ZENAIDA - TESE - JANEIRO - 2020 (1) Comentário
ZENAIDA - TESE - JANEIRO - 2020 (1) Comentário
ZENAIDA - TESE - JANEIRO - 2020 (1) Comentário
2ª EDIÇÃO DO CURSO DE
DOUTORAMENTO EM CIÊNCIAS SOCIAIS
EXAME DE QUALIFICAÇÃO
RELATÓRIO
2
Resumo
6. BIBLIOGRAFIA ------------------------------------------------------------------------------------ 78
7. CRONOGRAMA ----------------------------------------------------------------------------------- 82
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1. INTRODUÇÃO
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se circunscrever a algumas estatísticas, não trouxe melhorias substanciais ao nível
da justiça social na distribuição, acesso e posse da terra, muito menos a nível do
aumento da produtividade dos solos. Os sistemas de parceria e arrendamento ainda
persistem e vinculam proprietários e não proprietários, apesar das poucas alterações
sofridas. Neste sentido, parece importante estudar a reforma agrária enquanto
processo e não meramente a partir do quadro legal e normativo e de macro categorias
analíticas (classes sociais, partidos políticos, Estado, campesinato, morgados).
Na verdade, assumo a perspetiva segundo a qual as análises sustentadas em
micro-categorias narrativas, em atores individuais e coletivos inseridos na sua
comunidade (enquanto topos, mas também como cosmovisão), tendem a surpreender
sentidos, vivências e historicidades que podem ser fundamentais para a compreensão
das factualidades históricas enquanto processo e na sua multidimensionalidade.
Finalmente, expressões como “associativismo rural”, “a terra a quem a trabalha” e
“cooperativas”, presentes na LBRA remetem para um modelo de reforma que parece
almejar o empoderamento/empossamento de populações agrícolas sem terra em
desfavor dos médios e grandes proprietários fundiários. Pelos discursos de antigos
dirigentes de Cabo Verde (do período de implementação do processo de reforma
agrária), percebe-se que muitos dos idealizadores da reforma agrária terão bebido
suas ideias nas análises feitas por Amílcar Cabral1, durante a luta de libertação
nacional. Uma luta armada dirigida por Amílcar Cabral, e sustentada, maciçamente,
por e nos camponeses, guineenses. Portanto, as propostas do seu líder, bem como
as do Partido Africano da Independência da Guiné e Cabo Verde (PAIGC),
nomeadamente, acabar com as grandes propriedades agrícolas privadas e com o
sistema de arrendamento, limitar a extensão da propriedade privada rural e dar terras
a todos os aqueles que nelas trabalhavam, iam no sentido de resolver a situação social
em Cabo Verde, onde a maioria da população vivia no campo e ligada, direta ou
indiretamente, a atividades agrícolas e conexas.
A ideia subjacente ao processo de reforma agrária terá sido bem recebida por
alguns quadrantes sociais nas duas ilhas (Santiago e Santo Antão), mas nem tanto,
em outros, pois discursos contra a referida reforma foram proferidos por muitos que
não se identificavam com tal processo. Essa clivagem terá, por um lado, influenciado
7
Especificamente pretendo:
1.3. Hipóteses
8
3. Enquanto os discursos oficiais realçam a necessidade de uma reforma
agrária no país e da realização de uma ampla campanha de sensibilização para que
tal reforma se materializasse, narrativas captadas no terreno revelam manifestações
tanto de apoio quanto de rejeição, para além de revelarem a sua incompreensão e
um desconhecimento total, por parte dos presumíveis destinatários, do que terá sido,
de fato, a reforma agrária.
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abordagem centrada nas narrativas sobre a reforma agrária, produzidas por atores
não estatais, de um lado, e por entidades oficiais, por outro, permitindo uma análise
cruzada, assinalando as semelhanças e as dissentâneas, bem como, embora
reflexivamente, uma análise sobre o processo, seus pontos fortes e suas fragilidades.
Deste modo, a abordagem histórica constitui o pano de fundo para contrastar com os
limites e os impedimentos do processo de definição e de implementação da política
de reforma agrária tal como proposta nos anos 1970/80, em Cabo Verde.
De igual modo, a pesquisa bibliográfica permitirá a definição de uma linha de
análise teórica ancorada em matrizes teóricas já comprovadas que possam viabilizar
a análise dos dados de terreno. Penso que autores como THOMPSON (2004),
SPIVAK (2010) e outros, pertencentes à mesma matriz teórica de estudos subalternos
poderão viabilizar a análise que pretendo fazer do processo de reforma agrária, ainda
que de um modo peculiar.
Quanto à pesquisa documental, acima anunciada, ela centrar-se-á na consulta
de documentos extraoficiais sobre o processo de reforma agrária, tais como:
publicações independentes de autores que se interessaram pelo tema, assim como
documentos pessoais de alguns dos atores inquiridos. De igual modo, ela comporta a
consulta de documentos oficiais – estudos preparatórios, documentos de política e
legislação bem como relatórios do Ministério da agricultura, relatórios de consultorias,
e um conjunto de manuscritos acerca da reforma agrária. Deste grupo de documentos
consta um conjunto de manuscritos da década de 1980, referentes à implementação
da reforma agrária, a partir dos quais se pode observar dados sobre proprietários
atingidos e proprietários não atingidos pela reforma agrária, por freguesia e por ilha.
Até este momento tive acesso à dez relatórios das reuniões do Conselho Nacional da
Reforma Agrária, elaborados entre 1982 e 1990. Esses relatórios foram produzidos a
partir de dados fornecidos pelos Presidentes das Comissões Concelhias de Reforma
Agrária (CCRA) nas reuniões nacionais. Dos referidos relatórios, constam
informações de todas as ilhas de Cabo Verde durante a década da reforma agrária.
Por esse motivo a maior atenção será dirigida, especificamente, para as informações
sobre as ilhas de Santiago e Santo Antão, objeto empírico deste estudo.
Tive acesso a dados manuscritos sobre a implementação da Lei do
Arrendamento Rural e da Parceria de 1967, da qual é possível extrair informações,
ainda que parciais, sobre a estrutura fundiária das ilhas na década de 1960. Esses
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dados poderão permitir estabelecer uma comparação com os dados posteriores para
verificar a evolução que a estrutura fundiária poderá ter sofrido, ou não.
Relativamente às fontes orais, tenho estado no terreno a recolher entrevistas
de atores para melhor perceber o que a narrativa dos que viveram diretamente ou
apenas presenciaram a reforma agrária pode informar sobre o processo e a
importância que a reforma agrária adquiriu no contexto social e histórico em que
aconteceu. É importante realçar que irei trabalhar narrativas captadas a partir de
entrevistas e que isto requer trabalhar com a memória dos atores do processo de
reforma agrária.
Tenho trabalhado com atores que vivenciaram, na primeira pessoa, o processo,
porque dele participaram ativamente, enquanto rendeiros, proprietários ou agentes
administrativos responsáveis pela socialização da LBRA. Segundo VANSINA
(2004:141) «distinguimos o testemunho ocular, que é de grande valor, por se tratar de
uma “imediata”, não transmitida, de modo que os riscos de distorção do conteúdo são
mínimos».
O desafio maior será o de confrontar as narrativas dos atores com os discursos
oficiais por forma a extrair dados, informações e reflexões que permitirão uma melhor
compreensão e análise do processo de reforma agrária, tendo sempre em mente que
a memória é sempre uma reconstrução, portanto, não se sobrepondo na sua
totalidade aos fatos propriamente ditos. A memória trabalha com interpretação e
análise. É uma reconstrução do passado, mas é uma reconstrução do real, a partir de
um ator, de um local, de sua visão do mundo passado e do presente. Para recolher
dados sobre a memória há que recorrer aos testemunhos de pessoas que se
disponibilizam para recontar a sua perceção do processo de reforma agrária nas duas
ilhas retidas para esse estudo. Testemunho pode ser entendido como «todas as
declarações feitas por uma pessoa sobre uma mesma sequência de acontecimentos
passados, contanto que a pessoa não tenha adquirido novas informações entre as
diversas declarações» (VANSINA, 2004:140). Isto poderá criar um certo desafio de
perceber e analisar os testemunhos dos atores sem o risco de falsificação dos fatos.
No caso, dois tipos de testemunhos se confrontam: o testemunho proveniente
das memórias oficiais e o proveniente das memórias extraoficiais. O desafio torna-se
ainda maior quando se se apercebe, de que em confronto direto estarão dominantes
e dominados e que os discursos serão, necessariamente, diferentes. Por um lado, a
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ansiedade epistémica da dominação, (cf. STOLER, 2013), pode levar os dominantes
a não contar a história dos dominados, dos silenciados. Por outro lado, existem os
dominados que, de alguma forma, descobrem as fissuras nos discursos de dominação
que lhes permitem entrar e criar bolsas de resistência, o que torna o seu discurso
diferente. Segundo STOLER (2013) há zonas escuras no discurso dos dominantes
que permitem aos dominados penetrarem e construírem o seu próprio discurso. Será
interessante demonstrar isso no tema em estudo, pois a reforma agrária por muito
tempo não era nem assunto esporádico no contexto académico, nem nos noticiários,
nem nos bares ou nos recantos mais recônditos das ribeiras deste país. A palavra
reforma agrária parecia assunto proibido mesmo que inconscientemente. E ainda hoje
há resistência em abordar o assunto, passados cerca de quarenta anos do início do
processo. Talvez as narrativas reconstruídas a partir de testemunhos orais ajudem a
perceber as razões explicativas de tais silenciamentos.
A memória recobre diferentes realidades e formas de presença do passado e
por isso se situa numa confluência dos vários domínios de estudo. Falar da memória
enquanto objeto científico quer dizer que ela é utilizada como fonte para reconstruir o
passado no futuro. HALBWACHS (2004) explica que a memória é uma atividade que
não se reduz a uma simples representação do passado. Nos anos 1970, a história oral
e a reflexão historiográfica contribuíram para um interesse renovado da história e
colocaram o estudo da memória como meio de acesso privilegiado ao conhecimento
dos silêncios e dos silenciados e esquecidos da história, dos excluídos da
historiografia oficial. A história oral pode recuperar essas partes silenciadas da
história. Ki-ZERBO (2010) é um dos investigadores africanos que se dedicou, com
uma equipa multidisciplinar, a reconstruir a história do continente africano, baseando-
se, de entre outras técnicas e métodos, na história oral, dada a problemática da
relativa escassez de fontes históricas para muitas regiões e períodos históricos do
continente africano. Mas, há muito que se ultrapassou a visão positivista na
metodologia da história, portanto, fontes outras que não as escritas adquiriram o
mesmo valor heurístico que estas, desde que devidamente assegurada a sua
fiabilidade. Neste sentido, a crítica das fontes também se aplica a fontes orais, como
bem aponta HAMPATÊ BA (2010).
No caso em estudo, muito do que é o discurso oficial sobre o processo de
reforma agrária pode ser encontrado em documentos oficiais como os relatórios das
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CRA locais e da CNRA. Esses relatórios contêm discursos dos governantes,
sobretudo do Ministro que tutelava a pasta do desenvolvimento rural na época. No
tocante aos discursos não oficiais, a forma possível para os captar é através da sua
reconstrução oral, baseando na recolha das memórias individuais dos atores não
oficiais, isto é, daqueles que não fazem parte da elite governamental central ou
periférica, mas que vivenciaram o processo de reforma agrária nos campos das ilhas
de Santo Antão e de Santiago. Assim, no trabalho de campo, privilegiarei trabalhar
com história oral temática, pela possibilidade que esta oferece de complementar
informações originadas em documentos e/ou evidenciar o que ainda não foi
efetivamente documentado sobre a reforma agrária nas duas ilhas. Justifica-se, pois
“a história oral é um recurso moderno usado para elaboração de documentos,
arquivamentos e estudos referentes à vida social de pessoas” (MEIHY, 1996, p.13). A
oralidade visa o entendimento da vida das pessoas no contexto social, pois, “é uma
história construída em torno da vida das pessoas” (THOMPSON, 1992, p.44). Para
este autor a história oral permite interação com a comunidade, ampliando o campo de
atuação da história. O emprego da história oral como metodologia de trabalho, permite
voltar a atenção para as versões daqueles que participaram ou testemunharam a
reforma agrária. Com a história oral será possível recuperar o que não pode ser
encontrado documentado, ampliar o conhecimento através do estudo de experiências
particulares e compreender a sociedade através do indivíduo que nela viveu
(ALBERTI, 2004).
A história oral é uma técnica utilizada para resgatar a memória, através de
depoimentos de pessoas selecionadas para registar experiências de vida. “A memória
é resultado do movimento do sujeito no ato da memorização, como também é ação
dos diversos grupos sociais em suas histórias, o passado e o presente”
(HALBWACHS, 1990, p.32). Será interessante, articular esta escolha metodológica
com a perspetiva teórica em historiografia que busca dar visibilidade aos subalternos,
aos invisíveis. Com efeito, POLLAK (1989) mostra que a história oral privilegia a
análise dos excluídos, dos marginalizados e das minorias. Significa que as narrativas
desses grupos marginalizados, por não interessarem aos grupos dominantes, não são
assinaladas nem registadas pelos discursos oficiais. No entanto, existem,
permanecem silenciadas, mas jamais desaparecem. São partes integrantes das
culturas dominantes e continuam se opondo à memória oficial em jeito de resistência
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através do que POLLAK (1989:4) chama de «memórias subterrâneas que
prosseguem seu trabalho de subversão no silêncio e de maneira quase impercetível
e afloram em momentos de crise em sobressaltos bruscos e exacerbados». Creio que
essa escolha metodológica permitira fundamentar os silêncios que, por vezes,
encontro no seio do universo empírico em torno do tema reforma agrária. Porque
segundo POLLAK (1989:5) «o longo silêncio sobre o passado, longe de conduzir ao
esquecimento, é a resistência que uma sociedade civil impotente opõe ao excesso de
discursos oficiais». Já frisei o fato de muito do que foi escrito e dito nos discursos
oficiais foi no sentido de justificar a necessidade de uma reforma agrária, mas será
que do ponto de vista dos atores comuns essa necessidade tão clamada oficialmente
se justificava?
A entrevista é uma das técnicas de recolha de dados privilegiada neste
trabalho, pois, “é na realização de entrevistas que se situa efetivamente fazer história
oral” (ALBERTI, 2005, p.78). Neste caso, isto é, para a coleta, organização e
sistematização dos dados tenho utilizado entrevistas semiestruturadas que, apesar de
seguirem um roteiro pré-estabelecido, dão a possibilidade de reformular ou inserir
questões sempre que noto possíveis dificuldades de entendimento por parte dos
entrevistados e quando, a partir de um dado assunto, percebo a possibilidade de
extrair outras informações. As principais etapas desse procedimento metodológico
têm sido: a seleção dos possíveis entrevistados; o contato com os mesmos, por vezes
difícil, a gravação de entrevistas, igualmente difícil, a transcrição e a análise das
mesmas. Para superar as dificuldades supramencionadas tenho procurado construir
uma rede de contatos nas regiões onde pretendo realizar entrevistas antes de
deslocar ao terreno. Ainda assim, por vezes, sou recebida de forma hostil, sobretudo
porque o assunto é a reforma agrária, que muitos parecem querer esquecer. Mas com
uma certa insistência acabo por conversar com pessoas, que se encarregam de
convencer outras de que é normal falar e que já não há mais nada a temer. Quando
pergunto se posso gravar entrevistas as pessoas recuam dizendo «se é para gravar,
não quero falar». Com alguns interlocutores tem sido possível gravar entrevistas.
