Arte e Política Intensidades CHAIA PDF

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DOSSIÊ: ARTE CONTEMPORÂNEA

Intensidades políticas na arte: apontamentos

Miguel Chaia1

Resumo: Para evitar generalizações no estudo das diferentes relações entre arte e
política, este artigo – contendo alguns apontamentos sistematizados – propõe
sugestões para elaboração de uma escala de “intensidades políticas” a ser utilizada
como parâmetro para avaliar a dimensão política nas diversas linguagens ou
suportes artísticos e, também, nas características internas das obras. Esta possível
escala de “intensidades políticas” pode ser encontrada, de forma embrionária, na
história da arte, inclusive entre os gregos clássicos, o que demonstra a procura 25
para melhor qualificar o grau de aproximação entre arte e política.

Palavras-chave: Arte e política. Teoria política. Pensamento político. Linguagem


e revolução.

Resume: In order to avoid generalizations in the study of the different relations


between art and politics, this article - containing some systematized notes
- proposes appointments for a scale of “political intensities” to be used as a
parameter to evaluate the political dimension in the various artistic languages or
platforms, and, also, the internal characteristics of the works. This possible scale
of “political intensities” can be found, in an embryonic way, in the history of art,
even among the classical Greeks, which demonstrates the quest to better qualify
the degree of approximation between art and politics.

Keywords: Art and politics; Political theory; Political thinking; Language


and revolution.

1
Miguel Chaia – Professor Doutor do Departamento de Política e do PEPG em Ciências Sociais
da PUC-SP. Pesquisador do NEAMP (Núcleo de Estudos em Arte, Mídia e Política). Autor de
artigos e livros sobre Arte e Política.

Aurora: revista de arte, mídia e política, São Paulo, v.12, n.34, p. 25-36, fev.-mai.2019
INTENSIDADES POLÍTICAS NA ARTE: APONTAMENTOS MIGUEL CHAIA

Tão polissêmico é o conceito de arte que, também, as tentativas para abordar as


diferentes relações entre arte e política tornam-se mais complexas ainda. Estas
dificuldades para qualificar a dimensão política da arte decorrem de um duplo
desafio: encarar o fato de que não apenas arte, mas também a política são conceitos
polifônicos, possuem múltiplas definições e compõem um heterogêneo campo de
interpretações.
Entre as várias entradas ou possibilidades para a pesquisa das relações entre
arte e política, pode-se selecionar uma que tome por base a análise comparativa
entre diferentes linguagens ou suportes artísticos para se buscar o valor dado
pela “intensidade política na arte”. Neste caso, trata-se de obter diferentes
intensidades políticas que permeiam as diversas manifestações artísticas e que
indiquem o potencial de impacto sobre o espaço público ou sobre a subjetividade,
no sentido de produção de sensações e saberes que levem à reflexão crítica da
realidade ou até que motive ações primevas. Isto significa direcionar a reflexão
para discernir nos trabalhos ou produtos de arte uma eventual escala de potência
política que estas obras podem portar ao se considerar situações estruturais
diferentes que produzem, por exemplo, as artes plásticas, o teatro, a literatura, 26
a música e o cinema. Não basta, entretanto, para a finalidade de pesquisar a
dimensão política na arte, o estudo da produção, mas também se considerar as
formas de disseminação ou propagação de cada uma destas esferas artísticas. De
maneira esquemática coloca-se a questão: algumas esferas da arte possuem maior
ou menor grau de potência para afetar politicamente indivíduos ou grupos sociais
abrangentes uma vez que estas esferas podem, eventualmente, canalizar fluxos de
intencionalidades políticas, mas de formas específicas e diferentes, em decorrência
de particularidades próprias.
A arte enquanto fenômeno ocidental é uma invenção grega e,
especificamente para Aristóteles, a tragédia grega refere-se à criação de uma
situação na qual a polis passa a refletir sobre ela mesma (Aristóteles, 2015). Ao
levar para o âmbito da filosofia a interrogação acerca do significado da arte, tanto
Platão quanto Aristóteles criam diferenciações que, de certa forma, hierarquizam
as diferentes artes (Tèkhne). Contra o caráter representativo, inconsistente e ilusório
da arte, Platão observa que a poesia e a música exercem influência sobre o estado
de ânimo, afetando positiva ou negativamente a cidade. Por sua vez, Aristóteles
com a “Poética” comenta a origem da poesia e conceitua diferentes gêneros

