Antónioramosrosaerobertbréchon: Dois Poetas Ao Espelho de Uma Poesia Sem Fronteiras
Antónioramosrosaerobertbréchon: Dois Poetas Ao Espelho de Uma Poesia Sem Fronteiras
Antónioramosrosaerobertbréchon: Dois Poetas Ao Espelho de Uma Poesia Sem Fronteiras
Universidade do Porto
1 Vd. Ana Paula Coutinho Mendes – “A Poesia como Corrente Electiva”, Colóquio/Letras, 143-144, Janeiro-Junho
1997, pp. 184-194.
2 Loc.cit,. nº 132/133, Abril-Setembro de 1994.
3 António Ramos Rosa e Robert Bréchon – Meditações Metapoéticas/Méditations Métapoétiques, Lisboa,
Caminho, 2003. Todas as citações deste livro serão seguidas do número de páginas desta edição e, salvo indicação con-
trária, remetem para os poemas na sua versão original.
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realidade, exactamente o dobro desses poemas, pois cada um deles, escrito na língua
materna por cada um dos poetas, surge também traduzido pelo outro.4 Por conseguinte
e em rigor, existe uma dupla alternância: a de vozes e de idiomas, sendo que cada poeta
não se limita a escrever um poema na sua língua materna mas também traduz, ou rees-
creve, o poema do outro, de modo que é como se cada poema passasse também a ter uma
dupla autoria.
Mas, antes de qualquer outra consideração que procure desenvolver os efeitos sim-
bólicos dessa (con)fusão de vozes, merece ser salientado que este livro representa um auge
da cumplicidade discreta de dois poetas que se conhecem e se lêem há mais de quatro
décadas, para além de cada um deles ter sido, ao longo desses anos, um entusiasta media-
dor da poesia (e da literatura em geral) da língua do outro.
Dois dos primeiros poemas do livro deixam registadas, com subtil discrição, marcas de
encontros pessoais, no início da década de 60, quando Robert Bréchon, então Conselheiro
Cultural da Embaixada de França e Director do Institut Français de Lisboa, privava com
o autor de Ocupação de Espaço. Na voz do poeta e crítico francês5 essas memórias con-
duzem à convicção da existência, já à época, de uma forte cumplicidade poética:
Je me souviens de nos repas de fête
Jadis dans la jeunesse de notre amitié
Tu étais à l’aurore de ta vie
Recluse en poésie et nous allions
Au Rossio ou vers Alcântara
Partager avec Vergílio6 le pain des rêves
Tu mangeais les mots en parlant
Je buvais les images sur ta bouche
Et le vinho verde éclairait la nuit
Ainsi en ce temps-là au bord occidental
Du monde ancien s’accomplissait le rite
Du partage de la parole
Différente était notre langue
Différente notre mémoire
Mais nous allions d’un même pas
Et nous visions d’un même geste
La cible qui nous défie à la fin des temps. (pp. 50 e 52)
Oportunidade para, de imediato, o poeta português reagir com o seu habitual entu-
siasmo pelo interlocutor e com a memória da sua (e à época da maioria dos intelectuais
portugueses) arrebatadora francofilia:
Eu vi nos teus olhos cintilar a lucidez
e o ingénuo alvoroço ávido de vida
Não eras um estrangeiro porque a França era a minha segunda pátria
4 Com a colaboração atenta de dois “revisores”: Agripina Costa Marques nas traduções para português, e Filipe
Jarro nas traduções para francês.
5 Autor de livros de poesia como Les Ouvrages du Temps (Chambelland, 1969), La main de l’homme (L’Arbre,
1996) e Echos, reflets, mirages (Aden, 2003), bem como de ensaios sobre poesia do séc. XX, de que se destacam, além
dos estudos sobre Fernando Pessoa, aqueles que dedicou a Henri Michaux e ao Surrealismo.
6 Trata-se efectivamente de Vergílio Ferreira, a quem António Ramos Rosa apresentou Robert Bréchon que viria a
tornar-se também um leitor atento da obra vergiliana.
