terra das suas profundezas, antes de
ser elevado à "morada dos deuses".
Desposar o divino, em Tiphereth, é desposar suas contradições, o alto e o
baixo, a direita e a esquerda, o antes e o depois; é desposar a Mãe contida
em Malkhuth para ser desposado pelo Pai escondido em Ain.
Encontramos aí a caminhada de Édipo, a dos heróis mitológicos, a de todos
os Santos da História.
Essa experiência obedece à respiração fundamental que marca o ritmo de
toda a vida: a cada inverno, a seiva da árvore desce às profundezas da
Terra, antes de subir, na primavera, na direção do Céu, para dar o seu
fruto.
É a lei maior da encarnação desposar a Terra para ser desposado pelo Céu.
É a volta às normas ontológicas de Adão desposar Adamah, a Terra-mãe
com que ele é moldado.
Nós o vimos ultrapassar suas normas e desposar a própria imagem.
Retomar o caminho de verdade é, antes, mergulhar nas profundezas de si
próprio, tornar-se pó novamente e desposar a Terra-virgem de que nascerá
"a criança divina".
Eis por que nosso corpo nos convida, no nível do plexo solar e, antes de
abordar o chakra do coração, a fazer a experiência do chakra umbilical.
O umbigo é o lugar de inserção do cordão umbilical que liga o feto à
placenta.
É o lugar do nosso primeiro ferimento formal, do nosso primeiro corte,
separação em relação a uma fonte de vida materna.
Esse cordão nutridor liga o feto àquele que se poderia chamar o seu irmão
gêmeo, já que a placenta, nascida do mesmo ovo que o feto, se separa dele
desde os primeiros instantes da vida.
Lembremo-nos de que a placenta é o símbolo do arquétipo que se alimenta.
E o símbolo de Elohim, Pai-Esposo, que nutre Adão, filha-esposa.
Desde a queda, a Humanidade prostituída ao falso esposo Satanás é por ele
devorada; mas, ontologicamente, continua a receber de Elohim todo o
alimento que constitui o seu ser e o informa a todo instante.
Simbolicamente, feto e placenta são filha e Pai chamados a encontrar os
arquétipos e tornar-se esposa-Esposo.
4. A Forja
a) O estômago
O estômago é o forno da forja, forno que é preciso alimentar com
combustíveis sadios.
Comer é integrar-se.
Ontologicamente, é integrar a totalidade das energias divinas que, sob o
símbolo da erva e do fruto — primícias do pão e do vinho — são, no Gênesis
(I: 29), o alimento de Adão.
Okhel - , "comer", é Elohim, que Se dá totalmente ( "tudo") a
Adão.
É, ainda, para o Homem, "agarrar" (tomar em mãos) Elohim .
Ontologicamente, pois, trata-se de comer a Deus, pois o Pai-Esposo
alimenta a esposa que, enriquecendo-se com as Suas energias, cresce
assim para o casamento.
Dentro dos limites do crescimento, ela é desposada por Deus e ingressa no
prazer arquetípico.
Ontologicamente, o alimento é da mesma natureza que o casamento, ele é
prazer.
Depois da queda, o Homem separado do Pai-Esposo dá-se ao falso esposo
Satanás, que o come e do qual ele se toma o prazer.
Devorado no seu cosmos interior, o homem nutre-se do cosmos exterior
que ele esgota.
Não há mais casamento.
Essa única função ontológica alimento-casamento conhece então a divisão,
e o Homem busca, a partir daí, o prazer, de um lado, através da
sexualidade e, de outro, através do alimento, prazer cujas íntimas
imbricações conhecemos em Psicologia.
b) O fogo
O fogo — Esh - — está no centro da aliança que, no seu princípio, une o
Incriado ao criado.
Bereshit , primeira palavra do Gênesis, de que a tradição hebraica
diz que contém toda a Torah, pode ser lida Brit-Esh - , "aliança de
fogo".
Esse fogo manifesta-se em todos os níveis da união e, de maneira muito
privilegiada, no coração da forja.
Ele é a própria vida.
Ele é o sopro do Verbo Criador, o Sopro do NOME, que é distribuído até o
plano corporal na combinação energética de cada um dos órgãos.
Na função que aqui nos interessa, nesse plano, os chineses o chamam de
Tríplice reaquecedor.
Tríplice órgão do único fogo divino, não tem materialidade concreta, pois é
o mistério presente, determinante, da Trindade que se faz ferreiro divino —
ou o "divino forneiro".
— O reaquecedor supra-umbilical transforma, elabora as energias.
Separa o puro do impuro ("o sutil do espesso", diz o Livro de Hermes na
tradição egípcia).
— O reaquecedor subumbilical, essencialmente, elimina os resíduos e
reserva aquilo que deve ser novamente purificado.
— O reaquecedor superior ou torácico distribui as energias purificadas,
assim como os sopros necessários aos dois outros reaquecedores.
"Puro e impuro" são aqui o "realizado e o não-realizado" das energias de
que somos tecidos.
Antes de serem chamadas para a prova de fogo, essas energias não-
realizadas parecem ser mantidas em reserva na adega, essa terra das
profundezas, que é o pâncreas.
Quando são purificadas, realizadas, elas são enceleiradas no fígado.
c) O fígado
O fígado — Caved - — é um termo que significa também "peso,
gravidade, riqueza, poder...".
Exprime essencialmente a sede do Poder divino, a da Sua Glória, tão
pesada que quando ela penetrava antigamente a tenda de reunião dos
hebreus no Sinai, nenhum homem podia entrar nesse recinto.
O fígado é o lugar do corpo onde se enceleira a luz do cumprido.
E, quando "tudo se cumpriu" (Jo, XIX: 30), o fígado toma-se pesado da
riqueza de e é a Ressurreição, a passagem pela "Porta dos deuses".
O termo Caved - tem como valor 20 + 2 + 4 = 26, que é o número
sagrado de .
De valor e potência iguais aos do NOME, o fígado é chamado a enriquecer-
se com o NOME, a adquirir a totalidade das suas energias.
e) O pâncreas
O nome do pâncreas sempre me foi colocado como uma interrogação.
Sua raiz grega, "toda carne", contém certamente a sua finalidade.
Qual é ela?
Nada mais confuso do que esse nome "carne".
Designando ora o corpo — a "obra de carne" mais desconsiderada não é
apresentada como sendo o próprio objeto da queda original? —, ora a alma
psíquica (e a linguagem pauliniana nesse sentido é difícil de escrutar), ele
sempre se opõe ao espírito ou à alma espiritual.
A carne ligada à matéria torna-se, então, o equivalente do mal que foge, ao
passo que o espírito, de que se esquece, neste contexto, que ele pode ser
diabólico, é o bem que deve ser buscado.
É evidente que essa acepção do termo carne é falsa.
Mas o que é exatamente?
Parecem-me indispensável voltar à sua origem.
Se questionamos a etimologia grega ‘kréas’, constatamos que a raiz é a
mesma que a de ‘kreïon’, o chefe soberano; de ‘kreïsson’, o melhor; de
‘kratos’, a força; enfim, de ‘kreïoussa’, a rainha.
Lembramo-nos de que a coluna feminina da Árvore das Sephiroth é
presidida por Binah, a Inteligência, chamada "mãe divina", e que ela
também é chamada coluna de Rigor ou de Força.
À luz grega, a "carne" parece estar ligada ao feminino no que há de
"melhor", de mais "forte" e de "real".
A tradição hebraica vem confirmar-nos isso.
Basar - é a "carne", termo que se poderia ler também - "no
principiado".
Mas é antes de tudo a letra que, no coração de , impõe-se aqui; ela é
tomada na raiz Bar - , a da "aliança de fogo" de que acabamos de falar:
o termo Bereshit - pode ser lido como o abraço das suas duas
primeiras letras desenvolvidas () e ().
Basar é, pois, o Shin do Bereshit.
A letra , pedra sagrada das profundezas, detém o Shem, o segredo do
NOME, a Força e a Realeza.
À luz hebraica, a "carne" — Basar — é o lugar do último casamento do
Homem consigo mesmo na sua realeza adquirida, casamento cujo último
fruto é HaShem, O NOME.
A tradição hebraica chama o esposo desse casamento interior Ish e a
sua esposa Isha .
Lembremos que, quando Deus descobre o feminino de Adão e que
Ele (-Elohim) "sela a carne na profundeza" (Gn, 11:21), o termo
profundeza — Tahtenah - — apresenta essencialmente a raiz
Hatounah - , que é a do "casamento".
A carne selada na profundeza, é, pois, a terra com a qual Adão deve
realizar a última aliança, cujo fruto é o Shem .
Á carne é o lugar da realização total, o lugar da união mais íntima com
Deus.
A carne, ontologicamente, é o acme do herói.
Depois da queda, essa potencialidade erótica é desvendada, deportada para
o exterior de Adão, motivando todas as suas relações — não mais consigo
mesmo nem com Deus nele —, mas com o mundo e todos os elementos do
mundo.
É então que a carne "derrubada" torna-se a vida psíquica, erótica e
passional do Homem.
Toma-se, nesse sentido, fonte de todos os males, mas carrega em si
também o germe de todas as curas, o poder de reconversão para a
realização do Homem.
É por isso que, no tempo de Noé, tempo protótipo daquele em que os
homens estão no ápice do esquecimento da sua ontologia, mas em que,
contudo, a consciência cresceu na linhagem dos Patriarcas até Noé, Deus
diz. "O fim de toda carne chegou diante de mim" (Gn, VI:13).
"Diante de mim" significa o nível ontológico.
"Toda carne" — Kol Basar - em hebraico — é o Pan-Kréas grego!
Eis que "toda carne" está mobilizada por Deus para entrar na sua
realização.
Nesse grande corpo humano — corpo cósmico — que é o de Adão, tudo o
que tem vida é posto à prova; poderíamos traduzir: o pâncreas adâmico é
mobilizado para que suas energias se cumpram.
Em todos nós, toda prova atinge o pâncreas para que ele libere uma soma
de energias necessárias para a realização proposta.
Essa será a nossa qualidade erótica — no verdadeiro sentido do termo,
indissociável do amor — que gerará a realização ou determinará o seu
contrário, a doença.
A confirmação mais alegre do que o termo carne — Basar - — nos
revela é trazida por esta outra palavra que tem a mesma raiz:
Basorah - , a "boa-nova", o "evangelho".
A boa-nova é verdadeiramente a certeza de que a realização da carne, na
sua totalidade, se tomou possível, e que toda doença é curada.
A João Batista que, no fundo da sua prisão, na véspera de ser decapitado,
se apresenta na porta da sua última terra e faz a experiência do não-
conhecimento absoluto, -Cristo faz saber que: "os cegos vêem, os
coxos andam, os leprosos são curados, os surdos ouvem, os mortos
ressuscitam e os pobres recebem a 'boa-nova' (Lc, VII: 22).
