Sêneca - A Clemência PDF

Fazer download em pdf ou txt
Fazer download em pdf ou txt
Você está na página 1de 18

Sêneca – A Clemência

LIVRO I

CAPÍTULO I
A MISSÃO POLÍTICA DO IMPERADOR NERO

1 - Decidi escrever acerca da clemência, ó Nero César, com o intuito de servir de espelho
que reflete tua imagem para ti mesmo como sendo alguém que está destinado para a maior de
todas as honrarias prazerosas.
Embora o autêntico fruto das ações corretas seja o fato mesmo de serem feitas porquanto
não existe prêmio maior para a virtude que a supere, não deixa de ser gratificante
submeter a boa consciência à reflexão, tendo os olhos voltados para aquela imensa
multidão dissidente, facciosa, desenfreada e pronta, caso o jugo da autoridade seja
rompido, para desencadear a turbulência da ruína própria e alheia.

2 - Então dize para ti mesmo: Eu dentre todos os mortais mereci ser escolhido para
representar, no mundo, a função de delegado dos deuses. Eu sou para os povos o árbitro da
vida e da morte. Está em minhas mãos, o destino e a condição de vida de cada um. O que a
fortuna quer que seja concedido a cada mortal, eu o pronuncio por minha boca. De minha
resposta, povos e cidades deduzem as razões de seu bem-estar. Região nenhuma do globo
prospera sem minha vontade e favores.
Todas essas milhares de espadas que minha paz mantém nas bainhas, só podem ser sacadas ao
grito de minha ordem.
Cabe a mim determinar que nações serão desmanteladas até as raízes e quais as banidas, as
livres ou as subjugadas como também que reis serão dominados ou em cujas cabeças deve ser
mantida a coroa da realeza tal como ainda que cidades serão arrasadas ou restauradas.
Tudo isso depende de minha vontade.

3 - No desempenho de tamanha administração, não foi a ira nem a impetuosidade juvenil nem
a temeridade ou a obstinação que exacerbam, em peito tranquilo, a paciência nem a
glorificação nefasta que ostenta pelo terror o poder, nada de tudo isso me impulsionou
para aplicar suplícios iníquos.
Comigo trago a espada na bainha, ou melhor, presa ao meu corpo, já que, em extremo, eu
aborreço derrame vil de sangue.
Não existe homem algum carente de título que não mereça meus favores pelo simples fato de
ter o nome de homem.
Mantenho exclusa a violência a fim de deixar à vista quanto sou clemente.
Assim eu me controlo como se tivesse que prestar conta perante as leis de algum lugar
obscuro que eu projeto na luz do dia.
Uns me comovem por sua pouca idade; outros por sua velhice adiantada; outros pela
humildade de sua condição social. Sempre que encontro motivo para a prática da clemência.
Por causa de mim mesmo eu me contenho.
Hoje, se os deuses imortais exigissem que lhes prestasse conta do gênero humano, estou
preparado para devolver-lhes um por um dos seres humanos.

4 - Com ousadia, podes proclamar, ó César, que todas as coisas confiadas a tua fidelidade
ou tutela estão sob segurança e nada de violento maquinase, às ocultas, graças a ti,
contra o Estado.
Aspirantes por uma glória ainda de todo inédita em um príncipe, a saber, não causar dano
a ninguém.
Teus esforços não ficaram baldados, já que essa tua benevolência tão singular está a
salvo de críticos ingratos e malévolos.
Todos te retribuem agradecidos. Jamais um cidadão tem sido tão estimado pelos outros como
tu pelo povo romano. Tu és o seu bem máximo e duradouro?

5 - É pesado o encargo que assumiste. Já não se fala mais do divino Augusto nem dos
primórdios da era de Tibério César. Ninguém procura fora de ti, qualquer exemplo para ser
imitado. O teu governo calha bem ao gosto geral.
Tal responsabilidade ser-te-ia difícil se não fosse essa tua complacência congênita de
alma e por isso nada transitória, já que ninguém carrega máscara por muito tempo. Tudo
que é fictício retorna à normalidade, ao passo que coisa cimentada sobre a verdade e que,
por assim dizer, vem do cerne, ganha, com o tempo projeção e aperfeiçoamento.

6 - Grande era a insegurança do povo romano enquanto jazia na incerteza do alinhamento


que tomaria teu talento para governar. Agora, a expectativa popular está tranquila porque
já não existe perigo algum que, de improviso, possas esquecer quem tu és.
Quando o bem-estar está em alta, ficamos ávidos de novas expectativas. Nunca os desejos
ficam tão moderados que se contentam com suas realizações. Os grandes bens apontam para
outros ainda maiores, sendo que a obtenção do inesperado desperta outros sonhos ousados.
No entanto, todos teus súditos proclamam estar felizes e que ao bem-estar atual nada pode
ser acrescentado senão a perpetuidade.

7 - Muitos são os motivos que acalentam essa convicção que, aliás, chega em atraso:
segurança total, prosperidade crescente, direito sobreposto às violações. Enfim, nada
falta para a plenitude da liberdade, salvante aquela licença para a própria perdição.

8 - O relevante em tudo isso de grandioso e de louvável é aquela admiração que o povo


romano devota para tua clemência, seja ele das camadas humildes, seja da classe alta.
Quanto aos outros bens, cada um desfruta-os segundo o beneplácito da fortuna, acolhendo-
os tais como sobrevenham ou maiores ou menores, porém a tua clemência todos esperam que
sempre seja a mesma. Não há quem se compraz tanto com a própria integridade que não veja,
com simpatia, a tua clemência sempre pronta para atender a fragilidade humana.

CAPÍTULO II
A FUNÇÃO SOCIAL DA CLEMÊNCIA

1 - Não ignoro existirem aqueles que pensam serem os maus preservados pela clemência
porque essa seria fictícia sem crime, mas, de outro lado, ela é a única virtude sem
função específica para os inocentes.
Acontece que, antes do mais, a medicina é remédio para os enfermos, porém goza de estima
junto a pessoas sadias. Assim também a clemência. Ainda que faça referência aos
merecedores de castigo, ela é respeitada entre os inocentes.
Em segundo lugar, ela é de interesse para os inocentes porque, vez por outra, o
infortúnio pode imputar-lhes alguma culpa. De outro lado, ela não socorre apenas a
inocência, mas, ainda e com frequência, à virtude mesma - porque pode ocorrer que, por
circunstâncias adversas, resultem puníveis certas ações de todo dignas e louváveis.
Seja a isso somado o fato de que grande parte dos homens delinquentes são aptos para o
retomo ao estado de inocência desde que haja remissão da pena.

2 - Em todo caso nunca se deve perdoar de olhos fechados. Ao suprimir a diferença entre
bons e maus, disso advém confusão e os vícios principiam a proliferar à solta.
Eis que se deve atentar para o discernimento entre os caracteres recuperáveis e os
incorrigíveis.
Também nada de clemência promíscua e vulgar como ainda nada de rigorismo porque a
crueldade tanto consiste em perdoar sem critério seletivo como a ninguém favorecer.
Devemos manter os limites. Isso fica difícil sem parâmetros. Então tudo quanto contraria
a equidade seja aferido pelo senso de humanidade.

CAPÍTULO III
A DIMENSÃO HUMANA DA CLEMÊNCIA

1 - Isso será explanado, com mais detalhes, em seu lugar. Agora, vou dividir em três
tópicos o tema. O primeiro trata de remissão da pena. O segundo explana a natureza e
atributos da clemência. Já que existem vícios que imitam a virtude, ela fica visível
mediante as características que a fazem reconhecível. Em terceiro lugar, trataremos do
modo como o espírito é conduzido até a clemência, como cultivá-la e, pela prática, tomá-
la real.

2 - É necessário ressaltar que nenhuma dentre as virtudes é tão conveniente para o ser
humano como a clemência, porque nenhuma como ela é mais humana. Isso não só entre nós que
desejamos que o ser humano manifeste-se como animal social e inserido no contexto do bem
comum, mas também entre aqueles que direcionam o homem para o mero prazer da vida e assim
toda a doutrina e prática convergem para o útil. Ora, se o homem busca quietude e
tranquilidade, ele encontra tudo isso nessa virtude que privilegia a paz e com a mesma
convive.

3 - A ninguém como ao rei e ao imperador calha tão bem a clemência. Todo aquele poderio
exala honra e glória sempre que a presença dela mostra-se salutar. É, sim, funesta a
grandeza que apenas serve para incrementar o ma.
Sem dúvida que é estável e bem fundamentada a grandeza de quem tanto está sobranceiro
quanto dedicado ao serviço de todos; de quem constata-se, diariamente, o zelo pela
vigilância do bem-estar de todos e de cada um; de quem, ao aparecer em público, dele não
se foge como de perigo iminente ou animal nocivo saído da toca, mas, ansiosamente, dele
se aproxima qual astro luminoso e benéfico.
Todos estão dispostos a apresentar seus peitos aos pugnais dos agressores que espreitam e
desse modo deixar que seus corpos tombem no chão, se para salvar a vida do Imperador
necessário for uma avalanche de cadáveres humanos. Protegem o sono dele como sentinelas
noturnas. Lutam ao seu lado a fim de lhe resguardar as costas e assim enfrentam os
perigos que o assaltam.

4 - Não é sem razão que povos e cidades concordam em proteger e amar seus reis, em
sacrificarem-se pelo bem deles, sempre que for necessário para a preservação da
soberania.
Não é menosprezo de si nem sinal de demência o fato de tantos milhares sacarem suas armas
por um único homem e com tantas mortes resgatarem uma vida que, muitas vezes, é a de um
velho inválido.