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poéticos, indicando que o saber da arte remete ao hábito de produzir considerando


a razão. Supondo situações heterogêneas para situar a arte, Aristóteles diferencia
as artes de medida e contagem, as artes manuais e as artes imitativas, estas
últimas categorizadas no termo “poética”. Assim, no seu interior, separa, ainda,
a tragédia da comédia, indicando que diversas formas de poesias portam sentidos
e significados próprios para darem conta das verdades da cidade. Não bastassem
estas reflexões, Aristóteles propõe ainda uma comparação entre as capacidades
de representação da arte da História, da Arte e da Filosofia, de tal modo que
conclui ser arte mais filosófica do que a história. Junto com a invenção da arte,
com os gregos clássicos, tem origem também divisões e subdivisões para melhor
introduzir a arte, nas suas múltiplas manifestações.
Supondo que diferentes graus de intensidades políticas fazem parte da
produção e disseminação destas linguagens da arte, um primeiro recorte necessário
para enfrentar esta problematização é assumir uma perspectiva política, pois que
as áreas de interesses da arte são múltiplas. A arte não se presta apenas à abordagem
política, uma vez que ela na sua amplitude está aberta às mais diferentes perspectivas
– da eminentemente estética, psicanalítica, religiosa, econômica, antropológica e 27
outras mais. Considerar que a arte é imediatamente política aprisiona a análise
e neutraliza as suas facetas mitológicas, religiosa, sociológica ou antropológica.
Portanto, delimitar uma perspectiva política e histórica de análise torna-se
fundamental para avançar um método comparativo da arte com o setor político
da sociedade. Além do mais, tal procedimento de selecionar uma perspectiva está
considerando que o significado efetivo da arte não vem da sua dimensão política,
mas sim da sua qualidade estética ou das suas especificidades como linguagem
ou forma de expressão. Esta seleção é uma das múltiplas possibilidades para
abordar a arte e ela permite obter os recursos metodológicos para uma sucessão de
análises comparativas: primeiro, a comparação entre as diferentes situações da arte
e da política; e, em seguida, o cotejamento das linguagens entrei si e das obras,
internamente e nas localizações históricas.
Assim, torna-se necessário listar as diferentes situações que envolvem
obras e linguagens quando elas carregam ou apontam os questionamentos e
conflitos sociais que estão em debate no espaço publico. A dimensão política da
arte ganha potência quando ela gera espaços para amplificar a arena de debates –
afetando consciências e fortalecendo correntes de opiniões.

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INTENSIDADES POLÍTICAS NA ARTE: APONTAMENTOS MIGUEL CHAIA

Em “Entre o passado e o futuro” (1988), Hannah Arendt separa arte e


política, “no sentido das artes criativas, que põem em cena alguma coisa tangível e
que reificam o pensamento humano a tal ponto que as coisas produzidas possuem
existência própria, a política é o exato oposto de uma arte – o que não significa,
aliás, que ela seja ciência” (Arendt, 1988, p. 200). Entretanto, para Arendt,
mesmo que diferentes, o fazer da arte e a prática política possuem em comum a
necessidade do espaço de apresentações, de forma que arte e política se encontram
no espaço que é engendrado sempre que os homens convivem em comunidade.
A filósofa indica, então, que tudo o que acontece no espaço público, no espaço de
aparecimento, é político por definição. Neste sentido, a autora estabelece uma
relação com a polis grega, que foi uma “forma de governo que proporcionou aos
homens o espaço de aparecimento onde pudesse agir – uma espécie de anfiteatro
onde a liberdade podia aparecer (1988, p. 202)”.
Ao se tomar como foco o espaço das apresentações, a análise das diferentes
intensidades políticas na arte exige circunscrever mais ainda o campo empírico,
reduzindo as generalizações. Por exemplo, recortar o cinema em gêneros, como o
cinema autoral ou cinema-pensamento; abordar o teatro feito pelas companhias
experimentais e não comerciais; a música apanhada no recorte popular ou na 28
produção da periferia da cidade; e buscar as artes plásticas nas expressões de
performances, instalações ou vídeos – de modo a selecionaras manifestações
propícias à abordagem política. No sentido contrário, a generalização, também,
pode ser contornada pela incorporação da pesquisa das obras que portam
significativamente a dimensão política. São obras que ganham a dimensão política
em si mesmas, sejam pinturas, peças teatrais, musicas ou filmes que com certa
autonomia portam significado social simbólico que atravessa as circunstâncias.
Neste sentido, Giulio Carlo Argan escreve a respeito de Guernica: “Assim nasce,
em poucas semanas, Guernica, que se pode dizer o único quadro histórico de
nosso século. Ele o é não por representar um fato histórico, e sim por ser um
fato histórico. É a primeira intervenção resoluta da cultura na luta política; à
reação, que se exprime destruindo, a cultura democrática responde pelo punho de
Picasso, criando uma obra-prima” (Argan, 1992, p. 475).
Considerando estes aspectos, reunindo ou separando as escolhas de
linguagens ou/e obras, tanto se pode selecionar para efeitos de análise o cinema
novo ou/e o filme “Terra em transe”; o neo-concretismo ou os Parangolés de Hélio
Oiticica; a Musica Popular Brasileira ou a produção de Caetano Veloso; o teatro
de resistência da década de 60 ou “Arena conta Tiradentes”.

