Babilonia Revisitada

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Tradução Comentada do conto Babylon Revisited

de F. Scott Fitzgerald

Ana Teresa Ribeiro Ferreira

Trabalho de Projeto

Mestrado em Tradução e Interpretação Especializadas

Porto - 2015

INSTITUTO SUPERIOR DE CONTABILIDADE E ADMINISTRAÇÃO DO PORTO


INSTITUTO POLITÉCNICO DO PORTO
Tradução Comentada do conto Babylon Revisited
de F. Scott Fitzgerald

Ana Teresa Ribeiro Ferreira

Trabalho de Projeto
Apresentado ao Instituto de Contabilidade e Administração do Porto para a
obtenção do grau de Mestre em Tradução e Interpretação Especializadas, sob
orientação da Doutora Maria Manuela Ribeiro Veloso

Esta versão contém as críticas e sugestões dos elementos do júri.

Porto - 2015

INSTITUTO SUPERIOR DE CONTABILIDADE E ADMINISTRAÇÃO DO PORTO


INSTITUTO POLITÉCNICO DO PORTO
Resumo: Este Trabalho de Projeto tem como objeto a tradução para Língua Portuguesa
do conto Babylon Revisited do autor norte-americano F. Scott Fitzgerald, publicado pela
primeira vez em 1931 na revista semanal Saturday Evenning Post. Na primeira parte do
trabalho, procedeu-se a uma apresentação da vida e obra do autor, análise do conto e do
contexto histórico e sócio-económico em que ambos se inserem. Na segunda parte faz-
se uma exposição das teorias de tradução que mais diretamente influenciaram o presente
trabalho, assim como uma reflexão sobre as dificuldades que surgiram durante o
trabalho de tradução e a justificação acerca das soluções encontradas e do processo
decisivo.

Palavras chave: Fitzgerald; Era do Jazz; Loucos Anos 20; tradução literária; conto;
métodos de tradução; Babylon Revisited.

Abstract: The object of this Project/ Master Thesis consists of the translation into
Portuguese of F. Scott Fitzgerald’s short-story Babylon Revisited. This short-story was
first published in 1931 on Saturday Evenning Post’s weekly magazine. The first part
consists of a presentation of the author’s life and work, as well as an analysis of the
short-story and the historical, social and economic context that they are both part of.
The second part exposes the translation theories which most directly influenced this
work. It also contains some observations about the difficulties encountered during the
translation work and explanations about the way they were solved and the decision-
making process.

Key words: Fitzgerald; The Jazz Age; The Roaring Twenties; literary translation; short-
story; translation methods; Babylon Revisited.

ii
Agradecimentos

À minha orientadora, Doutora Manuela Veloso, por todo o tempo despendido,


apoio e compreensão ao longo desta fase do meu percurso académico.
Aos professores do Mestrado em Tradução e Interpretação Especializadas, por
todos os conhecimentos que me transmitiram e pelo apoio contínuo.
Aos meus amigos e colegas de mestrado, em especial à Ana, Bárbara, Fábio e
Teresa, a quem devo um grande obrigado pela motivação e apoio incondicional durante
todo este percurso.
À minha amiga Inês, que está comigo há quase vinte anos e que, mais do que
ninguém, foi uma presença e apoio constantes.
À minha amiga Bárbara, que sempre me ofereceu as mais queridas palavras de
encorajamento.
À minha amiga Gabriela, que esteve sempre a meu lado.
A todos os meus familiares e amigos, que me acompanharam nesta etapa da
minha vida, e a todos aqueles que, de alguma forma, me encorajaram com uma palavra
amiga.

iii
We can destroy what we have written,
but we cannot unwrite it.

Anthony Burgess, A Clockwork Orange

iv
Lista de abreviaturas:

LP - Língua de Partida

LC - Língua de Chegada

TP – Texto de Partida

TC - Texto de Chegada

BR – Babylon Revisited

v
Índice

Introdução……………………………………………………………………………….1

1. Francis Scott Fitzgerald……………………………………………………………..5


1.1. Vida e Obra……………………………………………………………….…….6
1.2. Babylon Revisited……………………………………………………………...15
1.2.1. Breve Análise…………………………………………………………...15
1.2.2. Contexto Histórico e Socio-Económico………………………………..31
2. Enquadramento teórico-prático…………………………………….……………....44
2.1. Tradução Literária: o Conto…………………………………………………...45
2.2. Reflexão sobre o Trabalho de Tradução………………………………………53

Conclusão……………………………………………………………………………....64
Referências Bibliográficas……………………………………………………………..66
Apêndice 1 - Tradução: “Babilónia Revisitada”………………………………………76
Anexo 1 - Texto Original: Babylon Revisited………………………………………...101

vi
Introdução

1
No presente trabalho de projeto proponho uma tradução para Português do conto
Babylon Revisited de Francis Scott Fitzgerald1. Durante o meu percurso académico fui
apresentada ao autor e à obra, e foi a sua incomparável forma de escrever e de provocar
no leitor sentimentos ambíguos de desolação e esperança, que me levaram, mais tarde, a
escolher Babylon Revisited como objeto de estudo. Apesar de existirem traduções de
todos os seus romances, o mesmo não acontece com os contos (cerca de 160), o que
resulta no desconhecimento do Fitzgerald contista. Para um mais amplo conhecimento
da extensão da tradução dos seus contos em Portugal, realizei uma breve pesquisa na
Base Nacional de Dados Bibliográficos (PORBASE) que passo desde já a apresentar.
A primeira coletânea de contos publicada em Português é “Sonhos de Inverno:
Antologia de Contos”. Foi traduzida por Henrique Silva Letra para a Portugália (1965) e
mais tarde para a Relógio D'Água (1986 e 2011), sob o título “Sonhos de inverno e
outros contos” e incluía os contos “Sonhos de Inverno” (Winter Dreams), “Regresso à
Babilónia” (Babylon Revisited), “Domingo Incoerente” (Crazy Sunday), “Um Caso de
Alcoolismo” (An Alcoholic Case) e “Resíduos de Felicidade” (The Lees of Happiness).
Henrique da Silva Letra traduziu também a coletânea “Três Horas entre Dois
Aviões e Outros Contos” para a editora Inova, em 1972. Esta coletânea inclui os contos
“Bernice Corta o Cabelo” (Bernice Bobs her Hair), “Três Horas entre Dois Aviões”
(Tree Hours Between Planes), “As Costas do Camelo” (The Camel’s Back) e
“Tarquínio de Cheapside” (Tarquin of Cheapside).
A coletânea “Um Diamante do Tamanho do Ritz e outras Histórias” foi
traduzida por Teresa Mascarenhas para a editora Veja, em 1997. Nesta coletânea foram
incluídos três contos inicialmente publicados em Sonhos de Inverno, com títulos um
ligeiramente diferentes: “Um Louco Domingo” (Crazy Sunday), “Um Caso de
Alcoolismo” (An Alcoholic Case) e “Os Ventos da Felicidade” (The Lees of Happiness).
Nesta coletânea foram ainda traduzidos os contos “A Taça de Cristal Facetado” (The
Cut-Glass Bowl), “O 1.º de Maio” (May Day), “Um Diamante do Tamanho do Ritz” (A
Diamond as Big as the Ritz), “O Rapaz que era Rico” (The Rich Boy) e “A Década
Perdida” (The Lost Decade).
A coletânea “A Década Perdida” contou com a tradução de M. F. Gonçalves de
Azevedo para a editora Estampa, em 1989. Inclui os contos “1º de Maio”, “O Diamante
do Tamanho do Ritz”, “O Menino Rico”, “Absolvição” (Absolution), “Três Horas entre
Aviões” e “A Década Perdida”. Uma coletânea com o mesmo nome mas com um
1
Babylon Revisited conta já com a tradução para Português de Henrique Silva Letra (1965/1986/2011).

2
conjunto de contos diferentes, foi publicada em 1996 pela editora Europa-América, com
a tradução de Clarisse Tavares. Esta coletânea inclui os contos “Basil: Um Rapaz
Atrevido”, “Josephine: Uma Mulher com Passado”, “Dois Erros”, “A Festa do
Casamento”, “Um Domingo Louco”, “Três Horas entre Aviões” e “A Década Perdida”.
A coletânea “Mal por Mal e outros Contos” foi traduzida por Telma Costa para a
editora Teorema (1991). Inclui os contos “Absolvição”, “Uma Breve Visita a Casa” (A
Short Trip Home), “A Dura Travessia” (The Rough Crossing), “O Casamento” (The
Bridal Party) e “Mal por Mal” (Two Wrongs). Telma Costa traduziu para a mesma
editora o conto “Mal por Mal” (Two Wrongs) (2005) e a coletânea “Crónicas de
Hollywood” (1991) que inclui os contos sobre Pat Hobby. Existe ainda a tradução de
“Pat Hobby em Hollywood” para a editora Europa-América, por Sophie Vinga, de
1993.
A mais recente coletânea, “Bernice Corta o Cabelo”, foi traduzida por Maria
Helena Fernandes para a editora Europa-América, em 1992. Inclui os contos “Bernice
Corta o Cabelo” (Bernice Bobs her Hair), “Sonhos de Inverno”, “O Mais Sensato”,
“Absolvição”, “A Festa das Crianças” (The Baby Party), “Uma Breve Viagem a Casa”,
“Magnetismo” e “A Travessia Difícil”. Na obra “O Mundo dos Ricos”, publicada em
2005 pela editora Coisas de Ler, Inês Tavares Rodrigues traduziu os contos “O Menino
Rico”, “A Boda” (The Bridal Party) e “A Última Beldade” (The Last of the Belles).
Foram ainda traduzidos os contos “Uma Coisa Razoável” (The Sensible Thing),
por Henrique Silva, para a Portugália (1968); “O Estranho Caso de Benjamin Button”
(The Curious Case of Benjamin Button), por Fernanda Pinto Rodrigues, para a Presença
(2008/9); e uma edição intitulada “Magnetismo”, por Maria Helena Fernandes, para a
Europa-América (1996), que inclui os contos “Magnetismo” e “A Festa de Crianças”.
Tal como é possível verificar, a extensão de contos traduzidos para Português é
bastante reduzida, e apesar de Babylon Revisited já contar com algumas traduções
espero, com a análise e tradução que aqui apresento, contribuir para um mais amplo
conhecimento do escritor como contista e para uma renovada conscientização da sua
obra literária.
No primeiro capítulo, procederei a uma apresentação biográfica do autor e a uma
análise do conto e do contexto histórico e socio-económico no qual se insere. Deste
modo, pretendo estabelecer uma ligação que comprove a influência autobiográfica de
Fitzgerald nas suas histórias, refletindo no seu trabalho e nas suas personagens parte
dele próprio, dos seus sentimentos e das situações reais que enfrentou. Irei abordar

3
Fitzgerald como escritor da Era do Jazz e como ícone cultural da excentricidade e
hedonismo dos Loucos Anos 20. Este enquadramento temático será importante para
fornecer ao leitor deste trabalho um contexto da vida e obra do autor, assim como para
facilitar o trabalho do tradutor, não só no que toca à interpretação do texto original, mas
também durante o processo de tradução, uma vez que um melhor entendimento destes
tópicos irá produzir melhores escolhas tradutivas da minha parte.
Em seguida, irei considerar a tradução, enquanto processo, oferecendo uma
análise das teorias e abordagens tradutivas que empreguei na tradução do conto. No
enquadramento teórico-prático tentarei demonstrar a importância da relação entre língua
e cultura e como esta associação se traduz nas escolhas do tradutor. A responsabilidade
de adequar o texto original a um sistema linguístico e cultura diferentes é do tradutor,
cujo dever é facilitar a comunicação intercultural. Para justificar as minhas escolhas
tradutivas centrei-me em autores como Lawrence Venuti, que defende a importância do
sentido do texto sobre a sua forma, e em autores como Peter Newmark e Mona Baker
que oferecem diferentes estratégias de tradução que apliquei na resolução de problemas
ao longo do trabalho. No último subcapítulo deste trabalho irei fazer uma reflexão sobre
as minhas escolhas durante o processo de tradução, justificando-as de acordo com as
teorias e estratégias que abordei no subcapítulo anterior.

4
1. Francis Scott Fitzgerald

5
1.1. Vida e Obra

Na edição do Saturday Evening Post2 de 18 de setembro de 1920, Fitzgerald


explana a relação entre a sua vocação literária e o contexto histórico em que se
encontra: “The history of my life, […] is the history of the struggle between an
overwhelming urge to write and a combination of circumstances bent on keeping me
from it” (apud Scott Donaldson, 2002: 165). Posto isto, empenhar-me-ei em alcançar
um paralelo entre as circunstâncias presentes na vida de Fitzgerald e a sua influência na
produção literária do autor, procedendo primeiramente ao levantamento de informação
biográfica (que envolverá uma breve exploração de algumas das suas obras,
nomeadamente os romances) para, em seguida, proceder a uma análise do conto que me
proponho traduzir, Babylon Revisited.
Francis Scott Key Fitzgerald nasceu a 24 de setembro de 1896, em Minnesota,
nos Estados Unidos da América. Filho de Mary McQuillan Fitzgerald, proveniente de
uma família irlandesa que se tornou abastada com o negócio de uma mercearia em St.
Paul e de Edward Fitzgerald, proveniente de Maryland e fiel ao Sul e aos seus valores,
ambos católicos (cf. Bruccoli, 2007: 3). O autor viveu, durante a primeira década da sua
vida, entre Buffalo e Syracuse, no norte de Nova Iorque, porque assim o exigiam as
ocupações dos seus pais. Em 1908, a família voltou para Minnesota, e foi na Academia
de Saint Paul, que frequentou até 1911, que Fitzgerald, com treze anos, viu impresso
pela primeira vez, na revista de estudantes da academia, um dos seus trabalhos escritos,
uma história policial intitulada The Mystery of the Raymond Mortgage (1909) (Ibidem).
Concluiu o ensino secundário em 1913, na Newman School (1911-13), uma escola
católica em Nova Jersey onde conheceu Padre Sigourney Fay, figura que o encorajou a
perseguir as suas ambições de distinção e conquista pessoais.
Fitzgerald entrou na Universidade de Princeton em setembro de 1913 e foi lá que
desenvolveu o seu talento para a escrita literária, escrevendo guiões para os musicais do
Triangle Club3, e artigos para algumas revistas de publicação periódica da própria
universidade, tais como The Princeton Tiger4 ou Nassau Literary Review5 (Ibidem). A

2
Revista periódica em circulação desde 1728. Fornece arte, entretenimento, informação, ficção, humor e cartoons
cómicos (The Saturday Evening Post - About Us, s.d.).
3
Organização e grupo de teatro de comédia-musical universitário que remonta a 1883. The Triangle Show é escrito,
produzido e encenado por estudantes (Princeton University - Princetoniana, 2013).
4
Fundada em 1882, The Princeton Tiger é uma revista cómica universitária que circula nos Estados Unidos (The
Princeton Tiger - About, s.d.).
5
The Nassau Literary Review existe desde 1842. É a publicação estudantil mais antiga da Universidade de Princeton.
Proporciona um fórum para estudantes escritores, poetas e artistas (The Nassau Literary Review - About Us, s.d.).

6
imersão de Fitzgerald na arte literária levou-o a descuidar o seu desempenho académico
e, consequentemente, a abandonar o ensino superior e alistar-se no exército em 1917,
altura da entrada dos Estados Unidos na Primeira Guerra Mundial. Convencido que
morreria na Guerra, rapidamente escreveu The Romantic Egoist6, o seu primeiro
romance, mais tarde rejeitado pela editora Scribner, que ainda assim o louvou pela
originalidade e pediu que fosse reenviado após uma revisão (Ibidem). Fitzgerald foi
nomeado Segundo-Tenente de infantaria num campo em Montgomery, Alabama. Foi
durante este período que conheceu a sua futura esposa, Zelda Sayre, de dezoito anos,
filha mais nova do juiz do Supremo Tribunal do Alabama (cf. Mizener, s.d.). A relação
romântica intensificou a esperança de Fitzgerald no sucesso do seu romance, contudo a
Scribner rejeitou-o uma segunda vez.
A guerra acabou em Novembro de 1918 e Fitzgerald é dispensado do exército,
mudando-se prontamente para a cidade de Nova Iorque com a intenção de começar uma
carreira lucrativa e casar. Na primavera de 1919 escreveu 19 histórias e recebeu 122
rejeições, algo que juntamente com a hesitação de Zelda em casar o deixou
desencorajado. Incapaz de viver com o pequeno salário que a carreira publicitária
oferecia a Fitzgerald, Zelda acaba com o noivado (cf. Bruccoli, 2007: 4). Após alguns
meses, o autor despede-se e parte, novamente, para Saint Paul, a fim de reescrever o seu
romance, o qual renasce com o título This Side of Paradise7, uma história bastante
autobiográfica sobre amor e ganância, quase uma revelação da nova moralidade dos
jovens da altura (The Biography - F. Scott Fitzgerald, s.d.). O romance acabou por ser
publicado em 1920, depois de algumas revisões, e recebeu excelentes críticas. Segundo
Matthew J. Bruccoli, demonstrava uma caraterística típica da escrita de Fitzgerald:

It demonstrated one of the trademarks that would characterize Fitzgerald’s


writing - his ability to capture how things really were without resorting to straight
documentary writing but rather using evocative details and nuances of style to convey
moods. (Bruccoli, 2007: 5)

O romance transformou Fitzgerald, agora com 24 anos, num dos jovens


escritores mais famosos e promissores do país e a sua voz apelava a muitos dos seus

6
A obra acabou por ser publicada com o título This Side of Paradise.
7
This Side of Paradise foi traduzido por Alfredo Amorim para as editoras Portugália (1960), Relógio D’ Água (1988)
e ainda para a Círculo de Leitores, com o título “Este Lado do Paraíso”. O romance foi ainda publicado pela editora
editora Europa-América, em 1992, com a tradução de Sophie Vinga (PORBASE - Base Nacional de Dados
Bibliográficos).

