Rap Brasil

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UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO SUL

INSTITUTO DE FILOSOFIA E CIÊNCIAS HUMANAS


DEPARTAMENTO DE HISTÓRIA

Se eles devem, eles temem: o papel do rap brasileiro na crítica à política


contemporânea.

Afonso Corrêa Cavagnoli Soares


Johann Krey Karoly
Disscanse em Paz

“Chinaski salva o Brasil!


Vai, Don Chinaski! Vai, salva o Brasil!
Concentra e calma, mira e dispara
Tiro na cara, mata esse imbecil
Cada verso perverso é como uma rajada
Que nem Marighella portando fuzil
Massa cefálica suja a calçada
Acho que seu mito canalha caiu

Não precisamos de mais retrógrados


Chega de armas, queremos livros
Nós não queremos riquezas em sarcófagos
Sem liberdade não estamos vivos
Vi a pobreza de perto, é um inferno
Senti a dor que nos leva pro crime
Não é um playboy militar que vai opinar
Ou julgar sobre o que nos define
Não tem cabimento, não seja um jumento

Até um cachorro entende essa equação


As mazelas da alma, os trauma e a dor
Se cura com amor, saúde e educação
Você não é sociólogo nem antropólogo
Psicólogo e nem pedagogo
Senhor candidato é menino mimado
Soldado frustrado, grande demagogo
Eu não sou petista, eu sou bolchevique
Fascistas amarro e depois toco fogo
Eu sou pró-vida, mas sou contra a vida
Dos filha da puta que mata meu povo
Isso é pela alma de todos moleque
Que tão nessa porra sem ver uma saída
E cada voto que eu tirar do verme
Vai ser como se eu salvasse alguma vida
É triste explicar o óbvio
Pra que vocês compreendam o processo
Vosso candidato é mentira e ódio
Tipo a porra do racismo reverso
É triste explicar o óbvio
Deixa que eu faço a tal tradução
Vão colocar Maria na miséria
Seu João na cadeia e José no caixão
Chinaski é porrada, facada, só que enferrujada
No bucho da maldita mídia
Já matei uns rappers com tanta pancada
Agora vou pra História como antagonista
Desses malditos medievais pensamentos
Que deixam sem voz vários dos movimentos
E abrem caminho pra uma estrada fascista
De coronéis burros e violentos
Eu vou te jogar no oceano
Pra ver se tu entende o refugiado africano
Jair, cê sabe nadar?
Palavras são águas e eu tô te afogando!
Verdades são águas e eu tenho um oceano
Seu candidato não tem uma poça
Seu candidato não lava uma louça
Parece um senhor de engenho que estuprava as moça

Livres pensadores assustam


Conservadores só conservam dores
Vocês têm medo da mudança
Malditos escravos de antigos valores
Então não me falem de Jesus
Assim como Ele, eu entrego meu corpo
Se Cristo ainda tivesse vivo
Ele me ajudava a matar esse porco”

Diomedes Chinaski, 2018


Sendo tradicionalmente uma das formas de expressão cultural das
classes baixas e minorias no Brasil, o Rap, cada vez com maior público, se
consolida cada vez mais como uma voz dos reprimidos pela sociedade e as
instituições políticas do país. A recente ascensão de nomes da extrema-
direita no cenário político brasileiro, com a cada vez mais intensa
banalização de discursos preconceituosos, que buscam agredir àqueles os
quais o Rap sempre serviu como meio de expressão, levou ao
desenvolvimento de uma forte reação por parte da comunidade do Hip Hop
brasileiro. O forte discurso de Diomedes Chinaski, quando,
metaforicamente, fala em assassinar o candidato à presidência Jair
Bolsonaro, surge como resposta ao discurso de violência e ódio, propagado
há tempo pelo deputado e seus apoiadores.