5 - Assim como o corpo todo serve a alma, ainda que a supere pela corpulência e
visibilidade, já que a alma é sutil e imperceptível, oculta como está em lugar ignoto,
assim mesmo as mãos, os pés e os olhos trabalham a serviço dela. Também a pele do corpo
defende-a e, sob seu comando, ou repousamos ou acorremos para atender seus apelos. Assim,
qual matrona avara de riqueza leva-nos a explorar os mares em busca afanosa ou, se tomada
de ganância pela glória, nos alicia ou para apresentarmos (coisa já ultrapassada) a mão
direita às chamas ou, para, voluntariamente, precipitarmo-nos num abismo.
Assim também essa imensa multidão agrega-se ao derredor de uma única vida, deixa-se
governar por seu espírito e submete-se ao critério judicativo de quem está sob ameaça de
sucumbir ou de arrebentar-se por sua própria força, se a prudência não O contém.

CAPÍTULO IV
A AUTORIDADE SUPREMA É O VÍNCULO DA UNIDADE DO POVO

1 - Por amarem a sua incolumidade os povos organizam para fins de combate as dez legiões
sob o comando de um único comandante. Elas vão à frente da luta de modo a não permitirem
que as bandeiras de seu soberano sejam vencidas. Isso ocorre por ser ele o vínculo mais
caro em que o Estado se identifica.
Ele é o fôlego vital que acalenta toda essa massa humana que por si só seria um empecilho
e até presa, na hipótese de ficar sem uma cabeça que a governe: "Vivendo o rei, o
pensamento de todos é uno; morto, rompem-se os pactos." (Virgílio, Geórgicas, IV, 212)

2 - Semelhante calamidade seria o fim da paz romana. Um desastre igual geraria a ruína do
bem-estar desse grandioso povo. Ora, o povo ficará distante de tal perigo desde que saiba
tolerar os freios. Caso esses se rompam ou qualquer eventualidade torna-os frouxos, já
não será suportável o retorno para o antigo estilo de vida. Essa unidade e essa estrutura
organizacional romper-se-ia em mil fragmentos. Assim o fim do domínio da cidade será
concomitante ao fim de sua obediência.

3 - Por isso, os imperadores e os reis bem como os que, com um ou outro nome, são os
defensores do Estado, não admira sejam eles mais estimados do que os benquistos na
amizade particular. Se para os cidadãos corretos os interesses públicos são preferíveis
aos particulares, então daí decorre que seja mais estimado quem com a República se
identifica.
Aliás, desde os velhos tempos, o Estado e o César eram unidos de modo a não ser possível
separar um do outro sem a perdição de ambos. Com efeito, se um necessita de força, o
outro precisa de cabeça.

CAPÍTULO V
A CLEMÊNCIA É VIRTUDE ESPECÍFICA DAS AUTORIDADES

1 - Pode até parecer que minha explanação tenha-se distanciado e muito do seu objetivo,
mas, garanto, não fugi do tema. Como do exposto, até agora, conclui-se que tu, ó César,
és a alma do Estado e esse é o teu corpo; então salta, à vista, penso eu, quanto seja
necessária a clemência, já que ao perdoares é a ti mesmo que perdoas.
Assim deves perdoar também a cidadãos passíveis de condenação à guisa de membros enfermos
do corpo. Se ocorrer, vez por outra, ser necessário derramar sangue, que então a mão seja
controlada para que não corte nada além do que é prescindível.

2 - Cabe bem, portanto, a clemência a todo ser humano e isso é consentâneo com a
natureza, porém, em grau elevado, ela orna os imperadores, já que neles deve ser
preservada e nos mesmos ela se projeta de modo mais ostensivo. Aliás, quão pequeno é o
prejuízo causado pela crueldade particular! Ao invés, a sevícia da parte dos príncipes
equivale a uma guerra.

3 - Embora entre as virtudes reine concórdia e nenhuma é melhor nem mais amável do que a
outra, há aquelas mais adequadas a determinadas pessoas.
A magnanimidade calha bem a todo mortal, mesmo para quem não tem inferior algum abaixo de
si. De fato, que existe de mais grandioso e de real valor do que rebater o infortúnio?
Isso não obstante, a magnanimidade, ocupa um espaço bastante amplo que é melhor avistado,
quando se situa em lugar elevado do que na planura.

4 - A clemência, para qualquer casa, onde entra, leva felicidade e paz, mas, dentro de um
palácio, quanto mais rara, tanto mais admirada.
Que há de mais memorável do que aquele cuja ira não encontra obstáculo, cuja sentença por
dura que seja recebe acolhida da parte dos condenados, que mesmo, quando age com
veemência, não encontra contradição nem quem implora e, no entanto, é o mesmo que faz
violência contra si mesmo, usando do próprio poder para refletir placidamente: "matar
contra a lei todos podem; salvar apenas eu!"

5 - A uma grande fortuna convém um espírito grandioso. Este quando não se iguala ou
supera aquela, ela o abate e derrota. Eis ser próprio de uma alma magnânima a
agradabilidade serena bem como o menosprezo altivo de injúrias e ofensas. É atitude
efeminada irar-se até ficar furioso. Isso é típico das feras e, certamente, das mais
selvagens que mordem e despedaçam suas presas. Os elefantes e os leões afastam-se, quando
já abateram os inimigos. Por isso o enfurecimento é próprio dos animais menos nobres.

6 - Não calha bem ao rei a ira cruel e inexorável, já que então ele não se sobrepõe a
quem se iguala pelo ódio. No entanto, ao conceder a vida, conferindo dignidade a quem
merecia perdê-la, realiza um gesto só permitido aos poderosos. Pois a vida está sujeita a
ser tirada até de quem é superior, mas só é concedida ao inferior.

7 - Salvar é dom da dignidade suprema que deve ser admirada porque desfruta do mesmo
poder dos deuses por cujos favores nascemos para a luz, quer os bons, quer os maus.
Apropriando-se o imperador dos sentimentos divinos, saiba olhar, com bons olhos, alguns
de seus súditos porque honestos e úteis enquanto permite que outros apenas integram o
número da população. Assim, alegrando-se com a presença de uns, tolera os demais.

CAPÍTULO VI
TODOS NÓS PREVARICAMOS

1 - Pondera quanto de soledade e quanta devastação sobreviriam a esta cidade, onde a


turba circula em fluxo contínuo por ruas larguíssimas, pisoteando o que se lhe defronta
como obstáculo, que lhe retarda a marcha; onde são necessários espetáculos simultâneos de
três teatros espaçosos; onde se consome tudo quanto produzem os agricultores do mundo
inteiro, se nela restassem apenas aqueles que foram absolvidos por algum juiz severo?

2 - Quantos magistrados sucumbiriam ao peso da mesma lei por força da qual tentam
infligir penalidade? Quantos acusadores estariam isentos de culpa? Eu não sei se existe
alguém mais relutante em conceder perdão do que quem, muitas vezes, teve que implorá-lo.

3 - Todos nós temos cometido faltas, sendo umas mais graves e outras, mais leves, ora
agindo de modo deliberado, ora impelidos pelo azar ou levados pela maldade alheia. Há
também outros que fraquejaram, deixando de perseverar nos bons intentos e assim perdem a
inocência contrariados e com resistência. Não é que só temos prevaricado, senão que até o
final da nossa existência iremos prevaricar.

4 - Mesmo quando alguém tivesse tão perfeitamente purificado a alma a ponto de nada poder
desviá-la do bom caminho, aliciando-a, esse tal não teria chegado ao estado de inocência
sé não tivesse prevaricado.

CAPÍTULO VII
OS DEUSES ENSINAM COMO PRATICAR A CLEMÊNCIA

1 - Já que fiz menção dos deuses, apraz-me apresentar ao imperador o mais esplêndido dos
exemplos pelo qual ele poderia modelar-se e assim ser para seus súditos o que desejaria
que fossem os deuses em relação a sua pessoa.
Seria, por ventura, de desejar fossem as divindades insensíveis para expressar clemência
perante nossos pecados e defeitos? Seria auspicioso tê-las como inimigas nossas a ponto
de destruir-nos? Que rei estaria seguro que os arúspices não irão examinar os elementos
do seu corpo?

2 - Se os deuses clementes e equânimes, de imediato, não castigam, com rajadas de raios,


os crimes dos poderosos, então nada mais equitativo para o ser humano, com domínio sobre
seus semelhantes, que saiba exercer sua autoridade com espírito manso, avaliando qual
condição do mundo é mais aplausível e louvável, a saber, ou um dia tranquilo e de solou
um céu estremecedor com estrépitos de trovoadas, espargindo, cá e lá, relâmpagos.
3 - Um reinado cruel é sombrio porque coberto de trevas. A gente treme e apavora-se ao
repentino soar de qualquer ruído enquanto mesmo quem causa transtorno em tudo também
treme.
Com maior facilidade perdoa-se aos particulares que reivindicam com insistência. Pode
ocorrer que alguém tenha sido prejudicado e que o ressentimento resulta de ofensa
recebida. Teme-se então o desprezo e que, não dando retomo ao ofensor, pareça mais
debilidade do que clemência. No entanto, quem dispõe da vingança, ao omiti-la, terá, por
certo, um título de glória para sua mansidão.

4 - Com maior liberdade pode a classe mais humilde da população valer-se da violência,
promovendo pleitos; implantar pendência e assim desafogar sua ira. Os golpes entre iguais
são mais leves. Ao invés, na pessoa do rei, a vociferação e destempero verbal ferem a
imagem de sua majestade.

CAPÍTULO VIII
SER REI EQUIVALE A SUBMETER-SE A UMA ESCRAVIDÃO MAJESTOSA

1 - Tu pensas que seria inadmissível privar os reis do direito de falar com liberdade,
sendo que isso desfrutam indivíduos até de baixa categoria social.
"Isso", dirias, "é servidão e não soberania". E daí? Não percebes que a soberania é
nossa, e a servidão é tua? Bem outra é a condição daqueles que ficam ocultos dentro da
multidão. Até suas virtudes retardam para vir à tona como também seus defeitos ficam
ocultos. Ao contrário, as atitudes e palavras tuas ganham divulgação rumorosa. É por isso
que te é forçoso zelar pela fama, já que tudo quanto fazes tem, de imediato, larga
repercussão.

