FU-KIAU - Filosofia Banto - Por-Tiganá Santana PDF
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Resumo: Esta pesquisa tem o intuito de fazer emergir um contexto teórico em que se contrastam estudos paremio-
lógicos vigentes no Ocidente e outras chaves de pensamento, principalmente aquela que diz respeito ao pensar africano
bantu-kongo, conforme apresentado pelo autor congolês Bunseki Fu-Kiau em seu ensaio African Cosmology of the
bantu-kongo: principles of life and living, obra jamais traduzida para a língua-cultura (luso)brasileira. O principal
meio de contato entre os distintos modos de pensar envolvidos no presente artigo dá-se através da tradução, seguida
de comentários, do que cunhamos como sentenças em linguagem proverbial (kingana), registradas, originalmente,
de modo bilíngue (língua kikongo – língua inglesa) no ensaio aludido. Desta forma, trazemos a potenciais leitores
brasileiros uma tradução necessariamente vinculada aos referenciais de linguagem e pensamento ancorados na cultura
bantu-kongo, um dos vetores constitutivos da cultura brasileira.
Palavras-chave:Sentenças em linguagem proverbial; Tradução; Bunseki Fu-Kiau.
1 Nascido em Manianga, no interior da atual República Democrática do Congo, no ano de 1934, Bunseki
Fu-Kiau iniciou-se em três grandes escolas de pensamento tradicional bantu (Lèmba, Khimba e Kimpasi),
assim como, mais tarde, ingressou numa relevante carreira acadêmica (nas áreas da Antropologia Cultural,
Biblioteconomia e Educação), tendo, para tal, emigrado do seu país de origem em direção aos Estados
Unidos. Desse modo, também teve acesso significativo ao sistema ocidental de pensamento
2 Kingana pode designar algo próximo do que cunhamos aqui como sentença em linguagem proverbial
ou, ainda, filosofia em kikongo.
50 Tiganá Santana Neves Santos. A tradução de sentenças em linguagem proverbial e o diálogo com...
3 Utilizaremos a sigla SLP, dado o uso frequente da expressão “sentenças em linguagem proverbial”
no presente texto.
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Não é possível definir o que seja um E.P. da mesma forma como se procede
em relação a muitos objetos de outras naturezas, isto é, apenas por via de
uma sentença simples [...]
A natureza dos E.P. é multifacetária e complexa: não se presta a ser con-
ceituada por frases que pretendam abarcar, de uma só vez, e subsumir,
globalmente, todos os traços desses enunciados [...] Pode-se entretanto
considerar que haja basicamente dois modos de definir um E.P.: o que os
vê apenas como fórmulas autônomas, fora de qualquer contexto, e o que
5 O termo Mûntu, em língua kikongo, com variantes, tais como mutu e ntu, em outras línguas bantu, e,
mesmo na referida língua, vem a significar, sucintamente, “ser humano” ou “pessoa”. Esta expressão
requer bastante atenção e reflexão, devido a sua importância e complexidade.
54 Tiganá Santana Neves Santos. A tradução de sentenças em linguagem proverbial e o diálogo com...
6 Todas as traduções presentes neste artigo, a saber, as traduções referentes ao texto de Fu-Kiau (1994,
2001), são da nossa responsabilidade.