Além do Rap da periferia, que traça suas origens, no Brasil, desde os


anos 80, com Thaide e Face da Morte, passando por grandes nomes como
Sabotage e Racionais Mc’s, em tempos recentes, especialmente no ano de
2018, minorias como nordestinos e LGBTs passam cada vez mais a
conquistar esse espaço. Rappers como Baco Exu do Blues e o próprio
Diomedes, já citado, baiano e pernambucano, respectivamente, representam
regiões do país anteriormente ignoradas pelo cenário musical e cultural. É
também emblemático o caso da música “Quebrada Queer”, projeto
realizado por cinco artistas LGBT+, em conjunto com a produtora Rap
Box, que busca revelar esse lado, por muito tempo ignorado pela indústria
do Rap, de como o discurso contestação política e social de minorias e
grupos reprimidos, do Hip Hop, vai diretamente de encontro com a causa
LGBT.
“Sigo cantando e armado
Trampando pesado, medindo um dia ser lendário
Não passo pano pra otário
E mesmo ameaçado, eu serei cada vez mais viado
Quebrando armários, sistema, e a normatividade
Revolução! Bicha preta se amando de verdade
Botando fogo nas regras dessa sociedade
Vai falar mal, mas vai assistir a nossa liberdade
Vamo assistir você ouvindo a nossa realidade
Tirando nossas capas de invisibilidade
As mona unidas pro combate e olha no que deu
Se quer verso com massagem, pare de socar os meus”

Quebrada Queer, 2018

Sendo um canal da luta contra o preconceito, por igualdade social e


direitos, o discurso do Rap acompanha a realidade das lutas sociais
contemporâneas. É por essa razão que a maioria dos grandes nomes do Rap
nacional vêm se posicionando e ativamente combatendo o discurso
conservador e fascista que se propaga na sociedade brasileira. Mano
Brown, do Racionais Mc’s, declarou recentemente à Zero Hora, em
entrevista, que “Acho que o povo brasileiro se comporta como criança
mimada, que, quando a mãe não dá o que ele quer, se vinga. Enquanto as
pessoas ainda estiverem buscando candidato carismático para votar, vai ser
desse jeito aí”. Há muito tempo uma das vozes contra o discurso conservador
no país, Brown vem criticando Bolsonaro e seus apoiadores em diversas
entrevistas e falas recentemente.
“Clarice já disse, o verbo é falha e a discrepância
É que o diamante de Miami vem com sangue de Ruanda
Poder economicon, cocaine no helicopteron
Salário de um professor: microscopcon
Papiro de papel próprio
Letra com sangue do olho de Hórus
É que a industria da desgraça pro governo é um bom negócio
Vende mais remédio, vende mais consórcio
Vende até a mãe, dependendo do negócio
Montesquieu padece, lotearam a sua fé
Rap não é um prato aonde cê estica que cê qué

[...]

1 por rancor
2 por dinheiro
3 por dinheiro
4 por dinheiro
5 por ódio
6 por desespero
7 pra quebrar a tua cabeça num bueiro
Enquanto isso a elite aplaude seus heróis
Pacote de Seven Boys”

Boca de Lobo - Criolo, 2018

Música lançada recentemente por Criolo, Boca de Lobo reúne muitas


das críticas do Rapper quanto ao cenário político atual brasileiro. O
videoclipe lançado com a música retrata questões como o incêndio do
Museu Nacional no Rio de Janeiro, a “máfia das merendas” em São Paulo,
a PEC do teto, a tragédia de Mariana, Minas Gerais e o helicóptero que
carregava cocaína, do senador Aécio Neves. Conhecido por suas críticas
sociais, o trabalho de Criolo é outro exemplo recente do meio do Rap sendo
utilizado como uma forma de crítica ao atual ambiente político.

Recentemente o álbum “Sobrevivendo no Inferno”, dos Racionais


Mc’s, de 1997, foi escolhido como uma das leituras obrigatórias para o
vestibular da UNICAMP. O ato foi emblemático não somente pelo
reconhecimento, por parte de uma grande universidade, do Rap como uma
importante expressão da cultura brasileira moderna, como também sua
relevância frente ao momento político vivido.

