ZILBERMAN, R. Discurso, Memória e Oralidade
ZILBERMAN, R. Discurso, Memória e Oralidade
ZILBERMAN, R. Discurso, Memória e Oralidade
Discurso, memória
1, p. 47-56, e oralidade
jan./jun. 2005 47
Resumo
Este artigo apresenta uma reflexão teórica sobre memória oral, com base na Análise de Discurso (Lingüística),
considerando empiricamente uma pesquisa sobre memória da imigração de italianos no Brasil, na qual se observa,
sobretudo, a memória da sua língua materna, que foi apagada na história brasileira. Discute-se a necessidade de
ultrapassar aspectos empíricos nas discussões sobre memória oral, bem como a importância de um trabalho de
formulação da memória histórica, por diferença à noção de “resgate” da memória. Partindo de uma síntese dos estudos
discursivos da oralidade, propõe-se trabalhar esta dimensão do discurso com um estatuto forte, como prática
histórica de linguagem.
Palavras-chave: Discurso; Memória; Oralidade; Imigração.
Abstract
This study is a reflection about oral memory, which is developed from the theoretical aspects of Discourse Analysis.
It uses the memory of Italian immigration language as the core of an empirical research that considers their mother
language, in the way as they use it, which was forgotten in Brazilian history. It is suggested that this empirical work,
as well as a formulation of the memory history, could be used in similar studies of oral memory to improve the
notion of memory recovery. Moreover, it is intended to work this new dimension of the discourse under a strong
statement, as a thought of orality as a historic practical discourse.
Keywords: Discourse; Memory; Orality; Immigration.
da memória formulada (representada, dita, narrada) (Payer, 1999). lingüística conforme o seu aparecimento “bruto” na
Os resultados a que uma reflexão como esta forma oral ou modificá-la de um certo modo para que
pode levar são deslocamentos teóricos necessários para as se torne legível na escrita? Registrar ou não os aspectos
pesquisas com a memória oral, a partir da sua consideração mínimos – que se desdobram ao infinito – como as
como uma prática discursiva, isto é, como o discurso oscilações fonéticas e as rupturas sintáticas? Estas
em funcionamento na oralidade. São importantes os questões insinuam que o pesquisador percebe que está
trabalhos sobre a memória oral: por sua aproximação diante de uma forma outra da linguagem, diversa da es-
com certos saberes discursivos cotidianos dos sujeitos que crita, e que lhe aparece assim como um objeto estranho.
não são imediatamente visíveis na história; pelo modo Contudo, seria interessante que o questionamento
respeitoso como consideram os sujeitos observados na dos procedimentos e métodos de trabalho com o oral
pesquisa; pelo registro histórico de sentidos silenciados (cf. não saturassem o questionamento da oralidade; e que as
Orlandi, 1992)1 nos discursos predominantes. Mas convém questões empíricas ali notadas fossem apenas um começo,
que se ultrapasse a abordagem exclusivamente empírica da ou seja, que o estranhamento da oralidade fosse encami-
oralidade, se se quer levar a sério a oralidade na História, e nhado de um modo forte para a discussão teórica sobre
para isso é necessário enfrentar desafios teóricos. as condições de produção dessa linguagem. As questões
De minha parte, trabalhando na área da Análise empíricas surgidas no trato com o texto oral podem sim
de Discurso – cujos estudos teóricos sobre memória e ser um indício inicial da observação de uma diferença:
oralidade serão sintetizados adiante –, as observações e de que se trata, de fato, de uma “linguagem outra”, de
sugestões que aqui apresento sobre o trabalho com a uma alteridade às vezes incontornável com relação ao
memória oral baseiam-se na pesquisa de doutorado que domínio do discurso escrito. Pois, como se compreende
realizei, considerando as relações entre memória, escrita e em Análise de Discurso, toda linguagem outra é indício de
oralidade. O espaço discursivo de observação empírica foi uma formação discursiva outra, isto é, de um discurso outro,
o da memória da imigração italiana no Brasil, onde que como tal supõe um sujeito outro, um outro lugar de fala,
focalizei principalmente o esquecimento e a memória da uma outra posição discursiva. São de fato outras posições
língua materna dos imigrantes, cujo silenciamento se de sujeito que se apresentam na oralidade, outros pontos
deu de modo vigoroso no Estado Novo, mas teve início de partida das interpretações; enfim, outras racionalidades.
de modos mais brandos desde o início do processo de Neste sentido, é importante pensar que a orali-
imigração à época do estabelecimento da República. dade está em par não apenas com as questões empíricas
que margeiam aquelas da produção textual mas com a
A dimensão empírica da oralidade escritura, com a história registrada, aquela que mereceu
ser narrada por escrito.
