''A Praça (Não) É Nossa'' - Uma Discussão Sobre Vera Verão, Identidades, Racismo e Estereótipos. Murillo Costa 2019 - UEPG.
''A Praça (Não) É Nossa'' - Uma Discussão Sobre Vera Verão, Identidades, Racismo e Estereótipos. Murillo Costa 2019 - UEPG.
''A Praça (Não) É Nossa'' - Uma Discussão Sobre Vera Verão, Identidades, Racismo e Estereótipos. Murillo Costa 2019 - UEPG.
PONTA GROSSA
2019
UNIVERSIDADE ESTADUAL DE PONTA GROSSA
SETOR DE CIÊNCIAS HUMANAS, LETRAS E ARTES
DEPARTAMENTO DE HISTÓRIA
PONTA GROSSA
2019
AGRADECIMENTOS
1903.
A primeira vez que um homem branco
observou um homem negro, não como um
um “animal” agressivo ou força braçal
desprovida de inteligência. Desta vez
percebe-se o talento, a criatividade, a
MÚSICA! O mundo branco nunca havia
sentido algo como o “blues”.
Um negro, um violão e um canivete.
Nasce na luta pela vida, nasce forte,
nasce pungente. Pela real necessidade
de existir!
Resumo: a presente pesquisa busca analisar como o racismo brasileiro ainda se faz
presente na produção cultural brasileira através do quadro “Vera Verão”,
interpretada por Jorge Lafond, no programa televisivo “A praça é nossa” do Sistema
Brasileiro de Televisão (SBT). O recorte temporal utilizado foi de 1992 até 2003 para
obter-se uma visão panorâmica da personagem durante esses onze anos.
Objetivou-se compreender a trajetória racial dos negros e negras no Brasil, a sua
construção racial, bem como as consequências do processo histórico escravocrata
brasileiro na sociedade contemporânea. Para tal, como arcabouço teórico foram
utilizados os conceitos de identidade, raça, estereótipos e racismo. As fontes
utilizadas são os recortes de jornais selecionados da década de noventa e os
recortes de vídeo do programa nos quais aparece a personagem Vera Verão. A
análise do programa foi feita a partir da noção de que ele se trata de uma produção
cultural e mercadológica, e, portanto, tem suas próprias pretensões e características.
E, como está inserido no contexto cultural brasileiro, entendeu-se que se trata de um
aspecto cultural da vida brasileira, ainda mais se levar em consideração o fato de
que esta personagem, bem como o quadro em que ela aparece, marcou uma
geração toda, de tal forma que se torna relevante a análise de suas características
para compreender os motivos pelos quais cativou toda uma geração de pessoas.
Esta pesquisa busca elucidar as nuances e atuações do racismo brasileiro, a fim de
demonstrar a sua complexidade, almejando contribuir com reflexões à sua
superação.
INTRODUÇÃO .......................................................................................................... 12
CAPÍTULO 1 ............................................................................................................. 18
CAPÍTULO 2 ............................................................................................................. 36
FONTES .................................................................................................................... 55
REFERÊNCIAS ......................................................................................................... 57
12
INTRODUÇÃO
1
Disponível através do link: http://memoria.bn.br/hdb/periodico.aspx?fbclid=IwAR05ogARTI-
hPJgUdxQrCLwmLOLCOixFtqSwzHYPsxa2LtYsKuYzqZqNiqg.
