A) Livro José Marias - Agostinho

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EN igs Julian Maria Esta obra foi publica originalmente em espankol com o titulo HISTORIA DE LA FILOSOFIA por Alianza Editovial, Madri. Copyright © Julién Mavfas, 1941. Copyright © 2004, Livraria Martins Fomes Editora Lida, ‘Sdo Paulo, para a presente edigdo. A presente edigio foi traducidla com a ajuda da Direccién General del Libro, Archivos y Bibliotecas do Ministerio de Educacién, Cultura y Deporte. da Espanka, Fedigao Junho de 2004 ‘Tradugio (CLAUDIA BERLINER Revisio téeniea Franklin Leopoldo e Silva Acompanhamento editorial Lucia Aparecida dos Santos Revisbes gréficas Renato da Rocka Carlos Sandra Garcia Cortes Dinarte Zorzanelli da Sitva Producao grifiea Geraldo Alves Poginacio/Fotolitos Studio 3 Desenvolvimento Editorial Dados Internacionais de Catalogacao na Publicagio (CTP) (Cmara Brasileira do Livro, SP, Brasit) ‘Maries, Juin, 1914- Histria da flosofia / Julian Macias; prologo de Xavier Zubir epilogo de José Ontega y Gasset; tradugio Claudia Berlin ‘io técnica Franklin Leopoldo e Silva. tes, 2004, ‘io Paulo : Martins Fon- ‘Titulo original: Historia de la filosoia Bibliograia. ISBN 85-336-1992-8 1. Filosofia — Histéria 1 Zubiri, Xavier. I, Ortega y Gasset, José 1M. Titulo, 04-3080 epp-109 Tndces para eatilogo sstemtico 1: Flosofin:Histria | 109 Todos os direitos desta edigdo para o Brasil reservados & Livraria Martins Fontes Editora Ltda. ‘Rua Consetheiro Ramatho, 330'340 01325-000 Sao Paulo SP Brasil Tel. (11) 3241.3677 Fax (11) 3105.6867 e-mail: [email protected] hitp:liwww.martinsfontes.com.br IL. SANTO AGOSTINHO 1, A vida e a pessoa Santo Agostinho € uma das figuras mais interessantes de seu tempo, do cristianismo e da filosofia. Sua personalidade originalissi- mae rica deixa uma marca profunda em todas as coisas em que poe a mao. A filosofia e a teologia medievais, ou seja, o que se conhece por ‘ Escoléstica, toda a dogmatica crista, disciptinas inteiras como a filoso- fia do espirito ¢ a filosofia da histéria, ostentam a marca inconfundi- vel que lhes imprimiu. Mais ainda: o espirito cristao e o da moderni- dade foram decisivamente influenciados por Santo Agostinho: ¢ tanto a Reforma como a Contra-Reforma recorreram de modo particular as fontes agostinianas. Santo Agostinho ¢ um africano. Nao nos esquecamos disso. Afri- cano como Tertuliano, filho daquela Africa romanizada e cristianiza- da do século IV, semeada de heresias, onde convivem {orcas religiosas diversas, animadas por uma paixao extraordindria. Nasce em Tagaste, na Numfdia, perto de Cartago, em 354. Em sua ascendéncia encon- tram-se duas influéncias bem distintas: seu pai, Patricio, magistrado pagao, batizado apenas ao morrer, homem violento e iracundo, de in- flamada sensualidade, que tanto viria a perturbar Agostinho; sua mae, Monica, canonizada depois pela Igreja, mulher de grande virtude e profundo espitito cristao. Agostinho, que amou apaixonadamente sua mie, teve de se debater entre os impulsos de sua dupla heranga. Muito jovem, Aurélio Agostinho fez seus primeiros estudos em Tagaste, em Madaura e depois, aos dezesseis anos, vai para Cartago. 