09 - Rossi Introdução Ao Pensamento Político de Kant PDF
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En publicacion: Filosofia
política moderna. De Hobbes a Marx Boron, Atilio A. CLACSO, Consejo Latinoamericano de Ciencias
Sociales; DCP-FFLCH, Departamento de Ciencias Politicas, Faculdade de Filosofia Letras e Ciencias
Humanas, USP, Universidade de Sao Paulo. 2006. ISBN: 978-987-1183-47-0
Disponible en la World Wide Web: http://bibliotecavirtual.clacso.org.ar/ar/libros/secret/filopolmpt/09_rossi.pdf
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Miguel A. Rossi*
Aproximações ao pensamento
político de Immanuel Kant
INTRODUÇÃO
Constitui uma espécie de lugar comum minimizar o pensamento polí-
tico de Immanuel Kant, especialmente quando comparado com a sua
produção teórica no terreno gnosiológico ou ético.
É bem verdade que as temáticas do conhecimento e da liberda-
de foram sempre as duas grandes problemáticas do filósofo, mas não
é menos certo que pensar nelas a partir de um esvaziamento político
constitui uma postura ingênua sem maiores justificações.
Tanto Hegel quanto Marx, Weber e Nietszche, entre outros, ca-
racterizaram a modernidade como o terreno das cisões. Tais afirmações
podem ser consideradas mais do que inteligíveis quando a antiguidade
ou a idade média são tomados como parâmetros de comparação.
Nosso objetivo é, primordialmente, indagar no plano da teoria
política kantiana, assumindo, porém, que não existem teorias indepen-
dentes das práticas sociais. Portanto, a pergunta acerca da modernida-
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1 Tal conceito de organismo será retomado pelo imaginário do século XIX, numa tentativa
conservadora de recuperar a totalidade perdida. Para o positivismo, era comum estabele-
cer uma analogia entre a sociedade e o organismo humano.
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1. KANT E O CONTRATUALISMO
A. ESTADO DE NATUREZA2
A categoria de estado de natureza foi um dos tópicos comuns centrais do
ideário jurídico, filosófico e político dos séculos XVII e XVIII. Nesse sen-
tido, Immanuel Kant não constituiu uma exceção, ainda que o conceito
tivesse para o filósofo alemão diferentes conotações axiológicas, tomando
Hobbes e Rousseau como principais interlocutores em relação a este.
Fica claro que, para Kant, o conceito em questão tem, fundamen-
talmente, pelo menos duas dimensões: como ideal crítico, na medida
em que serviria para denunciar as sociedades atuais; e como hipótese
de trabalho, na medida em que justifica o advento do Estado civil.
No que diz respeito à primeira dimensão, cabe destacar a grande
influência de Rousseau, especialmente de suas agudas críticas à dinâmica
do progresso como portador das sociedades do luxo e do refinamento3.
Em relação à segunda, que virá a se tornar hegemônica no esquema
kantiano, assimila-se o estado de natureza ao estado de guerra hobbesiano.
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B. O CONTRATO ORIGINÁRIO
Da mesma forma que a noção de estado de natureza, a noção de con-
trato também é uma idéia da razão. Porém, diferentemente dos outros
tipos de contratos, Kant afirma categoricamente que o contrato que
estabelece uma constituição é de uma índole muito particular, dado
que constitui um fim em si mesmo: “A reunião de muitos em alguma
finalidade comum pode-se encontrar em qualquer contrato social; mas
a associação que é fim em si mesma [...] é um dever incondicionado e
primeiro, só encontrável em uma sociedade que estiver em condição
civil, isto é, que se constitua uma comunidade” (Kant, 1964: 157).
Concordamos com Terra (1995) a respeito de que a formulação
do contrato kantiano cumpriria duas das exigências já presentes no
contrato rousseauniano: que a associação proteja os bens de cada ho-
mem, e que a autonomia seja possível.
De qualquer maneira, há que se levar em conta que o contrato kan-
tiano não pode ser compreendido como um mero pacto de associação,
na medida em que a idéia fundante não é a de um povo pactuando com
seu governante. Kant tem muitos reparos nesse ponto. Ele tenta excluir
as noções de deveres e obrigações que toda lógica contratual supõe, pois
percebe que o não cumprimento de alguma das partes contratuais pode-
ria legitimar um estado de rebelião ou resistência ao poder supremo.