14
O conceito de raça possui uma história bastante longa e complexa, visto que
por muito tempo ele foi utilizado de diferentes formas. Inicialmente, utilizado para
distinguir os seres humanos e aqueles que não eram considerados seres humanos
(os negros, por exemplo). Após este período, entre o século XIX e início do XX,
houve diversas teorias científicas que visavam comprovar cientificamente que
haveriam distinções entre as “raças humanas” e, portanto, justificar a inferioridade
de certas categorias (ou a superioridade de outras). Hoje sabe-se que todos nós,
seres humanos, pertencemos a uma só raça. Porém, esse legado de séculos de
história acarreta consequências até os dias atuais, desde a forma como as pessoas
não-brancas são tratadas, na forma de distinções propriamente ditas, nas quais,
principalmente os negros, são considerados inferiores por conta de sua cor de
pele/etnia. Como será demonstrado nesta pesquisa, é necessário retomar essa
discussão a fim de mostrar que o racismo ainda existe e é necessário que ele seja
combatido. Da mesma forma na qual se utilizou da ciência por muito tempo para
justificar a dominação dos povos brancos e caucasianos sobre aqueles
considerados diferentes, hoje se faz necessária utilizar da ciência para demonstrar
que estas concepções são ultrapassadas e não condizem com a realidade,
buscando cada vez mais a superação destas mazelas na busca de uma sociedade
cada vez menos preconceituosa e injusta.
Por fim, vale ressaltar os dados trazidos pelo Atlas da Violência de 2019, o
qual demonstra “[...] a continuidade do processo de aprofundamento da
desigualdade racial nos indicadores de violência letal no Brasil.” (IPEA; SBSP, p.
48). Tratando-se de números:
17
CAPÍTULO 1
JORGE LAFOND: UMA NOÇÃO SOBRE IGUALDADE
2
Informações disponíveis através da redação do jornal Estado de São Paulo. Acesso em: 20 nov.
2019. Disponível em: https://emais.estadao.com.br/noticias/gente,relembre-a-trajetoria-de-jorge-
lafond-a-vera-verao-dentro-e-fora-do-humor,70001718973
3
Em entrevista ao programa de Elke Maravilha (1993).
19
viveu por dez anos a personagem Vera Verão, além de diversas participações nos
carnavais carioca e paulista.
Natural do Rio de Janeiro, nascido no bairro de Laranjeiras, filho único, foi
criado no subúrbio da Penha. Entendia-se como homossexual desde os 10 anos de
idade, e diz que na sua família nunca houve preconceito contra ele. Contava que
sempre teve consciência do preconceito com os negros e homossexuais, deixando
explícito em suas entrevistas que não era algo que lhe afetava, buscando seguir
sempre “seguir em frente de cabeça erguida”. Através de suas entrevistas fica nítido
a sua consciência sobre o fato de que por ser homossexual, negro e artista foi vítima
de vários preconceitos. Todavia, Lafond buscou incrementar seu currículo através de
uma formação de qualidade, contando com uma passagem por 5 anos na Europa, e
acreditava que por conta disso as pessoas o respeitavam.
Em entrevista para o UOL¸ Edvan Rodrigues de Souza (Buiu/Azeitona) relata
que pelo fato dos dois serem negros e Lafond homossexual, ambos já tinham sido
vítimas de diversas ações preconceituosas nas ruas. Além desse relato, um episódio
triste um pouco antes de seu falecimento traz indícios de que mesmo Lafond
possuindo essa postura, não estava imune de ser atingido por possíveis atitudes
preconceituosas. Em 10 de novembro de 2002, poucos meses antes de sua morte,
em uma participação no programa Domingo Legal (SBT), no quadro “Homens x
Mulheres”, Jorge Lafond (que no quadro estava na personagem Vera Verão e
integrava o lado feminino da disputa) foi convidado a se retirar do palco e “colocar
roupa de homem” pouco antes da entrada do Padre Marcelo Rossi.
Tais episódios exemplificam que, mesmo buscando através da sua arte e de
seu trabalho, impor respeito e levar uma imagem positiva dos negros e
homossexuais durante a sua carreira, acabou por passar por situações
preconceituosas. Lafond se referia a sua homossexualidade como uma arma para
derrubar o preconceito, levantando a bandeira contra a discriminação, tanto contra
os gays como aos negros e negras. Relatou que buscou através da sua carreira
construir uma aceitação com o público, além de buscar passar informações sobre o
mundo gay para que houvesse cada vez menos preconceitos4.