123 + A ~ HISTORIA Da FILOSCFIA Nessa época apaixona-se por uma mulher, ¢ dela nasce seu filho Adeo- dato. Também nessa época Agostinho encontra pela primeira vez a revelagao filoséfica, ao ler o Hortensio, de Cicero, que Ihe causou uma impresséo muito forte. Desde entao.tomou consciéncia do problema filos6fico, e o afé da verdade nao.mais o abandonaria até a morte. Busca a Escritura, mas lhe parece pueril, ea soberbia frustra esse pri- meito contato com o cristianismo. Entao vai buscar a verdade na sei- ta maniqueista. Manes nasceu na Babilonia no comeco do século Ill e pregou sua fé pela Pérsia e por quase toda a Asia, até a india ¢ a China. De volta 4 ‘\Pérsia, foi preso ¢ morreu em suplicio. Mas sua influéncia também se lestendeu pelo Ocidente e foi um grave problema para o cristianismo até meados da Idade Média. O maniqueismo contém muitos elemen- tos cristdos e das diversas heresias, alguns elementos budistas, influen- cias gnésticas e, sobretudo, idéias fundamentais do masdefsmo, da re- ligido persa de Zoroastro. Seu ponto de partida ¢ o dualismo irreduti- vel do bem e do mal, da luz e das uevas, de Deus e do diabo, em suma. A vida inteira é uma luta entre os dois princfpios inconcilidveis. Santo Agostinho acudiu ao maniqueismo cheio de entusiasmo. Em Cartago leciona retérica e eloqiéncia e se dedica 4 astrolo- gia ea filosofia. Depois vai para Roma, e dali para Miléo onde sua mae vai encontra-lo. Em Mildo conhece o grande bispo Santo Ambrésio, tedlogo e orador, a quem escuta assiduamente, ¢ que tanto contribuiu para sua conversio. Descobre entdo a superioridade da Escritura e, ainda nao sendo catdlico, afasta-se da seita de Manes; por ultimo, in- gressa na Igreja como catectimeno. A partir daf vai se aproximando cada vez mais do cristianismo; estuda Sao Paulo ¢ os neoplatonicos, ¢ o ano de 386 é para ele uma data decisiva. Num jardim milanés, tem, uma crise de choro e de desagrado consigo mesmo, de arrependimen- to e anguistia, até que escuta uma voz infantil que the ordena: “Tolle, lege”, toma e lé. Agostinho apanha o Novo Testamento ¢ ao abri-lo lé um versiculo da Epfstola aos Romanos que alude a vida de Cristo ante os apetites da carne. Sente-se transformado e livre, cheio de luz; o obstaculo da sensualidade desaparece nele. Agostinho ja € totalmente cristao, 124 SANTO AGOSTINHO A partir desse momento sua vida é outra, ¢ ele se dedica integral- mente a Deus e a sua atividade religiosa e teoldgica. Sua histéria passa ase confundir com suas obras e seu trabalho evangeélico. Retira-se por uma temporada numa propriedade rural, com sua mie, seu filho e al- guns discipulos, ¢ dessa estada proceder alguns de seus escritos mais interessantes. Em seguida é batizado por Santo Ambrésio e se dispde a voltar para a Africa. Antes de sair da Italia, Agostinho perde a mae, e chora angustiadamente; dois anos depois, j em Cartago, morte o fi- lho. Em seguida é ordenado sacerdote em Hipona e mais tarde consa- grado bispo desta mesma cidade. Sua atividade é extraordinaria, e jun- to com o exempio fervoroso de sua alma crista vao surgindo suas obras. Em agosto de 430 Santo Agostinho morre em Hipona. Obras + A producao agostiniana é copiosissima, de alcance e va- lor desiguais. As obras mais importantes so as referentes 4 dogmatica eA teologia, e as que expdem seu pensamento filoséfico. Sobretudo, as seguintes: Os treze livros das Confissées, um livro autobiografico em que Agostinho conta, com uma intimidade desconhecida no mundo an- tigo, sua vida até o ano de 387, ¢ ao mesmo tempo mostra sua for- macao intelectual € as etapas por que sua alma passou até chegar a verdade crist , que ilumina sua vida inteira, confessando-a perante Deus. E um livro sem equivalente na literatura, de altissimo interes- se filosdfico. A outra obra maxima de Santo Agostinho é a intitulada De civita- te Dei, a cidade de Deus. E a primeira filosofia da historia, e sua in- fluéncia perdurou até Bossuet ¢ Hegel. Ao lado dessas duas obras podemos incluir os trés didlogos que se seguiram a sua conversao, De beata vita, Contra academicos e De or- dine. Além desses, os Soliloquia, o De Trinitate etc. Santo Agostinho recolhe uma série