Quando se trabalha com materiais de linguagem Conseqüentemente, manter a consideração do
oral, a tendência inicialmente é considerar a oralidade oral apenas no domínio da diferença empírica da produção
simplesmente como um material de linguagem empirica- de linguagem conduziria a buscar no relato oral
mente diferente do da escrita, e se a consideramos apenas elementos que, recortados das suas condições históricas
na dimensão empírica, trabalhamos com os mesmos de produção – a oralidade histórica –se inscreveriam na
pressupostos teóricos com que se lidam com a linguagem mesma concepção de história que dá continuidade à
dos documentos/textos escritos. Mas se estudamos a narração da histórica escrita já iniciada em outro lugar, apenas
oralidade como uma prática discursiva, considerando as acrescentando um apêndice, esclarecendo um elemento, so-
suas condições de produção, os seus sujeitos e a mando um episódio para a mesma interpretação de sempre,
natureza discursiva da memória que nela se produz e para o mesmo lugar discursivo de sujeito predominante na
circula, então podemos compreender a oralidade em narrativa da história. Em nossas pesquisas, foi possível
uma dimensão que vai bem além da diferença empírica, compreender que os sentidos e as interpretações que se
como lugar do outro (De Certeau, 1975). encontram na oralidade são susceptíveis de manifestar
De fato, a percepção, pelo pesquisador, das ques- um outro lugar de discurso, no caso o do sujeito imigrante,
tões da linguagem oral, pode iniciar-se empiricamente, com sujeito que fala a partir de um lugar seu, inscrito em um
a transcrição dos registros – como insistentemente esta outro lado da história oficialmente narrada. O trabalho
questão se apresenta nos debates sobre o método:2 a com a oralidade pode levar, portanto, a encontrar-se de fato
linguagem oral começa a apresentar suas diferenças a diferença na pesquisa: um outro sujeito na/da história.
empíricas insuspeitas já na transcrição. O que então se Ainda em relação aos procedimentos de trabalho
apresenta ao olhar do pesquisador são questões como: o com os textos, nas diversas áreas, é importante considerar
que incluir e o que deixar de lado, ao pontuar gramatical- a observação de R. Robin (1995) sobre uma diferença
mente o texto oral na sua transcrição? Registrar a forma fundamental entre a Análise de Discurso e a Análise
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Historiográfica. Nesta última, diz a autora, Note-se que, ao se encaminharem para esta
conclusão, as autoras não pressupõem, portanto, que o
o discurso não constitui um objeto. Os textos de arquivo oral seja de uma natureza discursiva radicalmente
são fontes que permitem, por uma adequação, o diferente daquela da escrita.
conhecimento do referente, das estruturas sociais. Não São pertinentes para a Lingüística as questões
há aí teoria do texto, da leitura. Sua decifração repousa que F. Gadet e F. Mazière apresentam para o estudo da
sobre o postulado de evidência, da transparência do língua oral, quando pensadas relativamente à questão do
sentido. O sentido já está lá. (Robin, 1995) sistema da língua. Contudo, justamente por este interesse
primordial, o encaminhamento de suas análises produz uma
Esta observação diz respeito à análise do circunscrição do tema que limita, ao meu ver, a discussão
documento de um modo geral. Quando se trata do sobre a oralidade à consideração do sistema lingüístico e às
texto oral, o trabalho de análise discursiva da linguagem demarcações formais da diferença entre oral e escrito.
adquire ainda a necessidade de outras atenções, que As autoras acabam deixando à margem, assim,
vêm sendo elaboradas nas pesquisas da área, como as questões discursivas consideradas importantes na aná-
que passamos a considerar. lise de discurso tal como praticada no Brasil, segundo a
orientação impressa à área particularmente a partir dos
Abordagens da oralidade nos estudos da trabalhos de E. Orlandi. Nesta perspectiva, faltaria à
linguagem abordagem de Mazière e Gadet considerar, para além da
noção de sistema, a natureza histórica da linguagem e as
A oralidade constitui-se em objeto de inves- implicações da relação entre oralidade e escrita para as
tigação nos estudos da linguagem a partir de diversas questões de ensino e de política lingüística, entre outras.
orientações teóricas. Em um artigo de 1986, “Effets de Voltaremos adiante a esta questão.
langue orale”, F. Gadet e F. Mazière sintetizam essas Indicaríamos nesse momento o percurso de
orientações, observando que elas se estendem, de modo análise diferente realizado por R. Barthes e E. Marty,
geral, desde as orientações sócio-históricas – que encontram em “Oral/Escrito” (1987), que alertam para que não se
o seu vigor na especificidade do discurso ordinário (por estabeleça uma determinação mecanicista entre os dois
diferença aos enunciados de porta-vozes legítimos e meios de expressão, oral e escrito. Estes autores entendem
institucionalmente relevantes) – e as orientações socio- a relação entre os dois meios como uma “relação não-
políticas – que se colocam contrárias à supremacia da necessária”, assinalando que a escrita não nasce do fato
escrita, valorizando sobremaneira a oralidade –; passando auditivo, que ela não é apenas transcrição do falado, e
também pelas orientações psicológicas – que postulam a sim, tem sua origem em um reconhecimento visual da marca.
espontaneidade e a veracidade do oral, opostas à artificia- Pode-se notar que as observações destes autores
lidade da linguagem escrita – até as orientações de cunho incidem sobre o oral e o escrito enquanto “meios e
sociolingüístico, que correlacionam as variedades orais com atividades que se avaliam relativamente às regras da língua
os elementos da situação social (o contexto de fala). Há e às variações que ela comporta e admite” (na expressão
ainda uma orientação estritamente lingüística, que, no de seu editor). Também neste estudo se ressente da falta
entender das autoras, faz do oral às vezes apenas um de uma ampliação da preocupação com a oralidade,
complemento da escrita e outras vezes um sistema muito embora sejam pertinentes duas observações dos
lingüístico que espera descrição, “na falta desta disciplina autores, que ao meu ver realçam a necessidade desta
ter-se colocado questões melhores a esse respeito”, ampliação. Uma é a observação de que o oral e o escrito
criticam as autoras (p. 57). constituem dois tipos distintos de expressão discursiva, que
Por seu lado, Gadet e Mazière visam, com este são submetidos a lógicas próprias e relacionados, entre
seu texto, colocar o oral como objeto da análise de outras coisas, com a memória. A outra é que o oral, no
discurso, considerando que “a forma pela qual o oral sentido amplo do que se chama de literatura oral,
‘faz discurso’ não é a mesma do escrito” (1986, p. 5). veicula principalmente valores e crenças próprias das tradições,
Elas preocupam-se então com o risco teórico de, ao que podem ser consideradas na relação com a cultura em
tratar como diferentes o oral e o escrito, acabarem por geral e com o saber específico que tal literatura elabora.
