Resenha: Maricato, Erminia. O Impasse Da Política: Urbana No Brasil. Petrópolis: Vozes, 2011

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Revista Espinhaço, 2015, 4 (1): 46-48.

Resenha: Maricato, Erminia. O impasse da política


urbana no Brasil. Petrópolis: Vozes, 2011
Pacelli Henrique Martins Teodoro1*

¹ Licenciado, Bacharel e Doutor em Geografia pela Universidade Estadual Paulista (UNESP). Professor Adjunto da Universidade
Federal dos Vales do Jequitinhonha e Mucuri (UFVJM).

A luta pelo direito à cidade volta às ruas: o que Produzidos em contextos específicos e com finalidades
está em disputa é a própria cidade, seus distintas, os cinco textos que compõem o presente livro
equipamentos sociais, suas oportunidades de convergem, conforme a autora, para o fim de um ciclo, isto
emprego, de lazer, de mobilidade. Mas essa é, o fim do período denominado genericamente de Reforma
disputa se refere também à aplicação do fundo Urbana (da ditadura militar ao MCidades), e, também,
público, que ao invés de se dirigir à reprodução tratam do futuro das cidades, diante dos impasses contidos
da força de trabalho, se dirige à reprodução do na política urbana brasileira. Na ordem apresentada, “O
capital. O que se estabelece é a oposição entre impasse da política urbana” é um relato particular de
valor de troca e valor de uso no espaço urbano; experiências aberto a todas/os as/os interessadas/os no atual
entre renda imobiliária e condições de vida. A quadro político nacional; “Nunca fomos tão participativos –
crise urbana está no centro do conflito social no reflexões sobre os movimentos sociais urbanos” constitui-se
Brasil, só não a enxerga aquele que não quer ver. em um alerta direcionado a militantes dos movimentos
(MARICATO, 2014, p. 26). sociais urbanos; parte de uma pesquisa fomentada pelo
Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e
Antecedente às cidades rebeldes, por conta de Tecnológico (CNPq), “Formação e impasse do pensamento
manifestações em massa que tomaram conta das ruas crítico sobre a cidade periférica” é mais voltado ao público
brasileiras, em junho de 2013, o livro “O impasse da acadêmico, com uma bibliografia notória; já “O automóvel
política urbana no Brasil” (1. ed. Petrópolis: Vozes, 2011), e a cidade” e “A terra é o nó” abordam temas amplos (e
de Maricato (2014), traz uma diversidade de conteúdos emblemáticos) e, portanto, são indicados para um grupo
urbanos frente a recentes mudanças conjunturais e diverso de leitoras e leitores.
estruturais do capitalismo, o que possibilita entender as O primeiro capítulo descreve a luta de arquitetas/os e
estreitas relações entre a política nacional e as revoltas urbanistas contra o Estado para sua luta dentro do Estado,
organizadas. E a vivência profissional, acadêmica e ou seja, a atuação de forças progressistas a partir do Golpe
militante de Ermínia Terezinha Menon Maricato são mais Militar (1964) até a criação do MCidades (2002) e, em meio
que recomendadas para este propósito, a saber, Graduada, a isto, a dominação neoliberal e o governo de Luiza
Mestra, Doutora e Livre-Docente em Arquitetura e Erundina de Sousa, na Prefeitura de São Paulo. Em
Urbanismo pela Faculdade de Arquitetura e Urbanismo - continuidade, Maricato comenta a reorganização do
Universidade de São Paulo (FAUUSP), Professora Titular capitalismo brasileiro e, para tanto, caracteriza as medidas
da FAUUSP e autora de importantes Obras1, Secretária de governamentais do ex-presidente Fernando Henrique
Habitação e Desenvolvimento Urbano do Município de São Cardoso (1995-2002) e Lula (2003-2010), as quais se
Paulo (1989-1992) e membro da equipe de transição distinguem e, ao mesmo tempo, se assemelham entre si 2.
governamental do ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva No entanto, a metamorfose positiva da imagem
(2002), com participação na formulação da proposta de internacional do país e os avanços das políticas sociais não
criação do Ministério das Cidades (MCidades) e, acompanharam a política urbana, presa e sacrificada pela
posteriormente, permanência como Secretária Executiva do intocabilidade do “poder do atraso”. Diante do difícil
então Ministro Olívio de Oliveira Dutra, encarregada da quadro instaurado nos primeiros anos de exercício do
coordenação técnica da Política Nacional de
Desenvolvimento Urbano (2003-2005).
2
Por seu caráter distributivo, as ações e os programas do governo de
Lula são realçados no texto, como os reajustes do salário mínimo; o
Bolsa Família; a redução da pobreza, pelos rendimentos do trabalho,
pelo aumento do emprego, por ganhos da previdência e pela política
* [email protected] assistencial; o Programa Universidade para Todos (ProUni); o
1
“A cidade do pensamento único: desmanchando consensos” (com Programa Nacional de Fortalecimento da Agricultura Familiar
Otília Arantes e Carlos Vainer. Petrópolis: Vozes, 2000), “Brasil, (Pronaf); o Programa de Aquisição de Alimentos (PAA) e a Lei da
