Maria Alice Amorim Cibercordel
Maria Alice Amorim Cibercordel
Maria Alice Amorim Cibercordel
Pelejas em Rede
vamos ver quem pode mais
comunicação em múltiplos
suportes e ambientes no
cordel e no repente
São Paulo
2012
Banca Examinadora
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RESUMO
PALAVRAS-CHAVE:
comunicação cibercultura oralidade
cordel repentismo semiótica da cultura
ABSTRACT
KEYWORDS:
communication cyber-culture orality
cordel improvisation semiotic culture
Para
Jomard
amorosidade num tempo da delicadeza
Ivan
a rima, o verso, o estribilho
Gícia e Juracy
duas águas, sertão
Jerusa e Roberto
mote desta glosa
Antonieta e Janaína
estrela-guia de barcos errantes
Abel
esta flor de repente
Abdias Campos Adiel Luna Adriana Dória Matos Alexandre Furtado Alexandre
Severino Alfredo Bello Allan Sales Amálio Pinheiro Amanda Alencar Américo
Gomes Ana Cely Ferraz Ana Lúcia Falcão Andrea Barreto André Genn de Assunção
Barros Ângela Menezes Ângelo Athayde Antônio Lisboa Arievaldo Viana Arlete
Petry Arnaldo Saraiva Astier Basílio Avelina Brandão Barachinha Barata Bergson
Queiroz Biu Caboclo Bruno Trindade Carol Jordão Cassia Borges César Rocha
Chris Estrada Cris Balbino Cícero Santos Cida Bueno Cida Morais Cida Nogueira
Cida Pedrosa Clotilde Tavares Danda Dani Bastos Debora Bresani Salvi Ébano
Bezerra Nunes Édson Júnior Edmilson Ferreira Eliane Remígio Elisete Ely Freitas
Eugenio Jerônimo Felipe Júnior Genivaldo do Nascimento Geo Holanda George
Michael de Lima Gícia Amorim Gilmar Rodrigues Giusepe Camilo Glauco Mattoso
Helena Hélio Correia Homero Fonseca Iana Vieira Isadora Petry Jarbas Araújo
Janduhi Dantas João Júlio da Silva João Morais João Paulo Jomard Muniz de Britto
Jordão Pereira José Augusto Lampião José Costa Leite José Honório da Silva José
Paiva Josélia Morais da Costa Josivaldo Souza Kerlle de Magalhães Klévisson Viana
Lorena Teles Lúcia Gaspar Luciana Brito Luisa Moura Nilson Araújo Luise Dreyer
Luís Carlos Petry Manoel Pula Pula Marcela Porfírio Marcela Wanderley Marcelo
Mário de Melo Marcelo Soares Marcílio Medeiros Marco Haurélio Maria Cosmo
Maria de Lourdes Cabral de Melo Mariana Oliveira Mariane Bigio Mauro Machado
Meca Moreno Mônica Lacerda Monica Rebecca Ferrari Nunes Moreira de Acopiara
Néle Azevedo Neusinha Rodrigues Nilo Firmino Paulo Moura Pedro Américo de
Farias Pedro Costa Pedro Moura Rafael de Oliveira Regina Drosina Rita Amorim
Rita de Cássia Barbosa de Araújo Roberto K Roberto Belo Robson Rosa Aquino
Rosângela Guimarães Rouxinol do Rinaré Sennor Ramos Siddharta Campos Simone
Freire Sizenice Amorim Shi Hong Stela Maris Susana Morais Tereza Rozowykwiat
Valdeck de Garanhuns Valéria Gondim Sampaio Vania Ferreira Varneci Nascimento
Verônica Moreira Wellington de Melo Wilson Araújo de Sousa Yvana Alencastro
Zélia Raposo Zeneide Costa Zequinha Academia Caruaruense de Literatura de Cordel
Poetas citados Poetas entrevistados Sambada da Laia Unicordel PUC-SP CAPES
TRT-PE FUNDARPE FUNCULTURA FUNDAJ APEJE IEB-USP
Se, de repente
A gente distraísse
O ferro do suplício
Ao som de uma canção
Chico Buarque
Seu verso me desafia,
É fechado, eu não alcanço;
Como tecelã que fia
A minha sextilha eu tranço;
Seja em qualquer sinfonia
Caio na folia e danço!
Astier Basílio
Pedro Costa
EU DIGO QUAL É O MOTE 21
* * * Nonsense * * * 249
* * * Briga de deidades * * * 249
* * * Web-pelejinha * * * 251
* * * Na peleja virtual quem manda mesmo sou eu * * * 252
* * * Um doido varrido na rede a boiar * * * 254
* * * Duelo de fôlego: Raio da Silibrina versus Arquipoeta das Borboremas * * * 257
* * * Marco dialogado por dentro * * * 265
* * * Glauco Mattoso: anti-heróicas pelejas * * * 268
REFERÊNCIAS 283
eU DIGO QUAL É O MOTE
22 Pelejas em Rede
com Alagoas, poetas se exercitam no folguedo chamado samba de matuto,
que Ascenso Ferreira registrou nos anos 1950 e que hoje, embora existam
vários mestres ainda vivos, mantém-se em atividade apenas um grupo e com
apenas um poeta cantando – o Samba de Matuto Leão do Norte, na cidade
de Tamandaré. A partir de depoimento dos poetas; da escuta de discos; de
registros em vídeo e outros, na internet; da participação em festas de rua,
busco examinar as confluências existentes, sobretudo no discurso belicoso,
das disputas ou duelos em versos. Que elementos compõem esse fazer poé-
tico? Há confluências que permitam o acionamento de matrizes virtuais de
que fala Jerusa Pires Ferreira?
Em meio a amplo uso da internet entre poetas de tradição, é neste
século XXI que situo o ofício poético de mestres do improviso pernambuca-
no, exuberante nas festas de rua; nos festivos ciclos natalino, carnavalesco,
junino; nos circuitos de cantoria, de mesas de glosa. Exuberante nos labi-
rínticos caminhos da web, em que tudo, ou quase tudo, está lá registrado
– samba de matuto, coco, ciranda, viola, maracatu. E justamente nessas
experiências do presente atualiza-se o passado, com a força da palavra viva
construindo-se continuamente: “uma tradição poética só existe durável e
fecunda, se mantida pela reminiscência, pelo costume e pelo esquecimento”
(Zumthor: 1997, p. 17). Haveria, portanto, indícios do ritmo longo com
que se revestem as poéticas ditas de tradição? Seria possível identificar ele-
mentos temáticos e, sobretudo, formais do cancioneiro e romanceiro tradi-
cionais ibéricos nas pelejas de coquistas, cirandeiros, glosadores, violeiros,
mestres de caboclinho, de boi de carnaval, de maracatu?
Ao confluir nessa mesma sintonia da palavra viva, improvisada, po-
etas cordelistas articulam pelejas em rede, desafiam-se, mantendo a mesma
estratégia belicosa da contenda, da rixa, do combate, ao vivo, entre poetas.
À maneira de um caleidoscópio, tais confrontos vislumbram sempre novas
configurações do expressar-se poeticamente, apontando para a natureza
múltipla de um universo poético-musical de riqueza inesgotável, constituído
de palimpsestos, em que tradições milenares do verso rimado e metrificado
dialogam com as práticas de poesia nas festas de rua do mundo contem-
23
porâneo. É este o mote para o terceiro capítulo: seria possível afirmar que
tais confluências permitem o reconhecimento dessa poesia como um grande
texto de comunicação, de cibercomunicação? Refletindo com Jesús Martín-
-Barbero, para quem os saberes contemporâneos, há pelo menos cinqüenta
anos, não mais se organizam ao redor de um eixo letrado e agora passam
também pelos espaços virtuais – que teciam os sonhos e as representações
e agora tecem também as redes de comunicação (Martín-Barbero: 2002),
busco conectar os fios da tradição com as fibras óticas do ciberespaço, onde
é fácil encontrar inumeráveis links, sites, endereços, grupos, comunidades
que interagem em torno do instigante exercício de pelejas poéticas.
Nas tramas dessa teia, pode-se afirmar que os fios de oralidade, os
fios de matrizes impressas, as virtuais fibras óticas do mundo digital conec-
tam-se, estabelecem ligações, em movente processo de comunicação, sem
dilaceração da tradicional prática cordelística? Ao considerar a crítica à ci-
bercultura construída por Francisco Rüdiger (2002), percorro caminhos da
web em busca de respostas sobre a prática cibercultural dos duelos poéticos:
é legítimo afirmar que as pelejas virtuais não são cordel, que não mantêm
nenhum nível de relação com os desafios de improviso? Mesmo com a im-
pessoalidade, a multiplicidade do ser, estimuladas na net, há nas pelejas uma
pulverização da tradicional prática poética, ou, ao contrário, um núcleo
estruturante, prestes a atualizar-se e ser reconhecido enquanto continuum
desse grande texto oral?
No corpus da pesquisa, folhetos de pelejas (virtuais e fictícias); even-
tos com performance de poesia; registro de pelejas virtuais ocorridas na
web; cds e dvds de poetas. O método de abordagem consiste na observa-
ção participante, nas entrevistas e na análise qualitativa do grande texto
que se realiza nas pelejas em rede, ou seja, nas pelejas de improvisadores
em presença de um público, nas pelejas inventadas, nas pelejas virtuais e/
ou nas confluências entre as pelejas virtuais (twitter, msn, facebook, orkut,
sites, portais, correio eletrônico etc.), as fictícias e as de improvisadores. Na
pesquisa de campo, que venho realizando há três décadas, habitualmente
equipada com câmara fotográfica e gravador, o resultado das observações
24 Pelejas em Rede
diz respeito a essa aproximação que mantenho com poetas, brincantes, mes-
tres, com quem freqüentemente convivo, converso e de quem faço registros
sonoros e audiovisuais. Todos os materiais apresentados e transcritos aqui
foram por mim recolhidos, à exceção da sambada ocorrida em 28 de maio
de 2011, em Nazaré da Mata, entre os mestres João Paulo e Biu Caboclo,
gravada por Chris Estrada, a quem agradeço a generosa cessão. De minha
autoria são também os registros fotográficos que acompanham, de modo
eloqüente, as descrições e análises textuais. Quanto ao acervo documental,
a maior parte de folhetos lidos e pesquisados pertence à minha coleção, ini-
ciada com a década de 1980. Durante o percurso do doutorado, em 2009,
tive a possibilidade de ver aprovado projeto de pesquisa para digitalização
e catalogação do acervo, o que facilitou sobremaneira a constante consulta
ao material.
Respaldada nos conceitos interdisciplinares de comunicação, de
Jesús Martín-Barbero; tradição, performance e movência, de Paul Zumthor;
matrizes virtuais e grande texto oral, de Jerusa Pires Ferreira; cibercultura,
de Francisco Rüdiger, desafio-me realizar um estudo comparativo da cria-
ção de pelejas de cordelistas e repentistas, abrangendo sobretudo as déca-
das 1990/2000. O intuito é investigar a provável existência de confluências
e combinações de memórias na articulação desse hipotético grande texto
oral, desse hipotético grande texto de comunicação, em movente proces-
so adaptativo, em contínuo processo de atualização de matrizes virtuais, e
igualmente especular em que medida se pode definir esse fazer poético como
uma série cultural reconhecível.
25
Existe um novo cordel?
variações e fuga de uma rapsódia
Tal qual mar que arrebenta à flor da água, tal qual um rochedo
que se ergue, soberano, das entranhas do oceano, arrecife era também
sinônimo de literatura de cordel na capital pernambucana da década 40
do século XX, conforme registra Liêdo Maranhão (1976). Do Recife
saíam para todo o Brasil os folhetos produzidos pelo poeta e editor João
Martins de Athayde (1880-1959). As histórias, sobre os mais variados
temas, eram, igualmente pelas formas fixas de uma poesia narrativa,
as prediletas de leitores e ouvintes que as consumiam com voracidade.
“Para atilar a memória”, como diz o cordelista Manoel d’Almeida Filho
(d’Almeida Filho: s.d., p. 5), importante relembrar tal fato histórico, que
localiza na cidade recifense um dos mais importantes pólos de produção
poética e editorial do folheto, desde os primórdios dos registros impres-
sos dessa nossa expressão cultural. Embora não me interesse aqui re-
memorar detalhes do desenvolvimento histórico da literatura de cordel
brasileira – detalhes repetidos à exaustão em inúmeros livros publica-
dos, sobretudo a partir dos anos 60 – uma questão que surge, agora em
decorrência dos folhetos escritos e publicados dos anos 1990 em diante,
é a que aparece, já, no título deste capítulo: existe um novo cordel? Se
existe mesmo este jovem cordel, a quem se atribui cerca de vinte anos,
quem é ele, quem o engendrou, que características possui, qual o timbre
ou quais os timbres de sua voz, que sotaque o distingue?
28 Pelejas em Rede
período caracterizado por expressivas correntes migratórias saídas dos
estados nordestinos em direção a São Paulo, incipiente pólo industrial
brasileiro, ou à então capital do país, o Rio de Janeiro? Ou se se refere
aos anos 1960 e 1970? Cogita-se, então, o surgimento de alegada novi-
dade decorrente de uma diáspora nordestina, sem explicar, entretanto,
que elementos constituiriam esse “novo” produto poético e se isso repre-
sentaria a instauração de uma “nova” tradição.
29
antropológicos de identidade cultural é que devem dar o norte à refle-
xão? Onde e como encontrar respostas – se é que existam respostas, e
oxalá satisfatórias – é a que venho me propor, antes por amor ao tema e
às inquietações de pesquisadora, do que por qualquer outra intenção de
ordem retórica ou de pura imposição de opiniões pessoais e, sob hipóte-
se alguma, por espírito exaltador de uma “pureza”, de uma “autentici-
dade” do fenômeno cultural denominado literatura de cordel.
Volteios à cata de esclarecimentos poderiam e deveriam se valer de
uma retrospectiva histórica, para começar de modo mais linear e claro?
O problemático é que, pelo enfado confesso de estar habituada a ver fre-
qüentemente republicada a tão repisada e às vezes contestada trajetória
do cordel no Brasil, vou preferir escolher o percurso inverso: começo pelo
aqui e agora e pela internet. E, indo por esse roteiro, encontro o poeta
Glauco Mattoso, que explicita o que entende por “novo cordel”, situan-
do-o na mais recente década. Glauco cria a expressão “neocordelismo”,
e defende-a em texto incluído no site de divulgação da própria obra e res-
pectiva fortuna crítica. Trata-se, aqui, de entrevista concedida por Glauco
Mattoso, em maio de 2008, a Aline Natureza, para o sítio TRASILAU, de
universitários catarinenses, da qual transcrevo a íntegra da última parte:
30 Pelejas em Rede
to de vista das regras de versificação, será sempre a literatura
de cordel. O neocordelismo paraibano e cearense está mais
vigoroso do que nunca, com nomes como Arievaldo Viana
no Ceará ou Astier Basílio na Paraíba. Aqui em Sampa, o ce-
arense Moreira de Acopiara é o porta-voz do neocordelismo,
e, no Rio, Gonçalo Ferreira da Silva. Fora do cordel, dentre
os “urbanos” das gerações mais recentes, eu citaria Marcos
Satoru Kawanami, Leo Pinto, Victório Verdan e Matheus de
Brito como representantes dum verso preocupado com a for-
ma correta, além dos temas satirizados ou glosados.
(<http://glaucomattoso.sites.uol.com.br/aline.htm>. Aces-
so em: 25/02/2009 e 15/10/2011)
(<http://glaucomattoso.sites.uol.com.br/livio.htm>. Acesso
em: 25/02/2009 e 15/10/2011)
31
Tendo em vista que, incrementado por declarações de editores, de
pesquisadores e de poetas, a exemplo de Glauco Mattoso, o fenômeno
neocordelismo passou a ser tema de debate no meio acadêmico e nos
mais diversos ambientes em que aparece o folheto, considerei, então,
importante averiguar se, e em que medida, a conectividade entre ciber-
cultura e tradição permite dizer que, de fato, existe um “novo cordel”
– diferente do cordel vinculado ao romanceiro tradicional –, totalmen-
te “novo” nas temáticas, nas estruturas do verso, do imaginário e do
pensamento poético do cordelista. Ou, por outro viés, especular se este
fenômeno é uma “reengenharia” a que o poeta se impõe, como maneira
de falar a linguagem do seu próprio espaço-tempo, de viver conforme o
seu próprio espaço-tempo. É, pois, o que reflete o poeta José Honório,
no folheto O marco cibernético construído em Timbaúba:
32 Pelejas em Rede
(...)
Sou vate moderno pois
uso a tecnologia
mas procuro ficar fiel
à minha filosofia
de manter toda a estética
secular da poesia
(...)
(Silva: 1995, p. 1, 4 e 5)
33
não se sabe ainda ao certo quando, como e onde nasceu a li-
teratura de cordel brasileira. O que aliás não admira, já que,
como é óbvio, essa literatura só poderia ter nascido a partir
de modelos da literatura do cordel portuguesa, ainda quan-
do estes também já imitassem modelos de origem espanhola,
francesa ou italiana, e em tempos e cenários favoráveis à sua
circulação ou recepção. (Batista: 2004, p. 127)
34 Pelejas em Rede
Interessante, ainda, sob o ponto de vista do processo de constru-
ção do texto, é poder acompanhar os rascunhos dos embates entremea-
dos de conversas on-line, verificando como os poetas discutem a melhor
palavra, a melhor rima, a métrica, o aprimoramento dos versos que es-
tão sendo lançados de um para o outro. E, mais, verificando o modo
como deixam aflorar, com idêntico esmero, a vivacidade peculiar às tra-
dicionais disputas poéticas, de improviso ou de cordel. Sintoma claro
de que cordel e repente compartilham afinidades, ou melhor, interagem
num mesmo universo cultural: o das poéticas de oralidade peculiares à
cultura nordestina, que, “no fabrico de repente”, como faz o improvisa-
dor e cordelista Severino Borges Silva (1919-1991), destilam sagacidade
e rapidez. As armas do jogo não são fictícias, a ferocidade do combate da
palavra é patente. No preciso exemplo, o poeta inventa a peleja contra
uma voz feminina, a de Patativa do Norte, segunda voz criada pelo autor
da peleja, a fim de encadear o pensamento que apenas se completará se
for a duas vozes em confronto:
35
Patativa
Senhor Severino Borges,
Desde já fique ciente
Que Patativa do Norte
No fabrico de repente
Nunca encontrou cantador
Que cantasse em sua frente
Borges
Pois a senhora se agüente
Pra não sair do lugar,
Porque com fé em Jesus
Eu hoje vou lhe mostrar
Como é que se fazem versos
Do mundo velho empenar
(...)
