Nas Trilhas Da Jurema PDF
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1590/0100-85872018v38n1cap05
N as Trilhas da Jurema
Introdução
posições de uma maneira geral. Autenticidade não é algo inato ou primordial, mas
fruto da agência humana constante e historicamente criativa, procedendo inclusive
a cópias, empréstimos culturais etc., que acabam por configurar e reconfigurar novas
religiosidades que são fruto da mistura a qual vai se acompanhar, consequentemente,
de novas identidades culturais autênticas e igualmente mestiças, relacionais e inven-
tivas. Claro que todos esses movimentos não são apenas espontâneos, mas cingidos
por constrangimentos diversos que deveriam nos fazer ressaltar questões de poder,
que incluem na mobilidade – como podemos refletir a partir de suposições do Asad
acerca de Arendt (Asad 1993: 11) – processos de criação de significados e definição
de identidades. Contudo, no espaço deste artigo, não cabe um exercício tão extenso
e voltado a casos específicos, mas sim fazer um passeio por contextos variados e com
um tom mais evocativo.
No mais, concluindo meus direcionamentos epistemológicos, quero dizer que
trago por background ainda perspectivas iniciadas com a virada pós-moderna e a
antropologia da experiência, as quais, para além de elementos convencionais, vão
nos direcionar o olhar para os ruídos e elementos estruturalmente arredios presentes
nas sociedades. De fato, a virada pós-moderna enunciada por Turner (1987) busca
evidenciar coisas que escapam das classificações e dos paradigmas da ordem, com foco
nas falhas, hesitações, fatores pessoais, componentes situacionais de performance que
são incompletos, elípticos e, por isso, com força para a criatividade genuína (Turner
1987:77). Embora este não seja um texto etnográfico, a forma de etnografia coerente
com tal perspectiva pode ser, por exemplo, encontrada em Babcock (1999), que sugere
a descrição de justaposições, pastiche e inconsistência funcional nos textos antropo-
lógicos, os quais, como no nosso caso, deve celebrar (para os contextos analisados) a
coexistência de itens culturais originados em diferentes lugares e momentos históricos.
Nesse sentido, aqui não se busca descrever formas culturais autênticas, não existe uma
jurema autêntica, mesmo porque – como lembraria Bruner (2004) – a cultura está
continuamente mudando e existem muitas variantes de uma mesma cultura.
Interessa-me ainda a antropologia da experiência na medida em que ela volta
sua atenção para a experiência e suas expressões enquanto significado nativo (Bruner
1986). No entanto, se experiência tem sido recentemente uma questão importante
para se demarcar os espaços da religião e da espiritualidade, nem por isso, em conso-
nância agora com Geertz (2001), noções vinculadas a sentido, identidade e poder de-
vem ser deixadas de lado para se “captar as tonalidades da devoção em nossa época”
(Geertz 2001:152), ou para, mais amplamente, procedermos à descrição daquilo que
se pode destacar quando nos debruçamos sobre o que se vem chamando de religião.
De qualquer modo, o importante – e que sustenta a composição deste artigo
– é termos em mente, em consonância com Barth (2000a), que a realidade é muito
mais ampla do que a consciência e as experiências das pessoas. Mesmo as realidades
construídas por grupos de rituais não abrangem a totalidade das sociedades ou con-
textos religiosos onde se situam. Para Barth, “os vários horizontes limitados das pesso-
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indígenas emergentes passaram a aprender com outros grupos indígenas (ou retomar
e revigorar a partir de suas próprias experiências) tal ritualística, fundada em larga
medida no uso da jurema.