Jorge Lafond, em entrevista à revista Amiga (1982) relata que jamais se
sentiu uma mulher, mas que possuía grande fascinação por elas, deixando nítido
4
Em entrevista à Revista Amiga 1985.
20
que não queria competir e que existia um verdadeiro homem dentro de si. Essa
entrevista traz a luz questões importantes para se entender tanto a pessoa Jorge
Lafond quanto sua personagem Vera Verão, deixando compreensível que Vera
Verão tratava-se de uma personagem que Lafond deu a vida, mas que nunca se
identificou como uma mulher, travesti ou transexual, tratando-se apenas de sua
personagem. Entretanto, dela buscava passar uma imagem positiva e não agressiva
sobre os homossexuais, colocando uma performance sobre sua personalidade, que
segundo ele, é uma personalidade do mundo artístico. Além do texto que lhe era
passado, buscava trazer simpatia e naturalidade, almejando uma maior aceitação do
público.
Cabe ressaltar que mesmo demonstrando uma postura de indiferença aos
possíveis preconceitos que estava sujeito, através de suas entrevistas e falas,
Lafond transparece não ter sido tão alheio a estes acontecimentos. Em uma das
suas entrevistas ele diz que se alguém “se metesse com ele” ele partiria para briga.
No episódio em que foi convidado a se retirar e trocar suas roupas femininas por
masculinas5, em entrevista posterior relata que se tivesse tido oportunidade
responderia aos fatos. Suas falas demonstram que, diferente da imagem pública que
tentava passar, ele se importava com essas situações, porém, buscava passar uma
imagem forte da sua pessoa, impondo-se publicamente.
Sua identidade como artista é construída através de diversas características:
ele se coloca como um homem viril, como um artista respeitado e conceituado, além
de uma memória seletiva sobre sua infância e adolescência. Em suas entrevistas ele
lembra das coisas boas que lhe ocorreram no passado, relatando um estupro como
se fosse iniciação sexual6. Além disso, deixa evidente que é homossexual e que
gosta de homens, e que em hipótese alguma ficaria com mulheres.
Fica compreensível que Lafond buscava passar uma identidade para o
público, que seria a de homem viril, bastante conceituado culturalmente e
profissionalmente e inabalável. Porém, o questionamento que fica é que, através de
suas entrevistas e falas públicas, é evidente que essa identidade é apenas a que ele
passava para os demais, fato que abre possibilidades para questionar, quem era
Jorge Lafond na sua vida privada? Infelizmente a esta questão não será possível
5
Conferir: Jorge Lafond Vera Verão última entrevista, disponível em:
https://www.youtube.com/watch?v=fm9DSmLQ9bY
6
Em entrevista a revista Casseta & Planeta.
21
7
Já no período deste texto (década de 90) já eram sentidos esse fenômeno causado pelas mídias.
Fato que é muito mais fácil de se visualizar atualmente, através da internet de alta velocidade, a
crescente globalização e a chamada “era digital”.
23
8
Disponível em: https://bastidoresdainformacao.com.br/ueeepa-bicha-nao-relembre-a-historia-de-
jorge-lafond-a-vera-verao/>. Acesso em: 11 abr. 2019.
24
Mesmo Jorge Lafond falando sobre sua personagem como uma criação,
sobre o seu entendimento de que se trata de uma performance na qual o ator
expressa traços de sua identidade e que ele não se identifica como uma mulher, a
grande maioria das pessoas dificilmente chegam a ter o contato com essas
informações. Como trata-se de um produto de massa, distribuído e produzido
através de uma indústria cultural, aquilo que se entende e se interpreta é o que está
visível naquele momento, mesmo que o ator, como diz em suas entrevistas, busque
passar uma imagem melhor sobre os gays. Dessa forma, a crítica que se faz ao
programa, e por extensão, à personagem, é o fato de que dificilmente, nos moldes
propostos naquele quadro de TV, seria possível transmitir outra imagem que não
fosse algo estereotipado e caricato. Tais características, criticadas anteriormente,
são o que fundamentam a noção crítica sobre a personagem e sobre a atuação de
Lafond, evidenciando-se que, através destes mecanismos, é possível que aquilo que
“fique” marcado sobre a personagem e o programa é apenas uma visão caricata e
“engraçada”, na qual os gays, as mulheres e os negros são ridicularizados para a
construção de um quadro de humor.