dividir a unidade do sistema da língua. Assim, considerando
que o oral e o escrito apresentam o mesmo sistema, as A oralidade como prática discursiva
autoras se limitam a questionar o embaraço que surge, No Brasil, como dizíamos, a preocupação com
contudo, do fato de que algumas categorias gramaticais a oralidade nos estudos discursivos da linguagem em
bem assentadas para o domínio escrito podem não ser nossas condições históricas específicas toma a cargo, de
identificadas como tais no domínio oral.3 um modo forte, a consideração dos valores e das crenças
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das tradições culturais, levando a considerações mais S. Auroux (1992) configura um lugar de inves-
abrangentes sobre a relação da oralidade com a escrita, tigação que também torna possível neutralizar a relação
com a História e com a memória. As reflexões baseadas mecânica entre escrita e oralidade de que falavam
na (re)leitura dos trabalhos de Michel Pêcheux – Barthes e Marty (1987). Segundo Auroux,
filósofo considerado o iniciador da Análise de Discurso
na França dos anos 60 – adquirem especificidades em não há nenhuma razão para que saberes situados
relação aos tratamentos da oralidade que acabamos de diferentemente no espaço-tempo sejam organizados do
expor. Nestas reflexões, considera-se que as condições mesmo modo, selecionem os mesmos fenômenos ou os
de produção “exteriores” à língua interferem no modo mesmos traços dos fenômenos [...] assim como línguas
pelo qual “o oral faz discurso”. diferentes, inseridas em práticas sociais diferentes, não
Esta consideração se dá na medida em que se são os mesmos fenômenos. (1992, p. 14)
compreende que: a) esse “exterior” se inscreve, pelo
imaginário do sujeito que produz linguagem, no “interior” O autor observa ainda que a língua é regulada
da significação (cf. Pêcheux, 1988, 1990a, 1990b); e b) a por instrumentos lingüísticos, tais como as gramáticas e os
oralidade é considerada em um estatuto particular nos dicionários, que participam do aparelhamento social das
processos discursivos que participam da constituição línguas nas sociedades humanas. A instrumentalização
histórica da sociedade brasileira, dada a especificidade de uma língua e não de outra, através de produções
desta história como a de um país colonizado, conforme culturais como estes instrumentos, em dada sociedade,
os trabalhos de E. Orlandi (1990, 2001, entre outros). A observa o autor, interfere na relação dessa sociedade com a
autora observa que a população que participou desse língua. Também os diferentes processos dessa instru-
processo, com sua linguagem oral não-legitimada, teve de mentalização produzem resultados específicos na relação
relacionar-se com o discurso e com a língua do das sociedades com as línguas. Isto conseqüentemente
colonizador ao se relacionar com a escrita e com a escola. interfere, pode-se concluir, na relação com a linguagem
Neste sentido, Orlandi tem ressaltado o fato de que a e com o discurso oral e escrito.
relação de uma sociedade com a língua é sempre uma Encontramos algumas observações específicas
relação historicizada, e não natural. de M. Pêcheux – além do conjunto de sua obra como
Nessa perspectiva de trabalho, S. Gallo (1992), plano de fundo – fecundas para o estudo da oralidade.
delineando a história da legitimação da escrita, desde a Em seu artigo “Ler o arquivo hoje” (1994), ele aborda a
escrita sagrada, e da conseqüente forma marginal que a divisão social do trabalho de leitura, mostrando como
oralidade adquire em função do processo de legitimação, se coloca, de um lado, a autorização para a interpretação
compreende a oralidade e a escrita como dois discursos aos profissionais da leitura (das Letras, da História, da
distintos. Com esta distinção, S. Gallo tematiza as possi- Filosofia) e, de outro lado (o da técnica), o apagamento
bilidades de apreensão do “discurso escrito” pelo aluno, da leitura nos empreendimentos chamados científicos
e analisa certos percursos que podem (ou não) levar à (matemáticos, lógicos). Cada uma destas partes realiza a
constituição do aluno em autor. Este trabalho traz com- seu modo (ainda que complementar ao outro), “gestos
tribuições importantes para a reflexão sobre o funcio- de leitura”, diz o autor, que produzem seus efeitos na
namento do discurso oral na instituição escolar. escritura e, conseqüentemente, na relação da sociedade com sua
Também M. A. Mattos (1991), tomando elementos própria memória histórica.