Se o toré tem uma dimensão pública com ou sem consumo de jurema, é nos
rituais mais discretos que a jurema ganha maior centralidade como uma bebida sa-
cramental, ou enteógeno – termo cunhado por Ruck, Bigwood, Staples, Ott e Wasson
(1979) e que se refere ao advento de Deus na pessoa. Para tais rituais, a casca da raiz
(preferencialmente) ou do caule da jurema – geralmente a jurema preta sem espinhos
(Grünewald 2008) – é colhida em matas, pilada ou macerada com pedras, esfregadas
com as mãos em água fria e postas a descansar. Mais tarde, o bagaço da jurema será
retirado e a bebida, consagrada (geralmente com fumaça de cachimbo) para uso em
rituais, nos quais os indígenas entram em contato com os encantados e outros seres
invisíveis. A cura é a bebida da jurema misturada a alho e cachaça. Sobre esta bebida
se coloca fogo para evaporar o álcool – embora o gosto alcoólico permaneça presente.
O mel é um elemento recorrente nesses rituais, tendo importante função como ali-
mento dos caboclos, canindés e outros seres das matas a ponto de pensarmos em termos
de um complexo do mel associado à jurema indígena (Léo Neto e Grünewald 2012).
Assim como a jurema utilizada não deve possuir espinhos, o mel dos rituais deve, por
homologia, ser preferencialmente de abelhas sem ferrão (Ibid).
Embora efeitos visionários e outros de caráter alucinatório sejam relatados com
o uso dessas juremas, em geral, as alterações de percepção são apreendidas enquanto
fenômenos espirituais ou mediúnicos mais amplos – embora seja recorrente o alerta de
que a jurema pode embebedar. Efeitos propriamente alucinatórios não são procurados
nesses rituais, que buscam uma comunhão espiritual mais ampla com os invisíveis, se-
jam eles do céu, das matas, dos rios ou do mar. Sejam espíritos de índios já mortos, se-
jam seres que não tenham sua contrapartida no mundo físico, sejam seres indefiníveis.
Por fim, outro elemento essencial nos ritos de jurema são os cachimbos. Em Atikum,
por exemplo, eles são feitos da raiz da jurema e muitos dos cachimbos podem ser muito
antigos – ao que parece, do tempo que foram aldeados em uma missão no início do sé-
culo XIX. Em sua iconografia, os cachimbos trazem diversos elementos significativos:
como um importante cachimbo entre esses índios que, bem grande, tem desenhado
estrelas, cruzeiros, igrejas, peixe (sultão do rio) e um conjunto de três linhas quebradas
que se entrelaçam numa forma vertical, entendida por eles como a corrente da jurema.
Os cachimbos podem conter tabaco, velame ou ainda outras plantas como alfazema,
alecrim do mato etc. Não encontrei relatos do uso das folhas da jurema nos cachimbos
indígenas, embora isso seja cantado em música, como em tradicional toante para Mes-
tre Carlos. Esses cachimbos são geralmente confeccionados com as raízes da própria
juremeira e são usados muito menos para se fumar que para defumação realizada com
o soprar da fumaça pelo bico do cachimbo com o fornilho na boca.
Se sabemos que as folhas da jurema preta podem conter tanta concentração
de DMT no inverno nordestino (época das chuvas) quanto as cascas da raiz – além
Grünewald : Nas Trilhas da Jurema 117
de apresentar triptofano e triptamina, como alerta Nicasio et al. (citados por Gau-
jac 2013) –, não parece ser o efeito dessa substância fumada (o que prescindiria de
inibidor de MAO para ser psicoativa – sem falar que a DMT é facilmente absorvida
no pulmão) o que os índios buscam em seus rituais. Com a fumaça dos cachimbos,
os índios visam geralmente afastar energias negativas e a purificação (Léo Neto e
Grünewald 2012). Por fim, nos contextos desses rituais encontramos também a pre-
sença de muitos elementos católicos (cruz, Jesus, Virgem Maria, santos etc.) e ainda
daqueles de origem supostamente africana, como os orixás e seus correlatos.
Quanto ao ritual em si, os indígenas geralmente o iniciam – após silvarem fora
da casa ritual com apitos de madeira anunciando aos seres físicos e invisíveis que o
ritual vai começar – sentados com orações e alguns toantes que abrem a corrente.