de doutrinas helenicas, so- bretudo neoplatonicas, de Plotino e Porfirio; conhece Aristoteles e somente por via indi m um conh maior dos estéicos, epicuristas, académicos e, sobretudo, de ¢ Cicero.” Esse impértanissinio pattiménio da filosofia grega passa para 0 cris- tianismo e para a Idade Média através de Santo Agostinho. Mas ele | HISTORIA DA FILOSOFIA geralmente adapta as contribuicées dos gregos as necessidades filos6- ficas da dogmatica crista; 6 o primeiro momento em que a filosofia grega como tal vai entrar em contato com o cristianismo. Gragas a esse trabalho, a fixacao dos dogmas da um passo gigantesco, e Santo Agos- tinho se torna o mais importante dos Padres da Igreja latina. Sua obra filoséfica ¢ uma das principais fontes em que se abeberou a metafisi- ca posterior, e dela nos ocuparemos de forma minuciosa. 2. A filosofia A formulacao do problema * O contetido da filosofia agostinia- na se expressa do modo inais radical nos Soliléquios: Deum et animam scire cupio. Nihilne plus? Nihil omnino. Quero saber de Deus e da alma. Nada mais? Nada mais em absoluto. Ou seja, ha apenas dois temas na filosofia agostiniana: Deus e a alma. O centro da especulacao sera Deus, de onde brota seu trabalho metafisico e teolégico; por outro lado, Santo Agostinho, o homem da intimidade e da confissdo, nos legara a filosofia do espirito; e, por ultimo, a relacdo desse espirito, que vive no mundo, com Deus o levara a idéia da civitas Dei, e com ela a filo- sofia da historia. Estas sao as trés grandes contribuigdes de Santo Agos- tinho 8 filosofia e a riplice raiz de seu problema. Deus * Esse cardter do pensamento agostiniano tem importan- tes conseqtiéncias; uma delas, a de por o amor, a caridade em pri- meiro plano na vida intelectual do homem. O conhecimento néo-se da se m amor, Si sapientia Deus est — escreve em De civitate Dei ~, ve- vis philosophus est amator Dei. E de forma ainda mais clara afirma: Non intratuy in veritatem nisi per caritatem. Nao se entra na verdade sendo pela caridade. Por isso, 0 que move a propria raiz de seu pen- samento € a religido, ¢ € esta que poe em movimento sua filosofia. De Agostinho provém a idéia da fides quaerens intellectum, a fé que bus: ca.a compreensio, ¢ o principic credo ut intelligam, creio para dei, ie Terao repercussées t4o profundas na Escolastica, sobretudo em Safito“Anselmo e Santo Tomas. Os problemas da relagao entre fé e cigncia, entre religido e teologia ja est4o formulados em Santo Agostinho. 126 SANTO AGOSTINO 0 Om Santo Agostinho recolhe o pensamento platonico, mas com im-: portantes alteragées. Em Platao, o ponto de partida sao as coisas; San-} to Agostinho, em contrapartida, apdia-se sobretudo na alma como: realidade intima, no que chama de o homem interior: Por isso a dialéti- | ca agostiniana para buscar Deus € confissiio. Santo Agostinho conta sua | vida. A alma se eleva dos corpos a ela mesma, depois a razio e, por \ ultimo, 4 luz que a ilumina, a Deus ele mesmo. Chega-se a Deus des- de a realidade criada, e sobretudo desde a intimidade do homem. Como o homem € a imagem de Deus, encontra-o, como num es- pelho, na intimidade de sua alma; afastar-se de Deus é como extrair as proprias entranhas, esvaziar-se e ser cada vez menos; quando o ho- mem, em troca, entra em si mesmo, descobre a Divindade. Mas é ape- nas mediante uma iluminacdo sobrenatural que 0 homem pode CO nhecer Deus de modo direto. ~ Segundo a doutrina de Santo Agostinho, Deus criou o mundo a partir do nada, ou seja, nao a partir de seu préprio ser, e livremente. Também incorpora a teoria platonica das idéias. No sistema agostinia- no, contudo, estas estao alojadas na mente divina: sao os