7
contemporâneos, entre eles autores como Ring Lardner e Ernest Hemingway (cf.
Mizener, s.d.). Nesta altura, começa a sua carreira como escritor de contos para as
revistas de grande circulação e as suas histórias comerciais sobre juventude e amor
introduzem uma nova personagem: o jovem Americano determinado e independente.
Este tipo de trabalho acabaria por se tornar vitalício e muito lucrativo (cf. Bruccoli,
2007: 5).
Com o sucesso do seu primeiro romance, o nome de Fitzgerald ganha bastante
reconhecimento e juntamente com o seu novo estatuto de celebridade surge um estilo de
vida extravagante que subtraia atenção à sua reputação como verdadeiro escritor
literário. Rapidamente se casou com Zelda, em Nova Iorque, e foi então que
embarcaram para uma vida esbanjadora. O autor e a sua mulher passaram a ser
conhecidos pelas suas festas estridentes, levando o estilo de vida de ricos e famosos
para Westport, em Connecticut, onde se estabeleceram. Zelda era cativante e sedutora,
incorporando todas as caraterísticas típicas de uma flapper8, e Fitzgerald tornou-se
ciumento, iniciando-se uma vida a dois bastante problemática. Ambos eram indivíduos
adeptos do livre pensamento e hedonismo, estimando o prazer como o derradeiro
objetivo das suas vidas, durante um período de grande crescimento e expansão da
economia americana, também denominado de boom económico, e que tomou lugar
durante a década de 20. Era uma altura de proibição nos Estados Unidos da América,
encontrando-se em vigor a Lei Seca9 que proibia a venda e aquisição de bebidas
alcoólicas, mas o défice de álcool não se fazia sentir na casa dos Fitzgerald. Foram os
seus contos que, ao longo do resto da sua vida, também o apoiaram financeiramente,
sendo divulgados em publicações tais como The Saturday Evening Post ou Esquire10.
Em 1920, foi publicada a primeira coleção com variados contos da sua autoria, Flappers
and Philosophers, que recebeu críticas divergentes. Foi publicada uma segunda coleção
de contos, dois anos mais tarde, intitulada Tales of the Jazz Age (1922), que incluia
obras-primas como May Day e The Diamond as Big as the Ritz. Quando Zelda
engravidou, os Fitzgerald fixaram-se em St. Paul para o nascimento daquela que seria a

8
Flapper está definida no Oxford Advanced Learner’s Dictionary (2005) como “a young woman in the 1920’s who
wore fashionable clothes, had short hair and was interested in modern music [Jazz] and new ideas”.
9
O período de Lei Seca nos Estados Unidos começou em Janeiro de 1920 e traduziu-se na proibição do fabrico,
venda e transporte de bebidas alcoólicas. Com a sua implementação esperava-se um aumento de vendas de outros
bens de consumo, no entanto, as lacunas presentes na lei deram asas a inúmeros esquemas de contrabando de álcool.
Milhões de americanos tornaram-se criminosos, o que levou ao fracasso do sistema jurídico. A medida só seria
revogada no governo do presidente americano Franklin Roosevelt, em 1933 (Lerner, s.d.).
10
Revista publicada nos Estados Unidos, fundada há cerca de 70 anos e direcionada ao público masculino que aborda
áreas de entretenimento, arte e informação. (Esquire - What is Esquire?, s.d.).

8
sua única herdeira: Frances Scott (Scottie) Fiztgerald nasceu a 26 de outubro de 1921
(cf. Bruccoli, 2007: 5).
The Beautiful and Damned 11, o seu segundo romance, igualmente publicado em
1922, ajuda a consolidar a sua posição como cronista e satirista de uma cultura de
riqueza, extravagância e ambição que emergiu durante os anos 20, conhecida como a
Era do Jazz, termo cunhado por Fitzgerald (cf. Clemente, 2013). Este romance relata a
história de um jovem e da sua bela esposa, Anthony Patch e Gloria Gilbert, cuja
juventude degenera gradualmente enquanto esperam pela herança de uma enorme
fortuna, e quando esta finalmente chega, já existe pouco deles próprios que valha a pena
preservar. Tal como muitos dos seus trabalhos escritos, o romance reflete alguns
elementos autobiográficos do autor e da vida ao lado de Zelda. Segundo Bruccoli este
tipo de elementos criam problemas no que se refere ao próprio ponto de vista do autor:

Although The Beautiful and Damned shows structural advances from the
looseness of his first novel, Fitzgerald’s ambivalence toward his highly
autobiographical characters - fluctuating from approval to contempt - creates problems
with point of view. (Bruccoli, 2007: 6)

Durante o ano de 1923, o alcoolismo do autor agravou-se, algo que se traduzia


na sua relação com Zelda e abria portas a discussões e noites de bebida. Fitzgerald, um
escritor que se identificava com as personagens das suas histórias, temia o mesmo
destino das personagens de The Beautiful and Damned, e foi por isso que em 1924, para
escapar a tão receado fim, se mudou para a Riviera Francesa com a sua família
(Ibidem). Contudo, este não foi o único motivo que incentivou a viagem dos Fitzgerald,
que, segundo Gerald Kennedy, viram nesta transição uma oportunidade de elevação
social e financeira:

[…] the radical difference in living costs, created partly by favorable exchange
rates, enabled many displaced Americans to live abroad like «a sort of royalty» (as
Charlie Wales remarks in «Babylon Revisited»), realizing not just a better way of life
but often an altogether different class status than they would have known in the United
States. (Kennedy, 2002: 119-20)

11
The Beautiful and Damned foi traduzido por Henrique Silva Letra para as editoras Portugália (1965) e Relógio D’
Água (2011), com o título “Belos e Malditos”. O romance contou ainda com a tradução de Isabel Neves, em 1991,
com o título “Belos e Condenados” para a editora Europa-América, e de Jorge Freire, em 2011, para a editora
Presença (PORBASE - Base Nacional de Dados Bibliográficos).

9
Foi em Paris que o autor encontrou variadas fontes de inspiração para os seus
próximos romances, junto de um grupo de expatriados americanos, de maneira que,
pouco tempo após a sua chegada a França, Fitzgerald completa o seu mais brilhante
romance, The Great Gatsby12 (1925). Bruccoli acredita que este romance foi certamente
influenciado pela presumível traição de Zelda com um piloto naval francês. Este será,
provavelmente, um dos seus melhores e mais valorizados trabalhos, no qual descreve a
Era do Jazz, em toda a sua exuberante extensão, como um período propenso para o
materialismo, o amor, o dinheiro e o “sonho americano”, temas que aborda criticamente
no romance: “Much of the novel’s significance is rooted in his exploration of the
American dream” (Bruccoli, 2007: 7). Arthur Mizener defende que Fitzgerald encontra
na personagem principal da história uma reflexão dele próprio:

All of his divided nature is in this novel, the naive Midwesterner afire with the
possibilities of the “American Dream” in its hero, Jay Gatsby, and the compassionate
Princeton gentleman in its narrator, Nick Carraway. The Great Gatsby is the most
profoundly American novel of its time; at its conclusion, Fitzgerald connects Gatsby’s
dream, his “Platonic conception of himself,” with the dream of the discoverers of
America. (Mizener, s.d.)

Apesar do sucesso de The Great Gatsby depois da sua publicação, foi só a partir
dos anos 50, muito tempo após a sua morte, que este trabalho passou a ser reconhecido
como um verdadeiro retrato dos Loucos Anos 20 e como um dos melhores romances
americanos alguma vez escritos. Temas abordados em The Great Gatsby, tais como a
importância da vocação, o perigo da ociosidade, ou o efeito perturbador do dinheiro
continuaram a fazer parte das temáticas e preocupações de Fitzgerald nas suas obras
futuras (cf. West III, 2002: 56).
Ainda na Riviera, os Fitzgerald formam uma amizade próxima com Gerald e
Sarah Murphy, um casal de expatriados que, fruto de uma herança, vivia de forma
luxuosa. Segundo Matthew Bruccoli (2007: 6), os Murphys foram modelos parciais para

12
The Great Gatsby é o romance de Fitzgerald com mais edições em Português. Passarei a listar apenas algumas, uma
vez que se contam mais de 20 edições traduzidas. A primeira tradução data de 1960, pelo tradutor José Rodrigues
Miguéis para a editora Portugália, sob o título “O Grande Gatsby”. Este tradutor está associado a outras traduções,
sendo que a mais recente data de 2014, para a editora Clube do Autor. Outras traduções ficaram a cargo de Fernanda
César, a primeira em 1991 e a mais recente em 2011, todas elas para a editora Europa-América. Fernanda César foi
ainda responsável pela tradução do romance para a Abril/Controljornal, em 2000. Mafalda Silva foi também
responsável pela tradução em duas edições da Book.it (2010 e 2013). O romance contou ainda com a tradução de Ana
Luísa Faria para a editora Relógio D’Água, em 2011 (PORBASE - Base Nacional de Dados Bibliográficos).

10
as personagens de Dick e Nicole Diver em Tender Is the Night13, romance que
Fitzgerald já teria começado a desenvolver nesta altura. Em fevereiro de 1926 é
publicada a terceira coleção de contos do autor, intitulada All the Sad Young Men, sendo
que nos oito anos que se seguiram não seria publicada qualquer outra obra literária. Esta
coleção recebeu críticas muito favoráveis e incluía contos como The Rich Boy e Winter
Dreams (cf. Bruccoli, 2007: 7). Fitzgerald bebia de forma assídua, tornando-se por
vezes abusivo e Zelda comportava-se frequentemente de forma tempestuosa,
embaraçando-se publicamente. Em dezembro de 1926 os Fitzgerald voltaram para os
Estados Unidos para escapar às distrações que França proporcionava. Nesta altura,
Zelda revisita uma das suas antigas paixões, o ballet, praticando incessantemente e
chegando ao limite de colapso das suas capacidades físicas e emocionais, o que acabou
por distanciar o casal (cf. Mizener, s.d.). Entretanto, Fitzgerald escrevia histórias que
exploravam os problemas maritais e a influência da Europa nos Americanos, tal como
defende Matthew Bruccoli: “Squandering one’s emotional capital on trivial
relationships leaves one unable to respond to the things that are worthy of deep
emotion” (Bruccoli, 2007: 8). Nos trabalhos de Fitzgerald, entre eles Babylon Resivited,
é possível identificar algumas caraterísticas do autor, da sua esposa e da sua relação
disfuncional nas personagens, e as suas histórias são carregadas de detalhes que nos
remetem para o contexto histórico, económico e social em que viveram.
Depois de The Great Gatsby, a vida de luxos de Fitzgerald ficou marcada pelo
alcoolismo, por longas crises de bloqueio criativo e pela esquizofrenia da sua esposa,
que em 1930 sofreu um colapso nervoso e acabou por ser hospitalizada, passando os
anos seguintes a receber tratamento em diferentes clínicas em Paris e na Suíça. Durante
este período, Fitzgerald comutava entre as duas cidades para acompanhar a sua esposa,
e Scottie ficava com uma governanta em Paris. O autor foi obrigado a suspender o
romance que tinha em mãos e a escrever novos contos para financiar os tratamentos de
Zelda, uma vez que os Fitzgerald não conseguiam ganhar dinheiro tão rapidamente
como o gastavam: “the author who wrote so eloquently about the effects of money on
character was unable to manage his own finances” (Ibidem). Com a recuperação, ainda
que temporária, de Zelda, os Fitzgerald regressam aos Estados Unidos, alugando uma
casa em Montegomery. Contudo, em 1932, a esposa do autor sofre um segundo colapso,
13
Tender is The Night foi traduzido para Português como “Terna é a Noite”. Foi traduzido por João Cabral do
Nascimento para as editoras Portugália (1962 e 1966), Circulo de Leitores (1978) e Relógio D’Água (1990). Maria
Filomena Duarte traduziu o romance para as editoras Presença (1988 e 1987) e Europa América (1991). A tradução
mais recente de “Terna é a Noite” ficou a cargo de José Miguel Silva, em 2011, para a editora Relógio D’Água
(PORBASE - Base Nacional de Dados Bibliográficos).

11
seguido de um terceiro, dois anos mais tarde, prolongando a sua situação de
internamento.
Fitzgerald conclui o seu quarto romance, Tender Is the Night, em Baltimore.
Matthew Bruccoli defende que foi a doença de Zelda que proporcionou muitos dos
detalhes para uma das personagens desta obra: “His notes show that Zelda’s illness,
which supplied many of the details for Nicole Diver’s illness, was the determining
factor in his final approach to the novel, as well as providing the emotional focus for the
work” (Ibidem: 8-9). Tender Is the Night (1934), o seu quarto e último livro publicado,
é sobre um psiquiatra Americano, Dick Diver, em Paris durante os anos 20, e o seu
casamento conturbado com uma paciente rica cuja lenta recuperação esgota a sua
própria vitalidade. Contrariamente a The Great Gatsby, este romance foi um fracasso
comercial, talvez pela sua estrutura cronológica desordenada, mas veio a ganhar
reputação ao longo do tempo, tornando-se num dos seus trabalhos mais conhecidos e
comoventes. Tal como em histórias anteriores, o autor expõe as suas próprias
experiências e sentimentos através das suas personagens:

The two men share an emotional bankruptcy marked by drinking, a dislike of


people, an increasing bigotry, and difficulty in completing the books they are writing.
The novel explores Fitzgerald’s wasted genius with a mixture of pity and contempt as
he judges himself and Dick. (Ibidem: 9)

O dinheiro que recebeu com a venda de Tender Is the Night não resolveu os seus
problemas financeiros e Fitzgerald viu-se obrigado a continuar com a escrita de contos,
publicando a sua quarta coleção de histórias, a última publicada durante a sua vida
(postumamente outras coleções seriam editadas e publicadas). Taps at Reveille (1935)
recebeu críticas sobretudo positivas e é nesta coleção que o autor vê novamente
impresso o conto Babylon Revisited. Entre 1935-37, Fitzgerald encontrava-se muitas
vezes doente e alcoolizado; possuía imensas dívidas e não conseguia escrever histórias
comerciais. Este período da sua vida ficou conhecido como “The Crack-Up”, tal como o
ensaio que escreveu em 1936 no qual analisa a sua própria falência emocional, ainda
que as críticas tenham sido amplamente negativas (Ibidem).
Durante os anos que se seguiram, a família tentou manter-se unida, mas as
hospitalizações de Zelda levaram Fitzgerald a perder a esperança e desistir de um futuro
feliz ao lado da sua esposa, deixando-a e partindo para Hollywood em 1937, para

12
trabalhar na indústria cinematográfica. O contacto com Zelda manteve-se,
ocasionalmente, através de visitas por parte de Fitzgerald, enquanto a relação do autor
com a filha, Scottie, era mantida através de cartas, uma vez que esta foi para um colégio
interno e passou a viver com uma família substituta.
Deirdre Clemente (2013) afirma que apesar do seu envolvimento com a indústria
cinematográfica, nomeadamente na Metro-Goldwyn-Mayer (MGM), o autor não se
sentia parte da cultura “de sonhos” de Hollywood. A sua pretensão e puritanismo faziam
da sua relação com o mundo do cinema algo tenso e desdenhoso que, não obstante, era
uma relação de dependência: “Isn't Hollywood a dump - in the human sense of the
word. A hideous town... full of the human spirit at a new low of debasement”
(Fitzgerald, 1940; apud Clemente, 2013).
Nos anos que se seguiram, Fitzgerald lutou contra depressão e alcoolismo, mas
fez uma tentativa de renovar a sua carreira literária como argumentista e contista em
Hollywood, alcançando algum sucesso económico e críticas positivas com o seu
esforço. Foi em Hollywood que o autor conheceu e se apaixonou por Sheilah Graham,
uma colunista social bastante conhecida, com a qual viveu serenamente o resto da sua
vida, ainda que em certas ocasiões se tornasse impetuoso devido aos seus estados de
embriaguez. Depois de a MGM o despedir, em 1938, Fitzgerald trabalhou como
argumentista freelance e escreveu contos para a Esquire, acabando, em 1939, por ser
hospitalizado em Nova Iorque devido a problemas de saúde relacionados com as
décadas de consumo de álcool. Nesta altura, afirma Gerald Kennedy, o cenário europeu
não é mais que um plano de fundo superficial: “[…] with the world at war 14, half of
France under German occupation, and Fitzgerald living in Hollywood, the Paris of the
twenties seemed remote and nearly unimaginable” (Kennedy, 2002: 140).
Foi em 1939 que Fitzgerald começou a trabalhar num romance sobre
Hollywood, The Love of the Last Tycoon15, o qual permaneceu incompleto devido à sua
morte a 1 de dezembro de 1940, em Hollywood, com 44 anos. Esta foi a sua última
tentativa de realizar o sonho do estilo de vida americano. Fitzgerald esreveu numa das
suas notas deste romance: “I am the last of the novelists for a long time now” (2001;
apud Bruccoli, 2007: 10). Bruccoli acredita que esta conceção do autor sobre ele
próprio é traduzida na personagem de Monroe Stahr, em The Love of the Last Tycoon:
14
Segunda Guerra Mundial (1939-45).
15
A obra acabou por ser publicada com o título The Last Tycoon. O romance foi traduzido por Luzia Maria Martins,
para a editora Relógio D’Água, em 1990 e 2011, sob o título “O Último Magnate”. O romance contou ainda com a
tradução de Sophie Vinga para a editora Europa-América, em 1992 (PORBASE - Base Nacional de Dados
Bibliográficos).