Depois disso, a jurema é servida e os índios então passam a cantar seus toantes ou
cantigas, sempre acompanhadas somente pelo maracá, que é um chocalho indígena
de cabaça (Crescentia cujete) com sementes no interior. Além do maracá, a batida
dos pés é muito importante não só pelo ritmo, mas para dar força ao ritual dançado
em uma roda que gira no sentido anti-horário. Um puxador canta os toantes, sempre
acompanhado por um coro, que atua em resposta ao puxador. Isso pode ser carac-
terizado como canto responsorial. Se os toantes são na grande maioria das vezes
cantados em português, ao final deles, de forma complementar, o puxador costuma
articular melodicamente fonemas (Ha; Nah; Hê, Hey; Hô) considerados por muitos
como a “língua indígena” – o que é uma importante marca, considerando-se que são
indígenas que conhecem apenas a língua portuguesa. Por vezes também, os toantes
podem ser complementados por outras vocalizações que pedem em português ajuda
a Jesus ou à Virgem Maria. Depois desses complementos melódicos, costuma-se dar
vivas a Deus, à Mãe de Deus, aos santos católicos, ao próprio povo indígena, a outros
povos, aos presentes e aos ausentes, aos visitantes, ao cacique e ao pajé etc. A jurema
pode ser servida uma ou mais vezes durante os rituais, mulheres menstruadas não
costumam bebê-la, bem como as crianças, que participam do ritual bebendo poncho
de maracujá. Os adolescentes, menos experientes, costumam beber menos jurema
que os homens adultos, que são os que mais a consomem nos rituais. Durante o
desenrolar do ritual, algumas pessoas (geralmente mulheres), irradiam, enramam ou
manifestam os encantados e ainda outros seres do mundo espiritual, como Zé Pelintra,
personagem sobrenatural típico do catimbó ou da umbanda regional. Por fim, esses
rituais não são idênticos nem mesmo dentro de uma aldeia indígena, pois vários con-
dutores de rituais podem trabalhar com correntes distintas. Os especialistas nesses
rituais são os detentores da ciência do índio (Grünewald, 1993; 2002; 2005b).
Esta é, portanto, uma apresentação sumária da jurema entre os Atikum. Pelo
que foi exposto, deve ter ficado claro o quanto essa religiosidade tem de mestiça.
Com largos elementos católicos e também oriundos do catimbó e da umbanda que
ali passaram a se fazer presentes por meio dos mais variados mecanismos culturais
durante a história particular do toré Atikum.
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com as propriedades do álcool e ópio. Essa mistura da jurema com o manacá foi cha-
mada de vinho encantado em Pedra Bonita (Pedra do Reino), movimento sebastianis-
ta, corporalmente representado por João Ferreira, mameluco que tinha o tratamento
de santidade (Pereira da Costa 2004:57).
Acreditamos que muitos sertanejos, em seus sítios de pequenos agricultores,
detenham conhecimentos em torno da jurema e desempenhem rituais domésticos uti-
lizando, cada qual à sua maneira, essa bebida dentro do espectro do catolicismo popu-
lar, enquanto operado por leigos (Maués 2002), e da privatização do catolicismo (Steil
2001). Contudo, isso não foi por nós pesquisado e não temos notícias acadêmicas sobre
tais possíveis usos, a não ser por meio de conversas informais não averiguadas empiri-
camente – principalmente para fins de entendimento da intencionalidade de seu uso.