modelos exemplares, segundo os quais Deus criou as coisas por uma decisao de sua voniade. Aalma + Aalma tem um papel importantissimo na filosofia agos- tiniana. O mais interessante nao é sua doutrina sobre ela, mas, sobre- tudo, o fato de que nos pde em contato com sua peculiar realidade, como ninguém fizera antes dele. A andlise intima de sua propria al- ta, que constitui o tema das Confissdes, é de imenso valor para 0 co- nhecimento interior do homem. Por exemplo, a contribuicio de San- to Agostinho para o problema da experiéncia da morte. A alma é espiritual. O carater do espiritual nao é simplesmente negativo, ou seja, a imaterialidade, mas algo positivo: a faculdade de entrar em si mesmo. © espirito tem um dentro, um chez soi, em que pode se recluir, privilégio que ndo compartilha com nenhuma outra reali- dade. Santo Agostinho é o homem da interioridade: Noli foras ire, in te vedi, in interiore homine habitat veritas, escreve em De vera religione. © homem, que ¢ simultaneamente racional - como 0 anjo — e€ mortal — como animal —, ocupa um lugar intermedidrio. Mas, sobretu- 127 / HISTORIA DA FILOSOFIA do, é imagem de Deus, imago Dei, por ser uma mente, um espfrito. Na triplicidade das faculdades da alma, memoria, inteligencia ¢ vontade ou amor, Santo Agostinho descobre um vestigio da Trindade. A uni- dade da pessoa, que tem essas tres faculdades intimamente entrelaga- das, mas nao ¢ nenhuma delas, é a do eu, que recorda, entende e ama, com perfeita distincdo, mas mantendo a unidade da vida, da mente € da esséncia. Santo Agostinho afirma — com férmulas anatogas 4 do cogite car- ~ tesiano, embora distintas por seu sentido profundo e seu alcance filo- séfico — a evidéncia intima do eu, alheio a qualquer possivel duvida, diferentemente do testemunho dubiravel dos sentidos corporais e do pensamento sobre as coisas. “Nestas verdades, ndo é preciso temer — diz (De civitate Dei, X1, 26) - os argumentos dos académicos, que di- zem: E se estiveres enganado? Pois se me engano, sou. Pois o que nao existe, na verdade nem se enganar pode, por isso existo se me enga- no. Ej que existo se me engano, como posso me enganar sobre o fato de que existo, quando é certo que existo se me engano? Portanto, como eu, o enganado, existiria mesmo se me enganasse, sem duvida néio me engano ao conhecer que existo.” Aalma, que por sua razao natural ou ratio inferior conhece as coi- ‘sas, a si mesma e, indiretamente, Deus, refletido nas criaturas, pode teceber uma iluminacao sobrenatural de Deus e mediante essa ratio superior elevar-se ao conhecimento das coisas eternas. Qual a origem da alma? Santo Agostinho fica um tanto perplexo ante esta questao. Hesita, e com ele toda a Patristica e a primeira par- te da Idade Média, entre o generacionismo ou traducianismo e 0 cria- cionismo. A alma também é engendrada pelas almas dos pais, ou € criada por Deus por ocasiado da concepgao do corpo? A doutrina do pecado original, que Ihe parece mais compreenstvel se a alma do filho procede diretamente dos pais, como 0 corpo, leva-o a se inclinar para © generacionismo; mas ao mesmo tempo sente a fraqueza dessa teoria e nao rejeita a solugao criacionista. O homem no mundo * O problema moral em Santo Agostinho aparece intimamente relacionado com as questoes teolégicas da natu- reza e da graca, da predestinacdo ¢ da liberdade da vontade humana, 128 SANTO AGOSTINHO do pecado e da redencao, em cujos detalhes nao podemos entrar aqui. No entanto, cleve-se notar que todo esse complexo de problemas teo- ldgicos exerceu grande influéncia no desenvolvimento posterior da ética crista. Por outro lado, os escritos agostinianos, exagerados e des- viados de seu