2 - De outro lado, quantas coisas não te são permitidas, ao passo que para nós são
franqueadas por força de teu beneplácito. Assim, eu posso perambular a sós, sem temor,
por qualquer recanto da cidade, ainda que sem dispor de escolta armada, sem tê-la em casa
nem carregar arma, ao passo que tu, em meio a tua paz, tens que viver armado.
Não podes alienar-te do teu destino. Ele te circunda de contínuo e para onde caminhas,
ele te acompanha com aparente pompa.

3 - Eis aí a servidão da suprema grandeza: ela não pode rebaixar-se. Antes, com os deuses
tens, forçosamente, algo em comum. A eles também o céu os mantêm ligados. Dele se
afastarem é tão impossível quanto para ti é questão de segurança. Assim estás
enclausurado em teu prestígio.

4 - Nossos movimentos são percebidos por poucos. Sem que o público perceba, podemos sair,
entrar e mudar de lugar. A ti não é permitido ocultar-te como também não é para o sol. Em
tomo de ti há muita luz. Os olhos dê todos estão voltados para ela.

5 - Pensas tu que te movimentas à vontade? Tuas saídas são como o despontar de um astro.
Não podes falar sem que o povo, disperso por todos os cantos, ouça tua voz. Não podes
manifestar ira, sem que tudo ao teu redor trepide.
Assim como os raios precipitam-se, trazendo risco para alguns e temor para muitos, de
igual modo as decisões dos poderes mais elevados projetam para longe mais terror do que
dano e não sem motivo, visto que, naquele indivíduo que tudo pode, o que se enxerga não é
o que faz e, sim, quanto ainda poderia fazer.

6 - Seja a tudo isso somado que, para o particular, a tolerância pelas injúrias recebidas
torna-o vulnerável a outras. Ao invés, nos reis, a mansidão garante segurança porque a
vingança frequente reprime o ódio de alguns, embora excite a raiva de muitos.

7 - Antes tem que cessar a vontade de penalizar do que a causa. Caso contrário, tal como
as árvores podadas dão origem a inúmeros brotos e tal como outras espécies de vegetação
recebem a poda para terem novos rebentos, assim a crueldade dos reis aumenta o número dos
inimigos, quando tenta suprimi-las. De fato, os pais, os filhos, os parentes e os amigos
dos sentenciados substituem os mortos.

CAPÍTULO IX
UM GESTO HISTÓRICO E MODELAR DE CLEMÊNCIA

1 - Quanto mais seja verdadeiro eu quero demonstrar com um exemplo de todo familiar para
ti, ó Nero.
O divo Augusto era um príncipe de caráter manso, desde que visto nos primórdios do seu
reinado. A partir do momento em que passou a partilhar seu poder com parceiros, então fez
uso da espada.
Quando tinha a idade que, agora, tens, ao sair dos dezoito anos, já havia gravado o
punhal no peito de amigos. Havia também, insidiosamente, desferido um golpe na lateral de
Marco Antônio, que fora colega seu nas proscrições.

2 - Mais tarde, já passado dos quarenta anos, residindo na Gália, chegou a seu
conhecimento que L. Cina, varão de gênio estólido, armava-lhe insídias. Foi-lhe relatado
onde, quando e como Cina o queria agredir, sendo o delator um dos cúmplices.

3 - Decidiu então vingar-se de Cina e convocou os amigos para uma reunião de


aconselhamento. Passou a noite perturbado, pensando que iria condenar um jovem da nobreza
que, salvante aquele fato, era de todo irrepreensível, além de ser neto de Gneo Pompeu.
Ademais, não poderia executar a ninguém, já que, numa ceia, sob orientação de Marco
Antônio, havia assinado o decreto da proscrição.

4 - Em estado aflitivo, soltava palavras incoerentes e contraditórias: "Como? Deixarei


que ande por aí solto e seguro meu assassino, ficando eu de sobressalto"? Não iria pagar
pelo seu delito aquele que se propõe não só me matar, mas ainda imolar-me, visto que
pretende agredir-me no momento em que eu estivesse fazendo alguma oferenda aos deuses?
Assim iria rolar a cabeça visada em tantas guerras civis, em tantas batalhas navais, em
lutas terrestres de onde saí incólume para instaurar a paz no mar e na terra?"

5- De novo, após algum tempo de silêncio, ele increpava a si mesmo, com muito mais
veemência do que a Cina: "Por que vives, se é do interesse de tantos que morras? Qual
será a finalidade do sacrifício, do sangue derramado? Eu sou o alvo dos jovens da
nobreza. Contra mim apontam seus punhais. Não vale tanto a vida, se para que eu não
morra, devam perecer tantos jovens."

6 - A essa altura, interpela-o sua esposa, Lívia: "Aceitas", diz, o conselho de uma
mulher? Então faze o que costumam fazer os médicos. Quando os medicamentos corriqueiros
fracassam, eles apelam para os opostos. Com a severidade nada conseguiste até hoje.
Lépido seguiu Salcidiano; Murena a Lépido; Cipião a Murena, Inácio a Cipião, sem falar
dos outros cuja ousadia provoca nojo.
Tenta, agora, conduzir-te pela clemência, perdoando a L. Cina. Ele já foi descoberto.
Mal não te pode fazer, mas em troca do perdão poderá contribuir para tua glória.

7 - Feliz por ter encontrado um bom advogado, agradeceu à esposa. De imediato, deu uma
contraordem aos amigos convocados para a sessão do conselho e mandou chamar Cina.
Tendo ordenado que todos se retirassem da sala, mandou pôr uma segunda poltrona para Cina
e disse-lhe: "A primeira coisa que te peço é que não me interrompas enquanto falo. Depois
disporás de tempo livre para manifestar-te".

8 - Eu, ó Cina, encontrei-te, no acampamento de meus inimigos. Não é que então eras meu
inimigo, mas, ali, nasceste e por isso eu te poupei. Depois, eu formei todo o teu
patrimônio. Hoje, estás tão rico e feliz que os vencedores invejam o vencido. Como
suplicaste o sacerdócio, eu, deixando de lado a muitos cujos pais tinham lutado a meu
lado, eu lho concedi. Depois de tantos favores meus, planejaste meu assassinato.

9 - Quando, em réplica, Cina disse, gritando, que estava longe de tamanha demência,
Augusto acrescentou: "Não estás cumprindo o que prometeste, Cina. Havíamos combinado que
não me interromperias. Volto a afirmar que estavas arquitetando meu assassinato."
A seguir, referiu os detalhes de lugar, cúmplices, dia, plano de agressão e o nome de
quem fora encomendada a execução.

10 - Vendo-o todo assustado e abatido não com respeito ao pacto, mas pressionado pela dor
de consciência, Augusto complementou:
"Com que intento fazes isto? Para seres tu o Imperador? Infeliz do povo romano se, para
teres o governo fosse eu o único obstáculo. Não podes sequer manter tua casa. De recente,
num processo civil, perdeste para o crédito de um liberto. Daí a tua facilidade em mover
processo até contra César. Se for eu o único empecilho para tuas expectativas, eu já me
entrego. No entanto, aí, estão Paulo e Fábio Máximo, além dos Cosos e dos Servílios, com
toda a linhagem de nossa egrégia nobreza, porquanto não desfrutam futilmente de nomes
excelsos, mas honram as estátuas de seus avós. Pensas tu que eles irão te tolerar?"

11 - Para não encher grande parte do meu livro, repetindo as palavras de Augusto, já que
então ele falou por duas horas com o propósito de prolongar o suplício de Cina e assim
aplacar. a própria ira, disse: "Eu te concedo a vida, Cina. Eu a dou duas vezes. Antes eu
já a concedi por seres um inimigo; agora, por seres um conspirador e parricida.
De hoje para frente que renasça a amizade entre nós dois. Vamos competir e saber quem é
mais leal ou eu que te dou a vida ou tu que a recebes de minhas mãos.
Depois disso, conferiu-lhe o consulado, lamentando, o fato de não ter Cina pedido a
honraria.
Fato é que então teve em Cina o amigo mais próximo e mais fiel. Ele foi seu único
herdeiro. Daí para frente não eclodiu outra conjuração contra sua vida.

CAPÍTULO X
A CLEMÊNCIA SOLIDIFICA A SEGURANÇA PESSOAL DA AUTORIDADE

1 - Teu bisavô perdoava aos vencidos. Aliás, se não os perdoasse, a quem iria reger?
Salústio, Cróssio, Deílio e toda uma legião de amigos achegados ele os recrutou no campo
inimigo. A sua clemência já tinha conquistado os Domícios, os Messalas, os Anísios, os
Cíceros e toda a elite da cidade. E quanto tempo teve de esperar até que Lépido morresse!
Durante muitos anos tolerou que aquele carregasse os emblemas de príncipe e não consentiu
que ascendesse ao grau-máximo do pontificado senão após a morte do outro, preferindo
qualificar aquilo mais uma honraria do que despojo.

2 - Essa sua clemência garantiu-lhe a preservação da vida e segurança. Ela o tomou grato
e granjeou-lhe a simpatia do povo, embora, quando impôs sua mão, o povo romano não se
sentia bem sob aquela dominação. A clemência acarreta-lhe, hoje, uma fama da qual poucos
príncipes desfrutam.

3 - Não é porque nos foi imposto que acreditamos ser ele um deus. Que Augusto tenha sido
um príncipe bondoso, que lhe ficava bem o título de "pai", nós o reconhecemos pela
simples razão que os insultos ou contumélias, que de costume atingem mais os príncipes do
que injúrias propriamente ditas, ele não as repulsava com veemência, mas respondia,
sorrindo, para as palavras agressivas.
Quando estava por impor algum castigo, parecia ser ele quem o sofria. A todos que
condenou à morte por causa do adultério de sua filha, ao invés de executá-los, preferiu
confina-los em região onde poderiam viver em segurança e não lhes negou o salvo-conduto.