As primeiras referências que temos sobre a jurema datam do século XVIII. Sa-
be-se que o Tribunal do Santo Ofício foi extremamente rigoroso com os “rituais gen-
tílicos”, no âmbito dos quais muitos “índios foram acusados de beber jurema e ‘descer
demônios’, enquanto o mestre tocava o maracá entoando a dança embalada pela can-
toria indígena”3. Exemplo disso, como se lê no mesmo texto, foi o depoimento levado
por um índio Tabajara (litoral sul da Paraíba) “pessoalmente à Mesa do Santo Ofício,
em Lisboa, em 1720”. Já em 1739, a Junta das Missões Ultramarinas se reuniu na ca-
pitania de Pernambuco para avançar investigações sobre “transgressões indígenas” e
descobriram que carmelitas estavam compartilhando de práticas da jurema que eram
consideradas “diabólicas” pelo Santo Ofício (Apolinário, Freire & Diniz 2011).
Ainda, no período entre 1739 e 1744 registra-se um trâmite jurídico de um
processo do Conselho Ultramarino envolvendo o Santo Ofício e os índios de Per-
nambuco e Paraíba em função do uso da jurema. Há ainda notícias sobre mortes e
prisões de “índios feiticeiros”, em nome do Santo Ofício, que faziam uso da jurema
em 1739, e que nos anos seguintes foram relatadas ao Rei D. João V (Oliveira 2011).
Mas não só na Paraíba e em Pernambuco, pois sabemos que em 1758 um índio da
aldeia de Mepibu, no Rio Grande do Norte, foi preso por ter feito “adjunto de jure-
ma” (Cascudo 1978). Em uma comunicação de 1788, de autoria do padre José Mon-
teiro de Noronha, citada por Gonçalves de Lima (1946), já há evidências de certa
“tolerância” aos índios Amanajó usuários da bebida jurema (que seria “narcótica”
e preparada com as cascas da raiz da planta) que lutavam nas guerras a favor dos
colonizadores (Gonçalves de Lima 1946: 60). No século seguinte, rituais com uso de
jurema passam a ser descritos – a exemplo do relato de 1816, de Henry Koster (1978),
referente ao litoral norte de Pernambuco. Neste século, a jurema foi mencionada por
alguns escritores e até exaltada no âmbito do romantismo, a exemplo da publicação
de José de Alencar (1865) no contexto cearense. Vale notar que todos esses são con-
textos de índios do tronco Tupi.
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“viajar pelo mundo do sobrenatural, que é concebido como um outro mundo natural, com
seus seres encantados que se subdividem em estados, e esses, por sua vez, em cidades”.(ibid:
208). Nesse mundo encantado, além de aldeias, cidades e estados, haveria também,
segundo Cascudo (1937), reinos.
Vale ressaltar que no catimbó sempre se atribuiu à jurema o poder de con-
duzir a pessoa ao mundo dos encantos, contudo, não seria só a bebida que teria esse
poder, mas seria fundamental a postura espiritual do indivíduo que o capacitaria para
penetrar no mundo invisível (Grünewald 2005b; Salles 2010). Ao catimbó, se atri-
buía pelos pesquisadores da primeira metade do século XX a ideia de predominância
da feitiçaria europeia em sua dinâmica (Cascudo 1978). Apesar disso – e embora
com cosmologia miscigenada –, destaca-se a origem indígena na constituição dessa
religiosidade.
Quanto às cidades da jurema, essas são as moradas dos mestres juremeiros, cujas
“vidas no mundo espiritual”, segundo Lima Segundo (2015), “se interrelacionam
com a própria existência da árvore” (Lima Segundo 2015: 67). Sendo assim, espaços
rurais com a presença de juremeiras (árvores de jurema) vinculadas a determinados
mestres é algo importante para a força dessa religiosidade. De fato, assim como
para os indígenas do Nordeste, juremal não se refere apenas a um lugar com densa
concentração de juremeiras, mas, no plano cosmológico, a um lugar (cidade ou reino)
no plano invisível, onde habitam os mestres e outros seres (aí especialmente no caso
dos indígenas). Neste sentido, seguindo proposta de Mircea Eliade, Lima Segundo ar-
ticula a jurema com o arquétipo da “árvore cósmica”, que vincula o homem com suas
verdades míticas (Ibid: 56). Para Salles (2010), por fim, a jurema, sendo “a ‘cidade’
do mestre, sua ‘ciência’”, ela é “o símbolo maior do culto” (Salles 2010:17-18). Da
mesma forma como para os indígenas do Nordeste, aqui também a noção de ciência
emerge em termos complexos, sendo um componente central dessa tradição mística.