Não cabe a um povo perscrutar, tendo qualquer propósito prático em
vista, sobre a origem da autoridade suprema à qual está submetido,
isto é, o súdito não deve raciocinar, em termos práticos, a respeito
da origem dessa autoridade, como um direito ainda passível de ser
questionado (ius controversum) no tocante à obediência que a ele
deve (Kant, 2003: 161).
A formulação do contrato é a idéia pela qual um povo se constitui em
Estado, ou, dito em outros termos, a união das vontades particulares
numa vontade geral, isto é, como vontade unificada de um povo.
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C. O ESTADO CIVIL
Não restam dúvidas de que o axioma político kantiano por excelência é
a identificação de Estado como estado de direito. É nesse aspecto que
a dimensão jurídica atinge o seu ponto máximo, na medida em que a
condição civil é pensada em termos jurídicos.
A condição civil como Estado jurídico baseia-se nos seguintes
princípios a priori:
a) A liberdade de cada membro da sociedade, enquanto homem.
b) A igualdade entre os mesmos e os demais, enquanto súditos.
c) A autonomia de cada membro de uma comunidade, enquanto cidadão.
Kant enfatiza que estes não são dados pelo Estado já constituído, mas
que são princípios pelos quais o Estado como estado de direito tem
existência, legitimidade e efetividade. Aprofundaremos, a seguir, a aná-
lise em cada um deles.
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Todo direito depende de leis. Porém, uma lei pública que determine
em todos os casos, o que deve ser permitido ou proibido ao cidadão
é o ato de uma vontade igualmente pública; dela emana todo direito
e ninguém pode violá-la (Kant, 1964: 164).
O conceito de autonomia kantiano possui uma profunda influência
rousseauniana. Sob a idéia de vontade geral ou unificada de todo o
povo, subjaze a idéia da obediência a si mesmo.
A vontade unificada do povo é também para Kant uma idéia a
priori da razão, e de modo algum pode ser interpretada do ponto de
vista da regra da maioria. Daí os juízos mais acérrimos do filósofo à
democracia, que ele interpreta como o despotismo da maioria6.
Por outro lado, há que se levar em conta que essa idéia de von-
tade geral como autoridade legislativa não supõe que aos cidadãos seja
designada a tarefa de legislar. Dessa ótica, surge o núcleo da teoria polí-
tica representativa kantiana, o que, nos termos do filósofo, podemos de-
nominar “a representação do como se”, na medida em que o legislador
cria e decreta as leis como se estas emanassem de uma vontade geral.
Caberia então perguntar o que entende Kant por cidadania e quais
são os alcances e limites de tal conceito. “Dentro desta legislação deno-
mina-se cidadão (citoyen), isto é, habitante do Estado e não vizinho da ci-
dade (bourgeois) e que, portanto, tem direito de voto” (Kant, 1964: 165).
5 Não devemos nos esquecer de que um dos supostos básicos do contratualismo é pensar
os contratantes a partir da idéia de igualdade e homogeneidade, requisitos necessários a
toda lógica de mercado.
6 Embora para Kant a democracia seja considerada uma forma legítima de governo, na
medida em que pode ser incluída na idéia de República, seus juízos críticos a respeito
daquela acentuam o aspecto pelo qual a unidade absoluta da vontade geral só pode ser
postulada no plano eidético, e, portanto, a regra da maioria fica desclassificada para inter-
pretar tal unidade, dado que haveria alguns que ficariam excluídos.
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A DIVISÃO DE PODERES
Kant acredita que a única forma de garantir a permanência do Estado
civil é através da lógica de um poder soberano. Tal poder se caracteriza
por ser absoluto, irresistível e divisível.
Anteriormente explicamos a importância de um poder absoluto e
irresistível. Agora adentraremos no requisito da divisibilidade.
A divisão de poderes constitui o coração do modelo republicano.