4 - Isso equivale a perdoar de verdade, embora sabendo existirem muitos indivíduos


prontos para o confronto que buscam favores mediante o sangue alheio. Isso não é apenas
conceder a vida. É mais. É garanti-la.

CAPÍTULO XI
DEFINIÇÃO DE CLEMÊNCIA NA PESSOA DO IMPERADOR NERO

1 - Eis o que Augusto era, quando idoso ou já próximo da velhice. Na sua adolescência,
era irascível e propenso aos ímpetos do ódio. Fez muitas coisas que ele, agora, veria com
desgosto.
Ninguém ousaria comparar a tua mansidão com a de Augusto, ainda que fossem avaliados teus
verdes anos com a idade madura dele. Ele se tornou moderado e clemente só depois de ter
maculado o mar Ártico com sangue romano; depois também de ter arruinado suas esquadras e
as dos inimigos, na Sicília; depois ainda dos holocaustos na Perúgia e as proscrições.

2 - Eu não denomino clemência o fastio de crueldade. Eis, ó César, a verdadeira


clemência: aquela que tu praticas; aquela que não é produto de arrependimento por estar
maculado com efusão de sangue.
Eis a autêntica moderação de caráter no auge do poder, quando o amor de si, extensivo a
todo o gênero humano, não consiste em testar, sob a influência de impulsos passionais e
de exemplos malévolos dos príncipes antecessores até onde chega o domínio sobre os
súditos, mas sim em controlar a força da própria jurisdição.

3 - Ó César, tu nos presenteaste com uma cidade isenta de sangue, porém gozas ainda de
outro mérito. Podes ainda gloriar-te não só porque não derramaste gota alguma de sangue,
no entanto, mais admirável é que nunca uma espada esteve em mãos tão jovens.

4 - Assim, a clemência não só nos torna mais honrados como ainda mais seguros. Ela é o
ornamento imperial enquanto sustentado por uma consistência solidíssima.
Qual razão pela qual os reis alcançaram a velhice e repassaram a coroa aos filhos e aos
netos, enquanto a dominação dos tiranos foi execrável e efêmera? Que diferença existe
entre um tirano e um rei, já que, aparentemente, a posição é igual e mesmo o poder, senão
o fato de serem os tiranos cruéis por prazer e os reis somente quando coagidos por
extrema necessidade?

CAPÍTULO XII
A DIFERENÇA ENTRE REI CLEMENTE E O TIRANO CRUEL

1 - "E daí? Os reis também não costumam matar?"


Sim, mas desde que coagidos por alguma contingência de interesse público. Ao invés, para
os tiranos a crueldade faz parte realizante do seu agir.
O tirano diferencia-se do rei por fatos concretos e não só pelo nome. Por que Dionísio, o
velho, sobrepõe-se, com elevado grau de mérito, a muitos reis? De outro lado, por que não
denominar Sila como tirano, já que ele, com aquela sua urgia de morticíano, criou
carência de inimigos?

2 - Ainda que tenha desistido de sua ditadura e reassumido a toga, que tirano existiu que
tão sofregamente abeberou-se de sangue humano do que ele responsável pela morte de sete
mil cidadãos romanos? Ao ouvir, assentado que estava perto do templo da deusa Belona, os
gemidos de tantos milhares que estavam sendo executados, Sila fala para o Senado tomado
de terror:
"Padres conscriptos, estamos cumprindo nosso dever. Apenas uns poucos sediciosos estão
sendo executados por ordem minha".
E não mentiu. Para Sila aquele contingente era pequeno.

3 - A respeito de Sila ainda voltaremos a falar quando for focalizado o modo de


direcionar a ira contra os inimigos, no caso de indivíduos que abandonam seus aliados
para aderirem à ala oposta.
Agora, como já disse, a clemência traça uma expressa diferença entre o rei e o tirano,
ainda que um e outro andem escoltados por soldados armados.
Enquanto um os mantém e deles se serve para garantir a paz, o outro faz uso das armas
para reprimir, medrosamente, as ondas de ódio, sendo que nem sequer olha, com
tranquilidade, para as mãos às quais entrega sua segurança.

4 - Como um mal gera outro mal, então, odiado porque temido, ele quer ser temido porque
odiado. Assim aplica a si aquele verso abominável que levou muitos à perdição: "Que me
odeiem desde que temam". No entanto, permanecerá ignorando quanto de fúria explode,
quando o ódio exala a todo vapor.
Realmente, um temor moderado controla as paixões humana, mas um temor persistente e
violento, que projeta perigos extremos, incentiva para todo gênero de iniciativas.

5 - Assim com uma cerca de cordas e plumas consegues manter cercados os animais
selvagens, mas, se um cavaleiro, por de trás, instiga-os, com golpes de lança, então as
feras tentam a fuga, saltando por cima e pisoteando o que as amedrontava.
A coragem torna-se intrépida, quando motivada pelo desespero. É necessário que o temor
desperte alguma segurança, demonstrando mais sucesso que fracasso. Caso contrário, quando
os temores estão no mesmo nível e equilibrados fica difícil afrontar o perigo e jogar
fora a vida como se de outro fosse.

CAPÍTULO XIII
OS DOIS OPOSTOS: O REI MANSO E CLEMENTE E O REI CRUEL

1 - O rei tranquilo e manso dispõe de uma guarda fiel desde que faça uso dela para a
segurança comum. Por sua vez, o soldado honrado, posto que se considere a serviço do bem
público, tolera, de boa vontade, todos os incômodos de sua profissão porque se tem qual
guardião de quem é o pai comum. Ao invés, o tirano feroz e sanguinário torna-se repulsivo
para seus próprios auxiliares.

2 - Indivíduo nenhum dispõe de servidores bons e fiéis, se deles usa a guisa de cavalete
e machado, instrumento de tortura e morticínio para os quais arremessa entes humanos como
para animais selvagens. Ele, mais do que os réus, enfrenta tribulação, angústia e
aflições porque consciente de estar na mira dos homens e dos deuses como testemunhas e
vingadores de seus crimes ainda mais quando seus hábitos já não lhe permitem mudança de
atitudes. Além de tudo o mais, a crueldade aflora exacerbada. Entrementes, ele fica
impedido de ascender para o plano dos nobres sentimentos. Assim o crime protege-se pelo
crime.
Ora; quem há de mais desventurado do que aquele que é forçado a praticar o mal?

3 - Como é digno de lástima (aos próprios olhos, já que para os outros é vetado lastimá-
lo) quem exerce o poder com assassinatos e rapinas; quem ficou suspeito em assuntos
públicos e familiares; quem por medo de armas apela para as mesmas; quem não acredita na
fidelidade dos amigos nem no amor dos filhos; quem, ao olhar em redor de si em tudo que
faz e tem por fazer, defronta com uma consciência referta de maldade e de trepidante
nervosismo, enfim, que, muitas vezes, teme a morte, embora, por vezes, até deseja? Tal
individuo é mais odiado por si mesmo do que por seus vassalos.

4 - Inversamente, aquele que zela por tudo; que protege muito a umas coisas e menos a
outras; que não deixa de nutrir nenhuma parte do Estado como parte de seu corpo; que é
propenso para medidas mais suaves; que demonstra, quando necessário, atitudes severas;
que nada de hostil tem no coração, nada de feroz; que exerce seu poder de modo plausível
e saudável; que deseja que os súditos aplaudam suas ordens, esse indivíduo, estuante de
felicidade aos próprios olhos, podendo tomá-la participada, já que demonstra afabilidade
na conversação, com abertura receptiva, com aquele rosto amável que conquista simpatia
popular, propenso como está para os projetos equitativos e nada complacente para com os
maus, enfim, eis o indivíduo amado pela cidade inteira, protegido e venerado.

5 - De tal personagem todos falam e comentam a mesma coisa, quer em público, quer
privadamente.
Agora, todos querem procriar filhos. A esterilidade, aquela inseparável parceira dos
males públicos, está reprimida. Ninguém duvida ser agradecido por seus filhos, gerando-os
para um século tão venturoso.
Esse príncipe, protegido por sua amabilidade, não necessita de guardas. Das armas ele faz
apenas uma decoração.

CAPÍTULO XIV
O PRÍNCIPE REGE COMO UM PAI DE FAMÍLIA: PRUDENTEMENTE

1 - Qual o dever dele?


O mesmo de pais responsáveis que repreendem seus filhos, às vezes, com brandura, outras
vezes, de modo severo e até usando a chibata. Por acaso iria um pai equilibrado excluir o
filho da herança após ter cometido uma primeira ofensa?
Salvo se pesadas e repetidas ofensas superarem a paciência ou que o temor de novas
prevaricações ultrapasse de longe o mal já praticado, só então iria tomar decisão de
extremo rigor.
Antes do mais, tenta, com esforço, remodelar aquele temperamento desestruturado e
propenso ao pior. Só diante de um caso desesperador, lançar mão de remédios extremos.
Em todo caso, jamais irá apelar para o suplício sem antes ter esgotado todos os
expedientes normais.

2 - Tal como age um pai assim deve se pautar o imperador que, por convicção e não por
mera lisonja, denominamos pai da pátria. Aliás, os outros títulos são meras
honoroficências. Assim os títulos de grande, de felizardo e de augusto. Desse modo nós o
qualificamos para engrandecer-lhe a majestosa ambição de honrarias, no entanto nós o
chamamos de pai da pátria a fim de que saiba ter-lhe sido conferido o poder paterno, que
é o mais moderado porque focaliza os próprios filhos para cujo bem o pai realiza a
felicidade pessoal.

3 - Só após muita delonga decide o pai amputar um membro de seu filho. Mesmo após tal
ato, deseja-o reposto no seu devido lugar. Se ocorre amputar, o pai sofre muito,
hesitando em tomar a decisão. Eis porque condena adequadamente quem inflige castigo de
imediato. Ao invés, castiga de modo iníquo quem o faz em demasia.