Pretendo entrevistar um grupo variado de atores desde interlocutores entre o partido
(PAICV) e a população, que estiveram no terreno a socializar e implementar a LBRA,
à proprietários atingidos e não atingidos pela LBRA. Desde parceiros / rendeiros /
lavradores / meeiros a agentes administrativos. De realçar que, enquanto que em
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Santo Antão os entrevistados insistem em falar de lavrador meeiro, em Santiago falam
de rendeiro/parceiro. Talvez porque em Santo Antão o regime predominante tenha
sido e continua a ser o de meeiro que se equipara à parceria. Parceria é a designação
utilizada pelo INE nos seus relatórios, referindo-se àquele trabalhador que labuta na
terra durante o ano agrícola com a incumbência de entregar metade da produção ao
proprietário, na altura das colheitas. Pelo que percebi, o termo lavrador em Santo
Antão quer dizer a mesma coisa que meeiro. A figura do rendeiro para Santo Antão é
muito rara. O que já não acontece para Santiago, onde o regime predominante sempre
foi o arrendamento e essa figura é realmente muito mencionada na ilha, tendo sido
pivô de revoltas sociais desde o séc. XIX. Nos relatos sobre as revoltas sociais é a
figura do rendeiro que aparece sempre e não a do parceiro.
Para cada grupo elaborei um roteiro de entrevista diferente (anexo I). No
entanto nem sempre esse roteiro é seguido à risca pois as vezes começo por onde as
pessoas querem começar e vou reorientando as questões para o meu objeto de
estudo a medida que a conversa flui, para manter seu interesse. A seleção das
pessoas a serem entrevistadas baseou-se e vai-se baseando em critérios qualitativos,
pois «os entrevistados são tomados como unidades qualitativas» (…) (ALBERTI,
2005, p.172). A modalidade escolhida tem sido a entrevista temática porque, segundo
ALBERTI (2005) esta permite versar, prioritariamente, sobre a participação dos
entrevistados no tema escolhido, neste caso na reforma agrária.
Em Santo Antão, até a presente, foram realizadas vinte e duas entrevistas
semiestruturadas, enquanto que em Santiago já realizei, pelo menos, dezasseis e
penso realizar mais algumas posteriormente. É de meu interesse contactar mais
pessoas que tiveram papel ativo durante o processo de reforma agrária. Entrevistei o
Ministro do Desenvolvimento Rural da década de 1980, Engenheiro João Pereira
Silva, pessoa importante em todo o processo de desenho e execução do processo de
reforma agrária em Cabo Verde. Por ter sido peça chave do processo, todo o roteiro
foi diferente, foi mais longo em relação aos demais. Ele não se importa que utilize o
seu nome próprio e optarei, ao longo do desenvolvimento do trabalho, por citá-lo como
tal. Mas, por uma questão de uniformização de critérios, preservarei a identidade dos
outros entrevistados, apesar de alguns terem dado permissão para usar os nomes
verdadeiros. Referindo ao Ministro em questão utilizo duas designações específicas
no corpo do trabalho, a saber: “Ministro” e “Pereira Silva”. Quando o utilizo enquanto
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autor chamo por SILVA. Os outros entrevistados são referidos ao longo do trabalho
pela função que ocuparam no processo. Exemplos: (proprietário, idade), (lavrador,
idade), (parceiro, idade), (meeiro, idade), (rendeiro, idade) (função ocupada pelo ator,
idade), ou apenas (ator-mediador, idade).
Dos roteiros constam três tipos de dados: dados de base, que conduzem à
identificação do entrevistado; dados de trajetória que mostram o seu percurso
académico e profissional; dados ajustados ao tema, onde o entrevistado se posiciona
perante o tema diretamente.
A deslocação ao universo empírico iniciou em dezembro de 2010, quando fiz a
maior parte das entrevistas na ilha de Santo Antão. Foi na sequência da elaboração
de uma dissertação de mestrado cujo objeto de estudo era apenas o Concelho da
Ribeira Grande de Santo Antão. Estive em Porto Novo e no Paul, em 2016. Tive a
necessidade de entrevistar pessoas que não são habitualmente residentes na ilha de
Santo Antão ou em Santiago. Pelo menos duas das entrevistas foram feitas via Skype
e e-mail e três via telefone pois no primeiro caso, a pessoa não reside, neste momento,
na Praia, e teve um papel decisivo na conceção e implementação da LBRA. Nos
outros casos, devido à indisponibilidade de tempo por parte dos entrevistados e
porque residem fora dos Concelhos de origem. As outras entrevistas foram
presenciais, três delas feitas aqui mesmo na Praia. Em Santiago, desde 2016 estou
no terreno a realizar entrevistas e observações diretas. Já estive em Santa Catarina,
Santa Cruz, Órgãos e Picos. Penso centrar as minhas ações nessas regiões.
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2. CAPÍTULO I - ABORDAGEM TEÓRICA / CONSTRUÇÃO DA PROBLEMÁTICA
DE PESQUISA
2.1. Reforma agrária: consensos e dissensos; apropriações e recusas.
17
O termo campesinato aparece frequentemente nos discursos de Amílcar
Cabral, mas menos nos discursos oficiais do período pós-independência. Para WOLF
(1976) campesinato se refere a uma relação estrutural que se integra a um todo
sociocultural. No sentido mais amplo, campesinato se refere a uma civilização
camponesa, cujas dimensões económicas, sociais, políticas e culturais são de tal
forma entrelaçadas que mudanças introduzidas em uma delas afetam, como num jogo
de cartas, o conjunto do tecido social (MENDRAS,1984). Segundo WANDERLEY
(2004:4) «as sociedades camponesas se definem, precisamente, pelo fato de
manterem com a chamada “sociedade englobante” laços de integração, dentre os
quais são fundamentais os vínculos mercantis». De uma maneira mais restrita,
campesinato aparece como uma forma social particular de organização da produção
em que predomina uma agricultura camponesa em que a unidade de produção é
gerida pela família. Suas particularidades se materializam em práticas sociais que
implicam uma associação entre património, trabalho e consumo, no interior da família
(WANDERLEY, 2004).
Parece-me que para falar de campesinato cabo-verdiano implica englobar
essas duas dimensões acima apresentadas, se se tiver em conta a forma como foi
moldada a vida nos campos de Cabo Verde e as particularidades que enformam as
relações tecidas entre os habitantes do campo, possuidores ou não de terras. É essa
historicidade, que poderá não aparecer em discursos oficiais, que os transformam em
atores sociais do processo de reforma agrária, nas duas ilhas em estudo. Veja-se, que
Santiago já conhecia processos de contestação e de resistência seculares que
resultaram em revoltas sociais entre os séculos XIX e XX, sobretudo em revoltas
camponesas em Santa Catarina (Ribeira dos Engenhos, 1822, Achada Falcão, 1841,
Ribeirão Manuel, 1910, Achada Portal, 1927) e outras revoltas que, mesmo não
assumindo caráter de revoltas camponesas, de todo, causaram instabilidade social na
ilha. Autores como CARREIRA (2000) e PEREIRA (2015) retratam essas revoltas em
suas obras. Fatos que, em princípio, sugerem uma situação favorável à
implementação de medidas sociopolíticas favoráveis a populações sem posses nessa
ilha mais do que na ilha de Santo Antão, onde também se registaram sublevações em
1886 em Ribeira Grande e em 1894 no Paul (FERREIRA, 1999; DELGADO, 2001;
ÉVORA, 2009), mas onde um emaranhado de relações de compadrio, de clientelismo
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e de amizade entre proprietário e trabalhador poderão/poderiam condicionar o
processo de implementação da reforma agrária.
Não obstante, entendo que o processo de reforma agrária em Cabo Verde
carece de uma análise mais aprofundada dada a sua grande relevância histórica,
política e socioeconómica. Apesar do esforço de alguns investigadores e ensaístas
cabo-verdianos em abordar o tema, em relação à ilha de Santo Antão, as abordagens
são quase sempre atreladas aos acontecimentos do dia 31 de agosto de 1981,
aquando da sublevação de parte da população, em Boca de Figueiral, de Coculi, no
concelho da Ribeira Grande. Supostamente teria sido fomentada por proprietários
descontentes com a proposta de Lei de Bases da Reforma Agrária. Tais proprietários
locais teriam instigado camponeses sem terra e pequenos proprietários
meeiros/lavradores a rebelar-se e a impedir a socialização das ideias trazidas pela
referida proposta de lei. Houve tumultos um pouco por todo o vale no sentido de
impedir que a mensagem da reforma agrária chegasse às bases do sistema agrário
através dos militantes de base do PAICV.
Até à presente, poucos autores se debruçaram de fato sobre a reforma agrária.
Se para a Ribeira Grande de Santo Antão temos algumas contribuições de autores
como SILVEIRA (1991), ALMEIDA (2000), MONTEIRO (2001) e SANTOS (2015) 2,
relativamente ao concelho do Paul muito pouco se escreveu sobre a reforma agrária.
Foram os casos de SIGRIST (1986) que fez um diário de campo mostrando a
excessiva concentração fundiária no concelho. Existem referências ao Paul nos
relatórios da FAO datados de 1992/93 da autoria de MACHADO e TEÓFILO, e de
STOCKINGER e alguns poucos dados nos relatórios da CNRA, datados dos finais da
década de 1980, ambos se referindo à ausência de casos de posse útil no referido
concelho, embora dados de 1992 já mostram que teria havido alguns casos de posse
2 A propósito disso, SILVEIRA (1991) trouxe ao público, talvez pela primeira vez, dado o contexto
sociopolítico anterior a essa data, a versão dos factos daqueles que foram considerados os incitadores
da sublevação, as prisões de que foram alvos, as torturas que sofreram e as duras penas que tiveram
que cumprir. ALMEIDA (2000), por seu turno, tenta demonstrar, a partir dos depoimentos dos que se
viram envolvidos na contestação popular sobre a discussão do Anteprojeto de Lei das Bases da
Reforma Agrária, o ambiente que se vivia naquelas ribeiras, mas apenas entre os dias 30 e 31 de
Agosto de 1981. Embora dê várias pistas de investigação, este autor direciona o seu foco para esses
dois dias apenas, além do fato de ser um trabalho de carater ensaístico. Também, MONTEIRO (2001)
procura trazer um trabalho mais sociológico, onde tenta ouvir e confrontar as diversas versões sobre o
assunto em algumas partes da sua obra, mas sempre centrado nos dias 30 e 31 de agosto. Mais
recentemente, SANTOS (2015), numa pesquisa de mestrado, propôs-se a fazer uma análise socio
antropológica da implementação da reforma agrária, ouvindo atores do processo tentando explicar as
motivações das resistências, as interferências sociais que condicionaram o processo e as
consequências gerais, mas apenas no concelho da Ribeira Grande de Santo Antão.
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útil e até de retoma de terras por parte de proprietários após a revogação da LBRA.
Até hoje passa-se a ideia de que por lá a reforma agrária não passou. Isso porque a
tendência dos discursos é conotar a reforma agrária com a distribuição de terras em
posse útil ou à expropriação.
No entanto, há relatos interessantes em relação ao Concelho do Porto Novo,
mais propriamente no Tarrafal de Monte Trigo, onde a reforma agrária parece ter
cumprido, ao menos parcialmente, seus objetivos. Historicamente, trata-se de uma
localidade onde as relações entre proprietários e não proprietários eram pouco
amistosas. Os registos prediais atestam que todas as terras da região pertenciam a
um único proprietário de apelido Serra (BARCELOS, 2003). Na sequência da reforma
agrária houve muitas expropriações e redistribuições de terras nessa localidade.
No concernente à Ribeira Grande, pelos dados coligidos, constata-se que a
relação entre proprietários e seus lavradores era muito diferente. Aos lavradores
meeiros/rendeiros era permitido, ao menos, o usufruto de produtos fora de época e
muitas vezes era um afilhado, ou um compadre, ou mesmo amigo do proprietário, daí,
tal “complacência”.
Relativamente à ilha de Santiago, FURTADO (1993) dedica boa parte da sua
obra à questão da reforma das estruturas agrárias. O sociólogo observou a existência
de policiamento na cobrança das rendas e na recolha da parte devida pelos parceiros
aos proprietários. BORBA, que fez um trabalho de campo no Concelho de São
Salvador do Mundo, Santiago, em 2010, aborda a questão do ódio que se nutria pelo
capataz ou responsável das terras em nome dos proprietários. Segundo a
investigadora, a figura do capataz era muito mais odiada pela população de rendeiros
e parceiros sem terra, do que o próprio dono da terra o era.
Numa breve referência aos dados de proprietários atingidos e não atingidos
pela LBRA, em Santiago, percebe-se que o concelho de Santa Catarina aparece como
principal palco de muitas mudanças, mas também de permanências, bem como o
concelho de Santa Cruz. São aspetos que, a serem analisados com mais
profundidade, permitirão conhecer em parte as razões para tais mudanças e
permanências e outros meandros do processo de reforma agrária nessa ilha.
Neste estudo, pretendo distanciar-me do reducionismo da abordagem de
“reforma agrária enquanto posse útil”, pois um dos objetivos é analisar os meandros
em que decorreu o processo, conhecer as narrativas dos atores e tentar perceber as
20
lacunas/dissonâncias, os silenciamentos bem como as analogias que permitam
compreender, retrospetivamente o processo e suas eventuais implicações nas
situações atuais.
De igual modo, quero me distanciar da conotação “reforma agrária enquanto
31 de agosto de Santo Antão” pois trata-se de um fato que aconteceu ainda na fase
de apresentação pública do Anteprojeto da LBRA. A preparação e implementação do
processo de reforma agrária, não apenas enquanto instrumento jurídico, mas como
um conjunto de políticas públicas, antecede o acontecimento de 31 de agosto em
Santo Antão e estende-se pela década de 1980 por todas as ilhas, com especial
enfoque para aquelas mais agrícolas e vai até 1993, ano em que a LBRA foi revogada
e novas políticas públicas são pensadas, propostas e implementadas.
Tampouco se pode resumir a reforma agrária à questão da concentração e
desconcentração da propriedade fundiária, em Cabo Verde, apesar desse fato ter
sido, sempre, nomeado como um dos principais entraves ao desenvolvimento do setor
agrário no país. Segundo FURTADO «a desconcentração da propriedade fundiária
tendia a acontecer somente em anos de sucessivas boas colheitas (1993:33)». Isso
significa que nos anos de seca, não apenas os morgados, mas também os
comerciantes e até os emigrantes compravam as terras dos pequenos trabalhadores
rurais a preços muito baixos, aproveitando do desespero em que estes se
encontravam devido à desvalorização das mesmas. Assim, a pequena
desconcentração que acontecia em anos de boas “às águas” era totalmente revertida
em anos de seca mediante compras e hipotecas. CORREIA e SILVA (1996) também
documenta este fato. CARREIRA (2000) dá o testemunho de que são problemas
seculares da sociedade cabo-verdiana: a alienação das terras a preços muito baixos
durante as crises de fome; as insuficiências contidas no princípio de indivisibilidade
das propriedades; os processos torpes usados na venda de propriedades, quando,
por morte do dono, o elevado número de herdeiros dificultava a partilha equitativa.
Quando assim acontecia a ação dos interessados era facilitada, pois aproveitavam
para adquirir parcelas a baixo preço aumentando os seus domínios. Ora, que
consequências essa desconcentração/concentração traria para a produtividade, para
a vida dos lavradores e para os próprios proprietários? Seria a reforma agrária, a
solução definitiva desses problemas de concentração fundiária, de exploração de
parceiros e rendeiros e, consequentemente, da injustiça social reinante nos campos
21
do país? Segundo Pereira Silva, (entrevista, 2011) essa reforma terá sido pensada no
âmbito de políticas agrárias de desenvolvimento rural, mas também de
desenvolvimento do país. Algo que ultrapassa a mera questão da concentração
fundiária. A pergunta que, entretanto, se pode colocar é se esse objetivo, tão amplo,
terá sido alcançado, nas duas ilhas retidas para este estudo?
Creio que um estudo comparativo entre as ilhas de Santo Antão e Santiago
ajudaria a compreender/clarificar essas questões, nomeadamente, a nível da estrutura
fundiária, antes e depois da reforma agrária, a nível da distribuição ou não de posse
útil. Mas também a nível das narrativas, dos discursos oficiais, isto é, aqueles que têm
valor de verdade oficial, bem como dos discursos oficiosos, isto é, aqueles que não
têm o peso da oficialidade, e ainda os discursos não oficiais, numa e noutra ilha, para
avaliar o grau de perceção que grandes e pequenos proprietários, não proprietários,
parceiros, meeiros e trabalhadores em regime misto, extencionistas rurais e os
próprios decisores e implementadores da reforma agrária tiveram do processo. Um
estudo comparativo permitiria, também avaliar o grau de realização entre os objetivos
preconizados inicialmente pela reforma agrária e os alcançados até o fim do processo
tanto em Santo Antão como em Santiago.
