Evangelho de Marcos - Comentado
Evangelho de Marcos - Comentado
Evangelho de Marcos - Comentado
ISSN: 1809-8479
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Pontifícia Universidade Católica de Minas
Gerais
Brasil
RESUMO
O Evangelho de Marcos, o proto-anúncio da comunidade dos discípulos de Jesus, é
uma boa notícia para todo tempo e história. Trata-se de um importante querigma do
cristianismo inicial que perpassou pela história, sendo visitado e lido. Este artigo tem
como intuito apresentar a boa notícia marcana em sua estrutura e sentido teológico.
Para isso faz-se mister averiguar a redação, a linguagem, o esquema literário para a
depreensão da teologia da obra de Marcos, grosso modo, sua compreensão daquele que
narrou a si mesmo: Jesus de Nazaré.
PALAVRAS-CHAVE: Evangelho de Marcos. Querigma. Jesus de Nazaré. Teologia
marcana.
ABSTR ACT
St. Mark’s Gospel, the proto announcement of the community of the disciples of Jesus, is good
news for all time and for all history. This article aims to present Mark’s good news in its
theological structure and meaning. For this purpose, it is necessary to verify the script, the
language and the literary model in order to understand the theology of Mark’s writing and,
in a general way, to ascertain Mark’s understanding of the one who lived out his own story,
Jesus of Nazareth.
KEYWORDS: St. Mark’s Gospel. Kerygma. Jesus of Nazaret. Marcan theology.
1 Status quaestionis
Mestre em Teologia Sistemática pela Faculdade Jesuíta de Filosofia e Teologia - FAJE. Profes-
(*)
Montanha”, assim como muitas parábolas), esse evangelho foi menos estudado
e menos citado pela Tradição Patrística e nos escritos teológicos da Escolástica.
O Segundo Evangelho foi visto muitas vezes como um simples resumo dos ou-
tros evangelhos. Uma só exceção a esse desinteresse, mas de maneira prudente,
é o testemunho atribuído a Clemente de Alexandria, relativo à existência de
uma versão “secreta” do Evangelho de Marcos (Taylor, 1979, p. 31).
De acordo com Tuya, no século XIX, a adesão de muitos exegetas à
teoria das duas fontes (a pregação de Pedro e o protomarcos) conduz ao interes-
se de estudar o Evangelho de Marcos não somente como obra literária, mas
como documento, no qual se verificam camadas das tradições supostamente
“autênticas”, que podem servir de reconstrução da personagem histórica de
Jesus (1963, p. 617).
No início do século XX, em 1901, com a obra Das Messiasgeheimnis in
den Evangelien, zugleich ein Beitrag zum Verständnis des Markusevangeliums, de
William Wrede, dá-se início à pesquisa sobre o Segundo Evangelho. Para Wre-
de, Marcos não significava um ingênuo compilador de tradições históricas, ele
era, antes, aquele que conseguiu desenvolver uma tese precisa proveniente da
redação: o segredo messiânico, segundo o qual a messianidade de Jesus não deve
se tornar pública antes da ressurreição. O segredo messiânico seria um produto
do cristianismo primitivo. Wrede toma como ponto de partida a ausência da
reivindicação messiânica do Jesus histórico e permite reconciliar as duas cristo-
logias em conflito no cristianismo primitivo: uma cristologia “baixa”, segun-
do a qual Jesus se tornaria Messias a partir da ressurreição, e uma cristologia
“alta”, que interpretava a existência de Jesus terrestre em termos messiânicos.
Não se faz necessário dizer que esta hipótese foi largamente discutida e que,
hoje como ontem, está muito distante de um consenso. A leitura dos escritos
de Wrede sobre o Segundo Evangelho é fundamental para a compreensão da
teologia do autor do Evangelho de Marcos e sua intenção literário-narrativa,
afirma Cuvillier (2002, p. 17).
Em 1943, com a promulgação da Divino Afflante Spirito1, o Evangelho
de Marcos adquiriu uma real importância na Igreja Católica e, como os ou-
tros Evangelhos, deveria ser anunciado e estudado. Os estudiosos da Bíblia,
preocupados com a interpretação de Marcos e seu ensino nas faculdades de
1
No dia 30 de setembro de 1943, por ocasião da memória de São Jerônimo e do cinquentenário
da encíclica Providentissimus Deus; Pio XII publicou uma encíclica sobre os estudos bíblicos, a
Divino Afflante Spiritu. Tal encíclica é de suma importância para os estudos exegéticos. (Ver DH
3825).