Alvo de diversas críticas por parte de setores da direita conservadora,


a decisão da universidade foi causa de polêmica, especialmente nas redes
sociais. Dentre os comentários se destacam os do dono do canal
“Mamaefalei”, do Youtube, que caracterizou o álbum dos Racionais como
sendo um “lixo”. As críticas de Arthur, anfitrião do canal, sugerem que a
música faria apologias ao crime e uma suposta “relativização da culpa”, em
que o cantor relataria não ser culpado pelo que cometeria. Tais críticas
buscam deslegitimar o relato da realidade realizado pelas músicas, a voz da
perspectiva de mundo do negro das favelas, seus valores e crenças, que vão
de desencontro àquilo pregado pela direita brasileira.

Como citado pelo periódico Justificando, “determinados espaços são


tidos como não permitidos a determinados grupos, culturas, investigações,
percepções ou perspectivas objetivas da realidade e os não permitidos
somente são aceitos se encontrarem-se submetidos a essa concordância
forçada ou induzida. Essa evidência ficou clara quando o
álbum Sobrevivendo no Inferno do ano de 1997 do grupo de rap Racionais
Mc’s foi colocado na bibliografia do concurso de admissão da Unicamp”.
Isso revela a revolta em setores da direita política como Arthur do Val, o
qual não aceita que a expressão cultural e artística das periferias brasileiras
ocupe um espaço de leitura obrigatória de uma universidade, em que todos
alunos, independentemente da área a ser seguida, deverão ser expostos ao
texto.

Perspectivas antropológicas como a de Franz Boas já provam a visão


do crítico como errôneas, uma vez que não há culturas superiores ou
inferiores, e sim perspectivas que dependem da visão epistemológica do
observador. Entretanto, indivíduos como Arthur do Val e outros membros
da ala conservadora da política brasileira são já reconhecidos pelo
desmerecimento da cultura popular do país, uma vez que é ela a forma de
expressão que serve de contraponto aos valores defendidos por eles.

Os últimos anos foram períodos em que se tornaram cada vez mais


notórias as artistas mulheres no mundo no Rap, que, assim como outras
minorias, foram por muito tempo ignoradas. As críticas ao machismo da
sociedade, das autoridades, assim como da própria indústria do Rap, se
fazem presentes e ouvidas pelo público. "Hipocrisia é mato, homofobia
mata. Ignorância é fato. Vocês matam em nome de Jesus, bando de
Bolsonaro", rima a paulistana Drik Barbosa, um dos principais nomes do
Rap feminino atual, fazendo crítica à política e ao preconceito.

"Como é que fala fia, é feminismo? Amanhã eu to de pé as 5h


Meus filho no 12 pra comprar tênis
Ces vem com idéia que ninguém entende
Esquerda de boy é caviar e béck
E a função aqui iludindo as mente
Criançada na rua nunca ouviu falar
Que MC é esse? Eu nunca ouvi falar
Ta no Kondzilla, não, então pode pa
Nunca vi seus sons em nenhum lugar
Essas mina branca quer uma atenção
Foda-se essas trança, eu quero meu milhão!
Militante de YouTube, sei quem vocês são” AltNiss em “Rima dela”, 2017

A crítica da rapper AltNiss não se faz somente na crítica ao


machismo e exclusivismo da própria indústria musical, mas também com o
quadro social enfrentado pelas mulheres negras brasileiras. A importância
desse espaço, em meio à cultura, ser ocupado pelas mulheres é grande, já
que se trata de um próprio reflexo da crescente inclusão das minorias na
sociedade brasileira. Um meio de expressão cultural que sempre afirmou a
necessidade de igualdade e justiça, reação frente ao legado da escravidão
no Brasil, deve representar uma vanguarda quanto ao processo de
representatividade, de forma que as resistências apresentadas pelas
gravadoras devido ao próprio aspecto comercial do gênero musical podem
representar um desafio à expressão cultural.