De fato, existem muitas pistas de investigação sobre o tema que pretendo
desbravar, pois que, a meu ver, estudos aprofundados e sistemáticos estão por fazer.
Mas, limitar-me-ei à análise das narrativas dos atores em presença e sua confrontação
com os discursos oficiais, sobre o processo, para tentar conhecer e compreender o
que os atores em presença, tanto numa ilha como noutra, perceberam, e como se
posicionam sobre a reforma agrária? Tentar compreender, também as razões de
eventuais silêncios tanto em Santiago como em Santo Antão, uma certa resistência
em abordar o tema.
A implementação da reforma agrária proposta pelo governo foi travada em 1993
com a revogação da LBRA pela Lei nº 87/IV/93 de 06 de dezembro. Empiricamente
fica-me a perceção de que a reforma agrária não terá cumprido a tarefa pela qual foi
programada, ou que terá cumprido em parte e apenas para alguns casos pontuais.
Este estudo visa verificar esse dado tanto numa ilha como noutra, pois para além da
resistência que encontrou em alguns concelhos, os fatos gerados pelo processo de
reforma continuam a ter repercussão no seio da população.
22
2.2. Abordagens teóricas e a construção da problemática: aportes e constructos
23
Apoiar-me-ei, igualmente, na historiografia social inglesa que vem de uma
tradição marxista renovada onde renegam a pensar a história a partir de grandes
categorias explicativas, antes colocando o foco em micro-histórias bem como em
micro-atores, aqueles que são invisíveis/invisibilizados perante a história e a
historiografia. THOMPSON (2004) é um dos autores imersos nessa corrente de
pensamento. Constrói a sua argumentação baseando-se nas pequenas ações dos
operários ingleses num período histórico muito conturbado para a Inglaterra dos séc.
XVIII e XIX. O autor apoia-se nessas pequenas histórias, aparentemente estanques e
vai relacionando-as com os discursos oficiais de forma a mostrar o longo processo de
construção da classe operária inglesa que gerou grandes lutas e grandes conquistas.
No tema em estudo não se trata de buscar macro-categorias, embora exista uma certa
semelhança com a realidade das ilhas de Santo Antão e Santiago em relação à
importância que as micro-ações dos atores possam ter tido no processo de reforma
agrária. É interessante realçar as micro-ações que muitas vezes não têm muita
visibilidade na historiografia, em que pequenas ações podem produzir repercussões
muito mais amplas. Isso obriga a pensar a reforma agrária não como uma lei, mas
como um processo e uma construção social e política, um processo que ultrapassa as
meras políticas agrárias ou de desenvolvimento agrário. Um processo pensado e
ancorado nas realidades diferentes das ilhas. A micro-história permite realçar a forma
como se construiu o processo de reforma agrária cuja inteligibilidade pode estar nas
pequenas coisas, atos e atores. Isto ajuda a distanciar da tendência de conotar a
reforma agrária com a desconcentração fundiária, ou com a atribuição de posse útil
ou ainda com a sublevação de 31 de agosto de 1981, em Santo Antão. São os
diversos tipos de relações que fazem o processo, muitas vezes não percebidas, não
manifestas, mas importantes para compreender os sentidos da história e das
mudanças ou permanências, do consenso ou do dissenso, dos conflitos ou das
estabilidades.
Na sua obra Senhores e caçadores, THOMPSON (2004), procura mapear a
constituição das experiências reais e concretas articulando as narrativas dos atores
com os documentos oficiais produzidos. Da mesma forma, pretendo captar as reais
perceções que os atores tiveram do processo de reforma agrária para articulá-las com
os discursos oficiais e oficiosos de modo a compreender o porquê das reações
diferentes que as pessoas tiveram nas duas ilhas ou mesmo dentro de uma mesma
24
ilha? Apesar de rejeitar trabalhar com macro-categorias e de preferir analisar o
trabalho das pessoas, as tradições, os laços sociais entre proprietários e seus meeiros
/ lavradores, parceiros/rendeiros não posso descartar o fato de que são exemplos de
construção de experiências históricas e sociais através do trabalho. Porque se referem
às formas como se enformaram as relações entre esses atores do campo ao longo
dos tempos e que, de certa forma, resultaram na situação agrária e fundiária que os
proponentes da reforma agrária visavam combater. THOMPSON (2004) explica que
a ocupação profissional se torna um dos elementos intensificadores da
conscientização dos trabalhadores e serve de estimulante para a formulação da
consciência de classe. Mas esta análise não caberia no caso dos proprietários e
lavradores de Ribeira Grande de Santo Antão. Pois, apesar de lutarem juntos sob o
mesmo lado das trincheiras em alguns momentos marcantes da história da ilha,
nomeadamente, na sublevação de 1866, na revolta de 1894 e na sublevação de 1981,
precisamente contra a reforma agrária, proprietários e lavradores/meeiros não
formavam assim como não formam uma classe homogénea. E o que dizer de Tarrafal
de Monte Trigo no concelho do Porto Novo onde lavradores/meeiros denunciavam
seus pares aos capatazes?
Por um lado, o próprio THOMPSON (2004) permite-me distanciar das macro-
categorias quando afirma que classes sociais não podem ser enquadradas em, ou
vistas como, categorias ou estruturas fechadas em si mesmas, porque possuem
dinamicidade histórica, ao contrário das estruturas e categorias que não permitem
aberturas maiores em virtude de sua gênese formadora analítica e estática. Por outro
lado, entrar numa lógica de análise de classes seria homogeneizar o que não é
homogeneizável, porque a noção de classe não serviria de igual forma para as duas
ilhas em estudo e nem mesmo nas diversas regiões de uma mesma ilha. Mas ações
individuais, pequenas ações, que pessoas individuais ou pequenos grupos levam a
cado depois acabam por ganhar amplitude e repercutir em todos os atores. Neste
aspeto, os estudos de THOMPSON tornam-se importantes para este trabalho de
pesquisa pois, ele trabalha precisamente a partir das micro-ações das classes
proletárias da Inglaterra dos sécs. XVIII-XIX, para mostrar o processo de formação da
classe operária. Ancorar-me em THOMPSON (2004) poderá permitir mostrar a
influência de ações individualizadas ou concebidas por pequenos grupos de rendeiros,
25
parceiros, meeiros, lavradores e proprietários e o impacto das mesmas, no processo
de reforma agrária, nas duas ilhas em estudo.
WOLF (2003) é outro autor mobilizado neste trabalho dada a necessidade de
articular o processo de reforma agrária com a questão das interferências de relações
sociais tanto em Santo Antão quanto em Santiago. A análise das relações de
parentesco, compadrio e amizade patrono-cliente, dos seus meandros e de suas
consequências poderá dizer se as mesmas terão influenciado ou não, o processo de
reforma agrária nas duas ilhas retidas para este estudo. Segundo WOLF (2003), este
tipo de relações enforma-se a partir de estruturas informais complementares, em
relação ao sistema formal. No entender desse autor, as relações que se estabelecem
no seio da estrutura formal do poder político e económico e que se desenvolvem em
justaposição ou entremeada, constituem um tipo de estrutura informal que acaba
sendo intersticial, suplementar e paralela às relações na estrutura formal. Para WOLF
(2003) as relações de parentesco, compadrio e amizade constituem relações
informais de grande relevância funcional. Em que medida esse tipo de relações pode
ter condicionado a implementação da reforma agrária? O terreno poderá permitir
responder esta questão. Mas SILVA (1993, p. 491), avança que em Cabo Verde “os
fortemente enraizados sistemas de patrocinato são co-determinantes do agir
submisso e resignado dos camponeses”. WOLF (2003) explica que as relações
patrocinais podem ser caracterizadas como difusas e particularistas, não contratuais
e perpassadas de relativa simetria e reciprocidade, como podem conter elementos
provenientes de outras correntes teóricas que as caracterizam de (instrumentalidade,
coerção e assimetria), mas inseridas num fundo moral de confiança e solidariedade,
basicamente voluntárias, entre patrono e cliente. Por esse ângulo de observação, a
relação pode parecer livre, aos olhos de quem a vê de fora, mas não é. Há um
elemento de poder fundamental que a determina, que no caso das ilhas em estudo,
seria o ter terra ou o não ter terra, o ser proprietário de terra ou o não ser proprietário
de terra.
Mas essa relação poderá ser vista de um outro ângulo porque o proprietário
também depende do parceiro/meeiro. Segundo WOLF (2003), enquanto aquele
fornece bens tangíveis, tais como terra para trabalhar, proteção contra diversas
situações ou mesmo crédito, este retribui em recursos mais intangíveis. Exemplo:
demonstrações de estima. O cliente fornece a sua lealdade, aumentando o nome e a fama do
26
patrão, pode servir de canal de denúncia das maquinações de outros ou ainda promete apoio
político ao seu patrão e promete não se dedicar a outro patrono além daquele que lhe
forneceu bens e crédito. É aqui que entram as ações individuais, as micro-ações
levadas a cabo por aqueles que não possuem terra, mas que usufruem dela de alguma
forma, mas também dos terratenentes que agem mobilizando o recurso que têm a seu
favor para catapultar recursos tangíveis, mas sobretudo, recursos intangíveis. A
relação pode parece de tal forma voluntarista que acaba por transmitir confiança aos
lados nela envolvidos. Assim, é o grau de apropriação e ou de monopolização de bens
ou serviços a prestar e a escassez ou precariedade de recursos e sua importância
vital para a sobrevivência dos respetivos clientes, que determinam os contornos dessa
relação patrono/cliente.
Esse tipo de interferência de relações sociais pode ser encontrado tanto na ilha
de Santo Antão quanto na ilha de Santiago, ao tempo da reforma agrária e não só.
Percebe-se o grau de importância que esse tipo de relação adquire especialmente em
sociedades onde o poder político e económico revelam uma certa fragilidade. Após a
independência, em 1975, o Estado de Cabo Verde enfrentou dificuldades à vários
níveis, inclusive a nível da implantação do próprio Estado, no sentido de que era
preciso estender o seu poder a todo o território. O Estado precisava de recursos a
todos os níveis, sobretudo a nível humano e financeiro para fazer-se presente nas
diversas regiões do país. Na ausência ou na carência de recursos humanos e
materiais para a implementação da reforma agrária, as relações de amizade,
parentesco e compadrio entre os proprietários e os seus lavradores/meeiros poderiam
ter-se estreitado o bastante para suplantar qualquer decisão superior. Sendo o
alcance do Estado ainda frágil, sobretudo nas regiões mais afastadas do centro de
poder, isso, por si só, poderia abrir espaço para que pessoas, em busca de apoio, ou
pessoas capazes de oferecer apoio, entrassem em contratos diádicos e
independentes (cf. WOLF, 2003). São um tipo de laços que se mostram mais
funcionais em situações em que a estrutura institucional formal da sociedade é fraca,
incapaz de suprir com suficiente estabilidade bens e serviços, principalmente para os
níveis mais baixos da ordem social. A partir da análise e articulação das narrativas de
atores envolvidos no processo poderei verificar se essas relações terão influenciado
tal processo e se sim de que forma essa influência se materializou?
27
De igual modo, tentarei articular o tema com a questão dos subalternos do
ponto de vista de SPIVAK (2010). A história das ilhas de Santo Antão e Santiago é
marcada por sublevações populares e revoltas sociais respetivamente. Tentativas de
camadas sociais destas ilhas de contestar a ordem vigente durante o século XIX e
princípios do século XX. Como já referido, por vários momentos, indivíduos de estratos
sociais diferentes se juntaram em Santo Antão para se opor às autoridades. Como
analisar tais fatos a luz do conceito de subalterno definido por autores como SPIVAK
(2010), GRAMSCI (1982) ou FIGUEIREDO (2010)?
O conceito subalterno descreve «as camadas mais baixas, da sociedade,
constituídas pelos modos específicos de exclusão dos mercados, da representação
política e legal e da possibilidade de se tornarem membros plenos no estrato social
dominante» (SPIVAK, 2010, p. 12). Para FIGUEIREDO (2010) subalterno é uma
expressão que se refere à perspetiva de pessoas de regiões e grupos que estão fora
do poder da estrutura hegemónica. No entanto, SPIVAK (2010) recomenda que se
evite o que ela considera uma errônea apropriação do termo subalterno, pois tal não
pode ser usado para se referir a todo e qualquer sujeito marginalizado. Para a autora,
«o sujeito subalterno não pode ocupar uma categoria monolítica indiferenciada pois
esse sujeito é irredutivelmente heterogéneo» (SPIVAK, 2010:11). Esta afirmação
permite-me utilizar THOMPSON (2004) e ao mesmo tempo distanciar-me das macro-
categorias ou macro-estruturas na minha análise porquanto SPIVAK (2010) aponta
para a heterogeneidade do sujeito subalterno. Por seu turno, GRAMSCI (1982) diz
que subalterno é àquele cuja voz não pode ser ouvida. Ora, se o processo de fala em
si só se concretiza por uma posição discursiva, por uma transação entre falante e
ouvinte, esse espaço dialógico não se concretizaria, jamais, para um sujeito
subalterno que segundo SPIVAK (2010), por se encontrar desinvestido de qualquer
forma de agenciamento e carecendo de instrumentos de autorrepresentação, tanto
não pode falar, como tampouco pode ser ouvido. Assim sendo, a fala do subalterno
acaba sempre por ser intermediada por outrem que se coloca em posição de
reivindicar algo em nome do outro, representando o outro. Representar no sentido
político do termo, isto é, de falar por (outro), assumir o lugar do outro. Segundo
SPIVAK (2010:32) «visto que “a pessoa que fala e age (…) é sempre uma
multiplicidade”, nenhum “intelectual e teórico (…) partido ou (…) sindicato” pode
representar “aqueles que agem e lutam”». É uma critica que ela faz, especificamente,
28
aos intelectuais que almejam representar o outro, falar pelo outro. Porque, «ao
representá-los os intelectuais representam a si mesmos como sendo transparentes»
(SPIVAK, 2010:33), o que consequentemente leva à perpetuação da posição de
subalterno, a reprodução das estruturas de poder e opressão por parte de quem
pretenda falar pelo outro e por meio dele construir um discurso de resistência. Para a
autora, com esse tipo de intermediação todo o ato de resistência que possa ocorrer
em nome do subalterno estará imbricado no discurso hegemónico, tornando-se numa
forma de manter o subalterno silenciado sem lhe oferecer uma posição, um espaço,
onde ele possa falar e principalmente no qual possa ser ouvido. SPIVAK (2010)
concorda que esse tipo de agenciamento seja uma forma de ação validada
institucionalmente, mas que inviabiliza a articulação de um discurso de resistência fora
dos discursos hegemónicos.
Que importância essa discussão teria para este estudo? Um dos objetivos
específicos é, precisamente, perceber o processo de resistência que terá
condicionado o processo de reforma agrária e, de igual modo, perceber as razões de
determinados silêncios acerca do assunto reforma agrária. Inicialmente poderá haver
alguma dificuldade, pois não estou a trabalhar com macro-categorias mas SPIVAK
(2010) permite-me fazer essa incursão ao mostrar que o subalterno não é uma
categoria monolítica, indiferenciada e estática quando afirma que se trata de um
sujeito irredutivelmente heterogéneo.
Por um lado, essa análise poderá permitir analisar todos os tipos de sujeitos,
envolvidos no processo, que apesar de se encaixarem no conceito de subalterno, tal
como foi esmiuçado, existe a liberdade de tratá-los enquanto sujeitos heterogéneos
com identidade própria, mas, ainda assim, subalternos. Falo, p. ex: do antagonismo
explícito entre parceiros/rendeiros e proprietários de Santiago e da suposta relação
amenizada entre lavradores/meeiros e proprietários de Santo Antão, pois ajuda a
esclarecer como um modo específico toma formas diferentes em regiões distintas.