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7 Num dos raros desvios de sentido na tradução, Robert Bréchon transformou, consciente ou inconscientemente,
uma evocação (em pretérito imperfeito) numa condição contínua até ao presente: “Tu n’étais pas un étranger puisque
la France est ma seconde patrie / la patrie des poètes et des philosophes que j’aime”, p. 55 [s.n.])
8 Texto traduzido por António Ramos Rosa e publicado no Diário de Lisboa, 29/9/1983.
9 Editada pela Christian Bourgeois e com tradução portuguesa: Estranho estrangeiro: uma biografia de Fernando
Pessoa, Lisboa, Quetzal, 1996. .
10 No sentido em que Philippe Lacoue-Labarthe, debruçando-se sobre a poesia de Paul Celan, fala de “experiên-
cia”, não como “Erlebnis” mas como “Erfahrung”: “Je dis expérience parce que ce dont “jaillit” le poème, ici – la
mémoire d’un éblouissement, c’est-à-dire aussi bien le pur vertige de la mémoire –, est justement ce qui n’a pas eu lieu,
n’est pas arrivé ou advenu lors de l’événement singulier auquel le poème se rapporte, mais qu’il ne rapporte pas (...)”, in
Philippe Lacoue-Labarthe – La Poésie comme Expérience, Paris, Christian Bourgois Editeur [1º ed.1988], pp. 30-31.
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11 Cf. Michel Collot – “Le sujet lyrique hors soi”, Figures du Sujet Lyrique (sous la direction de Dominique Rabaté),
Paris, PUF,1996, p. 117.
12 Cf. Michel Collot – L’Horizon Fabuleux – I – XIX Siècle, Paris, Librairie José Corti, 1988, p. 62.
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3. No prefácio que assina para a obra conjunta, Robert Bréchon reconhece que, para
além das “liberdades tomadas com Lamartine”, houve uma inflexão no decurso desta
escrita lúdica tornada livro: rapidamente os autores se desviaram daqueles que
começaram por ser os pólos de referência de uma digressão a dois em torno de alguns
núcleos temáticos como a Europa, a Amizade, o Amor, a Morte e a Poesia, designados
nesse prefácio como lados do “pentágono mágico”(p. 11). Ora, essa retirada da esfera do
pré-determinado, esse extravasar de uma intenção, de um tema ou programa prelimi-
nares era previsível, desde logo, no contexto da poética ramos-rosiana e da sua tradição
de metapoesia,15 que, por sua vez, se integra numa tendência mais vasta e transnacional,
subscrita por todos os poetas contemporâneos que, defensores de uma poesia radical-
mente livre, continuam a deixar-se conduzir pelo impulso moderno de um lirismo (auto-)
crítico. De resto, Robert Bréchon não deixa de apontar, muito certeira e lucidamente, as
razões mais profundas da deriva nesta aventura poética a dois:
L’imagination poétique a son système propre. Elle a son orient, qui n’est pas celui de la géo -
graphie ; sa mémoire, qui n’est pas celle de l’histoire ; son émotion, qui n’est pas celle des
choses de la vie ; son langage, qui n’est pas celui du discours logique. La poésie n’a pas d’autre
13 Vd. Lamartine – Méditations Poétiques (1820) in Oeuvres Poétiques, Paris, Gallimard, Coll. Bibliothèque de la
Pléiade, 1963, p. 48.