Apesar de essa religião ter seu berço na Paraíba, com sua cosmologia própria,
uma repressão policial aos juremeiros se consolidou na década de 1930 e se perpe-
tuou até os anos 1960, período este no qual esses atores religiosos mantinham-se
rezando os que os procuravam de modo muito discreto. De fato, seus lugares de culto
eram destruídos durante os anos de perseguição aos adeptos do catimbó. Em 1966, o
governador da Paraíba promulgou uma lei regulamentando os espaços para “o exer-
cício dos cultos africanos na Paraíba”, indicando, contudo, que tais práticas religiosas
deveriam ficar subordinados à Federação dos Cultos Africanos do Estado da Paraíba,
responsável por regular as suas atividades (Lima Segundo, 2015:71).
Com essa prerrogativa concedida à umbanda (como já havia ocorrido em
outros estados), essa religiosidade avançou fortemente sobre os juremeiros. Motta
(2005) sustenta a ocorrência de três etapas do “processo de acumulação cultural”
no catimbó. A primeira delas estaria “ligada à introdução da figura do mestre e de
técnicas mágicas de origem europeia” (Motta, 2005:285). A segunda corresponderia
a uma influência do espiritismo kardecista que, antes mesmo da criação da umbanda,
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Já apontei em outros lugares (Grünewald 2005b, 2008) como uma nova forma
de elaborar uma bebida jurema foi criada no México como uma análoga da ayahuasca
– uma anahuasca, segundo seu criador Jonathan Ott (1995) – a pedido da presidente
de uma ONG holandesa preocupada em substituir a ayahuasca por um enteógeno
de mais fácil acesso para seus projetos terapêuticos na recuperação de adictos em
drogas naquele país. Se a ayahuasca (bebida também chamada de daime, hoasca,
entre outros nomes nativos) tem em sua composição psicoativa betacarbolinas do
tipo harmina ou harmalina e o alcaloide DMT provenientes respectivamente do cipó
da banisteriopsis caapi e das folhas da psycotria viridis, plantas essas que juntas fazem a
compsição da bebida ritual, a jurema preparada como análoga da ayahuasca passou a
ser composta por sementes de peganum harmala (harmal; arruda da Síria), riquíssimas
em hamina e harmalina, e entrecascas de raiz de jurema preta (inicialmente mexica-
na), muito rica em DMT.
Essa mistura de jurema com peganum foi introduzida no Brasil em janeiro de
1997 e, logo no mês seguinte, no Rio de Janeiro, se iniciaram trabalhos espituais a
partir do uso dessa beberagem, que foi batizada por Labate (2004) de “juremahuas-
ca”. Essa autora, aliás, ao escrever sobre a reinvenção da ayahuasca em contextos ur-
banos, foi pioneira ao apontar um primeiro uso ritual da juremahuasca no Brasil (RJ).
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midade espiritual nas novas religiosidades sincréticas que surgem e fluem efemera-
mente tanto em suas composições quanto em suas diretrizes. O cosmos está à disposi-
ção para quem quiser nele viajar e muitas naus com muitas características podem ser
erigidas para essas aventuras da alma, que, reconhecendo a imanência do sagrado,
busca transcender o racionalismo, e se permitir alcançar, pela experiência, estados
mais profundos de existência, os quais são divinizados.