João Batista encontra-se então na profundeza das trevas da última terra, a
última carne.
Simbolicamente, está no coração do seu pâncreas, órgão que se abre para
ele para liberar a boa-nova, o seu Cristo interior.
O pâncreas secreta o suco indispensável à digestão, isto é, ao trabalho da
forja.
Fabrica a insulina, agente fundamental do metabolismo dos açúcares.
São os açúcares que parecem simbolizar as energias passando do não-
realizado no pâncreas para o realizado no fígado, cuja função glicogênica
concretiza a vocação mais sutil.
f) O baço
O pâncreas é inseparável do baço, órgão cujo nome em francês é dos mais
enigmáticos quanto à sua etimologia.
Mas o francês rate não é simplesmente o nome da fêmea do rato, símbolo
da Inteligência entre os hindus, ao passo que Ganesha, o elefante que
monta o rato, é símbolo de Sabedoria?
Símbolo também do inconsciente, isto é, de "toda carne" não-realizada.
Essas duas energias, Inteligência e Sabedoria, as mais altas da Árvore das
Sephiroth, as que abrem para Kether (a Coroa) formam a base do triângulo
superior; elas determinam a qualidade de cada uma das novas cabeças que,
simbolicamente, o Homem é chamado a colocar sobre os ombros.
De fato, à medida que Ish descer para Isha nas suas profundezas, novos
campos de consciência se abrirão no Homem.
Inteligência e Sabedoria, colocadas na Luz, implicam a liberação das
energias que correspondem a elas nas trevas e implicam a purificação pelo
fogo.
Nessas profundezas femininas que mantêm seladas força e realeza com o
NOME, o lugar que une o baço à inteligência nos convida a unir o pâncreas
à Sabedoria-elefante.
Na simbólica judeo-cristã, a "toda carne", ou a totalidade das energias, é
simbolizada pela Serpente-Sabedoria que Cristo identifica com a Arvore da
Cruz, a Árvore da dualidade, tomando-se pela sua morte-ressurreição
Árvore da Vida.
Nessa perspectiva, esses dois órgãos, baço e pâncreas, são os das
profundezas da terra, cuja linguagem alquímica também fala, enquanto ele
dá esta ordem: "Visita Interiora Terrae Rectificando Invenes Oris Lapidem.
O VITRIOLO ligado ao alento é o corpo das profundezas dos Infernos.
O Baço — ‘splen’ em grego — dá a palavra inglesa spleen, que designa um
estado muito depressivo, a hipocondria dos Antigos!
O que é curioso é que a raiz hebraica Retet - , que designa o terror, é
também um dos nomes do pâncreas.
Não há dúvida alguma de que esses dois órgãos indissociáveis estão ligados
à descida necessária aos Infernos que encobrem a aterradora energia do
NOME.
Todo ser que faz uma experiência de descida às profundezas — vamos
estudar essa experiência com a de Job — e que não tem a inteligência-
sabedoria daquilo que lhe acontece, encontra-se num estado que pode ir
até o terror, e mesmo até a morte.
O uso de certas técnicas corporais, o uso de certas drogas, são, nesse
sentido, "diabólicas"; elas separam em vez de reunificar o ser.
Elas reconduzem o erro de Adão ao Éden, levando-o até o seu núcleo antes
que ele tenha sido atingido.
Se esse estado patológico é analisado em categorias físicas e se a
inteligência que se coloca sobre ele não se refere aos valores ontológicos,
não se pode resolver o problema que ele apresenta.
Também a medicina psiquiátrica atual, ainda agnóstica, só pode usar a
quimioterapia para iludir o problema.
Só a antipsiquiatria parece atingir uma nova inteligência que não empurrou
ainda a porta do ontológico.
O baço só está ligado aos estados físicos porque o está ao ontológico.
Está ligado ao ontológico pelo mistério do sangue!
O baço é o cemitério dos glóbulos vermelhos.
Verdadeiro jazigo de ferro, conduz esse metal à sua purificação e à sua
transmutação em prata, nova inteligência do "eu" transmutado.
O papel dos glóbulos brancos, que ele também produz, contribui para essa
transformação.
Enfim, a fabricação da bilis a partir dos detritos sanguíneos entra no pacto
do "eu" novo e da sua nova visão.
O baço, sede da transmutação do "eu", não seria também o da regulação do
"eu"?
Ele retém nas suas malhas os glóbulos vermelhos, que são em número
demasiado grande no organismo, para redistribuí-los no tempo adequado.
A "pontada" talvez não seja estranha a um inchação do "eu".
A expressão popular francesa "courir comme un dératé" ("correr como um
doido [sem baço]") exprimiria bem esse "fora de medida", e mesmo a
perambulação de um ser que não tem mais referência-terra.
Mas vamos adiante.
g) O coração
O centro da forja não seria tanto o coração-órgão quanto aquele bem
conhecido da tradição cristã, o coração-centro, a cuja escuta o apóstolo
João Evangelista vem colocar-se.
O apóstolo da "boa-nova" — Basorah — aquele cuja festa é celebrada no
solstício de inverno, no nível da "Porta dos deuses", só pode ter ouvido
bater o coração do Pai.
Na noite da Santa Ceia, enquanto Cristo designa aquele que vai libertá-Lo,
João, o Bem-amado, depõe sua cabeça no peito d’Aquele que, porque ele O
ama, vai morrer.
Judas e João são a sombra e a luz.
Executam as ordens do Pai.
São os dois lados do coração-órgão: Judas, coração direito-sombra, João,
coração esquerdo-luz.
Os doze apóstolos são o aparelho circulatório completo.
Enviados a toda a Terra para ensinar e batizar as nações depois que o
Espírito Santo os tiver visitado, são o sangue novo, oxigenado, que os
pulmões carregaram de vida e que vai distribuir a vida na totalidade do
corpo.
Não é mais preciso confundir o coração-centro e o coração-órgão senão no
nível da divina Trindade dos mistérios cristãos, o Pai — a fonte de toda vida
— e Cristo — Filho do Pai, cercado dos seus doze apóstolos.
Entre esses últimos, Cristo é o décimo terceiro e o primeiro.
Ehad - , o número UM, tem como valor 1 + 8 + 4 = 13, da mesma
forma que Ahavah - 1 + 5 + 2 + 5, que é o "amor".
No coração das doze vértebras dorsais, Tiphereth (Beleza-Amor) é a
unidade infinita de Deus, a deslumbrante magnificência do Esposo que vem
ao encontro da Esposa, num último orgasmo, numa última morte.
[ver versos na página seguinte]
O amor penetra até a origem de tudo.
A morte partilha o berço do nascimento.
O amor que não aceita a morte não é o amor.
h) O pulmão
Se, para os chineses, o coração-órgão é o ministro de Estado que executa
as ordens do coração-centro-Imperador, o pulmão é o ministro de Estado
que liga o Estado à ordem celeste imperial.
Ele é, portanto, a própria ordem do coração-centro.
"Ele é mestre do alento. Pois a respiração é um vai-e-vem incessante entre
a ordem do mundo, que está disposta no centro de cada universo, de cada
ser, e a multiplicidade das suas regiões, estruturas, funções e
manifestações."
Assim, vários milênios antes que o Cristianismo a revelasse, a estrutura
trinitária divina era vivida pelos chineses na sua experiência do corpo.
— O coração-centro é a imagem do Pai, fonte de Tudo.
— O coração-órgão é imagem do Filho eternamente gerado pelo Pai, que
manifesta o Pai e executa as suas ordens (ministro de Estado que executa
as ordens do Imperador).
Jesus diz: "Não sabíeis que eu tenho que me ocupar das coisas do meu
Pai?" (Lc, 11:49), e ainda: "pois não falei de mim mesmo; mas o Pai que
me enviou, foi ele quem me prescreveu o que tenho de dizer e o que tenho
de fazer ouvir..." (Jo, XII:49).
— O pulmão é imagem do Espírito Santo que, desde toda a eternidade,
procede apenas do Pai, e que liga ao Pai (ministro de Estado que comunica
a ordem imperial).
Ele é "Senhor que dá a vida".
Ele preenche todo o Universo.
Antes de morrer, Cristo diz aos seus apóstolos: "Saí do Pai e vim ao mundo;
outra vez deixo o mundo e vou para o Pai" (Jo, XVI:28).
"Mas o Espírito Santo que procede do Pai e que meu Pai enviará em meu
NOME vos ensinará todas as coisas..." (Jo, XIV e XV:26).
À imagem trinitária, toda a Criação respira indo do um ao múltiplo e do
múltiplo ao um.
E a própria Criação, na ordem do Gênesis, é a expiração divina de que o
Shabbat é a apnéia antes que, numa inspiração, a Criação se realize.
Bara-shit-bara, são essas as primeiras palavras do Gênesis: "cria, se retira,
cria Elohim" — Luz-Treva-Luz... o ritmo de dois tempos é iniciado:
expiração-inspiração-expiração...
Tudo respira a partir da respiração divina arquetípica que nos é revelada
aqui e que gera e dá ritmo à respiração cósmica.
É o Espírito de Deus, o Rouah Elohim, etimologicamente o "Alento" de Deus,
que penetra e fecunda as águas originais, fazendo-as explodir na
multiplicidade dos mundos criados antes que Ele os apanhe para fazê-los
expirar até a sua reintegração na unidade primordial.
Expiração-Inspiração, tudo respira.
E o Homem, que recapitula todos esses mundos, respira.
Ele respira por todos os poros da sua pele.
Estudamos os rins como centro da sua respiração, no sentido de que eles
distribuem uma parte do sopro naquilo que chamei "sua respiração genital"
(a que preside à procriação e faz a criança) e, a outra parte, na respiração
da forja (a que preside à criação e conduz o Homem ao seu nascimento-
Verbo).
Adão, "o Homem vermelho" — Arvore vermelha, diversifica-se em árvore
urogenital e árvore pulmonar.
Esta última prepara já a "Árvore verde" no bailado que dança com a sua
representação simbólica no nível da troca ferro-magnésio ou oxigênio-
carbono.
A árvore pulmonar leva em hebraico o nome de Réa - , palavra que,
pronunciada Roé, é o verbo "ver".
Essa palavra poderia ser lida: a luz no alento .
Seu arquétipo é Rouah Elohim, sopro de Deus , cujo nome é uma
diversificação do de luz. [Quando o Espírito divino faz-se Princípio que
conduz o Homem à barreira-prova , e quando o Homem passa por ela, o
Espírito torna-se Princípio que faz o Homem participar de Elohim: é a
palavra , a luz.]
Eu seria tentada a dizer que, se os nossos rins ouvem, nossos pulmões
vêem.
Saindo do Éden, o Homem ainda ouve, mas não vê mais.
Ele se desliga da respiração arquetípica que é simbolizada pelo "vai-e-vem
de -Elohim no jardim".