agora são feitas (re)significações diferentes para essa palavra, e que a pouco tempo
atrás ela era utilizada em outro contexto, completamente diferente das novas
pretensões identitárias. Demonstrando o quanto é difícil pensar esse processo sem
uma ressignificação linguística e um combate a toda uma história de significados
derrogatórios anteriormente detonado a essa palavra. História essa que não se
apaga quando se conceitualizam novas noções, mas que faz parte da noção nova
que se constrói.
Por fim, o último descentramento é fruto do fim da noção de verdade trazida
por Nietzsche. A relativização do mundo e do pensamento ocidental, e as
discussões sobre o poder e o conhecimento evidenciam o fato de que o pensamento
ocidental é “apenas uma outra episteme”. (HALL, 2016, p. 319). As identidades
seriam relativas às condições de poder e conhecimento, na medida que aqueles que
os detém reivindicam as noções de verdade sobre a identidade. Quando a
racionalidade ocidental deixa de ser absoluta e passa a ser entendida como uma
verdade intrincada num complexo jogo de poder, consequentemente as velhas
noções de identidade são abaladas. (HALL, 2016).
Além desses descentramentos advindos das discussões intelectuais e
mudanças epistemológicas, Hall também acrescenta as contribuições das
identidades coletivas para o fenômeno. Os grandes arcabouços identitários que
eram até pouco tempo vistas como “estáveis” (por exemplo as identidades
nacionais, de classe, raça e gênero) têm sido enfraquecidos através das novas
movimentações sociais e políticas contemporâneas. Nos últimos 50 anos elas têm-
se transformado através dessas novas movimentações sociais/políticas e
configurações geopolíticas contemporâneas. Cada vez mais os indivíduos se
identificam com as suas realidades próximas (seu bairro por exemplo), mas também
de maneira global, num movimento novo que, segundo o autor, é fruto de uma
fragmentação local e global, e a partir disso, “as grandes identidades estáveis não
parecem se sustentar”. (HALL, 2016, p. 321). O grande exemplo da influência
desses movimentos é o movimento feminista. Tanto teoricamente quanto
socialmente os movimentos feministas impactaram na concepção das identidades.
Tanto através de sua crítica teórica, como através das movimentações socias, os
movimentos feministas que emergiram durante os anos sessenta são um marco no
que viria a ser chamado de política de identidade:
28
Stuart Hall utiliza a sua própria história para exemplificar o fato de que a sua
identidade enquanto negro é construída politicamente, indo além da sua cor de pele
29
o humor racista não possuiu uma natureza benigna porque ele é um meio
de propagação de hostilidade racial. Ele faz parte de um projeto de
dominação social que chamaremos de racismo recreativo. Esse conceito
designa um tipo específico de opressão: a circulação de imagens
derrogatórias que expressam desprezo por minorias raciais na forma de
humor, fator que compromete o status cultural e o status material dos
membros desses grupos. Esse sistema de opressão tem o mesmo objetivo
de outras formas de racismo: legitimar hierarquias raciais presentes na
sociedade brasileira de forma que oportunidades socias permaneçam nas
mãos de pessoas brancas. Ele contém mecanismos que também estão
presentes em outros tipos de racismo, embora tenha uma característica
especial: o uso do humor para expressar hostilidade racial, estratégias que
permite a operação do racismo, mas que protege a imagem social de
pessoas brancas. O racismo recreativo exemplifica uma manifestação atual
da marginalização em sociedades liberais: o racismo sem racistas. Esse
conceito designa uma narrativa na qual os que reproduzem o racismo se
recusam a reconhecer as implicações que as suas ações ou omissões
podem ter na permanência de disparidades raciais (MOREIRA, 2018, p. 21-
22).