Por fim, em termos da retórica da cura, esses usos da jurema estão muito mais
atrelados à retórica psicanalítica ou do mundo espírita próprio ao universo das religio-
sidades afro-brasileiras ou do espiritismo kardecista do que ao modelo do neo-xama-
nismo. Cura é algo buscado por algumas das pessoas que procuram os condutores
de rituais com essa jurema transmutada. Contudo, trata-se de curas não exatamen-
te para doenças psiquiátricas da atualidade, como ansiedade, depressão, compulsão
etc., mas para algo que se imagina como um processo de melhora da vida física e
mental. De fato, a noção de cura operada em tais contextos espirituais ou religiosos
tem um caráter processual interminável pelo qual as pessoas vão adicionando novos
significados para a vida e o bem estar, transformando o sentido de ser uma pessoa
saudável e promovendo transformações nos estados existenciais (Csordas 2008).
Aqueles grupos de juremeiros que inicialmente promoviam rituais em fins dos
anos 1990 e início do atual milênio ou não a usam mais ou o fazem esporadicamente
e para poucas pessoas. Desses primeiros sujeitos da juremahuasca mapeados no Brasil
até os dias atuais, novos psiconautas surgiram em busca das possibilidades psicoati-
vas/espirituais da jurema. A difusão desse conhecimento se deu de maneiras diversas,
embora tal movimento não tenha ganhado a dimensão quantitativa que se imaginava
na virada para o século XXI. Parece que poucos são os que praticam rituais em tor-
no da juremahuasca no Brasil, considerando seu potencial místico (ou simplesmente
psicoativo) e a facilidade com que se encontra, se coleta e se prepara a bebida para
consumo. Queremos atentar para o fato de que essa jurema misturada com peganum
harmala é chamada de “jurema” pelos seus usuários em todos os casos examinados –
mas metade deles não gosta da aplicação do termo psiconautismo à prática espiritual
que realiza. De fato, se os psiconautas europeus são experts nos efeitos fisiológicos e
bioquímicos da jurema, os brasileiros, mesmo sabendo do assunto, o relegaram, de
uma maneira geral, ao plano específico dos cientistas modernos e, achando-se talvez
mais que modernos, preferiram manter-se atentos aos ensinamentos que poderiam
vir dos planos misteriosos/sagrados. A maioria desses sujeitos considera aquilo que faz
enquanto trabalho espiritual (empenho consciente para conectar forças místicas e co-
loca-las em operação) no campo das religiosidades. Raros são os que se dizem experi-
mentadores somente. “Ter uma experiência” é muitas vezes tido como não ter víncu-
lo a uma coletividade que se organiza em torno de uma religiosidade e, portanto, não
é algo que indique pertencimento. Apesar disso, o termo experiência foi incorporado
por muitos dos participantes dos ritos e foi e continua sendo por frequentadores de
antigos e atuais grupos rituais. Em paralelo ao termo experiência, podemos destacar
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músicas, orações, trabalhos corporais, meditações etc., em suas sessões podemos ob-
servar variadamente elementos do Santo Daime, da Barquinha, da UDV, dos índios
do Nordeste, da umbanda, do candomblé, do espiritismo, do xamanismo indígena em
geral, do sufismo, hinduísmo, budismo (o Caminho do Meio é uma filosofia meio que
lugar comum na retórica de vários desses atores), yoga, técnicas de respiração, Reiki,
danças, pinturas, improvisação musical etc.
Considerações finais
Temos visto neste artigo que não há informações sobre os usos da jurema no
período pré-colonial. Podemos inferir que os nativos do Nordeste do Brasil usavam a
jurema tanto para fins xamânicos quanto para rituais coletivos como, por exemplo,
para fins festivos ou comemorativos, embora não possamos precisar a extensão geo-
gráfica desses usos entre litoral e interior. Já informações coletadas no contexto co-
lonial mostram como a jurema foi alvo da inquisição portuguesa (Wadsworth 2006).