Logo ele não a ouvirá mais.
Voltando ao Éden, na ressonância do NOME, o Homem primeiro ouve,
depois vê.
— A primeira parte da vida, a que está ligada à respiração urogenital, tem
por eixo a escuta.
— A segunda, que está ligada à árvore pulmonar, tem por eixo a visão.
É por isso que a respiração toma raízes nos rins e até nas profundezas do
pélvis, pois ela não cessa de encarregar-se da função de escuta para a sua
total realização-luz.
O que ouvem e o que vêem esses rins-pulmões, se não HaShem,
o NOME cujos dois ; (os dois "alentos"), no nível do nosso corpo, são
os dois rins e os dois pulmões que prolongam as mãos?
A Árvore Pulmonar
"O pulmão é Senhor do alento."
"É o ministro que liga o Estado à celeste Ordem imperial."
(Foto Bruneau/Fotogram.)
Continua
O Simbolismo do Corpo Humano – Parte 13
Mas eis que Adão cresceu; sua consciência revigorou-se, apesar do drama
da queda, pois a "inimizade está estabelecida".
E Job vive a sua Páscoa; nele, faz Adão sair da sua terra de escravidão.
Isso está expresso pela primeira provação que quebranta Job no nível do
HAVER: ele perde todos os seus bens.
— "É desinteressadamente que Job teme a Elohim?" — pergunta Satanás a
- "Estende a tua mão, toca em tudo o que lhe pertence, e tenho a
certeza de que ele te lançará maldições em rosto."
— "Pois bem, responde , tudo o que ele tem está na tua mão, mas não
estendas tua mão contra ele" (Jó, I: 9-12).
Job vai, de pele em pele, até o fim das suas terras interiores, isto é, de
campos de consciência para sempre novos campos de consciência.
Aor , a "pele" de que Adão é revestido depois da queda, é o
ensombramento da sua consciência reduzida ao total não-realizado,
confundida com um feminino de que ele mesmo deixou de ter lembrança.
Lembremos que a mesma palavra "pele" — Aor — pronunciada Iver,
significa "cego" em hebraico.
Adão é reduzido ao que ele era, não só antes que Deus lhe revele o seu
feminino, mas antes mesmo de nomear as energias — os animais — da sua
primeira terra interior.
Os três amigos que o visitam são três aspectos dele mesmo nos
nascimentos que ele assume e para os quais ele entra em dores.
Eles são três "cabeças" de mais conhecimento, de acordo com os seus
esponsais consigo mesmo, esponsais que são a penetração das suas trevas,
das suas terras interiores, do seu feminino, da sua mãe-esposa...
Como Édipo, ele começa a sua grande viagem noturna.
Mas, em Job, a linguagem é mais alquímica: atingido por uma "úlcera
maligna da planta dos pés ao alto da cabeça...", Job, em seu leito de dor,
conhece a fase da Grande Obra chamada de "putrefação".
"... e sua carne cobre-se de podridão e imundície, sua pele rompe e
supura..." (Jó, VII:5).
Job não entende!
"Instruí-me, diz ele a seus amigos, mostrai-me em que falhei.. sou inocente
nisso!" (Jó, VI: 24-29).
Num primeiro momento, ele busca a causa apenas nas categorias ligadas à
punição do seu campo de consciência primária.
Ora, ele não reconhece em si nenhuma falta.
Teria Deus outros olhos que ele?
"Tens olhos de carne, pergunta-lhe, vês como vêem os homens?... Tuas
mãos me formaram e me modelaram, e tu me destruirás? Lembra-te de
que me moldaste como a argila e tu me farias retornar à Terra? Não me
derramaste como leite, e me coalhaste como um queijo? De pele e de carne
me revestiste, de ossos e de nervos me teceste... e eis o que escondias no
teu coração!..." (Jó, X)
Retomo ao "informe e vazio" da sua gênese, para viver a sua vocação justa,
assim parece ser numa aparente regressão — a experiência vivida nesse
momento da aventara,, humana por aquele que busca a Deus.
Se ele não a faz durante a sua vida terrena, não será isso a sua morte?
Job morre aqui e de repente.
Ele implora aos amigos, novas inteligências em si mesmo: "Não encontraria
eu um sábio entre vós?" (Jó, XVII:10).
Mas a profundidade do seu sofrimento não ultrapassa a altura da sua
sabedoria: "Sois pessoas hábeis, e convosco morrerá a sabedoria, pois não
passais de charlatães... Todos vós sois médicos do nada! Se pudésseis
guardar silêncio, serieis tomados por sábios..." (XII: 2 ; XIII: 4-5).
Eles falam em Job, e Job toma a mandá-los embora: "Muitas vezes ouvi
discursos semelhantes, Sois todos uns consoladores importunos..." (XVI: 2)
e, mais adiante. "Até quando afligireis a minha alma e me atormentareis
com os vossos discursos?" (XIX: 1-2).
Então, como Elias presidindo toda circuncisão, como João Batista presidindo
a última circuncisão e preparando os caminhos de , um quarto amigo
apresenta-se e despede os outros três.
Chama-se Eliahu, Elias em português.
é o próprio NOME de , em que o último é substituído por .
É Job, de quem uma parte (um ) ainda não está em Elohim.
Ele prepara Job para a luz total.
O Espírito de Elohim já está nele: "O Espírito que está no meu seio me
oprime, meu seio é como um vinho engarrafado, como um odre novo
prestes a estourar..." (XXXII:18-19).
O Espírito Santo está nele; com ele, a loucura.
Loucura aos olhos dos homens, ela é Sabedoria divina, enquanto que a
sabedoria de Job nos seus três amigos era loucura aos olhos de Deus!
"Espera um pouco que eu te instruirei, pois ainda tenho palavras em favor
de Deus... (XXXVI:2) ... Deus salva o infeliz da sua miséria Ele o instrui pelo
sofrimento... (XXXVI:15) Tob, presta atenção a essas coisas, pára e
considera as maravilhas de Deus." (XXXVII:14).
Eliahu fala: ele prepara Job para ir para a jazida da Inteligência, para as
fontes da Sabedoria, na sua última terra, "aquela em que se encontra o
ouro, e o ouro desse país é Tov !"
ou a luz totalmente conquistada!
Esse versículo, tirado do Gênesis (II: 12), descreve a primeira das quatro
terras interiores do Homem, terras que são fecundadas pelo único rio que
sai do Éden.
"4" é o número que simboliza as estruturas do Homem interior, mas não
explica a realidade formal; uma outra imagem, a da escada, propõe trinta e
três degraus, cada degrau podendo ainda ser considerado como uma terra a
ser construída.
Seja qual for a imagem, essa primeira terra descrita no Gênesis é aquela
que o Homem conquista nas suas últimas profundezas. Eliahu é o guia que
conduz às portas dessa primeira terra; os três outros amigos conduziram
Job aos três primeiros níveis energéticos, isto é, às três primeiras terras
nomeadas no Gênesis em ordem decrescente até aquela que é banhada
pelo Phrat.
É falando desta que Job fez o seu crescimento.
Para ele, ela chamava-se Outs : o Homem-Vav ( = 6) na árvore .
Agora, o homem atinge o 9, como no 9ª mês de sua gestação.
Ele não poderá nascer no 10, no Yod, senão com o único guia capaz de abrir
o "núcleo", o NOME, o próprio .
É por isso que, por sua vez, Eliahu se retira.
Como João Batista que dirá: "É preciso que Ele cresça e que eu diminua",
repelindo a última pele, Eliahu desaparece.
Eis Behemoth...
Ele é principio dos caminhos de Deus,
Ele foi feito guia da Sua Espada
(Jó, XL:19)
- Qetsiah é "o verão" — Qaïts — na sua raiz , estação em que se
"corta" — Qatsoa — o fruto.
Esse fruto outrora estava potencialmente na árvore Outs, terra de Job;
agora ele é o Yod na cumeeira dessa árvore .
E esse fruto é aromatizante.
Qetsia é uma planta aromática, a cássia.
O perfume e o sabor do fruto são o prazer que Job atinge, como Noé que
atinge a embriaguez.
2. Jonas
Não podemos deixar Job sem questionar, nessa mesma tradição, o profeta
Jonas, cuja experiência vivida no ventre do "grande peixe" está relacionada
com a mesma viagem.
Contudo, não comungando a inteligência de , Jonas tinha infringido a
ordem divina no que concerne a Nínive: ele devia ir para a grande cidade
pervertida para nela pregar o arrependimento.
Fugindo do seu destino, ele toma o primeiro barco que parte.
Mas um furacão agita a embarcação que ameaça naufragar.
Cheios de pânico, os marinheiros tiram na sorte para ver quem dentre eles
está causando esse infortúnio.
É Jonas.
Mas Jonas refugiou-se no porão do navio, e aí, mais longe ainda, no mais
profundo sono.
Aparentemente longe da sua realização, Jonas é duramente trazido de volta
à realidade do seu destino; pela mão dos marinheiros, é lançado ao
"coração do mar", ao coração do seu "não-realizado".
Engolido pelo monstro marinho que a tradição oral transforma em baleia,
Jonas parece não dever recuperar a luz.
Mas do fundo das entranhas do grande peixe, lembra-se de , invoca-o e
lhe responde .
Lançaste-me no abismo, no coração do mar,
As águas me cobriram até me tirarem a vida,
O abismo' me cercou,
Os caniços rodearam minha cabeça,
Desci até as raízes das montanhas,
As barras da Terra me encerraram para sempre,
Mas tu me fizeste voltar vivo do fosso...
(Jn, 11:4-10.)
, fala ao grande peixe e este vomita Jonas no seco.
Revestido da força de suas profundezas, Jonas pode então enfrentar Nínive
e entrar na inteligência e misericórdia divina que concerne à cidade.
Ele faz a experiência da transcendência.
"É a essa Transcendência que damos, correntemente, o nome de Deus...",
diz Sri Aurobindo.
Mas, nesse primeiro estágio, é voltando a ser germe, peixe, mergulhando
"até as raízes das montanhas", às raízes ontológicas, aos Arquétipos da
criação, que o Homem atinge esse nível de consciência cósmica que
transcende nosso nível de consciência comum.
Existe uma teoria embriológica muito recente, segundo a qual o germe, no
ventre materno, possui a memória cósmica.
Ele sabe.
O traumatismo respiratório do nascimento rechaçaria essa memória para as
profundezas do inconsciente.
Parece que aquele que volta a ser voluntária e conscientemente germe (e
as técnicas respiratórias não seriam estranhas a esse método), aquele que
"desposa a mãe", penetra as trevas do inconsciente, rompe o túmulo da
memória e recupera o Conhecimento.
Ao chegar ao coração de si mesmo, o que conhece está no coração de tudo
o que tem vida.
"É meu o Sol, minha a Lua, minhas as estrelas, minha a Mãe de Deus,
minhas todas as criaturas! Que pedes e que procuras ainda, ó minha alma!