do discurso oral como tema de reflexão, focaliza o diálogo, O que Pêcheux aponta como “gesto de leitura”
enquanto atividade “linguajeira” (langagière), como um ele- pode e deve ser considerado, ao meu entender, nos
mento que constitui o cotidiano. A autora atribui à conversa trabalhos com a oralidade, sobretudo com relação aos
o estatuto de uma prática social, inclusive no interior de modos de interferência entre as forças da oralidade e as
grupos sociais que em seu cotidiano lidam fundamental- forças da escrita enquanto efeitos pragmáticos, em sua
mente com a escrita, como é o caso da universidade. ligação com a memória histórica dos diferentes grupos
Já T. C. Souza (1994), estudando a língua dos sociais. Na oralidade, produzem-se “gestos de leitura”
índios Bakairi, observa particularidades do oral em sua diferentes daqueles da prática discursiva escrita.
relação com a estrutura interna da língua, apontando a O que Auroux chama de “regulamentação da
importância de se considerar a oralidade como fator que relação dos sujeitos com a língua” produz, entre nós no
atua na constituição dessa língua indígena, em função da Brasil, certos recobrimentos na (re)produção de uma divisão
historicidade (que é oral) da própria língua. Ela descarta bastante marcada no imaginário sobre a linguagem dos
assim a escrita como elemento ao qual seria necessário meios urbano e rural, enquanto lugares onde a escola e
remeter as marcas da oralidade – como é freqüente nos a mídia estiveram menos ou mais presentes, interferindo
estudos de línguas de oralidade. na relação do sujeito com a linguagem, a escrita e a
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oralidade; portanto, na interpretação. Esta divisão rural/ domínio da oralidade, enquanto a língua nacional
urbano chega quase mesmo a recobrir a divisão entre o (português) e a narrativa oficial da nação brasileira se
oral e o escrito, ficando imaginariamente a oralidade do reproduziram – em português – no domínio da escola, da
lado do homem do campo e a escrita do lado da escrita, tanto para brasileiros quanto para estrangeiros.
sociedade urbanizada. Reprodução e ênfase em uns e apagamento de sentidos
Ao nosso ver, divisões como esta, entre outros em outros levaram à estruturação imaginária tal como se
equívocos, levam não raras vezes a uma consideração da encontra hoje, no interdiscurso da sociedade brasileira.
oralidade como uma produção de linguagem “natural e Sobre o modo como o empreendimento da
espontânea”, como se todo o material discursivo que historiografia atua na estruturação da sociedade, são
se encontra na oralidade fosse gerado pela própria esclarecedoras as observações de M. de Certeau (1975),
“natureza” humana, ou seja, como se o discurso na quando fala sobre a história enquanto instituição do pas-
oralidade fosse independente da história, ou como se as sado para uma sociedade, e sobre a relação da História
forças da determinação histórica não atingissem o com a oralidade, mais especificamente com a oralidade
domínio da oralidade. construída como lugar do outro. O empreendimento da
Um dos aspectos que investiguei em minha História seria assim, a seu ver, o de debruçar-se sobre
pesquisa, e que torna bem clara a presença desta ligação este outro para encontrar-lhe um lugar, por meio da constru-
equívoca entre oralidade e naturalidade/espontaneidade, ção de um monumento escritural pelo qual “os fantasmas [do
no campo da imigração, é o fato de que há uma memória outro] retornassem menos tristes a seus túmulos”. Gerar
da língua (italiano) dos imigrantes, que foi historicamente história, diz o autor, é “gerar um passado, circunscrevê-lo,
apagada mas que retorna na prática de linguagem, em inú- organizar o material heterogêneo dos fatos para construir
meros vestígios dessa língua “apagada”. Esta investigação no presente uma razão” (De Certeau, p. 9). Mas esse
apresenta bases significativas para se propor com- empreendimento teria ainda, segundo o autor, uma outra
preender a oralidade como um lugar sócio-histórico particular função: a de proporcionar às sociedades humanas que se
de produção do discurso, que acolhe e possibilita que circulem tornem outras em relação a si mesmas. Trata-se, portanto, da
memórias discursivas que não puderam se inscrever socialmente na narrativa da História, sim, mas também do próprio processo
ordem da escrita. Considerando a memória da imigração, a pelo qual se engendram as mudanças na História.
oralidade torna-se bem visível como um lugar sócio- Eis aqui, novamente, um modo forte de
histórico de produção de sentidos, portanto como uma considerar a relação entre oralidade e memória, no qual
prática social de linguagem específica, distinta da prática da acreditamos: reaproximar razões da ordem da oralidade
escrita. Acrescente-se que, como não são isolados em suposta e da escrita, tanto quanto possível, por um trabalho de
autonomia, os saberes que se produzem na oralidade têm memória: um trabalho refinado de elaboração e processamento
de se relacionar com a escrita, e a relação entre essas duas históricos dos sentidos reais que participam da história, no sujeito
ordens dá as conformações particulares de cada uma. – embora não estejam escritos –, possibilitando dizer algo que
Nesta direção, compreendemos que também a ainda não foi dito.