13
“the last tycoon, a self-made man who represents integrity, honor, courage, and
responsibility and who shares Fitzgerald’s allegiance to traditional American ideals”
(Bruccoli, 2007: 10). Na semelhança de Monroe Stahr, Scott Fitzgerald sente-se sozinho
na procura dos tradicionais valores Americanos, esgotados durante os Loucos Anos 20.
O manuscrito da obra foi editado por Edmund Wilson, amigo de Fitzgerald
desde Princeton e crítico do trabalho do autor, resultando na publicação do romance, em
outubro de 1940, sob o título The Last Tycoon, que recebeu críticas sobretudo positivas.
Fitzgerald faleceu devido a um ataque cardíaco, acreditando-se um fracasso, pois no
percurso da sua vida nenhum dos seus trabalhos recebeu o sucesso comercial e crítico
que esperava:

The obituaries were condescending, and he seemed destined for literary


obscurity. The first phase of the Fitzgerald resurrection - “revival” does not adequately
describe the process - occurred between 1945 and 1950. By 1960 he had achieved a
secure place among America’s enduring writers […]. (Bruccoli, 2007: 10)

Francis Scott Fitzgerald tornou-se num dos autores mais proeminentes na


história da literatura americana, em grande parte como consequência do sucesso
póstumo de The Great Gatsby, um trabalho que, segundo Bruccoli (2007: 10), definiu o
romance clássico americano. Escreveu cerca de 160 contos, ensaios e artigos, entre eles
Babylon Revisited, que visita a relação entre passado, presente e futuro, entre
arrependimento e mágoa e entre o dinheiro, o amor, e a procura de redenção pelos erros
do passado. Escreveu este conto após o colapso nervoso de Zelda, em 1930, e é através
da personagem de Charlie Wales, que Fitzgerald se tenta redimir e fazer contas ao
passado: “Through the character of Charlie Wales, he judges his own past, assesses his
guilt for his part in Zelda’s breakdown, and considers his responsibility for his daughter,
[Scottie], whom he was then raising alone” (Tate, 2007: 21). O conto explora também o
estilo de vida glamoroso dos expatriados Americanos em Paris durante a década de 20,
através da retrospetiva crítica e nostálgica do autor acerca deste período, oferecendo
uma análise marcadamente negativa sobre a vida dos Americanos na Europa (Idibem).
Com o objetivo de abordar mais detalhadamente o conto Babylon Revisited, passarei, de
seguida, a fazer uma reflexão sobre a história e as temáticas nela presentes.

14
1.2 Babylon Revisited

1.2.1. Breve Análise

No presente Trabalho de Projeto proponho-me traduzir o conto Babylon


Revisited de Francis Scott Fitzgerald. Este conto foi escrito em 1930 e publicado em
1931 na revista semanal Saturday Evenning Post. Segundo Gerald Kennedy (2002:
132), a representação mais brilhante da ilusão vivida pelos expatriados americanos em
Paris está em BR, uma história, afirma o autor, de autodestruição europeia. Na altura em
que escreveu a história, o autor vivia num hotel em Lausana, cidade que faz parte da
Suíça francófona, acompanhando a doença de Zelda e visitando a sua filha Scottie, que
se encontrava em Paris ao cuidado de uma ama francesa. Paralelamente, a sua cunhada,
Rosalind, insistia que Scottie vivesse com ela em Bruxelas (cf. Bruccoli, 2007: 8). Estas
eram as circunstâncias em que se encontrava Fitzgerald durante o período em que
escreveu o conto, que indubitavelmente impulsionaram o trabalho e moldaram a
estrutura e contexto de toda a história: “Fitzgerald’s clear, lyrical, colorful, witty style
evoked the emotions associated with time and place. His prose is recognizable by the
warmth of the authorial voice” (Bruccoli, 2007: 6).
A história decorre na cidade de Paris, no famoso período histórico após o grande
crash na Bolsa de Nova Iorque, em 1929, que é acompanhado pelos anos da Grande
Depressão nos Estados Unidos e remonta aos Loucos Anos 20 e à Era do Jazz, com a
qual F. Scott Fitzgerald é frequentemente identificado. Contudo, a ação decorre no
tempo histórico que sucedeu a Era do Jazz e carrega consigo toda a sobriedade e
arrependimento desse período. Em busca da custódia da sua filha, o personagem
principal, Charlie Wales, regressa a Paris, onde tudo mudou radicalmente depois dos
chamados Loucos Anos 20. Antes, uma cidade repleta de americanos ricos e
exuberantes, consequência do boom económico que teve lugar naquele período,
transforma-se, após o crash de 1929, numa cidade marcada não pelos americanos em
constante ambiente de festa e divertimento, mas pela classe média que olha para o
passado com arrependimento e nostalgia, numa cidade bastante mais pobre, monetária e
moralmente. Charlie é um homem mudado, que no passado tirou grande proveito do
boom económico e que “apagou” alguns anos da sua vida em Paris, durante uma década
de extravagância. O seu estilo de vida simbolizava na perfeição o hedonismo dos
americanos abastados, ligados a uma vida de álcool, vícios e loucura. Este paralelismo

15
entre a história de Charlie e a vida de Fitzgerald faz do autor o símbolo de toda uma
época de vícios e de arrependimentos. Apesar do crash da Bolsa de Nova Iorque em
1929 apenas ser mencionado brevemente no decorrer da ação, é este o evento que
acompanha toda a história da personagem principal, que influencia o seu passado, o seu
presente e o qual determina inevitavelmente o seu futuro.
Um dos muitos contos de Fitzgerald ainda por traduzir, Babylon Revisited, é
ainda hoje uma obra extraordinária na forma como representa criticamente o vício e a
falta de valores morais da sociedade esbanjadora e extravagante dos anos 20. Além
disso, apela ao arrependimento, à mudança de estilo de vida e de valores, à rejeição dos
falsos amigos e ao respeito e consideração pela família, temáticas presentes na
contemporaneidade e elegantemente retratadas num contexto histórico-social muito
distante, mas ao mesmo tempo muito próximo do nosso, do ponto de vista das
repercussões que o colapso económico pode ter nas emoções individuais e nas relações
interpessoais. Para uma melhor análise do conto, irei proceder à apresentação de um
breve sumário da ação narrativa para então abordar algumas das problemáticas da
diegese.
Charles Wales (Charlie) é a personagem principal em Babylon Revisited.
Regressa a Paris para tentar apagar o passado e criar um novo futuro, responsável e
consciente, ao lado da sua filha, Honoria. Marion Peters é a sua cunhada e irmã de
Helen, a sua falecida esposa. É ela que, no tempo diegético, detém a guarda de Honoria,
juntamente com Lincoln Peters, o seu marido, e a intenção de Charlie é recuperar a sua
paternidade e a guarda da sua filha, mas para o fazer deve provar a Marion que é um
homem diferente e que deixou os vícios e as loucuras no passado. Marion culpa Charlie
pela morte da sua irmã e ele tem plena consciência disso. Não obstante, quer provar-lhe
que será capaz de tomar conta da sua filha e de a sustentar. No passado, permanecem os
anos em que o dinheiro circulava em abundância, e em que única vida que Charlie
conhecia não tinha objetivos, apenas sucessivos momentos de embriaguez, que levaram
à separação da sua família e à partida de Charlie para Praga, regressando três anos
depois. Ao reencontrar-se com a cidade, Charlie sente uma grande diferença, talvez por
estar mais vazia, ou por ele próprio ter uma recordação diferente daquilo que era Paris:
“In the opening scene, Fitzgerald evokes the «stillness» and «emptiness» of Paris,
which he juxtaposes to the vibrant atmosphere of the Ritz Bar 16 he once frequented”

16
O bar fazia parte do Hotel Ritz, em Paris, que abriu as suas portas em 1898, e cuja criação é atribuída a César Ritz,
um génio dos negócios Suíço (Gore-Langton, s.d.).

16
(Xu, 2009: 4). Agora vê realmente todo o tempo que perdeu, incapaz de o perceber: “I
spoiled this city for myself. I didn't realize it, but the days came along one after another,
and then two years were gone, and everything was gone, and I was gone (Fitzgerald,
2011: 4).” No passado, Charlie e muitos outros americanos expatriados eram adeptos de
uma vida hedonista, transgredindo as margens da sociedade e utilizando o seu poder
monetário para resolver qualquer problema (cf. Ribeiro, 1986: 163).
Na casa dos Peters, é possível sentir a hostilidade entre a personagem de Charlie
e Marion, que reflete uma atitude negativa para com o que a rodeia, e até alguma
preocupação, pois de alguma forma prevê o motivo por que Charlie os visita: Marion
Peters […] is based on Rosalind, who regarded Fitzgerald as unfit to raise his daughter”
(Tate, 2007: 374). Marion, agarrando-se ao passado de Charlie, duvida que este possa
realmente ter mudado e faz uso de qualquer oportunidade para o relembrar de como em
tempos conduzia a sua vida, pois não acredita que Charlie consiga permanecer sóbrio,
mostrando-se agressiva e cética. Segundo Ribeiro (1986: 163) “[o] comportamento de
Marion radica (também) num sentimento de hostilidade alargada a todos os americanos
que tinham invadido Paris durante a década de 20”, exibindo o seu poder económico e
transformando a cidade, algo que não aconteceu com Marion e Lincoln. Após o crash
da Bolsa de Nova Iorque, a “invasão” americana atenuou-se e os anos entusiásticos, os
Loucos Anos 20, desapareceram, e apesar de Marion se considerar virtuosa durante toda
a comoção daquela altura, sentia também um certo despeito ao observar a prosperidade
daqueles que não tinham de se esforçar pelo seu dinheiro.
O desenlace da história não é o mais desejado, pois o passado de Charlie acaba
por regressar, sob a forma de dois amigos de antigamente, Duncan Shaeffer e Lorraine
Quarrles, cuja intromissão na casa dos Peters afasta qualquer possibilidade da
personagem principal retomar a guarda de Honoria. Marion presume que Charlie ainda
mantém laços com o passado e não permite que ele leve Honoria consigo. Eduardo
Ribeiro acredita que o sentimento que prevalece sobre Charlie no final é “a solidão, uma
solidão profunda e que Charles considera não apenas injusta, mas tão pouco
correspondendo àquilo que [a] sua mulher certamente desejaria, apesar dos erros
cometidos” (Ribeiro, 1986: 164). Fitzgerald escreveu numa das suas imensas cartas:
“[…] I not only announced the birth of my young illusions in This Side of Paradise, but

17
pretty much the death of them in some of my last Post17 stories like Babylon
Revisited” (Turnbull, 1966; apud Ribeiro, 1968: 160-61).
Numa exploração inicial a BR, resolvi abordar o simbolismo do título da obra,
que carrega um significado histórico e, atrevo-me a apontar, religioso, que sugere ao
leitor qual o tom que prevalecerá durante toda a história. O título proporciona ao leitor
uma visão antecipada do que narra a diegese: a revisitação da Babilónia e o regresso a
um tempo passado e retorno a um lugar que em tempos foi notório e imponente.
Babylon (Babilónia) é a cidade mais famosa da antiga Mesopotâmia. Em tempos, uma
das maiores cidades do mundo, floresceu como o centro das artes e da educação,
tornando-se numa cidade inteiramente respeitada e de renome. Deve a sua fama e
infâmia às inúmeras referências na Bíblia, sobretudo no Livro das Revelações, ou
secção referente ao Apocalipse, na sua maioria muito desfavoráveis (Mark, 2011).
Consultando a Bíblia, é possível verificar que Babylon se refere a uma entidade forte e
poderosa, todavia corrupta e imoral. Peter F. Gregory corrobora esta afirmação: “The
name «Babylon» certainly brings to mind ideas of worldwide rule, the destruction of the
temple, the exile, and vast economic control […]” (Gregory, 2009: 137). Segundo a
Bíblia Sagrada, a Babilónia, tal como a cidade de Paris durante a década de 20, era
dominada por falsas profecias e pela luxúria e ganância do seu reino:

[3] Trouxeram os cálices de ouro tirados do templo de Jerusalém; então o rei


[Baltasar], os altos funcionários, as mulheres e concubinas começaram a beber nesses
cálices. [4] Bebiam vinho e louvavam os seus deuses de ouro, prata, bronze, ferro,
madeira e pedra. (Daniel 5: 3-4, edição Pastoral)

A profecia bíblica demonstra, igualmente, a obscenidade de tal lugar,


anunciando a queda da cidade perante a ira de Deus:

“ [2] Ele gritou com voz forte: “Caiu! Caiu Babilónia, a Grande! Tornou-se
morada de demónios, abrigo de todos os espíritos maus, abrigo de aves impuras e
nojentas. [3] Porque ela embriagou as nações com o vinho do furor da sua prostituição.
Com ela se prostituíram os reis da Terra. Os mercadores da Terra ficaram ricos graças
ao seu luxo desenfreado” (Apocalipse 18: 2-3).

17
Saturday Evenning Post.

18
A cidade de Babilónia pode, deste modo, ser identificada com a cidade de Paris
em 1929, lugar onde reinavam os Loucos Anos 20 e onde a moralidade e os valores
tradicionais não tinham lugar, cidade dos ricos e poderosos. Peter Gregory descreve a
cidade de Babilónia e os seus habitantes segundo o Livro das Revelações, considerando-
os os deuses supremos daquele lugar: “Revelation recalls the idolatry and pride of that
ancient city, a city whose rulers saw themselves and their gods as supreme” (Gregory,
2009: 138). O mesmo acontece no conto de Fitzgerald, que coloca nos excêntricos
expatriados americanos que residem em Paris o poder de serem crianças num mundo
ocioso de extravagâncias: “Babylon conveys the notion of royalty, wealth, and
especially the decadence of Charlie’s life in Paris three years earlier” (Logsdon, 2011:
13). É possível, então, interpretar Babylon Revisited como uma história sobre o regresso
à Babilónia, um espaço no tempo que representa tudo aquilo que a personagem principal
quer deixar para trás, mas que simultaneamente o atrai e lhe deixa a saudade e o desejo
de lá voltar.
Ao nome do personagem principal, Charlie Wales, também é possível fazer
algumas associações, nomeadamente no que diz respeito à sua personalidade desregrada
e perdulária. Começo por citar Roy Male que acredita na possibilidade do nome Wales
estar ligado ao Príncipe de Gales18 (Prince of Wales), membro da realeza que é também
associado à vida ociosa e turbulenta dos Loucos Anos 20: “[Charlie Wales] presumably
takes his last name from the prince who was the epitome of the good-time Charlies in
the twenties […]” (Male, 1965: 4). O príncipe era conhecido pelas suas viagens pelos
Estados Unidos e pela Europa e muito adorado pelo público: “His boyish shyness, blue
eyes, and lovely complexion, his courtesy and thoughtfulness captivated everyone”
(Bousfield & Toffoli, 2010: 94). Acabou por se ver entregue à cultura supérflua e
indolente americana, o que nos permite estabelecer uma ligação entre o personagem
principal do conto e o Príncipe de Gales: “Caught up in the pulsing vitality of the
roaring twenties, the pleasure-loving prince lingered on Long Island” (Ibidem: 100). A
escolha do nome próprio do personagem (Charlie) poderá estar relacionado com a
expressão “good-time Charlie”, utilizada para descrever uma pessoa despreocupada e
festiva que procura frequentemente diversão e entretenimento19.

18
Eduardo VIII do Reino Unido, Príncipe de Gales (1894-1972), filho mais velho do Rei Jorge V, ascendeu ao trono
em 1936 mas não chegou a ser coroado, uma vez que abdicou do trono para se casar com Wallis Simpson, uma
mulher americana divorciada que fazia parte de um vasto número de amantes do príncipe (Rosenberg, s.d.).
19
Segundo o dicionário Merriam-Webster.com.

19
Em BR, F. Scott Fitzgerald aborda uma das temáticas mais marcantes na sua
própria vida, a passagem do tempo: “[…] the entire story tells us something important
about the passing of time and the futile attempt to recapture what is lost” (Logsdon,
2011: 14). Seymour L. Gross defende que a vida do autor era polarizada pela
contradição entre a passagem inevitável do tempo e o seu permanente desejo de ficar
parado no mesmo instante, e de aí permanecer: “What Fitzgerald wanted, finally, was to
fill each moment of life so full of living that time would stand still for him (Gross,
1963: 128).” Gross, introduz a obra da seguinte forma:

In the world of Babylon Revisited winter dreams do not drift sweetly into sad
memories, but erupt into nightmares of irrevocable loss, leaving only the waste and
horror of the twisted shapes that lie on the decimated plains of the Babylonian
Captivity20. (Gross, 1963: 129)

Babylon Revisited é uma história sobre a inevitável passagem do tempo, e mais


ainda, sobre a impossibilidade de lhe escaparmos, nomeadamente no que diz respeito ao
passado. Deste modo, explico a afirmação supra transcrita de Gross, fazendo a
comparação entre os judeus, impedidos de abandonar Babilónia, e a personagem
principal do conto, Charlie Wales, que independentemente dos seus esforços e da sua
vontade de mudar e recuperar a sua família, se vê forçado, de certa forma, a permanecer
no passado (a sua Babilónia) e lidar com as consequências dos erros que cometeu,
impossibilitado de avançar para um futuro sem conseguir descartar o peso de ações
passadas.
Por este motivo, não é coincidência que a ação de BR se desencadeie e se
conclua no mesmo local, o bar do Ritz, em Paris. Georges Scheuer, citado num artigo da
revista Vanity Fair (julho de 2012), descreve o bar como uma segunda casa para figuras
públicas como Fitzgerald: “For many men during the 20s and early 30s, the Ritz was
home. F. Scott Fitzgerald was one of them. He and his wife, Zelda, lived by their whims
[…].” Em Babylon Revisited, o autor usa como referência o mesmo bar que tantas vezes
visitou durante as suas estadias em Paris, demonstrando a semelhança entre ele e as suas
personagens, identificando-se nas suas histórias e, neste caso em particular, até com os
lugares que frequentam. Segundo Gerald Kennedy, durante o regresso de Charlie a

20
Babylonian Captivity ou Babylonian Exile, é o nome que designa o período de detenção forçada de Judeus na
Babilónia depois da sua conquista do reino de Judá em 598/7 e 587/6 aC. (Encyclopædia Britannica - Babylonian
Exile, 2014a).