Tudo é teu e tudo é para ti...", exclama o cantor por excelência dessa
experiência, São João da Cruz que, antes, descreve sua viagem pela noite
mais negra.
Emergindo da mesma noite, carregando em seu corpo os estigmas das
chagas de seu Mestre, São Francisco de Assis louva o Senhor em quem ele
agora conhece o Universo inteiro: ele nasceu no seio de uma nova família,
cujos elementos são intimamente "seus": "Senhor irmão Sol, irmã Lua e as
Estrelas, irmão Vento, irmã Chuva, irmão Fogo e irmã nossa mãe a
Terra...!"
Esses poemas não podem estar relacionados com a crítica psicanalítica,
como quiseram alguns; eles resultam de categorias que escapam
totalmente a ela; são fruto de uma experiência mítica.
O nome hebraico de Jonas - Iona — contém o Tetragrama, o Noun ,
que vale 50, substituindo um dos Hé , que vale 5.
Jonas é esse noun.
Entre os árabes, Jonas é chamado Dhún-Nun; Nun letra de valor 50, tanto
no árabe como no hebraico, é também, nas duas línguas, o "peixe"; é o
peixe-macho.
A baleia desempenha, evidentemente, o mesmo papel que a Arca na
história de Noé, o de peixe-fêmea detentor da energia-informação.
[Faço aqui alusão ao termo Nagod "informar", que é também o "frente a
frente" e, em cujas estruturas, o Noun , peixe-macho, faz frente ao Dag ,
peixe-fêmea. A informação só se pode dar no casamento do homem que se
toma peixe para desposar uma nova soma energética que o Dag simboliza
nas profundezas do não-realizado.]
5. Os Infernos do Esquizofrênico
Sou uma menininha feliz que vive na casa da família, onde nasci há cinco
anos.
De repente, soa o "gongo".
Às pressas, numa manhã de primavera, nós partimos.
Deixo a região, a casa, os entes queridos.
Pressinto que um drama se passa, sobre o qual nada me dizem.
Objeto incômodo, considerada incapaz de compreender, e até mesmo de
sentir a situação, sou colocada num convento em Paris, sozinha.
O universo ao qual posso ainda me referir é minha irmã, dois anos mais
velha que eu, colocada nesse mesmo convento, mas de quem me separam
durante todo o dia.
Vários meses se passam — uma morte.
Encontro-me, enfim, com aqueles a quem amo, num apartamento
parisiense, triste e pequeno, de onde logo os oficiais de justiça vêm retirar
todos os móveis.
Não tínhamos mais o que comer.
Tudo chora ao meu redor — outra morte.
Posso afirmar que a criança não tem outro recurso para sobreviver senão
voltar-se para si mesma, para uma profundeza insuspeitável de si mesma,
em que descobre uma realidade sagrada que permitiu que a menininha
pusesse os pés numa terra sólida que ela chamou dizendo: "Só se pode
contar com o Pai divino."
E nada mais esperar de ninguém.
Aí começa a esquizo (ou separação).
É no nível do "phrenos" que o alento é cortado, entre a "respiração genital"
e a "respiração verbal".
E, para sobreviver quando a terra estremece, quando soa o "gongo", a
criança, presa nas mandíbulas das profundezas, na Porta do seu Nome, é
radicalmente soprada nas alturas.
É posta em contato com os seus monstros e é salva pelo Pai divino.
Uma imensa graça fez com que a esquizo não tenha dilacerado a menininha
de ontem.
6. O Sofrimento
Quando o choque de um grande sofrimento atinge, não mais a criança, mas
a pessoa considerada adulta, esta, como Job no início da sua provação, vai
discutir, rebelar-se, apelar para a sua concepção de justiça; numa palavra:
interpor o seu mental entre o acontecimento e o sentido profundo e criador
deste. Esse poder criador do sofrimento só será operativo se o Homem se
tomar novamente criança.
"Se não vos tornardes como estas crianças, não entrareis no Reino" (Mc,
X:15; Mt, XVIII:3; Lc, XVIII:17; Jo, III,3)
Os quatro evangelistas relatam essa ordem fundamental de Cristo.
O verdadeiro adulto é aquele que pode tomar-se novamente criança, abolir
o seu mental e deixar-se levar pelo acontecimento para a terra nova do seu
ser, concordando em nada compreender.
Aí, nessa terra nova, a inteligência lhe será dada.
Ele não acusará ninguém, mas se requestionará totalmente para que a luz
penetre mais longe nele "e que as obras de Deus se manifestem nele" (Jo,
IX:3).
Abraão sobe à montanha para sacrificar o filho.
Ele obedece.
Subindo à montanha, é precipitado no maior drama das suas profundezas.
Lá, ele toca o seu divino; Deus detém o braço que ia sacrificar Isaac, e
substitui a criança por um carneiro.
O homem que desceu da montanha não era mais o mesmo que subiu.
Nele, as obras de Deus se manifestaram: raiz da Árvore de Israel, ele deu o
seu fruto messiânico, Cristo, novo Isaac, carneiro do holocausto cósmico.
Aïl é o "carneiro": Deus que carrega nas Suas entranhas o Yod ,
núcleo divino da Humanidade.
Continua
O Simbolismo do Corpo Humano – Parte 14
Guardiã da "Porta dos deuses", a Águia arranca à morte aquele que acaba
de "integrar o Negro".
Deus não diz a Job: "Onde estão os cadáveres, lá está a Águia" (IS, XXXIV:
33), e Cristo retomará essas palavras para dizer de sua própria morte:
"Seja onde for que esteja o cadáver, lá se reunirão as águias" (Mt, XXIV:
28).
Mas Cristo, aqui, identifica as águias — um plural, quando se trata do
cadáver no singular, contrariamente ao texto bíblico — àqueles de Seus
discípulos que levarão sua mensagem através do mundo e arrancarão à
morte a Humanidade decaída, escrava de Satanás ou em luta contra ele
num moralismo piedoso mas incapaz de compreender seu Dragão Negro.
A águia real é por excelência o apóstolo João, o Evangelista, "apóstolo no
segredo divino", que, como vimos, assumiu Tiphereth com Cristo.
Seu nome em hebraico, Nesher (50 + 300 + 200 = 550) é construído
de tal modo que as duas mãos, os dois 5, imagem dos dois Hé do
Tetragrama, constituem a tradução aritmológica das duas asas da Águia e,
por sua complementaridade, já indicam a unidade reconquistada (5 + 5 =
10).
Mão, em hebraico Yad (10 + 4 que se fundem num 5), é simplesmente a
letra Yod do Tetragrama; ela está ligada ao conhecimento Yada — eu
"conheço" — e também quer dizer: "eu amo".
Não se trata, para os hebreus, de uma qualidade intelectual, mas do
conhecimento experimental que o homem adquire sobre a mulher, que todo
homem adquire a respeito de todo elemento da criação, de todo elemento
do "Ma", penetrando-o na profundidade do seu mistério, isto é, no que ele
contém em si enquanto também pertencente ao mundo do "Mi".
Esse conhecimento é casamento.
Esse conhecimento é amor.
Quero insistir na qualidade — diríamos, concreta — desse conhecimento,
compreendendo bem que esse "concreto" exige uma nova qualidade de
receptividade.
Mas essa receptividade passa por nosso corpo, diz respeito a nossos
sentidos, que então se tornam atentos e abertos para o Real.
A Realidade joga sobre um quadro infinitamente grande de comprimentos
de ondas; uma estreitíssima faixa destas toca nossos sentidos imediatos,
mas os sentidos do Homem que "sobe à sua árvore" abrem-se sobre faixas
cada vez mais vastas da Realidade.
Por mais abstrata que ela seja para o Homem comum, essa Realidade é
concreta para aquele cujos sentidos lhe permitem tocar o coração, o núcleo
das coisas, dos seres, do mundo!
Nossas sensações não estão ligadas apenas à matéria, enquanto
imediatamente palpável.
Também a Glória divina é palpável.
Mas uma contém a outra e é cultivando a matéria, questionando-a,
amando-a que ela se faz conhecer, que ela se abre e glorifica seu criador.
Repitamos uma palavra: o poder da repetição faz que a casca apareça.
Olhemos uma flor: ela nos abre seu coração.
Escutemos, toquemos e saibamos sentir.
Tudo o que pode constituir o objeto de nossa meditação está aí, ao alcance
de nossa "mão", com a condição de que nossa mão seja um prolongamento
de nosso coração, Tiphereth, coração que, por sua vez, é informado por
Kether.
Porque, por trás de nossas sensações imediatas, amontoam-se todos os
nossos movimentos psíquicos: a irritação, o prazer, o ódio, o amor que, não
controlados, constituem um muro intransponível.
Mas o toque da "Glória divina", selado no coração dos seres e das coisas,
reclama essa qualidade de amor que só a morte e a ressurreição em
Tiphereth permitem atingir.
A melhor demonstração que se pode fazer desses diversos registros de re-
ceptividade nos é dada por aquela passagem dos Evangelhos (Jo, XX:24-
30) em que Tomé, não estando na companhia dos outros Apóstolos no
contato com o Ressuscitado, é convidado por Ele a colocar o dedo, e depois
as mãos em Suas chagas.
Esse toque concreto abre a porta do toque espiritual, a porta do
Conhecimento.
É também pela fração do pão, símbolo concreto da carne, que os discípulos
de Emaús, ceando com o homem que haviam encontrado no caminho,
reconhecem nele o Cristo Ressuscitado.
"Então os olhos deles se abriram" (Lc, XXIV:30-31).
"A águia mergulha ao longe seu olhar" (Jó, XXXIX: 29).
A palavra hebraica Yada , "conhecer", é construída sobre a raiz Yad — "a
mão" — à qual se acrescenta a letra Ayin , que quer dizer "olho".
Poderíamos dizer que a mão é dotada de visão e que o olho possui uma
certa qualidade de toque.
Visão e tato levam ao Conhecimento que liberta.
Nessa perspectiva, a iconografia cristã, que jamais representa a Pessoa do
Pai da Revelação trinitária, porque Ele é o Incognoscível, significa-O
contudo por uma mão: é como tal que o Incognoscível Se faz conhecer.
"Vindo dos abismos, o meu bem-amado estendeu a mão e, pelo
desmoronamento, a sua força esteve sobre mim", canta a Shulamita do
Cântico dos Cânticos que, no seu encontro com Deus, liga a força divina à
mão ou ao Yod que quebra os cortes mais secretos do jardim da alma.
O "desmoronamento" é a palavra ‘Aï’ , que pode ser lida "a mão (ou o
Yod) na fonte".
Só na fonte do ser é que se pode fazer a experiência do Yod, do NOME, que
nos coloca nas "mãos" do Pai.
É fácil notar aqui que, se na palavra Aï o Yod estivesse totalmente
escrito, obteríamos a palavra , "conhecer, amar", de que falei
anteriormente.