Borges
Quando na memória minha
faltar a rima ou repente
falta sal pelas salinas
e nos engenhos aguardente
se acaba peixe no mar
falta água na vertente
(Silva: 1987, p. 5 e 8)
36 Pelejas em Rede
pos (1978), tal figura de linguagem é uma das principais recorrências
na elaboração poética das pelejas de cordel, em meio à variedade de
estrofes e rimas possíveis. É um modelo retórico aprendido a partir dos
tradicionalmente usados nos próprios textos de cordel. Afiados, pois,
em artifícios estilísticos, lingüísticos, e “fiados na memória, na imagi-
nação, na astúcia e na sensibilidade de poeta que lê o mundo, mentes
e corações”, conforme escreve José Honório (Silva: 2007, p. 12), é as-
sim que são construídos os poemas dos cordelistas, alicerçados, claro,
num sólido sistema poético, de tradição secular, constituído de rima,
métrica, ritmo, divisão estrófica, e constituído, ainda, daquilo que os
próprios poetas denominam “oração”, ou seja, o engendramento do
verso sob o ponto de vista das figuras de linguagem, das metáforas alia-
das à unidade semântica, à coerência no desenvolvimento de temática
a que se propõe o autor ou a que se propõem os autores, quando se
trata de embate entre duas ou mais vozes poéticas. Todos esses elemen-
tos ganham em profundidade e coesão se o poeta, como diz Honório,
tiver imaginação, astúcia e sensibilidade na interpretação do humano,
na representação de mundo e da humana condição. É assim, pois, que
proclama o poeta, também violeiro e cordelista, Francisco Sales Arêda
(1916-2005), no folheto A malassombrada peleja de Francisco Sales
com o negro Visão:
37
O poeta encadeia no verso os ingredientes que considera indispen-
sáveis ao ofício: a estruturação do pensamento poético inclui a perícia
no manejo desses componentes do poema – estrofe, rima, métrica, melo-
dia. Mais que isso, o poeta avalia muitíssimo bem o ofício de poeta que
canta e improvisa, segundo as regras que descreve. Não apenas avalia,
conhece, por dentro, o conjunto, o sistema e toda a complicação que isto
simboliza. O folheto de cordel é um universo semiótico multifacetado
que deve ser apreendido e compreendido como sistema. Os repertórios
culturais, os ingredientes a compor o imaginário da cultura local vêm
somar-se àqueles componentes do poema, apontando o entrelaçamento
dinâmico de tais elementos que poderiam funcionar de modo autônomo,
entretanto vinculam-se uns aos outros formando um conjunto articula-
do. Pergunto, portanto, que pluralidade de significações, que repertórios
culturais, que tipos de coerência, que formação de sentidos é necessário
articular, a fim de que o complexo fenômeno cultural denominado cor-
del seja reconhecido enquanto constelação de memórias e reinvenções?
Considerando práticas sociais, processos comunicativos, modos
de produção, de transmissão, de recepção e respectivos contextos, o que
se verifica na última década, é que, numa espécie de contraponto à tradi-
ção – contraponto entretanto apenas aparente? –, a cibercultura aparece
como um modo de envolvimento entre cordelistas, que pelejam no cibe-
respaço e nele criam estratégias de comunicação e emulação poética. Em
realidade, isto demonstra que o poeta, mergulhado na cultura contem-
porânea, está sintonizado com o seu próprio tempo, fazendo interagirem
sociabilidade contemporânea e novas tecnologias:
38 Pelejas em Rede
Um dos resultados dessa dinâmica, reiterando o que já foi dito anterior-
mente, é o surgimento de nova modalidade cordelística, que, ao remeter à das
“pelejas”, existente na literatura de cordel brasileira desde o início do século
XX, e ao desafio de violeiros repentistas, apresenta-se como parte integrante de
um grande texto oral, conforme conceito de Jerusa Pires Ferreira (1993). Num
imenso rio de emblemáticas traduções/tradições culturais – a cultura nordes-
tina – o cordel se apresenta enquanto texto de cultura, complexo dispositivo
que guarda variados códigos e, em sua função sociocomunicativa, cumpre o
papel de memória cultural coletiva (Lotman: 1996, p. 80 e 82), sem, entretanto,
esquivar-se do dinamismo da cultura contemporânea, nem anular-se em meio
aos processos adaptativos. A memória cultural é um complexo semiótico.
Grande texto de memórias, provido de profundidade diacrônica, o
cordel enquanto expressão cultural brasileira passa a existir quando acres-
centa repertórios nordestinos a um imaginário em processo, atualizando
temas tradicionais que já circulavam entre as recorrências da poesia popu-
lar portuguesa, a exemplo do que Luís da Câmara Cascudo dá conta, em
Cinco livros do povo (1979). Lastreado nesse legado cultural, articulam-se
processos comunicativos intrínsecos ao cordel, ao mesmo tempo em que
se dá a articulação de novas informações, conectando-se, assim, entre si,
os fios do antigo e do novo. Graças aos processos de transmissão e persis-
tência de um sistema poético e graças a um incontornável sistema simbóli-
co – “tecido imaginal” (Silva: 2006, p. 11) que aponta para um imaginário
compartilhado, para um conjunto semiótico dotado de regulação interna
e correlação dinâmica–, é que não pode ser chamado de cordel apenas o
que obedece a fórmulas de versificação:
39
É imprescindível experimentar, compreender, vislumbrar o per-
tencimento a códigos culturais para que o poeta possa legitimar-se en-
quanto cordelista, para que possa estabelecer “o seu próprio lago de
significados”, ou seja, construir uma obra poética sem impostações, nem
caricatura. Passeando pelos temas – dos tradicionais aos noticiosos e
atualidades – observa-se que o cordel ainda hoje reúne o heróico, o no-
velesco, o satírico, o religioso, as histórias de trancoso, os contos pasto-
ris, as novelas de cavalaria: “o épico maravilhoso ou saga arturiana e o
épico guerreiro ou gesta carolíngea” (Ferreira: 1993), ao mesmo tempo
incorporando a migração de assuntos e de pontos de vista, a exemplo
de santos não-canônicos e bandidos sociais brasileiros, da biografia de
personalidades envolvidas com a cultura nacional, da atuação feminina
no mercado de trabalho (inclusive na condição de poeta de cordel), das
lutas libertárias em favor de minorias, da defesa de novas tecnologias,
do debate sobre temas sociais e preservação do meio ambiente. Tais mi-
grações fazem a literatura de cordel repercutir mais e mais, mantendo-
-se como uma tribuna livre, angariando simpatias e aglutinando novos
leitores/ouvintes.
40 Pelejas em Rede
O cordelista é o porta-voz de uma tribo: necessita, pois, manter-
-se antenado com as demandas da contemporaneidade. Isto garante, de
toda forma, a possibilidade de construir versos que dialogam com os
costumes, as memórias de infância, as memórias de família, as experi-
ências decorrentes de história pessoal e de grupos sociais visceralmente
enraizadas no universo cultural das histórias de cordel. Impossível, por-
tanto, simplesmente enquadrar a literatura de cordel em sistema literá-
rio, em sistemas de classificações temáticas e classificações de gêneros
poéticos. Os processos culturais, as paisagens culturais impõem mais,
exigem olhar arguto na compreensão do fenômeno, enquanto conjunto,
enquanto emblema de um diálogo permanente entre tradição e contem-
poraneidade, entre universal e particular, entre global e local, enquanto
fenômeno antropológico, comunicativo, literário. O virtual, o que exis-
te apenas como potência ou faculdade, ou aquilo que contém todas as
condições essenciais à sua realização, passa, então, a ser também a “bem
real” peleja que os cordelistas vêm tramando, ao criarem estratégias de
permanência protagonizadas por meio da internet, veículo de comunica-
ção e de sociabilidade dos mais ágeis e eficazes do tempo presente.
Assim, a produção e difusão poéticas que demandavam presença
física em tipografias, gráficas ou editoras e nas feiras livres, por exem-
plo, foram acrescidas das possibilidades de comunicação mediadas por
computador, sem a necessidade de deslocamentos no espaço físico. As-
sim, os desafios que, no cordel, aconteciam na imaginação de um poeta,
passaram a criação de dois ou mais poetas, os quais podem vir a disputar
o melhor verso, a melhor estrofe, num feroz bate-papo em tempo real
ou em intermitentes conversas de correio eletrônico e de outros ambien-
tes da web, independentemente da localização geográfica de cada uma
dessas vozes poéticas. Assim, as tecnologias acessíveis ao uso doméstico
também proporcionam a composição gráfica, impressão e montagem de
folhetos nas edições autorais sem necessidade de pré-estabelecimento de
tiragem mínima, possibilitando, inclusive, a produção e editoração das
pelejas virtuais.
41
Repetindo, é a “reengenharia” no transporte do verso que se faz
urgente, para bem acompanhar o ritmo frenético da correspondência
eletrônica on-line e ao vivo. A contenda que os cordelistas realizam, sem
quebrar a tradição, nem o teclado, faz parte desta modalidade de cordel
inaugurado pelos desbravadores José Honório e Américo Gomes (Sil-
va: 1997). Honório, àquela época – setembro de 1997 – era um expert
em navegação internáutica, quando internet ainda nem era moda, nem
produto acessível ou difundido como necessária ferramenta de comuni-
cação nos diversos campos da cultura, do jornalismo, da economia. Uma
década depois, José Honório apresenta na própria bibliografia diversas
pelejas virtuais, todas editadas no tradicional formato de literatura de
cordel, a exemplo da que escreveu com o cordelista Mauro Machado,
neto de poeta paraibano e quase vinte anos mais novo do que o “pio-
neiro das pelejas virtuais” e “rei do repente cibernético”. José Honório
garante o característico tom desaforado dos duelos poéticos, nessa dis-
puta produzida via internet e depois publicada no formato tradicional.
Na estrofe transcrita a seguir, glosa o mote “me vencer na peleja virtual
/ só quebrando primeiro o meu teclado”:
42 Pelejas em Rede
Pois então se prepare companheiro
Pra levar uma surra nesse lombo
Cada estrofe que faço dou-lhe um tombo
Que lhe deixo aluado, sem roteiro
Se você quis mexer em um vespeiro
Com certeza alcançou o desejado
Pois escute com calma o meu recado
Pra depois não ficar assim tão mal
Me vencer na peleja virtual
Só quebrando primeiro o meu teclado.
(Silva: 2007, p. 6)
43
contraditório, da web: “la singularidad del mundo que habitamos pasa
por los espacios virtuales que, en otros tiempos, tejían los sueños y las
representaciones, y ahora tejen también las redes de comunicación (Mar-
tín-Barbero: 2002, p. 260). Mas, é preciso que se diga: não é somente
clicar para, como num passe de mágica – abre-te, étimo – conseguirmos
desvendar os mecanismos secretos de uma poesia, ou o que de fascinan-
tes sentidos as pelejas virtuais possam esconder na rede de sociabilidades
contemporâneas:
44 Pelejas em Rede
Desde que lançamos a Interpoética em outubro de 2005, a
Corda Virtual tem sido um espaço interativo. Nesta seção,
desafios têm acontecido e são lançados na rede e abertos a
participação de todos, desde que compreendam as regras
da poesia popular. Iniciamos com uma provocação do cor-
delista Allan Sales, âncora no primeiro ano, que resultou
na peleja acontecida entre ele e a cordelista Susana Morais,
publicada posteriormente em formato de cordel.
(<http://www.interpoetica.com/site/index.php?/corda-vir-
tual/>. Acesso em: 26/02/2009)
45
palavra virtual traz relação com as pelejas virtuais, pois foi essa prática
a inspiração inicial à proposta de criar uma sorte de terreiro de cantoria.
O link sugere ir mais além do meramente vinculado ao folheto, pois pe-
leja quer dizer cordel e quer dizer repente.
46 Pelejas em Rede
poeta, cordelista, ficcionista e cineasta pernambucano Wilson Freire. Há
um mote do cordelista Jorge Renato de Menezes, poeta Jorge Filó, que
celebra os cem anos do famoso ceramista caruaruense Vitalino Pereira
dos Santos, mestre Vitalino, centenário comemorado em julho de 2009.
No mote em homenagem ao xilogravurista Gilvan Samico, artis-
ta que mantém estreita convivência do erudito trabalho autoral com o
universo temático do cordel e da gravura popular nordestina, a propos-
ta é lançada pelo poeta e jornalista Marco Polo Guimarães, integrante
de movimento literário pernambucano, a Geração 65, que congregou
intelectuais e artistas, como os escritores Alberto da Cunha Melo, Ânge-
lo Monteiro, Jaci Bezerra, Marcus Accioly, Terêza Tenório, Lucila No-
gueira, Janice Japiassu, Raimundo Carrero, Domingos Alexandre. Ao
sugerir o mote, Marco Polo convoca “poetas populares ou de formação
erudita”, para uma leitura intersemiótica de gravura de Samico na cons-
trução de “um cordel”, e com a possibilidade de serem escolhidas formas
poéticas “normalmente usadas nos folhetos”. Trata-se de um “convite
para uma ciranda poética em torno de uma gravura de Samico”:
47
Durante uma palestra sobre alguns artistas visuais que usa-
ram as gravuras de Gilvan Samico como mote para seus tra-
balhos, me dei conta de que nunca uma xilo sua tinha sido
aproveitada num cordel. Resolvi inverter a questão propondo
um cordel que ilustrasse uma de suas obras. Escolhi a xilogra-
vura O Diálogo e fiz, para abrir a corrente, três estrofes.
(<http://www.interpoetica.com/site/index.php?/corda-virtu-
al/Que-na-gravura-em-madeira-/-Esse-Samico-%C3%A9-
-um-danado.html>. Acesso em: 16/10/2011)
48 Pelejas em Rede
cas de oralidade em Pernambuco: para as rodas de ciranda, grandes mes-
tres do improviso desfiam repentes afinados com a poesia tradicional das
pelejas de cordel, do repente de viola, do repente de maracatu.
Continuando na exploração temática das rodas de glosa virtual da
Interpoética, constata-se que outros temas comparecem, ainda, não ne-
cessariamente vinculados a personalidades do mundo cultural: alguns de-
les são metáforas acerca da condição humana; outros, metapoesia; todos
entretanto lançados com o desejo de excitar a invenção de poetas. Entre
os que se aventuram no desafio, comparecem não somente cordelistas,
repentistas. A principal recomendação, no entanto, é quase sempre a mes-
ma aos glosadores: “para dar continuidade à peleja convocamos a todos
os poetas, cordelistas e cantadores, desde que compreendam as regras da
poesia popular, para glosarem o mote”. Ou seja, dominar a técnica é con-
dição indispensável à participação, até para não gerar desestímulo entre
os iniciados, nem criar desequilíbrio entre as estrofes. É um jogo poético,
e tem regras a serem cumpridas. O mote a seguir apresentado, por exem-
plo, é de um poeta contemporâneo maranhense, radicado no Recife desde
1970 – Wilson Araújo de Sousa (1945), que não cultiva nenhum vínculo
entre a própria produção poética e o cordel e, no entanto, sugere um mote
metapoético, com lances de humor e trocadilho em torno do provérbio
“quem não pode com o pote, não pega na rodilha”. Assim é inaugurado
mais um round do ringue poético:
A partir do mote dado pelo poeta Wilson Araújo de Sousa, Allan
Sales o Menestrel do Cariri, fez essas glosas abaixo, dando início a mais
uma Corda Virtual:
49
Não se isola feito ilha
Conta sete e dá o bote
Quem não pode com o mote
Não pega na redondilha
Redondilha se maior
Sete sílabas de verso
Se menor outro universo
Tem só cinco é bem menor
A receita sei de cor
Nela andei pra mais de milha
Da inspiração é filha
Cada estrofe lindo dote
Quem não pode com o mote
Não pega na redondilha
(<http://www.interpoetica.com/site/index.php?/corda-
-virtual/Quem-n%C3%A3o-pode-com-o-mote-/-
-N%C3%A3o-pega-na-redondilha.html>. Acesso em:
17/10/2011)
50 Pelejas em Rede
Aprendi com Zé Limeira
Mais Otacílio Batista
Que a obra do bom artista
Se conhece de primeira.
Tem força de cachoeira
Serena água de bilha,
Fogueira que muito brilha
Estrala que nem chicote
Quem não pode com o mote
Não pega na redondilha.
(<http://www.interpoetica.com/site/index.php?/corda-
-virtual/Quem-n%C3%A3o-pode-com-o-mote-/-
-N%C3%A3o-pega-na-redondilha.html>. Acesso em:
17/10/2011)
51
Então não arme o barraco
Saia pela escotilha
Desça na primeira ilha
Senão vai levar chicote
Quem não pode com o mote
Não pega na redondilha.
(<http://www.interpoetica.com/site/index.php?/corda-virtu-
al/Quem-n%C3%A3o-pode-com-o-mote-/-N%C3%A3o-
-pega-na-redondilha.html>. Acesso em: 17/10/2011)
52 Pelejas em Rede
Thiago E. Martins [Recife-PE, 08/12/10]
(<http://www.interpoetica.com/site/index.php?/corda-
-virtual/Quem-n%C3%A3o-pode-com-o-mote-/-
-N%C3%A3o-pega-na-redondilha.html>. Acesso em:
17/10/2011)
53
(<http://www.interpoetica.com/site/index.php?/corda-
-virtual/Quem-n%C3%A3o-pode-com-o-mote-/-
-N%C3%A3o-pega-na-redondilha.html>. Acesso em:
17/10/2011)
54 Pelejas em Rede
A Cantoria tem motes tradicionais, motes que vêm sendo
glosados há décadas, mas que não se desgastam. Quando
um cantador profissional se depara com um destes motes,
mais do que simplesmente compor uma glosa ele se interes-
sa em descobrir um novo ângulo, uma nova rima; em pegar
um mote já muito explorado e descobrir algo que nunca
tinha sido dito antes.
(<http://www.interpoetica.com/site/index.php?/corda-
-virtual/A-marreta-da-morte-%C3%A9-t%C3%A3o-
-pesada-/-que-a-pedreira-da-vida-n%C3%A3o-aguenta.
html>. Acesso em: 26/02/2009)
55
Imagine o Brasil ser dividido / E o Nordeste ficar independente. Uma das
estrofes postadas na Corda Virtual, pelo músico e poeta, a propósito do
mote por ele comentado acima, é a que vai abaixo transcrita:
(<http://www.interpoetica.com/site/index.php?/corda-
-virtual/A-marreta-da-morte-%C3%A9-t%C3%A3o-
-pesada-/-que-a-pedreira-da-vida-n%C3%A3o-aguenta.
html>. Acesso em: 26/02/2009)
56 Pelejas em Rede
eu lhe monto de espora em seu cangote
lhe cutuco no vazio com a sessenta
quero ver a pisada que ela inventa
eu mesmo desconfio dessa piada
qu’A marreta da morte é tão pesada
que a pedreira da vida não agüenta.