14 Idem, p.4
15 Vd. Ana Paula Coutinho Mendes – Mediação Crítica e Criação Poética em António Ramos Rosa, Vila Nova de
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“sujet” que la poésie. Tout le reste n’est là que pour la figurer, et elle-même est la métaphore ou
la métonymie de tout le reste. (p. 10)
No âmbito de uma poesia que elege como motor criativo a reflexão sobre si mesma,
toda a referencialidade, ou seja toda a relação estabelecida com aquilo que a rodeia,
ergue-se como reflexo segundo e não como mera entrega a um ímpeto primeiro. Se já
pelo seu funcionamento metafórico, a poesia opera uma redescrição lírica do mundo, tal
como ressalta da análise aguda que Paul Ricoeur fez da interligação entre metáfora e
referência no discurso poético16, no quadro específico da metapoesia, também naquilo
que literalmente a provoca, existe já um desvio prévio, porquanto é reflectindo-se (ou
pensando sobre si mesma) que ela reflecte tudo o resto. Por isso mesmo, pode ler-se, logo
nos versos que abrem o livro, uma poética implícita que aponta para a mais intrínseca e
radical desvinculação ou gratuitidade deste encontro reflexivo, realizado sob o signo do
ludismo e do despojamento de uma entrega recíproca:
Deux miroirs nus face à face
Se reflétant l’un dans l’autre
Mais ne reflétant rien que leur lisse
Paroi d’absence leur lueur vaine
(...) (p. 16)
Mais adiante, o mesmo poeta virá ainda a admitir que “L’attente intransitive est notre
lot”(p. 88), e tanto um autor como o outro pontuam regularmente este percurso conjun-
to com momentos de auto-avaliação, decorrentes da auto-reflexividade da própria poe-
sia, onde sobressaem a frontalidade das dúvidas (“Talvez seja gratuito este desejo e dom/
de dar nomes/ que o vento e o silêncio há-de apagar”, p. 12), bem como a lucidez desen-
ganada não só em relação às eventuais expectativas criadas em torno desta prática poéti-
ca em concreto, como também, e sobretudo, em relação à escrita em geral (“Écrire est
une façon de manquer la cible”, p. 124). Também aqui, poder-se-ia invocar toda uma
tradição romântica e moderna de descrença, quando não angústia e renúncia por parte
dos poetas, de certo modo proporcionais a todo o entusiasmo e a todos os desígnios colo-
cados no poder redentor da imaginação poética. Coleridge chegou a desesperar,
Lamartine praticamente abandonou a poesia em nome de uma carreira política,
Rimbaud largou tudo inesperada e precocemente, parecendo ter renunciado a tornar-se
epígono de si mesmo, Mallarmé não escapou a uma crise espiritual e a um intrínseco blo-
queio de escrita, resultante do seu terror face à impotência do próprio poema…isto para
apenas citar alguns dos poetas já anteriormente evocados, dado que a lista é longa no
tempo, para além de atravessar diferentes línguas e culturas.
A esse nível, tanto Ramos Rosa como Robert Bréchon são exemplos de como muita
da poesia moderno-contemporânea, longe de erradicar ou de estrategicamente contornar
a condição trágica tanto da vida como da poesia, interioriza os lastros de cepticismo ou
de negatividade para deles renascer, ainda que seja esforçada e pontualmente. De facto,
é esse vazio prévio e essa impossibilidade literalmente radicais que funcionam como força
propulsora da própria poesia, cuja “volúvel identidade”, declara Ramos Rosa, “é a de ser
sem ser e que por não ser inicia”(p. 106). Robert Bréchon assume, de uma forma geral,
mais reservas quanto à assimilação entre poesia e a “verdadeira vida” ou quanto à
16 Cf. Paul Ricoeur – La Métaphore Vive, Paris, Seuil, Coll. Points, 1975, p. 301.
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perenidade de ambas (“Tout sera effacé/Tout sera oublié.”, p. 148), mas mesmo quando
caracteriza esta escrita dual como “contorções à beira do abismo”, como uma “dança
inútil” ou como um “jogo de palavras vãs” é para apelar – baudelairiamente – à sua con-
tinuidade:
Continuons donc nos arpèges nos gammes
Nos jeux de mots aussi vains que des jeux de mains
Écrire aussi est une drogue
Et le poème est un “voyage” (p. 332)
Existe, então, neste caminho de palavras um permanente equilíbrio instável entre
forças opostas. Apesar de se estar perante dois poetas que já muito viveram e escreveram,
a sabedoria que lhes advém dessa longa experiência não subentende qualquer imobilis-
mo ou comprazimento, muito pelo contrário, prevalece a constante inquietação.