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dizer que a SLP não dispõe de uma estrutura fixada numa fórmula ou não deve,
necessariamente, ser sempre metafórica, como no caso dos provérbios, segundo
correntes dos estudos paremiológicos. A SLP sobressai-se em relação à linguagem
cotidiana – como o fazem os provérbios – e, de fato, é, usualmente, uma manifes-
tação de comunicação com significativo poder de síntese. Sua aplicação também
tem cunho filosófico, de aconselhamento ou ético, muitas vezes, como no caso
dos provérbios, , mas pode, além disso, ser utilizada, oficialmente, nas instâncias
jurídicas ou para explanações científicas. É preciso destacar certas especificidades
culturais e de pensamento que dizem respeito a outra cosmovisão que não aquela
a receber a leitura do texto traduzido em questão. Uma sentença em linguagem
proverbial não se restringe à ideia de provérbio, máxima, anexim, aforismo, princí-
pio, entre outros. Trata-se, com efeito, de determinada asserção, necessariamente,
manifesta/expressa, na maioria das vezes, dita, com força de evocação, conclusão,
iniciação, argumentação, etc., que versa sobre assuntos diversos e dispõe, via de
regra, de soberania e reconhecimento público na comunidade. Digamos que a
SLP marca-se por uma linguagem própria que desenha o mundo com os enleios
do seu modus operandi e o preenche com o seu pensar/figurar/comunicar igual-
mente próprio. Nesse sentido, é válida a sua comparação ao poema, conforme
fizeram alguns estudiosos da paremiologia entre provérbios e versos. Devemos
ponderar que o uso do vocábulo “linguagem”, na acepção das SLP, não implica a
sua manifestação neurológico-cognitiva, mas a codificação de tudo o quanto seja
alcançado pela razão, sensação ou qualquer vivência humana, seja ela tangível
ou intangível. O escritor e pesquisador António Fonseca (2008), para apresentar
SLP tradicionais de Angola, as quais listou, tematicamente, em seu “Contos de
Antologia”– tal qual Fu-Kiau (2001) – escreveu:
explicativos em outras SLP ao longo do seu ensaio. Um exemplo ainda mais claro
do que afirmamos aqui pode-se encontrar na SLP Nzâmbi mu kânda (kena) – God
(exists) in the community. Se a traduzirmos, com alguma literalidade (caso concedamos,
teoricamente, que seja possível), da língua inglesa, poderíamos ter “Deus (existe)
na comunidade”. Entretanto, se considerarmos, na língua kikongo, a supressão
(conforme os parênteses parecem sugerir) bastante usual de alguns verbos como
no caso do verbo ser/estar (kala) com sentido de existir – cuja flexão para o que
conhecemos como terceira pessoa do singular dá-nos a forma kena – teríamos
Nzâmbi mu kânda = “Deus na comunidade” ou “Deus dentro da comunidade”, o
que, quiçá, pudesse trazer uma codificação semântica e um caminho sintático que
os “não-especialistas” de outras culturas não estariam aptos a decifrar; e esse não
parece ser o objetivo do autor ao escrever e publicar a obra a que nos reportamos
na presente pesquisa.
Se regressarmos à SLP 1, verificaremos, na sua tradução para a língua
inglesa, a incorporação já naturalizada dos termos mbûndani a. Temos, então, The
community is the union of the ancestors and of the living people, donde mbûndani a teria a
sua correspondência em the union of . Ao traduzirmos o que nos mostra Fu-Kiau
(2001), em língua inglesa, podemos ter “A comunidade é a união dos ancestrais
e das pessoas vivas”, ou ainda, variavelmente, “A comunidade é a união entre os
ancestrais e as pessoas vivas”. Seguimos um caminho tradutório que visasse a nos
aproximar, segundo a nossa compreensão, do que pudemos absorver das SLP em
seu universo linguístico-cultural originário. Cremos ser esse um caminho que dá
mais sentido ao nosso trabalho do que se nos ocuparmos de uma tradução mais
ligada às bases de pensamento e léxico provenientes da língua inglesa. Alicerçados
nessa escolha tradutória, sugerimos, para a SLP 1, uma tradução que contatasse a
concisão e a força de síntese presentes em sua exibição na língua-cultura de origem,
uma vez considerados aspectos pensados e redimensionados acima. Eis, deste
modo, o que propomos: “A comunidade são os mortos e os vivos”, relacionando
tal tradução, diretamente, a Kânda i bafwa ye bamôyo. No que se refere à substituição
do termo “ancestrais” por “mortos”, fizemo-lo por entendermos, mais uma vez,
como explicativa a utilização do vocábulo – ancestors – pelo autor. Bakulu é um dos
termos mais adequados para “ancestrais” ou, especificamente, aqueles espíritos
das pessoas que, como enfatiza Fu-Kiau (2001), “fizeram história”. Bafwa – termo
em sua forma plural – designa “mortos” em geral. Contudo, entre os bantu-kongo
e muitas civilizações africanas, nem todos os mortos têm a mesma jornada. A
língua kikongo é bastante cautelosa com tais especificações, por isso ressaltamos
essa distinção. Por essa razão, também, somos levados a interpretar o emprego
do termo pelo autor como, implicitamente, explicativo.