De fato, as breves informações sobre prisões de juremeiros aqui destacadas indicam
a imposição de uma religião oficial que obstaculizava qualquer expressão de espiri-
tualidade nativa de se manifestar, a não ser que muito bem camufladas e, principal-
mente, miscigenadas. Silenciar as religiosidades nativas e os veículos para suas ma-
nifestações, como a jurema, parece ter sido uma importante estratégia colonial para
garantir legitimidade, unidade e domínio religioso. Mas as práticas indígenas rituais
com a jurema continuaram se processando no interior paralelamente à escravidão e
à evangelização católica. Depois que as missões foram extintas, os índios misturados
mantiveram de forma ativa ou latente uma espiritualidade em torno da jurema, até
os processos de etnogênese, quando voltaram a fortalecer sua ligação com a jurema
reconsagrando suas essências étnicas.
No litoral, a jurema também apresenta uma continuidade, apesar da coloni-
zação. Se aldeamentos foram extintos e indígenas, dispersos, a jurema ganhou nova
direção a partir do surgimento das linhas dos mestres do catimbó, também sincrética,
como vimos. Mas enquanto o toré com jurema dos índios do interior era requisito
como marca de indianidade, pela visão do SPI, e deveria ser exibido, o catimbó,
associado pelas autoridades à feitiçaria, devia ser perseguido, porque não era mais
associado a um viés étnico, mas sim a feiticeiros que individualmente podiam tra-
balhar a serviço de consulentes – como, possivelmente, qualquer xamã o faria. Esse
xamanismo urbano, no entanto, foi combatido até a liberação da umbanda na déca-
da de 1960, quando essa religião se aproxima formalmente dos juremeiros, os quais
passam a negociar culturalmente sua associação a essa religiosidade mais abrangente.
De fato, não se falava em uma religião dos juremeiros, mas referia-se a juremeiros de-
terminados que faziam trabalhos. A negociação da umbanda com essas casas de jure-
meiros foi a de fazer entrar nelas elementos próprios aos cultos umbandistas, fazendo
assim com que tais casas conseguissem alvarás para funcionamento. Com o tempo, a
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134 Religião e Sociedade, Rio de Janeiro, 38(1): 110-135, 2018
Notas
1
O termo juremeiro é bastante problemático, porque tem significados distintos de acordo com os con-
textos. O uso do termo, quando empregado, varia no tempo e no lugar. Não vou discutir neste artigo
os contextos de gênese do nome e seus significados locais. Usarei juremeiro indistintamente para me
referir tão somente à pessoa que faz uso da jurema.
2
Como se lê no site da instituição, disponível em: <https://www.youtube.com/watch?v=C_YkiR
-s2L0>, acessado em 19 jul. 2016.
3
Ver em: <http://oridesmjr.blogspot.com.br/2012/02/inquisicao-no-brasil.html>, acessado em 04 abr.
2018.
Resumo:
O nome jurema está associado a plantas, bebidas e até religiosidades específicas. Todas
essas referências estão pautadas em fenômenos místicos, aqui percebidos em termos
substantivos e históricos. Neste artigo, vamos examinar contextos de usos da jurema
relativos, principalmente, aos indígenas, ao catimbó, à umbanda e ao psiconautismo
neo-juremeiro pós-moderno. As tradições rituais serão examinadas de modo dinâmico
e processual, mostrando seus entrelaçamentos culturais. Contrapor as tradições de
conhecimentos exotéricos e esotéricos deverá também ser um esforço, principalmente
ao se evocar a constituição de novas formas de uso ritual da jurema.
Abstract:
The name jurema is associated with plants, beverages and even specific religions. All
these references are based on mystic phenomenon, here found in substantive and his-
torical terms. In this article we will examine uses of jurema contexts relating mainly
to indigenous, catimbó, umbanda and the postmodern neo-juremeiro psiconautism.
Ritual traditions are examined in a processual and dynamic way, showing their cultural
meshes. Oppose the traditions of exoteric and esoteric knowledge should also be an
effort, especially by the creation of new forms of ritual use of jurema.
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