Sobretudo nos poemas de Ramos Rosa, mediante uma dinâmica que, mais do que habi-
tual, lhe é intrínseca, demarcam-se todo um conjunto de adversativas que logo resgatam
o poema e/ou o poeta, quando este(s) parece(m) soçobrar.17 Todavia, essa passagem não
opera nenhum tipo de transmutação beatífica que remeteria o poema/o poeta para um
qualquer posto cristalizado de imunidade. Com efeito, a poesia de António Ramos Rosa
conjuga exemplarmente a dimensão “sentimental” (no sentido “reflexivo” e especulati-
vo” que Schiller atribuiu àquele adjectivo) e a “ingenuidade de segundo grau” que Yves
Bonnefoy revelou num poeta de excepção como o oitocentista italiano Leopardi,18 de
modo que a tarefa poética acaba sempre por apresentar, no poeta português, traços de
um destino sisífico que, como Albert Camus concluiu e Ramos Rosa parece aqui cor-
roborar, se impõe imaginar feliz:
Teremos de descer até ao fundo da lava
E sentir a frigidez da sombra que está no fundo de tudo
Teremos então num incerto vaivém
De subir e descer e do abismo ao solo solar
Da lucidez inebriante à viscosa agonia
Tecer a intermédia melodia da ascensão e da queda
Na sucessão dos instantes na sequência das palavras
Para que possamos viver no equilíbrio ténue
Como numa torre transparente mas de obscuros veios
E consagrar o luminoso mercúrio
Que liga a cinza futura e já pretérita
À ingénua insurreição da nossa inocência original ( p. 94)
4. Sem que cumpram qualquer roteiro prévio, estas digressões poéticas não deixam de
esboçar alguns lugares de pensamento em torno da poesia e das relações com o mundo
que dela extravasa.
17 Vd. entre tantos outros, os poemas das págs. 118, 182, 216, 298 e 352.
18 Vd. Yves Bonnefoy – L’Enseignement et l’Exemple de Leopardi, William Blake, 2001. Partindo da oposição shil-
leriana entre “poesia sentimental” e “poesia ingénua”, e revendo-a também à luz do exemplo de Leopardi, Jean Claude
Pinson desenvolve uma interessante leitura da poesia contemporânea francesa, que ao mesmo tempo pretende ser um
programa implícito de superação de um estádio niilista, pela aposta num “ethos” poético, ou seja, concebendo a possi-
bilidade de a poesia representar uma forma de ser ou habitar no mundo. (vd. Jean Claude Pinson – Sentimentale et
Naïve – Nouveaux Essais sur la Poésie Contemporaine, Seyssel, Éditions Champ Vallon, 2002).
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Um desses lugares imaginários de relação é a ideia de Pátria que aqui, muito longe
de alguns sentimentos nacionalistas e românticos de Oitocentos, remete antes para um
“no man’s land de sonho”(p. 285), uma “região onde poderemos viver/ Sem fronteiras à
luz de uma fé/Viva (...)”(p. 69). É esse espaço significativamente indeterminado que con-
figura a distância real e simbólica que não só separa os dois poetas, como é também
condição do seu encontro (“L’espace entre nos pas sera notre patrie”, p. 68).