Boa parte do público do Hip Hop, especialmente em tempos


recentes, não o escuta por seus aspectos sociais ou mensagens, mas
simplesmente por ser um gênero musical que lhe agrada. Esse fato pode
muitas vezes ser positivo, já que pode levar a mensagem do Rap à diversos
públicos e setores da sociedade, mas também pode levar a um público que
traga ideais conservadores e reacionários, opostos ao que representa o Rap,
a integrar o gênero e moldá-lo. Isso explica o recente fenômeno do
surgimento de determinados Raps que se identificam com a direita, e fazem
apoio a candidatos como Jair Bolsonaro. O público conservador pode
também ser um empecilho à inclusão das minorias no cenário musical, já
que pode não haver um interesse por parte de gravadoras, que não estariam
indo de encontro com as demandas do seu público. Apesar desse aspecto, a
maior parte da produção cultural ainda se identifica com os ideais com os
quais se identificam as raízes do Rap, como Racionais, Criolo, Diomedes
Chinaski e tantos outros.
“Se eles devem, eles temem
Viva o RAP fora Temer!
Se eles devem, eles temem
Nem vem Collor, BolsoNada, Fora Temer!” – PrimeiraMente, 2018

A crítica, ora velada, ora aberta e direta contra determinados


políticos é realizada cada vez mais no Rap, frente ao ambiente político
contemporâneo. É um ponto fundamental da própria forma do estilo
musical, sendo ele uma das expressões da cultura brasileira contemporânea
e um claro retrato da sociedade de seu tempo.

Referências
BALSEMÃO, R. (10 de Outubro de 2018). Mano Brown, dos Racionais
MC's, critica eleitor brasileiro: "O povo se comporta como criança
mimada". Fonte: Zero Hora: https://gauchazh.clicrbs.com.br/cultura-
e-lazer/musica/noticia/2018/08/mano-brown-dos-racionais-mc-s-
critica-eleitor-brasileiro-o-povo-se-comporta-como-crianca-mimada-
cjkn7t1ah009g01qk98ktao57.html
CHINASKI, D. (28 de Setembro de 2018). Disscanse em Paz. Fonte:
Youtube: https://www.youtube.com/watch?v=2shbq8hSeq0
CRIOLO. (30 de Setembro de 2018). Boca de Lobo. Fonte: Youtube:
https://www.youtube.com/watch?v=jgekT-PEb6c
MASCARI, F. (04 de Outubro de 2018). O levante do rap no combate ao
fascismo. Fonte: Rede Brasil Atual:
https://www.redebrasilatual.com.br/revistas/145/o-rap-se-ergue-no-
combate-ao-fascismo
PRIMEIRAMENTE. (24 de Jul de 2018). Fora Temer. Fonte: Youtube:
https://www.youtube.com/watch?v=Fiv_yGdMYls
RAPBOX. (04 de Junho de 2018). Quebrada Queer. Fonte: Youtube:
https://www.youtube.com/watch?v=FwktAmgku68
RUA, S. D. (16 de Outubro de 2017). Rima Dela. Fonte: Youtube:
https://www.youtube.com/watch?v=FvbYAsKyFTs
SILVA, A. (02 de Outubro de 2018). Criolo lança 'Boca de Lobo': 12
referências do clipe que expõe caos social e político do Brasil.
Fonte: Huffoost Brasil: https://www.huffpostbrasil.com/amauri-
terto/criolo-lanca-boca-de-lobo-12-referencias-do-clipe-que-expoe-
caos-social-e-politico-do-brasil_a_23548641/
VIDAL, J. D. (28 de 06 de 2018). Mamãe, falei coisa errada dos Racionais
MC’s. Fonte: Justificando:
http://www.justificando.com/2018/06/28/mamae-falei-coisa-errada-
dos-racionais-mcs/

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