Existe uma belíssima iconografia cristã que representa uma coluna vertebral
cujas forças se entrecruzam, no mesmo simbolismo do caduceu, e se
expandem, não sobre uma cabeça, mas sobre uma mão aureolada com a
mandona dos santos.
Vemos aqui uma identificação quase total entre a cabeça e a mão, entre o
Yod da Espada , cabeça arquetípica, e cada um dos dois , "sopro" que
forma cada uma das mãos: cada mão contém a outra e ambas tornam a
cabeça.
Os dois hemisférios cerebrais são inseparáveis das duas mãos — como são
inseparáveis delas os dois pulmões que elas prolongam!
E o hebraico nos fez descobrir que "os pulmões vêem".
É inegável, portanto, que também a mão vê!
Conhecer pode ser apenas cerebral; então, não é mais o amor.
Se o conhecimento é também amor, as mãos são um sopro criador!
Pelos seus cinco dedos, a mão está ligada a órgãos precisos do corpo.
— O polegar (dedo de Vênus) está ligado à cabeça.
Os romanos, que baixavam o polegar para indicar uma condenação à
morte, sabiam disso.
E a história do Pequeno Polegar, enquanto conto simbólico, é uma
verdadeira maravilha: cada detalhe é significativo e relata a evolução do
Homem desde a sua alienante relação parental até a sua libertação total,
fora do condicionamento espaço-tempo; as botas de sete léguas
representam esse último papel.
— O indicador (dedo de Júpiter) está ligado à vesícula biliar.
— O médio (dedo de Saturno) está ligado ao baço-pâncreas.
— O anular (dedo do Sol) está ligado ao fígado.
— O mindinho (dedo de Mercúrio) está ligado ao coração, como confirma o
inconsciente coletivo das canções infantis: "seu mindinho lhe diz tudo".
Cada dedo tem o seu segredo e a sua força.
Todos os gestos da mão e de cada um dos dedos, que os ioguins e as
dançarinas sagradas realizam, mobilizam assim energias que colocam mais
particularmente o homem em relação com este ou aquele aspecto da sua
potencialidade divina.
Na índia, a ioga dos dedos chama-se mudra — cada mudra é significativo —
cada movimento da mão, ou das duas mãos juntas, também tem sua força.
Deveria existir uma ioga ocidental que nos revelasse em particular a obra
do qabbalista Abraham Abulafia.
E, nessa perspectiva, a postura das mãos do sacerdote ao celebrar os
santos Mistérios Cristãos devia ser um resto dessa ioga.
Não compreendendo mais sua significação, os sacerdotes ocidentais fizeram
tabula rasa tanto dos símbolos como dos mistérios.
Entre os israelitas, a mão conserva uma grande importância.
"As crianças, diz um dos Boletins da Aliança universal israelita, usam uma
pequena mão de ouro ou de prata. O primeiro presente que se faz a uma
noiva é uma mão de ouro. Ao lado da casa onde se celebra um casamento,
desenham-se mãos nas paredes."
Encontramos na mão de Fátima, que os muçulmanos têm o costume de
usar, esse mesmo símbolo do poder que protege.
Só o Conhecimento liberta.
"Deixai a ignorância e vivereis" (Pr, IX:6).
O nome hebraico da "águia", Nesher , contém a letra trinitária por
excelência, o Shin , que estudaremos mais adiante; ela está engastada na
palavra Ner , que significa "lâmpada", luz.
A águia define-se então como o que carrega a Luz trinitária em seu coração.
Essa palavra Ner é formada pelas duas letras: Noun , 50, e Reish , 200,
uma das quais é o Peixe, a outra a Cabeça.
A letra Shin que as reúne e que simboliza a expansão cósmica a partir do
coração dos alicerces, une os pés à cabeça.
A raiz Sar que também leva o nome da Águia, é a do "Senhor, Príncipe".
O Sopro, o Conhecimento, a Força, o Poder, o Domínio, a Luz, reúnem as
qualidades do Mestre das Alturas, d’Aquele que arranca o Homem das
trevas para introduzi-lo na luz de que, ontologicamente, ele é tecido.
O caminho Din-Hesed (Rigor-Misericórdia), que também é o de Gebourah-
Gadoulah (Força-Grandeza), é construído sobre os ombros do Homem.
2. Dante: O Paraíso
"Cai, cai de joelhos, exclama Virgílio, eis o Anjo de Deus... O pássaro
celeste pareceu ainda mais brilhante quando se aproximou de nós e os
olhos não podiam suportar seu esplendor" (Purgatório, c. II).
O pássaro celeste leva até a praia um grupo de almas que salmodiam: "In
exitu Israël de Egypto..."
Essas almas saem do mar, guiadas em sua barca pelo Anjo que rema no ar.
Seu canto celebra a saída dos hebreus do Egito; e é indiscutível, eles
acabam de passar, em sua morte física, por uma porta que corresponde à
que era para nós a "Porta dos Homens".
Encontramos aí os juncos do chamado mar "vermelho", juncos dos quais
Virgílio faz para o poeta uma cinta, como para marcar no próprio corpo do
viajante o nível da passagem.
E nós nos lembramos de que o "junco", em hebraico Soph , também
quer dizer o "limiar", o "limite".
É tão verdade que Dante passa por uma porta, nesse retomo dos infernos,
que Virgílio ainda acompanha seu discípulo até o alto de uma montanha,
onde o deixa.
É então que Dante vê "uma mulher que tinha os ombros cobertos com um
manto verde..." (o simbolismo, aqui, é o da árvore verde).
Beatriz, a alma espiritual de Dante, encontra-se lá para consolar seu amigo
pela partida de Virgílio: "Ó Dante! porque Virgílio partiu, não vertas, não,
não vertas lágrimas. Deves chorar por causa de outra ferida... Assim me
falou a mulher celeste."
Num tom patético de penitência, Dante derrama lágrimas de purificação.
Ele deve pensar "a ferida"! ..."Então ela me levou até o rio, onde fui
mergulhado até a boca, e ela se retirou sobre a água com a rapidez de um
leve esquife."
Seguem-se, então, os trinta e três cantos do Paraíso, através dos quais
vemos Dante e Beatriz penetrar, pouco a pouco, nas nove primeiras esferas
celestes.
À porta das oitava esfera, Beatriz desaparece, para deixar São Bernardo
guiar nosso viajante.
Este, "cujos olhos, cheios de uma nova força, penetravam cada vez mais no
raio de luz onde tudo é Verdade", sente a impossibilidade de expressar pela
linguagem os esplendores contemplados.
Quando ele escreve, mais tarde, esses cantos do Paraíso, o poeta se
recorda: "Creio que conservei bem em meu espírito a forma universal desse
nó que une tantas substâncias diversas..."
Nesse "nó" divino, Unidade divina que lhe é dado viver, Dante procura
conhecer como se opera a união das duas Naturezas.
"Mas, para compreender tal mistério, minhas forças não eram suficientes."
E a visão de Dante parece confundir-se com a desse outro poeta, Milosz,
que conheceu a iluminação e que confessa:
"...Compreendi tudo
A Anunciação e o Verbo feito carne
Sim, num clarão de pensamento
Compreendi, senti, vi
— DE QUE MODO AS COISAS SE TINHAM PASSADO —
Agora, os três anos de renúncia depois dos quarenta anos de espera
chegam ao seu fim.
Compreendo.
Sinto, enfim, que sei... que eu sempre soube, e que existe aqui mesmo
certa maneira de conhecer tudo."
(Confissão de Lemuel)
3 O Mito de Prometeu
Se a Águia arrancou Job da morte e o levou até a Realeza, se o "Anjo de
Deus, o Pássaro Celeste" guiou Dante até o Paraíso onde, de céu em céu, o
poeta parece ter sido levado por suas asas, é ainda a Águia que introduz
Prometeu nas regiões elíseas.
Mas, antes, o herói grego enfrenta o Dragão Branco que, no contexto,
preside as duas fases, negra e branca, da Obra.
Prometeu pertence à raça dos Titãs, esses gigantes irmãos de Chronos e
revoltados, com ele, contra Urano, o Pai, que eles haviam destronado.
Com Chronos, eles viram-se confundidos por Zeus e precipitados no
Tártaro.
Prometeu não pode gerar senão servidores do Tempo, seres amarrados à
roda dos recomeços, desligados de suas raízes divinas.
Criador desses "homens em queda", privados do fogo divino, Prometeu
molda-os com o limo da Terra, que ele umedece com suas lágrimas.
Ligada à Terra e à Água, privada do Fogo, de toda fonte de luz, essa
humanidade no exílio (no estágio do Haver) alimenta-se de frutos que
nenhum Sol, simbolicamente, amadureceu, que nenhum fogo pode coser.
Esses homens têm sede e frio.
Prometeu, seu pai, tomou-se de piedade por eles.
Sem dúvida, também ele sente ciúme dos deuses cuja descendência é luz.
E decide ir procurar na forja de Hefestos uma fagulha de fogo divino, para
levá-la aos homens da Terra.
Os estudos precedentes permitem-nos captar a amplidão do mito.
O nome de Prometeu — "o previdente" — comporta uma ambivalência:
aquele que "prevê", como um pai em relação aos filhos, para evitar-lhes
qualquer carência, irá, de fato, procurar aquilo de que eles têm
necessidade.
Nesse sentido, Prometeu, partindo à procura do fogo do Céu, é um bom pai,
embora não possamos dizer que ele se tenha mostrado previdente ao gerar,
nos limites de sua própria semente, criaturas condenadas ao Tártaro, à
morte.
Mas quem de nós sonha com semelhante coisa ao procriar filhos a quem
pensamos que o calor de nosso afeto e o despertar do fogo de seu intelecto
serão suficientes para fazer com que vivam?
Aquele que "vê antes" também deve saber que o fogo divino não pode
descer até esse lugar de exílio, a não ser que a humanidade faça um
esforço para sair dali e ir à conquista do fogo na forja de Hefestos
(Tiphereth) seguindo o caminho justo.
É verdade que o caminho é longo, difícil, e parece mais impossível ainda
quando é considerado menos por si mesmo do que por seus filhos.
Haveria aqui muitas conclusões para levar ao simples plano psicológico!
Prometeu não pode perceber esse caminho, ele quer cumular
imediatamente seus filhos de um céu que não conheça inferno, de uma vida
que não passe pela cruz.
Prometeu está impaciente.
Ele é tentado a roubar esse Fogo para com ele aquecer os seus.
Encontramos aqui o decalque quase que exato do mito bíblico a respeito da
Queda.
É por impaciência que o homem e a mulher devoraram a "maçã", fruto do
conhecimento da dualidade, que eles não estavam preparados para
assimilar.
A mulher intervém no mito grego na pessoa de Pandora, cujo nome significa
"aquela que tem todos os dons".