cidades: alternativas para a crise urbana” (Petrópolis: Vozes, 2001), Alimentação Escolar (Lei Federal 11.947, de 16 de junho de 2009); o
“Para entender a crise urbana” (São Paulo: Expressão Popular, 2015), Luz para Todos; e o crescimento econômico, particularmente pela
entre outras. ampliação do trabalho formal e consumo doméstico.
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MCidades (acordos partidários, competências legais, a periferia no centro (não isolada), seja em planos, projetos
governabilidade etc.), a habitação é ressaltada a partir dos ou ações.
projetos de urbanização de favelas e novas moradias, pelo O quarto capítulo reúne alguns bons motivos que levaram
Programa Minha Casa Minha Vida (PMCMV), como um a priorização do transporte motorizado e individual na
dos investimentos do Programa de Aceleração do cidade moderna, mesmo com reconhecidas críticas
Crescimento (PAC). Gráficos e dados estatísticos mostram (segregação e fragmentação, degradações e poluições): o
que o PMCMV aqueceu quantitativamente o mercado forte movimento econômico e, destarte, significativo poder
habitacional, mas sem atentar qualitativamente à condição político da indústria automobilística, representada pela
urbana. Assim, as cidades pioraram de modo geral, apesar produção (desde a exploração de minérios à fabricação de
de novas leis, órgãos públicos, espaços de participação, e, autopeças) e manutenção (prestação de serviços mecânicos)
por isto, “a esperança não está no avanço institucional dos de veículos, pelas obras de infraestruturas (circulação) e,
programas públicos [...].”, mas sim, “[...] na emergência de principalmente, pela estratégia energética (exploração,
novos movimentos de jovens moradores das periferias refinamento e comercialização do petróleo). “É de Karl
urbanas, notadamente ligados à cultura e à arte.” (p. 92). Marx a demonstração da tese de que não é o consumo que
No segundo capítulo, a autora questiona a capacidade de determina a produção, mas o inverso, a produção é que
reais transformações pelo “participativismo” hegemônico e determina o consumo no modo de produção capitalista.” (p.
institucionalizado que se alastrou entre os movimentos 176) e, pela influência publicitária, bem como pelas
sociais contemporâneos, a partir de suas agendas relações assimétricas de dependência entre nações, a
especializadas e pautas fragmentadas, as quais se referem às periferia do capitalismo mimetizou o modo de vida de
partes (ao invés do todo), com horizonte restrito, sem tratar países centrais e adotou o automóvel como necessidade
do presente ou futuro do capitalismo. Por exemplo, lutam-se primária, até mesmo mais necessário do que a moradia
pela regulamentação e implementação dos instrumentos de digna e o saneamento básico, e, por isto, pode-se
planejamento, mas não contestam as relações de poder e problematizar as ditas cidades concebidas para o automóvel.
quem decide, na prática, sobre os fins de planejamento e Como desfecho, o quinto capítulo representa, nos
gestão da cidade – as verdadeiras responsáveis por leis que próprios termos da autora, um grito de indignação: a
“pegam” e outras que não “pegam” (SOUZA, 2002). Por propriedade da terra continua a ser o nó rural ou urbano
isto, o Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra brasileiro. Com um sistema de registro de terras impreciso,
(MST) é ilustrado como um modelo que prioriza fortemente em qual cercas se movem para ampliar ou superpor
a formação política e educação, por meio de processos propriedades, o país atende cerca de um terço da população
pedagógicos referentes à identidade e compreensão pelo mercado residencial legal. E a ilegalidade restante da
científico-ideológica do mundo3. E, para formar sujeitos propriedade da terra urbana é atribuída tanto a pobres e suas
críticos, a proposta é reconhecer as conquistas sociais, por ocupações e comunidades, quanto a ricos e seus
mais institucionais e “juridicistas” que sejam, como o loteamentos fechados, todavia, o judiciário, a polícia e
MCidades e Estatuto da Cidade (Lei Federal n. 10.257, de grande parte da mídia concatenam este cenário, mais regra
10 de julho de 2001), entender as razões que impedem a que exceção, aos primeiros agentes sociais e, em
aplicação dos marcos legais conquistados e, assim, enfrentar consequência, corroboram com a criminalização da pobreza.
as forças resistentes. Por propor um novo quadro jurídico e institucional, a
No artigo intitulado “Globalização e política urbana na reforma fundiária representa o coração da agenda da
periferia do capitalismo”, Maricato (2009) faz um paralelo reforma urbana e, por conseguinte, a solução para este
entre a sociedade global/flexível, junto à cidade vendida antigo impasse, mas caiu no esquecimento. Em vista disto,
como mercadoria, planejada e gerida como empresa e Maricato (2009) sempre a reforça entre o que fazer diante