oralidade é historicamente produzida. O que está no domínio
da oralidade não está aí por acaso, mas por um processo Sobre a memória discursiva e o esquecimento
histórico que mantém nesta ordem certos saberes que con-
tinuam sendo considerados em seu lugar de “saber oral”, Um outro aspecto a ser considerado quando se
desautorizados na ordem da institucionalização (escrita) trabalha com memória oral diz respeito à própria noção
dos saberes. Desautorização esta que é também histórica. de memória, quando considerada em sua dimensão de
Um fato estudado na pesquisa, pelo qual se linguagem, de discurso, em que ela adquire especifica-
observa bem a desautorização histórica, é o da naciona- ções. O tema da memória discursiva, extenso e fecundo na
lização dos imigrantes, no Brasil, e mais especificamente área da Análise de Discurso, que mereceu uma revisão
sua realização jurídica pontual pela campanha de nacionali- bibliográfica e uma certa interpretação na nossa tese de
zação dos imigrantes estrangeiros, realizada pelo Estado nas doutorado, será aqui indicado apenas nos aspectos necessá-
décadas de 1930 e 40. Por essa campanha foi interditada rios para encaminhar as questões apresentadas mais acima.
a prática das línguas dos imigrantes estrangeiros, o que os Uma primeira observação nessa direção diz
levou a professar/proferir a língua (portuguesa) e os respeito à relação entre a memória social e a interpre-
princípios da nacionalidade (da discursividade) brasileira, tação, expressa na questão da construção narrativa da
transformando-se, de imigrantes estrangeiros, em sujeitos “versão” histórica. Ou seja, a memória social não é natural,
nacionais (brasileiros). mas construída. Neste sentido, B. Mariani (1998) observa
As línguas, os dialetos, seus traços, suas memórias, que uma memória social que se narra resulta de um
continuaram a se reproduzir, de um modo próprio, no processo histórico de
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disputa de interpretações para os acontecimentos presentes da formulação do discurso, conforme o autor, é da ordem
ou já ocorridos, sendo que, como resultado do processo, dos elementos ditos, enunciados. Estes elementos são tanto
ocorre a predominância de uma de tais interpretações e os mecanismos sintáticos enquanto os “modos de organi-
um (às vezes aparente) esquecimento das demais. zação (próprios a uma determinada língua) dos traços
Naturaliza-se, assim, um sentido “comum” à sociedade, das referências enunciativas”, quanto os processos de
ou, em outras palavras, mantém-se imaginariamente o enunciação, entendidos como “uma série de determinações
fio de uma lógica narrativa. (Mariani, 1998, p. 34) sucessivas pelas quais o enunciado se constitui pouco a
pouco e que têm por característica colocar o ‘dito’ e em
A autora lembra que na memória social encon- conseqüência rejeitar o ‘não-dito’”. O autor diz ainda
tra-se que “a enunciação equivale pois a colocar fronteiras
entre o que é ‘selecionado’ e tornado preciso aos poucos
a garantia de um efeito imaginário de continuidade entre (através do que se constitui o ‘universo do discurso’), e
as épocas, ou, em outras palavras, a manutenção de uma o que é rejeitado”. E que deste modo
narrativa coerente para uma formação social em função da
reprodução/projeção dos sentidos “hegemônicos”. se acha, pois, desenhado num espaço escuro o campo de
“tudo o que teria sido possível ao sujeito dizer (mas que
Mas a impressão de linearidade que ali se não diz)”, ou o campo de “tudo a que se opõe o que o
produz, diz a autora, sujeito disse”. (cf. Pêcheux, 1990b, p. 176)
embora projete imaginariamente uma “realidade” em A partir desta distinção do autor, observando
que as relações de poder contraditórias e censuras em nossa pesquisa o funcionamento das nuances da
aparecem domesticadas, é constituída por lacunas – as narrativa da memória da imigração, passaram a nos
interpretações silenciadas – e por deslocamentos inerentes chamar a atenção algumas especificações do que se estava
ao próprio ato da repetição. (Mariani, 1998, p. 34) entendendo de um modo mais geral como “memória
discursiva”. Essas especificações se apresentam na medi-
A partir deste modo de compreender o processo da em que observamos que certos aspectos da memória
de produção da narração da memória histórica, notamos, histórica da imigração, mesmo sendo constitutivos dos
por nosso lado, que a oralidade tem uma função signi- sujeitos, não são por eles representados como tais, como
ficativa tanto na estruturação quanto na narração histórica: parte de sua memória, isto é, não lhes são visíveis. Esse
oralidade, escrita e memória histórica se entrecruzam funcionamento nos indica que há nos sujeitos o aspecto
em seu funcionamento, embora a escrita da História arranje da representação da memória histórica, formado por aquilo
esse cruzamento na produção de uma narrativa histórica que pode ser lembrado e dito, do outro lado da sua
única, que é aquela que vai predominar no imaginário so- constituição, aquele que não é lembrado e nem dizível,
cial – sobretudo quando se trata da história de uma nação. embora engendre o sujeito.
Para pensar nessa estruturação, gostaria de Aos aspectos constitutivos da memória histórica se
introduzir aqui uma questão: na produção das narrati- tem acesso, por exemplo, pelo estudo histórico, pelo saber
vas, há elementos que não podem ser ditos, em função de sobre (saber de outro): aspectos constitutivos dos sujeitos
certas razões que seguem à própria lógica interna da que passaram pela história da imigração/nacionalização
constituição do discurso, como se verá adiante. nem sempre são representados pelo sujeito estudado,
embora apareçam claramente aos olhos do pesquisador,
Memória constitutiva e memória representada: através dos elementos estruturais que embasam os sentidos/
duas instâncias de produção da narrativa histórica discursos que lhes são evidentes (sua “cultura”) ou os traços
para e pelo sujeito lingüísticos de uma língua outra – o italiano – presentes no
português que praticam. Por exemplo: o sujeito falante
Ao expor o que entende como discurso, Pêcheux nega que saiba o italiano ou que sua língua tenha influ-
(1988, 1990b) discerne entre dois domínios: o domínio ência da língua italiana, quando de fato os elementos do
constitutivo do discurso e o domínio da sua formulação. O italiano são facilmente identificáveis em seu dizer.
