Uma Ideia Toda Azul
Uma Ideia Toda Azul
Uma Ideia Toda Azul
TOD
TODA AZUL
Marina
Marina Col
Colasan
asanti
ti
2.a Edição
O LI
LIVR
VRO
O
Este é um livro de contos de fadas, com cisnes, unicórnios, princesas. E antes que
alguém se espante com a temática, num mundo de avançada tecnologia espacial,
acho importante esclarecer que meu interesse e minha busca se voltam para aquela
coisa
coisa int
intemp
empor
oral
al cha
chamad
madaa inc
inconsc
onscien
iente.
te.
Não há, para as emoções, idade ou história. Nem eu, ao tentar escrevê-las, quis me
dirigir a pessoas deste ou daquele tamanho. Preocupei-me apenas em erguer estas
construções simbólicas, certo de que o material com que lidava era imemorial, e
encont
enc ontra
raria
ria em out
outros
ros res
resson
sonânc
ância.
ia.
Teria sido talvez mais conveniente e fácil elaborar narrativas capazes de seduzir por
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muitos acusadas de alienadas e alienantes, por demais afastadas do século XX. Mas
sei também que as abóboras nunca viraram carruagens, nem mesmo no tempo em
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mpos.os.
MARINA COLAS
COLASANTI
ANTI
UMA IDÉIA TODA AZUL Índice
Prêmios
O último rei / 4
Grande Prêmio da Crítica / 1979
Literatura Infantil da Associação Além do bastidor / 7
Paulista de Críticos de Artes
Por duas asas de veludo / 10
"O Melhor para o Jovem" / 1979
da Fundação Nacional do Um espinho de marfim / 13
Livro Infantil e Juvenil
Uma idéia toda azul / 17
As notícias e o mel / 33
O
último
rei
Todos os dias Kublai-Khan,
último rei da dinastia Mogul, subia no
alto da muralha da sua fortaleza para
encontrar-se com o vento.
O vento vinha de longe e tinha o
mundo todo para contar.
Kublai-Khan nunca tinha saído Lua e a empinou contra o vento. Do
da sua fortaleza, não conhecia o alto, espelho do frio, a Lua trouxe a
mundo. Ouvia as palavras do vento e neve para Kublai-Khan. E um sono
aprendia. tranqüilo.
- A Terra é redonda e fácil, disse Todos os dias o vento contava
o vento. Ando sempre em frente, e seus caminhos no alto da muralha.
passo pelo lugar de onde saí. Dei Todos os dias os longos cabelos
tantas voltas na Terra, que ela está do rei deitavam-se no vento e
enovelada no meu sopro. recolhiam seus sons, como uma
Kublai-Khan achou bonito ir e harpa.
voltar sem nunca se perder. O vento contou o deserto.
Um dia o vento chegou mais frio, - O deserto, disse com língua
vindo das montanhas. quente, é lento como o trigal. E como o
- Fui pentear a neve, gelou o trigal me obedece. Ele também se
vento ao pé do ouvido do rei. A neve é curva debaixo da minha mão. Mas
pesada e macia. Debaixo do seu seus grãos não são doces como os do
silêncio as sementes se aprontam trigo. São de areia. E com areia não se
para a primavera. Só flores brancas faz o pão. As gotas do deserto
furam a neve. Só passos brancos chamam-se tâmaras.
marcam a neve. Na neve mora o Rei do Kublai-Khan quis suar com a
Sono. doçura das tâmaras. Então prendeu
Kublai-Khan teve desejo de fios de ouro nos raios do Sol e os
neve. Então prendeu fios de prata na empinou contra o vento. Do alto, o
calor derramou-se no reino de Kublai- abandonando com os pés o alto da
Khan amadurecendo os frutos. E o rei muralha de sua fortaleza, deixou-se
bebeu o suco nas mãos em concha. levar pela corda branca, último rei
No alto da muralha gasta de Mogul, longe no céu, lá onde ele se
sempre receber o vento, o mundo tinge de mar.
punha-se aos pés do rei.
E no tempo chegou o dia em que
o vento beijou de sal a boca de Kublai-
Khan trazendo-lhe o mar.