Para SPIVAK (2010) o subalterno é impedido de falar pelos seus intermediários, não
pode ser ouvido, pois não dispõe dos canais próprios para esse fim e que ao serem
intermediados o discurso de resistência acaba impregnado pelo discurso hegemónico.
Mas segundo COOPER (2008) há várias formas do subalterno falar. Não podem falar,
mas falam, p. ex., pelo silêncio ou através da resistência, da acomodação, da
desobediência, ou de pessoas agindo por conta própria. COOPER (2008) explica que
29
ações individuais, tais como, afastar-se do coletor de impostos, ignorar ordens,
responder ao superior de forma insolente e criticar afirmações de missionários,
médicos e educadores são formas de resistência que o subalterno utiliza para falar e
que complementam ações coletivas. Para POLLAK (1989:5) «o silêncio (…) longe de
conduzir ao esquecimento, é a resistência que uma sociedade civil impotente opõe ao
excesso de discursos oficiais». Amílcar Cabral escreveu, na sua obra Unidade e Luta
(1949):
sempre houve resistência a essa força. Se a força colonial age duma forma, sempre
houve uma força nossa, que agiu contra. Essa força contrária muitas vezes tomou
outras formas: resistência passiva, mentiras, tirar o chapéu, «sim senhor», utilizar todas
as artimanhas possíveis e imaginárias, para enganar os tugas. Porque não podíamos
enfrentá-los cara a cara tínhamos que os enganar, mas com as energias gastas
debaixo dessa força, miséria e sofrimento, morte, doenças, desgraças, além de outras
consequências de caráter social como o atraso em relação a outros povos. (ANDRADE,
2013: p.142).
30
que pretendo aflorar para permitir um melhor conhecimento do processo de reforma
agrária.
Outro autor que poderá ser útil para este estudo é António GRAMSCI com a
sua teoria dos intelectuais orgânicos. Para ele,
cada grupo social, nascendo no terreno originário de uma função essencial no mundo
da produção económica, cria para si, ao mesmo tempo, de um modo orgânico, uma ou
mais camadas de intelectuais que lhe dão homogeneidade e consciência da própria
função, não apenas no campo económico, mas também no social e no político.
GRAMSCI (1982:3),
Este autor explica que no caso dos camponeses mesmo que desenvolvam uma
função essencial no mundo da produção não elaboram os seus próprios intelectuais
orgânicos do mesmo modo que não assimilam nenhuma camada de intelectuais
tradicionais. Para ele a formação dos intelectuais de diversos níveis se faz a partir do
instrumento que é a escola.
Ora, que ligações terá a tese de GRAMSCI com o objeto deste estudo? Por um
lado, remete-me para a questão da representação no sentido de “falar por” trabalhada
por SPIVAK (2010). Aquele que dispõe dos instrumentos para falar e fazer-se ouvir, o
intelectual, sente-se legitimado para falar por aquele que acha que não dispõe dos
mesmos instrumentos para tal. Por outro lado, os cabo-verdianos e guineenses, que
fundaram o PAIGC, emergiram da pequena burguesia local, que teve acesso à escola,
que teve oportunidade de se formar em Portugal e outras paragens. Foi esse pequeno
grupo de intelectuais nascido no seio das estruturas de dominação colonial que
organizou e arquitetou a luta de libertação nacional. Segundo Cabral (1966) a eficácia
da luta armada e a estabilidade da situação a que ela poderia conduzir depois da
libertação, dependeriam sobretudo da consciência política e moral daqueles que, por
razões históricas, estariam em condições de ser os herdeiros imediatos do Estado
colonial ou neocolonial. A pequena burguesia aludida por Cabral, a meu ver, reunia
as caraterísticas que GRAMSCI (1982) atribui aos intelectuais. Se se conjugar a esse
fato o profundo conhecimento que Cabral tinha da realidade socioeconómica e política
da Guiné e de Cabo Verde que o levou a descreve-la como uma realidade constituída
por populações maioritariamente rurais, com poucos postos de trabalho urbanos, com
raras oportunidades educacionais para africanos, gente despolitizada e mantida
distante de avanços tecnológicos mais simples CABRAL (1966), a pequena burguesia
parecia legitimada para se colocar ao serviços daqueles. E dizia que a pequena
burguesia estaria mais apta a assumir, a dirigir a luta contra a dominação estrangeira,
31
quer pelas limitações económicas e culturais dos outros estratos de trabalhadores
quer pelo complexo e pelas limitações ideológicas da pseudo-burguesia nacional que
aderiu à luta por razões patrióticas. Nascida no seio de uma estrutura de dominação
que parecia impermeável, sentir-se-ia na condição de criar a ideia de homogeneidade
e consciência da sua condição de colonizado no seio das classes que não tiveram
acesso à instrução? Amílcar Cabral mostra o papel decisivo da pequena burguesia
enquanto intermediária entre o colonizador e o subalterno heterogéneo de que ela
também fazia parte, e seu necessário “suicídio de classe”, nas lutas de libertação dos
povos africanos de língua oficial portuguesa. Sobre isso dizia
para desempenhar cabalmente o papel que lhe cabe na luta de libertação nacional, a
pequena burguesia revolucionária deve ser capaz de suicidar- se como classe, para
ressuscitar na condição de trabalhador revolucionário, inteiramente identificado com as
aspirações mais profundas do povo a que pertence (CABRAL,1966:87).
3 Aristides Pereira – Presidente da República de 1975-1991, Pedro Pires – Primeiro Ministro de 1975-
1991, Abílio Duarte – Presidente da Assembleia Nacional Popular de 1975 -1991, Osvaldo Lopes da
Silva, Silvino da Luz, Amaro da Luz, Valdemar Lopes da Silva entre outros, combatentes e dirigentes
do lado cabo-verdiano.
4 Na verdade, logo após ao 25 de abril de 1974, outras forças políticas se deram a conhecer dentro de
Cabo Verde. São exemplos, UPI-CV, União dos Povos das Ilhas de Cabo Verde, liderada por José
Leitão da Graça e o GADB - Grupo de Ação Democrática de Barlavento liderada por Baltazar Lopes
que mais tarde cederia lugar à UDC - União Democrática de Cabo Verde - (LOPES: 2002). Mas o
PAIGC que, antes do 25 de abril não era muito conhecido em Cabo Verde, conseguiu se sobrepor às
demais forças políticas a ponto de neutraliza-las e assumir o controlo. Apoiado pelas tropas
portuguesas que se encontravam aqui destacadas num curto espaço de tempo ser legitimado por
Portugal para se sentar à mesa de negociações da independência.
33
"espontâneo" dado pelas grandes massas da população à orientação impressa pelo
grupo fundamental dominante à vida social, consenso que nasce "historicamente" do
prestígio (e, portanto, da confiança) que o grupo dominante obtém, por causa de sua
posição e de sua função no mundo da produção; 2) do aparato de coerção estatal que
assegura "legalmente" a disciplina dos grupos que não "consentem", nem ativa nem
passivamente, mas que é constituído para toda a sociedade, na previsão dos
momentos de crise no comando e na direção, nos quais fracassa o consenso
espontâneo (GRAMSCI: 1982:11).
Tentando interpretar o que diz GRAMSCI (1982) para articular com o tema em
estudo, diria que estar-se-ia perante dois grupos de intelectuais orgânicos no contexto
do processo de reforma agrária. Um primeiro, que emergiu da luta de independência
e que legitimado pela sua história de prestígio chega a Cabo Verde e se transforma
no grupo dominante capaz de organizar o novo Estado independente. Para isso serve-
se de um segundo grupo de intelectuais emergidos no seio das comunidades de cada
ilha, que servem de comissários do primeiro para, por um lado, maximizar o consenso
espontâneo encontrado, e por outro, criar um aparato de coerção estatal para em caso
de necessidade, disciplinar os grupos de discenso. Refiro-me aos atores que foram
encarregados da socialização da LBRA, da recolha de subsídios, do
acompanhamento do processo no terreno, da resolução dos conflitos entre
rendeiros/parceiros e proprietários no seio de suas comunidades. Como isso se
processou na prática, o terreno dirá.
Quanto à segunda questão colocada acima, a ideia de desconhecimento da
realidade local, por parte de quem pretenda dirigir um país. CABRAL (1949) havia
advertido que era necessário conhecer bem a nossa realidade para poder agir sobre
ela, sob pena dela se transformar no nosso próprio inimigo. Como conhecer a
realidade? Cabral esteve no terreno, realizando inquéritos agrícolas na Guiné Bissau,
onde calcorreou o território de lés-à-lés, onde teve oportunidade de compreender as
realidades locais, a ponto de preparar uma luta armada, e não só. Conduziu outras
lutas sociais, tais como: alfabetização, melhor saúde às populações locais, na procura
de outras formas de preparar as populações para a eminente independência. Mas, em
Cabo Verde, terá havido esse conhecimento das realidades locais? Creio que o
terreno permitir-me-á esmiuçar melhor essa questão no sentido de explicitar até que
ponto o conhecimento limitado ou nulo da realidade social, sobretudo, das ilhas de
Santo Antão e Santiago terá influenciado o processo de reforma agrária. Verificar até
que ponto o primeiro grupo se entrosou com os grupos regionais e como esses últimos
se entrosaram com a heterogeneidade das populações em cada localidade, sendo
34
que nalgumas dessas também já era possível encontrar grupos se sentindo
legitimados a falar por elas, caso de Ribeira Grande de Santo Antão. De fato, no seio
dessas populações encontravam-se rendeiros, parceiros, grandes proprietários,
pequenos proprietários, pequenos proprietários mistos, todos fazendo parte de uma
realidade, ela em si distinta, dentro da mesma ilha. A articulação dessas teorias com
o processo de reforma agrária poderá permitir compreender as nuances das relações
entre os grupos de atores que enformaram o processo de reforma agrária em Cabo
Verde. Falo dos intelectuais, tendo por base a teoria de GRAMSCI (1982), a quererem
representar o outro, pensar por ele e agir em nome dele, preparando um processo de
reforma com contornos uniformes para espaços e atores necessariamente
heterogéneos. Falo dos demais atores, proprietários, não proprietários e dos
mediadores locais, grupos tão heterogéneos embrulhados num mesmo processo de
reforma.
A articulação dos vários discursos poderá permitir compreender as reações de
atores, necessariamente heterogéneos, face a uma política agrária preparada no topo
da hierarquia de tomada de decisões salvo uma ou outra contribuição que terá vindo
de baixo. Finalmente, essa articulação, poderá permitir verificar o grau de adequação
de tais políticas às reais necessidades do seu público-alvo sabendo que os resultados
esperados não poderiam ser idênticos para todos os espaços, assim como o “modus
operandi”, em uma e outra ilha, teria que ser necessariamente diferente. A análise
dos relatórios da CNRA sugere uma busca constante de reajustes, ao longo da década
de 1980, sobretudo para Santiago e Santo Antão, com predominância para esta
última, que foi tida como a mais difícil, desde sempre, nessa questão agrária. A
articulação da análise dos relatórios da CNRA com entrevistas de terreno talvez
permita responder essa longa questão.
35
3. CAPÍTULO II - ANÁLISE PRELIMINAR DOS DADOS
5Capitania-donataria
- unidade económica e jurídico-administrativa que é alienada do património real e
integrada nos bens de um senhor que exerce o seu poder sobre a terra e sobre os colonos,
(DOMINGUES, 1991:42).
36
obrigava os moradores a produzir dentro da ilha os bens que vendiam no continente
africano.
A primeira forma encontrada para ligar o mercador-morador à terra foi através
de doações em regime de sesmarias6, regime esse que viria a dinamizar a exploração
e ocupação do interior da ilha de Santiago pois a apropriação deveria dar lugar á posse
efetiva, sob pena de ser reversível e revogável num espaço de dez anos. Segundo
CORREIA e SILVA (1991) a propriedade jurídica deveria implicar exploração
económica. Era uma forma de pressão sobre os beneficiários para que utilizassem a
terra efetivamente para fins produtivos. Foi então que se iniciou uma verdadeira
relação com a terra, pois, devido à necessidade de produção senhores e escravos se
instalaram nas terras férteis do interior da ilha de Santiago.
Em Santiago, desde cedo, iria vigorar um sistema de multipropriedade, isto é,
«uma ilha dividida, retalhada por uma infinidade de proprietários plenos, alodiais e
independentes do donatário (CORREIA e SILVA, 1991:202)». Uma forma de
apropriação plural do património fundiário de Santiago, segundo este autor, fruto de
dois regimes de propriedade instituídos desde o início do povoamento da ilha, a saber,
a vinculação7 e a propriedade livre e plena. Assim sendo, coexistiam na mesma ilha
diferentes formas de apropriação e exploração da terra. Coabitava com o regime de
sesmaria, duas formas de vinculação: a capela8 instituída a partir de 1500 e o regime
de morgadio9 que foi instituído a partir de 1531 na ilha de Santiago. Sua exploração
iniciou com trabalho escravo. Mais tarde, recorreram aos regimes indiretos de
6
Sesmaria - propriedade entregue a uma família que ficava com a responsabilidade de a cultivar num
prazo estabelecido e de a fazer produzir sob pena de ser afastada e a mesma ser entregue a outra
família, (Pereira, 1988).
7 «Segundo este regime, o património devia ser mantido uno, indivisível e no seio da família evitando o
10 Parceria - exploração da terra por outrem mediante entrega de uma parte da colheita ao dono,
(PEREIRA, 1988).
11 Renda – exploração da terra por outrem mediante pagamento de uma renda fixa ao proprietário em
39
a propriedade era atribuída como se de algo natural se tratasse e como tal, imutável,
legítimo. Sendo assim, os seus donos assumiam-na como um fetiche, o que significa
que mesmo não tendo a capacidade real de a fazer produzir o importante era possuí-
la, de qualquer forma. Segundo BARCELOS (2003ª), por volta de 1746 já existiam
rendeiros na ilha pois ele fala do donatário que se julgava senhor absoluto da ilha de
Santo Antão, supondo que seus rendeiros pudessem mandar todos os produtos para
o estrangeiro isentos de direitos à Fazenda Real. Carreira (2000) dá uma breve
estatística de escravos. Segundo o autor, em 1827 existia na ilha supracitada, cerca
de 207 escravos. Esse número baixou para 180 em 1834. Dez anos mais tarde, o
número de escravos voltou a subir para 235 escravos, para de novo baixar para cerca
169 em 1856 e 42 em 1868. Esses dados denunciam números poucos expressivos
de escravos na ilha de Santo Antão o que contraste com os números do trafico que
passou por Santiago desde o séc. XV até ao século XIX. São fatos que mostram,
necessariamente, uma diferenciação da situação inicial, do ponto de partida de cada
uma das ilhas em matéria de distribuição e apropriação fundiária bem como de
regimes de exploração agrícola.
CARREIRA (2000) explica que as terras de Cabo Verde foram repartidas de
forma injusta desde o período dos donatários e que isso sempre foi um problema
sobretudo na ilha de Santiago. “O mal vem dos primórdios da sua distribuição pelos
donatários e depois com a instituição dos morgadios no século XVI” (CARREIRA,
2000, p. 358). Mas do séc. XVI ao séc. XX o arquipélago conheceu dinâmicas outras
que serviram de pano de fundo para outras vivências no campo. Por esses fatos,
pode-se deduzir que as diferenças, que ainda hoje se notam, na estrutura fundiária
das diversas ilhas são consequências dessa forma de ocupação e exploração colonial.