Dado que a pátria de nascimento, assim como qualquer outro legado (língua, nome,
rosto...), não correspondem a nenhuma escolha própria, surgem secundarizados em
relação a todo o lugar de identidade ou autenticidade conquistadas (p. 82), o que aliás
vem ao encontro de todo o imaginário em torno de uma “pátria” mais ainda prospecti-
va do que histórica, que Ramos Rosa viria a desenvolver num outro livro posterior a esta
aventura de escrita alternada com Robert Bréchon, e onde se pode ler:
Se a pátria é uma herança ela é também o espaço que está à nossa frente
em que temos de projectar as suas dinâmicas linhas
em que vibrará o ritmo do nosso sangue e da nossa respiração
porque ela será a realidade do que em nós é a irrealidade do nosso ideal 19
No âmbito daquele que se apresenta como um enraizamento sobretudo ideal ou
abstracto, ganha especial destaque em Meditações Metapoéticas/Méditations
Métapoétiques a referência mitológica à Europa – um topos que, para Robert Bréchon,
surgira como impulso primeiro para este diálogo poético franco-português. Logo num
dos primeiros poemas, o poeta francês dá voz à jovem filha do rei de Sídon, como que a
fundamentar aquela que terá começado por ser a unidade primordial de um continente
sem fronteiras, e a confirmar uma comunhão com o seu correspondente poético (“Oui
ton pays est mon pays”, p. 26), uma vez que, antes mesmo de ser sentimento ou fruto de
uma opção, essa união radica na própria história mítica da Europa. O mesmo poeta insis-
tirá nesta referência ao entretanto conhecido como “Velho Continente” em mais dois
momentos: primeiro, para denunciar aquela que tem sido a História contemporânea de
uma Europa dividida, em que uma das suas partes ignora a outra, terrivelmente sacrifi-
cada pelas mais recentes e violentas reorganizações internas (“Autre Europe lointaine et
proche poignardée/Par l’excès de désir des guerriers en colère/Déjà devenus fous de l’ab-
sence de Dieu”, p. 42). Depois, mais adiante no livro, arrisca uma utopia em torno da
Europa, vendo-a como um lugar fundamentalmente móvel, isto é, lugar de chegadas e
de partidas, liberta de um passado mítico e aberta, de novo, a todas as viagens e mestiça-
gens (pp. 324-326).
Embora a voz de qualquer um destes poetas seja suficientemente contida para arrou-
bos messiânicos e, portanto, já não se faça ecoar com o timbre profético dos românticos,
existe nela uma subtil esperança que resiste, depois de derrubados outros ideais, fazendo
assim perdurar “a ficção de uma nova integridade” (p. 100), que em si mesma ergue
mundos sonhados de uma nova humanidade: “Je rêve d’un homme nouveau” (p.180) –
assim admite Robert Bréchon para, noutro passo, também sustentar: “nous ne sommmes
que les bourgeons/ D’une immense fleur à venir”(p. 270).
No entanto e curiosamente, o poeta francês é também aquele que aqui assina as
visões mais desiludidas do mundo, bem como algumas suspeitas acutilantes sobre a
19 António Ramos Rosa – Pátria Soberana seguido de Nova Ficção, Vila Nova de Famalicão, 1999, p. 16.
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crença autotélica da modernidade (p. 74), de tal modo que chega a ser bastante evidente
o efeito de contraponto entre a sua mundividência e a de António Ramos Rosa. À angus-
tiada desilusão daquele, responde muitas vezes – como efeito de sucessão no livro – a
tranquilidade e a placidez do poeta de Acordes. A título de exemplo, atente-se no poema
43, em que Robert Bréchon se deixa levar pela possibilidade do fim de tudo, ao que se
segue uma alegoria ramos-rosiana de renascimento, sustentada em imagens de tranqui-
lidade, emergência, canto, unidade e frescura. Celebrado como um “campo de sossego”,
o poema de Ramos Rosa ergue-se da transfiguração que lhe permite aceder a uma epi-
fania da “verdade sublime” ( Philippe Lacoue-Labarthe): “Tudo está encerrado e aberto/
para aquém do destino e dos demónios” (p. 150).