sentido préprio, foram amplaimente utilizados pela Re- forma no século XVI — nao esquecamos que Lutero era um monge agostiniano ~, e desse modo uma raiz agostiniana persiste na ética moderna de filiagdo protestante. Su he peal eS Para Santo Agostinho, do mesmo moda que o homem tem uma; luz natural que lhe permite conhecer, tem uma consciéncia moral. A Ici eterna divina, a que tudo esta submetido, ilumina nossa inteligéncia, e seus imperativos constituem a lei natural. E como uma transcricio da” lei divina em nossa alma. Tudo deve estar sujeito a uma ordem perfei- ta: ut omnia sint ordenatissima. Mas nao basta o homem conhecer a lei: preciso também que a queira; aqui aparece o problema da voniade. ¢ A alma tem um peso que a move € a conduz, e este peso é 0 amor: pondus meum amor meus. O amor é ativo, ¢ é ele que, em tiltima instancia, determina e qualifica a vontade: recta itaque voluntas est bo- nus amor et voluntas perversa malus amor. O amor bom, isto é, a carida- de em seu sentido mais proprio, é o ponto central da ética agostinia~ na, Por isso sua expressao mais densa e concisa € 0 famoso imperati- vo ama ¢ faz o que quiseres (Dilige, et quod vis fac). Como a ética, também a filosofia do Estado ¢ da historia depen- de de Deus em Santo Agostinho. Vive em dias criticos para o Império. Aestrutura politica do mundo antigo esta se transformando de modo acelerado para dar lugar a outra. A presstio dos barbaros é cada dia maior, Alarico chega a ocupar Roma. O cristianismo ja penetrara pro- fundamente na sociedade romana, e os pagios atribuiam as desventu- Tas que ocorriam ao abandono dos deuses ¢ ao cristianismo; ja Tertu- liano tivera de desmentir essas acusacoes; ¢ nesse mesmo sentido San- to Agostinho empreendeu uma enorme obra apologgtica, na qual ex- pie todo o sentido da historia: A cidade de Deus. A idéia central de Agostinho é que toda a historia humana é uma luta entre dois reinos, o de Deus ¢ o do Mundo, entre a civitas Dei e a civitas terrena. O Estado, que tem suas raizes em principios profundos 129 HISTORIA DA FILOSOFIA da natureza humana, esta encarregado de velar pelas coisas tempo- rais: o bem-estar, a paz, a justica. Isso faz com que o Estado tenha tam- bém uma significacdo divina. Toda autoridade vem de Deus, ensina Santo Agostinho, seguindo Sao Paulo, E, portanto, os valores religio- ., S08 TidO sho alheios a0 Estado, ¢ este tent de estar impregnado dos prin {.._.. Sipios cristaos. Ao mesmo tempo tert de prestar apoio W 1grea com “seu poder, para que esta possa realizar plenamente sua missao. Como a ética, em Santo Agostinho a politica nao pode ser separada da cons- ciéncia de que o fim tiltimo do homem nao ¢ terreno, ¢ sim descobrit Deus na verdade que reside no interior da criatura humana. 3. A significacao de Santo Agostinho Santo Agostinho — como ja foi dito — é o wltimo homem antigo e © primeiro homem modero. E um filho daquela Africa romanizada, penetrada pela cultura greco-romana, ha muito transformada em pro- vincia imperial. Seu século vé um mundo em crise, ameacado por to- dos os lados, mas que ainda subsiste. © horizonte social ¢ politico que encontra é o Império Romano, a criacdo maxima da historia anti- ga. As fontes intelectuais que alimentam Santo Agostinho sao em sua maioria de origem helénica. Portanto, a antiguidade nutre o pensa- mento agostiniano. Mas nao € s6 isso. Essa influéncia é mais profunda porque Agos- tinho nao é cristao desde o principio; sua primeira visdo da filosofia the chega de uma fonte claramente gentilica, como é Cicero, um dos hhomens mais representatives do modo de ser do homem antigo. O cristianismo tarda em conquistar Agostinho: Sero te