Constata-se, então, que no período que se estendeu desde a formação da
sociedade cabo-verdiana até à independência nacional a estrutura fundiária no país
caracterizou-se pela concentração das melhores terras nas mãos de um grupo
reduzido de proprietários, nem sempre os mesmos, é preciso realçar. Em Santo Antão
as propriedades mudavam de donos, emigrantes e comerciantes, consubstanciando
uma reconfiguração da classe dominante, mas os lavradores/meeiros continuavam
nelas, por vezes, por questões de fidelidade. Um de meus interlocutores explicou o
seguinte,
«meu avô, trabalhou aqui. Até meu bisavô trabalhou aqui. Meu pai me contou. Ele
mesmo não quis deixar a propriedade quando meu avô morreu porque já somos todos
40
daqui. É aqui que nos sentimos bem, respeitamos esta propriedade desde do tempo
do meu bisavô e sabemos que ela não nos pertence. Mas damos bem com o
proprietário» (filho de lavrador, 35 anos).
41
artesanal. Por um lado, “encontrava-se uma classe detentora de uma imensidão de
terras, mas sem a capacidade real de explorá-las. Por outro, um número sempre
crescente de população livre sem qualquer acesso aos meios de subsistência”
(CORREIA e SILVA 1996, p. 94). Ora, em Santo Antão os proprietários importavam
produtos alimentícios e de primeira necessidade, de São Vicente, e vendiam,
sobretudo aos respetivos meeiros a preços muito inflacionados. Este aspeto revela
uma situação de múltipla dependência do lavrador em relação ao seu senhor.
Dependência da terra, do laço de amizade, do compadrio e do clientelismo patronal,
que os obrigava à fidelidade. Dependência do “fiado, tomar fiado, dar fiado 12” na loja
do seu senhor. Muitos só podiam adquirir produtos nas lojas do proprietário da terra
que trabalhavam, sob pena de a perder. A muitos empurravam-se-lhes produtos, dos
quais não careciam13, para esvaziar os armazéns do stock de produtos que não
tiveram procura ou saída. Sempre ficavam remanescentes de dívidas anteriores para
serem pagas no mês seguinte. O lavrador, que quase sempre acumulava o ofício com
as frentes de alta intensidade de mão-de-obra – FAIMO, por mais que trabalhasse,
nunca conseguia livrar-se das dívidas com os proprietários.
Geralmente, as terras impróprias para a cultura eram utilizadas na pecuária
extensiva de gado bovino e caprino, na sua maioria. As pequenas parcelas, privadas
ou não, ocupavam uma pequena percentagem da área agrícola disponível o que fazia
com que também a produção fosse insignificante em relação à produção agrícola
global.
A independência nacional encontrou essa situação fundiária e agrária instável.
No geral, 40% da população não era proprietária de parcela alguma de terra tendo
que, obrigatoriamente, trabalhar em regime de arrendamento ou parceria. Os outros
60% eram proprietários, mas destes, 50% eram também parceiros ou rendeiros, ou
12 Venda à crédito, no bom português. No fiado, na base da confiança você toma uma quantidade de
artigos na loja do seu senhor, que assentava tudo num caderninho, muitas vezes à luz do candeeiro,
lamparina, lanterna ou vela de purgueira. Satisfazia as suas necessidades e no final do mês liquidava
a sua dívida. Nessa altura, a população analfabeta e com tantas prioridades, outras, não teria o
discernimento de ir verificar o que estava sendo assentado no caderninho, de cada vez que ia à loja.
Afirmo, sem receios nenhuns, que muitas contas eram aumentadas de forma a que o lavrador nunca
conseguiria liquidar sua dívida totalmente. Isso acontece ainda hoje, sobretudo nos botequins das
zonas mais afastadas, e não só, e sobretudo nos que vendem o “famoso merdon (grogue, aguardente)”.
Isto referente à Santo Antão.
13 Era corrente ouvir expressões tais como: “arroz é só com prego” ou “petróleo é só com sal” ou ainda
“milho é só com agulha”. Significa que mesmo não estando a precisar de determinados produtos eram
obrigados a levá-los, quase sempre fiados, pois a dívida era sempre crescente.
42
parceiros e rendeiros, ao mesmo tempo (SILVA, 1982). São dados que reforçam a
ideia de individualismo baseado na dependência referida por SIGRIST (1978).
O regime indireto de exploração, a sobreposição da titularidade de várias
formas indiretas de exploração e de regimes diretos por um mesmo indivíduo e o
minifúndio constituíam as principais limitações impostas ao desenvolvimento da
produção no país (SILVA, 1982), aliadas às condições climáticas adversas e à
exiguidade de solos aráveis, cujo crescimento demográfico serviu para agravar ainda
mais a situação. SIGRIST (1978) fala do excessivo parcelamento devido à pressão
demográfica e da exiguidade de solos aráveis e não só. Também, FERREIRA (2015)
traz a questão do excessivo parcelamento das terras em Santiago como um dos
principais entraves à transformação do setor agrário. Esses fatos reforçam a
dependência dos sem terra em relação aos donos da terra.
Para além dos fatos apontados acima existe um dado que mostra um excessivo
apego à terra em Cabo Verde. Com efeito, segundo ALMEIDA (2001) mais do que
uma mercadoria, a terra é como um membro da família. Conservá-la é conservar a
ordem social, atacá-la era/é atacar a base de sustento das famílias o que podia alterar
a ordem social. Os proprietários se apegam por uma questão de direito de
propriedade, mesmo quando não tinham/tenham capacidade real de a explorar. Os
não proprietários se apegam à terra porque bem ou mal, no arrendamento ou na
parceria, ganhando muito ou muito pouco, é de lá que retiram o sustento da família.
Cada estrato social tinha/tem as suas próprias razões para se apegar à terra.
Segundo SILVA (1982), prevalecia, na década de 1980, uma estrutura agrária
caracterizada por muitas interferências sociais. DELGADO (2015) mostra que o ser
padrinho, afilhado, compadre, amigo, em Santo Antão, era uma excelente forma de
dominação ou obediência. É o que LA BOÉTIE, (1836) denominaria por “la sérvitude
volontaire” ou “la docilité qui amène à l’obéissance”. Segundo a autora,
Disons donc que, si toutes les choses auxquelles l’homme se fait et se façonne
lui deviennent naturelles, cependant celui-lá, seul reste dans sa nature que ne
s’habitue qu’aux choses simples et non alterées: ainsi que la première raison
de la servitude volontaire, c’est l’habitude; (…) (…) Ils disent qu’ils ont toujours
été sujets, que leurs pères ont ainsi vécu (LA BOÉTIE, 1836:81).
43
Encontrei meu pai nesta terra, por isso ainda cá estou. Meu avô também
trabalhou esta terra. Eles foram muito amigos do proprietário. Por isso é meu
dever honrar o orgulho da nossa família de permanecer na mesma
propriedade, depois de algumas gerações (Meeiro, 61 anos).
Significa que mesmo sem conhecer ao certo as razões que levaram o avô e o
pai a trabalhar na propriedade, se foram obrigados ou não, este neto/filho, continua,
de bom grado o que seus antecessores haviam feito. Este nasceu encontrou essa
situação, foi educado nela e sem olhar mais longe, contenta-se em viver como nasceu
sem desejar melhorar a sua situação porque acha-a natural. Configuram estratégias
de dominação/obediência muito eficazes, pois parece que os lavradores desejavam a
submissão ao proprietário, por fidelidade, por respeito ao laço que os unia e que ao
mesmo tempo desencorajava a contestação ou a revolta. De igual modo, essas
relações podem configurar-se enquanto estratégias de assegurar acesso aos meios
de produção e de subsistência, a recursos, e facilidades, seja em tempos “normais”
quanto, e sobretudo, nos de crise, de ambos os lados envolvidos nas teias de
relações. Em termos relacionais os atores do processo são mutuamente dependentes.
É importante captar e surpreender os momentos, os fatos, as narrativas que permitam
ver as várias e complexas dimensões desse relacionamento. É o que espero
apreender com os dados do terreno, pois se, por um lado, o lavrador parece não ter
coragem de ir contra as decisões ou ações do proprietário que é seu compadre e
amigo, por medo de pecar ou de ser amaldiçoado - o afilhado também não deseja ser
amaldiçoado pelo seu padrinho. Em contrapartida o padrinho, compadre, se sente
legitimado a impor-se ao mesmo tempo que precisa daquela mão-de-obra, mais fácil,
mais acessível e que cria menos constrangimentos para ele para além de melhores
lucros que poderá gerar.
Quanto aos dirigentes/atores do processo de reforma agrária imbuídos do
sentimento de dever moral de proteger o povo, de trazer justiça social ao campo,
esses terão percebido que era fundamental convencer os pequenos proprietários /
rendeiros / parceiros, de que os seus interesses eram idênticos aos dos demais
parceiros e rendeiros sem terra. Talvez se sentissem no dever moral de motivar o
camponês a aderir ao processo de reforma, de consciencializá-los de que a sua
situação não era a melhor, e que tal “situação” podia melhorar. Nem sempre a
perceção da situação por parte dos atores do campo coincidia com a situação
decretada pelos atores dirigentes que os fez colocar em prática medidas que visavam
44
a transformação das relações no campo, desde os primeiros anos após a
independência.
Não obstante, as medidas tomadas pelo novo Governo, antes da entrada em
vigor da LBRA em 1983, no sentido de iniciar a transformação dessa relação de
dependência, este almejava objetivos mais amplos, isto é, uma reforma agrária que
no fundo, visava a nacionalização de terras além do limiar de intervenção, a
expropriação de terras de absentistas e sua redistribuição em regime de posse útil
aos lavradores meeiros/parceiros que já as exploravam em regime de parceria ou de
arrendamento. Pretendia também transformar a parceria em arrendamento
considerando que este era um sistema mais justo. E, dessa forma, aumentar a
produtividade agrícola e a taxa de exploração dos solos que por sua vez melhoraria
as condições de vida das populações. Segundo SORJ (1998), “uma política agrária
preocupada com as consequências sociais da modernização pode procurar amenizar
os impactos sociais, além de favorecer um padrão mais igualitário de distribuição da
riqueza gerada no campo” (1998, p.3). Essas medidas denunciavam um governo de
Cabo Verde preocupado com a condição social da maioria da população do país
recém-liberto, indo ao encontro da ideia de SORJ (1998) segundo a qual, moralmente,
a reforma agrária se sustenta na ideia de que a terra é um bem social e que a grande
propriedade é injusta.
A reforma agrária encontrou pontos de partida diferentes nas diversas ilhas do
país, realidades heterogéneas mesmo dentro da mesma ilha, como foi e é o caso de
Santo Antão. Mas a sua implementação terá sido pensada como um projeto comum
que seria materializado de igual forma em cada uma das ilhas. Enquanto Ministro do
Desenvolvimento Rural, na década de 1980, Pereira Silva, admitiu, em entrevista
(2011), que não havia estudos sobre as realidades locais, antes do início da
implementação da reforma agrária, pois não havia recursos humanos que os
levassem a cabo, tampouco recursos financeiros que os sustentassem. No entanto,
relatórios, sobre a evolução do processo de reforma agrária nos diversos concelhos,
foram sendo produzidos pelas CRA, dando origem aos relatórios da CNRA durante a
década de 1980, sendo o último datado de 1990. Paralelamente, o Governo solicitou
algumas consultorias, sobre a evolução do processo de reforma agrária, à FAO, ao
longo da referida década, conduzidas por consultores externos. Tais consultorias,
segundo Pereira Silva (2011) foram solicitadas na lógica de conhecer a realidade das
45
relações de modo a fundamentar as propostas de medidas e não com a finalidade
específica de medir o grau de interesse do público-alvo em relação àquelas ideias de
reforma.
Conforme está explanado na LBRA, a intenção era realizar uma reforma
profunda, devendo essa iniciar com a transformação das formas como o homem cabo-
verdiano organizava as suas relações com a terra e das relações que se estabeleciam
entre os homens empenhados na exploração da terra (cf. Lei nº 9/II/82, de 26 de
março). Ora, levar a reforma agrária adiante, tal como foi planificada, não significaria
mexer com as estruturas relacionais seculares do arquipélago? Por um lado,
implementar a reforma agrária tal como foi desenhada, significaria mudar as estruturas
relacionais, desde sempre tensas entre o camponês sem terra e os proprietários de
Santiago o que poderia beneficiar os sem terra pela possibilidade que teriam de
aceder à terra de forma plena. Na ilha de Santiago, talvez fosse da vontade das
populações agrícolas sem terra, que essa profunda reforma se efetivasse, mas não
dos proprietários, fossem, eles, efetivos ou absentistas, dadas as assimetrias
manifestas e acentuadas tanto na estrutura fundiária quanto a nível da apropriação da
produção derivada das diferentes formas de exploração da terra. A propósito disso,
um entrevistado de Santa Catarina, Santiago afirmou:
«por aqui passamos mal. Éramos muito maltratados. Felizmente nessas ribeiras fomos
libertados e todos sabem quem nos libertou. Hoje temos nossas terras e não temos
que dividir nada com ninguém e nem ser humilhados nas portas dos morgados» (antigo
rendeiro, 84 anos, 2018).
46
Ou, “tu és o meu primo, dou-te a minha terra porque eu tenho mais terras. Eu
tenho uma terra grande e porque dou-me melhor contigo eu dou-te um pedaço para
trabalhares” (Meeiro, 61 anos).
No Porto Novo a reforma agrária teria sido desejada, e concretizada, por ser o
concelho mais pobre onde não terá havido qualquer dificuldade na implementação de
tal reforma, a acreditar nos relatos vindos do concelho,
“aqui colocavam espiões para saber o que comíamos em nossas casas. Se essa terra
fosse nossa diminuíamos o cultivo de cana-de-açúcar e plantaríamos verduras e
legumes para dar de comer às nossas famílias” (ÉVORA, 2010).
No Paul terá subsistido uma indefinição que acabaria por resultar em nada ou
em muito pouco, pois, apesar de ser o concelho mais rico, é onde se
verificavam/verificam as maiores desigualdades sociais derivadas do regime de posse
e uso da terra, até atualmente.
Entre 1975, ano da independência e 1983, ano da entrada em vigor da LBRA,
muitas iniciativas legislativas foram concretizadas no sentido de reformar as estruturas
agrárias do país. Nesta sequência, apresentarei os fundamentos da reforma agrária
em Cabo Verde acompanhados de um breve historial do que foi feito em termos de
legislação agrária no país com especial enfoque para esses primeiros anos
subsequentes à independência nacional.
48
agroindustrial. O Decreto-lei nº 7/75, de 30 de julho de 1975, proibia a celebração de
novos contratos de parceria e o subarrendamento rural14 e ditava a conversão dos
contratos de parceria em contratos de arrendamento. De igual modo, o Decreto-lei nº
18/75, de 12 de março de 1975, manteve a proibição da celebração de novos contratos
de parceria além de prever a alienação de bens imóveis de proprietários absentistas
residentes fora do país e de criar uma comissão para elaboração das leis de reforma
agrária. De entre essas primeiras medidas tomadas destaco as duas últimas
supracitadas, sobretudo a criação de uma comissão para a elaboração das leis da
reforma agrária. Iniciava assim o processo de reforma agrária.
Entre 1976 e 1977 outras medidas legislativas foram sendo adotadas no
sentido da jurisdicionalização dos conflitos agrários. O Decreto-Lei nº 8/76 de 17 de
janeiro de 1976 criou Comissões Concelhias de Reordenamento Agrário, com
exceção de Santo Antão e Fogo onde criaram-se Comissões Regionais, com poderes
para, entre outros, representar o Gabinete de Reforma Agrária, cumprir e fazer
executar as determinações legais e as resoluções do governo em matéria de
reordenamento agrário, decidir por arbitragem questões relativas aos contratos de
arrendamento rural e de trabalho rural. O Decreto-Lei nº 74/77 de 13 de agosto de
1977 atribui competência às referidas Comissões para julgar em primeira instância
causas relacionadas ao arrendamento rural e ao trabalho rural e executar pedidos de
indemnização. Esse decreto introduzia a justiça popular agrária em Cabo Verde,
afastando questões dessa natureza dos tribunais judiciários, com o objetivo de agilizar
os procedimentos destinados a dirimir os conflitos agrários.