CAPÍTULO XV
A JUSTIÇA CONVIVE COM A CLEMÊNCIA

1 - Segundo eu me recordo, no foro, o povo agrediu, com golpes de estilete, o cavaleiro


romano Tricão que havia espancado até a morte seu filho. Não foi fácil para a autoridade
de Augusto César livrá-lo das mãos de pais e de filhos enraivecidos.

2 - Tário que surpreendera o filho em tentativa de parricídio, após tê-lo condenado em


processo judicial, ficou admirado por todos porque deu-se por pago com a pena de exílio
que era um desterro benigno, já que o condenado ficaria confinado em Marselha, recebendo
uma quota mensal de manutenção igual a que já recebia antes do crime.
Tal magnanimidade fez com que, numa cidade onde não faltavam patronos de medidas
extremas, ninguém duvidasse que o réu fora condenado de modo justo, embora o pai, não
podendo odiar o filho, encontrasse o modo de castigá-lo.

3 - Neste mesmo exemplo, eu te apresento um bom príncipe para ser comparado com um bom
pai.
Ao instaurar o processo contra o filho, Tário convocou César Augusto para participar do
conselho. Este se apresentou na residência particular do pai, sentou-se e integrou o
grupo de conselho. Não pediu que fossem ao seu palácio porque então o julgamento seria de
César e não do pai.

4 - Ouvida a denúncia e apreciadas todas as provas tanto de defesa do mancebo como de


acusação contra o mesmo, Augusto pediu que cada um escrevesse a própria sentença para que
assim ficasse diferenciado o parecer de César. A seguir, antes da abertura do codicilo,
jurou não reclamar a herança de Tário, homem rico.
5 - Diria alguém: "Assim ele demonstrou fraqueza ao recear que pudesse parecer estar
interessado na jogada, ao sentenciar sobre o jovem”.
Meu parecer é diverso. Qualquer um de nós teria contra as suspeitas malignas uma
confiança plena na moralidade dele. Os príncipes acautelam-se bastante no atinente à
própria fama.

6 - Jurou que não iria reclamar sua parte na herança.


É sabido que Tário, naquele mesmo dia, deixou de ter um segundo herdeiro, mas César
salvou a liberdade de sua própria consciência ao provar que sua decisão era
desinteressada. Aliás, disso o príncipe tem que cuidar sempre, com sumo esmero.
Então disse que o filho deveria ser banido para onde fosse do agrado do pai. Assim não
decidiu nem pelo suplício do saco nem das serpentes nem pelo cárcere, levando em conta
não a pessoa do condenado e, sim, aquele a quem estava dando assessoria de conselheiro.
Disse que o pai deveria contentar-se com a modalidade mais suave de punição, uma vez que
se tratava de um filho muito jovem que, por sugestão de outros, tinha sido induzido ao
crime no qual agiu com tal insegurança que deixou transparecer inocência. Em razão disso
deveria ser exilado da cidade e afastado dos olhos de seu pai.

CAPÍTULO XVI
OS DIVERSOS MODOS DE EXERCER O PODER EXIGEM MODERAÇÃO

1 - Oh! Como César Augusto era digno de ser convocado para participar do conselho
familiar dos pais!
Oh! Como seria merecedor de ser constituído coerdeiro a par dos filhos inocentes!
Aquela sua clemência fica bem num príncipe. Onde ela desponta, aí tudo se torna ameno.
Ninguém é tão vil para os olhos de um rei que ele não lhe deplore a condenação. Por
mínimo que seja sempre é um fração do seu império.

2 - Agora, dos casos menores passemos para outros mais expressivos.


Não é uma única a maneira de exercer o governo. O príncipe rege vassalos. O pai, os
filhos. O mestre, os discípulos. O tribuno e o centurião, seus soldados.

3 - Não seria o pior dos pais aquele que, com frequentes golpes de chicote, corrige os
filhos por culpas mínimas?
Qual professor será mais digno para ensinar as artes liberais: aquele que arranca sangue
dos alunos, quando a memória não lhes é pronta ou porque seus olhos não dominam, com
agilidade, os textos de leitura ou então aquele outro mestre que prefere, mediante
advertência e apelo ao pundonor, corrigir e instruir?
Mostra-me um tribuno ou um centurião cruel. Ele criará desertores por faltas de pouca
monta.

4 - É, por ventura, justo que alguém seja governado com mais dureza do que os animais?
Com efeito, o domador não inferniza o cavalo com golpes repetidos, uma vez que então o
animal se torna espantadiço e rebelde, se não for acariciado com mão macia.

5 - O mesmo ocorre com o caçador. Ele adestra os cães para rastrearem as presas e usa os
treinados para descobrirem e perseguirem as feras. Não os ameaça, com frequência, porque
assim lhes reprime o instinto natural que se degenera a ponto de ter medo da própria
sombra. Também não os deixa vaguearem ao léu.
A tais exemplos pode ainda ser acrescentado o caso dos jumentos lerdos que, embora
acostumados ao desconforto da chibata, o excesso de batidas obriga-os a refugarem o
cabresto.

CAPÍTULO XVII
A MODERAÇÃO EDUCATIVA PERANTE OS ENFERMOS ÉTICOS

1 - Não existe fera mais indócil nem que deva ser tratada com mais perícia do que o
homem.
Também nenhuma outra para receber mais complacência. Que insensatez tremenda essa de ter
vergonha de descarregar a cólera em cima de jumentos e de cães enquanto o homem é
fustigado por mãos humanas!
Curamos as doenças sem nos irritar. Ora, aqui, está uma enfermidade da alma. Ela requer
remédio adequado e médico nada rude no trato com o cliente. Típico de mau médico é criar
pânico para não fazer o tratamento. Ao invés, em tratamento de enfermos com doenças
ético-morais dever-se-á pautar, quem está encarregado da saúde de todos, pelo princípio:
não se manifestar, de imediato, desesperado nem qualificar os sintomas de mortíferos.
Saiba como lutar contra os vícios. Resista e repreenda em alguns a enfermidade, iluda a
outros com procedimentos suaves, visto que os curará de modo mais rápido e seguro,
disfarçando os remédios. Preocupe-se o príncipe tanto com a saúde como em não deixar que
fiquem marcas desonrosas.
Nenhum rei alcança glória mediante um castigo cruel, embora possa infligi-lo. Ela será
altaneira, quando livra a muitos da ira alheia e não sacrifica a ninguém à sua.

CAPÍTULO XVIII
OS ESCRAVOS TAMBÉM TÊM DIREITOS HUMANOS

1 - É louvável exercer, com moderação, autoridade sobre os escravos. Também em relação a


eles seja tido em apreço não o fato de poder infligir castigo sem receber represália,
mas, sim, as tantas oportunidades para agir com bondade e justiça, perdoando, seja aos
cativos, seja aos adquiridos no mercado.
Com quanto mais justiça preceitua-se não abusar de homens livres e nobres, já que
escravos não são. Deves tratá-los como inferiores na hierarquia social porquanto deles
deténs apenas a tutela e não a servidão.

2 - O escravo goza do direito de asilo tal como uma imagem sacra. Embora a lei confira
liberdade no tratamento de escravos, existe algo, no entanto, que o direito comum de todo
ser vivo veta ser praticado contra um ser humano.
Quem não odiaria a Védio Polião mais do que os escravos dele? Ele engordava as lampreias
com sangue humano, sendo que a quem lhe causasse alguma ofensa, ele mandava enclausurar
num reduto de serpentes.
Eis um indivíduo merecedor de mil mortes. Ele jogava seus escravos para servirem às
lampreias de alimento e só delas se servia depois de gordas.

3 - Tal como os amos cruéis são apontados, na cidade, com a ponta do dedo e são objetos
de aversão e ódio, assim a injúria praticada por reis espraia-se mais notoriamente e sua
péssima fama atravessa os séculos. Melhor fora não terem nascido que virem à luz para
causar desgraça ao gênero humano.

CAPÍTULO XIX
O MAIOR TÍTULO DE GLÓRIA PARA UM REI: SER CLEMENTE

1 - Ninguém poderia excogitar algo de mais dignificante para um príncipe do que a


clemência, sejam quais tenham sido o modo e o direito mediante os quais ele está
sobreposto aos demais. Estamos dispostos a assegurar que é mais honrosa e magnífica a
altitude do seu poder quanto menos nocivo, desde que ajustado às leis da natureza.

2 - A natureza mesma instituiu a primazia real.


Isso é cognoscível entre os animais como ocorre com as abelhas cujo rei ocupa o cubículo
mais espaçoso, no centro e cercado de segurança. Ele não trabalha enquanto estimula a
atividade das companheiras.
Perdido que for o rei, o reino inteiro desmorona. As abelhas não admitem mais de um e
escolhem o melhor numa luta. Ademais, o formato do seu físico distingue-se das outras
abelhas tanto pelo tamanho como pelo brilho das cores.

3 - O que mais o diferencia das demais abelhas é o fato de serem elas irritadíssimas e,
apesar de pequenas de corpo, bastante agressivas a ponto de deixarem, no ferido, o seu
aguilhão, enquanto o rei sequer ferrão possui. Assim, não quis a natureza que ele fosse
cruel nem refinada sua vingança. Subtraiu-lhe a arma, deixando desativada sua ira.
Eis um magnífico exemplo para os grandes reis. Destarte, costuma a natureza revelar-se em
coisas mínimas, inculcando ensinamento para coisas grandes, mediante modelos minúsculos.

4 - Ficamos vexados por não imitarmos os hábitos dos pequenos animais. O coração humano
deveria ser tão moderado quanto fogoso em prejudicar.
Oxalá o homem estivesse sob a mesma lei e que sua ira ficasse quebrantada junto com sua
lança, não lhe sendo lícito prejudicar mais de uma única vez nem abastecer seu ímpeto de
raiva com a ajuda de terceiros. Então seu furor ficaria controlado, quando abastecido só
por si, e só ativasse seu vigor perante o perigo de morte.