domínio constitutivo do discurso, segundo o autor, é Já a instância da representação da memória pode
aquele das regiões pré-lingüísticas ou não dos sentidos, ser ilustrada por aqueles fragmentos lingüístico-
em que atuam as formações ideológicas que determinam as discursivos que são reconhecidos pelos sujeitos como parte
formações discursivas, ou seja, que determinam “o que pode da sua memória histórica como imigrantes, tal como
e deve ser dito a partir de uma posição dada em uma ocorre na formulação de narrativas e de saberes, na
dada conjuntura” (cf. Pêcheux, 1990b, p. 164). Já o domínio enunciação de provérbios em dialeto, em certa associação
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imediata dos traços lexicais e fonológicos à figura do série de direções (e os seus riscos) que o trabalho com a
imigrante italiano. Nota-se então que é bastante complexa memória dos grupos em geral pode tomar. Entre elas, a
a relação entre os aspectos constitutivos e os aspectos repre- autora critica o “passadismo mistificador” da tradição,
sentados da memória, apesar de que eles não se confundem. operacionalizado no que ela chama de “nostalgias fan-
E como a relação entre oralidade e escrita tasmáticas”, que, ao nosso ver, é preciso não confundir
intervém nessa complexidade? É que aquilo que é da no entanto com “manque”, com falta, com falha
ordem da racionalidade escrita (a nacionalidade, a escola, histórica, com equívoco histórico.
a memória ali difundida) atinge também, inevitavelmente, A outra crítica trazida pela autora, com a qual
pelo real, o sujeito que tem na tradição oral sua base maior estamos de acordo, diz respeito à estereotipificação da
de linguagem. O que ficou na ordem da oralidade, memória: há aí uma transformação que faz com que certos
apagado do saber oficial – como é o caso das formas da sentidos antes genuinamente vividos por um povo
sua linguagem, em que traços de italiano aparecem no sejam retomados como “elemento cultural”, que expõe
português –, continua a ser reproduzido entre as gerações, aspectos desse mesmo povo – como a ostentação de
seja no modo socialmente pragmático de condução da uma heterogeneidade, de uma alteridade temporal, eu diria.
vida, seja nas formas sociais mais rituais. Considere-se aqui a produção teatralizada da memória,
O que queremos ressaltar é que a memória histórico- exposta como folclore. No caso dos imigrantes, as
discursiva não se esgota, portanto, na memória representada chamadas festas típicas, por exemplo, limitam-se, no
(“formulada”, narrada, dita). Quando se observa a língua meu modo de entender, a materializar certos aspectos
como a base material dos processos históricos, nota-se visíveis bastante superficiais da memória e dos sujeitos,
que não é tudo de uma dada memória histórica que pode aspectos que permanecem assim distantes dos sentidos
ser representado, verbalizado. Há algo da história que mais genuínos que constituem a formação discursiva de
não é representado pelo sujeito que fala dessa história. um grupo em sua vida cotidiana.
A partir do que se disse sobre o funcionamento Concordo com Robin ainda quanto ao questiona-
da memória em relação à oralidade, pode-se encaminhar mento que a autora faz da reapropriação crítica da
uma conclusão sobre a questão que vem se colocar ao tradição pelas vias da esquerda. Essa reapropriação
trabalho com o registro e interpretação da expressão da pode ser avaliada como um modo pelo qual alguém diz ao
memória oral para empreendimentos de construção das povo do que é que ele deve se lembrar a respeito de si
narrativas históricas, expressão que não é, como temos mesmo. A autora observa que repetir as lembranças de
visto, apenas empiricamente diversa, mas também um passado próximo, nesse sentido, pode ser uma
discursiva e historicamente diversa. Não há na forma de ofuscar o presente, e isto serve tanto a
“expressão” oral a transparência que se quer dela. O resistentes como a militantes. Ao lado destas, uma outra
dito (oral) entretém relações intrínsecas com o não-dito função das lembranças de um passado próximo pode
e com o não-dizível, que são da ordem da instância ser ainda a de fuga de um presente conflituoso, como se
constitutiva da memória histórica. dá na produção intensa de falas de retrospecção
Nessa região entre o formulável em narrativa e o (saudade, reminiscência) por parte de sujeitos imigrantes
material histórico irrepresentável porque constitui o sujeito, no Brasil (cf. Payer, 1996).
há toda uma gama de esquecimentos, de interdições, de Reorganizar o passado em função das necessida-
silêncios, que o produto dos enunciados orais não retoma, des presentes é uma postura interessante das sociedades
não recupera nem resgata, embora possa trazer vestígios modernas, e aparece como uma forma considerável de
deles. Essas “camadas arqueológicas” de lembranças e se trabalhar a memória. Este aspecto não aparece claro,
esquecimentos fazem parte não só do funcionamento contudo, nas apreciações críticas de Robin, que encami-
do discurso oral, mas também do funcionamento da nha seu dizer pelas vias de uma mescla entre a história e
própria memória histórica no sujeito e na sociedade, a ficção literária, vias estas que me parecem bastante si-
assim como do funcionamento do discurso na história. nuosas. O fato de intervir em sua reflexão insistentemente
Caberá, portanto, ao trabalho sobre a memória a noção de “memória subterrânea” obscurece o modo
oral, tentar encontrar os vestígios dessas tensões, das como a autora considera as possibilidades de reorgani-
sobreposições, do jogo de força entre os sentidos zação do passado.