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A análise comparativa entre as intensidades políticas, sob uma perspectiva


crítica, toma como referência as conexões entre ‘linguagem – movimento –
autoria – obra’, de modo a verificar no resultado do trabalho final a presença de
intencionalidades e de sínteses criticas produzidas em condição de liberdade de
experimentação e de produção de saber social. Seja como produto de um projeto
individual ou de grupo, seja como um acontecimento gerado pela presença física
e simbólica de uma obra.
Neste sentido, cabem algumas colocações sobre a intencionalidade política
seja do autor ou movimento seja aquela contida na obra.
No seu manifesto “Que faire?” (de 1970) Jean-Luc Godard coloca:
1. É preciso fazer filmes políticos. 2. É preciso fazer politicamente
os filmes. 3. 1 e 2 são antagonistas e pertencem a duas concepções de
mundo opostas. 4. 1 pertence à concepção idealista e metafísica do
mundo. 5. 2 pertence à concepção marxista e dialética do mundo.
(...). 11. Fazer 1 é permanecer um indivíduo da classe burguesa.
12. Fazer 2 é tomar uma posição de classe operária. (...). 14. Fazer
2 é fazer uma análise concreta. (...). 24. Fazer 1 é dizer como são as
coisas (Brecht). 26. Fazer 2 é dizer como são verdadeiramente as
coisas” (Brecht) – na tradução de Miro Soares. 29

Godard assume de imediato a política como forma estruturante dos seus


filmes e coloca de forma explícita a diversidade das perspectivas políticas – a
que descreve a miséria do mundo e a que mostra o povo em luta, a visão política
burguesa e a visão política crítica revolucionária. Encontra-se, neste manifesto,
uma indicação de diferentes sentidos da dimensão política na arte, configurando
intensidades políticas específicas dos filmes.
Assim como é explícita a política nos filmes de Godard, também o é em
Bertolt Brecht ao se tratar do teatro, que afirma ser “... no teatro épico que o
meio social aparece como elemento autônomo. (...). O palco começou a exercer
uma função pedagógica. (...). O teatro passou a ser o trabalho de filósofos... que
desejavam transformar o mundo, e não apenas explicá-lo. Portanto filosofava-se,
ensinava-se” (Brecht, 1967, p. 69 - 70).
Cabe então ressaltar que, além da abrangência de se dirigir a um público
amplo, o teatro traz um bom indício da potência política, ou intensidade política
na arte, uma vez que autores significativos decantam um quadro sistemático
de pensamento político. Esta articulação teórica e política também presente no
cinema, como exemplo em Godard e Glauber Rocha, é bastante consistente no