Mais adiante no livro, voltamos a deparar com o desencanto na mundividência bré-
choniana, através da contraposição discursiva tanto entre o desejo (o sonho) e a realidade,
como entre a vida e a morte:
On voudrait que la vie
Soit aussi propre que la mort
Et l’on rêve aussi d’une mort
Aussi vivante que la vie
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connais personne qui ait un sentiment aussi tragique de la vie, au point de regretter d’être né,
mais il n’y a pas non plus de poète plus heureux de chanter la beauté du monde. À son angoisse
fondamentale répond son incessant émerveillement.20
Note-se, todavia, que o próprio co-autor de Meditações Metapoéticas/Méditations
Métapoétiques, no decurso de um dos seus poemas, virá a reconhecer que “La fatigue
d’exister/cède la place à l’étonnement d´être” (p. 48), corroborando, aliás, uma carac-
terística da sua obra poética, onde – como já uma vez salientou o seu leitor António
Ramos Rosa – “É constante, também, o tom de coragem e de perseverança que não se
deixa vender [sic] inteiramente pela adversidade”.21 Essa abertura constante à surpresa
faz com que seja mais importante aquilo que o poema /a poesia edificam do que qual-
quer realidade prévia; por conseguinte, o movimento intrínseco a esta poesia é o da errân-
cia em busca de um “horizonte novo”(p. 104), e já não tanto o dos retornos implíci-tos do
imaginário romântico do exílio. Quando existem referências a um tempo/lugar genesía-
cos, estes não deverão ser entendidos como sinal nostálgico de um passado, porquanto
“As raízes vão à frente. Puxam-nos para a frente”,22 e, por conseguinte, trata- -se de uma
génese não exactamente temporal mas lógica, ou seja, representa como que um arquétipo
de pensamento de incidência metapoética, em função do qual a busca da pureza das
palavras supõe a única versão possível e intrínseca de uma realidade paradi-síaca ainda
(e sempre) por vir:
Ah! retrouver la parole nue
Puisqu’il n’y a plus d’autre Eden (p. 46)
Perante tal empresa tendencialmente, se não mesmo, infinita, com facilidade se ima-
gina que esta forma de troca metapoética poderia ter continuado indefinidamente. A
dado momento, escreve Robert Bréchon: “Les jeux sont faits et notre livre/ S’en va en boi-
tant vers l’indéfini/D’un dessein qui ne s’accomplira pas” (p. 308). Incorporado o desígnio
mallarmeano de uma arquitectura espiritual à escala infinita do Universo, acaba tam-
bém por entranhar-se a sua radical impossibilidade. Na sequência de vozes que as
Meditações Metapoéticas/Méditations Métapoétiques encenam, cabe ao poeta francês
desacelerar decisivamente (como se fora o volante na “Ode Marítima” de Álvaro de
Campos) nesta viagem em torno da poesia. E os seus versos de balanço final não escon-
dem aquela que não deixa de ser uma amarga auto-desmistificação do trabalho poético
em geral:
J’ai cru que le poème était
Une parole d’homme un appel d’ange
Le cri d’une bête blessée
Il n’est que le froid regard vertical
20 In Prefácio a À la Table du Vent, Nantes, Le Passeur, 1995, p. 10. Também o amigo de ambos, Vergílio Ferreira,
havia apontado na sua Conta-Corrente da década de 70, essa relação paradoxal entre a vida e a poesia de Ramos Rosa:
“(…) ele e a obra nunca se entenderam muito bem. Os versos falam da luz, da alegria, mesmo da vida discreta e em paci-
ficação. Ele, porém, ficou sempre de fora, um pouco espantado de que a alegria e a vida existissem. Tem passado no
mundo, atrapalhado com tudo, e a festa que tem cantado é para os outros, não para si.” In Conta-Corrente 2 [1977-
1979], Lisboa, Bertrand Editora, 1990, p. 187.
21 Cf. nota que acompanha a tradução de “Ode a Fernando Pessoa”, publicada no Diário de Lisboa, 29 de
Setembro de 1983, p. 3.
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23 Um poema, aliás, bem conhecido e interiorizado pelo poeta português que o transformou em epígrafe e título do
livro, já atrás referido, O Não e O Sim.
24 Cf. George Steiner – Après Babel – Une poétique du dire et de la traduction, Paris, Albin Michel [Tradução da
edição definitiva e ampliada de After Babel: Aspects of Language and Translation, Oxford University Press, 1998), p. 62.