20
Paris, este vê de forma mais clara a função pérfida dos locais de animação noturna, cujo
objetivo é “consumir o consumidor expatriado”: “Buoyed by economic good fortune,
Charlie and other expatriates of the twenties failed to recognize the consequences of
their wastefulness (Kennedy, 2002: 133).
No entanto, a história de Charlie começa num futuro diferente e na cena inicial é
possível verificar a separação que o personagem sente da sua vida de há três anos atrás.
No conto, Fitzgerald escreve: “He was not really disappointed to find Paris was so
empty. But the stillness in the Ritz bar was strange and portentous” (Fitzgerald, 2011: 1-
2). Charlie sente que o bar do Ritz já não é “seu”, tal como a própria cidade de Paris, e
que a vida glamorosa e de excessos ficou para trás, juntamente com a sua esposa e a sua
filha, Honoria, sendo esta a grande motivação para o regresso de Charlie a França, numa
tentativa de recuperar a sua custódia. Kennedy acredita que a perda de domínio de
Charlie sobre a cidade é evidenciada pelo ínfimo conhecimento que possui acerca de
Paris uma vez que, segundo este autor, apesar de conhecer os melhores pontos de
encontro da comunidade de expatriados dos anos 20, desconhece os lugares mais
relevantes para os franceses:

By inhabiting the unreal space of expatriate self-indulgence, he has in effect


missed the city and French culture altogether, losing in the process not simply the rich
experience of cultural and linguistic otherness but (more to the point) his wife, his
marriage and his daughter […]. (Kennedy, 2002: 133)

Segundo Male, o significado de BR é bastante claro, deixando pouco espaço para


dúvidas: “[...] the symbolism is not «mysterious», the ambiguity is «not hidden», and
the irony is «discernible»” (Male, 1965: 1). De acordo com Roy Male a história é sobre
o regresso a casa do herói ou personagem principal, e este autor chega até a construir
um paralelo entre Babylon Revisited e uma descrição Bíblica sobre o regresso do filho
pródigo:

[…] o filho mais novo juntou o que era seu e partiu para um lugar distante. E aí
esbanjou tudo numa vida desenfreada. […] [14] Quando tinha gasto tudo o que possuía,
houve uma grande fome nessa região e ele começou a passar necessidade. […] [20]
Então levantou-se e foi ter com o pai. […] [21] Então o filho disse: “Pai, pequei contra
Deus e contra ti; já não mereço que me chamem teu filho”. (Lucas 15: 3-21)

21
Tal como o filho na citação supra referida, também Charlie regressa a Paris com
uma mentalidade e um conjunto de valores diferentes, assim como um profundo
arrependimento pelos erros do passado. No entanto, a personagem de Charlie não parece
completamente mudada e durante a história deparamo-nos com várias situações em que
a vontade que ele sente de voltar ao passado é bastante percetível. Consequentemente
um dos maiores temas da história relaciona-se com a mutabilidade, que neste contexto
se refere à tomada de consciência do herói acerca da passagem do tempo e da
impermanência das coisas (cf. Male, 1965: 2). Thomas Staley defende que uma das
maiores inquietudes de Fitzgerald se relacionava com a passagem do tempo: “F. Scott
Fitzgerald was particularly preoccupied with the forces of time. His personal life,
together with his reading, gave him a profound sense of the importance of time with
regard to self” (Staley, 1964-5; apud Logsdon, 2011: 8). Tal é facilmente comprovado
com uma breve leitura de BR, um texto repleto de referências temporais específicas que
determinam o movimento e a velocidade a que a história se desenvolve e ditam a
paradigmática da preocupação com a fugacidade da vida: “Throughout «Babylon
Revisited,» Fitzgerald uses words of time to convey his theme that people are unable to
escape the past, in the story of a man trying to overcome his past mistakes, only to be
constantly confronted with them” (Turner, 1990: 283). De acordo com Joan Turner, a
impossibilidade de escapar à passagem do tempo está convenientemente marcada em
várias passagens do texto nas quais o tempo é detalhadamente referido, e em alguns
casos, até à hora exata (Ibidem: 282). Esta autora defende que Fitzgerald constrói este
tipo de referências temporais com o objetivo de fazer transparecer ao leitor a acelerada
passagem do tempo enquanto Charlie tenta recuperar Honoria e o tempo perdido. Ainda
assim, Charlie tem esperança de um futuro mais feliz: “The future is all that Charlie has.
He has lost his past, and his present is slipping away” (Ibidem).
Durante toda a história, Charlie é relembrado do seu passado, seja pelo bar do
Ritz, que costumava frequentar e onde se desenrola a primeira cena, seja pelas ruas de
Paris ou pelas luzes noturnas da cidade. Para Charlie, é impossível evitar a sensação de
nostalgia que a cidade lhe traz, e a visita dos “ghosts out of the past”, Lorraine e
Duncan, demonstra este mesmo aspeto: o personagem não consegue escapar ao passado,
à memória da morte da sua mulher e à perda da sua filha, consequências dos erros por
ele cometidos e que não pode esquecer. Marion, a sua cunhada, é também uma
instigadora do passado, impedindo que Charlie se esqueça do mal que causou à sua
família. Não obstante, o pai de Honoria espera conseguir convencê-la a levar a sua filha,

22
criando a possibilidade de um futuro com ela. No entanto, o passado volta para ajustar
contas com ele, na forma de Lorraine e Duncan, mas Charlie promete voltar um dia e
tentar novamente: “He would come back some day; they couldn't make him pay
forever” (Fitzgerald, 2011: 35). Segundo Mary J. Tate, até neste excerto fica
demonstrada uma certa infantilidade por parte de Charlie, que apesar de se recusar a
deixar o passado extravagante para trás, culpabiliza as restantes personagens pelo seu
próprio desfecho (Tate, 2007: 22). Contudo, a personagem compreende, tal como o
leitor, que eles podem certamente fazê-lo pagar para sempre: “The prodigal has
returned, but his effort to «conciliate something,» to redress the balance, has failed, and
he remains an exile” (Male, 1965: 6). Babylon Revisited mantém o final em aberto,
cabendo ao leitor imaginar se Charlie eventualmente consegue recuperar a sua honra e a
sua filha.
Durante a história Charlie procura algum tipo de ligação feminina, quer com
Helen, quer com Honoria. Ainda assim, afirma Loren Logsdon, as mulheres de BR são
representadas como vítimas num mundo completamente dominado por homens: “[…]
marriage and motherhood seem the only outlet for the females in this story. There is
also the reference to prostitution, a further example of the exploitation and degradation
of women” (Logsdon, 2011: 15). A autora faz alusão a uma altura na história em que
Charlie, sem segundas intenções, paga o almoço a uma prostituta, tal como mais tarde
pagará o almoço a Honoria, revelando uma ligação entre as duas, melhor explorada por
Seymour Gross: “[…] although Charlie has wilfully removed himself from the sterility
of his past, as represented by the prostitute, he is nevertheless actually closer to her than
he is to the distanced Honoria or receding Helen” (Gross, 1963: 133). Rena Sanderson
afirma que Honoria carrega um simbolismo especial: Fitzgerald sought to redeem the
image of the young girl by making the girl younger, purer, a symbol of regained honor
(Sanderson, 2002: 158). O que Charlie Wales procura na sua filha é a sua própria
redenção, uma vez que esta é um símbolo de pureza e honra, algo que ele tenta
desesperadamente recuperar. Segundo Ronald Gervais (1980; apud Logsdon, 2011: 7-
8), o conto, assim como a balada, é um género de despedida às mulheres perdidas, as
quais representam os valores perdidos do amor, da juventude e da beleza, coisas
impalpáveis que já não existem na realidade, apenas no sonho e na imaginação.
Curiosamente, Roy Male (1965: 2) defende que a primordial motivação para o
regresso do herói será sempre um reencontro com alguma forma de conexão feminina, o
que corresponde com a história de Babylon Revisited, não apenas porque Charlie

23
regressa pela sua filha mas também pelo contacto imaginário que este ainda mantém
com Helen. Este contacto poder ser verificado através do sonho de Charlie, no qual
Helen usa um vestido branco e o perdoa pelos erros do passado enquanto embala num
baloiço. Logsdon (2011: 13-14) afirma que este é o caminho mais fácil para Charlie
encontrar perdão, adiantando que este sonho tem um simbolismo complexo uma vez
que é paralelo a uma das cenas finais, na qual Lorraine e Duncan irrompem na casa dos
Peters sem aviso prévio. Durante toda a comoção da cena, Lincoln segura Honoria no
seu colo, embalando-a como um baloiço, tal como Helen fazia no sonho de Charlie, em
que balançava cada vez mais depressa até que ele deixou de a ouvir. Tal como Helen,
também Honoria começa a desaparecer nesta cena, sugerindo que ambas estão fora do
alcance de Charlie: “Together these scenes represent the pendulum of time, suggesting
that both Helen and Honoria are out of Charlie’s reach” (Logsdon, 2011: 14). Seymour
Gross corrobora com esta afirmação, sugerindo que o balançar do pêndulo e a passagem
do tempo apenas servirão para o afastar cada vez mais a sua família: “The implications
of this tableau are totally devastating. The past has set the pendulum of the future in
motion; time will serve only to take Honoria further away from him [Charlie]” (Gross,
1963: 135).
Loren Logsdon (2011: 21) acredita que o pai de Honoria pode, de facto, não
estar apto para tomar conta da sua filha. Uma das razões com a qual justifica esta teoria
refere-se à nostalgia que Charlie ainda sente em relação aos dias de antigamente; por
outro lado, acredita que o sonho de Charlie, no qual Helen o perdoa, tornou tudo mais
fácil para ele, uma vez que o ilibou de qualquer responsabilidade no que diz respeito à
sua morte. Penso que devo destacar que apesar de a personagem não ter provocado
diretamente a morte da sua mulher, Marion acredita-o responsável por todo o
sofrimento e infelicidade que lhe causou, assim como pela destruição da família. Existe
na atitude de Charlie um certo egotismo e escapismo com respeito à sua partida de
Paris, o que de certa forma comprova que não possui maturidade suficiente para lidar
com os seus problemas familiares. Reforçando o argumento supra referido de Logsdon,
Richard Allan Davison afirma: “Charlie nowhere acknowledges that he was partly to
blame for Helen's death. This reluctance to accept proper responsibility for his faults
and make full atonement for them is apparent in most of what he says and does”
(Davison, 2000: 194). O erro fatal de Charlie foi visitar o bar do Ritz quando regressou
a Paris, tal como defende Mary Jo Tate:

24
[…] Charlie himself is ultimately responsible for undermining his own
purpose. Although he tells Marion that he has “changed radically,” he is unable to shake
his allegiance to the past, to the people and places that remind him of the good and bad
times of his wild years. Significantly, the story begins and ends in the Ritz Bar - a
symbol of expatriate extravagance. (Tate, 2007: 21)

As visitas de Charlie ao bar do Ritz são, segundo este autor, a pior escolha
possível para um homem que para alcançar o seu objetivo precisa de tornar evidente a
sua mudança. Mary Tate defende que ao deixar a sua informação no bar, Charlie torna
evidente que se sente relutante relativamente a romper completamente com o passado,
apesar de esta ação vir a desencadear consequências desastrosas (Tate, 2007: 21-2).
Como resultado, acaba por ser assombrado pela intromissão inesperada de Duncan e
Lorraine, que através do bar do Ritz conseguem a morada dos Peters.
Male (1965: 2) entende a experiência de Charlie durante a história como uma
mistura curiosa de dor e prazer, uma vez que o personagem vê a sua personalidade
dissolver-se em duas partes distintas, o passado e o presente, o privado e o público. Nas
palavras de Thomas Staley: “Time and its ravages have left Charlie suspended in time
with a nightmare for a past, an empty whiskey bottle for a present, and a future full of
loneliness” (Staley, 1964-5; apud Logsdon, 2011:8). Segundo Loren Logsdon, existe
uma bifurcação no padrão da história. Por um lado, a cidade de Paris de há três anos
atrás e por outro a de agora, tal como acontece com a personagem de Charlie; existe o
Charlie Wales do passado e o Charlie Wales do presente, bastante mudado e com um
conjunto de valores diferente. Mais ainda, passado, presente e futuro, representados
respetivamente por Lorraine e Duncan, Charlie e Honoria, são colocados no mesmo
local em duas cenas diferentes, simbolizando, na minha opinião, as diferenças e o
conflito existente não só entre as personagens, mas também entre as distintas
personalidades de Charlie, quase numa luta pelo poder sobre ele.
Segundo Gross, a personagem principal tenta desesperadamente enviar o seu
próprio passado para trás, procurando até ao último instante fazer desaparecer os
“fantasmas” que o assombram: […] it is Charlie's own past that he is trying to force
backward into time […]” (Gross, 1963: 134). Ainda assim, Male coloca a questão sobre
a verdadeira identidade de Charlie: “The basic conflict of the story […] is between
Charlie Wales […] and «Mr. Charles J. Wales of Prague,» sound businessman and
moralist, between the regally imaginative but destructive past and the dull, bourgeois

25
but solid present” (Male, 1965: 3). A mudança de Charlie é questionável; será que
realmente se transformou num indivíduo mais maduro ou será a mesma criança dos
velhos tempos? Segundo Gerald Kennedy, a gravitação que a personagem sente pelo bar
do Ritz é um indício que Charlie não recuperou plenamente:

While he was commanding, ordering, consuming […] to sustain a sense of


magical dominance over a city that existed (it seemed) only to entertain him and gratify
his needs - Charlie in fact corrupted himself, and his recurrent attraction to the Ritz bar
places in question the completeness of his rehabilitation. (Kennedy, 2002: 133)

Charlie sente-se suspenso entre dois mundos diferentes e Seymour Gross


acredita que não é permitido à personagem a pertença a qualquer um deles: “[…]
Charlie is fundamentally isolated from the radical quality of the life going on around
him: in the bar because of his maturity, in the home because of his position as a
suppliant” (Gross, 1963: 30). Contudo, não se trata apenas da posição de Charlie em
ambas as situações mas também de um conflito interno, entre dois homens diferentes:
“Charlie’s ambivalent urges and his persistent need for self-justification tend to
undermine his good intentions” (Davison, 2000: 194). De certa forma sente saudades de
Paris, a Babilónia de há três anos atrás, que lhe relembra tudo o que viveu naqueles anos
de abundância em que a vida era bem mais simples. Esta divisão de Charlie entre duas
versões tão contrastantes de si mesmo está implícita numa das situações de BR:

Charlie directed his taxi to the Avenue de l'Opera, which was out of his way.
But he wanted to see the blue hour spread over the magnificent façade, and imagine that
the cab horns, playing endlessly the first few bars of La Plus que Lente, were the
trumpets of the Second Empire. (Fitzgerald, 2011: 4)

Charlie ainda imagina Paris com as luzes de há três anos atrás, e o desvio que faz
do seu caminho fundamenta a nostalgia do personagem em relação à cidade onde viveu
tão vigorosamente no passado. O pai de Honoria compara Paris ao Segundo Império
Francês21 (Second Empire), algo que penso ser de valor salientar, uma vez que tal como
nos Loucos anos 20 de Charlie, também no império de Napoleão as mudanças
industriais, sociais e económicas valorizavam o país. França atraía visitantes de diversas

21
O Segundo Império em França define o período entre 1852 e 1870, durante o qual a França foi governada pelo
Imperador Napoleão III. Terminou com a derrota dos franceses na Guerra Franco-Germânica e a rendição de
Napoleão III em Sedan, França, em 1970 (Rounding, 2006a: 171).

26
partes, o que a tornava num local propício a uma vida superficial e extravagante:
“Prostitutes […] flourished during the Second Empire, with the ostentatious court of
Napoleon III and the high-spending men who circulated around it providing an ideal
backdrop for the lavish lifestyles and expensive habits” (Rounding, 2006a: 171). Outro
ponto de contacto entre França e o Segundo Império Francês refere-se ao eventual
colapso da sua economia e da sociedade. Para Charlie esse colapso apresentou-se na
forma do crash de 1929, para Napoleão passou pela derrota frente ao Reino da Prússia
que, segundo Virginia Rounding, provocou uma mudança completa das normas sociais:
“Les grandes horizontals22 began to die out after the collapse of the second empire, such
an ostentatiously expensive lifestyle no longer fitting in with prevailing social mores”
(Rounding, 2006b: 190). Em ambos os casos o estilo de vida excêntrico dos mais
abastados chega ao fim e com ele desaparecem os mais ociosos e esbanjadores. Para
Charlie essa vida ficou para trás mas a nostalgia dos “bons velhos tempos” continua a
persegui-lo: “Charlie knows that he needs his daughter back in order to give shape and
direction to his renascence […] he is aware of the danger in the very intensity of his
need” (Gross, 1963: 131). Tal como Charlie Wales no conto BR, também Fitzgerald
aprendeu o significado da palavra “dissipar” durante os anos de boom económico. E tal
como ele, também o autor nunca esqueceu inteiramente como esse período parecia tão
“rosy and romantic” quando era jovem e ainda conseguia sentir tudo com grande
intensidade (Fitzgerald, 1936; apud Donaldson, 2002: 175).
De facto, a vida antes do crash era muito mais opulenta e jocosa e não exigia as
responsabilidades rígidas de um pai ou marido. No entanto, o desejo de ficar com
Honoria leva Charlie a olhar para aquele passado como penoso e prescindível. Além
disso, a personagem acredita que está no caminho certo para se tornar uma pessoa
verdadeiramente diferente, reconhecendo-se no presente como um indivíduo diferente
do passado:

Charlie believes that in the present world character is what matters - integrity,
morality, and responsibility are essential to avoid the wild living which caused him to
lose his wife and his daughter. […] he now has a sense of purpose which does not reside
in glamour, money, or wild, mindless amusement. His sense of purpose is centered on
his daughter Honoria. (Logsdon, 2011:11)