Criou-se o Instituto Nacional de Investigação Agrária e implementou-se alguns
projetos como a PRODESA - Projeto de Desenvolvimento Integrado de Assomada,
criado pelo Decreto nº 58/79, de 9 de junho de 1979, no sentido de diversificar a
produção agrícola nas ilhas. PRODESA foi um projeto levado a cabo pelo MDR, no
âmbito do seu programa de extensão rural que levava informação técnica aos
cultivadores diretos, em relação aos tipos de solos e culturas mais apropriadas para
cada tipo com vista a aumentar a produção agrícola, para além de servir de ponte
entre o MDR e os próprios cultivadores diretos.
50
que até a presente não se sabe ao certo a quem pertencem as terras em Cabo Verde.
Seria essa incerteza uma das consequências da reforma ou da não reforma agrária?
Ao todo, a CNRA produziu dez relatórios ao longo da década de 1980 nos quais
fazia o balanço da evolução da implementação da Lei, apontava as dificuldades
encontradas no terreno, as soluções adotadas e as ilhas/concelhos com maiores
dificuldades. A ilha de Santo Antão aparece sempre como a mais difícil em termos de
desenvolvimento das atividades da sua CRA. As CRA locais produziram muitos
manuscritos dando conta dos proprietários atingidos e não atingidos pela Lei agrária,
da atribuição de posse útil e da transformação da parceria em contrato de
arrendamento em cada freguesia. Mais informações serão detalhadas na redação final
da tese.
Os estudos encomendados pelo Governo à FAO, com o objetivo avaliar o
desenrolar do processo de reforma agrária a nível nacional e apresentar subsídios
que pudessem fundamentar novas decisões, mostram uma excessiva preocupação
das autoridades para com a ilha de Santo Antão o que pode prenunciar tanto a
complexidade quanto a fragilidade do processo na mesma. De Santiago, sobretudo
dos concelhos de Santa Catarina e Santa Cruz levantaram informações muito
detalhadas sobre o andamento do processo de reforma, dados que serão analisados
na redação final da tese. Não obstante, por serem estudos realizados a pedido do
Governo, o principal decisor do processo de reforma, certamente reproduzirão o
discurso oficial sobre tal processo pelo que se torna imprescindível captar as
narrativas dos demais atores, sobretudo daqueles que contestaram o processo para
as articular com essas informações a fim de reconstruir, com maior equilíbrio, o
processo de reforma agrária em Cabo Verde.
Em relação à ilha de Santo Antão, há um romance de G. ALMEIDA (2000),
intitulado «O dia das calças roladas» que se concentra a volta dos relatos dos
acontecimentos entre os dias 30 e 31 de agosto de 1981. Apesar do seu caráter
ensaístico é um trabalho que não deve ser ignorar, pois o próprio autor acautela o
leitor de que baseou em fatos reais para o produzir. Tentou demonstrar, a partir dos
depoimentos dos que se viram envolvidos na contestação popular sobre a discussão
do Anteprojeto de LBRA, o ambiente que se vivia naquelas ribeiras, mas apenas entre
os dias da sublevação, pese embora traga pistas relevantes de investigação. Os
depoimentos que recolhi no terreno corroboram com os relatos feitos pelo autor. O
51
autor escreve, por exemplo, sobre a questão da falta de consciência de classe que
terá levado à desorganização dos camponeses da ilha. Ora, a LBRA previa,
justamente, a participação organizada dessa franja social, participação essa que
segundo Pereira Silva (entrevista, 2011) seria difícil de conseguir. O antigo dirigente,
em entrevista (2011), responsabiliza essa falta de consciência de classe desse grupo
social pela incompreensão da LBRA e o consequente aproveitamento da situação por
parte de determinadas elites do Concelho que terão instigado a manifestação de
Coculi.
MONTEIRO (2001) no ensaio «Recomposição do espaço social cabo-
verdiano» confrontou as opiniões de pessoas anónimas com as de representantes do
governo na ilha de Santo Antão, aqueles a quem foi incumbida a responsabilidade de
socializar o Ante-Projeto da LBRA com os camponeses. Ele tentou mostrar as
dificuldades porque passaram para levar adiante as reuniões de socialização da Lei
bem como as perturbações das populações locais às salas de reuniões. Conversando
com atores locais em 2011 pude apurar relatos que corroboram essas ideias,
sobretudo em relação ao vale da Garça, Chã de Igreja, Caibros e Coculi. MONTEIRO
(2001) procura trazer uma análise mais sociológica, onde tenta ouvir e confrontar as
diversas versões sobre a sublevação popular de Coculi em algumas partes da sua
obra.
Há também um ensaio de SILVEIRA (1991), «A tortura em nome do partido
único: o PAICV e a sua polícia política» onde trouxe, talvez pela primeira vez, dado o
contexto sociopolítico anterior a essa data, uma versão dos fatos das pessoas15
considerados incitadoras da sublevação de Coculi, as prisões e torturas que sofreram
e as duras penas cumpridas. O livro relata a história dos dois mortos registados na
sequência do conflito: Osvaldo Rocha que terá morrido em decorrência dos maus
tratos que terá sofrido, desde a sua prisão na escola central de Povoação – Santo
Antão, às péssimas condições de transporte em que os presos foram levados para
São Vicente, os choques elétricos a que foram submetidos, privação de sono, fome e
15 Muitas dessas pessoas conheci, uma vez que sou natural da ilha de Santo Antão, Concelho da
Ribeira Grande, Freguesia de Santo Crucifixo. Muitas vezes ouvi seus discursos, nos palanques, em
tempos de campanhas eleitorais depois da abertura política. E sempre tive essa curiosidade de saber
o que era a reforma agrária. Do que se tratava? Lembro-me de meu pai entrando em casa, tinha eu 3/4
anos de idade, dizendo: «pióbós te k reforma agrária» e lembro-me também de meu irmão mais velho,
na altura pertencia à tropa, a vestir o seu uniforme verde camuflado. Essas palavras ressoaram na
minha cabeça desde então. E eu nunca tinha entendido o que tinha acontecido de fato?
52
muitas outras situações desumanas; Adriano Santos que terá tentado desarmar um
soldado e terá sido atingido mortalmente, lá mesmo em Boca de Figueiral de Coculi.
ÉVORA (2009) no seu artigo intitulado «Sociedades rurais africanas, Dinâmicas
da “Tradição”» traz um conjunto de depoimentos de parceiros/meeiros que se
mostravam cansados, fartos dos abusos do proprietário de todas as terras agrícolas
de Tarrafal de Monte Trigo, no Concelho do Porto Novo. Denota-se a ansiedade dos
lavradores meeiros para que a LBRA entrasse em vigor para poderem se ver aliviados
dos pesados encargos e, finalmente, a trabalhar para si próprios e não para dividir
com o proprietário.
SANTOS (2016) fez um estudo socio-antropológico intitulado «A reforma
agrária em Cabo Verde: estudo de caso no Concelho da Ribeira Grande de Santo
Antão» onde tenta mostrar os aspetos que influenciaram esse processo e o seu
impacto na estrutura fundiária do referido concelho. Mostra a evolução da estrutura
fundiária do Concelho da Ribeira Grande de Santo Antão bem como as interferências
sociais que condicionaram o processo de implementação da LBRA.
Em relação à Santiago, FURTADO (1993) com a obra «A transformação das
estruturas agrárias numa sociedade em mudança: Santiago, Cabo Verde» dedica todo
o capítulo I, da II parte da obra à questão agrária, mas apenas em Santiago. Na obra
«O partido e a questão agrária: uma investigação sobre o trabalho político no campo,
1986, uma edição do Instituto Amílcar Cabral» os autores tentam explicar os
meandros da reforma agrária, especificamente em Santa Catarina de Santiago e
Santo Cruz. Esse livro aborda questões tais como: como neutralizar o poder dos
proprietários, ou mobilização e organização dos rendeiros, para mostrar o
investimento que o partido terá feito no interior da ilha de Santiago.
M. SILVA (1992) também publicou um estudo encomendado pela FAO,
intitulado «Iniciação ao conhecimento sociológico do meio rural cabo-verdiano» que
pretende ajudar a compreender e interpretar conceitos e dados do meio rural cabo-
verdiano, nomeadamente aqueles que são utilizados nos inquéritos atualmente.
De realçar que outros estudos de caráter restrito e confidencial foram feitos e
deram origem a relatórios de circulação restrita entre o pessoal afeto ao Gabinete de
Reforma Agrária. Tais relatórios poderão ser consultados atualmente e trazem muitos
dados que poderão permitir conhecer melhor as nuances do desenrolar do processo
53
de reforma agrária, se forem bem articulados com as narrativas a serem recolhidas
do terreno.
16
Aqui abro um parêntesis para explicar que na minha dissertação de mestrado intitulada: “La Réforme
Agraire au Cap-Vert: Une politique publique inachevée, IEP-Bordeaux, 2015” tive muitas dificuldades
para traduzir termos utilizados no contexto rural cabo-verdiano para o francês. Termos como Djunta-
mon, meia, dízimo, parceria, guarda, sesmaria, morgadio, capela, conta própria… Porque métayage e
métayer ou louayer e fermier não traduzem, na íntegra o sentido que realmente as expressões originais
cabo-verdianas representam. Por exemplo medir a propriedade em litros, que é utilizado nos inquéritos
do INE e ter que converter em hectares em francês.
54
exploração lhe pertencem, desde utensílios de trabalho, ao capital empregue bem
como as sementes ou estacas de plantas. A preparação do terreno para receber as
culturas bem como a sua preservação contra a erosão com muros de proteção,
também estão a seu cargo. Ele pode recorrer ao trabalho familiar, envolvendo todos
os membros da família, bem como outras formas de trabalho, tais como: “djunta
mon17”, que consiste na “troca de dias de trabalho entre membros de explorações
agrícolas diferentes ou outras pessoas” (SILVA, 1992:30); e nas ajudas de pessoas
de outras explorações agrícolas à título gratuito ou pago, contratando pessoas e
pagando o seu salário por cada dia de trabalho (SILVA, 1992). Todo o trabalho fica
sob a sua gestão direta.
Quanto à exploração indireta é aquela em que o proprietário, ou outrem com
poderes legais para o efeito, entrega a exploração de prédio rústico a terceiros,
limitando-se a receber a respetiva retribuição (Lei nº 9/II/82 de 26 de março). Nesse
tipo de exploração entram “a renda, exploração por outrem que paga uma renda fixa
anual ao proprietário em género ou em dinheiro; o comodato, exploração gratuita da
terra por outrem; e a parceria, exploração mediante a entrega de parte da colheita ao
proprietário” (SILVA, 1992:30). O proprietário não comparticipa para fazer a terra
produzir, em qualquer dos casos. Geralmente essas responsabilidades pertencem ao
cultivador direto. Por isso, cultivador direto e conta própria, tratado acima, não se
confundem, pois, no caso do cultivador direto a terra pode não lhe pertencer. A título
ilustrativo trago extratos de uma carta dos proprietários de Santo Antão, dirigida ao
Primeiro Ministro, em 1977, onde afirmavam existir um clima de interajuda entre eles
e seus lavradores, fazendo crer que as responsabilidades eram partilhadas. Vejamos:
“(…) as relações entre os donos de bocados de ‘tchom18’ e os lavradores nunca foram
antagónicas, nunca foram de exploração, antes se desenrolaram sempre sobre a
égide da moral e do direito, num clima de perfeita interajuda” (TEÓFILO, 1992). Isso
foi relatado também por proprietários nas entrevistas de 2011, em Santo Antão: “nós
aqui dávamo-nos muito bem com os nossos lavradores. Somente essa reforma
agrária é que veio tentar estragar tudo”. Mas, na mesma carta, acabaram por
17 Na tradução literal significa juntar as mãos, em sentido de ajuda. Eu te ajudo hoje, na tua propriedade
e tu me retribuis, na minha, amanhã ou quando puderes. Geralmente envolve familiares. Lembro-me
que em Santo Antão as propriedades do meu pai e do meu tio, ficavam lado a lado. No tempo das
chuvas, pegávamos de um lado e terminávamos no outro. Todos juntos, primos, sobrinhos, irmãos,
mulheres, crianças, todos eram envolvidos no trabalho de “djunta mon”, na sementeira, na monda, na
remonda e até no guardar corvos e pardais e na colheita.
18 “chão”
55
demonstrar que, na verdade, tal responsabilidade era deixada a mercê dos
cultivadores diretos. Veja-se:
“mas a história mostra que é o lavrador que, ao longo dos anos, tem a posse física (…),
faz e desfaz conforme lhe aprouver e que o proprietário só conhece a propriedade – e
quando lá vai – no fim do ano apenas para receber aquilo que o lavrador diz ser sua
parte, digo metade” (TEÓFILO, 1992:11).
57
esse tipo de empreendimento. Nem mesmo no concelho da Ribeira Grande, onde
predomina o sistema de parceria entremeado de relações de parentesco, compadrio
e amizade entre proprietários e seus parceiros (TEÓFILO, 1992; e DELGADO, 2016).
A LBRA (1982) classificou as cooperativas como unidades de produção agrícola, isto
é, uma universalidade de bens e serviços organizada distintamente com vista ao
exercício da atividade agrícola. Torna-se necessário distinguir cooperativas de
consumo (aquelas que se destinavam à comercialização de bens provenientes da
EMPA) de cooperativas agrícolas (aquelas que envolviam o cultivo da terra em regime
cooperativo, a produção e utilização dos bens cooperativamente). Em entrevista, um
de meus interlocutores de Santiago afiançou-me que “os sócios podiam trabalhar
individualmente a parcela que lhes fosse indicada e/ou trabalhar na parcela conjunta.
No final, juntava-se a produção e cada um recebia dividendos conforme o seu
trabalho, (sócio de cooperativa, 76 anos).
Visitei algumas cooperativas na ilha de Santiago, nomeadamente a de Achada
Fazenda, a de Justino Lopes, a da Várzea de Santana, estas ainda em atividade, e as
de “Nhara Lopi” e “Abel Djassi” que estão inativas, atualmente. De acordo com a LBRA
as cooperativas assegurariam a participação organizada dos camponeses,
juntamente com outras formas de exploração coletiva da terra por trabalhadores e das
autarquias locais no processo de reforma agrária. Assunto que será retomado na
redação da tese.
Tanto em Santiago quanto em Santo Antão ouvi a expressão «guarda». O
sistema de guarda era utilizado nas explorações cafeícolas, em Santo Antão, mais
precisamente no Paul (SIGRIST, 1986). Segundo esse autor no sistema de guarda
aplicado no Paul, este, para além de guardar a propriedade, prestava serviço dentro
dela em troca de um pedaço de terra, normalmente o mais distante da água, o mais
árido e de mais difícil cultivo. Se o guarda habitasse com sua família dentro da
propriedade, até para cobrir a casa, de palha ou para levantar uma parede, no pedaço
que lhe tocava, teria que obter a permissão do proprietário. E se a propriedade fosse
assaltada quem pagava o prejuízo, com bens, dinheiro ou trabalho era o guarda
(SIGRIST, 1986). Nalguns extratos das entrevistas, em Santiago, o guarda é
caraterizado de boa pessoa, que mantinha boas relações com os trabalhadores rurais
em algumas regiões como Boa Entrada e Telhal, e que até era padrinho de filhos de
rendeiros. Mas noutras localidades como Picos e Achada Falcão essa figura era tão
58
ou mais odiada que o próprio proprietário. Segundo TEÓFILO (1992:8) referindo-se a
Santiago, “guarda era o camponês contratado para guardar a propriedade,
representar o dono no recebimento das rendas e especialmente vigiar os cultivadores
para que não se apropriassem dos frutos colhidos antes da partilha ou ‘meia’”. Aqui o
guarda podia plantar pequenas áreas, receber ‘comissão’ das rendas recebidas, mas
devia prestar trabalho gratuito e obrigatório nas terras do proprietário. Esses fatos
distinguem o guarda de Santo Antão do de Santiago e ainda permitem compreender
o ódio que os rendeiros nutriam por essa figura, em Picos ou em Achada Falcão. A
relação entre o guarda e a população residente era muito tensa, porque, além de ser
o guarda ele era também aquele que fazia quase que o papel de morgado, na
cobrança das rendas aos rendeiros e parceiros. Ele ganhava para aquilo. No caso, se
a renda não fosse cobrada, como deveria, perderia as suas comissões ou, ele mesmo,
poderia ser destituído do cargo em que dispunha de algumas regalias em relação aos
demais trabalhadores das terras sob a sua guarda. Era de seu interesse.