5 - Hoje, não existe mais percurso seguro. É necessário temer na medida em que se faz
temível. A atenção esteja voltada para as mãos de todos. Nas horas em que não ocorre
perseguição, convém imaginar que ela existe. Assim não fica instante algum isento de
temor.
Ora, haveria, por ventura, alguém que iria tolerar uma vida assim atribulada, quando é
bem mais fácil ser em relação aos outros inofensivo, exercendo o direito de cidadania com
acolhimento plausível para todos?
Engana-se quem pensa que o rei está seguro, onde nada está assegurado pelo próprio rei.
Segurança só é garantia, quando recíproca.
6 - Não é necessário construir, nas alturas, castelos com torres nem guarnecer as paredes
das colinas nem gretar as laterais das montanhas nem ainda cercar-se de muralhas e
torres. A clemência por si só mantém a segurança do rei, à vista de todos. Pois a
fortaleza inexpugnável é o bem-querer dos súditos.

7 - Que há de mais esplêndido do que viver a vida na companhia daqueles que a incentivam
com votos de bem-estar isentos de qualquer ameaça? Quando periga o bem-estar geral, daí
advém pavor e não só ansiedade. Eis que nada existe de tão precioso para o súdito que ele
não queira partilhar com o rei.

8 - Não há dúvida de que o indivíduo agraciado pelo destino não deve viver só para si.
Ele tem demonstrado, em repetidas provas de benevolência, que o Estado não é dele e, sim,
ele do Estado. Quem se atreveria a armar-lhe alguma cilada? Mesmo na hipótese de poder,
então não haveria quem não quisesse ver distante dos azares do destino esse príncipe sob
cujo poder reinam a justiça, a paz, o pudor, a segurança e a dignidade bem como esta
cidade em que floresce toda espécie de bem? Ela não olha seu soberano com sentimento
diverso com que contemplaríamos plenos de devoção e de carinho aos deuses imortais, se
nos fosse dada a graça de contemplá-los.
E daí? Não tem um lugar próximo dos deuses aquele que se conduz segundo a natureza
divina, sendo benéfico e generoso a fim de aperfeiçoar seu poderio pessoal?
Eis o que devemos almejar e imitar, a saber, apenas considerar como indivíduo excelso se
também for o melhor.

CAPÍTULO XX
NADA MAIS DIGNIFICANTE QUE UM REI OFENDIDO QUE NÃO PUNE O CULPADO

1 - O príncipe sói castigar duas razões: ou para vingar em nome próprio ou em nome de
outrem.
Primeiramente, vou tratar daquela que tange o interesse pessoal. É, realmente, mais
difícil controlar-se quando a reivindicação resulta da dor pessoal do que quando por mera
razão disciplinar.

2 - À esta altura, é supérfluo advertir para não haver preocupação excessiva na


descoberta da verdade a fim de favorecer a inocência. Não está em apreço a justiça que
tanto interessa ao juiz quanto ao réu. Trata-se da clemência.
Cabe, aqui, advertir para que a pessoa claramente lesada mantenha o autocontrole e,
suposto não haver perigo, que a penalidade seja perdoada. Caso contrário, que então seja
mitigada. Haja, igualmente, muito mais indulgência em face de injúrias pessoais do que
com ofensas aos outros.

3 - Com efeito, tal como não é próprio de um espírito grandioso fazer liberalidade com
bens alheios, já que o autêntico magnânimo é aquele que tira do seu para favorecer aos
outros assim também denomina-se clemente não quem é propenso ao perdão de dano alheio,
mas, sim, quem, embora fustigado pela irritação não reage com violência. Tal indivíduo
demonstra estar convicto de que é próprio de uma alma grandiosa suportar injúrias, ainda
que situado no altiplano do poder, já que nada mais glorioso que um príncipe ofendido,
mas impune.

CAPÍTULO XXI
As DUAS DIMENSÕES DA PENALIDADE

1 - O castigo produz duas consequências: dar satisfação à pessoa injuriada e ensejar


segurança para o futuro.
A posição do príncipe é bastante altaneira para necessitar de consolo e sua força é tão
manifesta que dispensa recurso contra a maldade para o bem da própria reputação.
Falo isso para o caso de agressão e ultraje da parte dos inferiores. Basta olhar como
estando abaixo de si quem ousa igualar-se e já está vingando.
Ao rei pode matar um escravo, uma cobra, uma seta, mas ninguém que não lhe for superior
terá o privilégio de salvá-lo.

2 - Ele que tem o poder de dar e de tirar a vida deve fazer uso desse precioso dom dos
deuses com nobreza de alma. Ainda mais em face daqueles que, tempos atrás, estiveram no
mesmo nível. O fato, agora, de ter sobre os demais poder, já satisfaz e aplaca a
vindicação. Isso equivale ao autêntico castigo.
Perde a vida quem a deve a outrem. Assim todo rei, arrancado das altitudes e prostrado
aos pés do adversário, esperando da boca dele a sentença final sobre sua vida e reino,
passa a viver para a glória de seu rival e, sendo preservado, concorre mais para a fama
do mesmo do que se estivesse sido rechaçado deste mundo.
Então ele passa a ser um espetáculo permanente da gloria do vencedor, ao passo que, em
cortejo triunfal, seria apenas um símbolo de curta duração.

3 - Se até pode, sem perigo, deixar-lhe o reino e repô-lo no trono de onde caíra, então,
com ingente incremento de aplauso, cresce o reconhecimento para quem se contentou em
fazer da vitória sobre um rei apenas motivo de glória.
Isso equivale a triunfar da própria vitória e demonstrar não ter feito dos vencidos senão
o que seria digno de um vitorioso.

4 - Com vassalos, desconhecidos e pessoas da baixa categoria social deve agir com tanto
mais moderação quanto exígua é a vantagem em afligi-los.
Se a uns perdoa com complacência, a outros recusa qualquer castigo, retirando de cima
deles as mãos tal como se fossem aqueles animaizinhos que sujam a quem os toca. Porém,
aqueles cujo perdão ou punição anda de boca em boca pela cidade inteira, esses te
proporcionam oportunidade e deves aproveitá-la para um gesto conspícuo de clemência.

CAPÍTULO XXII
OS OBJETIVOS DA LEI PENAL

I - Passemos, agora, para as injúrias feitas aos outros. Na punição delas, três são os
objetivos visados pela lei, sendo que também o príncipe deve ter em vista, a saber: ou
reformar o indivíduo punido ou puni-lo a fim de melhorar os outros ou, mediante o
afastamento do perverso, deixar os demais viverem com maior segurança.
Realmente, ninguém respeita a própria dignidade, quando ela já não existe. O fato mesmo
de não ser dado espaço para a punição, já configura um tipo negativo da impunidade.

2 - Os costumes civis são mais preservados, quando reina moderação no modo de aplicar a
penalidade.
A turba dos delinquentes reforça a prática da prevaricação, enquanto a sanção fica menos
perceptível quando elimina o volume de condenados.
Por sua vez; a severidade, esse remédio extremo, perde sua eficácia, se for aplicado com
muita frequência.
O príncipe reforça, na cidade, os bons costumes e purifica-a dos vícios, desde que saiba
como tolerá-los, não como quem autoriza e sim como quem, com muita repugnância, vê-se
forçado a castigá-los.
A clemência da parte do príncipe produz a vergonha do delito e a penalidade torna-se mais
severa, quando imposta por um juiz moderado.

CAPÍTULO XXIII
O CRIME É INCENTIVADO PELA PENALIDADE ESPECÍFICA

1 - Além do mais, verás que se cometem, de preferência, os crimes que são punidos com
mais frequência.
Teu pai, no espaço de cinco anos, coseu, em sacos, muito mais condenados do que os
penalizados daquele modo, ao longo de todos os séculos.
Os filhos ousavam menos cometer o mais execrando dos delitos enquanto o parricídio não
era fulminado por lei.
Com soberana prudência, os mais excelsos varões e os melhores conhecedores da natureza
humana preferiram omitir como inexiste tal audácia em vez de tomá-la possível, sob
pretexto de punição.
Foi assim que os parricidas surgiram com a lei. Foi a penalidade que os instigou para a
prática daquele hediondo crime.
O amor filial chegou a tal extrema degradação depois que, com maior frequência, passamos
a ver sacos e cruzes.

2 - Nas cidades, onde os criminosos são raramente castigados, realiza-se uma como que
concordância com a virtude de modo que a clemência é praticada em beneficio do bem comum.
Desde que a cidade opte pela moralidade, então ela se faz digna.
Ela se indignará mais contra os prevaricadores, uma vez que serão em número menor.
A meu ver, é perigoso mostrar para o público em geral quanto de criminosos existem, no
seu âmbito.

CAPÍTULO XXIV
O CONVÍVIO URBANO PRIVILEGIA A CLEMÊNCIA

1 - De certa feita, saiu um decreto do Senado impondo que os escravos ficassem


diferenciados dos cidadãos livres pela veste. A seguir, constatou-se como isso era
perigoso. É que então os escravos teriam como identifica o nosso contingente.
Saibas então que o mesmo deve ser temido, quando não se perdoa a ninguém. De imediato,
fica evidente que a parte malévola da cidade prepondera.
Ora, não causam menos desgosto ao príncipe as repetidas execuções do que os sepultamentos
para os médicos.
Aliás, quem governa de modo moderado é mais obedecido.

2 - O espírito humano é refratário. Ele se revolta contra obstáculo e dificuldade,


fazendo enfrentamento, já que prefere caminhar por si e não ser conduzido.
Assim como os cavalos de raça são melhor governadores com freio leve assim a bondade
natural, pelo seu próprio impulso, vai ao encalço da clemência. A cidade toma a peito
essa virtude. É por essa senda ela se aperfeiçoa na linha do bem.