amavi, pulchritudo tan antiqua et tam nova!, exclama Santo Agostinho nas Confissdes. Segundo Ortega, “Santo Agostinho, que permanecera por muito tempo imerso no paganismo, que vira o mundo em grande medida pelos olhos ‘antigos’ nao podia evitar uma profunda estima por esses valores animais da Grécia e de Roma. A luz de sua nova [é, aquela existéncia sem Deus tinha de lhe parecer nula e vazia. Nao obstante, era tal a evidéncia com que ante sua intuigdo se afirmava a graca vital do paganismo, que costumava expressar sua estima com uma frase 130 SANTO AGOSTINHO equivoca: Virtutes ethnicorum splendida vitia ~ ‘As virtudes dos pagaos sao vicios espléndidos’. Vicios? Entao sao valores negatives. Espléndi- dos? Entdo sao valores positivos”’. Esta é a situagéo em que se encontra-Santo Agostinho. Vé o mun- do com olhos pagaos e entende em sua plenitude a maravilha do mun- do antigo. Mas, desde o cristianismo, parece-lhe que tudo isso, sem Deus, € um puro nada e um mal. O mundo — e com ele a cultura clas- sica — tem um enorme valor; mas é preciso entende-lo e viveé-lo desde Deus. Sé assim pode ser estimado aos olhos de um cristao. Mas esse homem fronteirigo que € Santo Agostinho, que vive no limite entre dois mundos distintos, nao s6 conhece e abarca os dois, como chega ao mais profundo e original de ambos. E talvez a mente antiga que melhor compreende a significacao total do Império e da historia romanos. Por outro lado, Santo Agostinho representa um dos exemplos maximos de realizacao da idéia do cristianismo, wm dos trés ou quatro modos supremos de tradugdo do homem novo. Toda a Es- coldstica, apesar de suas figuras eminentes, vai depender essencial- mente de Santo Agostinho. O titimo homem antigo € 0 comeco da grande etapa medieval da Europa. E Santo Agostinho mostra também algo caracteristico, nao s6 do cristianismo, mas da época moderna: a intimidade. Vimos que seu cen- tro é o homem interior. Pede ao homem que entte na interioridade de sua mente para encontrar-se a si mesmo e, consigo, Deus. E a grande ligdo que sera aprendida primeiro por Santo Anselmo, e com ele por toda a mistica de Ocidente. Em contraste com a dispersao no externo propria do homem antigo, homem de agora e foro, Santo Agostinho se encontra com regozijo na interioridade de seu proprio eu. E isso o leva a afirmagio do eu como critério supremo de certeza, numa f6r- mula préxima do cogito cartesiano, embora pensada a partir de outros pressuipostos: Omnis qui se dubitatem intelligit, verum intelligit, et de hac re quam intelligt, certus est. 1 Ortega acrescenta a seguinte nota: “Como é sabido, esta {érmula, desde sem- pre atribuida a Santo Agostinho, nio se encontra em suas obras; mas toda sua pro- duclo a parafraseia, Vide Mausbach: Die Ethik Augustinus.” 131 HISTORIA DA FILOSOFIA Santo Agostinho conseguiu possuir, como ninguém em seu tem- po, o que viria a constituir a propria esséncia de outro modo de ser; dai sua incomparavel fecundidade. As confissdes sfio a primeira tenta- tiva do homem de se aproximar de si mesmo. Até 0 idealismo, até 0 século XVII, ndo se chegaré a nadai'semelhante. E nesse momento, quando, com Descartes, o homem médemo se voltar para si mesmo e ficar a sés com seu eu, Santo Agostinho adquirira de novo uma pro- funda influéncia. Santo Agostinho determinou uma das duas grandes diregaes do cristianismo, a da interioridade, e fez com que chegasse a seus whtimos extremos. A outra diregdo ficou nas maos dos tedlogos gregos e, por isso, na igreja do Oriente. Isso decidiu em boa medida a historia da Europa, que desde seu nascimento traz a marca do pensamento agos- Uniano. 132

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