60 Tiganá Santana Neves Santos. A tradução de sentenças em linguagem proverbial e o diálogo com...
Para traduzir, para a língua inglesa, a SLP 2, percebemos que Fu-Kiau (2001)
utilizou-se de mais complementações explicativas na referida língua de chegada.
Ao apresentar a sua resolução tradutória da SLP 2, o autor traz o termo kolo em
dupla significação, a saber, code (código) e knot (nó). Acrescentaríamos, ainda, o
tempo, como um terceiro significado para a palavra kolo, associado, a partir do
verbo-raiz kola, a “um estado de ser, um nível de força num dado período de tem-
po.” (FU-KIAU, 1994, p. 21). Com base no que foi afirmado, o fato é que a ideia
e imagem de nó, enquanto um código que se pode decifrar, num dado período de
tempo, por um especialista, isto é, um ngânga, despertou-nos a atenção, por assim
dizer, estética para a manifestação de um pensamento sobre algo. Mais uma vez,
procuramos ser, segundo o nosso entendimento, sintéticos no resultado tradutório.
Apresentamos, diferentemente da tradução do autor, ao menos, duas possibilidades
de tradução que nos pareceram adequadas, tendo em vista que Fu-Kiau (2001),
para esse caso, registrou duas variantes, na língua kikongo, da mesma SLP. O “bi-
nômio” kânga - kutula (atar/codificar – desatar/decodificar), presente em todas
as variantes da SLP 2, motivou-nos a traduzi-la como segue: “Nó de especialista,
especialista desata”; variante = “Nó atado e desatado por especialista”. A fim
de destacarmos, mais uma vez, certa “força” estética e de pensamento (também
caracterizada pela configuração concisa), não seguimos os passos explicativos do
autor, no que se relaciona a esclarecer a que sorte de especialista a mencionada
sentença se reporta. Na sua tradução, Fu-Kiau (2001) nos diz: A code (knot) from
a specialist should be decoded by a specialist (of the system = kimpa, fu) – Um código (nó)
de um especialista deve ser decodificado por um especialista (do sistema = kimpa,
fu). Quiçá o fato de a palavra mwisikânda – a qual designa o conjunto humano dos
membros de uma comunidade ou sistema – estar presente nas duas variantes da
SLP 2 oriente-nos quanto a compreendermos um pouco melhor a ideia de espe-
cialista “de um sistema”; ideia que nos soa cara à tradução do autor.
A SLP 3 se refere a um antigo princípio fincado culturalmente entre os
bantu-kongo – especificamente, entre os bakongo7. Todos os membros da comu-
nidade devem ser especialistas (ngânga). Por essa razão, temos o verbo kughânga,
com o sentido de fazer, realizar ou especializar-se na realização de algo. Os verbos
7 Em Fu-Kiau, bakongo pode dizer respeito ao povo (trata-se de um dos grupos bantu do continente
africano; grupo do qual o autor é originário) e, por se tratar de um dos mais difundidos e vastos grupos
entre os bantu, representa, por vezes, a síntese dos vários segmentos do pensamento e do “comportamento”
bantu como um todo, como também pode designar a forma plural de n’kongo ou mukongo (diferentemente
de muntu [pessoa], n’kongo ou mukongo é o ser humano, estritamente, segundo o modelo ético-cosmólogico
bakongo).
Cadernos de Literatura em Tradução, n. 16, p. 49-62 61
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