CAPÍTULO XXV
O PIOR DOS FLAGELOS: A SEVÍCIA OU A CRUELDADE

1 - A crueldade é um mal nada humano. É indigna de um coração manso. Furor raivoso que se
compraz com sangue e ferimentos é típico de fera. Ora, equivale a despojar-se da
dignidade humana o fato de identificar-se com animal selvagem.
Eis que eu pergunto: que diferença há, ó Alexandre, entre lançares Lisímaco ao leão ou tu
mesmo dilacerá-lo com teus dentes?
Quanto desejarias ter aquelas patas e aquela goela apta para engolir um indivíduo por
inteiro.
Não exigimos de ti que essa mão assassina de amigos seja para alguém salutar ou que esse
teu temperamento feroz e insaciável de calamidade para as nações contente-se com outra
coisa que não seja sangue e carne, já que para ti ganha o nome de clemência a escolha do
verdugo que vai trucidar teu amigo.

2 - Eis o que deve ser alvo de máxima abominação: a sevícia. Essa supera os limites
costumeiros, depois os humanos, em busca de novos tipos de suplício. Ela chama em sua
ajuda o engenhoso que inventa instrumentos que diversificam os sofrimentos enquanto
prolonga-os e assim se deleita com as aflições do ser humano. Então aquela terrível
morbosidade de alma atinge o ponto extremo, quando a crueldade funde-se no prazer porque
então matar um ser humano vira motivo de alegria.

3 - Farejando o rastro desse tipo de monstro, rastejam a aversão, o ódio, o veneno e o


punhal. Tantas serão as ameaças desencadeadas quantos forem os indivíduos que as temem,
seja na forma de conspiração privada, seja na de eclosão, à surdina, de uma revolta
pública.
Uma maldade leve e pessoal não abala cidades inteiras, porém daí toma pé o enfurecimento
que acaba contaminando a todos. Então de todos os lados despontam as armas.

4 - As serpentes pequenas rastejam, furtando-se da visão sem serem perseguidas. Porém,


quando têm um tamanho acima do comum, elas tomam proporções de monstro.
Então com sua peçonha infeccionam as fontes e com seu hálito contaminam o espaço por onde
passam. É quando de todos os cantos são desferidas as flechadas.
Os males pequenos podem enganar e desaparecer, mas os grandes são perseguidos por nós.

5 - Assim um único enfermo não perturba a família, mas quando a frequência de morte
denúncia uma peste, a cidade inteira grita e todos os braços levantam-se para os deuses.
Se uma chama aparece sob um único teto, a família e os vizinhos acorrem, trazendo água.
Quando o incêndio é vasto e brota em muitas casas, então derrubam-se bairros inteiros da
cidade a fim de apagar as chamas.

CAPÍTULO XXVI
A CLEMÊNCIA OPÕE-SE À CRUELDADE

Mãos servis, sob ameaça certa da crucificação, vingam a crueldade dos particulares.
Nações e povos empenham-se por extirpar a crueldade dos tiranos, quando por eles
submetidos a suplícios ou ameaçados.
Vezes houve em que os próprios sequazes levantaram-se contra os tiranos e contra os
mesmos reverteram a perfídia, a impiedade atroz e tudo o mais que aprenderam, aplicando
tudo neles como retorno. Aliás, que outra coisa esperar de quem foi educado para a
prática do mal? No entanto, a perversidade nem sempre se manifesta como também nem sempre
é obsequiosa.
Pensas que a crueldade está tranquila? Como vai seu reinado? Seu aspecto não difere de
uma cidade subjugada: o pânico está estampado na sua face. Seu povo demonstra tristeza
porque receoso e confuso. Teme até as diversões. Não se frequenta encontro festivo porque
até a língua dos embriagados é vigiada. Também não se dá presença nos espetáculos
públicos, já que, ali, reina investigação criminal e outros perigos.
Por dispendiosa que tenha sido a montagem deles em nível de esplendor régio com artistas
famosos, que alegria trazem para diversão esse clima de cárcere?
Ó deuses! Que maldade é essa de matar, de ser cruel, de deleitar-se com o ranger das
algemas, de decapitar cidadãos, de derramar sangue à beça, de aterrorizar e pôr o povo em
fuga?
Como tudo isso seria diferente se os leões e os ursos reinassem, se as serpentes ou
qualquer outro animal nocivo exercessem poder sobre nós?
Os animais, embora privados de razão, nós os condenamos pela ferocidade, no entanto eles
se abstêm de causar dano a seus iguais e mesmo entre as feras a semelhança é garantia de
proteção.
Ao invés, o ódio dos tiranos não tem controle nem em relação aos parentes porquanto
maltrata por igual a estranhos e a amigos, sendo que a incidência mesma no crime torna-os
mais excitados.
Após a matança de seres humanos, eles passam para a destruição de povos e imaginam ser
poderoso quem incendeia residência ou passa o arado sobre cidades antigas porque seria
subestimada a própria soberania matar apenas um ou mais ao invés de eliminar, com os
mesmos golpes, multidões de infelizes. Se assim não agem, pensam que sua crueldade está
sofrendo repressão.
No entanto, felicidade mesmo é salvar a muitos, trazendo-os da morte para a vida. Assim é
que a clemência recebe a coroa cívica.
Nenhum ornamento é mais digno de um soberano nem mais formoso do que aquela coroa por ter
salvado a vida de seus súditos.
Não são armas de guerra captadas das mãos dos vencidos que decoram nem os carros rubros
de sangue bárbaro nem os despojos ganhos em batalhas.
Salvar povos inteiros é um poder divino. Matar em massa e, indiscriminadamente, equivale
ao poderio do incêndio e da ruína.

LIVRO II

CAPÍTULO I
UM PRONUNCIAMENTO ARQUÉTIPO

1 - O que me incentiva, ó César, para escrever acerca da clemência é uma palavra tua. Eu
me recordo de quando a ouvi, pleno fiquei de admiração que se renova, cada vez, que dela
me lembro.
Foi um pronunciamento generoso, magnânimo e referto de mansidão. Em síntese, uma palavra
sem artifício que brotou espontânea, demonstrando quanto era tua generosidade em desafio
com a fortuna.

2 - Na iminência de castigar dois ladrões, Burro, varão egrégio, prefeito de pretório,


nascido para servir a realeza, pedira que tu, ó César, escrevesses os nomes dos culpados
e o motivo da penalidade a ser-lhes aplicada. Já que tu sempre protelavas a decisão, ele
persistia, cobrando-a.
Embora Burro já estivesse indeciso, quando te apresentou o documento também tu, todo
relutante, exclamastes: "quisera eu não saber escrever".
Ó que exclamação digna de ser ouvida por todos os povos do Império Romano! Também por
aqueles que, nas suas imediações, gozam de liberdade precária e mesmo por aqueles que se
levantam contra ele com toda força e coragem.
Ó exclamação que deveria ser pronunciada diante da assembleia de todos os mortais. Assim
tais palavras serviram de juramento para príncipes e reis.
Ó exclamação digna da universal inocência do gênero humano. Ela merecia fazer reviver os
tempos idos!
Agora, calha bem essa união entre a equidade e o bem, com repúdio à cupidez pelo alheio
de onde provém toda maldade.
Oxalá o surgimento da piedade e da integridade a par da fidelidade e da modéstia, após o
prolongado reinado dos vícios, abra espaço para um século de felicidade e de virtude.

CAPÍTULO II
O EXEMPLO VEM DE CIMA: TAL CHEFE, TAL POVO.

1 - É gratificante, ó César, esperar e confiar para um futuro próximo a concretização, em


larga escala, desse sonho.
Então será difundida essa mansidão do teu espírito e difundir-se-á, paulatinamente,
através de toda a .estrutura do Império, sendo tudo reformulado pela tua imagem.
Da cabeça advém a saúde boa. Conforme a alma, viceja ou enlanguesce o organismo por
inteiro dela recebe vigor ou enfraquecimento.
Então haverá cidadãos, haverá aliados dignos desta tua bondade e para o orbe todo
retomarão os bons costumes com a ausência de mãos sanguinárias.

2 - Seja-me permitido deter-me mais a longo neste assunto sem afagar teus ouvidos. Isso,
aliás, não é do meu estilo, já que prefiro magoar com a verdade a espargir lisonjas. E
daí?
Independentemente do meu desejo que te sejam bem familiares tuas realizações e palavras a
fim de que quanto é, hoje, produto do teu temperamento e instinto natural converta-se em
reflexão criteriosa, ocorre-me recordar que muitas sentenças famosas, embora detestáveis,
foram inseridas no convívio humano, alcançando universal celebridade tal como aquela
"odeiem-me desde que me temam". Com essa faz parceria aquela outra: "depois de morto, que
o mundo pereça em chamas". E outras mais do mesmo timbre.

3 - Eu não entendo como gênios fecundos em tais monstruosidades tão detestáveis logram
expressar sentimentos de tamanha violência que geram perturbações.
Até agora ainda não ouvi voz alguma que se inspirasse no bem e na brandura.
Que quero dizer com isso?
Embora, tardiamente, contrariado e hesitante, mesmo assim é necessário que escrevas
aquela tua sentença que despertou em ti ódio por saberes escrever. Importa, sim, que,
agora, seja ela exarada, apesar das dúvidas e relutâncias.

CAPÍTULO III
A DEFINIÇÃO EXATA DE CLEMÊNCIA

1 - Para que não nos engane a simpática palavra "clemência" nem nos leve ao seu extremo
oposto, vejamos o que é clemência, em que consiste e dentro de que limites deve ser
mantida.
Clemência é a moderação de espírito humano no desempenho do poder de castigar ou então, a
brandura do superior em face do inferior, quando da aplicação da pena.
É mais seguro aduzir as muitas outras definições porque uma única não é suficiente para a
compreensão plena do tema. Ora, para formular de outro modo, corre-se o risco de findar
disperso em meio às formulações.
Em todo caso, pode a clemência ser definida como uma inclinação da alma para o
abrandamento no ato de impor um castigo.