22
Cortesãos (Rounding, 2006b: 190).

27
Seymour Gross acredita que a tentativa de Charlie abrandar o tempo e tentar
aproveitar todos os momentos ao máximo foi completamente infrutífera, afirmando:
“Not only is money being spent […] but the human quality is being spent, used up, too.
[…] Life, not time, has stopped” (Gross, 1963: 131). Com esta afirmação, Gross supõe
que o gasto desenfreado de dinheiro e o consumo deliberado de drogas e bebidas
alcoólicas é acompanhado pela consumição do espírito e da qualidade humana, a tal
ponto que os momentos que Charlie tanto deseja tornar eternos e vitalícios, se perdem
numa cultura de ócio, júbilo e despreocupação com o caráter. Roy Male corrobora com
esta opinião, salientando a utilização da expressão “dissipar” em relação à personalidade
e caráter de Charlie, que ao regressar a Paris percebe que todo o tempo que passou a
tentar aproveitar verdadeiramente todos os momentos, foi tempo fundamentalmente
perdido: “As Charlie now sees it, the old time spent did bring about transformations, but
they were all morally destructive. To «dissipate» was to perform a magic disappearing
act, «to make nothing out of something»” (Male, 1965: 4). A conclusão que retiro desta
última citação relaciona-se com a forma com que se interage com o dinheiro no que diz
respeito à “dissipação” dos valores e da moralidade humana. Em última instância, toda a
fortuna de Charlie, não lhe comprou felicidade, pelo contrário, o dinheiro fez
desaparecer os valores realmente importantes, como o amor e a família.
Fica comprovado, na história de Babylon Revisited que o dinheiro flui sem
limites nem obstáculos para a família Wales, numa altura em que quem era abrangido
pela bonanza e prosperidade, podia facilmente resolver qualquer situação com dinheiro,
bastava um simples pagamento. É com isto em mente que me permito abordar o papel
simbólico que a neve representa na história. Ronald Gervais acredita que Fitzgerald
utiliza a neve como uma referência às mulheres do passado: “Fitzgerald aligns himself
with a long tradition that expresses his own themes of loss and regret, and the worth of
old values. The snow of twenty-nine and the snows of yesteryear evoke and then
obliterate the lost ladies of the past” (Gervais, 1980; apud Logsdon, 2011: 8). Para este
autor, a neve é utilizada em BR para demonstrar a perda de valores e o arrependimento
dos erros cometidos no passado, algo que é facilmente constatado através de uma das
passagens na obra de Fitzgerald, que reflete o notável papel da neve:

Again the memory of those days swept over him like a nightmare […] The
little man Helen had consented to dance with at the ship's party, who had insulted her
ten feet from the table; the women and girls carried screaming with drink or drugs out

28
of public places - The men who locked their wives out in the snow, because the snow of
twenty-nine wasn't real snow. If you didn't want it to be snow, you just paid some
money. (Fitzgerald, 2011: 34)

Neste excerto é possível verificar como a neve está intimamente ligada às


mulheres na história, sobretudo à esposa de Charlie, Helen, que o protagonista deixa
acidentalmente trancada fora de casa numa madrugada nevosa, porque a neve de 1929
não era real. Era neve se assim o desejassem, porque eram crianças que viviam no seu
próprio mundo ficcionado em que todos os seus caprichos e fantasias eram possíveis
numa altura de abundância económica. Kennedy afirma que o dinheiro fácil, que
tornava a vida tão lúdica e irreal, fomentava a libertinagem europeia: “For them, the
unreality of money created a fantastic sphere of European profligacy […]” (Kennedy,
2002: 133). Expatriados americanos esbanjavam dinheiro pelo qual não trabalhavam e
tal permitia-lhes tirar prazer de uma vida despreocupada, semelhante à de uma criança:
“The squandering of unearned money called forth «effort and ingenuity» and
imagination; it permitted or demanded the playing of roles, wearing the old derby rim
and carrying the wire cane” (Male, 1965: 4). Esta referência de Male relembra uma
ocasião específica em BR na qual Charlie recebe uma carta de Lorraine que o descreve
carregando uma bengala de bamboo e usando um chapéu de coco, fazendo alusão a um
dos grandes atores cómicos da altura, Charlie Chaplin. Com esta analogia, Fitzgerald
insinua que o antigo Charlie Wales passava o seu tempo a desempenhar um papel que
não o dele, porque tudo era ilusório, uma brincadeira para aqueles que não sentiam a
inquietude das responsabilidades de uma vida laboriosa e severa. Desta forma, era-lhes
permitido aventurarem-se como crianças, sem a remota noção das consequências das
suas ações ou atitudes: “[…] figures there float rootlessly free of human ties and
responsibilities […]. The adults are the only children” (Gross, 1963: 129). Kirk Curnutt,
defende que a personagem de Charlie Wales é vítima da dissipação moral e económica
que se tornou evidente após o crash de 1929, ainda que todavia anseie pelo regresso dos
tempos de diversão infantil e despreocupada que tomava como certas, aludindo ainda à
implicação que esta nostalgia e saudade têm nas personagens: “Whatever the catalyst,
the effect of these experiences is always the same: Fitzgerald's heroes feel suddenly,
irrevocably old” (Curnutt, 2002: 35). A presença da passagem do tempo para Charlie
Wales é irrevogável. Antes, uma criança sem responsabilidades, moldada pelo

29
hedonismo e riqueza económica, sente, agora, o peso da responsabilidade adulta e de
como tal se reflete na sua própria idade.
Abordei anteriormente o papel dos sonhos e da imaginação em Babylon
Revisited enquanto forma de evadir a realidade economicamente sistémica em que
emerge a diegese e que comanda as personagens. De facto, os sonhos estão presentes
durante toda a história, sejam eles na forma dos sonhos que Charlie tem de um futuro
com a sua filha, na forma do sonho que tem com a sua falecida esposa, Helen, ou até na
forma como a cidade de Paris agora se apresenta, diferente e com uma vibração quase
ilusória para o personagem principal, que já não se identifica da mesma forma com
aquele lugar. É possível comprovar esta perspetiva com uma das últimas passagens no
texto, tal como refere Gross: “When he [Charlie] asks the waiter «What do I owe you? »
the answer the story supplies is «your hopes and dreams»” (Gross, 1963: 135). Seymour
Gross acredita que Charlie paga a sua dívida, ou por outras palavras, paga pelos erros
que cometeu no passado, com os seus sonhos de um futuro feliz ao lado de Honoria,
enfatizando a solidão de Charlie no final da história:

Fitzgerald, in the final sentence of the story, crushes any lingering hopes by
indicating that there is nothing left for Charlie to do but turn for comfort to the dead, for
whom time has also stopped. “He was absolutely sure Helen wouldn't have wanted him
to be so alone.” (Gross, 1963: 135)

Deste modo, Gross demonstra que Helen, um dos “fantasmas” do passado de


Charlie, é a única fonte de conforto e companhia que este alguma vez terá. Há três anos
atrás, Charlie desejava abrandar o tempo, e de alguma forma detê-lo para conseguir
viver verdadeiramente todos os momentos. Agora que está sozinho, e os seus sonhos do
futuro servem apenas como pagamento pelas suas ações, o único consolo que pode
encontrar é ao lado dos mortos. Para eles o pêndulo não balança e o tempo não corre:
“Enormous pain over beauty that is lost is the theme of «Babylon Revisited»” (Clayton,
1977; apud Logsdon, 2011: 14).
Ficam assim demonstrados os elos de ligação existentes entre a vida de
Fitzgerald e de Charlie Wales, confirmando a presença de um dos elementos mais
relevantes nos seus trabalhos, o elemento autobiográfico. Tal como afirma Tim Xu, é
através de uma disposição cuidadosa de passado e presente que Babylon Revisited
demonstra a mágoa e sofrimento do autor mediante a doença mental de Zelda, condição

30
que marca o final do seu tempo em Paris (Xu, 2009: 4). Richard Davison corrobora esta
afirmação: “Writing this story […] while Zelda was intermittently institutionalized,
Fitzgerald clearly transmutes some of his own guilt feelings, his need for self-
justification, his near despair” (Davison, 2000: 197). Para uma visão mais alargada das
circunstâncias exteriores à história, mas que definem os seus contornos, passarei, em
seguida, a fazer uma breve análise sobre o contexto histórico em que Babylon Revisited
e Fitzgerald estão inseridos.

1.2.2. Contexto Histórico e Socio-Económico

Se olharmos para Babylon Revisited com uma perspetiva que visa a crítica
biográfica, facilmente concluímos que a história é largamente baseada na vida de F.
Scott Fitzgerald. Tal como referi anteriormente, o autor passou por diversos tormentos,
nomeadamente problemas com dinheiro, a dependência do álcool e uma relação instável
com a sua mulher. Segundo Bruce Grenberg, o autor conseguiu preservar a sensação de
viver e fazer parte de um contexto histórico nas suas histórias:

F. Scott Fitzgerald characteristically interweaves personal and historical


perspectives within his fiction to present a singularly intense and immediate
commentary on the era. For him history is never abstract - something that happens to
people; it is live and compelling, springing from the hearts and minds of individuals. It
is, as it were, the enactment of man’s personality […]. (Grenberg, 1986; apud Logsdon,
2011: 17)

Assim sendo, é possível identificar traços da vida de Fitzgerald na história. Com


o objetivo de abordar mais profundamente este tema, irei, então, contextualizar a obra,
histórica, social e economicamente para assim reiterar as influências entre o autor, o
conto e a era em que ambos estão inseridos.

Uma Nova Era: Os Loucos Anos 20

Os anos que seguiram o fim da Primeira Guerra Mundial representam toda uma
era de excitação, movimento e ritmo de vida mais acelerado, assistindo a dramáticas
mudanças sociais e políticas. Este período ficou conhecido pelos Loucos Anos 20

31
durante os quais se assistiu a um desvio na forma de viver e de olhar o mundo. Segundo
Marcia Lusted (2014) o ambiente alterou-se por completo: “It was a time of fresh air
after the long, dark years of World War I”. O desenvolvimento de meios de
comunicação como o rádio e os filmes espalhavam as tendências de moda, música e
comportamentos, e o estilo de vida e valores tradicionais estavam em mudança. Havia
mais dinheiro em circulação e mais produtos e serviços à venda, fruto deste
desenvolvimento: “Business men herald a «new economy» resulting from both
technological change and managerial innovation. Technology transformed the
workplace allowing greater efficiency and higher profits. […] The promise was
prosperity” (Murphy, 2012: 1). Esta era uma nova era, mais industrial e tecnológica, em
que assistimos à propagação de aparelhos como o telefone, automóveis, discos musicais
e filmes, inovações que alteraram a forma de pensar em relação ao dinheiro. De facto, a
economia consumista contemporânea teve o seu início durante os Loucos Anos 20, com
uma combinação explosiva de uma economia em crescimento, de consumidores com
mais dinheiro para gastar e da produção em massa, acompanhada do aumento dos
salários e dos lucros em ações da Bolsa. A combinação de todos estes fatores provocou
o aumento do nível de vida dos americanos. Os baixos impostos exigidos pelo governo
às grandes empresas permitiam o seu crescimento e tanto empresas como bancos
passaram a investir os seus fundos na Bolsa. Através de empréstimos realizados ao
banco, qualquer produto estava ao alcance do consumidor, que procurava o estilo de
vida que as agências publicitárias tanto divulgavam ao público, o “sonho Americano”
(cf. Lusted, 2014). Deste modo, assistimos a uma mudança nos valores tradicionais
vitorianos23, que se expandiu a todas as áreas da sociedade dos anos 20.
Nesta altura, as pessoas começam a pensar na Bolsa de Valores como uma forma
de enriquecer rapidamente, ao invés de uma opção de investimentos a longo prazo.
Consequentemente, o crescimento da compra de ações é acompanhado pelo aumento
dos seus preços, o que incentiva cada vez mais o investimento neste mercado. Este
fenómeno ficou conhecido como o boom económico, que regrou durante este período:
“Conservative or liberal, traditionalist or modernist, critics stood aghast before the
perceived meretricious pleasures of American society at the peak of its pre-Depression,
consumer-driven boom” (Murphy, 2012: 12). O boom financeiro ocorreu durante uma

23
A Era Vitoriana designa o período do reinado da rainha Vitória, no Reino Unido, durante o século XIX (1837-
1901). A sociedade deste período ficou conhecida por defender valores tradicionais como moralismo e integridade e
pelas suas regras rígidas e rigorosas. O vitorianismo americano representa uma ramificação deste período e estilo de
vida nos Estados Unidos da América (Freeman, 1997).

32
altura de otimismo, durante a qual as famílias prosperavam e as novas tecnologias se
multiplicavam, e era propício o investimento em ações e títulos (cf. Gary Richardson et
al., 2013). O risco de investir em ações parecia não criar qualquer preocupação numa
economia cada vez mais capitalista e consumista. Loren Logsdon afirma que segundo a
teoria marxista este sistema económico seria considerado deplorável, uma vez que
permitia a qualquer pessoa enriquecer sem o mínimo esforço, tal como o que sucede
com Charlie Wales em Babylon Revisited, que a autora considera um testemunho da
natureza exploradora e decadente do capitalismo:
The Marxist would deplore a system that enabled Charlie to become so wealthy
that he didn’t even have to work for the money. The Marxist critic would emphasize
how capitalism leads to decadence - the alcoholism, the cocaine, and the irresponsible
infantile behavior of Charlie […]. (Logsdon, 2011: 14)

De facto, as festividades dos anos 20 foram largamente acompanhadas pelo


consumo desmedido de álcool e drogas, apesar de esta ser uma altura durante a qual a
Lei Seca estava em vigor nos Estados Unidos, e pela primeira vez, as mulheres deixam
de ser meras espetadoras e passam a tomar parte nos acontecimentos. Foram alvo de
algumas das mudanças mais notáveis, libertando-se dos seus típicos papéis como
mulheres de família e adquirindo mais liberdade e mais empregos fora de casa, o que
deu lugar à utilização do termo flapper:

Shortly after the closing shots of World War I, the word came to designate
young women in their teens and twenties who subscribed to the libertine principles that
writers like F. Scott Fitzgerald […] popularized in print and on the silver screen (Zeitz,
2006: 5).

Rena Sanderson acredita que atribuir a criação do termo flapper a Fitzgerald


pode ser exagerado, contudo reconhece que foi o autor, com a ajuda da sua mulher
Zelda, que ofereceu ao público a imagem de uma mulher moderna, caracterizando-a
como “spoiled, sexually liberated, self-centered, fun-loving, and magnetic” (Sanderson,
2002: 143). Eram mulheres modernas, com mentalidades mais abertas, que procuravam
liberdade social para se expressarem. São descritas por Zeitz como irreverentes e
ousadas, evadindo a preocupação com valores tradicionais ou com a opinião do público
mais conservador:

33
[By] the early 1920’s it seemed like every social ill in America could be
attributed to the “flapper” - the notorious character type who bobbed her hair, smoked
cigarettes, drank gin, sported short skirts, and passed her evening in steaming jazz clubs,
where she danced in a shockingly immodest fashion with a revolving cast of male
suitors. She was the envy of teenage girls everywhere and the scourge of good character
and morals. (Zeitz, 2006: 5)

Segundo William F. Ogburn (1922; apud Murphy, 2012: 2), os anos 20 foram,
sem dúvida, um período histórico durante o qual assistimos a um grande número de
mudanças. A mentalidade e valores sociais em vigor sofreram algumas das maiores
alterações e não foi apenas a flapper que subitamente sentiu um desejo incontrolável de
se expressar livremente. Paul Murphy acredita que as novas maneiras de pensar se
espalharam de forma generalizada pelos Estados Unidos da América e pela Europa:
“Old customs of family, community, and religion withered, and new ways of
independent living proliferated” (Murphy, 2012: 2-3). Joshua Zeitz (2006: 70)
corrobora esta afirmação, defendendo a existência de uma revolução moral e de conduta
que varreu a América durante este período. O autor afirma que muitos Americanos
desviam a sua atenção do trabalho e passam a valorizar o prazer e consumo, criando
uma ética diferente que legitimava o hedonismo (Zeitz, 2006: 66).

Era do Jazz

Numa tentativa de acompanhar os desenvolvimentos nas cidades, os músicos


afro-americanos deixam as áreas rurais para se aglomerar nos centros das cidades,
levando consigo um novo estilo de música, o jazz, que passou a percorrer os clubes
noturnos, locais de entretenimento cada vez mais populares. O inovador estilo musical
inspirou uma revolução, não apenas musical, mas de toda uma era, chamada a Era do
Jazz. A geração que desovou foi a mais extravagante de sempre: “a whole race going
hedonistic, deciding on pleasure” (Fitzgerald, 1931; apud Donaldson, 2002: 175).
Joshua Zeitz defende que F. Scott Fitzgerald e Zelda Sayre foram os grandes
impulsionadores desta época:

[…] America's Jazz Age began in July 1918 on a warm and sultry evening in
Montgomery, Alabama. There, at the Montgomery Country Club […] a strikingly

34
beautiful woman named Zelda Sayre sauntered onto the clubhouse veranda and caught
the eye of First Lieutenant Francis Scott Fitzgerald. (Zeitz, 2006: 13)

Zeitz destaca ainda o papel de Zelda durante os anos 20 como flapper e como
percursora dos novos hábitos e costumes da sociedade consumista: “Clearly, Zelda
Sayre wasn't the only girl in America who liked to do «crazy things». Young women
growing up right before the Jazz Age were equal partners in pioneering a new set of
customs governing romance and sexuality” (Zeitz, 2006: 36). Murphy, por seu lado,
documenta sobre a posição de Fitzgerald nesta altura da seguinte forma: “Sexuality lay
at the center of a new imagery of youth-driven freedom. To the astute mythologizer of
American culture, F. Scott Fitzgerald, the unleashing of sexual energies constituted the
main innovation of the era” (Murphy, 2012: 18). Fitzgerald era da opinião que a Era do
Jazz entrou realmente em vigor no início dos anos 20, e isso significava, segundo
Murphy, uma nova atitude de abertura, rebelião e abandono do pudor, comportamentos
que convergiam numa atitude hedonista (Murphy, 2012: 18). A juventude dos anos 20
utilizava o jazz para se revoltar contra os valores culturais tradicionais de gerações
prévias. Susan Currel acredita que o jazz determinava o ritmo deste período:

Fitzgerald called the 1920s “The Jazz Age” not because his wealthy elite
expressed their desultory freedom by dancing to jazz, but because jazz was the
experimental and improvisational score that set the pace for this new America. Jazz was
the beat and rhythm of unavoidable cultural change, a hybrid sound of the southern past
and the industrial North24, the “primitive” keeping time with Ford’s 25 production line.
(Currel, 2009; apud Boev, 2014: 11)

A ascensão do jazz coincidiu com a propagação das transmissões de rádio e das


tecnologias de gravação, o que permitiu a difusão deste estilo musical a grande escala.
Em cidades como Nova Iorque e Chicago encontrava-se uma maior concentração deste
estilo musical, particularmente de artistas afro-americanos, e apesar do preconceito
racial ainda em vigor durante este período, o jazz conseguia dar representação à
comunidade afro-americana num cenário onde a hegemonia dos brancos era
predominante (Boundless - The Jazz Age, 2015).