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Já antes associado a falante de uma “langue de nulle part” e de uma “langue de per-
sonne”(p. 68), o poeta surge assim como aquele que naturalmente transita entre línguas
– conhecidas e desconhecidas – e que, por conseguinte, é intrinsecamente tradutor e
induz à tradução. Ao mesmo tempo, dissipa-se a distinção de princípio entre poema origi-
nal e poema traduzido, uma vez que todos os textos originais são traduções, assim como
as traduções acabam por ser textos originais. Esta concepção de poesia como texto intrin-
secamente traduzido e/ou em processo contínuo de tradução leva-nos também a pensar
que o problema da tradução do texto poético não reside, como bem apontou João
Barrento, nas “relações intersistémicas (de língua a língua)”, mas sim [numa] operação
transsistémica (...) que tem a ver com o nível mais amplo do discurso e com o tipo de
transformação do mundo pela linguagem que é atributo exclusivo do fazer poético.”25
Ora, no livro em análise, para cada um dos poetas, a tarefa ou o papel de tradutor
do outro, parece estar à partida facilitado, não só porque cada um deles conhece o
idioma do outro e ambos são línguas românicas, mas também e sobretudo, porque, ao
partilharem versões do mundo afins, o poema original se inscreve mais facilmente no
horizonte de experiência do poeta-tradutor.
No entanto, importará não esquecer que quando há uma manifesta proximidade
entre o tradutor e o texto a traduzir, desenvolve-se aquilo que o autor de Après Babel clas-
sifica como “relações ambíguas e dialécticas”, pois pressupõem ao mesmo tempo “uma
afinidade electiva” e um “núcleo de resistência irredutível”.26 Este aspecto é tanto mais
importante quanto ajuda a desenvolver neste livro em edição bilingue um efeito de
homologia entre essa dialéctica da tradução e a dialéctica da criação poética, na sua
própria dinâmica tensional.
Com efeito, a inclusão dos poemas traduzidos, para além de vantagens práticas a
nível de recepção dos leitores, não só se reveste como materialização de uma linguagem
que, à imagem de qualquer tradução, simultaneamente une e divide,27 como também
ajuda a reiterar a dialéctica entre a distância e a proximidade que, tendo presidido já ao
processo criativo deste livro por via de uma correspondência epistolar e poética, subjaz
também à tessitura semântica de um número considerável de poemas, de que, a título de
exemplo, se pode destacar mais este excerto metapoético:
Le poète est un archer dans la nuit
La cible toute proche est à une distance
Infinie (...) (p. 48)
Existe aqui, como em qualquer dos outros (auto)retratos reflexivos do(s) poeta(s), uma
desdobrada clarividência crítica que, a cada instante, faz lembrar a cesura ou intervalo
ontológicos,28 em função dos quais a poesia não pode ser senão uma “liturgia da distân-
cia”(p. 214), embora ao mesmo tempo o poeta procure celebrar aquela que é também a
sua vocação demiúrgica:
Tu sabes que não há resgate para a impossível ferida
25 Cf. João Barrento – O Poço de Babel – Para uma Poética da Tradução Literária, Lisboa, Relógio d’Água, 2002,
p. 61.
26 Vd. George Steiner – op.cit., p. 490.
27 Idem, p. 324.
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31 Cf. António Ramos Rosa – “Entre dois poemas o que já se apagou e o que não se acendeu ainda” (poema do
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32 Note-se, aliás, que com uma única excepção, os diálogos poéticos entre António Ramos Rosa e outros poetas, que
resultaram em livro, começam sempre pela palavra/poema do outro poeta. Numa dessas obras, o próprio Ramos Rosa
parece justicar tal facto ao escrever: “O outro é sempre o que inicia e está em nós e é mais do que nós/e é neste círculo
fértil que voa um pássaro de chamas” – cf. António Ramos Rosa / Maria Teresa Dias Furtado – O Alvor do Mundo, Vila
Nova de Famalicão, 2002, p. 26.
33 Cf. Paul Ricoeur – Soi-même comme un autre, Paris, Seuil, Coll. Points, 1990, p. 380.
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Se, por vezes, parece decorrer deste livro, e até pelos exemplos evocados, um efeito de
relação subtilmente hierarquizada como se de um Mestre e de um discípulo se tratasse
(uma hierarquia para que de resto também aponta o prefácio de Robert Bréchon), esse
efeito deve ser contrabalançado por aquela que tem sido, ao longo dos tempos, a
“arborescência” da poesia ramos-rosiana,34 sempre aberta “à novidade do instante” (p.