33
realidade. Entretanto, o mesmo autor coloca que se não tomarmos cuidados, essa
ferramenta mais atrapalhará do que ajudará. Sua intenção é demonstrar que nem
sempre os estereótipos são más simplificações, mas que também podem ser
(depende do caso). A maior contribuição para esta pesquisa é a sua constatação de
que é necessário um trabalho maior para a superação dos estereótipos,
necessitando constantemente de uma releitura da nossa realidade (ZINK, 2011, p.
48).
Christie Davis (2011) traz uma reflexão importante para esta pesquisa.
Através da sua análise de cartuns, faz uma comparação entre a imprensa nazista,
soviética e muçulmana, demonstrando a necessidade de compreensão sobre os
contextos culturais nos quais estão sendo utilizados os estereótipos:
Héctor Fernandez L‟Hoeste (2011) faz uma análise sobre um quadrinho que
causou polêmica nos Estados Unidos por conta de seus estereótipos racistas
35
CAPÍTULO 2
VERA VERÃO: REFLEXÕES SOBRE IDENTIDADE E RAÇA
9
SOBRE O PROGRAMA. Disponível em: https://www.sbt.com.br/variedades/a-praca-e-nossa#sobre-
o-programa. Acesso em: 04 nov. 2019.
37
10
Sobre os trapalhões podemos citar como exemplos de trabalhos de pesquisa:
D'OLIVEIRA, Gêisa F.; VERGUEIRO, Waldomiro. Humor na televisão brasileira: o interessante e
inusitado caso do programa Os Trapalhões. REVISTA USP, São Paulo, n.88, p. 122-132,
dezembro/fevereiro 2010-2011.
BONA, Rafael J. Os trapalhões e a comunicação midiática: a concepção de uma narrativa
transmídia made in brazil. (Tese doutorado) Curitiba: UTP, 2016.
38
banco de uma praça, ao redor dele, possuem alguns elementos que lembram uma
praça qualquer: uma lanchonete, outros bancos ao redor, pessoas conversando. A
ideia é que Carlos Alberto fica sentado no banco da praça, sempre lendo um jornal e
conversa com as pessoas que estão de passagem por ali, por isso mesmo os
quadros de cada personagem são muito rápidos. O programa inicia com Carlos
Alberto de Nóbrega interagindo com algum dos personagens do esquete. Entre os
personagens ao redor da praça a predominância é de pessoas brancas, e casais
heterossexuais. As mulheres, geralmente com vestidos curtos estão sempre
conversando com homens.
flertes com a mulher em cena. Porém, quando o irmão da mulher aparece, Júlio
Julião se transforma em Vera Verão novamente, “jogando-se” para cima dele,
deixando sua interpretação masculina de lado e retomando sua “feminilidade”. Então
começa a briga entre as mulheres, na qual os homens da praça tentam apartá-la.
Vera Verão então foge com o irmão que também não chega nem a ser nomeado.
mercado. A cena consiste em seu diálogo contando que, antes de sair de casa, lê o
horóscopo para ir à feira, onde tem a expectativa de receber cantadas dos feirantes.
A comicidade é constituída na sua fala “errada”, as suas referências à sua vizinha
“louca e fofoqueira” e uma situação dela com a vizinha. Em seguida Nóbrega toca no
assunto de seu marido e a senhora faz um relato de que seu marido taxista fez uma
corrida para a Fat Family (conjunto musical brasileiro protagonizado por artistas
negros(as) e gordos(as)). Entretanto, para falar sobre o grupo, sua referência é de
que “pesam 200 arrobas” e que “fedem”, chamando-os de “Fede Family”, pois
supostamente não tomam banho. Esta situação evidência o racismo usado no
humor do programa, visto que pessoas negras, além de serem praticamente
ausentes em papéis de protagonismo no programa, são utilizadas apenas como
referência à sexualidade exacerbada, seja com a Vera Verão, ou sujeira, como essa
referência a Fat Family. Como Adilson Moreira (2018) demonstra, ao longo da
escravidão, do processo de dominação da África e da colonização, foi necessário a
construção de imagens derrogatórias sobre as pessoas negras buscando justificar a
dominação sobre elas exercida. Essas imagens vão desde a ligação da negritude
com a feiura, preguiça, sujeira, pecado à sua ausência de capacidade intelectual.