Com efeito, nascida das mãos de Hefestos por ordem de Zeus, Pandora
carrega o fogo divino em potencial na famosa caixa que lhe é entregue e
que ela não tem o direito de abrir.
Dom divino, essas energias-fogo serão elementos de vida, se o Homem
souber servir-se delas, e de morte, se ele não conheceu os seus poderes e
não conquistou, ao mesmo tempo que o Conhecimento, o domínio do
mesmo.
A caixa de Pandora, pela receptividade de "todos os dons" que ela contém,
faz-nos pensar nos pés (estudados acima).
A abertura da caixa não é acaso a réplica do ferimento feito no pé,
abertura, chaga pela qual se escoam, em vão, as energias humanas?
Deplorável hemorragia que desencadeia as paixões, as agitações febris, os
ativismos de toda espécie...
Já falei a respeito disso.
Prometeu não sabe reconhecer em Pandora o fruto, da misericórdia divina
que lhe envia, por intermédio da mulher, o germe do fogo que ele deseja e
de que ele privou a Humanidade.
Não procurando solução para seu problema, senão em suas forças psíquicas
de falso masculino, ele não discerne o dom divino.
Prometeu é a própria imagem do ser humano que não ultrapassou a "Porta
dos Homens", cujo pensamento, embora previdente, arrasta-se no plano
das preocupações do Haver, e cuja consciência adormecida não pode
discernir o dom de vida que ele carrega em si.
Prometeu devia desposar Pandora, sua isha, guardar com ela a caixa selada
e tomar, também com ela, o duro caminho da forja, passando pela porta
estreita.
Os "dons" de Pandora teriam sido liberados acertadamente.
Eles não tiveram nem a paciência, nem a obediência que é exigida dos
filhos e que supre sua ignorância.
Ai! ao mesmo tempo que Prometeu parte para furtar o fogo da forja,
Pandora é desposada por Epimeteu e ambos abrem a caixa proibida.
Epimeteu, que é para Prometeu o que Esaú é para Jacob, é o "Homem
vermelho", o homem banalizado, que desposa, em Pandora, o fogo das
paixões terrestres.
Em profundidade, o fogo roubado e os dons que escorrem da caixa aberta
são a mesma realidade: a do seu investimento no nível do Haver único na
loucura da sua potência, de que o homem não purificado não tem nenhum
domínio.
Prometeu toma consciência dessa loucura.
Decide retomar o caminho da forja para conquistar aí, dessa vez com
acerto, o fogo de vida.
Ele se separa de Epimeteu.
É o retomo, a Teshouvah ou "penitência".
Ele passa pela "Porta dos Homens" e apresenta-se diante de Hefestos.
Nosso psiquismo ocidental faz muito mal em se libertar das noções de
julgamento, de resgate, de punição ligadas à penitência.
O psíquico é escravo do jurídico.
A visão espiritual descobre a finalidade liberadora do potencial energético
mobilizado.
Amarrado a uma pedra no alto do Cáucaso pelo ferreiro divino, Prometeu
nada mais faz do que passar pelas provações que todo ser, nessa etapa da
viagem, deve enfrentar.
Trata-se, aqui, da lei da evolução que comporta uma necessária fase de
involução prévia, e seria erro dizer que ela é primitiva.
O mito situa na altura o que os outros nos fazem viver em profundidade.
Mas trata-se desse mesmo processo no decorrer do qual a alternância da
queda nas trevas e da elevação na luz é simbolizada, aqui, pela sucessão
das noites e dos dias, cujas torturas o herói tem de suportar:
"Dessecado pelos raios ardentes do Sol, verás inclinar-se a flor do teu
corpo. Tarde demais, para o teu gosto, a noite virá esconder o dia sob seu
manto de estrelas..." diz-lhe Hefestos, que não esconde mais a Prometeu
como a noite o enregelará.
Parece importante não passar em silêncio o simbolismo do rochedo ao qual
Prometeu é acorrentado: a pedra nada mais é que o Homem enquanto ele
vive, enquanto é consciente.
Prometeu é prisioneiro de si mesmo até que, morrendo e nascendo sem
cessar no processo das noites e dos dias, ele conhece a total libertação.
A pedra de Prometeu segue, pois, o processo alquímico; o herói passa pelas
provações: toda manhã, uma águia vem visitá-lo e alimentar-se do seu
fígado que, toda noite, renasce.
Enquanto Dragão Branco, guardião da soleira da "Porta dos deuses", a
águia aparece, desse lado da Porta, como um monstro devorador.
Conhecemos o significado disso.
O fígado define-se, como vimos, como o órgão de integração das energias
realizadas.
Devorando o fígado de Prometeu, a águia obriga o homem a descer nas
noites do inacabado Ra para celebrar aí as suas núpcias com a terra-
mãe, que o baço e o pâncreas simbolizam; toda manhã, o herói vem
oferecer à águia o "mel" do Tov elaborado.
Isso, durante mil anos.
No fim de mil anos — número da unidade reconquistada — Prometeu é
libertado.
Ele é introduzido por Zeus na morada dos deuses.
Contudo, o mito não termina aí.
A coroação de Prometeu não acontece sem a morte do centauro Quíron,
cujo fim confirma a cura da Humanidade.
Quem é, na verdade, Quiron, o "inferior" em grego?
Metade homem, metade cavalo, homem-animal, ele é conhecido por sua
sabedoria, sua inteligência, e também por uma chaga incurável que tem no
pé.
Procurando curá-la, ele se toma médico, ensina a arte da medicina, assim
como de numerosas outras ciências.
Quíron cuida da educação de Aquiles, a quem ensina a virtude de um
bálsamo graças ao qual o herói cuida dos ferimentos de seus guerreiros
sem poder curar o ferimento que ele próprio recebe no pé e que irá causar
a sua morte.
O centauro ensina segundo uma inteligência e uma sabedoria inerentes ao
triângulo inferior labiríntico.
Sofre cruelmente com a chaga ontológica que nem sua sabedoria nem sua
inteligência conseguem curar.
Cansado de tantos males, Quíron pede a Zeus a morte em troca da
libertação de Prometeu.
Parece que Quíron, homem-animal, identifica-se totalmente, no mito grego,
com o ferimento no pé da humanidade.
Sua morte significa a cura desse ferimento.
Fico comovida ao constatar, uma vez mais, aqui, a unidade fundamental
que liga todos os mitos, todas as tradições, e cuja luz se eleva hoje
novamente como a de uma aurora no nosso céu tão pesado.
"Aniquilarei a sabedoria dos sábios e a inteligência dos inteligentes."
Acaso, a morte do centauro não é esse aniquilamento?
O Amor, Fogo divino, passado pela crucifixão, em Tiphereth transforma e
recria.
Só o Amor é capaz de curar.
Só ele pode libertar-nos dos centauros que ainda conduzem o mundo atual.
Acabemos o estudo do mito de Prometeu tal como nos é contado pela
cosmogonia helênica: depois da morte de Quíron e da libertação de
Prometeu, o mundo sofre um Dilúvio em tudo semelhante ao descrito pela
Bíblia.
A Humanidade ligada a Epimeteu-Quíron é purificada pela Água.
O casal Deucalião-Pirra, que sobrevive ao Dilúvio, repovoa a Terra lançando
pedras por cima dos ombros.
Sementes divinas nesse nível, essas pedras são a humanidade vindoura,
humanidade em que o Divino pode agora crescer, pois seu protótipo
reconquistou, numa justa ascensão, esse Fogo de que ele privara "seus
filhos" e que, depois, ele roubara de forma desonesta.
Nesse sentido, o Prometeu grego parece-me anunciar o Messias cristão.
Se essa idéia é correta, a etimologia de seu nome não seria a que se liga à
noção de promessa, de preferência à que se liga à noção de previdência?
Continua
O Simbolismo do Corpo Humano – Parte 16
O ouvido e a língua
A Audição e o Verbo
A Obra em Vermelho
1.O Ouvido
Exprimindo um mesmo aspecto simbólico que os pés e os rins, as orelhas
têm a forma de um germe.
Como eles, recapitulam o corpo todo.
Foi à luz disso que nasceu a auriculoterapia.
Essa técnica médica, que obedece ao método tradicional da acupuntura, faz
convergir no nível da orelha apenas os locais das picadas destinadas a
vivificar esta ou aquela parte do corpo.
Pois, segundo o traçado das correspondências harmônicas que ligam a
orelha ao conjunto do corpo, determinada parte da orelha, picada, faz
vibrar determinada parte do corpo à qual ela está ligada.
Segundo o autor, esse método terapêutico é usado, empiricamente talvez,
mas realmente, desde os tempos mais antigos: "No Egito, sob o domínio
dos Faraós, as mulheres picavam a orelha para limitar o número de
engravidamentos; os citas, por sua vez, utilizavam a cauterização do
pavilhão auricular no caso de impotência, e Valsalva usava o mesmo
processo para acalmar a dor de dente. No século passado, muitos médicos
franceses, e não dos menores, ainda queimavam a raiz do hélix para curar
a nevralgia ciática."
2. A Boca
Na boca, a língua, imagem da Espada, simboliza a Obra em Vermelho.
Na tradição cristã, as línguas de fogo que descem do Céu no dia de
Pentecostes é que abrasam os apóstolos, levando-os a essa experiência.
Quer se trate dessas línguas de fogo, ou do carro de fogo que irá arrancar
Elias da Terra, ou da embriaguez espiritual de Noé, a Obra em Vermelho é
vivida no fogo, não mais no fogo destruidor, mas no fogo libertador, de que
a cor vermelha é símbolo.
O Pentecostes (50 dias) cristão ou "Páscoa vermelha" insere-se na festa
judaica de Shavouoth (7 semanas = 49 dias) ou "Festa das colheitas".
O trigo e a cevada amadureceram e dão os seus frutos.
Eles são símbolos do fruto do Homem, o Verbo.
Os apóstolos reunidos em Jerusalém com todas as nações que, nesse dia, lá
iam para a festa, depois de terem recebido as línguas de fogo, estão
embriagados do Espírito Santo.
Falam, então, uma língua entendida por todos, uma língua que recobria
todas as línguas, a "língua una" que precedia Babel, mas cuja unidade era
enriquecida pela multiplicidade das línguas das nações (nações que os onze
apóstolos e Maria simbolizam).
Foi também na festa de Shavouoth, cerca de 1200 anos antes, que Ruth
tinha encontrado Boaz, o seu Goél.
O Gol é aquele que, como vimos tem o direito de redenção; é o libertador.
Ruth, a moabita, simboliza as nações estranhas ao povo hebreu ou, em
cada um de nós, a parte não-realizada que nos é estranha, e, portanto,
estranha ao Nome.
Penetrando a tenda do seu Gal, nesse dia de Shavouoth, Ruth desposa
Israel.
Ela é aquela que entra na sua realização e se liberta, gerando o seu Nome.