Lembremos que, para o nosso filósofo, somente existem duas formas de go-
verno, independentemente dos regimes: a república e o despotismo. Resulta
óbvio que a segunda alternativa rejeita absolutamente a divisão de poderes.
Em conformidade com isso, os três poderes no Estado, em primei-
ro lugar, se coordenam (potestates coordinatae) entre si como uma
multiplicidade de pessoas morais, ou seja, cada uma complementa as
outras para completar a constituição do Estado (complementum ad
sufficientiam); todavia, em segundo lugar, também se subordinam (su-
bordinatae) entre si, de maneira que um deles, ao assistir a um outro,
fica impossibilitado também de usurpar sua função; em lugar disso,
cada um possui seu próprio princípio, isto é, realmente comanda na
sua qualidade de pessoa particular, porém ainda sob a condição da
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7 Vale lembrar que, etimologicamente, o termo ethos pode ser definido como costume e
que, nas comunidades antigas, este era o parâmetro de mobilidade das condutas.
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faz referência a que uma vontade santa também não está constrangida
por dever algum, na medida em que suas máximas coincidem esponta-
neamente com a lei moral.
De todo modo, há que levar em conta que Kant não pretende ex-
cluir o plano das inclinações, mas sim nos chamar a reprimir somente
aquelas que são contrárias ao dever, pois também existem inclinações
que são conformes a ele e inclusive neutras. Kant exemplifica tal argu-
mento com o caso de uma pessoa se afogando num rio. O ato imoral
reside em não lhe prestar auxílio, enquanto o ato moral consiste em
socorrê-lo, independentemente de que seja nosso amigo ou inimigo. No
primeiro caso, existiria uma inclinação motivada pelo afeto que obraria
em conformidade com o dever, mas o julgamento do ato moral como
tal só é justificável pelo dever. Inclusive, também não se avalia o resul-
tado da ação moral, não importando se fomos bem-sucedidos ou não
na salvação.
A partir dessas considerações, Kant introduz a noção de ação
moral, entendendo por tal toda ação determinada ou realizada exclusi-
vamente pelo dever.
Entretanto, para que uma ação receba o estatuto de moralida-
de, necessita, como uma de suas notas essenciais, do requisito da uni-
versalidade. Tal exigência leva o filósofo a enunciar o seu imperativo
categórico: “Obra apenas segundo uma máxima tal que possas querer,
ao mesmo tempo, que se torne lei universal”. Dito em outros termos, a
ação moral exige que as nossas máximas, entendidas como princípios
subjetivos e contingentes, possam se converter em leis universais, isto
é, leis consideradas válidas para todos.
Outra das formas possíveis de expressar esse imperativo pode-se
basear na proibição de nos convertemos em uma exceção. Tal aspecto
guarda estrita relação com o requisito da publicidade, na medida em
que uma ação que tenta evitar a luminosidade do público certamente é
uma ação ilegítima; daí a sua necessidade de cultivar o segredo. A ela-
boração dos golpes de Estado pode ser lida dessa perspectiva.
Para tornar mais compreensível o imperativo categórico, Kant
utiliza uma exemplificação ao analisar a mentira: “Deste modo, depres-
sa me convenço de que posso bem querer a mentira, mas não posso, de
maneira nenhuma querer uma lei que mande mentir; pois, como conse-
qüência de tal lei, não mais haveria qualquer espécie de promessa, por-
que seria, de fato, inútil manifestar minha vontade a respeito de minhas
ações futuras a outras pessoas que não acreditariam nesse declaração,
ou que, se acreditassem à toa, me retribuiriam depois na mesma moe-
da; de sorte que minha máxima, tão logo fosse arvorada em lei univer-
sal, necessariamente se destruiria a si mesma” (Kant, 1960: 63).
Assim como a moral tem o seu imperativo, o direito também tem
o seu, pensado igualmente em termos formais e universais: “Qualquer
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BIBLIOGRAFIA
Arendt, Hannah 1993 Lições sobre a filosofia política de Kant (Rio de
Janeiro: Ed. Relume Dumará).
Barbosa, Susana Raquel 1999 Contra-historia y poder (Buenos Aires: Leviatán).
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