Em Santo Antão o guarda não tinha comissões a receber pois predominava a
parceria. No caso o proprietário ia pessoalmente receber a sua parte até para poder
conferir o volume da produção e, por vezes, receber o dízimo. Não teria interesse em
delegar essa função a outrem. Esses assuntos serão retomados na redação final da
tese, momento em que farei uma caraterização mais detalhada, por concelho, com
dados sobre área cultivável em litros, estrutura fundiária antes do início do processo
de reforma agrária, formas de exploração da terra e população agrícola. Como já foi
referido, minha análise se centrará, mais especificamente, nos concelhos de Santa
Cruz, São Lourenço dos Órgãos, São Salvador do Mundo e Santa Catarina de
Santiago e Porto Novo, Paul e Ribeira Grande de Santo Antão. Urge mostrar a
evolução da estrutura fundiária, dos regimes e das formas de exploração agrícola
antes e durante a reforma agrária e após o fim do processo.
59
Santo Antão abrange os três concelhos com especial incidência para os de Ribeira
Grande e Porto Novo.
Na recolha dos dados deparei com um constrangimento. Não existem dados
da população total de 2004 e sim de 2010, uma vez que o censo populacional em
Cabo Verde se faz normalmente de dez em 10 anos. Em contrapartida existem dados
do censo agrícola de 2004, mas sem dados gerais sobre a população. À data da
extração destes dados ainda não havia sido publicado o relatório final do Censo
Agrícola de 2015. Mas pretendo trabalhar com dados mais próximos do espaço
temporal em análise, na intenção de mostrar o desenrolar do processo de reforma
agrária entre 1975 (por ser o ano da independência e do início do processo de reforma
agrária) e 1993 (por ser a ano de revogação da LBRA). Para ultrapassar esse
constrangimento, decidi analisar os dados tentando aproximar comparações. Estou
ciente dos riscos que corro, mas, por ora, foi o possível a ser feito. Assim sendo, os
dados sobre a população agrícola, que aqui trago, referem-se ao censo agrícola de
2004 e os da população total e rural, ao censo populacional de 2010. Entretanto, esses
permitem extrair algumas ilações, visto que o espaço de tempo entre os censos é
relativamente curto o que poderá não acarretar alterações muito estruturantes.
60
Para FERRINHO (1987) o que existe é uma população rural constituída por dois
segmentos: «a população rural agrária (aquela que tira os seus proventos
principalmente da agricultura e/ou pecuária) e a população não agrária (ferreiros,
pequenos comerciantes, etc.)» (FERRINHO, 1987:101). Significa que a primeira se
refere à população agrícola e a soma das duas categorias daria a população rural.
O quadro I mostra dados sobre as áreas cultiváveis, em litros, a população
agrícola e a população rural das ilhas de Santiago e de Santo Antão, respetivamente,
em comparação com a população total de cada uma. E traz dados referentes aos
mesmos itens sobre Cabo Verde, precisamente para mostrar a dimensão que as duas
ilhas alcançam no contexto do arquipélago.
Quadro I - Dados área cultivável em litros e população agrícola
Pop. % Pop. % Pop.
Ilha Regadio Seq./Reg. Sequeiro Total
agrícola Rural/2010 Total/2010
Santiago 11.035 1.542 221.207 233.783 127.731 46.6% 107.471 39.2% 273.919
Santo Antão 17.829 3.371 71.027 92.228 31.776 72,3% 28.597 65.1% 43.915
Total 28.864 4.913 292.234 326.011 159.507 50,1% 136.068 42.7% 317.959
Cabo Verde 34.755 5.884 402.945 443.588 222.254 45,2% 188.010 38.2% 491.683
Fonte: INE, 2004.
61
e muitas vezes as populações têm de se deslocar à Cidade da Ribeira Grande ou à
da Ponta do Sol para aceder a tais serviços.
Quanto à Santiago dados do INE (2010) mostravam que a Praia, capital de
Cabo Verde, é essencialmente urbana. Apenas, 2,9% da população vivia no meio
rural. É onde se concentra a maior parte da população da Ilha e uma boa taxa de
concentração da população total do país. Segue-se Santa Catarina que apesar de ter
uma excelente concentração da população de Santiago Norte permanece um
município essencialmente rural. Pelos dados do censo de 2010, 72,2% (INE, 2010) da
população vivia no meio rural. De igual modo, em Santa Cruz, o terceiro município,
em termos de concentração populacional, 64,9% da população vivia no meio rural, em
2010. Os outros concelhos são bastante rurais e de densidade populacional dispersa
com poucos núcleos de população urbana (ver Quadro II). Nalgumas cidades como
São Domingos, Picos e Órgãos, há dificuldades em perceber onde termina a cidade e
onde começa o campo.
Quadro II – Dados da população rural por concelho
Ilha Concelho Total Pop. Rural %
Santo Antão Ribeira Grande 18.890 14.265 75.5
Paul 6.997 5.734 81.9
Porto Novo 18.028 8.598 47.7
Santiago Tarrafal 18.565 12.388 66.7
Santa Catarina 43.297 31.271 72.2
Santa Cruz 26 609 17.264 64.9
Praia 131.602 3.770 2.9
S. Domingos 13.808 11.225 81.3
S. Miguel 15.648 11.428 73.0
S. Salvador do Mundo 8.677 7.271 83.8
S. Lourenço dos Órgãos 7.388 5.686 77.0
Ribeira Grande Santiago 8.325 7.111 85.4
Elaborado a partir de dados: INE (2010)
62
atualmente ainda dependem muito das atividades agrícolas, continuam ligadas à terra.
Mas se regressarmos ao fato de que alguns dos municípios de Santiago foram criados
apenas em 2005 percebemos que a população rural em 2004 era muito maior tendo
em conta que São Salvador do Mundo, São Lourenço dos Órgãos e Ribeira Grande
de Santiago seriam zonas totalmente rurais. Os dados mais recentes sobre a
população de Santiago (INE, 2010) mostram uma população total de 273.919
habitantes. Segundo os dados do recenseamento agrícola de 2004, essa ilha possuía
uma população agrícola estimada em 127.731 habitantes distribuídos por seis
concelhos. Com a criação de novos concelhos em 2005 (Lei, nº 67/VI/2005), a ilha
conta hoje com mais três, perfazendo um total de nove. Comparando os dados de
2010 com os de 2004 teríamos cerca de 46.6% de população agrícola na ilha de
Santiago. Santo Antão possuía em 2010 uma população total estimada em 39.325
habitantes. A população agrícola era de cerca de 31.776 habitantes. Comparando
esses dados de 2004 com os de 2010, em relação à população total teríamos cerca
de 72.3% de população agrícola em Santo Antão
Apoiando nesses dados pode-se indagar que Santiago e Santo Antão, são, de
fato, duas ilhas essencialmente de camponeses, no sentido de que a maior parte da
sua população vive em zonas rurais ou está ligada a atividades agrícolas, sendo que
delas depende boa parte do seu rendimento. E que Santo Antão é ainda mais rural do
que Santiago, com os seus 72,3% de população agrícola bem como 68.3% de
população rural. É uma das médias mais altas no contexto do arquipélago. O que
poderá explicar esse contraste é que apesar de Santiago conter mais de metade de
todas as terras cultiváveis e da população total do país, alberga a capital do país, que
é, naturalmente, a região mais urbana, com cerca de 97,1% de população urbana.
19
1 litro = 1000m²
63
71.027 litros destinada às culturas de sequeiro, 17.829 ao regadio e 3.371 ao
regadio/sequeiro.
Quadro III - Formas de exploração da terra nas ilhas de Santo Antão e
Santiago
Ilha Conta Própria Parceria Arrendamento Usufruto e Comodato Aforamento
20 21
Seq. Reg . Seq. Reg. Seq. Reg. Seq. Reg. Seq. Reg.
Santiago 53% 68% 19% 12% 24% 1% 3% / 1% 1% / IN⃰. 2,2% 1,5%
Santo Antão 63% 62% 23% 30% 2% 6% 3% / 0% 2% / IN. 4% IN.
Cabo Verde 54% 62% 29% 21% 15% 10% 5% / 3% 6% / 0,9% 0.5% 0,1%
Fonte: INE, 2004. IN⃰. = inexistente
20 Seq. – sequeiro – terreno cultivado apenas na época das chuvas, que em Cabo Verde se verifica
entre os meses de julho/agosto até outubro de cada ano. De realçar que nem sempre chove.
21 Reg. – regadio – terreno irrigado e que pode ser cultivado durante todo o ano.
64
4. CAPÍTULOS INDICATIVOS DA TESE
Introdução
Objetivo geral
Objetivos específicos
Perguntas de pesquisa
Hipóteses
CAPÍTULO I - Capítulo metodológico
65
3.2.3. População agrícola e rural de Santiago.
3.2.4. Superfície agrícola e formas de exploração em Santiago.
(Este Capítulo visa conhecer a realidade fundiária das duas ilhas antes do início do
processo de reforma agrária).
5.1. As narrativas
CONCLUSÃO
66
5. RELATÓRIO DE PERCURSO
67
uma tendência atual na antropologia dinâmica. Deu-nos uma visão clara de como
materializar um projeto de pesquisa etnográfica e das ferramentas que devemos
mobilizar numa pesquisa desta natureza. Muito útil para nós que estávamos na fase
de produção dos nossos projetos de pesquisa, sobretudo na questão da escolha da
metodologia que melhor responda às nossas necessidades científicas.
De igual modo, o seminário de Chloé Buire descreveu-nos o processo de
construção de uma pesquisa etnográfica. Uma mais valia para nós que estávamos
prestes a iniciar ou que já tínhamos iniciado o trabalho de campo. E as indicações
bibliográficas que ela foi nos introduzindo ao longo da sua exposição que nos
permitirão dar continuidade à exploração e análise bibliográfica depois do seminário.
Falou-nos da dimensão espaço vivido – que são as representações imaginárias
valores e símbolos que associamos ao espaço. Neste aspeto me lembrei da questão
da territorialização, desterritorialização, reterritorialização trazidos num texto de Sérgio
SCHNEIDER (2009) e comecei a pensar como integrar isso na minha tese. Tendo em
conta que o mundo rural se apresenta como espaço multivariado e objeto desse tipo
de apropriação e que no meu caso o meu espaço, campo de pesquisa, foi palco de
conflitos, acomodações e silenciamentos, talvez devido à forma como foi apropriado.
É o espaço enquanto dimensão representacional. Para além do espaço vivido aflorou
também o espaço concebido, aquele idealizado e materializado por atores que lhe são
exteriores. E pensei no processo de reforma agrária, pensado homogeneamente para
realidades heterogéneas. E que esse espaço concebido quereria dominar o espaço
vivido por exemplo.
Essa investigadora alertou-nos para as armadilhas que o campo de pesquisa
pode nos reservar e as forma para remediar a situação e assim, extrair informações
mais pertinentes possíveis para as nossas pesquisas. Por exemplo; como quando e
onde tirar notas escritas, quando escrever no diário de campo em caso de pesquisa
etnográfica. O lema, olhar refletir sobre o olhar e depois tentar captar. A ideia com
que ficamos é que notas bem tomadas e com cuidado adicionam muito valor nas
nossas pesquisas. Mesmo quem não faz observação participante e sim entrevista é
melhor escrever como estava a mesa as cadeiras e ajuda a se lembrar do contexto.
Cada dia em que há uma interação na nossa pesquisa conta.
A certa altura deve-se tomar rédea da situação para poder escrever as notas
como deve ser. Cada interação tem valor e interesse no tempo de reflexão e escrita.
68
Tomar notas não é apenas escrever é também refletir e começar a separar o que é
factual do que é análise. Planear o tempo como tempo de pesquisa e não quando tiver
tempo. Há coisas que fazem parte da nossa pesquisa e não podemos fugir delas.
Gravar a si própria e tirar notas diretamente no computador e organizar as coisas.
Entrada de diário devidamente detalhada e contextualizada. Se preciso enviar sms a
mim mesma.
Por vezes podemos nos aborrecer e quando é assim há que procurar
alternativas. Mas também faz parte da pesquisa e tem valor, por exemplo não saber
o que fazer ou o que perguntar. Quando é assim voltar a ler as notas que se tomou.
Fazer fotografias e pequenos filmes ajudam muito, segundo Buire. Quando se
faz fotografia tem de se chegar em casa e organizar as fotografias no computador. Eu
preciso pensar em tudo isso na organização do trabalho, não precisa guardar tudo e
há que escrever uma nota em algum sítio previamente escolhido para lembrar que
existem fotos do dia X na pasta X do meu computador. O fato de organizar vai mostrar
o que falta para poder tirar depois. É bom levar sempre a máquina e ir com o objetivo
de tirar fotos. É preciso filmar e tomar os Filmes como notas visuais.
Quanto às entrevistas é preciso saber adaptar e saber que não posso mudar
quem sou. Fazer a entrevista com transparência para dizer quem somos, com
honestidade. Explicar a nossa origem, o que estamos fazendo. Tem de haver uma
relação de confiança e transparência é a melhor base para trocar informações. Saber
o que queremos com a entrevista e apresentar-se de forma honesta. É preciso garantir
a confidencialidade das informações. Se não existe uma metodologia perfeita,
devemos é utilizar o que melhor nos convém para a nossa pesquisa. Mandar as
pessoas desenhar e depois fazer a interpretação das imagens, por exemplo, também
é válido. Entrevistas coletivas, “focus group”, também são válidas. Fiz pelo menos
duas entrevistas coletivas em Boa Entrada e na Ribeira dos Engenhos em dezembro
de 2018. O que notei é que há sempre um que quer monopolizar a palavra ou se sente
mais competente a falar. Nota, a entrevista coletiva foi sugerida pelos meus
interlocutores pelo que não pude fugir.
Por sua vez, Lumumba Shabaka aprofundou-nos, um pouco mais, a História da
África no século XIX e a questão do fim da escravidão em Cabo Verde. Um seminário
que versou temas relativos à transição do tráfico negreiro para o comércio legítimo em
África. Voltado para o impacto que o tráfico terá tido nos diversos domínios da vida
69
das sociedades africanas atingidas. Também abordamos a questão da abolição e do
tráfico clandestino.
Ângela Coutinho trouxe-nos um debate sobre o processo de luta de libertação
nacional através da análise de trajetórias de dirigentes do PAIGC. Discutimos
questões relacionadas com a utilização de fontes históricas na construção de
trajetórias políticas.
Alguns seminários foram de muita valia para o meu projeto de pesquisa. O de
Kasper Juffermans e Bernardino Tavares e o de Elizabeth Hoffman, por exemplo. O
primeiro porque versava um tema que continua a criar alguma confusão. Afinal, a
etnografia é ou não um método de pesquisa? Pelo que nos mostraram é um método
que integra várias técnicas de recolha e análise de dados como sendo: a observação
participante, a deslocação ao campo de pesquisa por um período mais ou menos
longo, considerado adequado para uma boa recolha de dados e formas de tratamento
dos dados muito específicos. É um método que permite fazer estudo de caso, traçar
trajetórias de vida, etc. Mas numa aula de antropologia a professora Jaqueline Pólvora
nos disse que a etnografia não é uma metodologia de pesquisa, enquanto numa outra
aula de metodologia com a professora Miriam Vieira ela reafirmou-nos a ideia de que
a etnografia é sim uma metodologia de pesquisa. Levantada que foi a polémica cabe
agora a cada estudante decidir como encarar a etnografia a partir da experiência
individual que terá no respetivo campo de pesquisa. Particularmente acabei por
convencer-me de que a designação do método a seguir depende de cada pessoa e
da natureza da sua pesquisa. De fato, a etnografia permite um leque enorme de
possibilidades, digamos que é algo mais amplo, os franceses diriam, «boîte à outil»
dos cientistas sociais, sobretudo, os ligados a pesquisas antropológicas e
sociológicas. Cada um é livre para decidir qual método adotar e como proceder na
sua análise de dados. O importante é que o seu tema seja, relevante socialmente,
exequível e pertinente.