2
Desde o princípio do século II o testemunho externo atribui unanimemente a paternidade do
Segundo Evangelho a Marcos, “o intérprete de Pedro”, fixando o lugar de composição em Roma,
apesar de que as opiniões posteriores o situam em Alexandria. Sobre a data de composição surgi-
ram variadas tradições, porém o conjunto dos dados inclina a situá-lo em uma data posterior ao
martírio de Pedro, não durante sua vida. Ver TAYLOR, p. 34. Segundo Pesch, “o anonimato da
obra indica a autoridade da Palavra, que sustenta a pregação da Igreja”. Ver PESCH, Il vangelo di
Marco. vol 1. Brescia: Paideia, 1980. p. 80.
3
O Evangelho favorito da Igreja primitiva foi o de Mateus. Desde Agostinho, seguiu-se a opinião
que a única coisa que fez Marcos, foi seguir e abreviar Mateus. Durante a Idade Média e depois
da Reforma, se escreveram alguns comentários, mas não se percebeu a prioridade de Marcos.
Também passou muito tempo para se reconhecer o valor da crítica histórica sobre o estudo do
Evangelho de Marcos.
4
Vale lembrar que muitos foram os que nesta época dedicaram seus estudos ao Evangelho de Marcos.
5
Embora estudando o discipulado de iguais no Evangelho de Mateus, Fiorenza faz alusão ao
Evangelho de Marcos. (Ver FIORENZA, E. S. Discipulado de iguais: uma ekklesia-logia feminista
crítica da libertação. Petrópolis: Vozes, 1995).
2 MARCOS: UM EVANGELHO
6
Uma leitura espiritual do Evangelho de Marcos é encontrada na obra recente de A. Grun (Ver
GRUN, A. Jesus caminho para liberdade: o Evangelho de Marcos. São Paulo: Loyola, 2006). Po-
demos encontrar também uma leitura orante de Marcos, baseada na lectio divina (ver FAUSTI, S.
Ricorda e raconta il vangelo: la catechesi narrativa di Marco. Milano: Ancora, 1998).
7
O método de análise narrativa (da obra marcana) pode ser evidenciado no trabalho de C. Focant
(ver FOCANT, C. Evangile selon Marc. Paris: Cerf, 2004).
8
A leitura estrutural pode ser observada na obra de O. Genest (ver GENEST, O. Le Christ de la
passion: perspective structurale: analyse de Marc 14,53 - 15,47, des paralleles bibliques et extra-
-bibliques. Montreal: Bellarmin, 1978). Lembramos também o estudo linguístico-semântico ela-
borado por Nolli (ver NOLLI, G. Evangelo secondo Marco. Roma: Agencia libro cattolico, 1978).
9
A forma de leitura sociológico-libertadora pode ser observada na obra de C. Gallardo (ver
GALLARDO, C. B. Jesus homem em conflito: o relato de Marcos na América Latina. São Paulo:
Paulinas, 1997).
10
Ver HERRERO, F. P. Evangelio según san Marcos. In: GUIRRARO OPORTO, S.; SALVA-
DOR GARCIA, M (Eds). Comentário al Nuevo Testamento. 2. ed. Madrid/Atenas, Madrid/PPC,
Salamanca/Sígueme, Navarra/Verbo Divino, 1995. p. 125. (La casa de la Biblia). BABUT, J-M.
Actualite de Marc. Paris: Cerf, 2002. Também encontramos algumas leituras latino-americanas so-
bre o Evangelho de Marcos: ARENS, E.; ASCENSIO, L. A.; DIAZ MATEOS, M. El que quiera
venir conmigo: discípulos según los evangelios. Lima: CEP, 2007. ALDANA, H. O. M. O discipu-
lado no Evangelho de Marcos. São Paulo: Paulinas/Paulus, 2005. MAZZAROLO, I. Evangelho de
Marcos: estar ou não com Jesus. São Paulo: Mazzarolo, 2004.
Jesus não fez de si mesmo o centro de sua pregação e missão. Jesus se sabia, vivia e
trabalhava a partir de algo e para algo distinto de si mesmo. [...] A vida de Jesus foi
uma vida des-centrada e centrada em torno de algo distinto de si mesmo. [...] Isso que
é central na vida de Jesus aparece nos evangelhos expresso com dois termos: ‘reino de
Deus’ e ‘Pai’12.