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teatro. Um indicador da intensidade política pode ser levantado não apenas na


instância da própria linguagem, no movimento ou na obra, mas também na esfera
da produção teórica. Assim, se tomarmos, como lembrança imediata, William
Shakespeare, Bertolt Brecht e Antonin Artaud, verificamos que estes dramaturgos
produziram ideias e conceitos articulados para se compreender criticamente o
sujeito, a sociedade e a economia – seja na Inglaterra do século XVI, seja na
sociedade capitalista atual. Através destes pensadores do teatro emergem as noções
de indivíduos, sociedade e política - existentes na configuração trágica.
Neste sentido, deve-se considerar que as intensidades políticas na
arte também devem ser buscadas no poder da arte em gerar conhecimento e
quanto mais forte as articulações das ideias e conceitos produzidos pela arte,
maior o sentido da sua potência política. A vida e a política como tragédia são
assim definidas por serem perpassadas por conflitos agônicos, permanentes e
intermináveis: das dúvidas pessoais às guerras permanentes, das dificuldades no
amor às pressões mortais da sociedade. Impossível pensar o sujeito moderno,
as guerras produzidas pelo Estado e pelo capitalismo e a pressão da sociedade
controle sem as contribuições dadas nas obras de Shakespeare, Brecht e Artaud. 30
De certa forma, considerando-se as diferentes posições e pontos de vista,
a reflexão teórica perpassa as obras destes três autores, uma vez que todos eles
se voltam à análise, denuncia e crítica do poder político e, inclusive, do poder
econômico e social – como se constata, inclusive, no pensamento político
sistematizado de Antonin Artaud.
Assumindo uma perspectiva crítica das pressões sociais que as várias
instâncias da sociedade exercem sobre o indivíduo, Artaud toma como parâ-
metro Van Gogh, para entender que “Van Gogh não morreu de um estado de
delírio próprio”.
(...). Van Gogh buscou o seu durante toda a vida com uma energia
e uma determinação estranhas. E ele não se suicidou num gesto de
loucura, no transe de não consegui-lo, mas, pelo contrário, acabara
de consegui-lo e de descobrir o que ele era, quando a consciência
geral da sociedade, para puni-lo por se ter desvencilhado dela, o

suicidou (Artaud, 2003, p. 39-40).

Face a esta constatação que sintetiza muitas outras questões levantadas


por Artaud, ele propõe o teatro da crueldade:

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Teatro difícil e cruel...(que traz) todas as outras artes de volta a uma


atitude e a uma necessidade centrais...No teatro, proponho a volta
à ideia elementar mágica, que consiste, para conseguir a cura de
um doente, em fazê-lo tomar a atitude exterior do estado ao qual
queremos conduzir (Artaud,1993, p. 76-77).

No interior de uma proposta, senão um projeto, com objetivos de um


teatro curativo, total na articulação entre as artes e que alcance o inconsciente e
afete o corpo, Artaud ainda reafirma que “O teatro é o único” lugar do mundo e
o último meio de conjunto que nos resta para alcançar diretamente o organismo
e, nos momentos de neurose e baixa sensualidade como este em que estamos
mergulhados, para atacar essa baixa sensualidade através dos meios físicos aos
quais ela não resistirá (Artaud, 1993, p. 78). Assim, emerge um teatro que
envolva o espectador, com imagens físicas violentas que sensibilizem o espectador
– enquanto corpo aberto para receber as novas percepções dadas pela arte. Uma
proposta com clara ênfase política, a ser acionada por um grupo de atores, em um
espaço público.
Tão alta é a potência do pensamento na arte, que no caso de Shakespeare,
Brecht e Artaud, descortinam não apenas o âmbito do sujeito, da vida e da 31
sociedade, mas descortinam brutalmente os mecanismos e funcionamento da
política, assumindo os três os limites e os males desta forma de organização social,
também uma invenção grega.
Vale acrescentar, então, um outro aspecto para aferir como as medidas das
intensidades políticas podem variar ao se tomar como parâmetro a arte produzida
individualmente e a arte produzida por coletivos e com crescente abrangência do
público. De forma geral, a criação de um coletivo de artistas expressa preocupações
de ordem social e política que o grupo toma como objetivo das suas ações e
produções, aproximando seus integrantes de formas de ativismos políticos.
No Brasil, cabe destacar que a literatura – com alguns autores que vão do
Império à atualidade – ganha uma maior intensidade política e, como exemplo, vale
indicar aqui Carlos Drummond de Andrade que, à véspera da II Guerra Mundial,
reflete sobre os conflitos bélicos, situa o pais no contexto internacional enfatizando
sua condição periférica e denuncia o funcionamento da Grande Máquina, isto é, o
capitalismo que atravanca e desnorteia a sociedade nacional. Assim, ao propor ao
leitor que tenha ou obtenha o sentimento do mundo, Drummond escreve: “Mas
o terrível despertar prova a existência da Grande Máquina/ e te repõe, pequenino,