Em conjunto a isso à referência ao peso destas pessoas na medida de arrobas, que,
além da referência depreciativa a pessoas gordas é feita uma referência que liga
negritude a animais. Essa comparação também carrega traços históricos na medida
que negros são comparados a animais por terem sido compreendido como seres
irracionais e não humanos. Até esse quadro se passaram apenas vinte e dois
minutos de programa.
Para finalizar a cena Nóbrega pergunta qual seria o nome do sujeito, e ela
responde que é “Claro”. Carlos Alberto não entende. Até chegar um amigo deste
personagem, que é negro, e o “Claro” o chama de “Escuro”, finalizando a cena.
41
Depois dessa participação nos Trapalhões foi que surgiu o convite de Carlos
Alberto de Nóbrega à Lafond. Nóbrega, em sua entrevista a Elke Maravilha, relata
que pensou em “[...] fazer aquele travesti da praça, que briga com todo mundo, que
bate em mulher, puxa a gilette da boca [...]”11.
11
Em entrevista a Elke Maravilha, disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=zp_1nmEDVcE.
43
O nome Vera Verão foi ideia de Lafond. A personagem interpretada por ele
contém “características femininas”, desde a sua vestimenta à maneira como ela se
relaciona com os demais personagens em cena. Entretanto, não fica nítido em sua
interpretação, ou mesmo nas fontes selecionadas, como Vera Verão se identifica.
Em sua interpretação não evidencia se trata-se de uma personagem transsexual,
travesti ou DragQueen, deixando margem ao telespectador a interpretação, não
podendo-se presumir que todos aqueles que assistiram a Vera Verão tivessem
conhecimento de que ela foi idealizada para ser uma travesti. Conforme Hall (2006;
2016) e sua discussão sobre a identidade na pós-modernidade, podemos afirmar
que o programa ecoa as características desse período. É possível visualizar isso na
medida que é feito um jogo de identidade em diversos momentos durante o
programa, seja a própria personagem da Vera Verão no episódio em que Azeitona
está de Verinha Verão. Dessa forma, existiu uma fluidez na construção da
personagem na medida que ela transita entre as identificações de gêneros e
identidades.
Por meio das entrevistas de Jorge Lafond e seus relatos é possível encontrar
indícios que auxiliam nesta tarefa. Lafond, em entrevista à Revista Amiga (1982)
relata que ele faz uma “performance” sobre sua personalidade, que seria uma
personalidade do mundo artístico, tentando passar uma ideia que os gays não são
agressivos (como, segundo ele, as pessoas podem imaginar). Segundo o intérprete
de Vera Verão, a sua linguagem é voltada aos “homossexuais de rua”. Seguindo a
entrevista, Lafond deixa explícito que não se sente mulher, mas que tem uma
enorme admiração por elas, não almejando competir com elas, pois acredita que há
uma enorme diferença com elas, mesmo assim não deixa de dizer que acredita que
pode fazer certas “coisas” muito melhor que as mulheres, mesmo não tendo os
mesmos “artifícios que elas”. Por fim, diz que há dentro dele um “verdadeiro
homem”, que sua cabeça é de “macho”.
Verão. São identidades que não são nitidamente definidas, mas fruto de uma
amálgama de características.