(<http://www.interpoetica.com/site/index.php?/corda-
-virtual/A-marreta-da-morte-%C3%A9-t%C3%A3o-
-pesada-/-que-a-pedreira-da-vida-n%C3%A3o-aguenta.
html>. Acesso em: 16/10/2011)
57
classificando-os, quando em contenda, como “dois heróis numa arena
duelando”. Thiago Martins admira o legado, o reinado, o trunfo e o
fado de tais heróis, ele próprio candidato a, pelos achados poéticos que
vem conseguindo oferecer a leitores e colegas de glosa:
(<http://www.interpoetica.com/site/index.php?/corda-vir-
tual/Dois-poetas-brigando-o-povo-chora-/-Com-vontade-
-de-ouvi-los-novamente.html>. Acesso em: 17/10/2011)
58 Pelejas em Rede
Interessante observar, na Corda virtual, a presença dos momentos
elencados por Paul Zumthor (2007, p. 65), quanto à história do texto po-
ético: formação, transmissão, recepção, conservação, reiteração. Ao serem
compostas, nunca no improviso, nem no calor da hora, as estrofes necessi-
tam de envio por correio eletrônico ao webmaster a fim de serem posterior-
mente postadas. Embora não seja possível haver, naquele ambiente virtual,
a performance ou vocalização do poema protagonizado pelo poeta, de cor-
po inteiro num momento único em presença do público, a transmissão e
recepção acionam sinestesias virtualmente ali – as duas vozes em cantoria,
as duas vozes falando, o pinicado da viola, o trinado primal do repentista, a
força, o choro, os impropérios, o passe, a fumaça, o transe:
59
Vão dizer de nordeste como fala
E mostrar nossa força de poetas
E traçar por aí solenes metas
Pois poema dos bons ninguém lhe cala
Vai varar pelo mundo e não se abala
Repentista cantou nos fala à mente
Rafael que mostrou mote decente
Só quem tem diretriz nele se escora
Dois poetas brigando o povo chora
Com vontade de ouvi-los novamente
(<http://www.interpoetica.com/site/index.php?/corda-vir-
tual/Dois-poetas-brigando-o-povo-chora-/-Com-vontade-
-de-ouvi-los-novamente.html>. Acesso em: 17/10/2011)
60 Pelejas em Rede
A conservação e a reiteração do texto poético na plataforma web
da Interpoética são oferecidas em ambientes suportados pelas tecnolo-
gias digitais: as mencionadas pelejas de cantoria e de cordel, tidas como
obras de referência, e que o site posta com a inauguração da Corda Vir-
tual, estão disponíveis em texto escrito, com links no próprio ambiente
daquela seção. A reiteração (em verdade, falsa reiteração) aparece, igual-
mente, na rememoração de versos de poetas alçados à condição de clás-
sicos da cantoria e da poesia de cordel, versos esses que, propostos como
mote, passam a ser glosados pelos freqüentadores da revista eletrônica.
No quesito conservação, há, igualmente, arquivos sonoros, postados na
seção difusora, e vídeos.
Um programa dedicado à poesia popular, composto de nove gra-
vações: Coveiro sem esperança / Não sepulte o meu passado por Adiel
Luna; Exame de próstata por Altair Leal; Aquarela do sertão por Ana-
cleto Carvalho (Padim); Culé de mexê doce por Jaelson Gomes; A mãe
que pariu o mundo por Mariane Bigio; O caso Maria da Penha por
Edgar Diniz; A viagem pros Istaites por Susana Morais; Rio Moxotó
por Anacleto Carvalho (Padim); Falas do povo por Altair Leal. O cordel
de Mariane Bigio é o primeiro folheto que escreveu a poeta, nascida em
dezembro de 1987. Adiel Luna, repentista e cordelista, nascido em junho
de 1984, na cidade pernambucana de São Lourenço da Mata, canta vio-
la na difusora, glosando o mote-título da gravação.
61
Ainda na mesma seção, há um programa todo montado com
Allan Sales, que, apresentando-se, abre o acervo sonoro com uma septi-
lha em redondilha maior. Depois, recita e canta cordéis e motes glosados,
à capela ou com acompanhamento do violão, tocado por ele mesmo. É
o seguinte o cardápio: Introdução; É só libido; Nordeste Diferente 1;
Nordeste Diferente 2; O Corno e o Prefeito; Tu não mudas teu passado
/ Mas o teu futuro sim; La gauche de droite; Nem escravo nem senhor
/ Muito menos capataz; Americanalhando, temperado com ironia, sar-
casmo, galhofa, antecipando um pouco o que adiante será analisado na
obra de Allan Sales.
Para fazer confluir ainda mais o universo poético das várias mo-
dalidades de mestres do repente, no arquivo sonoro da Interpoética tam-
bém foram postados alguns minutos de versos captados no Encontro de
Mestres e Cortejos de Maracatu Rural da Mata Norte, ocorrido em ou-
tubro de 2010, em Nazaré, cidade pernambucana da região açucareira,
a 60 km do Recife. O áudio é composto de 10 minutos com o mestre ou
“papa do maracatu” João Paulo, do Maracatu Leão Misterioso de Na-
zaré da Mata, e mais sete minutos e meio com o mestre Barachinha, do
Maracatu Estrela Brilhante. Os poetas de maracatu praticam o improvi-
so durante o ciclo carnavalesco, incluindo aí os preparativos, que reini-
ciam em setembro, a cada ano (Amorim: 2008). Em fevereiro de 2011,
são postadas gravações com os consagrados Irmãos Batista, cantadores
Dimas, Otacílio e Lourival. Comparados a deuses do Parnaso nordesti-
no, eis o cardápio sonoro oferecido em doze preciosos minutos de anti-
gos embates: Meio século de viola / Não é brincadeira não por Otacílio
Batista; Quadrão por Otacílio e Lourival Batista; Gemedeira por Dimas
e Otacílio Batista; Galope à beira-mar por Dimas e Otacílio Batista. São
poetas que amolam o mundo com a “peixeira do repente”, conforme
ensaiam glosadores na Corda Virtual, após mote sugerido por José Paes
de Lira, ou Lirinha, ex-vocalista da banda Cordel do Fogo Encantado,
não acaso o grupo musical trazendo no nome um vínculo direto com a
literatura de cordel e, especificamente no repertório, ligação visceral com
62 Pelejas em Rede
a poesia de cantadores, universo cultural no qual Lirinha viveu imerso,
durante a infância. A confluência entre as “bacias semânticas” do folk
e do pop inspiram poetas, Lirinha incluído, a transitar à vontade nesses
circuitos culturais, como é o caso dos criadores da Interpoética, Cida
Pedrosa e Sennor Ramos, que defendem o mix de jeans, rock, cantoria,
à revelia de defensores de “selo de pureza” nas poéticas de oralidade:
(<http://www.interpoetica.com/site/index.php?/corda-vir-
tual/Essa-noite-eu-retalho-o-mundo-inteiro-/-Com-a-pei-
xeira-amolada-do-repente.html>. Acesso em: 16/10/2011)
63
Os poetas glosadores cordelistas Jorge Filó e Kerlle de Maga-
lhães, nascidos respectivamente em junho de 1969 e fevereiro de 1982,
compartilham memórias de infância, vividas no mesmo universo cul-
tural de Lirinha, a cidade pernambucana de Arcoverde, no sertão do
Moxotó, a 252 km do Recife. A vizinha microrregião – o sertão do
Pajeú – partilha semelhante apego à poesia de viola, território propício
para o exercício das rodas de glosa, cantoria de viola, recitais poéticos
de apreciadores da poesia de formas fixas. Território sertanejo por onde
viveram ou onde passaram famosos cantadores: os irmãos Batista, Pin-
to do Monteiro, Job Patriota, Manoel Filó, Manuel Xudu, Cancão, Zé
Marcolino. Certamente este dado oferece atrativo a mais para a criação
das glosas de Filó e Kerlle, em que cada um demarca terreiro, cantando
a soberania do verbo, da eloqüência da poesia:
64 Pelejas em Rede
E o poeta, se arvora um eloqüente
Pra reinar, ganha o verso de presente
Onde o verbo põe fogo em seu braseiro
Essa noite eu retalho o mundo inteiro
Com a peixeira amolada do repente.
(<http://www.interpoetica.com/site/index.php?/corda-vir-
tual/Essa-noite-eu-retalho-o-mundo-inteiro-/-Com-a-pei-
xeira-amolada-do-repente.html>. Acesso em: 16/10/2011)
(<http://www.interpoetica.com/site/index.php?/corda-vir-
tual/Essa-noite-eu-retalho-o-mundo-inteiro-/-Com-a-pei-
xeira-amolada-do-repente.html>. Acesso em: 16/10/2011)
65
* * * No ciberparnaso não faltam musas * * *
66 Pelejas em Rede
produzida em blogues. A primeira peleja é fictícia (travada
com um ‘alter ego’ do próprio cego), e suas décimas não se
pautam pela ‘deixa’, mas nos duelos seguintes a praxe, po-
pularizada pelos cordelistas e cantadores, é levada à risca.
Apenas o desafio de Leo Pinto, composto de sonetos, foge
ao costume nordestino para remontar aos jogos barrocos e
arcádicos, ainda que contextualizado na pós-modernidade.
(<http://glaucomattoso.sites.uol.com.br/pelejas.htm>.
Acesso em: 25/02/09)
67
Entretanto, para além dos modelos poéticos adotados, a quími-
ca da poesia é o que reverbera o novo, dá consistência ao novo, e não
simplesmente o contrário. Misturar linguagens da tradição a novos ins-
trumentos, oferecer novos modos de pensar a partir de confluências do
espírito do tempo poderão garantir a permanência da voz poética que
se ofereça de modo singular, criativo, original. Aliado à técnica do ver-
sejar em formas fixas, o talento do poeta de cordel é que define fron-
teiras, estabelece limites entre o consagrador e o descartável. Discutir
atualidades é uma das características do cordel, desde os mais remotos
registros. Utilizar-se das tecnologias de impressão, disponíveis a cada
época, e acessíveis economicamente aos poetas, também não constitui
novidade. Não admira, portanto, a internet aparecer entre esses meios
de que se vale o poeta para viabilizar a produção poética, editorial e a
divulgação dos folhetos: continua em vigor a manutenção do cordel com
características gráficas peculiares e fora do grande mercado editorial,
com a produção de edições de pequena tiragem, baixo custo, formato
usual de 11 x 16 cm, papel de baixa gramatura (barato, porém não mais
o papel jornal), impressão em preto e branco, distribuição independente
do circuito restrito das livrarias, o que representa a certeza de alguma
autonomia ideológica e editorial. Entretanto, mais que isso, simultane-
amente à produção editorial impressa, a internet não só é terreno para
divulgação, é monte parnaso e ribeira, onde os poetas se encontram para
emulação e exercício de jogos poéticos, para debate de idéias e troca de
opiniões acerca da vida e do ofício do verso. Mas, atenção: sem talento
para a poesia qualquer iniciativa é estéril.
Sabendo, pois, do potencial cibernético em favor do talento, da
criação artística, o poeta José Honório cuidou para que a invenção cha-
mada computador se transformasse em suporte indispensável à feitura
e edição de folhetos: criou um banco de versos, onde tratava de ir ar-
quivando eletronicamente os pedaços de poemas que fossem surgindo
e, mais dia, menos dia, seriam aproveitados na construção de novas es-
trofes, de novas histórias. Foi mais além, transformou o meio em men-
68 Pelejas em Rede
sagem, ou seja, encarou as conseqüências provocadas pela apropriação
das tecnologias da informática: “Nenhuma compreensão da mudança
social e cultural é possível sem um conhecimento de como os meios ope-
ram como ambientes [...] Os meios, ao alterar o ambiente, evocam em
nós relações de percepção sensorial únicas. A extensão de qualquer um
desses sentidos altera o modo como pensamos e agimos – o modo como
percebemos o mundo” (McLuhan: 2011).
Foi, então, apostando nas mudanças a serem desencadeadas por
esse novo ambiente, que Honório criou em 1995 O Marco Cibernéti-
co construído em Timbaúba (das redes de Mocós à Internet), um folhe-
to original, tematicamente surpreendente àquela época, em que defendia
a adoção de uma lira high-tech para, conforme declarou em versos, “ver
as musas ressuscitadas”. Contrariou, então, a idéia equivocada de que,
no produto editorial e nos temas, a literatura de cordel devesse continu-
ar sendo tida como tosca, mal-acabada, conservadora, atávica. Antes,
livra-se da nostalgia da era tipográfica e do papel jornal, e propõe uma
“reengenharia”, corroborando-a ao inaugurar, em 1997, a modalida-
de a que denomina peleja virtual, abrindo nova dinâmica na produção,
edição e difusão do cordel, o que Allan Sales e vários outros poetas
começaram a fazer no início dos anos 2000, cerca de cinco anos depois.
A partir da primeira experiência internética, Honório passa a interagir
com diversos poetas, promovendo interlocução com jovens cordelistas,
inclusive colaborando na estréia de autores, o caso de Susana Morais,
que escreveu o primeiro folheto justamente com Honório, uma peleja
realizada pelo MSN, em 2006, e cujo conteúdo pode ser acessado na
página da Interpoética, conforme dito anteriormente. O referido cordel,
aliás, possui um título gigantesco:
edição de 2006
A peleja entre a velha do bambu e o velho mangote através
da Internet ou Na pancada do teclado: duelo poético pelo
msn entre Susana Morais e José Honório
69
No folheto, José Honório utiliza a recorrente prática cordelísti-
ca de títulos duplos, articulados pela conjunção coordenativa alternativa
“ou”, e, ainda, a composição a partir de articulação de signos culturais,
como os personagens de folguedos populares – a velha do bambu é uma
personagem do cavalo-marinho e o velho mangote é uma alusão ao “ve-
lho” do pastoril profano, principal personagem de folguedo natalino per-
nambucano. O trecho Na pancada do teclado evoca, por contigüidade,
o coco de improviso, numa expressa alusão a Mário de Andrade, autor
de inacabado livro que ganharia o título Na pancada do ganzá, e a An-
tônio Carlos Nóbrega, autor de CD, de mesmo título. O livro de Mário
foi publicado postumamente sob o título de Os cocos (1984), reunindo
melodias tradicionais e informações acerca de celebrado repentista, o em-
bolador de coco Francisco Antônio Moreira, ou Chico Antônio, do Rio
Grande do Norte, cuja vida e obra foram pesquisadas e registradas pela
Missão de Pesquisas Folclóricas em 1938, sob coordenação do modernista
escritor paulistano.
A temática que Honório articula é, claro, completamente condi-
zente com o universo cultural das poéticas tradicionais de Pernambuco e
das pelejas de cordel. Isto, o poeta executa com maestria na diversidade
de folhetos escritos e/ou publicados. Sobre a recorrente prática cordelís-
tica de títulos duplos, combinados pela conjunção coordenativa alterna-
tiva “ou”, apresento mais três exemplos, em que o primeiro deles refere
um tema apreciado por cordelistas – faits divers –, em decorrência da
garantia de ampla aceitação do público de leitores/ouvintes:
edição de 1990
A trágica história do cruel assassinato da Sra. Nazaré de
Andrade, Dona do Restaurante Recanto do Cajá em Tim-
baúba
edição de 2005
A briga do galo com o peixe pra ter direito à Concórdia ou
Será que no galo falta frevo, mulher bonita e nova, será?
70 Pelejas em Rede
edição de 2007
O duelo cibernético de José Honório com Mauro Macha-
do; A mini-peleja do Cordelista Cibernético com Silvestre
Stalonge no MSN messenger
71
A peleja e a pelejinha unem duas gerações de poeta cuja idade
comporta uma diferença de 20 anos e afinidades que zeram essa distân-
cia. Mauro se mostra antenado com o fazer poético tradicional e simul-
taneamente demonstra interagir com outras experiências que poderiam
considerar não condizente com o suposto genuíno universo do cordel.
Quando publica nota biográfica, faz questão, entretanto, de declarar a
direta influência do avô, o poeta paraibano Mauro Ananias da Costa, e
prestar-lhe homenagem. Num dos folhetos – Saudades eternas do poeta
Mauro Ananias –, cujo tema é justamente o elogio ao talento poético do
avô, justifica, na contracapa, a escolha e explicita o conteúdo: oito estro-
fes em martelo agalopado, glosando o mote Foi pro céu o poeta versejar
/ Nos deixando seus versos de saudade.
72 Pelejas em Rede
colo, lia partes de um folheto, sugeria versos, instigava o garoto a com-
pletar a história. O ouvinte, atento, inconscientemente ia registrando
as cenas e os ritmos. O pai e o avô, que criavam versos por brincadeira,
fizeram-no conhecer a riquíssima produção de poetas como Leandro
Gomes de Barros e João Martins de Athayde. Cresceu, portanto, lendo
folhetos, ouvindo repentistas no rádio, vendo poetas nas praças e festas
de rua do Recife. A poesia reinava soberana, embora só a partir dos 16
anos é que tenha começado a exercitar as formas da tradicional poética
nordestina.