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em face de indecifráveis palmeiras” (Drummond, 2008, p. 71). Em vários textos


e livros, o poeta traça um articulado lirismo social, para bem posicionar a sua
critica social e política. Ao clamar pela amizade e solidariedade, o poeta sabe que
“Aceitas a chuva, a guerra, o desemprego e a injusta distribuição/ porque não
podes sozinho, dinamitar a ilha de Manhattan” (Drummond, 2008, p. 72).
No caso da literatura, a intensidade política nasce de uma individualidade
dirigindo-se a uma outra subjetividade, mas sua potência se propaga pela difusão
industrial das obras – que resiste ao tempo e amplia o seu publico maciçamente
– enquanto o teatro fundamentado na forte presença do corpo humano é gerado
por um grupo, por um coletivo, e apreciado por uma plateia ativa, no caso do
teatro com sentido pedagógico de afetar intencionalmente a consciência ou o
inconsciente das pessoas, como querem Brecht e Artaud respectivamente.
Mas, um aspecto relevante para se considerar o peso da intensidade
política na arte, pode estar na linguagem ou suporte. Vale a pena refletir sobre
as colocações de Walter Benjamin (observando Marshall McLuhan, quando
afirma que o meio é a mensagem) a respeito da constatação de que o cinema de
arte possui a particularidade revolucionária, devido à própria tecnologia e à sua
32
reprodutibilidade técnica, – assim como a fotografia contemporânea no início do
socialismo:
Nas obras cinematográficas, a reprodutibilidade técnica do produto
não é, como no caso da literatura ou da pintura, uma condição
externa para a sua difusão maciça. A reprodutibilidade técnica do
filme tem seu fundamento imediato na técnica da sua produção.
Esta não apenas permite da forma mais imediata, a difusão em massa
da obra cinematográfica, como a torna obrigatória. A difusão se torna
obrigatória, porque a produção de um filme é tão cara que um consumidor,
que poderia, por exemplo, pagar um quadro, não pode mais pagar um filme

(Benjamin, 1996, p. 172).

Para além do suporte tecnológico, o cinema nasceu de portas abertas


para a população que circula nas calçadas das grandes cidades e também, desde
os primeiros filmes, ele elegeu como um dos seus temas, aliás, fundamental, o
cotidiano e as atividades da classe trabalhadora.
Benjamin, reafirma de um lado, que o filme é uma criação da coletividade
e na sala de projeção é um tiro certeiro no inconsciente e, por outro, que a
eficiência da arte contemporânea é resultado da função de reprodutibilidade
técnica. Entretanto, mesmo com este caráter revolucionário, numa sociedade

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do espetáculo, quando aflora o culto da magia da personalidade, do estrelato, o


cinema ganha também o seu oposto, isto é, um caráter contrarrevolucionário –
como observa Benjamin.
Como se vê, os conceitos de arte e de política são polissêmicos, uma vez
que ambos podem conter ou circunscrever tanto uma relação no sentido crítico
e transformador quanto no sentido de manutenção e aprimoramento da ordem.
Deve-se considerar, assim, que a potencialidade política do cinema (e da arte,
de forma geral) também serve á política do sistema, como é o caso do cinema
produzido pela indústria de Hollywood.
Cabe anotar outro critério fundamental para aferir a intensidade
política na arte, qual seja a revolução da linguagem. A cada transformação ou
ruptura de linguagem, a dimensão política da arte se acentua, como se vê com
os desdobramentos do surrealismo, cubismo, cinema novo, nouvelle vague,
concretismo, inovação ou criação de novas palavras e estilos na literatura e assim
por diante: Picasso, Serguei Eisenstein, Hélio Oiticica, Glauber Rocha, Jean-Luc
Godard, James Joyce, José Celso Martinez, Caetano Veloso e Antonin Artaud. A
dimensão política da arte se exacerba frente à revolução da linguagem. 33
Paralelamente, os cenários criados pela presença e atuação de vanguardas,
grupos e coletivos remetem a discussão das relações entre arte e política tanto
para o âmbito da micropolítica quanto para o da macropolítica. Se for possível
detectar estas relações na esfera da macropolítica como, por exemplo, a arte no
nazismo, o realismo socialista e mesmo o muralismo mexicano, será no âmbito
da micropolítica que poderá ser encontrado um equilíbrio que guarde as
especificidades ou as características estruturais tanto da arte quanto da política,
uma vez que a tendência da arte na macropolítica é de desvirtuamento da arte,
gerando a situação da estetização da política. Entretanto, mesmo ao se considerar
a micropolítica, deve atentar para o fato da aproximação entre ativismo artístico
e política, para buscar clarificar as diferentes intensidades destas relações que ora
podem se aproximar mais da atividade política ou não abandonar a referência
da liberdade experimental da arte. É, neste sentido, que convém considerar a
existência e pertinência dos fatos de que a política sempre tende a buscar uma
estética; e de que a arte procura uma forma de politização para se completar.
Entre as diferentes linguagens, a política pode fluir naturalmente, ou como
algo a compor a estrutura da obra e vinculada organicamente à visão de mundo