- O mar é maior que o deserto e
mais profundo que a neve, cantou o
vento. O mar é verde como os campos,
m a s s e u c a p i m c re s ce n a s
profundezas e ninguém vê o gado que
nele pasta. O mar chama os homens e
canta. Sua voz tem nome de sereia.
Ouviu Kublai-Khan o chamado
da sereia na voz do vento?
Ninguém sabe.
Dizem os pastores da planicie
que o viram prender cordas de linho
nas pontas da grande pipa de seda.
Depois ergueu a pipa contra o vento e,
Começou com linha verde. Não
Além sabia o que bordar, mas tinha certeza
do do verde, verde brilhante.
Capim. Foi isso que apareceu
bastidor depois dos primeiros pontos. Um
capim alto, com as pontas dobradas
como se olhasse para alguma coisa.
Olha para as flores, pensou ela,
e escolheu uma meada vermelha.
Assim, aos poucos, sem risco,
um jardim foi aparecendo no bastidor.
Obedecia às suas mãos, obedecia ao
seu próprio jeito, e surgia como se no
orvalho da noite se fizesse a brotação.
Toda manhã a menina corria
para o bastidor, olhava, sorria, e
acrescentava mais um pássaro, uma
abelha, um grilo escondido atrás de
uma haste.
O sol brilhava no bordado da
menina.
E era tão lindo o jardim que ela
começou a gostar dele mais do que
qualquer outra coisa. caminho, todo dia a menina descia
Foi no dia da árvore. A árvore para o bordado. Escolhia primeiro
estava pronta, parecia não faltar aquilo que gostaria de ver, uma
nada. Mas a menina sabia que tinha borboleta, um louva-a-deus. Bordava
chegado a hora de acrescentar os com cuidado, depois descia pela linha
frutos. Bordou uma fruta roxa, para as costas do inseto, e voava com
brilhante, como ela mesma nunca ele, e pousava nas flores, e ria e
tinha visto. E outra, até a árvore ficar brincava e deitava na grama.
carregada, até a árvore ficar rica, e O bordado já estava quase
sua boca se encher do desejo daquela pronto. Pouco pano se via entre os fios
fruta nunca provada. coloridos. Breve, estaria terminado.
A menina não soube como Faltava uma garça, pensou ela.
aconteceu. Quando viu, já estava a E escolheu uma meada branca
cavalo do galho mais alto da árvore, matizada de rosa. Teceu seus pontos
catando as frutas e limpando o caldo com cuidado, sabendo, enquanto
que lhe escorria da boca. lançava a agulha, como seriam macias
Na certa tinha sido pela linha, as penas e doce o bico. Depois desceu
pensou na hora de voltar para casa. ao encontro da nova amiga.
Olhou, a última fruta ainda não estava Foi assim, de pé ao lado da
pronta, tocou no ponto que acabava garça, acariciando-lhe o pescoço, que
em fio. E lá estava ela, de volta na sua a irmã mais velha a viu ao debruçar-se
casa. sobre o bastidor. Era só o que não
Agora que já tinha aprendido o estava bordado. E o risco era tão
bonito, que a irmã pegou a agulha, a
cesta de linhas, e começou a bordar.
Bordou os cabelos, e o vento
não mexeu mais neles. Bordou a saia,
e as pregas se fixaram. Bordou as
mãos, para sempre paradas no
pescoço da garça. Quis bordar os pés
mas estavam escondidos pela grama.
Quis bordar o rosto mas estava
escondido pela sombra. Então bordou
a fita dos cabelos, arrematou o ponto,
e com muito cuidado cortou a linha.
A princesa pegou a rede, o
vidro, a caixinha dos alfinetes, e saiu
pa ra c aç ar. S em pr e at rá s de
borboletas, não se contentava com as
Por que já tinha, caixas e caixas de vidro
duas asas em todos os aposentos do palácio.
Queria outras. Queria mais. Queria
de veludo todas.
Nem adiantava procurar nos esperassem escondidas nas beiras do
jardins. Depois de tanta caça, de tanto escuro.
alfinete nas costas, as borboletas Era quase noite quando a viu,
sabiam que aquele não era lugar para imensa borboleta negra voando lenta
elas e até mesmo as lagartas no azul que se apagava. Correu
arrastavam para longe suas curvas querendo acompanhá-la. Tropeçou
preguiçosas em busca de um canto numa pedra, perdeu-se entre os
mais seguro para virarem borboletas. arbustos. O céu limpo, onde estava a
Talvez nos campos, quando a colheita borboleta? Pensou tê-la visto numa
estivesse madura. Mas era outono. direção. Foi para lá. Mas tudo quieto,
Talvez no bosque. só a água se encrespava na superfície
Para o bosque foi a princesa. do lago.