O avô paterno, José Hemetério, era da cidade de Ipojuca, Zona
da Mata Sul de Pernambuco, região de cultivo de cana-de-açúcar. Foi
apontador de usina, gerente de granja de galinhas, funcionário público
da Saner, empresa de saneamento do Recife, cidade para onde se mu-
dou por volta de 1940. Habilidoso artífice das artes manuais, Hemetério
construía brinquedos, objetos utilitários, mil e uma coisas para ver e
usar. O filho João Honório da Silva, pai de José Honório, também culti-
vava esses dotes do fazer artesanal. Ambos migrantes da zona canaviei-
ra, sempre cultivaram as tradições culturais, de que eram portadores. A
mãe de José Honório, paraibana de Queimadas, também saiu do meio
rural e veio viver no Recife, onde desenvolveu o ofício de tecelã. Como
resultado dessas experiências viscerais, o cordelista consegue sintetizar
a própria trajetória no folheto Um pouco de minha vida, que escreveu
no dia 4 de agosto de 1995, quando ainda vivia em Timbaúba, cidade
pernambucana distante 100 quilômetros da capital, encravada na Zona
da Mata Norte, a região açucareira com a qual Honório já cultivava
relações de afinidade, por causa dos avós e do pai. As estrofes do folheto
autobiográfico, construídas em décimas e sextilhas, são o instrumento
com o qual repassa aspectos marcantes da própria história de vida, so-
bretudo da infância, que o conduziriam ao fazer poético. É um dos raros
poemas que disponibilizou na internet mesmo sem ter sido publicado
em folheto. Nele, o poeta fala da própria poesia, cuja “trova é moderna,
com um pé na tradição”:
73
Sou filho da capital
porém sendo um suburbano
juntei ao sistema urbano
algo do meio rural
pois lá no nosso quintal
tinha muita criação
também muita plantação
das espécies mais diversas
tinha também as conversas
sobre as coisas do sertão
74 Pelejas em Rede
na Casa da Cultura, na capital pernambucana. Em 1984 foi aluno, no
Festival de Inverno da Universidade Católica de Pernambuco, dos cursos
sobre cantoria e cordel, com os professores e pesquisadores do assunto,
Ésio Rafael e Pedro Américo de Farias. Foi, portanto, no bulício das
buscas auto-afirmativas, que, há quase três décadas, em 1984, quando se
alardeava a morte da literatura de cordel, um jovem de 21 anos estreava
com a publicação do folheto Recife: carnaval, frevo e passo. Isto seria
um tanto banal se não fosse época de retraimento do movimento edito-
rial do cordel e Honório estivesse envolvido apenas com os meios con-
vencionais de edição do folheto popular. Por este breve perfil biográfico,
seria possível aceitar que Honório encarasse o cordel apenas sob a ótica
do atavismo de tantos, e ainda tão presente mesmo entre jovens poetas.
Entretanto, pioneiro no manuseio de computador, graças aos de-
veres de bancário, e quando quase ninguém sabia o que era isso, José
Honório começou não só a registrar os escritos em arquivo eletrôni-
co, começou também a imprimir os folhetos, no formato tradicional,
de 11 por 16 centímetros, na impressora matricial de que dispunha, e
numa tiragem que conviesse ao momento, livre dos custos gráficos de
máquinas off-set. O material estaria sempre disponível, na memória do
computador, para novas reimpressões. Mesmo com as antenas ligadas
no ciberespaço, o diálogo com as formas tradicionais da poesia popular
ficou mantido. O pesquisador recifense Roberto Benjamin trata exata-
mente desse exemplo de Honório na dinâmica de adaptação do cordel às
novas tecnologias de comunicação, no texto Culturas regionais: perma-
nências e mudanças em tempo de globalização, apresentado no simpósio
Globalização e regionalização das comunicações, ocorrido em Aracaju,
Sergipe, em setembro de 1995. Conforme Benjamin registra no texto,
o computador que José Honório usava era um modelo usual na época:
75
As gráficas existentes em Timbaúba, desde as primitivas,
de caixas de tipo, às que operam off-set somente recebem
encomendas de tiragens acima das possibilidades de mer-
cado, para os cordéis do poeta. Utilizando o computador,
José Honório imprime o número de folhetos que considera
possível vender de imediato e guarda os mesmos na memó-
ria eletrônica, realizando novas tiragens na medida em que
as pequenas edições se esgotam.” (Bolaño: 1999, p. 133)
Marcelo Soares
76 Pelejas em Rede
trabalhos publicados, quase que a totalidade possui capa ilustrada por
Marcelo, inclusive uma das parcerias é o livro de poemas Vida viola
que Honório publicou pelas Edições Bagaço, no Recife, em 1992, com
xilogravuras de Soares – capa com tipografia (título e autor) e desenho
de violeiro, criados numa matriz de madeira, e, no miolo, cinco gravuras
ilustram o livro, predominando temática relativa a folguedos e danças
tradicionais nordestinas. Os poemas alternam versos livres e formas fi-
xas, com variedade de mote e glosa, e mais a republicação de dois fo-
lhetos de cordel – Dança Pernambuco!; Eu e Juliana ou No galope da
paixão.
77
delística de José Honório – nascido em janeiro de 1963, graduado em
Turismo em 2004 – engendra processos poéticos e de comunicação, em
que o novo vai interagindo com o discurso da poesia de tradição. Isso
porque é exatamente nesse ambiente semiótico que estabelece as primei-
ras experiências de sensibilidade para a poesia, para a cultura pernam-
bucana, para a literatura de cordel.
O primeiro cordel que escreveu foi Coisas do Nordeste, em 1980,
aos 17 anos. Os dois títulos seguintes – Recife: carnaval, frevo e passo
e Grupo Popular Dança Pernambuco – foram impressos na Fundação
Casa da Criança de Olinda, respectivamente em 1984 e 1985, época
em que a referida fundação ainda trabalhava com edição e impressão
de folhetos de cordel, produção que se manteve entre as décadas 1970 e
1990, inclusive editando Braulio Tavares, em meio a inúmeros poetas da
tradição. Outros folhetos de Honório saíram com o selo Cordelnet, do
autor, ou pela Folhetaria Cordel, de Marcelo Soares. Há, ainda, publi-
cações com o selo da União de Cordelistas de Pernambuco (Unicordel),
da Prefeitura do Recife, da Fundação de Cultura Cidade do Recife, da
Editora Coqueiro, da Edicordel. Em todos eles, percebe-se o embate en-
tre o antigo e o novo, a tradição e a vanguarda, a quebra de paradigmas
e o receio de não mais ser aceito, nem compreendido pelos poetas de
gerações anteriores.
78 Pelejas em Rede
Os temas funcionam como variantes de um grande corpus temá-
tico da cultura do cordel. A “espetacular” passagem do cometa Halley
sobre a terra e a atual situação do mundo foi escrito em Timbaúba, em
janeiro de 1986. A mulher que dançou lambada com o diabo é uma his-
tória que, conforme declarou o autor – em correspondência eletrônica
de 15 de setembro de 2003 a mim enviada –, “mal acabei de escrever,
sumiu como que por encanto ou obra do tinhoso. Não lembro sequer
de uma estrofe. Só sei que foi inspirado num boato que rolou na Mata
Norte (ouvi em Timbaúba) no final da década de 80, quando a lamba-
da ‘pipocou’. Diziam que o fato ocorreu em Vicência”. Outros títulos
relatam fatos, como O tarado do bisturi, ou parodiam fatos, como em
O ataque terrorista e o desmantelo da guerra, onde cria uma história de
humor a partir dos atentados terroristas de 11 de setembro de 2001, nos
Estados Unidos. Outros cordéis exaltam a cultura nordestina, criticam
costumes como O interior de hoje em dia; Com a dança da bundinha o
povo segura o tchan (a briga do créu com o forró). No folheto O menino
que deu na mãe por causa do Tomagoshi se vale do exemplum, recurso
retórico utilizado na literatura moralista medieval e que comparece em
expressivo conjunto temático na literatura de cordel. Honório se vale,
ainda, de temas religiosos, messiânicos para escrever Vida e morte de
Frei Damião: missionário do Nordeste. Alude à saga do cangaço, em A
volta de Virgulino pra consertar o Sertão.
79
O humor, outra recorrência no cordel, aparece freqüentemente na
obra de Honório: O ataque do tubarão no bairro da Iputinga; A gordinha
que se deu bem por causa da internet. Em A buchada ou O aniversário de
Julita, escrito em Timbaúba (1990), o narrador lança mão de elementos
retóricos no engajamento dos leitores: “Licença, quero contar / uma histori-
nha engraçada [...] Eis aí caros leitores / uma história bem real [...] Honório
transpôs pro verso / o que Erasmo contou”. No folheto Eu e Juliana (1990),
acima referido, Honório narra, com humor e sugestões de obscenidade, a
paixão de um adolescente por uma jumenta. Uma triste confissão ou Me-
mórias de Sofia (1990) conta os sofrimentos de um aidético. Em Triste fim
de um devedor, também escrito em Timbaúba (1995), a narrativa em 22
décimas de redondilha maior refere folhetos dentro do folheto:
(...)
(...)
(Silva: 1995, p. 1 e 7)
80 Pelejas em Rede
cordel. E, entre os restos que couberam ao devedor – espécie de espólio,
à maneira dos folhetos que tratam de herança ou testamento –, coloca,
propositadamente, xilogravura do parceiro Marcelo Soares, com quem
o autor do cordel havia estabelecido pacto de produzir mensalmente um
folheto, com o texto de um e capa do outro. Fazendo valer os “dotes sin-
gulares” de que dispõe enquanto poeta, é o próprio José Honório quem
“recria universos” – o dele mesmo, o da poesia tradicional – na variada
e consistente obra. Com originalidade desenvolve O marco cibernético
construído em Timbaúba, um marco na literatura de cordel, marco por-
que retoma o gênero e reconfigura conexões entre saberes tradicionais e
sociabilidades contemporâneas:
(...)
81
Se pena, lápis, caneta
cumpriram sua missão
e a máquina de escrever
deu sua contribuição
que mal há em nos valermos
da nova computação.
(Silva: 1995, p. 2 e 3)
* * * Formas de encanto * * *
82 Pelejas em Rede
transmissões, novas recepções. No caso específico da literatura de cordel,
igualmente a ampliação do nível de escolaridade e as novas escolhas temáti-
cas, as modificações no perfil sócio-econômico do poeta e dos processos de
distribuição, a dinâmica de como e onde comercializar mostram o quanto
a maleabilidade é benéfica e garantia de continuada renovação do vigor po-
ético. Graças à dinâmica da cibercultura e à nova modalidade cordelística
das pelejas virtuais, o cordel hoje circula não somente em feiras, também na
internet, nas bancas de jornal e revista, nas livrarias, nas lojas e exposições
de artesanato, nas feiras de livros e festivais literários, nos recitais poéticos
em que a palavra dita/cantada tem prioridade e vai granjeando, pela voca-
lização dos poemas, diversos novos grupos de apreciadores. As produções
brasileiras estão espalhadas pelo país, independente de serem protagoniza-
das por nordestinos, por descendentes de nordestinos ou não.
Com a diversificação de público e de meios de difusão, com o apri-
moramento de habilidades do poeta no manejo de linguagens e de supor-
tes tecnológicos, o folheto de cordel é feito em múltiplos espaços do país
inteiro, desestabilizando a idéia de que o “legítimo” cordel é exclusividade
do meio rural ou, mais precisamente, do “telúrico” e “rústico” mundo
sertanejo. Que “tecido imaginal”, que invisível posso, então, vislumbrar
a partir e além da poesia de cordel e que lhe garantam o reconhecer-se e
ser reconhecida? Os temas, os jogos verbais, os personagens que compa-
recem nos versos dos folhetos apontam para um saudável emaranhado de
semioses, de tradução mais acessível, porém sem caráter de exclusividade,
aos que estão envoltos na constelação de memórias do cordel que, por sua
vez, está mergulhado na galáxia nordestina. Teia, não labirinto, o cordel
oferece encorpada urdidura a ser tecida por matizadas tramas do oral-
-impresso-digital, em constante fluxo e refluxo:
83
Tramando essa teia, os fios de oralidade, os fios de matrizes im-
pressas, as virtuais fibras óticas do mundo digital conectam-se, estabele-
cem links, intertextualidades, movências: vigoram autonomia e interde-
pendência, e o cordelista não está a meio caminho de nenhum deles, está
inteiro neles. Liberto da obrigatoriedade de amparar-se na tecnologia
seqüencial de livros, o cordelista faz vigorarem liberdade criativa, hi-
pertexto, mudanças difusas, descentralizadas. Não entra em jogo, nessa
peleja, disputa entre bem e mal, entre certo e errado. Não entra em jogo
caráter excludente ao que os poetas vêm desenvolvendo na internet: é
poesia, quando há poesia.
Nos experimentos poéticos de iniciantes e iniciados no universo
do cordel, realizados na net e fora dela, é freqüente observar a associa-
ção da literatura de cordel a rimas pobres, métrica irregular e clichês
de sertão. Outra relação que se estabelece, com regularidade, é a que é
expressa por um dos jornalistas mais conceituados em crítica musical e
cultura popular no Recife, para quem cordel é sinônimo de “povão semi-
-iletrado” (Teles: 2009, p. 9). José Teles, paraibano de Campina Grande,
radicado na capital pernambucana, afirma que
84 Pelejas em Rede
Além de exaltar a “forma inculta de escrever”, creditá-la apenas
a fortuito nonsense, “surrealismo” de títulos, significa, na verdade, o
desconhecimento de que tais práticas – também a do nada casual non-
sense – incluem-se nas modalidades ainda hoje vigentes na tradição do
cordel. O que não é difícil provar, a partir mesmo de catálogo do meu
acervo pessoal, disponível em <www.cibertecadecordel.com.br>, no qual
uma das particularidades são os títulos e autores publicados nas décadas
1990 e 2000. Cordelista mencionado anteriormente – jovem brasiliense
nascido em 1982 e residente no Recife desde 1990, bacharel em Comu-
nicação Social/Publicidade, pela Universidade Federal de Pernambuco –,
Mauro Machado exibe títulos que, além de galhofeiros, são extensos e
lançam mão de aliteração, aforismo, e, quando duplos, formam orações
coordenadas alternativas:
edição de 2007
edição de 2007
edição de 2009
edição de 2007
85
O recurso ao título duplo interligado pela conjunção “ou” é uma
tradicional recorrência em literatura de cordel, em geral, e solução de que
se valem José Honório e Mauro Machado quando vão construir os pró-
prios. Com a prática de tais títulos, leva à ruína a idéia defendida por José
Teles, na qual evoca a saudade dos “folhetinistas” (quem escreve folheto
é folhetinista?) do passado, colocando-os em confronto com os “atuais
cordelistas”, não mais incluídos entre os praticantes da “forma inculta
de escrever”. Importante que se diga que o poeta português José Daniel
Rodrigues da Costa (1757-1832) não era nada “inculto” e, ainda assim,
publicou em 1820, entre os textos que escreveu – muitos deles sob a forma
de folhetos – o seguinte cordel em versos, cujo título se vale exatamente
de nomeação dupla, integrada por conjunção coordenativa alternativa:
Papeis contra papeis, ou Queixas de Apollo para açoute de máos poe-
tas. Esta publicação, integrante do acervo do pesquisador e colecionador
Arnaldo Saraiva (2006, 104), pôde ser apreciada na exposição Teia de
Cordéis, da qual fiz a curadoria, entre março e maio de 2011, no Museu
de Arte Popular do Recife, exibindo 254 cordéis portugueses do século
XVII ao XX. E exatamente no Recife, efervescente capital do cordel, nas
décadas 1930 e 1940, de onde saíam os folhetos produzidos pelo editor
e poeta João Martins de Athayde, é que aporta a primeira exposição, em
solo brasileiro, de cordéis lusos englobando todo o período no qual está
compreendido o acervo documental, que se conhece de literatura de cor-
del portuguesa, integrante de coleções particulares ou institucionais. O
mais antigo da coleção exibida no Recife datava de 1602 – exatamente o
86 Pelejas em Rede
folheto de data mais remota que se conhece nos acervos portugueses – e,
entre os cordéis mostrados, estavam vários outros com títulos gigantescos.
Ao evidenciar que a prática de títulos imensos é uma das perma-
nências da literatura de cordel, vejamos que modelos de titulação esco-
lhem mais dois poetas – um nascido na década 1950 e outro, na década
1920. O poeta Allan Sales, espécie de Boca do Inferno, o mais cortante
e destacado poeta satírico da atual cena dos cordelistas pernambucanos,
igualmente escolhe títulos aforismáticos, trocadilhescos, galhofeiros ao
nomear, de modo condizente, os próprios poemas malditos:
edição de 2006
edição de 1999
edição de 2004
edição de 2006
edição de 200-
edição de 2001
87
Cearense do Crato, Allan nasceu em 1959, desde 1969 vive
no Recife e é a partir de 1997 que passa a dedicar-se à literatura de
cordel, simultaneamente à profissão de músico e compositor. O outro
poeta a destacar é José Costa Leite, paraibano de Sapé, que, nascido
em 1927, desde a infância passou a viver em Pernambuco e radicou-se
na cidade pernambucana de Condado a partir de 1955. Em 2007 con-
quistou o título de Patrimônio Vivo de Pernambuco e correspondente
pensão vitalícia, concedidos pelo Governo do Estado. Quando Costa
Leite escolhe os títulos, geralmente gosta de enunciados proverbiais,
alicerçados em ambigüidade, duplo sentido, picardia, corroborando a
prática que comparece na obra de outros autores, inclusive das novas
gerações de cordelistas. Mesmo longos os títulos, uma preocupação
evidenciada pelos poetas é estabelecer comunicação imediata com os
possíveis leitores. Os sete títulos de José Costa Leite, abaixo trans-
critos, são todos publicados na década 2000, certamente por ser o
discurso ambíguo, também na atualidade, uma das preferências do
público:
edição de 200-
edição de 200-
edição de 200-
edição de 200-
88 Pelejas em Rede
edição de 200-
edição de 200-
edição de 200-
89
Ao rejeitar a idéia da composição longa do título, Rodolfo ao
mesmo tempo sugere como deve ser “ajustado” e oferece argumentação
que desconsidera todo um percurso de tradicional maneira de escrever
e titular o cordel, em que relatos de crimes escabrosos, por exemplo,
podem vir resumidos num título quilométrico como convencimento ga-
rantidor da atenção de leitores e ouvintes. E, mais, para demonstrar o
quanto a prática é recorrente nas publicações de cordel, e, como já foi
dito, independentemente de o autor ser mais ou menos iletrado, seguem
alguns outros dos títulos de cordel português que foram exibidos na
referida mostra, no Recife. Propositadamente, as publicações escolhidas
são dos séculos XVIII, XIX e XX. Três delas tratam de temas tradicio-
nais – o ritual de serração da velha, a história da princesa Magalona e a
do imperador Carlos Magno e dos doze Pares de França – que guardam
confluências com o universo cultural da literatura de cordel brasileira.
Seguem os gigantescos títulos:
edição de 1785
90 Pelejas em Rede
edição de 1866
edição em 1851
91
edição de 1907
92 Pelejas em Rede
Eu os Astros espreito
Que giram no firmamento,
N’elles vejo com effeito
Do Globo o movimento
E da parte material,
Pela constante rotação,
Conheço bem da animal
A boa ou má condicção.
93
Em quadra de redondilha maior ou septissilábico é o folheto po-
ético A triste vida de um marujo:
94 Pelejas em Rede
Fui- me logo à Cotovia
E achei-lhe a porta fechada:
Ai, ai, ai! temos tratada!