legitimada pelo patriotismo (VAINER, 2002), e seus das limitações externas e internas, ao lado de a) dar
impactos nos países periféricos, ainda com o legado do visibilidade à cidade real ou desconstruir a cidade virtual; b)
patrimonialismo (relação de favor ou troca, esfera pública criar um espaço de debate democrático, para dar visibilidade
como privada e pessoal, correspondência entre detenção de a conflitos; c) fazer uma reforma administrativa; e d)
patrimônio e poder político-econômico) e a conservação de capacitar agentes para o planejamento da ação.
clientelismo e corrupção. E o terceiro capítulo versa Popularmente denominado de jornadas de junho, aquele
justamente como se desenvolveu uma nova leitura sobre acontecimento político e histórico, citado no começo,
esta cidade periférica resultante, estrategicamente focada na iniciou-se na capital paulistana em meio a protestos pelo
moradia precária. Durante as últimas décadas, o pensamento aumento da tarifa do transporte coletivo, mas pluralizou-se
crítico foi teórico e empiricamente formulado na produção tanto em reivindicações, quanto em atores. “Não são só 20
acadêmica, nas práticas dos movimentos sociais e nas centavos!” entoou em muitos espaços do Brasil e, em “É a
gestões municipais inovadoras, de maneira conjunta. Porém, questão urbana, estúpido!”, Maricato (2013) associa,
entre percalços por subordinação cultural e acadêmica lucidamente, a abrangente questão urbana aos manifestos,
externa, é preciso retomar esses três níveis na formação do pela lógica entre a legislação, os serviços públicos
próprio pensamento sobre as cidades desiguais, sempre com (terceirizados ou não), as obras de infraestrutura e o
financiamento privado de campanhas eleitorais, desde já
3 com o seguinte esclarecimento: melhorias nas condições de
Datado em seu tempo, o texto talvez mencionaria, também, o
Movimento dos Trabalhadores Sem-Teto (MTST), especialmente
vida não são exclusividades de melhores salários ou melhor
devido ao destaque nacional de suas últimas estratégias e ações, a distribuição de renda, mas dependem, também, da ampla
formação pedagógica crítica em suas lutas pelo poder popular e, logo, a acessibilidade às políticas públicas. E, em conformidade,
abrangência de sua agenda política.
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tais manifestações demonstraram, na prática, que nem tudo
pode ser resolvido pela esfera econômica sem contar com a [4] MARICATO, E. Globalização e política urbana na
política, afinal, o aumento do poder de compra e a periferia do capitalismo. VeraCidade, v. 8, p. 89-105,
tímida/importante distribuição de renda, assistidos na última 2009.
década, não induziram automaticamente a conquista de
direitos ativos, por parte da sociedade civil, de construir o [5] MARICATO, E. É a questão urbana, estúpido! In:
MARICATO, E. et al. Cidades rebeldes: passe livre e
próprio espaço, para afastar de sua dominação e caminhar
as manifestações que tomaram as ruas do Brasil. São
para a apropriação da vida social – da cidade-produto à Paulo: Boitempo; Carta Maior, 2013, p. 19-26.
cidade-obra (LEFEBVRE, 2010).
Por fim, qual(is) é(são) “o(s) impasse(s) da política [6] MARICATO, E. O impasse da política urbana no
urbana no Brasil”? Entre 9 e 12 de junho de 2015, a Brasil. 3. ed. Petrópolis: Vozes, 2014. 214 p.
Boitempo Editorial e o Serviço Social do Comércio (Sesc) -
Administração Regional no Estado de São Paulo realizaram [7] SOUZA, M. L. de. Mudar a cidade: uma introdução
o Seminário Internacional Cidades Rebeldes e, como uma crítica ao planejamento e à gestão urbanos. Rio de
promoção, formularam e incentivaram respostas à questão Janeiro: Bertrand Brasil, 2002. 560 p.
“qual é o seu ideal de cidade?”, tanto no evento, quanto nas
redes sociais. Como convidada-debatedora, Erminia [8] VAINER, C. B. Pátria, empresa e mercadoria. Notas
Maricato respondeu-a e resumiu seu atual posicionamento: sobre a estratégia discursiva do planejamento
“o financiamento empresarial de campanha eleitoral define, estratégico urbano. In: ARANTES, O.; VAINER, C.
B.; MARICATO, E. A cidade do pensamento único:
em grande parte, a política urbana. Neste momento, no
desmanchando consensos. 3. ed. Petrópolis: Vozes,
Brasil, a cidade que queremos tem executivos e legislativo
2002, p. 75-103.
eleitos sem o financiamento empresarial4.”. Maricato nos
lembrou a ponta do nocivo iceberg da política urbana
(dinheiro privado, “sujo” e não declarado na campanha
eleitoral), o qual será completamente sublimado por uma
reforma política, ativamente participativa e plenamente
transparente. E, quiçá, o impasse substancial seja conceber
uma cidade não idealizada por ninguém, mas sim, perceber,
conceber, vivenciar (LEFEBVRE, 1991) um espaço a partir
da realidade coletiva apropriada democraticamente5 – afinal,
“essa verdadeira terra de ninguém não foi criada por falta de
planos e nem de leis.” (p. 186).