(im)possíveis de serem ditos. As considerações de Robin podem e devem, ao
meu ver, ser tomadas como alertas importantes, sem
Conclusões: formular discursivamente o passado contudo diluir o valor do trabalho com a memória,
pela memória oral porque ele pode ser conduzido, com os grupos sociais,
como um trabalho específico de formulação discursiva do
R. Robin (1995) apresenta criticamente uma passado, formulação que não se dá sem conseqüências
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54 Maria Onice Payer
para a reoganização de sentidos presentes. A noção de memória, M. Pollak (1992) chama a atenção para um
formulação tal como estamos entendendo, vinda de seu aspecto interessante: há algumas situações em que a
estatuto teórico de contraparte do nível constitutivo do memória social é intensivamente acionada, como nas situa-
discurso, como se disse acima, adquire outros sentidos ções de catástrofe. E apresenta, por outro lado, situações
na observação dos fatos do funcionamento da memória na em que a memória social é impossível de ser processada,
(re)elaboração do passado. Não gostaria de tornar esque- como no caso de sujeitos remanescentes de campos de
máticos os outros sentidos da formulação, mas vale concentração, em que a memória histórica socialmente
discernir algumas dessas especificações, por sua pertinência produzida não comporta elementos suficientes para esse
para o trabalho com a memória oral. processamento. Formular, neste caso, seria diminuir.
Tenho refletido sobre a formulação da memória Assim, ao considerar a importância da formu-
discursiva sobretudo como uma contraparte dos proces- lação das memórias que não puderam se processar na
sos históricos de silenciamento/apagamento, dos quais história, está-se falando sobre a possibilidade de um
nos fala Orlandi (1992). Neste sentido, tenho notado trabalho cuidadoso de produção discursiva da memória e do
uma importância particular na formulação dos aspectos passado. Isso é bem diferente da idéia mais simples de
que foram apagados/esquecidos, e que são entretanto “resgate da memória”, que suporia uma memória discur-
constitutivos da memória histórico-discursiva. siva que já está lá, significada e pronta para ser dita.
Essa importância reside não só no direito à Formular, nessa perspectiva, significa dar estatuto
expressão dos povos, mas ainda no fato de que a de linguagem (de real, portanto) a sentidos que, apagados,
formulação, por desdobramentos próprios do ato de não foram ou não são possíveis ao sujeito no conjunto
dizer, pode provocar uma mexida no estatuto daquilo que é do dizível. Formular significa então poder acolher sentidos
constitutivo e daquilo que é representado no discurso, na própria apagados que, embora sem lugar, não deixam de fun-
cisão entre estes dois domínios da memória. A formulação de cionar no sujeito de um modo constitutivo; significa
certas interpretações históricas possíveis e apagadas (na trazê-los à tona, dar-lhes um destino.
ordem da escrita e do dizer autorizado) permite que a Essa proposta teórica de trabalho com a me-
sociedade/o sujeito saia de sob a determinação da mória parte da compreensão de memória, conforme
interpretação que lhe produz as evidências históricas, ou seja M. Pêcheux (1985, p. 263), como “aquilo que vem
(parafraseando M. de Certeau (1975)), permite que a restabelecer os implícitos de que a leitura necessita,
sociedade/o sujeito torne-se outro em relação a si mesmo. como condição do legível em relação com o legível
Nesta direção, aquilo que não é formulável pelo mesmo”. A importância que vejo em formular, em
sujeito/sociedade em um momento histórico dado, elaborar memórias históricas silenciadas, carrega uma
pode bem ser em outro. Dizer o não-dito pode dar forte confiança nesta compreensão.
espaço a certas interpretações e/ou memórias históricas São diversos os sujeitos brasileiros que merecem
que estavam silenciadas. em sua história certos “restabelecimentos de implícitos”,
Certamente, pelo próprio funcionamento do certos esclarecimentos, a fim de que se criem condições
discurso, não é todo o “não-dito” que pode vir a ser sociais e históricas não somente de leitura, mas sobretudo
dito: na medida em que sentidos não-ditos adquirem um de legibilidade dos sentidos: a legibilidade se cria quando
estatuto de linguagem, haverá sempre algo mais atuando a leitura pode ser feita desde um lugar de memória
como constitutivo (não-formulável) para o sujeito. Estamos reconhecível pelo sujeito.
dizendo que, pelo trabalho de formulação do passado, o Pêcheux diz ainda, quanto à memória, que não
sujeito pode ter acesso a sentidos que o constituem e que se trata de uma “esfera plena”, de um suposto conteúdo
estavam abafados a partir de uma história de silenciamentos. homogêneo, mas sim de um “espaço móvel, de divi-
Tal processo de formulação supõe, insistimos, um sões, de disjunções, de deslocamentos e de retomadas,
trabalho simbólico com a memória discursiva: uma coloca- de conflitos” (Pêcheux, 1985, p. 267). Acredito que esta
ção em relação de formulações e silêncios, de diferentes definição expresse bem a condição heterogênea das
memórias discursivas em tensão, de saberes que já memórias coletivas no Brasil. Encontrar, no território
estavam em uma tradição e aqueles outros que chegam, das instituições, as fendas que alojem dizeres potenciais, ou
vindo desestabilizar a fixidez dos discursos instituídos. simplesmente dar lugar a dizeres comuns que merecem ser
Neste sentido, é importante que o sujeito/a reconhecidos, constitui um desafio para quem acredita
sociedade possa formular discursivamente, isto é, reconhecer no trabalho de elaboração discursiva da memória.