Fechou-se o tal portaló
Pois juro por minha avó
Que hei-de saber da emboscada!
(Costa: 1820, p. 5)
95
Agora, seguem registros de poesia portuguesa em sextilhas, con-
forme recolha de Teófilo Braga:
Serra compadre,
Serra comadre,
Tu com a serra
E eu com a grade;
Serra com as pontinhas
Do senhor abbade.
96 Pelejas em Rede
O Brasil foi “descoberto” quando na Europa ocidental
começaram a circular as primeiras folhas volantes e os
primeiros folhetos. Devemos admitir que marinheiros e
emigrantes muito ou pouco letrados portugueses já no
século XVI levariam consigo alguns deles, como de certe-
za fizeram em séculos posteriores, até para os venderem.
Curiosamente, foi também no século XVI que, esqueci-
dos os cancioneiros medievais, incluindo o de Garcia de
Resende, se começou a formar em terras portuguesas um
cancioneiro oral em que são evidentes – a par da lingua-
gem oralizante e concreta, da visão pragmática e popular
do mundo ou da vida (com especial focalização nos cam-
pos do amor, do trabalho e da aventura, real ou fictiva), e
da relativa brevidade textual – algumas preferências for-
mais favoráveis não só à fácil composição mas também
à boa recepção e memorização: o romance – um poema
narrativo com afinidades com a balada –, geralmente as-
sonantado, a quadra, a sextilha e a décima, com versos
de rima cruzada e redondilhos, de 5 ou 7 sílabas. O cor-
del brasileiro ou nordestino honrou essa tradição secular,
mas fixou-se sobretudo na sextilha e no verso de redondi-
lha maior. (Amorim: 2011, p. 8 e 10)
97
Também o especialista Segismundo Spina sinaliza para a evidente
relação entre a poesia de cordel brasileira e a lírica trovadoresca, decor-
rente da procedência portuguesa da nossa poética tradicional: “O redon-
dilho heptassilábico, bem como o verso de arte maior constituem duas
criações galego-portuguesas, metros típicos da poesia popular” (Spina:
2003, p. 35).
98 Pelejas em Rede
requer fôlego.” A quais instâncias caberiam a nomeação de quem seria
cordelista, a conceituação do que é o cordel? Aos poetas, sujeitos do
processo, ou ao pesquisador, que, supõe-se, observa o processo e, sem
intervir, oferece reflexões sobre o fenômeno? A quem caberia o direito
de desqualificar os poetas que têm elaborado folhetos de oito páginas
com 28 estrofes? A quem caberia o direito de excluir os poetas que não
obedeçam a esta rígida prescrição? A quem caberia a tarefa de salvar
os poetas de “labutar no lodaçal”? Ao pesquisador? Ao próprio poeta?
Ao editor? Ao público? Contrariar delicadas afirmações como essa, só
mesmo apresentando documentos históricos, a fim de ser possível chegar
à compreensão de que a poesia de cordel – mesmo a poesia de cordel,
alinhada à palavra tradição – permite variações, modulações, e, ainda, a
acolhida de neófitos nesse universo cultural, à revelia de sábios na arte
de como e de quem pode fazer versos de cordel. A não ser que se propo-
nha ao cordel o status de objeto arqueológico.
* * * Engenho poético * * *
99
João Martins de Athayde comparece, e bem, nesta hora, com os “ar-
recifes” que produzia, editava e fazia circular pelo país. Poeta e editor, Athay-
de dominava os dois ofícios. Em A grande surra que o poéta Cordeiro Manso,
de Maceió, levou de João Athayde, por ter ido desafial-o, além de quarenta
e uma estrofes distribuídas entre as páginas 1 e 10, o poeta apresenta, ainda,
quatro décimas nas páginas 11 e 12, glosando a partir do seguinte título:
Mote de Cordeiro Ou quebra, ou papoca, ou vem “Fala Athayde”. Mais qua-
tro décimas aparecem às páginas 13 e 14, sob o título O amor a Pernambuco.
Uma décima encerra a página 14, intitulada Não se meta a ser poéta. Por fim,
Mote: Cordeiro é bom glosador é o título das três décimas que, às páginas
15 e 16, encerram a publicação, com data e local registrados após a última
estrofe: Recife, 2-3-1939. Sob o ponto de vista das modalidades poéticas, há
uma compatibilidade com o título principal, em que Athayde, sem simular
peleja ou desafio de violeiros, combate o adversário, o poeta Pacífico da Silva
ou Pacífico Pacato Cordeiro Manso (Quebrangulo - Alagoas, 1865-1931).
Todas as glosas mantêm o tom de emulação poética e, entre elas, o cordelista
planta O amor a Pernambuco, ainda incitando o adversário, alagoano. Se-
guem a primeira e última estrofe do folheto, apenas para demonstrar como
Athayde entabula, do início ao fim da publicação, uma espécie de monólogo
provocativo, dado a conhecer ao público do cordel e a quem quer que seja.
Insulto que se interpõe como réplica (“abriu a luta comigo”, “vi teus livros o
que dizia”, “toda carta tem resposta”):
(...)
(...)
101
Entre nós, porém, os oiteiros se remontam a meados do
século XVI, porquanto, em 1573, o governador-geral Luiz
de Brito e Almeida foi festivamente recebido na Bahia, e
aparatosamente no colégio dos Jesuítas, onde houve mis-
tério e oiteiro.
Em Pernambuco, como vimos, era à noite que se efetuavam
os oiteiros, para o que se armava um elegante palanque no
pátio da igreja, como que representando o monte Parnaso,
sobre o qual tinha assento uma mulher convenientemente
trajada, figurando de musa, a qual distribuía os motes para
serem glosados pelos poetas que concorriam ao certame.
Toda a praça se iluminava e se adornava de arcos de folha-
gem odorante, geralmente da caneleira e pitangueira, e de
bandeiras multicores; e literalmente cheia de povo, apre-
sentava um aspecto imponente e agradável.
Os poetas contornavam o palanque, e dado o mote pela
musa, cujos conceitos eram sempre adequados ao objeto
da festa, quer fosse religiosa ou não, aquele dentre eles que
se propunha a glosá-lo, batia palmas e recitava imediata-
mente a glosa. Não raras vezes acontecia aparecer mais de
uma glosa sobre o mesmo mote.
(...)
Os oitei
ros entre nós tiveram muita voga até os primeiros anos do
século passado [séc XIX: n do ed.]; eram muito concor-
ridos e apreciados, e neles se exibiam os melhores e mais
afamados poetas da época.
103
ídas pelas autoridades político-religiosas em território brasileiro – em Per-
nambuco, na Bahia do século XVI –, bem como a permanência do costume
– desde o século XVI até o século XIX – apontam a irrefutável consistência
da idéia em defesa da procedência ibérica dos modelos de estrofes de for-
mas fixas, que restaram consolidados na cultura poética nordestina, tal qual
vemos ainda hoje entre poetas cordelistas e repentistas. O concurso, afinal,
era festejada celebração da poesia, conforme registram os dois autores. Um
ritual da palavra, que contava com público garantido, certamente interessa-
do em ver e aplaudir os “melhores” e “mais afamados”.
Após a explanação de como se processava o rito dos oiteiros, en-
contramos, no segundo parágrafo da citação referente a José Alves Sobri-
nho, registro sobre uma prática que aponta a sólida convergência entre
cordel e notícia: as folhas soltas afixadas em logradouros públicos e os
serões de glosa, dando conta da crônica do cotidiano em poesia. Na mo-
dalidade conhecida por “folheto de circunstância”, os cordéis tratam de
notícias, não necessariamente eventos relevantes, notícias do dia a dia, so-
bretudo os mais apelativos, sob o ponto de vista da violência, da bizarria,
da fatalidade – catástrofe, acidente, caso de polícia, enfim, o cotidiano dos
faits divers, os quais excitam a curiosidade mórbida. A mesma modalida-
de é considerada prevalente na literatura de cordel espanhola do século
XVII, conforme registra María Cruz García de Enterría, no mencionado
artigo Modalidades del discurso en la poesía de cordel: retórica menor:
105
“acontecido” ou noticiosos, espécie de jornal alternativo por traze-
rem fatos jornalísticos, são incrementados pelo caráter opinativo, ou
seja, o poeta é uma espécie de articulista, um formador de opinião.
Hoje, além da velha guarda do cordel, novos cordelistas também se
identificam com essa vertente, por razões de memória afetiva ou por
afinidade gratuita, por estarem imersos na cultura nordestina ou não.
A verdade é que são jovens, sintonizados na internet, universitários ou
com mais escolarização que a dos poetas do início e meados do século
XX, com outros repertórios culturais condizentes com o século XXI,
evidentemente, pois a cultura é um processo dinâmico. Dados que se
apresentam relevantes para a observação do cordel enquanto expres-
são cultural em processo, que vai a séculos passados e traz, para o aqui
e agora, possibilidades de mergulhar nesse rio, ainda que se saiba o
caudaloso rio não ser nunca exatamente o mesmo.
Império militarista
De olho no patrimônio
Quer assim nos alijar
Qual ação de um demônio
Campeão de poluir
E também de destruir
A camada de ozônio
107
sas, e, ainda, produzindo e divulgando o que escreve com a utilização
das tecnologias cibernéticas, mesmo que fora do espaço virtual. É o
próprio Allan quem diagrama e imprime a produção autoral, embo-
ra tenha trabalhos publicados pela Editora Coqueiro, pela Folhetaria
Cordel, pela Fundação de Cultura Cidade do Recife. O pragmatismo
do poeta cria estratégias para que a viabilidade das edições aconteça
pelas próprias mãos, e a difusão, a mais ágil possível, possa se valer do
dinamismo sem fronteiras da internet. A dicção poética, irrequieta, é a
de um animal político inconformado com os desmandos de dirigentes,
inclusive no cenário internacional. O humor ferino põe em xeque o
poder hegemônico norte-americano, Osama Bin Laden e George Bush,
em O império contra ataca e em Americanalhando. Mina o preconceito
de sulistas contra nordestino, em O Brasil mais depende do Nordeste
que o Nordeste depende do Brasil. Questiona a possibilidade de auto-
nomia política e sócio-econômica em Nordeste independente?. Satiriza
o caso Mônica Lewinsky com os títulos Boca no trombone e Elogio
ao sexo oral. Ironiza a histórica trajetória brasileira de dependência
política e econômica no cenário mundial, escrevendo 500 anos de pau
no lombo do brasileiro e Epopéia cordelística do Brasil: a história do
Brasil em cordel de Cabral a FHC. Em Saravá colofé ô Padre Pinto que
rodou a baiana na Bahia exibe a faceta politicamente incorreta de poe-
ta maldito que dispara versos ferinos em não importa qual seja o alvo.
Na articulação de idéias, na articulação da técnica, na articula-
ção do pensamento poético, na articulação dos signos da cultura nor-
destina, Allan se mostra competente. Isto permitiria dizer que podemos
chamá-lo cordelista? Ou, dando vazão a conceitos enviesados – es-
sência, origem, pureza, fundamento –, o título de cordelista lhe seria
negado? É o próprio poeta quem satiriza a situação de enquadramento
requerido, ao informar-me que anda preparando acréscimos a alguns
dos títulos já escritos, não sem mencionar, com picardia, o porquê de
tal empreitada, recém-conhecida por ele. De que adiantariam, pois,
invenção poética, a singularidade do discurso, a originalidade, criativi-
(1)
109
Meu cordel de 200 mais na lista
Pouco a pouco devagar ele erigiu
Nem aqui nem na puta que pariu
Ninguém deve censurar um cordelista
(2)
(4)
(8)
111
Voltando ao editor João Martins de Athayde, com o intuito de
abordar a questão da quantidade de estrofes admissível por possíveis
reguladores da prática poética no cordel atual e, ainda, em busca de
motes para glosar a articulação entre o antigo e o novo, entre o que
pode ser o cordel e o que se suporia hoje inadmissível, examinemos
o poema A intriga da aguardente, publicado no Recife, em 1939,
num mesmo folheto em que figura como primeiro título O solda-
do jogador, que traz 33 sextilhas distribuídas em 9 páginas. Ambos
são de autoria de Leandro Gomes de Barros. A capa é uma clássica
imagem para as diversas edições sucessivamente publicadas sobre Ri-
carte, recruta francês flagrado jogando baralho durante celebração
de missa. Na seqüência, a partir da página 10, começa a labuta com
a aguardente, em estrofes alternando entre sextilhas e décimas. São
11 sextilhas e 11 décimas com verso de cinco sílabas ou redondilho
menor (carretilha ou parcela), ou seja, 22 estrofes. É a agilidade o
que o pentassílabo confere às décimas, metro usado pelo narrador
para os momentos os mais trágicos e os mais pícaros da narrativa. O
ritmo conferido pela variação no tamanho e na métrica das estrofes
permite ao poeta colocar nas décimas os embates quanto à relação
quase carnal do embriagado com a bebida, quanto ao moralismo do
113
Não considerar o poeta de cordel sujeito desse processo de con-
ceituação do fenômeno não seria subtrair-lhe a condição mesma de su-
jeito, estabelecendo, assim, uma crise de representação (Spivak: 2010)?
Nos processos culturais e comunicativos, relacionados ao universo da
literatura de cordel, o poeta é protagonista, é sujeito no processo de
transformação e, portanto, legitimado na capacidade própria de auto-
-representação. Os cordelistas acompanham, se apropriam de novos
modelos de produção, de difusão. Caberia propor, impor códigos, câno-
nes, conceitos da cultura hegemônica? Quando Pedro Costa, cordelista
e violeiro repentista do Piauí, escreve o Cordel na informática, traz à
narrativa a discussão entre um cordelista e um professor, fazendo com
que o poeta defenda o cordel, em moldes editoriais passados (uso de
tipografia, papel jornal e xilogravura de capa impressa manualmente,
uma a uma), enquanto o professor enumera as vantagens de computador
e impressora de uso doméstico, mais a utilização de programas de design
gráfico e da internet. Costa não suscita, com tal debate, questões relati-
vas ao fazer poético em si mesmo, especificidades do cordel que talvez
aparentemente pudessem estar ameaçadas pelas interseções com a web.
Entretanto, posiciona o cordel nas cordas do coração, em primeiro lugar,
115
cordel. Construção em permanente processo, as flutuações, transformações,
trocas culturais, narrativas poéticas jamais fixas, imutáveis pedem uma “exis-
tência autorizada” conforme as teorias e os sistemas literários o autorizem?
Haveria solução teórica para essa encruzilhada conceitual?
Cordel ou pedrel?
Euvaldo Macedo Filho
117
festas do improviso
quanto mais canto mais tenho apetite
(Dantas: 2000)
Santinha Maurício
121
Qual é este universo do repentismo? De que maneira o poeta o
constrói? Espécie de situação inexorável, o improvisador submete-se a
ela pelo talento, pela força do ambiente cultural, pelo sentido do eterno
que se materializa naquele instante lúdico. É, pois, totalmente mergulha-
do no universo do repentismo e completamente à vontade em meio aos
processos criativos do improviso que, numa noite estrelada de novem-
bro de 2011, em praça pública na cidade do Paulista, Pernambuco, no
evento intitulado Cordel de Repente, o poeta Severino Feitosa, duplan-
do com Edmilson Ferreira, canta esta inexorabilidade: “basta a boca se
abrir / pro repente pular fora”.
123
Considere-se, entretanto, mais uma vez recorrendo a Meschonnic, que
“as palavras mais poéticas não são necessariamente as que têm mais me-
mórias” (Meschonnic: 2002, p. 51). Os clichês poéticos a que recorrem
mestres do repente não são suficientes para conferir qualidade ao talento
para o repentismo. Exibem, sim, tramas de memória, formas de tradi-
ção, não necessariamente sofisticação, apuro nas habilidades poéticas.
É, entretanto, a palavra inesperada, a palavra que emociona a preferida
de exímios poetas nos jogos do improviso, como faz Adiel Luna, coquis-
ta, aboiador, violeiro, mestre de maracatu, glosador, cordelista. Como
fazem os poetas repentistas que, empunhando a batuta e o apito, ou a
viola, ou o pandeiro, soltam a voz e desencadeiam na platéia o gozo de
momentos de plenitude, mais e mais apetite para o verso.
Barachinha
* * * Constelação de memórias* * *
125
ibéricos aparecem, entrelaçados, em vários folguedos e brincadeiras de rua,
como o coco, a ciranda, os caboclinhos, o maracatu de baque solto, o boi,
e em exercícios de poesia como o aboio, o repente de viola, a roda de glosa.
Confluindo nessa mesma sintonia da palavra viva, improvisada, poetas cor-
delistas articulam pelejas em rede, desafiam-se mantendo a mesma estraté-
gia belicosa da contenda, da rixa, do combate, ao vivo, entre poetas.
À maneira de um caleidoscópio, tais confrontos vislumbram sem-
pre novas configurações do expressar-se poeticamente, apontando para
a natureza múltipla de um universo poético-musical de riqueza inesgo-
tável, de um corpus constituído de palimpsestos, em que tradições mile-
nares do verso rimado e metrificado dialogam com as práticas de poesia
nas festas de rua do mundo contemporâneo. E que contemporâneo seria
este? É com Agamben (2009, p. 69) que reflito:
127
cordéis e improviso. Recorrências tais que são incorporadas ao fazer
poético singular, de cada poeta, certamente a partir de múltiplo contato
com textos consagrados e que funcionam como espécie de texto matriz
ou matrizes virtuais de que fala Jerusa Pires Ferreira (1993, p. 48).
A referência à “ribeira” é uma dessas confluências nas pelejas,
tanto as de cordel, quanto as pelejas improvisadas em presença. Fun-
ciona como uma espécie de hipotético cenário onde se posta o poeta e a
partir de onde canta. No bate-papo acima comentado, Maxado lembra
que “Ali naquela ribeira / nasceu o grande poeta”, ao referir-se a An-
tonio de Castro Alves. Quando constrói a peleja entre Silvino Pirauá e
Inácio da Catingueira, José Costa Leite também usa o mesmo termo da
“ribeira”, logo na primeira página: “Chegou ali na ribeira / com seu
pandeiro na mão”. Geraldo Alves, em estrofe anteriormente transcrita,
de modo metafórico igualmente alude à ribeira ao mencionar o domínio
de território próprio onde se efetiva a expansão do pensamento poético:
“quando eu canto conheço o meu terreno”.