276) e ao(s) Outro(s), numa relação que tanto afecta como se deixa afectar (até ao limite
máximo do plágio), sem distinções nem complexos. Aliás, relativamente à fenomenolo-
gia poética (em última instância, sempre o único denominador comum destes diálogos),
Ramos Rosa tem reiteradamente assumido o papel de “aprendiz secreto”.35 Aquilo que
estas meditações intercaladas podem acrescentar ao hábito de um e de outro poeta reflec-
tirem sobre o acto poético tem mais a ver com a forma como também é aqui deslocado
o desiderato caro a alguns românticos, e a seus sucessores, de afirmação de uma individ-
ualidade pessoal e estética, sobrevalorizando-se pelo contrário uma profunda frater-
nidade, à imagem daquela para que António Ramos Rosa já apelava no início da déca-
da de 50.36
Assim, quando na voz de um dos poetas é reconhecido que “Quem procura a difer-
ença talvez encontre o comum/e no comum o singular e no singular o universal” (pp. 35-
-36), fica claramente evidenciado que na sua dinâmica de auto-reflexão do sujeito, estas
meditações acabam por esbater as fronteiras entre singular e universal, porquanto a per-
scrutação do mais profundo de si conduz necessariamente às sinuosidades da natureza
humana. Mas convém ainda acrescentar que é a própria experiência da escrita que leva
estes poetas a pressentirem uma relação outra, a que Maurice Blanchot no seu
L’Entretien Infini chamou, por empréstimo feito a Spinoza, uma “relação do terceiro
género”37 – sinónima de comunidade e, desde logo, na acepção possível de comunidade
literária. Nesta existe, com efeito, uma relação recíproca em que não só cada um é alter-
nadamente escritor e leitor, como ambos mantêm uma pertença comum à escrita, no
sentido também blanchotiano, de um espaço de entendimento e de aliança criativa.38
Bastante depois do Surrealismo e das suas experiências de escrita colectiva como
soma de automatismos individuais, onde se jogou a libertação de condicionalismos de
ordem intelectual, estética e social, esta escrita relacional levada a cabo por dois poetas
(mas expansível a mais, como para tanto apela Robert Bréchon no prefácio) ensaia uma
não menor libertação, ao delinear uma utopia da linguagem (e implicitamente da
História), sob a forma de uma nova topologia do Ser e da palavra poética que extravase
de qualquer identificação por demarcações externas e convencionais, como acontece
com todas aquelas fronteiras que, em vez de provocarem encontros, separam.
São conhecidos os engodos, atavismos e simplismos a que podem conduzir tanto
alguns pensamentos universalistas como a busca obsessiva de individualidades pessoais e
nacionais. Num tempo histórico como o nosso, em que se vive as oportunidades da glo-
balização mas também os seus riscos de totalidade, senão mesmo de totalitarismo,
informe, em que tarda a encontrar-se lugares e formas de afirmação cultural europeia
34 Cf. Ana Paula Coutinho Mendes – “A poesia arborescente de António Ramos Rosa”, Espacio/Espaço (no prelo).
35 Vd. O Aprendiz Secreto, Vila Nova de Famalicão, Edições Quasi, 2001.
36 Vd. “A poesia é um diálogo com o universo”, Árvore, Vol. II, 1º Fascículo, [Primavera de 1953], p. 12.
37 Cf. Maurice Blanchot – L’Entretien infini, Paris, Gallimard, 1983 {[1969], p. 103.
38 Cf. Maurice Blanchot – Celui qui ne m’accompagnait pas, Paris, Gallimard, 1983 [1953], p. 80.
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António Ramos Rosa e Robert Bréchon:
dois poetas ao espelho de uma poesia sem fronteiras
que contemplem travessias entre as línguas e as culturas que dão corpo, simultaneamente
singular e plural, à Europa, não pode senão ajudar a alterizar-nos (a alterar-nos) o exem-
plo destas duas vozes poéticas que experienciam e celebram a relação como fundamen-
to de identidade e de sentimento pertença:
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