Ruth e Boaz geram Oved, que gera Jessé, pai de Davi e ancestral de Cristo.
Cristo será o Goel da humanidade.
A raiz Gaol em hebraico significa "libertar".
A linguagem heráldica diz que a cor vermelha é "de goles".
Na gíria de Paris "boca" é gueule ["goela"].
Coberta de vermelho, abrindo-se sobre o último palácio, a boca tem o seu
nome do ‘buca’ latino, cuja etimologia é a mesma das palavras francesas
‘boucle’ ["fivela, argola"] e ‘bouclier’, ["escudo'] .
O escudo protege da Espada .
Era originalmente representado pelo círculo formado por uma serpente que
mordia a própria cauda.
Essa última simboliza uma totalidade realizada, um ciclo "afivelado".
Estando constituída a "fivela", a "argola", o Homem, cujos pés encontraram
a cabeça, vai apresentar-se diante da Espada, o seu NOME, simbolizado
pela língua.
O escudo que o protege disso é simbolizado pelos dentes.
O dragão das profundezas que guarda o NOME é celebrado pela sua terrível
mandíbula.
E todos os guardiões da soleira herdam dele a sua função de monstros
devoradores.
Aquele que descerra as mandíbulas do Leviatã nas profundezas, e que abre
a goela do monstro toma-se Verbo.
Enquanto "goela", a "boca" é libertação, conquista da última pele e da
última liberdade, que é a realização do Verbo.
Identificada com o feminino, a boca é Isha, que selava nas suas
profundezas — e agora revela — o segredo do NOME; e com ele, Basar
, a "carne", totalmente entregue ao seu Esposo divino, Basorah ,
essa "boa-nova", que a língua tomada Logos clama.
Nessa festa de Pentecostes, , retorna a Elohim.
Nenhum impulso cardíaco, nenhum ritmo pulmonar subleva mais a Criação.
Tudo é amor e Fogo.
A "aliança de Fogo" — Brith Esh — está consumada.
Tudo retoma ao Princípio Bereshit .
3. A Saliva
A saliva, na boca, parece ter grandes virtudes.
Desempenha um importante papel na formação do bolo alimentar e na sua
absorção; mas seu poder purificador e cicatrizante é bem conhecido
daquele que sabe instintivamente chupar uma ferida sem que um mental
assepciado pela cultura interfira.
Vimos o gesto de Moél, o "circuncidador", quando chupa a ferida deixada
pelo corte do prepúcio.
Não falei naquele momento do papel que a saliva desempenha nessa
operação ritual.
Certamente ela purifica e cicatriza a ferida.
Mas fico impressionada com o fato de que ela intervenha no momento em
que o Moél faz rebentar, com a glande da criança, a luz.
Ora, é para devolver a luz ao cego que Cristo "põe saliva sobre os seus
olhos e depois coloca neles as Suas mãos" (Mc, VIII: 23).
Não nos esqueçamos de que cego, Iver em hebraico, é a mesma
palavra que "túnica de pele", então pronunciada Aor.
É uma circuncisão a que Cristo pratica nos olhos da humanidade cega,
humanidade que é "sal da terra", chamada a tomar-se "luz".
Não teria a saliva ligação com o sal, em relação à luz?
Numa Qabbala fonética que se aproxima da "língua-mãe", o seu nome
"saliva" contém o "sal", da mesma forma que "salva", salvação, salvador...
Em hebraico, "cuspir" — Yaroq — é a mesma palavra que Yereq,
"verdura".
E a cor verde não é a da vida, e mesmo da etemidade?
Ela é, portanto, a luz.
Cuspir no rosto — o que é vergonhoso — é punido com lepra, doença da
pele.
O cuspe volta-se em "não-luz" contra aquele que expulsou o seu ódio.
Mas, para aquele que é amor, a saliva, com a fala, é luz.
A saliva é indispensável à fala.
Ela está intimamente ligada ao desejo de alimento, ao desejo de "comer
Deus", de desposar Deus.
Continua
O Simbolismo do Corpo Humano – Parte 17
Os dentes
Nossos escudos não deveriam nunca deixar passar uma palavra injusta.
"Os pais comeram as uvas verdes e as crianças tiveram os -dentes
embotados."
Os dentes, enquanto estruturas, têm também as suas raízes parentais.
Nós temos o dever para com os nossos filhos de dá-los sadios, o que exige
a nossa santidade, isto é, a nossa realização.
Continua
O Simbolismo do Corpo Humano – Parte 18
O nariz e as faces
Enfim, esse mesmo Damesheq contém a palavra Shoqed, que
estudaremos mais adiante. e que designa a "amendoeira".
Entre todas as árvores, é a amendoeira que irá simbolizar a "Semelhança"
do Homem com Deus, a deificação do Homem.
E a hora em que "a amendoeira floresce" (Ecl, XII: 7) é justamente a hora
na qual o Homem ingressa em sua eternidade.
A troca das letras de Shoqed — a amendoeira — dá a palavra
Qadosh, que quer dizer "santidade".
Ora, a santidade nada mais é que a Semelhança.
O nome de Damasco contém todo esse poder de evocação.
Não nos esqueçamos que foi "no caminho de Damasco" que o Apóstolo
Paulo "foi arrebatado até o terceiro Céu e que ele ouviu as palavras
inefáveis que não é permitido a um homem expressar" (II Cor, XII: 1-6).
Falamos dos frutos, de sua superabundância, de seu sabor, mas que dizer
da flor, de sua beleza, de seu perfume?
Beleza!
Ainda nos encontramos nas riquezas inesgotáveis de Tiphereth.
Mas, no nível do Triângulo superior, não é acaso ao redor de um nariz bem
feito que se harmonizam os traços de um rosto?
Não é essa "Torre do Líbano" que a cirurgia estética tenta reconstruir em
primeiro lugar nos casos em que o Homem geriu mal a obra do Criador?
Que grande responsabilidade, aliás, a de quem se permite tocar num nariz!
Trata-se de um ato mais grave do que o gesto formal o deixa supor, porque
o cirurgião toca, através desse órgão, em elementos muito mais profundos
do ser que, uma vez desintegrados pelo bisturi, não se reconstroem mais!
Os elementos de correspondência que ligam o nariz e a coluna vertebral,
relacionados com a escalada da sexualidade através de seus diferentes
modos de expressão, são tão importantes quanto os que ligam o ouvido e
os rins, a voz e o sexo.
Um rosto pode suportar um nariz malfeito.
Acaso a mulher, por mais feia que seja, não ganha certa beleza quando
ama e é amada?
Não adquire outra beleza quando espera um filho?
Mais maravilhosa ainda é a expressão daquele que se purifica a cada
estágio de sua evolução, que "separa o sutil do espesso", aquele que
espiritualiza continuamente esse espesso.
Oh, como é comovedora a beleza de um rosto que conheceu o inferno e
agora brilha com as primícias do Reencontro!
Beleza da flor desabrochada pela fecundidade!
A palavra Tiphereth contém Phar , a "fecundidade", como vimos,
mas contém igualmente Perot , os "frutos" que a flor promete.
Assim como a flor-de-lis simboliza, por sua forma e brancura, a expansão
do coração Tiphereth nos dois braços, um do rigor, o outro da misericórdia,
assim, no nível do rosto, a flor do ser expande-se na raiz do nariz e destila
seu perfume.
"Suas faces são como um perfume de aromas, canta a Shulamita, como um
canteiro de plantas odoríferas..."
Continua
O Simbolismo do Corpo Humano – Parte 19
Os olhos
Transportado até o terceiro Céu, o Apóstolo Paulo fica cego para o mundo
comum (At, 1X:9 e II Cor, XII:2).
Mas, essa experiência num homem que dirá de Cristo "Que significa 'Ele
subiu' sendo que ele também desceu às regiões inferiores da Terra?" (Ef,
IV: 9), implica bem a experiência de uma "descida aos Infernos".
E a cegueira de Paulo, consecutiva à "Obra em Branco", faz supor tudo
quanto à "Obra em Negro", que ele teve de assumir durante os três dias
seguintes e de que ele nada diz.
Depois da Transfiguração, Cristo desce ao túmulo, onde fica durante três
dias, assim como Jonas conheceu, durante três dias, as trevas do ventre da
baleia.
Paulo só recobra a visão pela imposição das mãos de Ananias, discípulo do
Senhor.
A cegueira, cujo exemplo é aqui tanto mais impressionante pelo fato de ter
sido real, encontra-se em inúmeros mitos.
E ela sempre simboliza as trevas do labirinto, experimentadas não mais no
infantilismo da ignorância mas no retorno ao arcaísmo da criança que
conhece.
Foi quando se tornou cego que Isaac abençoou seu filho Jacob.
Este último acaba de usurpar o direito de primogenitura e de vestir a túnica
de pele do "Homem vermelho" para realizar o destino do "Homem verde" de
sua raça.
A essa vocação, Isaac respondeu no nível de sua pessoa.
A idade com que ele morre, "190 anos, repleto de dias", significa que ele
realizou seu destino.
Esse número, que corresponde à palavra significa uma plenitude, um
fim, ao mesmo tempo que seu valor numérico — 190 — indica a Unidade
reconquistada.
É porque o segundo patriarca de Israel atravessa seu próprio labirinto
enférico, simbolizado pela cegueira, que ele promove, no nível da sua raça,
a escalada até o Divino.
Partindo de Abraão e de Isaac, a Árvore continuará a crescer através de
Israel.
Estudamos a cegueira de Édipo, detendo-nos sobre esse mito maravilhoso.
Lido na oitava do Real, para o qual este livro gostaria de abrir o coração do
leitor, essa narrativa não comporta nenhum moralismo.
A cegueira de Édipo refere-se a seus esponsais com a Mãe, assim como com
a Viúva; isto é, com sua "Obra em Negro", sem nenhuma idéia de
penalidade para sancionar um fracasso.
A filha de Édipo, Antígona, que serve de guia a seu pai, inscreve seu nome
entre os dos guias que vimos acompanhar os viajantes dessas Grandes
Trevas.
Somente Cristo, filho de Deus, desce sozinho aos Infernos.
Mas a dimensão cósmica dessa prova vai além de todas as normas.
O mito de que ainda não falamos, mas que lançará um clarão mais vivo
sobre a íntima relação olho-plexo solar e, mais particularmente, olho-
coração, é a narrativa bíblica de Tobias.
1. História de Tobias
O velho Tobias é um homem virtuoso.
Sua paciência é comparada à de Job.
Como Job, ele é submetido à provação: tomado pela cegueira, ele não pára
de orar e de louvar a Deus.
O mesmo faz sua mulher, Sarah, uma virgem que, sucessivamente, se
casara com sete homens que um demônio matava, um após outro, apenas
entravam no quarto da esposa.