129
* * * Canto desaforado * * *
Mocinha de Passira
Aos seus pés eu jamais me curvarei
a não ser pra matá-lo de fuzil
não concordo com sua prepotência
você foi agressivo e imbecil
baixe a vista se cale e obedeça
à maior poetisa do Brasil
Valdir Teles
Você tem o juízo de imbecil
passou anos perdidos na escola
aprendeu a mentir fazer fuxico
dirigir palavrões e cheirar cola
inventou de cantar sem condição
deturpando a imagem da viola
Valdir Teles
Você quer destruir a minha fama
repassando pra mim o seu defeito
ordenando que eu faça o que eu não quero
inventando calúnia ao meu respeito
o maior repentista não me ordena
quanto mais uma louca do seu jeito
Nonato Costa
Essa marcha de jerico
muito tempo eu não agüento
apresse o passo da tropa
que eu vou ver nesse momento
se você usa cangalha
ou vai correr com o jumento
131
Raimundo Nonato
A cabeça eu não esquento
com quem tá fora da linha
quem prova do meu chicote
passa a gastar com meizinha
e não apanha doutra mão
se não puder ser da minha
Nonato Costa
Onde eu sou galo da rinha
um frango não se projeta
cantar bem só é difícil
para quem mal interpreta
tem vocação pra pedreiro
e inventa de ser poeta
Raimundo Nonato
Se amostre-se não pateta
eu domestico o Nonato
ferrôo como lacraia
e grudo que só carrapato
e se eu pude matar na unha
doutra maneira eu não mato
A.
Mamãe pula berra e chora
rincha, corre e dá patada
cochicha, urra e bodeja
grita, ronca e não faz nada
se espoja, fuça, e diz
minha filha é de lapada.
M.
Oh! Filha amaldiçoada
da cara feia e beiçuda
com beiço com língua e dente
com rima grande ou miúda
os repentes que eu tenho
você morre e não se ajuda.
133
Na modalidade das pelejas, os cordelistas também mencionam
“canto malcriado”. No Desafio de João Fava (camponês) com Juca Baiacu
(praieiro), o autor Paulo Nunes Batista (2005, p. 68-9) desloca o adjetivo
para o impropério que Baiacu despeja no rival: “dobre a língua, moleque
malcriado”. Para não diluir a razão de existir da peleja, o adversário,
João Fava, não se deixa intimidar, e segue adotando as regras desse canto
sustentado pelo desaforo: “quanto mais canto mais tenho apetite / e se eu
der-lhe de peia, então, não grite”. No samba dos coquistas, há igualmente
a prática do coco malcriado, exatamente a mesma expressão usada por
violeiros e cordelistas quando se trata de jogar desaforos um contra o ou-
tro. Vai um exemplo desse coco desaforado, por Adiel Luna, em que toda
a valentia do adversário é reduzida a nada, por meio de imagens pleonás-
ticas, excessivas, barrocas – “cachorro sem dente pra morder”, “gato sem
unha pa arranhar”, “passarinho sem asa pra voar”:
Mole, mole
é mel na chupeta
mole, mole
é assim, é mel na chupeta
135
Cantador carbono
cheio de rimueta
não tira esse meu coco
quando tenta fica rouco
se engasga e faz careta
mel na chupeta
mole, mole
é mel na chupeta
137
# RESPEITE O SAMBA E O GRITO #
samba de maracatu e outros sambas
Saúba
139
ra marchetada à mão fazendo as vezes de lança. As baianas chegam com
roupas leves, dispostas a dançar e atuar no coro. Os demais brincantes,
da mesma forma se engajam no ensaio, e vai uma menção especial para o
Mateus, o qual, mesmo não estando fantasiado, se apresenta com as pa-
lhaçadas típicas do personagem que é figura central numa outra brinca-
deira de rua, o cavalo-marinho. Se na platéia há algum mestre de outro
maracatu, por especial deferência ele é convidado a cantar durante certo
período. Vale ressaltar que nos ensaios de sede, em que não existe con-
vidado previamente estabelecido, o clima não é de desafio. Cada mestre
canta, separadamente, versos improvisados ou mesmo balaio (verso de-
corado).
141
cumprimentos e aos pedidos de bebida. Somente a voz ecoando no ter-
reiro, numa pausa dos instrumentos musicais (percussão e sopro), cabe
ao mestre saudar os brincantes, agradecer aos colaboradores, e tecer
loas às autoridades, normalmente com versos cheios de clichês, numa
prática bem tradicional da poesia de louvação, conforme refere Mário
de Andrade, em Vida do Cantador (1993, p. 77): “esse desenvolvimen-
to, essa particularização de coisas a louvar, é tradicional na poesia do
nosso cantador”. Cascudo, em Vaqueiros e Cantadores (1968, p. 101),
reproduz modelos de louvação, referindo ser esta uma prática conhecida
desde os cancioneiros.
143
Fica evidente na cantoria dos mestres de maracatu o entrelaça-
mento com a cantoria de viola. Quando trata da toada nos maracatus,
inclusive os de baque solto, é exatamente sobre essa convergência que
escreve Guerra-Peixe:
145
Hibridismo patente no folguedo carnavalesco também se evi-
dencia na poética dos mestres de maracatu em relação à cantoria de
viola. Percebe-se a mesma tradição oral, o mesmo espírito de embate,
as formas fixas, a rima e o metro. Até a nomenclatura recorrente: pé-de-
-parede, balaio, viola, martelo, gemedeira, gabinete, coqueiro da Bahia,
“o que é que me falta fazer mais”. Em memorável sambada, acontecida
em Nazaré da Mata, no final de 1997 – da qual participei e fiz registro
sonoro –, debatem-se os mestres João Paulo, de Nazaré, e José Galdino,
radicado em Buenos Aires (natural de Ferreiros). Na disputa, o primeiro
aciona o fato de que o adversário é também mestre de ciranda e violeiro,
e constrói versos metapoéticos, com o fim de derrubá-lo:
Zé Galdino
Já fui um ídolo
da torcida do Bangu
mas vi um maracatu
guardei a calça na mala
bati de mão a bengala
só pra viver dando em tu
João Paulo
Chamei você
pro coqueiro da Bahia
mas você nada queria
porque não acompanhava
quando eu ia tu voltava
quando tu voltava eu ia
Zé Galdino
Eu no São Paulo
fui o rei do Morumbi
dei muito no Guarani
desclassifiquei Palmeiras
pendurei as chuteiras
pra dar em você aqui
João Paulo
É na viola
que eu quero deixar tu roxo
eita que poeta frouxo
vou lhe meter o cacete
se pratico gabinete
aí é que leva acocho
147
Zé Galdino
Eu no flamengo
joguei com Zico e Bebeto
comecei samba correto
deixei o campo e a bola
agarrei minha viola
e comecei sambar completo
João Paulo
E na viola,
Galdino, eu sou seu pai
na ciranda eu vou atrás
quando tu canta, tu cola
sei de tudo na viola
e o que falta eu fazer mais?
Mestre Zé Galdino
149
Mestre Alexandre Silva
(...) (...)
(...)
(...)
151
Barata
Danda
153
Danda acrescenta, ainda, uma ciranda que destila desaforo, feita
em tom de disputa, e cuja criação se deu em parceria com o irmão Ale-
xandre:
Eu conheço um cirandeiro
que de mim anda falando
fofocando e criticando
porque não ganha dinheiro
155
Hoje aposentado, Zequinha foi trabalhador rural: limpava, cava-
va, plantava, cortava, cambitava cana-de-açúcar. Quando foi mestre do
Índio Vencedor, cantava outro tipo de toada, diferente das de boi, mas
sempre em quatro linhas, acompanhada do refrão “ô arreamá” – espécie
de invocação/saudação/agradecimento ao personagem da brincadeira, o
arreamá, ou o correspondente ao feiticeiro do grupo, protagonista de
rituais de pajelança para filtrar e arriar qualquer mal que esteja ou possa
estar rondando o grupo. O mesmo personagem integra o maracatu e o
papel que representa é similar. Entre as marchas executadas, há as de
abertura, com os cumprimentos ao público, e há, ainda, as de despedida,
recurso usual entre diversas práticas de poesia tradicional, não somente
em caboclinho, também coco, maracatu, boi, ciranda, bloco rural, sam-
ba de matuto, repente de viola. O referido refrão funciona como unidade
autônoma, após cada estrofe:
(...)
Compartilho a saudade
porque isto é gente minha
vou levar saudade grande
pro coração de Zequinha
ô arreamá
157
A prática do improviso, ninguém nunca ensina, é o que declaram os
mestres, ao serem indagados sobre a iniciação no ofício poético. Nascido na
cidade pernambucana de Paudalho, em 27 de outubro de 1963, desde crian-
ça Alexandre Severino da Silva acompanhava os bois e os blocos rurais na
Zona da Mata Norte. Chegou a participar do Bloco Rural Papagaio Dou-
rado, do Engenho Cumbe, Nazaré da Mata, no mesmo ambiente agrícola
onde o segundo maracatu de baque solto mais antigo mantém a sede – o
Maracatu Cambinda Brasileira, fundado, conforme tradição oral, no ano
de 1918. Ainda que alicerçada na prática do improviso, Alexandre afirma
que a poesia dos blocos não comporta nem samba curto, nem samba de dez.
Só há o ritmo da marcha, acompanhada de tarol e bombo. Os músicos, o
mestre e o bandeirista são homens e os dois cordões de dançarinas são for-
mados exclusivamente por meninas. Não existe contramestre, as garotas é
que fazem a segunda voz. A marcha é também chamada de baião, segundo
a experiência do mestre Alexandre, que canta uma delas:
159
Mestre Zé Duda
161
deando que nenhum mestre consegue acompanhá-la, e nem ela deixa
estancar o carro da poesia. Ou seja, nada interrompe a fluência dos
versos de improviso:
163
João Paulo
Tô vendo que esse Mateu
está fraco da cachola
bis
isso é maracatu
ele cantando viola
165
Olha você e papagaio
pra ter língua pegada
fala muito e não diz nada
só faz gaguejar demais
tu vai tu vai
suspira soltando um ai
tem um desgosto profundo
te afasta desse mundo
vai morar mais satanás
167
# É PORFIA NA CORRENTE DO APITO #
samba de matuto
Mestre Zé Ferreira
169
quando ia para a maré, de segunda a sexta ficava pescando, fazendo e
decorando as estrofes. “Era só no juízo, e cantando sozinho na maré”.
Avalia que, se soubesse ler, tudo ficaria mais fácil: “pra fazer um verso
bem feito, levo dois, três dias ou mais. Se soubesse ler, pegava um livro
e fazia o verso”. Na hora do improviso, com leitura ou sem leitura im-
porta a agilidade do poeta, pois “o mestre está cantando, a gente não
está prestando atenção no que ele está cantando, a gente está fazendo
outro verso fora”. Nos antigos encontros, assistia aos mestres “improvi-
sando um com o outro, era porfia, cada um que fizesse o verso melhor.
No samba, a gente brinca para maltratar o outro. Corno, miserável, vai
tudo. Pai e mãe é que deixo de fora”. Só para realçar o que explica, canta
uma ciranda feita por ele, “para maltratar”. É uma quadra com rima
interpolada (ABBA):
Lá vem tu me interrogar
seu Juda da Semana Santa
quem diz que ciúme canta
nunca viu jegue apitar
“Versinho com oito, dez pés a gente faz na rasa, chama rasoeira.
O versinho curto, a gente acha mais fácil. Agora, o verso de aconteci-
mento, luto um bocado para fazer”. Como distinguir o verso feito na
hora daquele decorado? “O verso comprido, com 50, 60 pés, fazer na
hora é ruim. A virada de um carro, um desastre a pessoa não faz na hora,
assim. Só o que canta ajudado, como eu disse. É muita complicação pra
juntar aquilo. É preciso uns quatro, cinco dias pra fazer tudo aquilo
bem direitinho, pra ele distribuir quando for a sua vez”. Cantar ajudado
significa cantar sob efeito de transe, conforme será comentando mais
adiante. Quanto ao “verso de acontecimento”, este remete ao cordel de
acontecido ou de circunstância, como é também chamado o folheto que
trata de temas do cotidiano, de notícias de jornal, de fatos impactantes.
Mesmo nos versos de improviso, há a recorrência dessa prática, não
importando se é verso de violeiro, de coquista, cirandeiro, mestre de
maracatu, de caboclinho, dos bois. O que, finalmente, importa mesmo é
o prazer provocado pela poesia, muito mais do que as informações por
meio dela transmitidas.
Conhecido pela preferência explícita pelos versos de amor, o mes-
tre José Ferreira é chamado de “mestre apaixonado”, conforme conta o
filho, Cícero Santos. O poema “Baiana amada” é uma espécie de hino,
solicitado pelo público em todas as apresentações que faz. É um baião,
em décima de redondilho menor, com a rima em ABBAACCAADDA
incluindo o refrão:
171
Estou na solidão
por aqui jogado
triste abandonado
no meu casarão
dói no coração
eu viver sozinho
amor e carinho
eu não tenho não
tenha compaixão
não fique calada
ô baiana amada
não faz assim comigo não
ai comigo não
oi comigo não
bis
173
Gercino cadê Amaro
tá na boca da camboa
quero teu remo emprestado
Pa ir com a minha canoa
(...)
ouça a minha voz chamar
abalei o juremá
as correntes de Allan Kardec
tô abrindo a minha sede
pra ver se eu posso cantar
175
Ei-los:
TIRADOR
Eu aplantei cana,
Na resta do só,
Pra nacê mió,
Naceu a Cana-Fita...
A usina apita,
Cana nas istera,
Açuca de primera
Tem a cô bonita!
CÔRO
Este “espírito lírico” pode ser conferido nas variadas estrofes can-
tadas pelos mestres entrevistados, inclusive o samba da “Baiana amada”
e outros versos do mestre José Ferreira, acima referidos.
Voltando à ritualística de abertura e fechamento de sede, é quan-
do vai haver o fechamento que o mestre Zé Ferreira canta: “fecha-te sede
que é hora / até salvo se eu voltar”. Se no canto de abertura, falou-se em
“sede dourada”, há também um fechamento em que ocorre similaridade
de termos, como relembra o mesmo mestre: “fecha-te sede dourada / e
adeuzinho que já me vou”. Ferreira reforça a opinião de outros poetas,
como José Amaro do Bonfim – conhecido por Zé Alagoas e ex-mestre
do Samba de Matuto Leão do Norte –, dizendo que “os mestres antigos
tudo cantavam ajudados pelos espíritos, ajudados pelo pessoal do além.
177
* * * Tudo é conto de fadas? * * *
179
mesmo, fora do campo de atuação dos trabalhos de macumba, atribuin-
do a eficácia dos versos, não à força do trabalho de entidades religiosas
e, sim, ao vigor da própria poesia e do talento poético (“sou marreta de
verso”):
Biu Caboclo
Você o direito tem
de se benzer todo dia
fazer a magia negra
usar sua bruxaria
mas é muito pouco isso
pa pegar-me em covardia
João Paulo
Eu não gosto de macumba
também não sou macumbeiro
bis
sou a marreta de verso
de bater em violeiro
181
por Zé Del, acompanhava, atento, o artesanato de palavras e garante
que, mesmo o pai não sendo mestre de samba, “se chamassem pra
cantar, ele tirava verso, tudo pra o que a pessoa nasce”. Comparando
a glosa com o samba de matuto, o mestre diz que, no galope, “são
dez pés, se o camarada não fizer na mesma contagem, já apanhou do
sambista”. Os mestres são exigentes quanto à aplicação das regras do
ofício poético.
Sobre os desafios, esclarece: “porfiar é maltratar uns aos outros,
é como um duelo”, corroborando a prática das pelejas, não somente
no samba de matuto, como também em outras expressões poéticas do
repente. “No samba de matuto, o camarada faz verso até com 60 pés,
120. O que o juízo der, a pessoa faz. O importante é fazer, cantar, parar,
voltar de novo a cantar aquilo que fez”, relata o poeta, com a experiên-
cia de quem brincou samba, guerreiro, cambindas. “O samba tem uma
quantidade de pés. Guerreiro é quatro; cambinda é quatro; chegança –
também cantei – é quatro. O número quatro diz respeito às estrofes em
quadra ou quatro linhas.
Nas festas de samba de matuto, Zé Alagoas descreve um aspecto,
o modo como os diversos mestres são convocados a participar daquela
festa. Ocorrência semelhante nos ensaios de maracatu: “chega um po-
eta. A gente tem de chamar e chama no verso, cantando. Se juntar dez
mestres, todos eles cantam. Cada um canta os seus versos. Se for cantar
versos de outro, já não tem valor”. Outra particularidade, também si-
milar à prática do maracatu, diz respeito à alternância entre a execução
dos instrumentos e a atuação do poeta e respectivo coro: “o mestre tira
o verso, apita, pára, ele entrega a resposta, aí as baianas pegam na res-
posta e o bombeiro toca”.
E o poeta de qualidade, como é possível conhecer? “O bom verso
é o mais entoado, aquele que as baianas sabem responder bem”. Na por-
fia, “ganha o que faz verso melhor e o que fica magoado não continua
cantando, entrega o apito e sai”. Isto é o que responde o mestre Tião, ou
Sebastião Amaro dos Santos. Nascido em Maragogi, Alagoas, a 10 de
Nas Alagoas
eu arranjei uma mulher
a minha noiva
veio arreclamar a mim
eu disse a ela
meu viver sempre é assim
mas se a senhora achou ruim
continue se quiser
Do amargoso
eu endoço e faço mé
e dos errado
tô pronto pra dar conselho
eu só não seio
fazer do bonito o feio
e nem fazer
carinho a quem não quer
183
Entrevistado na casa de Dudé, em Barra Grande, no dia 29
de janeiro de 2012, Tião relembra que começou no samba de matu-
to com 19 anos: “eu vi os mestres velhos cantando, eu fui inventar
também. No samba, a gente inventa seja lá o que for pra no fim dar
certo a resposta”.
Mas, se parece simples assim inventar este ofício de versos, Zé
Alagoas desmente: “poesia pra gente tirar da cabeça não é fácil, não, é
custoso. Por isso que o povo gosta de samba de matuto”. Logo, o talen-
to do poeta é um esforço em permanente exercício e o reconhecimento
do público não ignora o processo, ao contrário, consegue discernir e
aplaudir o que há de melhor. Explicando, relembrando e gostando do
samba é que Alagoas chega a relatar as experiências, não somente com o
improviso das glosas, também com a poesia de cordel: “tudo ali é poesia,
aquilo ali é um dom que a pessoa tem. Eu me lembro que gostava de ler
A intriga do cachorro com o gato, O negrão do Paraná”. Alagoas fre-
qüentou escola até o correspondente à 5ª série. Ao falar sobre esses dois
clássicos, escritos, respectivamente, por José Pacheco e Francisco Sales
Arêda, comenta o poeta sobre a prática de ler os folhetos: “eu leio, eu
leio falando e leio cantando também. Eu tinha uma maletinha, era cheia
daquilo ali, comprava na feira”.