REFERÊNCIAS6
[1] HARVEY, D. Entrevista. Revista aU, ed. 251, fev.
2015. Disponível em:
<http://au.pini.com.br/arquitetura-urbanismo/251/artigo
338475-1.aspx>. Acesso em: 15 jul. 2015.

[2] LEFEBVRE, H. The production of space. Malden:


Blackwell Publishing, 1991. 454 p.

[3] LEFEBVRE, H. O direito à cidade. 5. ed. São Paulo:


Centauro, 2010. 144 p.

4
Disponível em: <http://cidadesrebeldes.com.br/2015/06/17/que-
cidade-queremos/>. Acesso em: 13 jul. 2015.
5
Como disse Harvey (2015), uma cidade onde as pessoas tenham suas
vidas nas próprias mãos e generalizam práticas gratuitas de
solidariedade entre si.
6
Recomenda-se uma série dirigida por Jorge Mansur (produção:
Multipress), com a participação de intelectuais de renomes nacionais,
inclusive a de Erminia Maricato, que objetiva analisar o espaço urbano
brasileiro, via temas que estão no cerne da política urbana
contemporânea. Títulos em ordem temporal de publicação, inicialmente
no dia 1 de junho de 2015, pelo Canal Futura: “O crescimento das
cidades e a periferização”, “Como participar da construção da cidade”,
“Como conhecer melhor as cidades”, “Quanto custa viver na cidade?”,
“Desafios da cidade”, “Como promover moradia popular nas cidades”,
“Como planejar o crescimento das cidades” e “Desafios para governar
metrópoles e cidades”.
Disponível em: <https://www.youtube.com/user/canalfutura/videos>.
Acesso em: 19 jul. 2015.
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