24
Afro-americanos deixavam o Sul rural e deslocavam-se para as grandes cidades a Norte, levando consigo o estilo
de música que inspirou a América, o jazz (Lusted, 2014).
25
Henry Ford tirou vantagem dos avanços tecnológicos para fundar a Ford Motor Company, uma empresa de
produção e venda de carros com um lugar de relevância na revolução nos transportes durante os anos 20 (Zeitz,
2006:34).

35
Juntamente com o jazz, surgem também novas danças para acompanhar as
tendências na música. Segundo Kathleen M. Drowne e Patrick Huber, o Charleston26
tornou-se num dos maiores símbolos dos anos 20: “[…] nothing better symbolized the
carefree spirit and ebullience of the Jazz Age than the Charleston, a high-stepping
version of the fox-trot that became a nationwide craze between 1923 and 1926”
(Drowne & Huber, 2004: 227). Além de músicos como Louis Armstrong, Jelly Roll
Morton e Joe “King” Oliver, a Era do Jazz assistiu também à ascensão do papel da
mulher na área das artes performativas. Os ideais de igualdade e liberdade sexual
estimularam a emergência de artistas afro-americanas tais como Bessie Smith, Billie
Holiday e Josephine Baker27, que marcaram este período e abriram caminho a futuras
mulheres no mundo do jazz.
Contudo, o jazz não foi a única novidade que colocou em destaque a
comunidade afro-americana. Com a Grande Migração28 de jovens afro-americanos, que
abandonavam os espaços rurais do Sul e viajavam para as grandes cidades do Norte, os
níveis de literacia crescem, levando à criação de organizações de defesa dos direitos
civis desta comunidade e abrindo oportunidades socioeconómicas para esta população
(Hutchinson, 2015). Branca Maria Costa defende que “[e]m menos de uma geração, a
Grande Migração transformava o negro americano de predominantemente trabalhador
rural em habitante citadino, e a mancha demográfica do país alterava-se radicalmente”
(Costa, 2007: 21). A partir de 1918 a sua cultura floresce, particularmente nas artes
criativas e no nascimento de um período de expansão literária e artística afro-americana
de imensa influência sociocultural. Este período ficou conhecido como Harlem
Renaissance e, segundo Amritjit Singh (2004: 896), abrangia as artes musicais,
literárias, teatrais, dramáticas e visuais a partir das quais os seus integrantes procuravam
reconceitualizar o “Negro”, afastando-o dos estereótipos definidos pela sociedade.

26
Apesar de não ser possível apontar quais as precisas origens do Charleston, Drowne e Huber (2004: 227) acreditam
que se baseou em paços de dança típicos da população afro-americana na cidade de Charleston, na Carolina do Norte.
27
Freda Josephine McDonald (1906 – 1975) conhecida como Josephine Baker, ganhou fama a cantar e dançar no
teatro da Broadway, em Nova Iorque, e tornou-se num símbolo da cultura afro-americana. Durante os anos 20 viajou
para França, onde rapidamente se tornou numa das artistas mais populares e bem pagas da Europa (Encyclopædia
Britannica - Josephine Baker, 2014b). No conto Babylon Revisited, o autor, F. Scott Fitzgerald, faz referência à
dançarina (2011: 8), quando Charlie Wales, o personagem principal, decide assistir a uma das suas atuações.
28
A Grande Migração afro-americana durante a década de 20 é caraterizada por Farah Griffin (1995; apud Costa,
2007: 18-20) como um período durante o qual o habitante afro-americano do Sul rural, por motivos de índole social e
económica, respetivamente a “opressão e violência” racial praticadas neste período contra a sua comunidade e o
subdesenvolvimento do Sul em relação ao capitalismo industrial, abandona o espaço rural com intenção de procurar
melhores condições e novas oportunidades no Norte citadino.

36
The New Negroes were seen as middle class, as demanding their legal rights,
and as wanting to develop new images that would challenge old stereotypes. […] Racial
pride had been part of African Americans’ literary and political self-expression in the
nineteenth century […]; but it had a new purpose and definition in the journalism,
fiction, poetry, music, sculpture, and painting of the Harlem Renaissance. (Singh, 2004:
896)

Este “movimento” provocou um enorme impacto na literatura afro-americana


subsequente e o aumento da sua receção. Contudo, o período da Harlem Renaissance,
não ficou confinado ao bairro de Harlem, no estado de Nova Iorque, apesar de daí ter
originado o seu nome: “[…] the term «Harlem Renaissance» has become firmly
established for the emergence of arts not in Harlem but also among African Americans
all over the United States in the 1920s and the 1930s” (Singh, 2004: 897). Esta é uma
circunstância socio-artística incontornável na mundividência literária de Fitzgerald.

Geração Perdida

Outro fenómeno artístico-social indissociável do universo de Fitzgerald é a


Geração Perdida. Foi Gertrude Stein que cunhou o termo Lost Generation: “When
author Gertrude Stein told Ernest Hemingway, «You are all a lost generation, » a
generation was named” (Butler & Bonnett, 2007: 4-5). A expressão descreve uma
geração condenada, hedonista, de criatividade intransigente e ferida pela experiência da
guerra. Com o fim da Primeira Guerra Mundial o mundo fica para sempre mudado:
“Those who came home were profoundly affected by their war experience. Feeling
cynical about humanity's prospects, they rebelled against the values of their elders,
seeking debauchery instead of decency, and hedonism instead of ideology” (Jaracz,
2011). Depois da guerra vários escritores Americanos sentem-se inúteis e muitos viajam
para a Europa durante os anos 20, com o objetivo de se libertarem das tradições antigas.
Como consequência a cidade de Paris transforma-se num dos maiores centros de
expatriados que procuram realização literária, tentando capturar o espírito fútil da
América naquele período.
Esta geração hedonista e desiludida com os efeitos devastadores da Grande
Guerra ficou conhecida como a Geração Perdida. Fitzgerald é considerado uma das
vozes mais sonantes desta Geração, da qual fazia parte um grupo de escritores

37
estadunidenses que estabeleceram a sua reputação literária durante a década de 20. Os
membros da Geração Perdida nasceram na viragem do século XX, numa altura durante
a qual o mundo assistia a rápidas mudanças. A Grande Guerra teve tremenda influência
nesta geração, que depois de assistir aos horrores da batalha, deixa de ver qualquer
sentido nos valores tradicionais:

In fact, this generation became skeptical of all authority. After the war, the Lost
Generation started exploring its own set of values, ones that clearly went against what
their elders had already established. […] Through its rebellion, the Lost Generation
came up with its own social mores that gave rise to the Roaring ‘20s, with its gangsters,
speakeasies29 and hedonism. (Jaracz, 2011)

Segundo Kate O’Connor, a falta de propósito destes autores refletia-se como


produto da experiência daqueles que cresceram e viveram durante a guerra: “Having
seen pointless death on such a huge scale, many lost faith in traditional values like
courage, patriotism, and masculinity. Some in turn became aimless, reckless, and
focused on material wealth, unable to believe in abstract ideals” (O’Connor, 2013). A
Geração Perdida refere-se, então, a um conjunto de escritores e poetas Americanos cujas
obras literárias partilhavam temáticas semelhantes, e que, segundo Murphy, inserem
estes autores no movimento literário e artístico modernista: “In self-consciously
repudiating their traditional social responsibility, they were embracing modernism.
Even while placing themselves at odds with the broader public, however, intellectuals
defined a new and potentially vital public role as cultural critics” (Murphy, 2012: 4). O
autor defende a existência de uma separação entre os escritores da Geração e as
camadas populares, que resultava numa discussão interna entre artistas e escritores
sobre a sua própria posição social, algo que para Murphy era a definição inata de
modernismo:

The art object would be judged on its own terms, free and independent of the
audience's response. Individual autonomy and integrity, not tradition or communal
responsibility, were the essential values. Modernist intellectuals crafted a highly
individualistic credo, one that embraced the emerging bifurcation between the
intellectuals and the public. (Murphy, 2012: 5)

29
Speakeasy é o termo utilizado para descrever um local de venda e consumo ilegais de bebidas alcoólicas durante a
década de 20. Segundo Helen Pow (2013), nesta época existiam centenas de locais para consumo ilegal em Nova
Iorque, descrevendo os speakeasies como pequenas salas escondidas, onde se vendia álcool, muitas vezes de baixa
qualidade, e que na sua maioria eram geridas por grupos criminosos.

38
Segundo Kathleen Kuiper o movimento modernista, presente desde finais do
século XIX até meados do século XX, traduz-se num processo de quebra com o passado
e procura de novas formas de expressão (Kuiper, 2014).
Fitzgerald passou quase seis anos na Europa, e produziu uma variedade de
contos que expõem as práticas americanas no estrangeiro. Kennedy defende a
intemporalidade das produções do autor, que ultrapassam os “clichés” relativos à
Geração Perdida:

They explore such problems as the nationalist ethos of Americans in Europe,


their class-conscious relations with other displaced Americans, their contact as
foreigners with “foreign” peoples and languages, and their adaptation (or lack thereof)
to different cultures. [They] reveal a changing social consciousness. […] Fitzgerald in
fact produced a literature often sharply critical of reckless, moneyed expatriates and
their disdain for foreign peoples and practices. (Kennedy, 2002: 140)

Murphy afirma que a história da cultura Americana durante a década de 20 tem


como alicerce uma geração emergente de intelectuais modernistas e liberais que tentam
identificar o seu papel na América, país que durante este período assiste a um rápido
desenvolvimento e alta complexidade social (Murphy, 2012: 8). Na frente da Geração
Perdida encontra-se um grupo de artistas e escritores que fizeram florescer o talento
literário americano a uma escala internacional. Jovens como F. Scott Fitzgerald, Ernest
Hemingway, Ezra Pound e T. S. Eliot viram publicados alguns dos seus trabalhos mais
controversos em Paris: “This group […] was skeptical about [outmoded] traditional
forms of literary and artistic work, but optimistic about the potential of new forms. Its
members were prolific writers and many produced classics” (Harry Ransom Center -
The University of Texas at Austin - The Lost Generation, s.d.). Estas são algumas das
figuras literárias que surgiram neste período, escritores dos anos 20 que emergiram com
a Primeira Guerra, desiludidos e cínicos para com o mundo, escrevendo contos e
romances que criticavam a sociedade daquela altura. Autores de todo o mundo
convergiam para centros como Paris, Londres e outras cidades europeias para se
juntarem à efervescência de novas ideias e movimentos, resultando num período de
experimentação, durante o qual artistas de renome reinventavam as suas formas de
expressão artística (Academy of American Poets - A Brief Guide to Modernism, 2004).
Este período, caraterizado pelo individualismo e pela decadência moral, ocorre em

39
paralelo ao que referi anteriormente como Era do Jazz, e captura as atitudes típicas desta
época, nomeadamente no que diz respeito ao alcoolismo e ao estilo de vida
descontrolado e imprudente que representa o cenário pós-guerra de jovens expatriados
em Paris (Encyclopædia Britannica - Lost Generation: American literature, 2014c).
Apesar de muitos destes autores se encontrarem na Europa durante os anos 20, as suas
produções literárias produziram mudanças profundas na Literatura Americana:

Full of youthful idealism and their fair share of angst, these individuals sought
“the meaning of life”, drank excessively, [and] had torrid love affairs […]. Despite the
fact that these writers and artists had abandoned their homeland in favor of chic Paris,
their works profoundly changed the face of American Literature. (The Intellectual
Devotional - Post WWI Paris: A Generation in Flames, 2010)

Durante e após a Grande Guerra, Paris agarrou-se à sua reputação como a capital
da cultura boémia. Famosa pelas intrigas filosóficas, inspiração artística, vanguardismo
e personalidades flamejantes, os seus bares e cafés ecoavam ao som da música jazz e do
debate intelectual: “Culturally as well as morally, Paris in the 1920s remained one of the
most exciting, sophisticated cities in the world. Capital of the avant-garde in all its
forms, the city played host to any number of intersecting artistic cliques […]” (British
Library - The “Lost Generation”, s.d.). Foi neste núcleo de ideias e inovação que os
expatriados da Geração Perdida se aventuraram. Contudo, o período que sucedeu a
Grande Guerra foi, para muitos artistas na Europa, uma altura de profunda desilusão
para com os valores que cimentaram toda uma civilização. Segundo Butler e Bonnett, a
Geração Perdida é definida como parte integrante de um conjunto de acontecimentos
históricos, sociais e económicos que moldaram os seus membros e respetivos valores,
normas e atitudes: “Casual drug use (including cocaine in Coca-Cola), high homicide
rates, the Great War, the influenza30 epidemic of 1918, and Prohibition marked the
young adulthoods of the Lost Generation, while the Great Depression and World War II
shaped their midlife” (Butler & Bonnett, 2007: 5).

30
Gripe Espanhola, também denominada gripe pneumónica, peste pneumónica ou, simplesmente, pneumónica.

40
Crash de 1929

Babylon Revisited repousa sobre um certo progresso histórico, uma mudança, e a


irreversível passagem do tempo, especificamente entre a euforia dos anos 20 e o novo
estado de espírito após o crash de 1929 (cf. Logsdon, 2011: 16). Os tempos melodiosos
de diversão não seriam eternos, e o desfecho dos Loucos Anos 20 terminaria após um
dos acontecimentos mais marcantes do final desta década, o crash da Bolsa de Nova
Iorque: “This self-indulgent spree came crashing to a halt when the stock market
crashed in 1929, leaving this generation to navigate the Great Depression during what
would be the high point of their careers” (Jaracz, 2011). O boom económico que se
verificou nos anos 20 terminou com o rebentar da bolha especulativa que representava o
mercado de ações: “The Roaring Twenties and the stock market crash of 1929 [were]
similar to any other speculative bubble and subsequent crash. The classic pattern of
extreme euphoria and irrational expectations will always lead to devastating financial
crashes” (Colombo, 2012). Durante este período o mercado de ações expandiu
rapidamente e atingiu o seu auge em agosto de 1929, depois de um período de imensa
especulação. Por esta altura, a produção nacional já testemunhava uma queda e o
número de desempregados aumentava, o que levou as ações a exceder o seu valor real:
“In September 1929, stock prices gyrated, with sudden declines and rapid recoveries.
[…] Investors began selling madly. Share prices plummeted” (Richardson et al, 2013).
O eventual colapso do mercado ocorreu devido a baixos salários, proliferação de
dívidas, um setor agrícola em dificuldade e um enorme excesso de empréstimos
bancários que não podiam ser liquidados (History - Stock Market Crash of 1929, 2010).
Os preços das ações começaram a descer, até que a 18 de outubro entraram em queda. O
pânico instalou-se e no dia 24 foi transacionado um número recorde de ações. Durante o
dia 29 de outubro, reconhecido como Terça-feira Negra, o preço das ações colapsou
completamente, levando os acionistas a tentar desesperadamente vender as suas ações:

On Thursday, October 24th 1929, a spate of panic selling occurred as investors


began to realize that the stock boom was actually an over-inflated speculative bubble.
Margin investors were being decimated as large numbers of stock investors tried to
liquidate their shares to no avail. Millionaire margin investors went bankrupt almost
instantly when the stock market crashed on October 28 th and 29th. (Colombo, 2012)

41
Perderam-se milhares de milhões de dólares, e um grande número de
investidores ficou sem dinheiro: “Many bankrupt speculators, some who were once very
affluent, committed suicide by jumping out of buildings” (Colombo, 2012). Durante as
semanas após a Terça-feira Negra, assiste-se a uma considerável recuperação, uma vez
que os preços das ações apenas podiam subir. No entanto, de um modo geral, os preços
continuaram a descer, provocando a aceleração do colapso económico e,
consequentemente, a queda dos Estados Unidos na Grande Depressão. Em 1933 quase
metade dos bancos americanos entraram em falência e as taxas de desemprego
alcançaram um dos seus pontos mais altos (History - Stock Market Crash of 1929,
2010). Segundo Colombo (2012), a pobreza atingiu grande parte da população que,
desempregada e sem poupanças, era forçada a viver em condições miseráveis, enquanto
os antigos milionários eram agora forçados a vender maçãs e lápis nas ruas. Segundo
Gary Richardson, este foi um dos períodos mais sombrios na América:

The contraction began in the United States and spread around the globe. The
Depression was the longest and deepest downturn in the history of the United States and
the modern industrial economy (Richardson, 2014).

As medidas reformativas do presidente Franklin Roosevelt (1882-1945)


auxiliaram a diminuição dos efeitos da Grande Depressão. Ainda assim, a economia
americana apenas recuperaria completamente depois da Segunda Guerra Mundial
(1939-45), acontecimento que revitalizaria a sua indústria (History - Stock Market
Crash of 1929, 2010). Face à passagem dos Loucos Anos 20 para os anos da Grande
Depressão, as artes sofrem uma mudança e passam a refletir um espírito mais realista na
ficção europeia e americana. Adam Kirsch, afirma que o romance de F. Scott Fitzgerald,
The Great Gatsby, reflete a essência dos anos 20:

The glittering parties thrown by Jay Gatsby in Fitzgerald’s 1925 masterpiece


were funded by the easy money that seemed to be everywhere for the taking. But once
the Depression hit, the 1920s began to seem less like an era of prosperity and more like
a long, drunken spree that was bound to produce a bad hangover. (Kirsch, 2013)

Tomando as palavras supra citadas de Kirsch, acredito que para Fitzgerald, esta
“ressaca” se traduziu em BR, onde explora aberta e criticamente, desta vez sem as luzes
extravagantes que em tempos o encandeavam, os erros e arrependimentos do seu

42
passado irresponsável e que o impediriam de alcançar um futuro feliz. Kirsch (2013)
defende ainda que após o embate do crash em 1929, os escritores da Grande Depressão
surgiriam com o propósito de guiar os leitores através dos escombros, exigindo uma
mudança radical. O mesmo sucede com o conto de Fitzgerald, que exige uma reforma
drástica de valores, e surge quase como um “cautionary tale” que pretende servir de
lição e prevenir o leitor acerca das consequências das suas escolhas. Para concluir a
minha análise contextual e citando as palavras de Roy Male, com as quais concordo
plenamente: “To grasp some of the reasons why Fitzgerald's story came off so well, we
need to see it as a product of his life and times” (Male, 1965: 4). A ficção de Fitzgerald
acrescenta muito à realidade desta época, já que lhe confere um olhar, e por conseguinte
a ilustra à luz de um prisma próprio.