Livrinhos de feira, samba de improviso, roda de glosa fazem
parte do universo poético de Zé Alagoas, canavieiro, mestre de ver-
sos e mestre de obras em construção civil: “eu sou pedreiro, encar-
regado de obra. Eu limpei cana, eu cortei cana, eu limpei mato, eu
cortei mato. Eu rocei mato, cambitei, carreei. E no tempo de menino
chamava boi em arado”. Interessante observar o ritmo, o encadea-
mento, a modulação da fala do poeta. Entre relembranças, desabafos
e poemas que canta, de memória, recompõe um, que classifica como
samba de gracejo, em consonância com o que, na literatura de cordel
e recebendo a mesma terminologia, é classificado popularmente como
“folhetos de gracejo” (Souza: 1976). O tom é o da irreverência e do
jogo de duplo sentido:
Era Maria
o nome da tal donzela
no quarto dela
o bicho preto dormia
ela podia
criar preso e num soltava
todo mundo que passava
o bicho preto latia
Um certo dia
pela rodagem eu passei
não manginei
que o malvado me via
ele fez força
que quebrou uma corrente
deu um salto em minha frente
dessa vez quase mordia
Saí danado
correndo em toda carreira
e uma peixeira
de nove que eu pissuía
eu não queria
matar ele mas matei
eu puxei a faca e furei
o bicho preto de Maria
185
Uma particularidade do samba transcrito é a construção melódica
de estrofes mistas. São oitavas harmoniosamente alternando versos de qua-
tro sílabas e de sete sílabas, como a toada alagoana na cantoria de viola.
Os versos curtos, de quatro ou cinco sílabas, correspondem à modalidade
chamada de parcela ou carretilha. A oitava, ou quadrão, é, neste samba
de gracejo, dividida ritmicamente em duas quadras – uma alterna pares e
ímpares na contagem silábica, a outra abre com o primeiro verso em qua-
tro sílabas e os demais em heptassílabos. A resposta das baianas consiste
em repetir a segunda quadra de cada estrofe. O esquema de rima regular,
em ABBAADDA, é conferido apenas na segunda estrofe. Aparecem fora
da rima a quinta linha da primeira e terceira estrofes e a primeira linha da
quarta estrofe. Possivelmente falha de memória? Pelo sim, pelo não, interes-
sam a agilidade mental nas operações de construção do repente, a liberdade
nas escapadelas a regras e modelos; interessam a alegria, a exuberância das
palavras articuladas poeticamente nessa memória movente que é a tradição
das poéticas de oralidade. Interessa, pois, a poesia, “essa energia vital pre-
sente nos começos de nossa espécie e que luta em nós para roubar nossas
palavras à fugacidade do tempo que as devora” (Zumthor: 2007, p. 48).
191
Oralidade e escritura, tradição e contemporaneidade convivem,
sem embaraços, aliadas às qualidades sensoriais, sensíveis ao tato, chei-
ro, cores, corpo, voz, ainda que o desafio em presença exista somente
enquanto virtualidade de pelejas desenvolvidas no ciberespaço ou mes-
mo no ambiente em que, solitariamente, escreve o cordelista ou “poeta
de gabinete”:
193
cordel brasileira, sob a tentativa de afastar qualquer tipo de relação
que possa existir entre o repentismo e o cordel – aí significando cisão
entre oralidade e escritura –, é o especialista Braulio do Nascimento
um dos estudiosos que a desautorizam:
195
O ciberespaço é um ambiente de circulação de discus-
sões pluralistas, reforçando competências diferenciadas
e aproveitando o caldo de conhecimento que é gerado
dos laços comunitários, podendo potencializar a troca
de competências, gerando a coletivização dos saberes.
A dinâmica atual do desenvolvimento das redes de com-
putadores e seu crescimento exponencial caracterizam o
ciberespaço como um organismo complexo, interativo e
auto-organizante. (Lemos: 2004, p. 135)
197
Com este diálogo – a significar constante recriação de suposto
embate, em reiterativa repescagem dessas matrizes virtuais – dá-se nas
pelejas o contínuo jogo de criação de ego superlativo, de tentativa de
destruição do pretenso inimigo, de reconstituição de batalhas verbais.
Mostra-se altamente recomendável praticar múltiplas habilidades nos
jogos verbais, para que o nível da simulada disputa não se configure
como irregular ou desnivelada entre os contendores e, por conseguin-
te, transforme-se em briga inócua, em brinquedo sem entusiasmo. “Em
sânscrito existe uma palavra, lîla, que significa ‘jogo’, ‘brincadeira’. Mais
rica de sentidos do que as palavras correspondentes em nossa língua, ela
significa brincadeira divina, o jogo da criação, destruição e recriação,
o dobrar e desdobrar do cosmos” (Nachmanovitch: 1993, p. 13). É,
pois, neste dobrar e desdobrar do conjunto das poéticas tradicionais
que seguem pelejando cordelistas e repentistas, em múltiplos suportes e
ambientes de comunicação.
199
Milanez
Eu não sou cangaceiro
do jeito que o senhor fala
mas tenho outro poderio
que forma minha cabala
o meu rifle é a viola
e a poesia é a bala
Clemente
Então se arme com ela
vamos entrar na batalha
sou igual a dinamite
que quebra qualquer muralha
se não for forte guerreiro
comigo se atrapalha
Milanez
As águas do oceano
eu bebo e depois vomito
na parte seca da terra
que deixo tudo esquisito
crio nova geração
só obedecem o meu grito
Clemente
Antes de fazer assim
eu aterro o oceano
edifico um novo reino
e dele sou soberano
mando matá-lo enforcado
não valeu nada seu plano
201
eu estou cantando. Se ele pega o que estou cantando, é um bom cantador.
Significa pegar a toada, ou musicalidade, e as quedas do coco – ou seja, a
parte fixa do coco, que são as obrigações, e as quedas, que é a improvisação
musical. No coco, que Adiel relembrou e vai abaixo reproduzido, a obriga-
ção – parte mais complexa da poesia do coco, construída propositadamente
para o outro cantador se atrapalhar – é a seguinte:
na minha casa
tem um cachorro valente
amarrado na corrente
há dez dias sem comer
um nego doido
encostado no portão
com uma foice de mão
melhor não aparecer
na minha casa
tem um cachorro valente
amarrado na corrente
há dez dias sem comer
um nego doido
escorado no portão
com uma foice de mão
melhor não aparecer
203
foram obras de poetas que não improvisavam, daqueles que
no passado se diziam historiadores (contadores ou criadores
de histórias), escritores, poetas de gabinete (denominação
usada por Chagas Batista) ou poetas de banca ou bancada,
como se disse amiúde no jargão coloquial dos poetas. Mais
curioso ainda é que a concepção de Marco, conquanto rea-
lizada pelos poetas de bancada, é transposição para a forma
escrita do valor que os cantadores atribuíam a suas Ribeiras,
vistas por muitos deles como castelos em que, abancados,
resistiriam ao ataque de qualquer cantador, permanecendo
donos da praça. (Almeida: 1981, p. 11)
O Marco Pernambucano
Já terminei meus senhores
Desejo é ver agora
A força dos trovadores
Quem será dos poetas
Que vem colher estas flores
205
Seriam estas flores aquelas dedicadas à deusa Flora nos jogos flo-
rais, tradição ainda mantida entre brasileiros e portugueses clubes de
trovadores ou troveiros contemporâneos? Independente de respostas a
esta pergunta, e para que o leitor possa compreender a linguagem enig-
mática descrita no folheto, o autor apresenta, ao final, lista de livros, que
consultou, sobre ciências ocultas e história universal. O cordelista foi
astrólogo e autor do Almanaque de Pernambuco, publicação anual que
começa a circular a partir do ano de 1936.
207
Pra defender minha trova
e o meu fazer poético
projetei um monumento
de grande valor estético
que irá ser conhecido
como o Marco Cibernético
(...)
(...)
209
Bem na praça central um monumento
embeleza meu Marco Marciano,
um granito em enigma recortado
pelos rudes martelos de Vulcano:
uma esfinge em perfil contra o poente
guardiã mortal do meu Arcano.
(...)
211
Coitado de seu Romano
onde ele vem caí
nas unha dum gavião
sendo ele um bem-te-vi
(...)
213
pentista, o adversário “ou canta, ou corre, ou se dana”. A troca de ama-
bilidades se dá no seguinte patamar. Costa Leite começa logo lembrando
à platéia que está ali um homem cantando com uma mulher, numa franca
alusão à superioridade masculina: “senhorita se prepare / acoche o cordão
da saia”. Maria das Dores devolve, sem intimidação: “sou poetisa valente
/ e não aliso barbado”. Embora resuma o narrador o sentimento domi-
nante – “José com medo da moça / e a moça com medo dele” –, o diálogo
é todo costurado por arroubos de valentia, de parte a parte:
215
O poeta viajou muito a Olinda entre os anos 1970 e 1990, época
em que imprimia os cordéis na Fundação Casa das Crianças. Na mesma
década 1970, deixa a voz imortalizada em três LPs gravados no Con-
servatório Pernambucano de Música, a mesma voz que peregrinava can-
tando em feiras e mercados de Pernambuco, Paraíba, Ceará. Atualmente
tem também trabalhos impressos pela cearense Editora Tupynanquim,
do cordelista, xilógrafo, desenhista e artista gráfico Klévisson Viana,
e pela pernambucana Folhetaria Cordel, do poeta, xilógrafo e artista
gráfico Marcelo Soares. Independentemente de quem imprima, todas as
edições recebem o selo A voz da poesia nordestina, de José Costa Leite e
trazem na capa xilogravura do autor. No campo da astrologia, continua
a escrever e publicar almanaque anual, distribuído nacionalmente. Pela
vasta produção cordelística, não faz idéia da quantidade de publicações
que reúne na bibliografia, além dos inéditos ainda guardados.
A versatilidade é uma das marcas da trajetória bem-sucedida do
xilógrafo, cordelista e autor de almanaque popular. As primeiras xilo-
gravuras que faz, em 1949, são para figurar na capa de dois folhetos de
própria autoria, um deles exatamente de peleja, a Peleja de Costa Leite
e a poetisa baiana, e o outro, O rapaz que virou bode. A estréia na lite-
ratura de cordel havia acontecido dois anos antes, em 1947, escrevendo,
217
# SE O FACEBOOK PODE SER PLATÉIA #
faça escrito o que alguém faz no repente
219
Se o facebook pode ser platéia
Subo no palco se dez versos posto
Convidando um amigo até aposto
Que podemos trocar alguma idéia
Suriel faça aqui a sua estréia
E nem pense em clicar no excluir
Pois o povo que está a nos assistir
Tem valor, é estudado e inteligente
Faça escrito o que alguém faz no repente
Que eu te aplaudo clicando no “curtir”
221
traduz como a construção de uma fortaleza ou marco, típica fortifica-
ção imaginária, tradicional no ambiente de repentistas e cordelistas, em
que cada um dos poetas se posicionará para vencer o inimigo e exibir a
supremacia sobre o rival. Interessante que, apenas três minutos após a
postagem da estrofe acima, um dos “amigos de facebook” no grupo –
Nelson Bittencourt – propõe: “bem que vocês podiam botar um sotaque
gaúcho neste repente... só pra ver como fica”. Quase imediatamente, ou
menos de uma hora depois, entra o conhecido pajador brasileiro Paulo
de Freitas Mendonça, aderindo à peleja com a postagem das seguintes
estrofes:
223
dúvidas sobre as possíveis qualidades de poeta que possa anunciar e não
vir a ter. Arma-se uma praça de guerra, ou melhor, um ringue para luta
de “boxe no repente”, com troca de verso belicoso, de golpes, de “bote
de serpente”, conforme vai “cantando” Suriel:
225
Invocando a avó, o neto Ariel promete que, se estiver inspirada,
ela poderá revelar “entre versos e rimas um conselho” ou oferecer, em
caso extremo, duas surras, dele e da própria. Tal proposta, indecorosa, é
refutada por Suriel, ao alegar apenas ter estabelecido, por exclusão, uma
comparação de si mesmo com o previsível comportamento cordato da
avó do rival, considerando-a, portanto, fora desse combate. O recado
que deixa é compatível com a peleja, desaforado: “mas se a voz da razão
você renega, / eu arranco sua língua a faca cega / pra não mais difamar a
vida alheia”. À valentia corresponde valentia, matizada com humor nos
versos de Ariel, aos quais responde Suriel, transformando em confete os
“pedaços de teclado”. Assim encerram a peleja:
Mauro Machado
227
sinho tão chocho”, “poeta coxo”, “poeta mole”. A réplica de Honório
segue no mesmo tom, mas não com a mesma quantidade de desaforos:
“seus versos de caolho”, “coloque as barbas de molho”. Age na con-
tracorrente da atitude rival, devolvendo impropério com elogios: “você
grande menestrel”; “pelejar neste universo / com alguém do teu talento
/ faz com que eu me sinta imerso / num mar de contentamento”. Mauro
aceita os elogios, devolve alguns, e segue simultaneamente alimentando
a controvérsia com descarada auto-estima e virulentos ataques: “mas
meu versar magnífico / seu versejar desordena”.
229
As comunidades têm sempre dono, moderadores, membros. Muitos
deles são poetas conhecidos, como os cordelistas Arievaldo Vianna, Merlâ-
nio Maia, João Rubens Agostinho Rolim (João Rolim), Luiz Carlos Lemos
(Compadre Lemos). Nem sempre há registro da cidade de onde partem os
comandos do dono. Há regras a serem cumpridas, há os fóruns que con-
duzem as ações dos membros, como motes que são postados sob forma de
tópico e, ali, glosados por integrantes do grupo. A descrição da comunidade
é sempre explicitada, inclusive as normas de conduta. Cantoria de viola,
aboio de vaqueiro, roda de glosa modelam os exercícios poéticos praticados
no orkut. Escrever, mostrar os trabalhos, ler, fazer amigos são propostas
que oferecem os articuladores a quem quer que visite os especializados cibe-
rendereços. Não faltam poesia sobre poesia, regras de versificação, pelejas
coletivas. Desafio de Cordel, Aboio de Vaqueiro, Uni’versos e Oficina do
Cordel são as quatro comunidades do orkut que inspiram esta análise, pelo
fato de as quatro se voltarem para o desafio, para os exercícios poéticos de
mote glosado e de outras modalidades do repente de viola, aboio e literatura
de cordel. Muito mais que duelo, as comunidades de orkut visitadas sina-
lizam para a preferência pela celebração da alegria provocada por jogos de
palavras, pela exaltação das trocas amistosas entre poetas. “Solte a mente e
vem teclar”, convocam os artistas.
* * * Desafio de Cordel * * *
19 mai. 2008
Se arrochem, que eu tô chegando
Sou bom naquilo que faço
Então vão abrindo espaço
Meu punhal tô afiando
Meu chicote estalando
Sei fazer o sol se pôr
Na escola, sou professor
No quartel sou capitão
Não tem outro campeão
Enquanto eu for cantador
231
18 jul. 2010
O bom verso é feito o vento
Que balança e que embala.
A terra toda se cala
E para por um momento;
O céu se coloca atento
E até com certo estupor
Para ouvir um trovador
Que canta com o coração...
Não tem outro campeão,
Enquanto eu for cantador!
23 set. 2011
Apareceu novamente
Mais uma turma na net
Que não canta, nem compete
Nessa arte do repente.
Não é o suficiente
Para me causar pavor
Quem não conhece uma cor
Desafio de Cordel
Exibir perfil
233
* * * Aboio de Vaqueiro * * *
O pote da poesia
tá ficando muito cheio
Tem muito verso no meio
no pirão da alegoria
O pote não esvazia
por mais que a gente cante
A nota sai dissonante
balançando a epiglote
seu moço, segure o pote
mas passe o verso adiante
Disponível em:
<http://www.orkut.com/Main#CommMsgs?cmm =4
157024&tid=2487435175680843461&na=4&n
pn=11 &nid=4157024-2487435175680843461-
5349723320151744197>. Acesso em: 06 dez. 2011.
235
disponível em: <http://www.orkut.com/Community.aspx?cmm=4157024>
Aboio de vaqueiro
Exibir perfil
* * * Uni’versos * * *
237
Porque vagas, caminhante?
Vejo nas Vidas, estradas...
Vives fora às caminhadas?
Sigo em passo constante.
Há um caminho errante?
Sempre há bifurcação.
Tropeços levam ao chão.
Quase sempre empedrado
Isso é quadrão perguntado.
Isso é responder quadrão.
239
Disponível em: <http://www.orkut.com/CommMsgs?c
mm=15390565&tid=2598250586812512451&na=4
&nst=295 &nid=15390565-2598250586812512451-
5657055086920198045>. Acesso em: 24 dez. 2011.
disponível em <http://www.orkut.com/Community?cmm=1215511>,
Viva o Cordel!!!!
• TEORIA DO CORDEL
• REGRAS E DICAS DA COMUNIDADE
• OFICINA DE CORDEL - GALOPE A BEIRA MAR
Visitem CANTORIAS E CORDÉIS, blog parceiro de
nossa comunidade.
• NOSSO BLOG OFICINA DO CORDEL
241
Regras e dicas da Comunidade
O objetivo é estabelecer códigos de conduta dentro da comunidade.
Teoria do Cordel
Na data de abertura do fórum – 12/04/07 – a definição dos ob-
jetivos é bem clara: “A finalidade deste tópico é abrir um espaço para
a discussão sobre a Teoria do Cordel, discutindo formas, autores, con-
teúdo e a melodia dessa arte. (...) Segue o ‘Decálogo de Metrificação’
desenvolvido pela UBT (será posto por partes, devido ao número de
caracteres)”. Expressamente vinculada à União Brasileira de Trovadores
(UBT), a prática da comunidade busca adequar-se às regras das poéticas
tradicionais, incluindo aí tanto o cordel nordestino, quanto as trovas
praticadas na cultura gauchesca, na cultura poética nacional. Com o
intuito de oferecer uma melhor compreensão e possível aplicação das
regras da metrificação, a página exibe uma quadra para explicar cada
regra, e a que segue é para a primeira delas, a qual trata da contagem
silábica que obrigatoriamente vai até a última tônica do verso:
16/04/07
Colocarei aqui, para exemplificar, algumas estrofes de
uma peleja que estou levando com o poeta Falcão (a
peleja completa pode ser achada no tópico chamado FAL-
CÃO CONVIDA J. RUBENS):
“(...)