O objetivo desta pesquisa não é definir quem foi Jorge Lafond ou Vera Verão,
mas evidenciar como as identidades são fluídas, e como elas são importantes para
compreendermos a sociedade e a nós mesmos. E neste caso, compreender como a
atuação de um ator, negro e homossexual, interpretando uma personagem feminina
(idealizada como um travesti) se constituiu de maneira não linear. E que também
essas identidades são exploradas através de um humor, que aqui definimos, como
racista. Por fim, às críticas aqui tecidas não se direcionam à Lafond e a sua
personagem, visto que não é o autor/roteirista do programa, mas sim a um sistema
cultural no qual essas identidades são apropriadas e utilizadas para gozo e
entretenimento humorístico baseado numa suposta ideia de que há um tom jocoso
em não estar nos padrões de sexualidade e identidades hegemônicos. Não se trata
de uma utilização positiva destas figuras, mas sim derrogatória à imagem dessas
pessoas e destas identidades.
A crítica se faz necessária quando se entende que estas produções são fortes
ferramentas na construção da identidade das pessoas, bem como das suas
memórias (ALMEIDA, 1994, 2004; POLLAK, 1992). Além disso, opiniões e ideias
são legitimadas através dessas representações e produções culturais.
fato jocoso, afinal, são mulheres brancas se interessando por um homem negro e
baixinho); a pretenção de Azeitona de trocar Vera Verão por mulheres brancas; ou a
atuação de Azeitona flertando com as demais mulheres do quadro. Dessa maneira,
além da construção de um personagem negro como submisso a branquitude, há
sempre a noção de branqueamento da raça que permeia o quadro, seja na sua
pretenção de engajamento com mulheres brancas ou a troca de Vera Verão por
elas. E por fim, o homem negro representado por Azeitona sempre está disposto ao
enganjamento com mulheres desconhecidas que aparecem em cena, demonstrando
o viés racista do programa, afinal, representações sobre masculinidades negras são
sempre permeadas pela sua sexualidade exacerbada, na qual homens negros são
objetos sexuais e, ou, sempre buscam mulheres, independentes do contexto
colocado.
com Nóbrega faz uma referência a ficar com alguém mais velho parar se apossar de
sua herança.
O terceiro episódio a ser analisado se chama “Vera Verão quer ser a mascote
de Leandro e Leonardo”, com duração de três minutos e trinta e um segundos. A
narrativa é baseada na dupla de cantores sertanejos dialogando com Nóbrega e
relatando a sua busca por uma “mascote”. Nóbrega apresenta uma mulher que
estava sentada na praça. Ela possui o padrão de beleza que se encontra nas
revistas, e quando ela se levanta os cantores a beijam, abraçam e a chamam de
linda. Vera Verão entra em cena trajando uma roupa praticamente transparente,
onde é possível visualizar suas roupas de baixo. Quando ela entende quais são os
personagens que estão em cena pede para Carlos a abanar, e quando ele faz isso
ela fala que é “mais para baixo”, cortando a cena para os outros personagens que
47
estão ao redor da praça que dão risada e fazem negações com a cabeça. Quando
Vera Verão vê qual a mulher que eles escolheram para ser sua mascote pergunta se
eles não vão fazer seu show no Egito, porque eles tinham escolhido uma “múmia”.
Vera Verão pergunta se não há um espaço para uma mascote “black” e um dos
cantores responde que é casado. Ela responde que não é ciumenta. Após a troca de
ofensas as duas começam a brigar, quando Nóbrega pergunta o que deveria fazer a
Vera Verão ela responde que contaria para ele se ele fosse para sua casa. A cena
termina com os cantores escolhendo a outra mulher e Vera Verão correndo atrás
dos três.