2 - Outra definição que desperta contraditores, embora seja mais próxima da verdade, é a
que diz ser a clemência a moderação que cancela uma parte da pena merecida ou devida.
Seria então objetado que virtude alguma opera nada menos do que o devido.
Apesar disso, todos entendem que a clemência consiste em flexionar mais para o lado
oposto ao que poderia ser exigido pela justiça estrita.

CAPÍTULO IV
CLEMÊNCIA NÃO SE OPÕE À SEVERIDADE

l - Julgam os mal informados que a severidade conflita com a clemência. Acontece que
virtude nenhuma é contrária à outra. Que é então o oposto da clemência? A crueldade.
Esta não é outra coisa senão a dureza do coração no ato de aplicar a pena.
Dirias:
"Alguns há que sem imporem pena, são cruéis. Assim quem mata desconhecido e transeunte.
Age tal individuo não por cupidez e sim por mero prazer de matar. Pior. Não contente com
o matar ainda sevicia a vítima como fazia Busiris e Procuste. Também os piratas açoitam
os prisioneiros e lançam-nos vivos no fogo."

2 - Isso é realmente crueldade. Como, aí, não existe vingança, já que não antecedeu
ofensa, nem represália contra crime que não existe, então isso fica fora de nossa
definição. Nosso ponto de vista supõe a severidade no ato de aplicar a pena.
Poderíamos dizer que aquilo não é crueldade e, sim, ferocidade, porque há, ali, deleite
com a sevícia. Poder-se-ia qualificar como demência com suas várias espécies, sendo a
mais típica aquela que finda em matança e esquartejamento.

3 - Classifico também como cruéis aqueles que têm motivo para castigar, porém não possuem
moderação. Assim era Falaris. Dele dizem que se enfurecia não contra os inocentes, mas
contra qualquer norma humana digna de acatamento.
Evitando subtileza, podemos definir a crueldade como uma tendência psíquica para o
rigorismo. Bem isso é que a clemência repele e mantém distante. Em compensação, ela é
compatível com a severidade.

4 - Agora, cabe investigar o que é misericórdia. Muitos há que a exaltam como virtude e
denominam a pessoa boa misericordiosa. Ora, esta é um vício de alma.
Ficou estabelecido, acima, o que deve ser conceituado acerca da severidade e da
clemência. Sob a máscara de severidade podemos decair na crueldade enquanto sob a
aparência de clemência praticar misericórdia. Verdade que essa é mais leve do aquela, no
entanto ambas erram em ficarem distantes da verdade.
CAPÍTULO V•
A DIFERENÇA ENTRE CLEMÊNCIA E MISERICÓRDIA

1 - Tal como a religião cultua os deuses enquanto a superstição ultraja-os, assim todo
indivíduo bom demonstra clemência e mansidão, porém evita a misericórdia, já que esta é
uma debilidade da alma que desfalece diante dos males alheios.
Ela se torna afeiçoadíssima dos piores caracteres. São as velhas e mulheres simplórias
que se emocionam com as lágrimas dos criminosos. Se lhes fossem possível, elas
arrombariam os portões dos cárceres.
A misericórdia não atenta para a causa do delito, só vê o sofrimento. Ao invés, a
clemência leva em conta as causas.

2 - Eu sei que para os mal informados a corrente filosófica dos Estoicos é tida como
muito rigorosa e por isso nada apta para propor qualquer bom conselho para os príncipes e
reis. Ela, com efeito, é acusada de proibir para o sábio ter compaixão e de vetar-lhe
conceder perdão.
Ora, isso, à primeira vista, parece ser inadmissível porque não deixa para o erro humano
expectativa alguma além da punição pelo delito.

3 - Mas, se assim fosse, que resta então dessa teoria que manda desempenhar plenitude de
humanidade e trancar qualquer reduto seguro para a má-fortuna, quando fala do dever da
mútua ajuda?
Fato é que não existe corrente filosófica mais benigna nem mais branda nem mais voltada
para o bem comum. Seu intento não é só a utilidade pessoal. É, sim, o bem de todos e de
cada um.

4 - A misericórdia é uma doença de alma perante a miséria alheia. Ela se entristece por
pensar que os castigos aplicados são imerecidos.
No entanto, enfermidade psicológica nenhuma afeta o sábio. Ele desfruta de mente serena.
Nada a perturba.
Coisa alguma convém tão adequadamente ao ser humano como a grandeza de alma e nada pode
ser grandioso e tristonho ao mesmo tempo.

5 - A aflição abala a mente, deprime-a, coartando-a.


Ora, isso não acontece para o sábio nem em suas calamidades, já que ele reverte a ira da
fortuna e quebranta-a sob seus pés.
Ele ostenta sempre o mesmo rosto plácido, imperturbável. Ora, isso não poderia ocorrer,
se ele fosse palco de amargura.

CAPÍTULO VI
O SÁBIO É GENEROSO, MAS IMPERTURBÁVEL. É CLEMENTE SEM SER MISERICORDIOSO.

1 - Seja ainda acrescentado que o sábio é previdente e, com rapidez, leva a cabo suas
decisões. Mas o que advém de fronte agitada nunca é límpido e claro. A tristeza não é
apta para discernir, para ver o aspecto de utilidade, para prevenir-se de perigo ou para
avaliar o que justo. Por conseguinte, o sábio não se compadece de modo misericordioso
porque isso implica fraqueza de alma.

2 - Todas aquelas coisas que praticam os motivados pela misericórdia, ele o faz de bom
grado e com grandeza de alma. Assim, enxuga as lágrimas do próximo, mas sem verter choro.
Dão socorro aos náufragos, asilo aos desterrados, ajuda ao indigente, no entanto, não
aquele socorro humilhante que expressa nojo e desdém como acontece naqueles que querem
mostrar-se compassivos e que temem ser tocados por aqueles que são socorridos.
Antes, partilha de homem para homem o bem comum, Por isso entrega o filho à mãe em pranto
como manda afrouxar as algemas ou ainda retirar da arena. Do mesmo modo sepulta o cadáver
do culpado, porém tudo isso fará de alma tranquila sem alterar sequer a fisionomia do
próprio rosto.

3 - Por isso o sábio não compadece, porém, socorre e é útil. Nascido para a ajuda mutua e
para o bem público, ele oferece a cada um sua contribuição.
Estenderá sua bondade mesmo aos desventurados, aos merecedores de repreensão e
susceptíveis de reprimenda, dando a cada qual o que merece. Aos aflitos e aos mais
violentamente desgastados socorre com muita presteza.
Sempre que lhe é possível, vai aparar os golpes da fortuna. Ora, onde melhor empregaria
sua riqueza e suas forças do que na recuperação de quanto o azar destrói?
Está seguro que seu rosto não se deprime perante o espetáculo de uma perna enfraquecida
ou de um corpo emagrecido ou de uma decrepitude sustentada por um bastão. Por isso leva
ajuda a todos e a guisa dos deuses olha os desditosos, com preferência.
4 - A misericórdia é vizinha da miséria porque tem algo em comum com ela.
Saibas que são fracos os olhos que perante a remela alheia ofuscam-se. Eis o que é
dolência e não alegria: rir com quem ri e bocejar com quem boceja.
A misericórdia é uma fraqueza de alma que se amedronta ante a grandeza da miséria.
Solicitar do sábio tal atitude equivale a esperar que derrame lágrimas em funeral de
pessoa desconhecida.

CAPÍTULO VII
O SÁBIO NÃO DEVE CONCEDER PERDÃO TOTAL

1 - Então por que não perdoar?


Vamos, agora, definir o que é perdão e assim saberemos a razão pela qual o sábio não pode
nem deve concedê-lo.
Perdão significa cancelamento da pena merecida. A razão pela qual o sábio não o deve dar
é, fartamente, explanada pelos expositores deste tema.
Eu direi em poucas palavras o que eles ensinam.

2 - É perdoado a quem se devia castigar. O sábio só faz o que deve ser feito. Nada omite
do que deve, enquanto que a pena que deve exigir, ele não a daria?
No entanto, o que queres conseguir com o perdão irás conseguir por um meio mais adequado.
Ele se condói. Vê o bem alheio. Corrige. Fará como se perdoasse, sem perdoar. Quem perdoa
confessa ter omitido algo do que era devido fazer. A este admoestará com palavras e não
lhe infligirá o castigo em atenção a pouca idade do infrator, sendo ele perfeitamente
corrigível. A outro, manifestamente, assustado pela monstruosidade do crime, deixará
incólume porque foi enganado ou levado ao erro pela embriaguez.
Deixará em liberdade inimigos, até com elogios, se eles enfrentaram a guerra por causas
honestas tal como a fidelidade ou aliança ou por causa de liberdade.

3 - Ora, todas essas ações nada têm de perdão e sim, tudo de clemência.
A clemência mantém liberdade de decisão. Não julga segundo fórmulas e sim de acordo com a
equidade e o bem. É-lhe lícito absolver e avaliar a lide pelo critério individual.
Nenhuma dessas coisas ela faz como se preterisse o que é justo, mas, sim, como quem se
pauta pelo teor mais justo possível.
Perdoar é não castigar a quem crês merecedor de castigo; perdão é o cancelamento da pena
devida.
Por sua vez, a clemência prima pelo seguinte: anunciar que aqueles que ela deixa em
liberdade nada mais irão padecer. Ela é mais completa que o mero perdão e por isso é mais
respeitável.

4 - A meu ver, isso tudo é briga por palavras. Em cima do tema, há acordo. O sábio
aplicará muitos castigos, mas liberará aqueles condenados que são recuperáveis.
Assim ele imita o lavrador que não cultiva árvores já retas e altas, mas cuida de arribar
a uma torta e a outra torcida.
A outra ele poda para que os ramos não lhe embaracem o crescimento.
A outras, por problema de terreno, ele abandona e outras impedidos pela sombra da
companheira, ele desbasta e abre espaço para o alto.
Assim o sábio saberá ver qual o melhor para cada um e qual o método para recuperar
coração retorcido.

Você também pode gostar