11
Ver PESCH, p. 33.
12
SOBRINO, J. Jesus, o libertador. A história de Jesus de Nazaré. São Paulo: Vozes, 1994. p. 124.
13
Esta afirmação pode ser encontrada na obra de Frankemölle, na obra Evangelium. O autor fala
de um aspecto básico intra-cristão, que foi o que possibilitou pela primeira vez o gênero literário
evangélico (ver GNILKA, Teologia, p. 164).
14
As relações do filho Jesus com o Pai e do Pai com o filho Jesus podem ser verificadas em Mc
1,11; 9,7; 14,36; 15,33. Evidentemente que esta não é uma preocupação marcana, mas é possível
identificar a relação de Jesus e Deus na narrativa marcana.
3.1 R edação
O livro de Marcos apresenta uma redação de conjunto, reunindo a ativi-
dade de Jesus, desde o batismo por João até a morte, juntamente com a narra-
tiva do sepulcro vazio16. Marcos contava com materiais muitas vezes fragmen-
tados, que não forneciam tanta objetividade. O material da tradição de Jesus
havia passado do âmbito semítico para o grego, sendo, em parte, configurado
ao modo de articulação da língua grega. Isso não significa que o Evangelho
tenha sido redigido em hebraico e depois traduzido para o grego. O autor es-
creveu em grego, idioma em que deve ter encontrado boa parte de seu material
tradicional, mas ele ainda pensava com o um semita.
Poder-se-ia ainda perguntar se o material utilizado pelo autor para a
redação do Evangelho seria exclusivamente oral ou também escrito. Segundo
15
Para Conzelmann, seguindo as considerações de Lohmeyer, Lightfoot e Marxsen, aquelas cida-
des têm valor teológico. Tais realidades ambivalentes servem para retratar a acolhida e o desprezo
para com Deus e sua Palavra encarnada. Jesus, a Salvação de Deus, retornando para a Galiléia
dos gentios convida os discípulos para o seguirem lá, onde os seres humanos desejam conhecer a
Deus. Hoje também, há muitos lugares desprezados pelo mundo capitalista que acolhem com fé a
Palavra e o próprio Deus (ver CONZELMANN, 1972. p. 186).
16
Ver VIELHAUER, P. Historia de la literatura cristã primitiva: introduccion al Nuevo Testamen-
to, los apocrifos y los padres apostólicos. Salamanca: Sígueme, 1991. p. 350.
17
Para Taylor, é preferível rechaçar esta hipótese. Segundo seu parecer, a maioria dos exegetas
admite que o evangelista utilizou uma só fonte: a coleção de sentenças de Marcos, contudo, neste
ponto, as opiniões se diferem quando se trata de determinar a natureza, identidade e unidade da
tal fonte. A importância das hipóteses levantadas consiste em que todas elas supõem que o evange-
lista utilizou várias fontes. Para um maior esclarecimento sobre este assunto e suas hipóteses (ver
TAYLOR, 1979, p. 89-98), ver também LAGRANGE, M-J, 1947, p. 33.
3.2 Linguagem
18
Apresentamos aqui os seis grupos de sumários: 1,14-15; 3,7-12; 6,6b-7; 8,31-33; 10,32-34 e
14,1-11. Ver RADERMAKERS, 1974, p. 41.
19
Observa Konings, em artigo a ser publicado, que Karl-Ludwig Schmidt, citando Wendling,
observou que Mc 1,1 tem colorido paulino, e o atribui ao redator do evangelho (Der Rahmen
der Geschichte Jesu. Berlin 1919. Repr. Darmstadt: Wissenschaftliche Buchgesellschaft, 1969, p.
18 e nota 10). De acordo com Gonzáles, Marcos não conheceu a teologia paulina, pois em seu
evangelho não se averigua indícios da pré-existência do Filho. Portanto, esta discussão poderia
permanecer suspensa, mas é possível imaginar uma possível intermitência entre estas tradições, que
conviviam contemporaneamente (ver GONZÁLES, 1992. p. 214).