homem. Gretchen o chama de lindo, e Azeitona responde que ela ainda não “o viu
pelado, só de óculos escuro”. Após um pequeno diálogo, Gretchen chama Vera
Verão de “bicha atrevida”, que responde: “Epaaa, veja lá como fala criatura, bicha
não eu sou uma quase senhora Azeitona...”. Azeitona a questiona sobre quem teria
dito que ele casaria com Vera Verão, que pergunta se ele acha que ela que cuidaria
sozinha do bebê que está em sua barriga. A amiga de Gretchen diz várias vezes que
Azeitona é o homem perfeito para dançar com ela, e que ele é lindo (algumas vezes
faz sons de gemidos após a sua fala). Após troca de ofensas (Vera Verão chama
Gretchen de dragão e sua amiga de piranha) as duas começam a brigar. No fim da
cena Azeitona diz que irá embora com a Gretchen, Vera Verão fica ofendida e diz
que se suicidará tomando remédio para matar “bicha”.
continuam “dando em cima” de Vera Verão e uma delas chega até a “rebolar” na sua
frente. Vera Verão fala que se mulher fosse bom “não viria com defeito de fábrica,
rachada”. Em seguida Azeitona diz que daria uma “chance para elas” e uma delas
pergunta o que aconteceria se elas gostassem da chance que ele daria, Azeitona
responde “aí quem vai dar é vocês”. As mulheres continuam insistindo em Vera
Verão, e uma delas diz que “você tem tudo que eu quero”, e Vera Verão fala que
“não vai dividir seu vibrador com ninguém”. Vera Verão diz que vai “cobri-las de
porrada” e elas saem aos tapas. Nóbrega continua fazendo referência a Vera Verão
no masculino, insistindo para ela “atacar” as meninas na praça mesmo, mas Vera
Verão diz que quer “atacar ele, não elas”. O quadro finaliza com Vera Verão
correndo atrás de Nóbrega.
em comparação ao de Vera Verão, e após ela dizer que precisa ser tirada suas
medidas Azeitona se oferece para fazer com as próprias mãos, causando
consternação ao marido da mulher. Vera Verão e a mulher em cena começam a
brigar em cena e são separadas pelos personagens figurantes da praça. No fim da
cena o marido da mulher diz que o corpo modelo é o de Vera Verão, que a ofende e
pega o marido dela pelos braços e sai de cena.
De maneira geral pode se notar que os episódios em que Vera Verão aparece
são bastante simples, com uma estrutura fácil de ser compreendida. Sua
participação consiste na sua interação com personagens que já estão introduzidos
em cenas, e que na maioria das vezes há uma relação hostil com as mulheres. E, se
nas cenas em questão não há presença feminina, Vera Verão tem uma relação de
desejo extremo por todo e qualquer homem que estiver contracenando com Nóbrega
(e as vezes até com ele mesmo). É perceptível que a todo momento ela troca
ofensas com algum dos participantes, e quando isso não ocorre, ela está
demonstrando interesses sexuais e amorosos pelos homens no quadro. As ofensas
trocadas são sempre referentes aos corpos das mulheres, sua comparação com
animais, sua suposta ausência de potência sexual ou sua inferioridade em relação a
51
outra. Os homens são sempre vistos como objetos de desejo por parte de Vera
Verão. Essa última característica também é atribuída a “Azeitona”, que sempre está
em cena com a personagem. As suas únicas interações são para “atrapalhar” os
planos de Vera Verão ou nas cenas que as outras mulheres demonstraram interesse
por ele.
Por fim, podemos visualizar que existe um ideal de padrão moral, estético e
cultural presente no programa, e ele é branco. As únicas pessoas representadas
como dignas de respeito, retratadas de maneira polida e “normal”, interpretadas
como racionais são brancas. Ao fim deste capítulo pode-se compreender que, como
Moreira (2018) elucida sobre o ideal de branqueamento que permeia nossa
sociedade e a sua busca na construção de pessoas brancas como as únicas dignas
de respeito e capazes de atuar de maneira racional na esfera pública, A praça é
Nossa é mais um dos ecos do processo racista que construiu a sociedade brasileira.
53
54
CONSIDERAÇÕES FINAIS
FOGO NOS RACISTAS
“Olho de Tigre” Djonga
FONTES
DVP – De Volta Para o Passado. A Praça É Nossa: Vera Verão Selvagem – SBT
(03/1998). (04m16s). Disponível em:
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