Quanto ao seminário sobre a integração do género nos projetos de
desenvolvimento em África, achei muito pertinente, porque é uma literatura
relativamente desconhecida para mim. Mas é fácil perceber que a mulher, sobretudo
a mulher africana, carece de empoderamento em várias matérias. Nas palavras do
presidente da República de Cabo Verde, Jorge Carlos Fonseca, em África a pobreza
tem o rosto feminino. Torna-se importante saber como integrar a mulher em projetos
70
de desenvolvimento e sobretudo como ampará-la? Sim, porque segundo Hoffman há
casos em que diante do sucesso dos seus empreendimentos há mulheres que perdem
os maridos e ficam numa situação instável a nível familiar porque simplesmente os
maridos não aceitam o sucesso das esposas. Tais foram os casos estudados por
Hoffman no Senegal, em que segundo a investigadora, foi preciso ajudar as mulheres
também na parte psicológica após o fim do casamento. Significa que a mulher é
frequentemente encontrada em situação de vulnerabilidade pois se não tiver recursos
sofre e se arranjar recursos próprios sofre na mesma. Segundo Hoffman, é preciso
desenvolver novas alternativas entre as quais o empoderamento da mulher. O que
significa para ela: o poder de; o poder sobre; o poder interior; e o poder com. É
importante que as mudanças sejam significativas para o público alvo, neste caso não
só as mulheres, mas também as meninas. Na sequência, comecei a pensar em incluir
a questão na minha tese, não como matriz teórica de primeiro plano, e sim, como um
capítulo para mostrar qual terá sido a participação das mulheres no processo de
reforma agrária.
Num segundo ciclo de seminários Benedita Bastos trouxe-nos um tema ligado
à metodologia de pesquisa que versou sobre a memória e sua utilização em pesquisas
nas Ciências Sociais. Afloramos ideias tais como: como construir uma autobiografia?
Quais são os limites na construção de uma autobiografia? Autores que estudam sobre
a memória. Realçamos o fato das memórias serem sempre uma reconstrução,
diferente de quando se trabalha com fatos. A memória trabalha com interpretação e
análise. É uma reconstrução do passado, mas é uma reconstrução do real.
Abordamos os tipos de memória: memória oficial e extraoficial. Vejo que pode ser
interessante trabalhar com isso na minha tese, pensando em confrontar os
documentos oficiais com a memória das pessoas sobre a reforma agrária.
Segundo Benedita-Bastos o mais importante é a utilização pessoal dos
conceitos. A memória recobre diferentes realidades e formas de presença do passado
e por isso se situa numa confluência dos vários domínios de estudo. E nós temos que
ser transdisciplinares e ver pessoas de outras áreas que podem colaborar connosco
nas nossas teses.
Falar da memória enquanto objeto científico quer dizer que ela é utilizada como
fonte para reconstruir o passado no futuro. HALBACKS (2004) explica que é uma
atividade que não se reduz a uma simples representação do passado. Nos anos 1970,
71
a história oral e a reflexão historiográfica contribuíram para um interesse renovado da
história e colocaram o estudo da memória como meio de acesso privilegiado ao
conhecimento dos silêncios e dos silenciados e esquecidos da história, dos excluídos
da historiografia oficial. A história oral pode recuperar essas partes silenciadas da
história. Encontrei um elo de ligação com o meu tema, quando, no terreno deparei-me
com situações em que meus interlocutores se recusavam a falar sobre o meu tema o
que indicia um certo mistério, um certo tabu em relação à reforma agrária. Porque
meus interlocutores não quererão falar do assunto? Uma pista para seguir.
Uma outra ideia a explorar é a questão levantada por STOLLER (2001) -
ansiedade dos dominantes que os leva a não contar a história dos dominados, dos
silenciados. Isto parece remeter para a questão dos estudos pós-coloniais que
pretendo explorar na minha tese. Segundo STOLLER (2001) os autores devem
estudar os dominantes para mostrar como os saberes e as práticas de dominação
estão cheias de falhas por entre as quais os dominados entram e criam bolsas de
resistência. Uma ansiedade epistémica da dominação. Para mostrar que há zonas
escuras no discurso dos dominantes. Seria interessante demonstrar isso na minha
tese. Porque a Reforma agrária por muito tempo não era nem assunto esporádico de
cafés. Bastos remeteu-nos para James C. Scott, dominação e a arte de resistência /
as armas dos fracos / economia moral dos camponeses que aborda as resistências
subterrâneas. Este autor que trabalhou a partir de canções, de textos orais de alguns
grupos nómadas, discursos subterrâneos. São formas de resistências que nem
sempre são tidas em conta enquanto tais. A resistência não é apenas quando se vai
para um confronto aberto. Há outras formas de resistência que não foram trabalhadas
por pesquisadores porque pareciam não ter sido importantes. Ele contraria essa
tendência e reafirma essas formas de resistência tão legitimas quanto às outras.
Bastos remeteu-nos para Hayden WHITE (2001) sobre tópicos do discurso, “Michel
de Certeau et l’écriture de l’histoire” (DOSSE, 2003) e os usos sociais da memória.
São materiais que ajudarão a analisar o meu objeto de estudo. A violência política
pode ser encontrada de forma horizontal não apenas na vertical, no sentido
descendente. Isto lembra a ação dos capatazes em Santiago que constrangiam
pessoas das suas achadas e cutelos no pagamento das rendas e o caso do Tarrafal
de Monte Trigo onde os próprios colegas dos lavradores, seus supostos amigos ou
72
mesmo vizinhos que iam de casa em casa verificar o que cada um comia para
denunciar nos proprietários.
Chamou atenção dos laços entre memórias e catástrofes no sentido de que
qualquer catástrofe é fundadora de uma memória coletiva – como somatórios
possíveis de memórias individuais. A memória coletiva segundo HALBWACHS (2004)
aflora duas problemáticas sobre a memória: a memoria como produto de uma
reconstrução do passado elaborada com elementos do presente. Isto operou uma
mudança radical nos estudos de memória. Pois mostra que toda a reconstrução é uma
escolha entre aquilo que foi esquecido. Nós escolhemos o que queremos lembrar
entre os esquecidos. A memória não pode ser pensada como um conjunto de
lembranças das consciências pois sendo assim esvaziava a própria ideia de memória.
RANCIÈRE (1996) diz que a memória é um certo arranjo de vestígios ou monumentos
uma certa forma de reorganizar e arranjar signos ou vestígios. Ela traduz uma certa
forma de ordenar vestígios e sinais. A reflexão de RANCIÈRE (1996), nos permite
compreender as políticas da memória como dissenso, como o questionamento do
consenso que tem levado a uma política de esquecimento deliberada em toda América
Latina, que ao longo dos processos de democratização, produziram “esferas públicas
de memória real” através de “reconciliações nacionais, anistias oficiais e fabricação
de consenso, ou ainda do silêncio procurando estabelecer formas de memória
consensual coletiva” (PERRONE, 2002:110). E da necessidade de criar espaços que
permitam a preservação não apenas da memória oficial, reproduzida através dos
discursos oficiais que questione as versões instituídas como memória oficial e, ao
mesmo tempo, compreenda que a construção de uma memória política traz à cena
pública as tensões existentes entre a História e as histórias dos indivíduos, o global e
o local, o privado e o público, o Estado e os Movimentos Sociais, PERRONE
(2002:109).
É interessante ver na minha tese como as pessoas em Santiago e Santo Antão
encaram a memória dos acontecimentos ligados à reforma agrária enquanto
processo. Como organizaram estes sinais. O importante será saber porque as
pessoas organizaram de uma maneira e não de outra. As razões que impelem as
pessoas a organizarem as coisas de uma certa forma e não de outra. A memória é
um horizonte de experiência. Que tipo de questão vão colocar? Cruzar vários tipos
de discursos, escritos e orais de homens e mulheres. Quero dar visibilidade a qualquer
73
aspeto que até aqui não tenha sido pensada ou visível. Primeiro colocar a
problemática, qual a hipótese e para chegar lá o que vou utilizar e com que tipo de
material? Bastos recomendou-nos a tentar ver o que a nossa realidade nos pede e
não aplicar conceitos tal e qual nos são dados.
Tivemos oportunidade de fazer uma ronda de reflexão sobre os nossos temas
e como interpretar dados do terreno com Cláudio Furtado. Após uma ronda sobre os
nossos projetos o professor foi dando achegas e esclarecimentos. E depois explicou-
nos o que se espera dos estudantes nas bancas de defesa dos projetos. Para
doutorandos uma introdução e dois capítulos. Um relatório com os outros capítulos
desenhados para mostrar a banca o que pensamos desenvolver ao logo da tese,
processo de construção da tese. Devemos apresentar um memorial onde
descrevemos na primeira pessoa, o processo de desenvolvimento até chegar à banca.
Como as disciplinas que cursamos foram importantes para a pesquisa e outras
atividades que desenvolvemos e que podem constituir valor acrescentado para o
projeto de pesquisa.
Quanto ao meu projeto as sessões de orientação me ajudaram a clarificar o
meu objeto e reformulei a ideia inicial. O objeto centra-se no estudo do processo de
reforma agrária em Cabo Verde: análise das narrativas de seus atores. É uma
tentativa de estabelecer um diálogo entre a perceção que proprietários, rendeiros e
parceiros e militantes de base do parido no poder (PAICV) tiveram da lei agrária e do
processo de sua implementação e sua confrontação com os discursos oficiais e com
as fontes documentais oficiais e não oficiais eventualmente. Alarguei o universo
empírico, para as duas ilhas, Santo Antão e Santiago. Penso analisar o tema à luz dos
estudos subalternos, mas não excluo outras teorias, que podem me ajudar a enformar
a minha matriz teórica.
Com Céline Thiriot mergulhamos na ciência política pura, na sua vertente
política comparada, em relação ao tema transitologia em África, III vaga de
democratização. Que países sobreviveram à transição democrática e dos que não
conseguiram, que explicações? Dos países que sobreviveram à transitologia
consolidaram a democracia, quais os que regrediram e que razões terão influenciado
uns e outros? Pode ser que me ajude em alguma coisa na minha pesquisa, sobretudo
naquela questão final onde retrata a pressão externa e interna sofrida pelos regimes
autoritários que os obrigou a ceder às eleições e onde Cabo Verde não foi exceção.
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Também aqui os dirigentes do PAICV foram obrigados a fazer a abertura política
seguindo o mesmo enredo em relação a outros países que não apenas os africanos.
Tivemos outros seminários, nomeadamente com, Iolanda Évora, sobre
metodologia e migrações e mobilidades cabo-verdianas, Andrea Lobo, sobre
migrações, fluxos globais, José Carlos dos Anjos sobre Cultura e Identidade, em dois
momentos, Maria de Lourdes Gonçalves sobre mundo rural, o único seminário que
versava verdadeiramente sobre o meu tema. Através desse tópico especial,
aprofundei conceitos sobre o mundo rural cabo-verdiano num paper intitulado “mundo
rural cabo-verdiano: um mundo de subalternos”.
Considero que todos os temas debatidos foram importantes, mas para mim os
que mais me ajudaram no segundo ciclo de seminários foram aqueles que versavam
temas que se aproximavam do meu objeto de estudo, e que me esclareceram sobre
as questões metodológicas. Falo do que versou sobre a etnografia, e também daquele
sobre estudos da memória. Mas falo do seminário do professor Cláudio que abriu a
minha mente em relação ao meu objeto de estudo mais precisamente a sua
clarificação.
Em relação ao trabalho de campo, em dezembro de 2011 estive em Santo
Antão, no âmbito da minha dissertação de mestrado que versava sobre o mesmo
tema. Realizei entrevistas no Vale da Garça, em Chã de Igreja, Coculi, João Afonso,
Povoação, Ponta do Sol, Ribeira da Torre, Esponjeiro e Lagoa. Em agosto de 2016
estive em Porto Novo, Vale de Ribeira Fria. Localizei interlocutores que hoje habitam
fora do vale nomeadamente na cidade do Porto Novo e em São Vicente e entrei em
contacto posteriormente com essas pessoas. Contactei também um interlocutor
natural de Tarrafal de Monte Trigo que me deu valiosos dados sobre o processo de
reforma agrária na zona.
Recolhi dados sobre proprietários atingidos não atingidos pela reforma agrária
em arquivos na Praia e através de pesquisa bibliográfica.
Entre 2017 e 2018 fiz terreno na ilha de Santiago. Estive durante o mês de abril
de 2017 nos Órgãos e em Santa Cruz. Realizei entrevistas tirei fotos. Ainda no mês
de abril de 2017 participei, no Arquivo Nacional de Cabo Verde de uma jornada de
reflexão, organizada por José Silva Évora sobre a questão fundiária e a gestão da
água na história de Cabo Verde. O objetivo era apresentar as minhas pistas de
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investigação e recolher subsídios de especialistas presentes para amadurecer o meu
projeto ainda em formatação. Além de mim, participaram:
• Flávia Santos- Territorialidade caldeirense: o direito sobre a Caldeira;
• Victor Coutinho - A água no centro das estratégias do poder;
• José Maria Semedo - A questão da água e abastecimento das comunidades –
o caso do porto da Praia na escala da navegação;
• Vladimir Silves Ferreira – Construção das barragens como veículo de
promoção da agricultura irrigada;
• José Manuel Pereira - Barragens como instrumento de gestão dos recursos
hídricos.
Do resumo das conferências apresentadas e dos debates que se seguiram,
saíram recomendações que de uma forma ou de outra encorajaram as minhas
intensões e reforçaram a pertinência e exequibilidade do meu tema. recordo que isto
sempre foi o meu principal receio ao escolher a reforma agrária como tema de
pesquisa.
Transcrevendo literalmente a súmula que me foi enviada na qualidade de
participante, que subscrevo na íntegra é necessário:
que se promovam mais espaços de partilha de ideias desta natureza sobre as matérias
debatidas, de modo a potenciar o diálogo entre pessoas, académicos, especialistas ou
não, que se interessam pela problemática da água e da terra, tendo em vista a
produção do conhecimento especializado nos domínios em questão; que se consolide
este campo de estudo, reflexão e produção de conhecimento, cruzando diferentes
Ciências, Humanas, Sociais, Naturais e outras; que sejam estabelecidos e/ou
reforçados mecanismos de articulação entre as diferentes entidades públicas e
privadas, individuais e coletivas, implicadas na gestão dos recursos hídricos e
fundiários. Igualmente se propicie o cruzamento de olhares e de abordagens de
campos, de modo a constituir uma visão global e a construção de busca de soluções
transversais; sejam lembrados os atores do terreno, as populações locais, como
detentoras de conhecimento; mais investimento na educação ambiental e formação de
técnicos especializados no domínio da gestão das barragens e outros (ÉVORA, 2017).
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Ribeira dos Engenhos, em Assomada e em Boa Entrada Carreira. Realizei muitas
entrevistas, apesar das dificuldades iniciais em encontrar interlocutores. As mesmas
dificuldades de Santo Antão, encontrei em Santiago, isto é, pessoas que não gostam
de abordar o assunto reforma agrária. Mas penso que já tenho material suficiente para
empreender a escrita da tese, embora esteja ciente que terei necessidade de retornar
ao campo.
Sinto que ainda há muito trabalho por fazer. Tenho estado em contacto com o
meu orientador e estamos confiantes de que realizaremos um bom trabalho. Quero
continuar. Permitam que eu continue?
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7. CRONOGRAMA
Set. Ago. Jan. Abril Ago. Jan. Jan. Jul. Jan Jul.
Out. Dez. Mar. Jul. Dez. Dez. jul. Dez. jun. Dez.
2016 2016 2017 2017 2018 2019 2020 2020 2021 2021
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