20
Tuya diz que “a doutrina da justificação pela fé, tão típica do querigma de Paulo, não se encontra
exposta com a mesma clareza em Marcos”. Esta afirmação pode ser considerada irrelevante, pois,
Marcos não estava preocupado com a justificação pela fé, uma temática tipicamente paulina. Con-
tudo, podemos dizer que o querigma marcano é bastante claro: Jesus morreu e ressuscitou e seu
seguimento é fundamental para a salvação (ver TUYA, 1963, p. 620).
21
Este recurso literário também pode ser notado na narrativa das visitas dos parentes [a casa] de
Jesus, na qual Marcos intercala o confronto de Jesus com os escribas em que estes o acusam de estar
possesso por um demônio e de curar os enfermos pela força de Beelzebul (3,20-35). Jesus afirma
o que é central na narrativa: “Se Satanás se levanta contra si mesmo, e for dividido, não pode
subsistir; antes tem fim” (3,26). Em outras palavras poderia se dizer: Se uma família está dividida
contra si mesma não pode subsistir. Dois níveis podem ser percebidos nesta perícope; de um lado
a própria família de Jesus, de outro a família-comunidade, que corre o risco de se dividir, por
deixar-se levar pelo poder demoníaco. (ver GRUN, A. Jesus caminho para liberdade: O Evangelho
de Marcos. São Paulo: Loyola, 2006).
22
Em um mundo em que a história é a dos vencedores, Marcos escreve um relato de reverso da his-
tória, sobre esse judeu vencido, dirigido a uma comunidade de perseguidos não judeus, provavel-
mente romanos, a quem propõe como norma de vida esse judeu. Trata-se de um relato inconcluso,
de uma prática truncada violentamente que não dá resposta imediata à pergunta óbvia sobre o que
aconteceu com Jesus. É possível perceber que esta posição assumida por Gallardo parece divergir
não apenas da teoria sobre a teologia unitária de Marcos, bem como daquela sustentada em nosso
trabalho, o qual afirma que as teologias desenvolvidas pelo autor de Marcos visam a responder, de
forma narrativa, à pergunta “Quem é Jesus”? (ver GALLARDO, 1997, p. 21).
23
No intuito de reproduzir criativamente a tradição de Jesus, Marcos compõe sua obra por meio
de temáticas fundamentais: os arcos de tensão que, de acordo com Pesch, perpassam o Evangelho.
PESCH, 1980, p. 117. Preferimos aqui traduzir arcos de tensão, por eixos teológicos.
24
Ver PESCH, p. 120.
5 CONCLUSÃO
Admite-se hoje que o Evangelho de Marcos equivale mais que uma cris-
tologia, i. é. um mero falar sobre Jesus. Para Marcos, o Evangelho é u cristolo-
gia narrada ou querigma, uma proposta para o discipulado.
A intenção de Marcos consiste em apresentar Jesus como condição de
possibilidade para o encontro com Deus, inclusive para os tempos hodiernos.
Ao ler e meditar o Evangelho segundo Marcos, o fiel encontra-se com Jesus
que narra a si mesmo e que se comunica como convite à práxis, à vivência do
testemunho.
Por fim, o Evangelho de Marcos é muito atual. Ao tratar-se de um con-
vite ao seguimento de Jesus na comunidade eclesial, o Evangelho de Marcos
poderia ser comparado com uma porta aberta para o encontro com Jesus, que
está do outro lado contando-se, dizendo sobre si, sobre o Reino, sobre a salva-
ção que ele próprio é capaz de conceder àquele que tem fé e que o deseja seguir.
REFERÊNCIAS
ARENS, E.; ASCENSIO, L. A.; DIAZ MATEOS, M. El que quiera venir conmigo:
discípulos según los evangelios. Lima: CEP, 2007.
GRUN, A. Jesus caminho para liberdade: O Evangelho de Marcos. São Paulo: Loyola,
2006.
HERRERO, F. P. Evangelio según san Marcos. In. GUIRRARO OPORTO, S.; SAL-
VADOR GARCIA, M (Eds). Comentário al Nuevo Testamento. 2. ed. Madrid/Atenas,
Madrid/PPC, Salamanca/Sígueme, Navarra/Verbo Divino, 1995. (La casa de la Biblia).
MAZZAROLO, I. Evangelho de Marcos: estar ou não com Jesus. São Paulo: Mazzarolo,
2004.
SOBRINO, J. Jesus, o libertador. A história de Jesus de Nazaré. São Paulo: Vozes, 1994.
Recebido em 10/05/2011
Aprovado em 20/05/2011