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do artista ou como ansiedade política, algo procurado deliberadamente – o que


decorre da insistência de sujeitos ativos no campo da arte para imprimir um cunho
sociológico ou político na aparência do trabalho ou do discurso sobre a obra.
No que se refere às artes plásticas, o movimento futurista (bem como
o dadaísmo e o surrealismo) e Marcel Duchamp formam uma dupla base para
o acirramento político na arte contemporânea. O “Manifesto futurista”, 1909,
coloca a proposta radical de crítica à sociedade da época e de necessidade de forjar
um novo homem, para uma nova sociedade tecnológica em desenvolvimento.
Coloca em cena, portanto, um tipo de ativismo artístico e abre o espaço público
para o artista: como espaço de reflexão e de atuação.
O futurismo requer uma sociedade tecnologicamente avançada, negando
o passado e engendrando uma visão de mundo agressivamente politizada: “É da
Itália que lançamos ao mundo este manifesto de violência arrebatadora e incendiária
com o qual fundamos o nosso Futurismo, porque queremos libertar este país de sua
fétida gangrena de professores, arqueólogos, cicerones e antiquários” (Manifesto
Futurista, 20/02/1909). Inicialmente ligado ao futurismo, Marcel Duchamp, a
partir da segunda década do século XX, continua a tendência das vanguardas de 34
crítica ao capitalismo e quebra o sistema de produção da mercadoria ao liberar para
as artes plásticas o potencial do ready-made – expandindo por completo o campo
de experimentação, produção e participação nas artes plásticas. Vários estudiosos
de Marcel Duchamp afirmam que a sua vida foi um experimento sociológico.
O surrealismo e o futurismo quebram grandes fronteiras que delimitavam, até
então, a esfera das artes plásticas uma das linguagens da arte que mais revoluciona
os seus pressupostos.
Todas estas propostas anteriores na história da arte deverão afetar as mostras
das Bienais que passam a incorporar a dimensão antropológica, social e política
como fundamento deste tipo de evento. A partir da realização da Documenta de
Kassel, a primeira edição ocorreu em 1955, os acontecimentos destas mostras
regulares tornam-se cenário de debates e embates fundamentalmente sociológicos,
seja como produção de conhecimento, seja como espaço de apresentação dos
principais conflitos sociais e econômicos originados da violência do capitalismo e
suas decorrências na forma de guerras permanentes e migrações planetárias.
Estas mostras internacionais de períodos regulares e a revisão do papel
da arte nos anos 60, do século passado, priorizando o ativismo e as atitudes,

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exerceram fortes influências sobre a produção artística de forma geral, no sentido


de regulação da produção no sentido de exigência do político – as artes plásticas
tornaram-se ansiosamente política.
Assim, uma forma de se obter diferentes graus de intensidades políticas
na arte deve ser iniciada a partir de análises comparativas e relacionadas - interna
ao objeto e externa à obra - de tal modo que se detecte também quando a política é
uma dimensão implícita ou explícita à arte. Assim, o distanciamento entre o pleno
exercício da liberdade e o acoplamento aos interesses ativistas (engajamentos) ou
institucionais (projetos ou programas) são necessários para qualificar as relações
entre arte e política.
Da mesma forma, há de se considerar as circunstâncias históricas que
propiciam a produção artística, uma vez que os conflitos sociais e políticos e os
impasses que circulam no interior de uma sociedade devem afetar as diferentes
linguagens e os distintos artistas que ajudam a estruturar o objeto artístico –
abrindo a questão de se existem períodos históricos mais ou menos propícios à
politização da arte.
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