Durante toda a manhã procurou. Viu À noite, no palácio, só falou
duas asas coloridas mexendo entre as dela. Queria a borboleta. Se a tivesse,
folhas, lançou a rede, recolheu apenas prometeu, deixaria de caçar. Escolheu
a flor que o vento agitava. Pensou ter no quarto o melhor lugar: acima da
achado uma borboleta escura pousada cabeceira, de asas abertas sobre a
num tronco, era folha levada por cama.
formiga. Depois mais nada. Pássaros, Sonhou com a borboleta.
abelhas, salamandras passeavam Viajava deitada nas suas costas e as
tranqüilos, remexiam-se ao sol. Mas asas de veludo a afagavam no bater do
b or bo le ta n en hu ma . C om o s e vôo.
a vi s a da s d e s u a p r e s e n ç a , Ao amanhecer armou-se de
arco e flecha e saiu para o bosque. cisnes negros deslizam lado a lado.
Esperou deitada, imóvel no mesmo Brilha esquecido o arco de ouro.
lugar da véspera. A manhã passou. A
tarde passou. A noite soprou seu
vento. E no vento da noite veio a
borboleta preta.
Desta vez não a perderia. Sem
tirá-la do olhar, sem errar o passo, a
princesa avançou entre as árvores,
chegou à beira do lago. E a viu descer
abrindo as grandes asas num último
esforço para pousar sem mergulho,
não borboleta, mas cisne, nobre cisne
negro.
Estremece a água do lago. A
princesa arma o arco, retesa a corda,
crava a seta de ouro no peito do cisne.
Mas é do peito dela que o
sangue espirra. E filete, e jorro,
banhando a roupa, desfazendo a seda
por onde passa, transforma seu corpo
em penas, negras penas de veludo.
O dia adormece. No lago dois
Um
espinho
de marfim
Amanhecia o sol e lá estava o fogueiras ouvindo no escuro o relincho
unicórnio pastando no jardim da cristalino do unicórnio.
princesa. Por entre flores olhava a Um dia, mais nada. Nenhuma
janela do quarto onde ela vinha pegada, nenhum sinal de sua
cumprimentar o dia. Depois esperava presença. E silêncio nas noites.
vê-la no balcão, e quando o pezinho Desapontado, o rei ordenou a
pequeno pisava no primeiro degrau da volta ao castelo.
escadaria descendo ao jardim, fugia o E logo ao chegar foi ao quarto da
unicórnio para o escuro da floresta. filha contar o acontecido. A princesa,
Um dia, indo o rei de manhã penalizada com a derrota do pai,
cedo visitar a filha em seus aposentos, prometeu que dentro de três luas lhe
viu o unicórnio na moita de lírios. daria o unicórnio de presente.
Quero esse animal para mim. E Durante três noites trançou com
imediatamente ordenou a caçada. os fios de seus cabelos uma rede de
Durante dias o rei e seus ouro. De manhã vigiava a moita de
cavaleiros caçaram o unicórnio nas lírios do jardim. E no nascer do quarto
florestas e nas campinas. Galopavam dia, quando o sol encheu com a
os cavalos, corriam os cães, e, quando primeira luz os cálices brancos, ela
estavam todos certos de tê-lo lanç ou a rede aprisionando o
encurralado, perdiam sua pista, unicórnio.
confundiam-se no rastro. Preso nas malhas de ouro,
Durante noites o rei e seus olhava o unicórnio aquela que mais
cavaleiros acamparam ao redor das amava, agora sua dona, e que dele
nada sabia. As três luas porém já se
A princesa aproximou-se. Que esgotavam. Na noite antes da data
animal era aquele de olhos tão mansos marcada o rei foi ao quarto da filha
retido pela artimanha de suas lembrar-lhe a promessa. Desconfiado,
tranças? Veludo de pêlo, lacre dos olhou nos cantos, farejou o ar. Mas o
cascos, e desabrochando no meio da unicórnio que comia lírios tinha cheiro
testa, espinho e marfim, o chifre único de flor, e escondido entre os vestidos
que apontava ao céu. da princesa confundia-se com os
Doce língua de unicórnio veludos, confundia-se com os
lambeu a mão que o retinha. A perfumes.
princesa estremeceu, afrouxou os Amanhã é o dia. Quero sua
laços da rede, o unicórnio ergueu-se palavra cumprida, - disse o rei - virei
nas patas finas. buscar o unicórnio ao cair do sol.