43
2. Enquadramento Teórico-Prático

44
2.1. Tradução Literária: o Conto

Qualquer sistema linguístico está situado no núcleo de determinada cultura.


Língua e cultura são interdependentes e é impossível investigá-las separadamente, uma
vez que ambas produzem e resultam de um mesmo conjunto de normas, valores,
tradições e quaisquer outras particularidades que definem uma população. Jurí Lotman
defende esta mesma opinião, afirmando: “No language can exist unless it is steeped in
the context of culture; and no culture can exist which does not have at its center, the
structure of natural language” (Lotman, 1978; apud Bassnett, 2002: 22). Susan Bassnett
utiliza o exemplo do trabalho de um cirurgião para sustentar este mesmo ponto,
oferecendo uma analogia entre ele e o tradutor. Para a autora, assim como o cirurgião,
que opera o coração e que não pode negligenciar os restantes órgãos, também o tradutor
não pode traduzir um texto sem ter em consideração a cultura que o envolve (Bassnett,
2002: 22). Deste modo, é possível concluir que uma tradução deverá englobar não só
aspetos relacionados com as regras de determinado sistema linguístico, mas também
com aspetos relativos às normas culturais presentes na LC.
Esta consideração de língua e cultura deve-se ao derradeiro objetivo do trabalho
de tradução: fazer chegar o texto ao leitor da LC da maneira mais natural e fluída
possível, ou seja, de maneira que o leitor se possa identificar com o texto traduzido.
Eugene Nida defende um ponto de vista semelhante: “[A translation] tries to relate the
receptor to modes of behavior relevant within the context of his own culture; it does not
insist that he understand the cultural patterns of the source-language context in order to
comprehend the message” (Nida, 2000: 129). Contudo, existem outros fatores a ter em
conta durante o processo de tradução e que vão resultar em produções diferentes; Nida
enumera os três fatores de maior importância: “(1) the nature of the message, (2) the
purpose or purposes of the author and, by proxy, of the translator, and (3) the type of
audience” (Nida, 2000: 127). Relativamente a estes três fatores não posso deixar de
considerar determinados elementos, tais como: o género literário da obra que me propus
traduzir, o conto; o elemento autobiográfico presente em BR e o contexto da história nos
anos 20 e 30; e o público-alvo em questão, o leitor Português. Posto isto, irei abordar,
em seguida, o género literário do conto e os aspetos a considerar no ato de tradução do
mesmo.
Uma das principais caraterísticas que definem o conto é a sua curta extensão,
principalmente se o compararmos ao romance, tal como fez Rust Hills: “on the long trip

45
the novel provides, there is space/time for a quantity of incidents and effects” (Hills,
2000: 2). Se no romance existe espaço e tempo para tudo, o mesmo não acontece com o
conto, cuja narração é rápida e cuja linguagem é carregada de significado e de previsões
sobre o enredo. Vejamos o que afirma Rust Hills:

A successful short story will thus necessarily show a more harmonious


relationship of part to whole, and part to part, than it is usual ever to find in a novel.
Everything must work with everything else. Everything enhances everything else,
interrelates with everything else, is inseparable from everything else - and all this is
done with a necessary and perfect economy. (Hills, 2000: 4)

Peter Newmark oferece uma definição de conto que, na minha opinião, engloba
todos os aspetos deste género literário:

Outside poetry, the short story can be regarded as the most intimate and
personal form of writing in imaginative literature. […] Its essence is compactness,
simplicity, concentration, cohesion. Its symbolic and connotative power transcends its
realism and its denotative effect. (Newmark, 1993: 48)

O conto, género de qualidade única, merece uma atenção especial no que toca à
sua tradução. Newmark enumera alguns aspetos que o tradutor deve considerar ao
traduzir um conto: a estrutura, nomeadamente a relação entre a primeira e última frase
do conto que, assim como o título, apontam para o seu tema e resolução; o respeito pela
pontuação e parágrafos do autor; as palavras-chave ou Leimotive31, que se traduzem em
repetição de palavras, frases ou imagens que dizem respeito ao tema e personagens; os
marcadores estilísticos, ou palavras e estruturas utilizadas tipicamente pelo autor e que
também devem ser reproduzidas; as referências culturais, que cabe ao tradutor explicar
ou não, no reduzido espaço que tem disponível; e a perspetiva funcional das frases, que
resulta em ligações coerentes e coesivas entre estruturas frásicas e na reprodução de
informação importante nas mesmas (Ibidem).
Saliento novamente um dos aspetos que considero mais importantes e que é,
segundo Hills, uma das caraterísticas mais marcantes de um conto: “In a [short] story
everything's bound together tightly” (Hills, 2000: 3). O conto narra uma história
extremamente compactada e com elementos bastante interligados. A tarefa do tradutor é
31
Apropriação angloxaxónica da palavra alemã “Leitmotiv”; uma noção que se prende com a ligação de uma
personagem, ideia ou situação a uma melodia. Utilizado especialmente na ópera de Richard Wagner (Dicionário
Merriam-Webster.com).

46
produzir um texto que consiga, com a mesma rapidez e intensidade, reproduzir
fielmente a mensagem do TP para o TC.
Relativamente a teorias sobre o que constitui uma boa tradução, penso que
Lawrence Venuti explica, de forma sumarizada, e ainda assim integral, os aspetos de
maior significância. Foi com esta “definição de tradução” em mente que dei início a
uma pesquisa mais aprofundada sobre os passos necessários a tomar para realizar um
bom trabalho de tradução:

A translated text, whether prose or poetry, fiction or nonfiction, is judged


acceptable by most publishers, reviewers, and readers when it reads fluently, when the
absence of any linguistic or stylistic peculiarities makes it seem transparent, giving the
appearance that it reflects the foreign writer’s personality or intention or the essential
meaning of the foreign text - the appearance, in other words, that the translation is not in
fact a translation, but the “original”. (Venuti, 2008: 1)

Qualquer processo de tradução começa por uma simples leitura, visto que é
essencial que o tradutor compreenda o texto original como um todo, um elemento único,
contínuo e interligado ao invés de algo fragmentário. Segundo Mona Baker, ler o texto é
o primeiro passo do tradutor:

It is nevertheless imperative that we view the text as a whole, both at the


beginning and at the end of the process. […] a conscientious translator does not begin to
translate until he or she has read the text at least once and got a ‘gist’ of the overall
message. (Baker, 2011: 121)

Em qualquer texto literário, o tradutor deve ter consciência da presença de


infinitas possibilidades no que toca à sua interpretação, pois este tipo de texto nem
sempre faz uma representação direta e literal dos factos, e passa principalmente pela
apresentação de um texto subjetivo e de significados escondidos que cabe ao tradutor
decifrar:

One must not imagine that the process of translation can avoid a certain degree
of interpretation by the translator. […] A translator is both reader and writer; a
translation is undoubtedly one person’s subjective reading of the source text, and,
inevitably, it is reflected through that translator’s subjectivity. (Paul, 2009: 2)

47
Wolfgang Iser afirma que uma frase não consiste apenas de uma declaração ou
comunicado, mas que vai para além daquilo que está explícito no texto, acabando por
comprovar a afirmação supra citada de Baker ao alegar que “[sentences] are always an
indication of something that is to come, the structure of which is foreshadowed by their
specific content” (Baker, 1974; apud Bassnett, 2002: 115). Na tradução de BR tentei
respeitar toda a coesão e dimensão do texto e percebê-lo como um conjunto de frases
indissociáveis e com um significado que contribuirá para a integridade do texto.
Segundo Mona Baker, os padrões colocacionais e estruturas gramaticais podem facilitar
a leitura de segmentos frásicos individuais mas não garantem um texto coerente e de
fácil leitura (Baker, 2011: 121). O objetivo do tradutor é oferecer ao leitor da LC um
texto com o qual ele se possa identificar e que seja percebido como um texto
proveniente da sua própria língua.
Ítalo Calvino (1982; apud Rita Neves, 2005: 73) afirma que “traduzir é a
verdadeira maneira de ler um texto”, uma vez que o tradutor é quem vai ler e interpretar
o texto pela primeira vez e tentar descodificar a mensagem e codificá-la novamente
segundo um conjunto de regras e um sistema linguístico diferentes, tal como afirma
Susan Bassnett: “The reader, then, translates or decodes the text according to a different
set of systems and the idea of the one «correct» reading is dissolved” (Bassnett, 2002:
85). O que Bassnett alega nesta última afirmação é que não existe apenas uma
interpretação correta de um texto, ou seja, que cada tradutor vai ler e interpretar o texto
da sua própria forma, de acordo com os seus conhecimentos e as suas experiências, tal
como defende Walter Benjamin:

[A] translation issues from the original - not so much from its life as from its
afterlife. For a translation comes later than the original, and since the important works
of world literature never find their chosen translators at the time of their origin, their
translation marks their stage of continued life. (Benjamin, 2000: 16)

Esta interpretação não pode deixar de refletir “the overall structuring of the work
and its relation to the time and place of its production”, que verá a sua permanência no
tempo e difusão no espaço pela via da tradução (Bassnett, 2002: 85). Foi com esta
perspetiva em mente que me permiti fazer uma pesquisa e reflexão mais aprofundadas
sobre F. Scott Fitzgerald, BR e o contexto em que ambos se inserem. A minha intenção
depois da leitura integral do conto e de uma tradução inicial, passou por estudar

48
extensamente autor e obra com o objetivo de me identificar mais facilmente com o
autor, o que resultou numa melhor compreensão e interpretação da obra. Não obstante,
durante o processo de tradução tornou-se necessário manipular o texto para que este se
adaptasse à cultura e tradições literárias portuguesas, uma vez que, tal como corrobora
Mary Snell-Hornby, a tradução não é uma atividade realizada entre duas línguas, mas
sim entre duas culturas (Snell-Hornby, 1988; apud Gentzler).
Segundo Alexander Tytler existem três “regras” ou “leis” gerais a respeitar
durante o processo de tradução: “[1] The translation should give a complete transcript of
the ideas of the original work. [2] The style and manner of writing should be of the
same character with that of the original. [3] The translation should have all the ease of
the original composition” (Tytler, 1797; apud Munday, 2001: 26). Estes são, de acordo
com o autor, os principais componentes no TP a que o tradutor deve estar atento, as
ideias, o estilo e maneira de escrever e a leveza do original, e todos eles devem estar
presentes no TC. Walter Benjamin acredita que um dos fatores de maior importância é
que o tradutor seja capaz de identificar e reproduzir corretamente a intenção do texto:
“The task of the translator consists in finding that intended effect upon the language into
which he is translating which produces in it the echo of the original” (Benjamin, 2000:
19-20). Penso que é de relevância salientar que Benjamin denota que a intenção
presente no TP deve ser reproduzida mediante a LC, ou seja, que o tradutor deve
traduzir essa intenção de acordo não só com diferentes regras linguísticas mas também
culturais. O que procurei fazer na tradução de BR foi isso mesmo, tentar produzir no
leitor da LC o mesmo sentimento produzido no leitor da LP: “Our ideal in translation is
to produce on the minds of our readers as nearly as possible the same effect as was
produced by the original on its readers” (Souter, 1920; apud Nida, 2000: 133).
A minha intenção ao longo de todo o processo de tradução foi que o TC
demonstrasse marcas típicas da Língua Portuguesa e que não restassem vestígios do
Inglês que pudessem “distrair” o leitor da fluidez do texto traduzido; tal como afirma
John B. Phillips: “The test of a real translation is that it should not read like translation
at all” (Phillips, 1953; Nida, 2000: 133). Para cumprir este objetivo penso que foi
crucial ter em conta que raramente é possível reproduzir forma e conteúdo numa
tradução e que, confrontado com a escolha entre os dois, o tradutor deve optar por uma
tradução do conteúdo, ou seja, uma tradução menos literal do TP (cf. Nida, 2000: 127).

49
[…] não é raro encontrar o recurso ao adjectivo “intraduzível” que, no seu uso
mais comum reflecte geralmente a intenção de exprimir algo da ordem da
impossibilidade ou do impasse na passagem de uma língua para outra no exercício da
tradução. […] até no que diz respeito aos casos eventualmente catalogados como sendo
da ordem do intraduzível, a tradução não deixa de acontecer, ainda que os meios
utilizados e os resultados obtidos não satisfaçam inteiramente nem os tradutores, nem os
destinatários das traduções […]. (Zurbach, 2007: 177-8)

Em relação a esta impossibilidade de tradução, ou seja, a impossibilidade de


realizar uma tradução literal, Antoine Berman explica: “Unfortunately, a vernacular
clings tightly to its soil and completely resists any direct translating into another
vernacular” (Berman, 2000: 294); e José Ortega esclarece-nos sobre a natureza desta
impossibilidade explanando que a angústia da tradução é a sua impossibilidade e que as
irredutíveis diferenças, linguísticas e culturais, resultam de “different mental pictures,
from disparate intellectual systems” (Ortega, 1937; apud Venuti, 2000: 14).
Frequentemente o que resulta do processo tradutivo de um texto não é uma
tradução literal. O que inicialmente pode ser considerado como “intraduzível”
transforma-se em algo que vai para além do texto da LP. Torna-se num texto
perfeitamente envolvido e intrinsecamente ligado à LC, ou pelo menos é isso que se
espera. O nível de satisfação com o texto traduzido depende da estrutura de determinada
língua, ou seja, depende sempre das opções sintáticas, semânticas e linguísticas que se
encontram à disposição do tradutor dentro de cada sistema linguístico, teoria igualmente
sustentada por Christine Zurbach: “A própria ideia de tradução fiel, de uma pureza do
texto de chegada «tal como o original» não resiste ao confronto com o que gostaríamos
de chamar aqui os acidentes da sua materialização e da sua variabilidade” (Zurbach,
2007: 182). Por muito que o tradutor tente chegar a uma tradução precisa e fiel ao
original, acaba por se colocar entre o texto na LP e os limites linguísticos da LC, sendo
compelido a desconstruir e reformular o TP para que a sua tradução se “encaixe” na
língua e cultura de chegada. Deste modo, um texto não é traduzível ou intraduzível mas
sim um excerto aberto a reformulações criativas por parte do tradutor. No resultado
dessa tradução encontramos “uma materialização dos limites e das potencialidades do
[ato] de traduzir” (Zurbach, 2007: 184). As soluções encontradas passam, segundo John
Dryden por uma escolha entre metáfrase, paráfrase ou imitação, respetivamente:
tradução literal; tradução do ponto de vista do autor do texto original, com recurso a
quaisquer mudanças de expressões ou frases; e o abandono de forma e conteúdo,

50
resultando numa tradução mais livre e criativa, ou numa adaptação linguística e/ou
cultural (Dryden, 1680; apud Munday, 2001: 25).
À semelhança de Alexander Tytler, citado anteriormente, também Eugene Nida
sugere quatro requisitos básicos que devem estar presentes numa tradução, e os quais
me guiaram durante o trabalho: “ (1) making sense, (2) conveying the spirit and manner
of the original, (3) having a natural and easy form of expression, and (4) producing a
similar response” (Nida, 2000: 134). Não obstante, o autor admite que existirão
situações de confronto entre forma e significado, e que apesar de muitos tradutores
atribuírem um maior peso ao sentido do texto, é necessário que exista um equilíbrio
entre ambos:

[…] it is obvious that at certain points the conflict between content and form
(or meaning and manner) will be acute, and that one or the other must give way. […]
What one must attempt, however, is an effective blend of “matter and manner,” for
these two aspects of any message are inseparably united. (Nida, 2000: 134)

O autor distingue ainda dois tipos de equivalência, formal e dinâmica.