J. Falcão: Se um dia estiveres moribundo
Tome chá de raiz de poesia
Lambedor feito com mel de viola
Masque folha de pé de cantoria
Se viveres, seguirás encantado
Se morreres, irás com alegria
243
João Rolim: Já tomei desse chá da fantasia
Viajei pela Terra Esplendorosa
Melhorei do rebento da doença
Resolvi vir aqui plantar a rosa
Pra depois, já crescida desse amor
Eu colher uma rima milagrosa
245
no rumo da costa velozes avançam
agora serenos à costa se lançam
nos dez de galope da beira do mar!
BLOG
Blog Oficina do Cordel
Disponível em: <http://www.
comunidadeoficinadocordel.
blogspot.com/>
BLOG
Blog Cantorias
e Cordéis
Disponível em: <http://www.
cantoriasecordeis.blogspot.
com/>
247
# TRAMA BELICOSA #
abalando as cordilheiras
* * * Briga de deidades * * *
249
e Afrodite, aliás, pelas duas poetas, travestidas de deusas gregas, na
Peleja deusística ou A briga de Atena e Afrodite pelo msn. Bem mais
amistosa que guerreira, a conversa é proposta em septilha por Maria-
ne, entretanto, como Susana se confunde e envia as estrofes iniciais
em sextilhas, pede à amiga para completar, acrescentando uma linha
em cada. Propõe, a seguir, que a “rival” comece os desaforos, já que o
início da narrativa ficou sob responsabilidade dela, Susana. Enquanto
vão tecendo os versos da trama belicosa entre volúpia e sapiência,
as duas conversam sobre melhor conjugação de verbo, pé quebrado,
substituição de vocábulos, advérbio, dicas de rima inclusive com su-
gestão de dicionário digital, “septilhas desaforadas”, “palavras mais
ricas”.
* * * Web-pelejinha * * *
251
imediatamente prepara resposta, em que propõe mudar de estilo para
setilha, “como faz na cantoria”. No bate-papo também sugere continuar
no mesmo horário do dia seguinte, mas a pelejinha fica por aí.
253
Susana não arrefece, sempre buscando modos de nocautear o ini-
migo: “Do meu sol só tens a noite / (...) / O meu verso é um açoite”.
Sertão com estiagem, caneta sem papel: são comparações que Mau-
ro Machado constrói para detonar os versos da rival, ainda quando esta-
vam duelando em quadras. Sem pudores, nem modéstia, Mauro defende
que “meu versar é bem versado / de qualidade está cheio”, ao glosar o mote
na peleja virtual / quem manda mesmo sou eu. Refere e-mail, browser, vírus,
para exibir provas de que conhece do assunto e quem manda ali, naquele
mundo virtual é ele mesmo. Teclado sem freio, verso bem bolado, rima atu-
al e sempre quente, cordel sem igual são as provas que Susana tenta oferecer
para conquistar posição favorável no duelo, finalizado com quatro estrofes
em décimas, glosando “Você não sabe de nada”, espécie de jogo de adivi-
nhação e, ao mesmo tempo, correspondente ao “cantar ciência”, exercício
temático praticado por violeiros. No conjunto da peleja, todas as estrofes
respeitam a deixa, a métrica é a do redondilho maior, as estrofes variam
entre sextilha, quadrão, quadra, septilha, décima.
255
não bole”; “Todos sabem que nos versos / Virtuais sou o primeiro”. Atitude
oposta a de Mauro, que parte para a agressão com o alvo bem definido:
(...)
(...)
* * * Duelo de fôlego * * *
Raio da Silibrina versus Arquipoeta das Borboremas
257
Braulio Tavares
Fiz meu site com repente,
de poesia a homepage:
não basta que tu deseje
pra passar na minha frente!
Não basta clicar somente
num link para acessar;
como você vai entrar
sem modem, log-in e senha?
Ronca pau, troveja lenha
no tronco do juremá!
Astier Basílio
gosto é das coisas do campo
de um oitão, peba e coentro
de rio com peixe dentro
de casa caindo o tampo
de noite com pirilampo
de pirão, de mugunzá,
fojo pra pegar preá
que se remexe na brenha
ronca pau troveja lenha
no tronco do juremá
259
“Eu sou martelo de aço / você pedra de granito”: com este mote,
Astier inaugura nova rodada na peleja e ainda homenageia o adversá-
rio, que criou o referido mote para congresso de violeiros de Campina
Grande, Paraíba. “Se tiver medo nem mande / o seu improviso escrito”,
adverte Astier. “Se você tem verso, bote / no papel, ou solte o grito”,
rebate Braulio. Daí por diante, a carretilha de desaforos é de novo acio-
nada e os poetas prometem estapear um ao outro: “Quando aterrissar
nas suas / Costas largas e penosas / É chuva de rebordosas”, promete
Braulio, prontamente replicado por Astier, no mesmo tom desaforado:
“pois a minha mão deseja / deixar sua boca banguela”. O combate por
palavras guarda a força do embate face a face, pela virulência verbal,
que, evidentemente, em momento algum se concretiza em gestos. “me
desafie a bodoque / e aguarde a artilharia”, é a ameaça de Braulio. Mas,
o adversário Astier não quer mesmo saber de fragilidade no rival, que
trata por subordinado, discípulo: “entretanto em minha escola / um fra-
co eu não admito / rasgarei seu manuscrito”.
Nos oito pés a quadrão, os pelejadores montam no cavalo do
tempo e desenvolvem longa sessão de nostalgia, em que mesclam soli-
tárias rememorações, lembranças das brincadeiras de infância, a des-
preocupação de adolescência, o espírito festivo da juventude. Nada de
embate entre os dois poetas, somente jogos de memória. Lua fria, cidade
sombria, solidão, aflitos, gritos, melancólicos louvores, saudade, dores,
recordação, são estas algumas das pistas que nos dão os poetas para o
percurso que vai tomando a peleja, na lida com o arsenal de memórias
desejadas e indesejadas que levamos conosco, à nossa revelia. O verbo
lembrar é conjugado em todas as estrofes, mesmo quando em elipse. E o
que é lembrado funciona como indício dos gostos de cada um – gosto no
cinema por Glauber Rocha, Jean-Luc Godard, Fellini; gosto na música
por samba, blues, Chico Buarque e Lenine, Chega de Saudade, Dispa-
rada, Arrastão; gosto por cantoria, pelos repentistas Lourival Batista
Patriota, o Louro do Pajeú, e Severino Lourenço da Silva Pinto, ou Pinto
do Monteiro.
261
Sem resposta Braulio não deixa o rival: “mas comigo a borracha vai
feder / cantador que me bata não nasceu; / pois Basílio não paga um
verso meu”. Com essa modalidade, os poetas referem importantes
escritores, poetas – clássicos da literatura universal e da literatura
brasileira – incluindo aí notáveis repentistas, cada um dos pelejadores
comparando-se, claro, aos referidos:
Astier Basílio
você diz que é poeta repentista
que já leu James Joyce, Homero e Rosa
quero é ver se comigo agora glosa
entretanto aconselho que desista
se eu topar com você te abaixo a crista
pois eu canto bem mais do que Orfeu
já fiz uma chibata de pneu
pra bater em você de todo jeito
você hoje me paga o que tem feito
com poetas mais fracos do que eu
(...)
Braulio Tavares
Já venci no improviso candidatos
Ao primeiro lugar que foram reles
Destruí João Furiba e Valdir Teles
Zé Cardoso, Ivanildo e os Nonatos
A Mocinha mandei lavar os pratos
Que ao perder para mim obedeceu
Eu não perco nem pro autor do “Eu”
Que escrevendo soneto eu sou perfeito
Você hoje me paga o que tem feito
com poetas mais fracos do que eu.
263
gate”; “fiz Tolstoi resumir seu ‘Guerra e Paz’”; “inverti quatro pontos
cardeais”; “quis Jesus no lugar de Barrabás”; “fiz camelo entender uma
miragem”; “fiz suíço atrasar o trem urbano / fiz baiano esquecer os ori-
xás”; “Bob Dylan certa noite se atrasou, / fiz o show sem que ninguém
percebesse”; “saneei o baú da Previdência...”. O arremate na pabulagem
é Astier Basílio: “tô ganhando de Braulio na peleja / o que é que me falta
fazer mais”.
Depois de cantar ciência, assunto divertido, desafio esbaforido,
Astier apresenta nova proposição: o oitavão rebatido. Olhar de Baude-
laire, olhar de mulher, olhar de Capitu – são os olhares que dão o tom
à narrativa, evocação de um passado enriquecido pelo brilhante olhar
de grandes repentistas, evocação da poesia que se desvenda pelo olhar
contemplativo do poeta, o que faz Astier Basílio proclamar: “nesta nossa
“empeleitada” / não há quem seja vencido”.
265
Cada estrofe é rebatida, uma a uma. À medida que Astier vai de-
senvolvendo os recursos poéticos e as idéias criativas para submissão do
parceiro de duelo, as contrapropostas tentam reverter o jogo. Assim, o
marco de Braulio Tavares tem carretilha arrodeando o muro do adver-
sário, que é derrubado com o auxílio de catapultas e radares. Os pilares
do inimigo viram nuvem de poeira. O oitão monumental decantado por
Astier vira passarela para a cabroeira de Braulio, a gigantesca trincheira é
desmontada a mão por dez mil guerreiros. Para transpor a cerca de sone-
tos, a inventividade de Braulio justifica a transcrição da estrofe:
267
* * * Glauco Mattoso: anti-heróicas pelejas * * *
(disponível em <http://glaucomattoso.sites.uol.com.br/
astierbasilio.htm>. Acesso em 25 set. 2011)
269
[44] GLAUCO [17 de março]
(disponível em <http://glaucomattoso.sites.uol.com.br/
astierbasilio.htm>. Acesso em 25 set. 2011)
GLAUCO
Já velho, no meu borralho
Nenhum Cinderelo pisa
Mas meu verso inda pesquisa
Buceta, cu e caralho!
Num piscar, no espaço espalho
(Pois que o “virtual” é moda):
“Sou ninfeta!” -- E a peta roda!
Assim gozo, sem que meta:
Verve, internet e punheta,
Três instrumentos de foda! [36]
271
Quando disputa com Moreira de Acopiara, Glauco Mattoso man-
tém a postura de cantador cego, masoquista e anti-herói, tentando, de
todas as maneiras, provocar o adversário. Iniciativa vã, pois Moreira se
mostra cordial, não alimenta o espírito belicoso, nem aceita destratar o
rival “xibungo”. No máximo, anuncia ao ceguinho fescenino: “e você
fique avisado / que ainda vou lhe apertar / em galope beira mar / e mar-
telo agalopado”. Glauco, em meio às cutucadas no cordelista cearense,
vangloria-se “de ser rigoroso na rima e no acento” e, ainda, de ser grande
em poesia: “ninguém folga pro meu lado / em matéria de poema”. Mat-
toso recusa amabilidades, que considera nada inspiradoras, reforçando as
veredas por onde prefere trilhar: “dos Bocages e dos Sades / meu verso o
motivo tira!” Estrofe a estrofe, Moreira desmobiliza a argumentação do
cego sofredor, que implora sadismo ao adversário e aos leitores. A peleja
de Glauco Mattoso com Moreira de Acopiara acontece entre 25 de se-
tembro e 23 de outubro de 2007. Obedecendo à regra da deixa, o texto
é composto de sessenta estrofes, em sextilha, septilha, décima, esta que
também é feita em martelo decassílabo e em galope hendecassílabo, no
qual Glauco, numa paródia à modalidade do martelo alagoano, propõe
a do “martelo paulistano”, sugerindo um dos assuntos preferidos, os pés,
compatibilizando-se, assim, com a podolatria que cultiva há décadas.
Com o judeu Danilo Cymrot, a peleja se espalha por temas
judaicos, bíblicos, nazistas, políticos. A conversa pela internet acon-
273
Nas pelejas enfrentadas por Glauco Mattoso é o inusitado da
peleja ao contrário ou anti-peleja que percorre todo o desenrolar das
batalhas mattosianas. Vigora a deliberada defesa do xibunguismo, em
contraposição ao cabramachismo que perpassa o universo dos emba-
tes nas poéticas tradicionais. A disputa, ou falsa disputa, proposta pelo
ceguinho masoquista podólatra homossexual desmonta a beligerância
das pelejas e exalta o anti-herói que deseja ser derrotado, que quer para
si o sofrimento, a bancarrota. Esta específica complexidade das pelejas
de Glauco não despreza as recorrências que fazem confluir os poetas
para um novo modo de desafio, em que a conectividade, a interatividade
fazem aglutinar num mesmo individuo os papéis de internauta, especta-
dor, leitor, escritor. Nova modalidade em que convivem, em múltiplos
suportes e ambientes, a voz viva, a voz mediatizada, a performance hic
et nunc, a performance mediatizada.
disponível em <http://glaucomattoso.sites.uol.com.br/astierbasilio.htm>
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Glauco Mattoso
PELEJA DE ASTIER BASÍLIO
COM GLAUCO MATTOSO
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O mote e a glosa desta ribeira
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putador doméstico na construção dos poemas, na construção de um marco,
no protagonismo da primeira peleja virtual de que se tem notícia. Todos
estes poetas constroem pelejas de cordel, praticando o ficcional modo de
desafiar o outro com versos belicosos. E, para os que têm acesso à internet,
são inúmeras as possibilidades de exercitar os duelos virtuais, os jogos de
mote e glosa, os modelos do tradicional ofício, não cabendo ao pesquisador
retirar a legitimidade de auto-representação do cordelista.
Para responder às perguntas formuladas no início da tese, estabeleci
como indispensável a descrição e análise da invenção poética de diversos
poetas, na internet e fora dela. Deste modo, tornou-se possível afirmar que o
conjunto aqui estudado se oferece como um grande texto oral em movente
processo de atualização de matrizes virtuais. Oferece-se, ainda, como gran-
de texto de comunicação, operando, sob múltiplos suportes e ambientes
midiáticos, a criação artística, a interlocução entre poetas, a confluência de
procedimentos poéticos recorrentes, tais como o marco, a ribeira, o trava-
-língua, o nonsense, a sátira, o duplo sentido, a poesia sobre poesia ou me-
talinguagem, características que são apresentadas por Augusto de Campos
(1978) como importantes componentes da poesia trovadoresca provençal,
a qual inspira a poética de cancioneiro e romanceiro galego-português, que,
por sua vez, nos fornece elementos passíveis de localizar, aí, a procedência
da tradicional poesia do Nordeste do Brasil.
Acionar o termo “pelejas em rede” significa apontar um conjunto
poético interligado por imaginários fios, liames que passam pelas cordas
do coração, que são apreendidos par coeur ou, seja, acionados da memória
longa, sempre prestes a trazer à tona matrizes virtuais, trazer para o hic et
nunc o frescor da fala improvisada que não permite rascunho, o frescor
do repente que virtualmente se refaz em mediações de discurso feito para
ser visto no papel, visto e ouvido no computador. São redes que, reconhe-
cidas como série cultural, dizem respeito a recorrências de específico fazer
poético. Redes que entrelaçam temáticas, modos de versificação, modos de
operar poeticamente, deixando vislumbrar os veios da tradição, ao mesmo
tempo em que exibem vivacidade própria, nuances dos diferentes modos
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Referências
DOCUMENTOS IMPRESSOS
FOLHETOS DE CORDEL
ARTE DE CADA PESSOA CONHECER A SUA SINA, SABENDO O DIA E MÊS EM QUE
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RELAÇÃO CURIOSA DA FUGIDA QUE FEZ HUMA VELHA PARA O DESERTO, COM
TEMOR DE SER SERRADA NA PRESENTE QUARESMA, PELO GRANDE, E JUSTO
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______. George Bush quer a guerra é inimigo da paz. [Recife, PE]: [s.n.], [200-?]. [5] p.
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______. Já que os gringos dão pra nós uma dedada mando eles a puta que os pariu. Recife, PE:
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______. Já queimei muito fumo e achei massa de uns tempos para cá não mais fumei. Recife, PE:
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______. Nem progresso nem grandeza. Recife, PE: [s.n.], 2001. [5] p.
SALES, Allan. Nem progresso nem grandeza. Recife, PE: [s.n.], 2002. [5] p.
______. Nem santo, nem herói. Recife, PE: Editosca Produções de Cordel, 2001. [5] p.
______. Nem santo, nem herói. Recife, PE: Universales Cordelaria, 2001. [4] p.
______. Nem santo, nem herói. Recife, PE: [s.n.], 1998. [5] p.
______. Nem um mosquito ele mata. Recife, PE: [s.n.], 2002. [5] p.
______. No Brasil tão católico e cristão muita gente bota fé em macumbeiro. Recife, PE: Editosca
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______. No formol não vai ficar. Recife, PE: [s.n.], 2002. [5] p.
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ca Produções de Cordel, 2003. 6 p.
______. O Recife conheceu outro destino pelas mãos de Maurício de Nassau. Recife, PE: Coquei-
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______. O corno e o prefeito. Recife, PE: Editosca Produções de Cordel, 2003. [5] p.
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______. O corno e o prefeito. Recife, PE: [s.n.], 2001. [5] p.
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______. O poder que possui a engenharia. Recife, PE: [s.n.], [200-?]. [5] p.
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DISCOGRAFIA
CANTORIA PÉ-DE-PAREDE 2011: Daniel Olímpio, Hipólito Moura. Gravado ao vivo em Gra-
vatá - PE.
MACIEL SALÚ E O TERNO DO TERREIRO: A pisada é assim. Recife: Estúdio Fábrica. Pro-
dução musical de Areia.
SIBA & BARACHINHA NO BAQUE SOLTO SOMENTE. Nazaré da Mata, julho de 2003.
SIBA E A FULORESTA: Toda vez que eu dou um passo o mundo sai do lugar. São Paulo, 2006.
MOCINHA DE PASSIRA & VALDIR TELES. Série Os grandes repentistas do Nordeste. v. 01.
O HOMEM DA MATA. Antonio Luiz Carrilho de Souza Leão. Pernambuco, 2004. 17 min.
UMA LONGA CAMINHADA... Raimundo Caetano & Ivanildo Vila Nova. 105 min.
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Tiplogias Sabon e Bernard
Papel Offset 90g/m²
Encadernação Nilo Firmino
Projeto Gráfico e diagramação Yvana Alencastro