Quanto tempo demorou a Saído o rei, as lágrimas da
princesa para conhecer o unicórnio? princesa deslizaram no pêlo do
Quantos dias foram preciso para amá- unicórnio. Era preciso obedecer ao pai,
lo? era preciso manter a promessa. Salvar
Na maré das horas banhavam- o amor era preciso.
se de orvalho, corriam com as Sem saber o que fazer, a
borboletas, cavalgavam abraçados. princesa pegou o alaúde, e a noite
Ou apenas conversavam em silêncio inteira cantou sua tristeza. A lua
de amor, ela na grama, ele deitado a apagou-se. O sol mais uma vez
seus pés, esquecidos do prazo. encheu de luz as corolas. E como no
primeiro dia em que se haviam
encontrado a princesa aproximou-se
do unicórnio. E como no segundo dia
olhou-o procurando o fundo de seus
olhos. E como no terceiro dia segurou-
lhe a cabeça com as mãos. E nesse
último dia aproximou a cabeça do seu
peito, com suave força, com força de
a mo r e mp ur ra nd o, c ra va nd o o
espinho de marfim no coração, enfim
florido.
Quando o rei veio em cobrança
de promessa, foi isso que o sol
morrente lhe entregou, a rosa de
sangue e um feixe de lírios.
Uma idéia
toda azul
Um dia o Rei teve uma idéia. olhos se fecharam, saiu dos seus
Era a primeira da vida toda, e aposentos, atravessou salões, desceu
tão maravilhado ficou com aquela escadas, subiu degraus, até chegar ao
idéia azul, que não quis saber de Corredor das Salas do Tempo.
contar aos ministros. Desceu com ela Portas fechadas, e o silêncio.
para o jardim, correu com ela nos Que sala escolher?
gramados, brincou com ela de Diante de cada porta o Rei
esconder entre outros pensamentos, parava, pensava, e seguia adiante.
encontrando-a sempre com igual Até chegar à Sala do Sono.
alegria, linda idéia dele toda azul. Abriu. Na sala acolchoada os pés
Brincaram até o Rei adormecer do Rei afundavam até o tornozelo, o
encostado numa árvore. olhar se embaraçava em gazes,
Foi acordar tateando a coroa e cortinas e véus pendurados como
procurando a idéia, para perceber o teias. Sala de quase escuro, sempre
perigo. Sozinha no seu sono, solta e igual. O Rei deitou a idéia adormecida
tão bonita, a idéia poderia ter na cama de marfim, baixou o
chamado a atenção de alguém. cortinado, saiu e trancou a porta.
Bastaria esse alguém pegá-la e levar. A chave prendeu no pescoço em
É tão fácil roubar uma idéia. Quem grossa corrente. E nunca mais mexeu
jamais saberia que já tinha dono? nela.
Com a idéia escondida debaixo O tempo correu seus anos.
do manto, o Rei voltou para o castelo. Idéias o Rei não teve mais, nem sentiu
Esperou a noite. Quando todos os falta, tão ocupado esteve em
governar. Envelhecia sem perceber, levantou o cortinado.
diante dos educados espelhos reais Na cama de marfim, a idéia
que mentiam a verdade. Apenas, dormia azul como naquele dia.
sentia-se mais triste e mais só, sem Como naquele dia, jovem, tão
que nunca mais tivesse tido vontade jovem, uma idéia menina. E linda. Mas
de brincar nos jardins. o Rei não era mais o Rei daquele dia.