a(s) memória(s) que os constituem historicamente, e que possa Tal elaboração pode ser considerada de modos
relacioná-la, compará-la a outras interpretações e versões, diferentes e produtivos em diversas áreas das ciências
reorganizando, esquecendo ou atualizando saberes. humanas. Mas em qualquer área que ela se dê, é
Sobre a relação entre sujeito e produção da importante que o sujeito com quem o agente cultural se
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Discurso, memória e oralidade 55
relaciona esteja implicado nessa elaboração, pois ela BARTHES, R.; MARTY, E. Oral/Escrito. Enciclopédia
serve, antes de tudo – como na escrita da história – ao Einaudi. Lisboa, Portugal: Imprensa Nacional; Casa da
sujeito que a elabora. Moeda, 1987. v. 11, p. 32-57.
A importância de trabalhar a(s) memória(s) DE CERTEAU, M. A escrita da história. Trad. Maria de
discursiva(s) com que se identificam os grupos sociais, em Lourdes Menezes. Rio de Janeiro: Forense-Univer-
nosso meio, reside então não no sentido mais comum que sitária, 1982. (1975).
remete ao resgate, à recuperação e conservação do passado,
mas na possibilidade de se compreender como se dão os GADET, F.; HAK, T. (Org.). Por uma análise automática
deslocamentos de sentidos, as mudanças, as relações com do discurso. Uma introdução à obra de Michel Pêcheux.
as diferenças, para que se possa socialmente, institu- Trad. Bethania S. Mariani et al. Campinas: Ed. da
cionalmente, operacionalizá-los onde e quando convém. Unicamp, 1990.
Nessa elaboração, considerar a oralidade em GADET, F.; MAZIÈRE, F. Effets de langue orale.
um sentido forte contribui não só para a reorganização Langages, Paris: Larousse, n. 81, p. 57-73, 1986.
do passado, mas, na sua contraparte, para a produção
de mexidas históricas que tornem possível ultrapassar GALLO, S. Discurso da escrita e ensino. Campinas: Ed. da
os limites do presente. Unicamp, 1992.
MARIANI, B. O PCB e a imprensa: os caminhos no
Notas imaginário dos jornais (1922-1989). Rio de Janeiro:
Revan; Campinas, SP: Ed. da Unicamp, 1998.
1 Sobre a noção de silenciamento e de apagamento de sentidos, ver o MATTOS, M. A. B. Memória e dispersão no quotidiano.
trabalho de E. Orlandi ganhador do prêmio Jabuti em Ciên-
1991. Tese (Doutorado) – IEL, Unicamp, Campinas,
cias Humanas: As formas do silêncio – no movimento dos sentidos.
Campinas, Ed. da Unicamp, 1992.
1991.
2 Retomo aqui questões da interlocução que tive sobre a
ORLANDI, E. P. Terra à vista. Discurso do confronto:
memória oral, durante a elaboração de minha tese de douto- velho e novo mundo. São Paulo: Cortez; Campinas: Ed.
rado, com colegas pesquisadores que trabalham com História da Unicamp, 1990.
Oral em diversas oportunidades: no Colóquio P. Zumthor,
na mesa-redonda Oralidades em espaço-tempo (PUC/SP, 1996) e ______. As formas do silêncio. No movimento dos
no simpósio internacional Migração: nação, lugar e dinâmicas sentidos. Campinas: Ed. da Unicamp, 1992.
territoriais, em sessão de trabalho sobre História Oral (USP,
______. História das idéias lingüísticas. Construção do
1999); e também em dois seminários que realizei: na
disciplina “História oral e memória”, do Departamento de saber metalingüístico e constituição da língua nacional.
História da PUC/SP (1999) e no Centro de Memória da Campinas: Pontes, 2001.
Unicamp (1997). Dirijo-me também aos colegas que atuam PAYER, M. O. Retrospecção e estereotipia. Imagens
nos movimentos sociais debatendo-se sobre a consideração urbanas sobre o campo. Rua, n. 2, mar. 1996.
da memória cultural dos grupos.
3 Trata-se das estruturas coordenativa e apositiva, conforme o ______. Memória da língua. Imigração e nacionalidade.
trabalho de C. Blanche Benveniste: “La dénomination dans 186 p. 1999. Tese (Doutorado) – IEL, Unicamp,
le français parlé: une interprétation pours les répétitions’ et Campinas, 1999.
les ‘hésitations’”. Recherches sur le français parlé, Aix-en-
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Sobre a autora:
Maria Onice Payer é doutora em Lingüística pelo Instituto de Estudos da Linguagem da Universidade Estadual de
Campinas, professora do Programa de Pós-Graduação em Lingüística da Univas (Universidade do Vale do Sapucaí)
e pesquisadora colaboradora do Labeurb (Laboratório de Estudos Urbanos) da Unicamp.