"Ás preces de Tobias e de Sarah para que o Senhor a livre desse opróbrio
ou a tire de sobre a Terra foram ouvidas ao mesmo tempo diante da Glória
do Deus soberano. E Raphael, o santo anjo do Senhor, foi enviado para
curar essas duas pessoas" (Tb, III: 24-25).
Continua
O Simbolismo do Corpo Humano – Parte 20
O crânio
1. O Cérebro
Se olharmos um cérebro, ele desenha um novo germe cujo pedúnculo é
constituído pelo tronco cerebral.
Ao mesmo tempo que é a expansão da medula espinal, seu final, depois
que ela percorreu a escalada da coluna vertebral, o cérebro é um germe,
um começo!
Gostaria de voltar aos nossos amigos chineses que dizem ainda que o
cérebro, "colocado no céu do Homem, é o mar das medulas".
"Mar que se retira", poder-se-ia acrescentar, fazendo um jogo com a
palavra hebraica Moah , a "medula", cuja raiz, como vimos, é "a retirada,
o apagamento".
Mar de que o Aleph representa o fluxo e HaShem, o Yod , o refluxo.
Mar cuja respiração se enraíza no Shabbat do Aleph que atrai o Yod .
Ancorado no Céu, o Homem recebe do Aleph a corrente energética
descendente que constitui, na sua realidade imediata, ao mesmo tempo o
seu envoltório cutâneo, a sua veste de pele, que se tornará veste de luz, e
esse tecido nobre entre todos, branco nacarado, frágil e essencial, que
constitui as fibras nervosas, a medula e o cérebro.
Na sua realidade mediata, a luminosa substância do Aleph, tornando-se
Yod, energiza o cérebro que entesoura a própria essência do ser, recapitula-
a e a distribui, contanto que o Homem dirija o seu desejo para o Esposo
divino, isto é, contanto que ele se inscreva no seu nome, o seu Yod, e que
ele aspire ao Aleph, o Esposo-Pai, de que ele provém.
O jogo que liga o Aleph ao Yod lê-se na palavra Ei , que é o advérbio
interrogativo "onde".
Esse jogo de encontro e separação tece os diferentes espaços interiores,
campos de consciência, no qual o Vav é como que aspirado, apanhado na
"mão divina" à qual ele dá força.
2. O cerebelo
É no momento em que o tronco cérebro-espinal do Vav entra no crânio que
ele emite as seis raízes do cerebelo, órgão que, como acabamos de ver,
também é chamado de "árvore da vida".
O espantoso desenho que se vê aparecer, se se fizer um corte sagital do
cerebelo, parece uma folha de carvalho.
Arvore sagrada por excelência, o carvalho faz subir sua seiva segundo a
ordem de uma estrutura que parece poder ser comparada à da subida
energética do Homem.
Mas, na linhagem do rei Davi, chefe, cabeça desse povo, o chifre de Israel
se endireita.
E quando João Batista, o Precursor, chega ao mundo, seu pai, o grande
sacerdote Zacarias, clama o seu canto de alegria:
"Bendito seja , o Deus de Israel,
pois Ele visitou e resgatou o seu povo.
E erigiu o chifre da salvação na casa de Davi, seu servidor. "
(Lc, I:68-69)
O chifre messiânico consuma o seu desenvolvimento na pessoa de Cristo.
A consumação no seio de uma família é apenas germe na dimensão do
povo, germe que morre na terra para ressuscitar na dimensão de germe do
mundo ...
Esse chifre jaz no inconsciente popular sob o nome de "unicórnio", mudado
para "Licorne".
É uma outra expressão do terceiro olho no nível da fronte.
Licorne no alto da cabeça é "lucarna" no telhado de uma casa, lucarna
chamada ainda "olho-de-boi", o que confirma a ligação do chifre, do olho e
da luz.
4. Os Cabelos e a Coroa
Os cabelos, como as unhas, no nível do corpo humano, são feitos dos
mesmos elementos bioquímicos que os cornos dos animais.
Eles são os raios celestes, raízes pelas quais descem até o Homem as
energias divinas e o poder que lhe dá vida; raios que se tornam os ramos
de sua arborescência em seu ponto mais alto.
Os cabelos são símbolo da força divina.
A história de Sansão ilustra magnificamente a profundidade desta realidade
(Jz, XIV).
Consagrado a Deus desde o nascimento, Sansão "jamais viu uma tesoura
passar sobre sua cabeça".
Sua força constituía o terror do "adversário", simbolizado aqui pelos
filisteus.
Para dominar esse adversário, Sansão casa-se com ele.
Encontramos aí a lei que presidirá a Obra em Negro.
Esta é mais nitidamente significada ainda quando Sansão fica cego.
Enfim, ele morre sacudindo as duas colunas sobre as quais se levantava a
casa dos filisteus: estão aqui os dois pólos da dualidade que desmoronam.
Animado por uma força divina, contida em seus cabelos, primícias da coroa,
Sansão assume na morte um aspecto da primeira parte das núpcias de
Israel e de seu Deus.
Estamos lembrados de que na passagem pela "Porta dos Homens", os rins
simbolizam a força.
Estamos lembrados também que, para os chineses, "os rins florescem nos
cabelos!"
Arborescência, floração: sim, os cabelos são tudo isso.
Expansão da seiva, são a flor da sexualidade.
Falando do cabelo das mulheres, o apóstolo Paulo evoca a perturbação que
eles podem provocar entre os anjos...
"Os cabelos da mulher são a glória do homem", diz ele, enquanto que "os
cabelos do homem são a glória de Deus."
Recomenda, também, que o homem descubra a cabeça quando ora e que a
mulher fique de cabeça coberta (I Cor, XI).
A calvície — em hebraico Qereha — tem como sinônimos o gelo, a
geleira.
Ora, se a cabeleira, no alto da cabeça, simboliza a força e o coroamento da
sexualidade, é interessante notar que, no lado oposto, no fundo da descida
aos infernos, alguns viajantes, como Dante, encontram o mar de gelo,
símbolo de desnudamento total.
Penso que se trata de uma experiência análoga àquela que Sansão conhece
quando, durante a noite de sua "Obra em Negro", unindo-se a Dalila —
mulher cujo nome também está ligado à Noite — é tosquiado por ela.
As "sete tranças" de seus cabelos são cortadas.
Ele está calvo, privado da sua força.
Ora, o Bardo-Thödol aconselha àquele que deve voltar da morada dos
mortos, para nascer de novo, para "afastar-se da matriz samsárica", dirigir-
se para "o Reino da suprema Felicidade", ou seja, "para o Reino da densa
concentração, ou o Reino dos-que-possuem-cabelos-longos".
O que são a "mecha de Má" dos árabes e a trança tradicional dos chineses,
senão o raio de luz que os liga ao Céu e o sutil prolongamento da coluna
vertebral?
Todos os mitos relacionados com os cabelos têm um sentido sagrado.
Esses ritos, incrivelmente numerosos através do tempo e do espaço, vão de
um simples gesto simbólico a todo um arsenal de processos mágicos cujas
finalidades estão nitidamente ligadas à sexualidade de ordem profana.
Mas o Seu amor é mais forte do que tudo, e eis que pela boca do mesmo
profeta, o Esposo diz:
"Eis que a atrairei
e a conduzirei ao deserto
e falarei ao seu coração.
...
Eu te desposarei a mim para sempre,
Eu te desposarei a mim na justiça
e no juízo, na graça e na ternura .." (Os, II: 16-21).
Continua
O Simbolismo do Corpo Humano – Parte 21
A mandorla
Continua
O Simbolismo do Corpo Humano – Parte Final
Conclusão
Era grande o perigo de fazer de cada ramo uma árvore em si, e de oferecer
ao leitor a inextricável mata de uma floresta virgem.
Agora que o tronco central da árvore floresceu e deu seus frutos, desejo
que cada ramo cortado seja recolhido, por mim ou por outros, a fim de que
seus troncos, bem guiados, possam fazer eclodir sua admirável riqueza.
Pois, se cada um dos órgãos do corpo tem seu significado profundo — os
que estudei foram tão poucos —, as relações existentes entre eles também
têm sua importância; e não abordei esse tema!
Como se vê, o trabalho é imenso.
E se é imenso no plano da pesquisa, é infinitamente maior e mais urgente
no plano da experiência.
Chegado aí, parece que é de capital importância resgatar a hipoteca que
pesou — e ainda pesa — tão fortemente sobre a sociedade humana e o
indivíduo do Ocidente pela idéia de que se impregnou certa catequese, idéia
segundo a qual o corpo seria um instrumento de perdição.
Ora, o corpo é o mais maravilhoso instrumento de nossa realização.
Ele representa, primeiro, uma linguagem.
Essa linguagem que acabamos de tentar decifrar informa-nos de um
programa a ser realizado.
Pela linguagem da doença, ele nos previne de que tomamos o caminho
errado.
Depois, entre as mãos do obreiro que somos, ele é ao mesmo tempo a
matéria-prima a partir da qual trabalhamos, a ferramenta e o recipiente do
trabalho.
Mas, cuidado!
Se nos detivermos apenas nesta perspectiva trina, correremos o grande
risco de reduzir o corpo a um papel de objeto.
Ao mesmo tempo em que ele é esse instrumento, essa linguagem, essa
matéria-prima, ele é essencialmente o Homem, o encontro do corpo, da
alma e do espírito.
Cada um de nós é o seu corpo e, simultaneamente, sua alma e seu espírito,
e isso de forma inseparável.
E a menor parte do corpo carrega a totalidade do homem — corpo, alma e
espírito — à imagem de cada uma das Sephiroth que, embora distintas
umas das outras, contém a totalidade da Unidade divina.
Cortar uma parte do corpo é mutilar a unidade do Homem, sua harmonia.
Arrancar um dente, proceder à extração das amígdalas...
Existe algo aparentemente mais benigno?
Sim, aparentemente...
Sabe-se, e já insisti nisso, que quando falo de um órgão não falo
unicamente desse órgão em si, mas essencialmente da sua função que volta
à cena no nível de cada célula do corpo, enquanto esta é, em potência, um
corpo total.
Quando se procede à extração de um órgão, sua função não desaparece
totalmente, mas não se pode negar que ela é consideravelmente ferida até
a sua dimensão mais sutil.
A cirurgia até hoje não percebeu que cortar um vesícula biliar dizia respeito
ao coração da função de realização do ser.
Ela ainda não suspeita de que fazer uma incisão na pele, seccionando um
meridiano descrito pela tradição chinesa, é destruir em profundidade
trajetos energéticos. Ela não sabe que certas dores são iniciáticas, isto é,
ligadas a liberações de energias nessa etapa do caminho, e que convém,
portanto, não intervir.
A medicina ocidental, em geral, ainda não compreendeu a linguagem do
corpo.
O médico deverá tomar consciência de que só é médico aquele que vela na
gestação do Yod e que dá à luz o Homem para o Homem e, depois, para o
deus que ele é.