Só os ministros viam a velhice Entre ele e a idéia estava todo o tempo
do Rei. Quando a cabeça ficou toda passado lá fora, o tempo todo parado
branca, disseram-lhe que já podia na Sala do Sono. Seus olhos não viam
descansar, e o libertaram do manto. na idéia a mesma graça. Brincar não
Posta a coroa sobre a almofada, queria, nem rir. Que fazer com ela?
o Rei logo levou a mão à Nunca mais saberiam
corrente. e st ar j un to s c om o
- Ninguém mais se naquele dia.
ocupa de mim - dizia Sentado na beira da
atravessando salões e cama o Rei chorou suas
descendo escadas a duas últimas lágrimas, as
caminho das Salas do que tinha guardado para
Tempo - ninguém mais a maior tristeza.
me olha. Agora posso Depois baixou o
buscar minha linda idéia cortinado, e deixando a
e guardá-la só para mim. idéia adormecida, fechou
A bri u a po rt a, para sempre a sua porta.
Na primeira corça
que disparou,
Errou.
E na segunda corça
acertou.
E beijou.
E a terceira fugiu
no
Coração de um
jovem.
Ela está entre as
folhas do
Verde O.
Entre
Canção popular da as folhas
Idade Média
do verde O
O príncipe acordou contente. queria amar, a corça ele queria matar.
Era dia de caçada. Os cachorros latiam Se chegasse perto será que ela fugia?
no pátio do castelo. Vestiu o colete de Mexeu num galho, ela levantou a
couro, calçou as botas. Os cavalos cabeça ouvindo. Então o príncipe
batiam os cascos debaixo da janela. botou a flecha no arco, retesou a
Apanhou as luvas e desceu. corda, atirou bem na pata direita. E
Lá embaixo parecia uma festa. quando a corça-mulher dobrou os
Os arreios e os pêlos dos animais joelhos tentando arrancar a flecha, ele
brilhavam ao sol. Brilhavam os dentes correu e a segurou, chamando
abertos em risadas, as armas, as homens e cães.
trompas que deram o sinal de partida. Levaram a corça para o castelo.
Na floresta também ouviram a Veio o médico, trataram do ferimento.
trompa e o alarido. Todos souberam Puseram a corça num quarto de porta
que eles vinham. E cada um se trancada.
escondeu como pôde. Todos os dias o príncipe ia visitá-
Só a moça não se escondeu. la. Só ele tinha a chave. E cada vez se
Acordou com o som da tropa, e estava apaixonava mais. Mas a corça-mulher
debruçada no regato quando os só falava a língua da floresta e o
caçadores chegaram. príncipe só sabia ouvir a língua do
Foi assim que o príncipe a viu. palácio.
Metade mulher, metade corça, Então ficavam horas se olhando
bebendo no regato. A mulher tão calados, com tanta coisa para dizer.
linda. A corça tão ágil. A mulher ele Ele queria dizer que a amava
tanto, que queria casar com ela e tê-la compridas, um corpo branco. Tentou
para sempre no castelo, que a cobriria levantar, não conseguiu. O príncipe lhe
de roupas e jóias, que chamaria o deu a mão. Vieram as costureiras e a
melhor feiticeiro do reino para fazê-la cobriram de roupas. Vieram os
virar toda mulher. joalheiros e a cobriram de jóias.
Ela queria dizer que o amava Vieram os mestres de dança para
tanto, que queria casar com ele e levá- ensinar-lhe a andar. Só não tinha a
lo para a floresta, que lhe ensinaria a palavra. E o desejo de ser mulher.
gostar dos pássaros e das flores e que Sete dias ela levou para
pediria à Rainha das Corças para dar- aprender sete passos. E na manhã do
lhe quatro patas ágeis e um belo pêlo oitavo dia, quando acordou e viu a
castanho. porta aberta, juntou sete passos e
Mas o príncipe tinha a chave da mais sete, atravessou o corredor,
porta. E ela não tinha o segredo da desceu a escada, cruzou o pátio e
palavra. correu para a floresta à procura de sua
Todos os dias se encontravam. Rainha.
Agora se seguravam as mãos. E no dia O sol ainda brilhava quando a
em que a primeira lágrima rolou dos corça saiu da floresta, só corça, não
olhos dela, o príncipe pensou ter mais mulher. E se pôs a pastar sob as
entendido e mandou chamar o janelas do palácio.
feiticeiro.
Quando a corça acordou, já não
era mais corça. Duas pernas só e
Fio
após
fio