Equivalência formal relaciona-se com “the message itself, in both form and content”,
por outro lado, a equivalência dinâmica preocupa-se com “the relationship between
receptor and message [which] should be substantially the same as that which existed
between the original receptors and the message” (Nida, 2000: 129). A preocupação do
tradutor passa por alcançar um equilíbrio entre ambas que, em última instância, produza
um TC que transmita ao leitor a mesma sensação provocada pelo TP nos seus leitores:
“A translation should have the same virtues as the original, and inspire the same
response in its readers” (Paul, 2009: 1).
Friedrich Schleiermacher defende que existem apenas dois métodos de tradução:
“Either the translator leaves the author in peace, as much as possible, and moves the
reader towards him [domesticating]; or he leaves the reader in peace, as much as
possible, and moves the author towards him [foreignizing]” (Schleiermacher, 1813;
apud Venuti, 2008:19-20). O método de “domesticação” do texto tenta reduzir o texto
original aos valores culturais da LC, colocando em destaque a compreensão e o conforto
do leitor; por outro lado, o método de “estrangeirização” compele o leitor a “viajar” até
à LP, pressionando o TC a registar as diferenças culturais e linguísticas presentes no
texto original (Venuti, 2008: 19-20). Assim como Schleiermacher defende a

51
“estrangeirização” da tradução, “concerned with making the translated text a place
where a cultural other is manifested” (Ibidem), também Lawrence Venuti acredita que
“[t]he «splendor» of translation is its manipulation of these differences to “force the
reader from his linguistic habits and oblige him to move within those of the [foreign]
author” (Venuti, 2000: 14). Contudo o autor não deixa de salientar a importância de um
certo equilíbrio entre ambos os métodos:

A fluent translation is immediately recognizable and intelligible,


«familiarised», domesticated, not «disconcerting[ly]» foreign, capable of giving the
reader unobstructed «access to great thoughts», to what is «present in the original».
(Venuti, 2008: 5)

Na tradução de Babylon Revisited procurei manter-me fiel ao texto original,


nomeadamente naquilo que diz respeito à apresentação das personagens e às
caraterísticas presentes nos maneirismos e diálogos de cada uma; assim como às
representações dos lugares descritos na história, que esboçam o ambiente das cenas e
projetam a direção que a diegese irá seguir. Durante o processo, procurei também
alcançar uma tradução legível, fluída e natural que não levasse o leitor Português a
questionar a qualidade do texto devido à presença de marcas não caraterísticas da
Língua Portuguesa. Mais ainda, empenhei-me em manter o equilíbrio entre a utilização
de paráfrase e a tradução literal do texto, assim como a adaptação linguística e cultural,
aplicando consoante necessário todos os métodos ao longo da tradução. Contudo, devo
concluir que, em geral, nas situações de confronto linguístico e/ou cultural, preferi optar
pela preservação do sentido antes da forma, nunca desconsiderando o texto original.
“When literary works are translated, the translator’s job is to recreate this work
of art sensitively and seamlessly in such a way that it is true to the original, as well as
being equally enchanting, poetic and perceptive” (Paul, 2009: 1). É com as palavras de
Gill Paul que concluo a minha abordagem teórica e passo a apresentar, no seguinte
subcapítulo, o relatório de tradução de Babylon Revisited.

52
2.2. Reflexão sobre o trabalho de tradução

Após a abordagem das teorias de tradução que mais diretamente influenciaram e


guiaram o presente trabalho, proponho-me, de seguida, apresentar as dificuldades que
encontrei durante todo o processo de tradução e as escolhas e soluções que empreguei
perante os dilemas apresentados.
Antes de iniciar uma análise mais profunda devo referir que comecei por
normalizar a grafia do texto para se adaptar às normas da Língua Portuguesa e do texto
literário, substituindo os hífens por reticências quando necessário, ou seja, quando havia
a indicação de um pensamento ou ideia por terminar. Optei também por substituir as
aspas utilizadas no texto original para definir as falas e diálogos, pelos travessões
tipicamente utilizados em textos literários.
Em primeiro lugar irei abordar as formas de tratamento no texto original. No que
diz respeito às formas de cortesia em Inglês, tais como “Mr.”, resolvi traduzi-las para
Português (“Sr.”), uma vez que são muito pouco recorrentes no texto e só se referem ao
pronome masculino. Em relação às formas de tratamento entre personagens, optei na
maioria das vezes por manter um tratamento informal. Esta decisão dependeu de uma
análise ao tipo de relação e intimidade entre personagens, tal como afirma Mona Baker:

[…] in translating pronouns from English […], decisions may have to be made
along such dimensions as gender, degree of intimacy between participants, or whether
reference includes or excludes the addressee. (Baker, 2011: 105)

As únicas ocasiões em que resolvi manter um certo grau de formalidade são


aquelas em que Paul, o barman, participa em diálogos com Charlie. Ao dirigir-se à
personagem principal, Paul utiliza o pronome de tratamento “você”, ainda que este tipo
de tratamento não seja utilizado por qualquer outra personagem ao longo da história.
Contudo, optei por manter um tipo de tratamento informal quando é Charlie que se
dirige aos empregados do bar, com o objetivo de preservar a ligação próxima que a
personagem principal tinha com o bar no passado e que, de alguma forma, ainda é
percetível no conto. As relações entre as restantes personagens e Charlie eram de
imensa familiaridade o que me permitiu utilizar linguagem informal e fazer um
tratamento mais livre dos diálogos.

53
Babylon Revisited revelou-se um conto recheado de expressões idiomáticas e
fixas, o que me levou a considerar a questão do “significado” na tradução, uma vez que
geralmente este não é de fácil identificação mediante o sentido literal. Mais ainda,
segundo Susan Bassnett este tipo de expressões estão ligadas à cultura da LC (Bassnett,
2002: 30). Atendendo a que expressões fixas e idiomáticas podem não ter um
equivalente na língua de chegada foi necessário tomar decisões acerca da sua tradução.
Tal como afirma Mona Baker: “An idiom or fixed expression may have no equivalent in
the target language. […] Like single words, idioms and fixed expressions may be
culture-specific” (Baker, 2011: 71). Contudo, Baker não admite a impossibilidade da
sua tradução e oferece uma solução ao tradutor que implica a substituição de um
elemento próprio da cultura de partida por outro com o qual o leitor da LC se possa
identificar e que produza um impacto semelhante ao da expressão original: “The main
advantage of using this strategy is that it gives the reader a concept with which he or she
can identify, something familiar and appealing” (Baker, 2011: 29). Passarei, então, a
apresentar algumas das expressões idiomáticas e fixas com as quais tive mais
dificuldade durante a tradução e quais as soluções que encontrei.
A única expressão idiomática em BR que permitiu uma tradução de conteúdo e
forma foi “take a beating” (p. 18), que traduzi como “levar uma tareia”. Penso que o
sentido da expressão se traduz visto que se refere à posição em que Charlie se encontra
quando visita os Peters pela primeira vez, consciente de que antes de lhes falar em levar
Honoria consigo teria de ouvir tudo o que eles tinham para lhe dizer. Com determinados
idiomas foi possível utilizar uma das soluções sugeridas por Mona Baker: “Using an
idiom of similar meaning but dissimilar form” (Baker, 2011: 78). Nestas situações foi
possível encontrar uma expressão idiomática em Português com o mesmo significado
mas forma diferente, por exemplo “threw up the sponge” (p. 23), que segundo
TheFreeDictonary.com significa “aceitar a derrota; desistir”, e que traduzi como “deu o
braço a torcer”, que produz um efeito equivalente na LC. Traduzi a expressão “in the
grip of life” (p. 29) por “estavam a braços com a vida” uma vez que ambas exprimem
falta de controlo sobre a vida ou “lutar” pelo controlo da mesma. Finalmente, a
expressão “I can’t have her go to pieces” (p. 35), que traduzi como “não posso deixá-la
ir abaixo”, uma expressão fixa em Português utilizada comumente quando nos
referimos a não desistir e não ficar triste face a determinada situação.
Nas restantes expressões idiomáticas não foi possível a tradução para um idioma
na LC, por isso decidi fazer uma tradução literal do significado da expressão, tal como

54
sugere Mona Baker: “This strategy involves rendering only the literal meaning of an
idiom in a context that allows for a concrete reading of an otherwise playful use of
language” (Baker, 2011: 84). Para a expressão “You were going pretty strong” (p.2), em
referência ao antigo estilo de vida de Charlie, escolhi a tradução “ninguém o parava” e
traduzi “I hope you keep to it” (p. 7) como “Espero que continues assim”. A expressão
“for her mother’s sake” (p. 17) pode significar um pedido de alguém ou a realização de
uma ação para o bem de alguém (TheFreeDictonary.com). Sendo impossível saber qual
a intenção do autor decidi traduzir como “em consideração à sua mãe”, uma vez que a
história não nos fornece detalhes sobre quem tomou a iniciativa que determinou que
Honoria ficasse na guarda legal dos Peters.
Traduzi a expressão “run around with” (p. 18) como “a rodear-nos de”,
reativamente ao grupo de pessoas com o qual Charlie e Helen saíam antigamente em
Paris; “it’s within human possibilities I might go wrong” (p. 20) como “é uma
possibilidade humana que tenha uma recaída”, em referência à sobriedade de Charlie; e
“we were living along watching every ten francs” (p. 21) por “vivíamos à margem, e
poupávamos cada moeda de dez francos” numa tentativa de explicar que os Peters
viviam uma vida diferente de Charlie e “à margem” do dinheiro da bolsa.
A expressão “He hung on to himself” (p. 22) traduzi por “controlou-se”; “set
him up” (p. 23), por “acalmou-o”, uma vez que Charlie, que estava nervoso, se sentiu
melhor depois da sua caminhada; “just getting along” (p. 26), que segundo
TheFreeDictonary.com é uma expressão fixa e significa “fazer uma gerência económica
de sucesso razoável”, por “batalhávamos para pagar as contas”; e “They wormed your
name out of somebody” (p. 32) por “Arrancaram o vosso nome a alguém”, não
encontrando uma expressão melhor para explicar que, segundo Charlie, Lorraine e
Duncan conseguiram o endereço dos Peters através de uma certa manipulação.
Resolvi simplificar a tradução da expressão “out of earshot” (p. 32) traduzindo
como “para não ouvir”, uma vez que não existe uma expressão semelhante em
Português e uma tradução literal não resultaria, traduzindo apenas a intenção de Charlie
ao afastar-se da divisão onde Lincoln atendia o telefone. Traduzi “let it slide” (p. 35)
como “adiar”, perdendo aqui, na minha opinião, um pouco da intenção original uma vez
que, segundo TheFreeDictonary.com esta expressão implica que com o passar do tempo
a situação se vai deteriorando; e finalmente “take the chance of working her up” (p. 35)
que traduzi por “correr o risco de a perturbar”.

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Devo ainda fazer uma referência à expressão “Selling short” (p. 34) que se
utiliza em áreas económicas para descrever uma prática financeira (short-selling) que
consiste na venda de um ativo que não se possui, na esperança que o seu preço baixe e
com o objetivo de o comprar novamente e obter uma margem de lucro
(Investopedia.com). Contudo, com base no contexto da história, penso que a expressão
possui, também, um sentido idiomático que deriva da expressão “to sell someone short”,
que segundo TheFreeDictonary.com significa “subestimar o valor de alguma coisa ou
alguém”. Tal como defende Mona Baker, um dos desafios ao traduzir expressões
idiomáticas é a possibilidade de o tradutor se deparar com uma expressão que possui um
sentido não só literal, mas também idiomático: “An idiom may be used in the source
text in both its literal and idiomatic senses at the same time” (Baker, 2011: 72). Em BR
a expressão “Selling short” surge numa conversa entre Paul e Charlie. O barman
pergunta-lhe se foi esta prática que o arruinou, ao que Charlie responde “Algo do
género”. Penso que a resposta ambígua de Charlie nos dá a entender que aquilo a que
realmente devia ter dado mais valor era a sua família. Com vista a não perder qualidade
com a tradução para Português, decidi traduzir a expressão como “Desvalorização” que
funciona num sentido económico (desvalorização de ações), mas também num sentido
idiomático, da mesma forma que no texto original.
Em variadas ocasiões foi necessária a descodificação e recodificação do texto
com o objetivo de o adaptar à LC e à cultura portuguesa. Começo por apresentar a
minha tradução da expressão “something no more conscious than a flower” (p.12) que
optei por traduzir como “algo tão consciente como uma flor”. Algo a destacar nesta
tradução é a existência de uma manipulação e adaptação da mensagem para se encaixar
na LC, sendo que o processo utilizado neste excerto foi a Modulação, que segundo
Jean-Paul Vinay e Jean Darbelnet resulta numa adaptação da forma da mensagem,
consoante o seu ponto de vista:

Modulation is a variation of the form of the message, obtained by a change in


the point of view. This change can be justified when, although a literal, or even
transposed, translation results in a grammatically correct utterance, it is considered
unsuitable, unidiomatic or awkward in the TL. (Vinay & Darbelnet, 2000: 89)

Na minha tradução, a adaptação do texto passou por transformar uma frase


negativa na LP numa frase positiva na LC. Um outro exemplo de Modulação está na

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expressão “increase of paying” (p.9) que traduzi como “aumento do preço”. Ao invés de
arriscar numa tradução literal que resultasse num texto estranho e pouco adequado à LC,
resolvi alterar a classe gramatical do verbo “paying” para o transformar no substantivo
“preço”, utilizando também o método de Transposição de Vinay e Darbelnet, ao alterar
a classe gramatical da palavra na LP para uma outra classe gramatical na LC (Vinay &
Darbelnet, 2000: 88).
Tal como já referi anteriormente, em certas situações foi necessária uma
adaptação do TP à cultura da LC. Este método de tradução utiliza-se quando algo
mencionado na LP não é reconhecido na cultura da LC, e implica, segundo Jean-Paul
Vinay e Jean Darbelnet: “[creating] a new situation that can be considered as being
equivalent. Adaptation can, therefore, be described as a special kind of equivalence, a
situational equivalence” (Vinay & Darbelnet, 2000: 90-1). Segundo estes autores, o
tradutor deve procurar uma solução adequada ao contexto situacional do texto original,
à cultura da LC e que transmita o sentido do TP.
Ao traduzir BR deparei-me com a expressão “He bought her some eggs and
coffee” (p. 9) que inicialmente traduzi de forma literal. Contudo, ao rever o texto em
Português cheguei à conclusão que uma tradução direta não resulta uma vez que a
expressão “ovos e café” não faz transparecer o significado ao leitor português, acabando
por traduzir apenas por “Ele comprou-lhe o pequeno-almoço”. Outra expressão que
decidi adaptar à cultura portuguesa foi “whisky-and-soda” (p. 33) que traduzi como
“whisky-Cola”, uma vez que a tradução literal da expressão “soda” não é utilizada na
LC para nos referirmos a refrigerantes, ainda que esteja correta. Além disso, baseei a
minha decisão no facto de esta ser a bebida que mais tipicamente acompanha o whisky,
sendo incomum o uso da palavra “refrigerante” neste contexto.
O termo “sweat-shop”, relativamente à expressão “the sweat-shop at the Ritz”,
está definido no dicionário Merriam-Webster.com como um local onde as pessoas
trabalham durante longas horas (às vezes em más condições) e recebem baixos salários.
Segundo a base terminológica IATE.europe.eu, uma tradução literal deste termo seria
“fábrica clandestina”, algo que não funciona no TC e que não faz sentido no contexto de
um hotel (o Ritz). Posto isto, conclui que o local que mais provavelmente obrigava os
seus empregados a trabalhar durante horas excessivas seria o bar do Ritz, e uma vez que
é a personagem de Lorraine, que durante grande parte da história se encontra
embriagada, quem sugere a Charlie um encontro nesse lugar, traduzi a expressão
simplesmente como “o bar do Ritz”.

57
Devo ainda abordar uma outra dificuldade que senti durante o processo de
tradução no que diz respeito à adaptação do texto. Durante um diálogo entre Lorraine e
Charlie, em casa dos Peters, esta diz-lhe “See you so sel’om. Or solemn.” (p. 31). Ao
analisar o contexto situacional da sua conversa, é possível afirmar que Lorraine se
encontra embriagada e que confundiu as palavras “selom” e “solemn”, consideradas
parónimas, pois apesar de terem significados diferentes, possuem forma semelhante.
Contudo, acredito que estes termos não resultam de um “acidente” ou “coincidência”
mas que foram escolhidos por Fitzgerald com um objetivo específico, pois a
personagem de Lorraine além de admitir que gostaria de ver Charlie mais vezes, sugere
ter-se apercebido da sua mudança, julgando-o mais digno, ou “solemn”. Acabei por
traduzir os segmentos anteriores como “Pareces tão dis’tante. Ou distinto.” Apesar de
não ter sido possível encontrar dois termos parónimos em Português, com o mesmo
sentido das palavras do texto original, fiquei satisfeita com a solução que encontrei e
penso que a intenção do original transparece para o TC.
Lawrence Venuti defende que a tradução se realiza, na maior parte das vezes,
com recurso à paráfrase, explanando:

It works to reduce linguistic and cultural differences to a shared referent. Yet


the referent is clearly a core of meaning constructed by the translator and weighted
toward the receiving culture so as to be comprehensible there. (Venuti, 2000: 69)

Segundo Mona Baker existem diferentes tipos de paráfrase e um deles envolve a


tradução de segmentos frásicos recorrendo à utilização de palavras semelhantes às do
texto original na LC: “This strategy tends to be used when the concept expressed by the
source item is lexicalized in the target language but in a different form […]” (Baker,
2011: 36).
Na tradução de BR foi possível recorrer a este método em determinados
excertos, por exemplo “he must […] not shut any of her out of communication” (p. 11)
que traduzi como “não pode excluir qualquer comunicação da sua parte”; e “he had
wanted it to come like this” (p. 15) que traduzi como “queria que acontecesse desta
forma”, em referência ao momento em que Honoria exprime a sua vontade de ir viver
com Charlie. Traduzi a frase “She had built up all her fear of life into one wall and
faced it towards him” (p. 20) como “Tinha construído uma muralha com todos os medos
da vida e ergueu-a contra ele”. A minha decisão baseou-se no facto de a utilização da

58
expressão “apontar uma muralha” (tradução literal) em direção a alguém ser incomum e
até estranha, fazendo mais sentido a expressão “erguer uma muralha” contra alguém.
Para a frase “All of them felt their nerves straining” (p. 21) sugeri a tradução
“Todos sentiram o nervosismo aumentar”; e traduzi o excerto “he pulled his temper
down out of his face and shut it up inside him” (p. 21) como “manteve a calma na sua
expressão e calou a sua inquietude”. Nesta última tradução, tentei ser um pouco
inventiva, acrescentando um novo elemento no final da frase (“inquietude”) com o
objetivo de manter a componente artística e estética do texto original, pois tal como
afirma Jiří Levý: […] literary translation [is] both a reproductive and a creative labour
with the goal of equivalent aesthetic effect (Levý, 1963; apud Munday, 2001: 62).
Foi também necessário durante o processo de tradução recorrer a um método de
paráfrase um pouco diferente daquele que abordei anteriormente, e que Mona Baker
define como “Translation by paraphrase using unrelated words: If the concept expressed
by the source item is not lexicalized at all in the target language, the paraphrase strategy
can still be used in some contexts” (Baker, 2011: 38).
Nas situações que passo a apresentar, deparei-me com a impossibilidade de
tradução do conteúdo sem a necessidade de alterar drasticamente a forma original de
segmentos frásicos, como por exemplo “check herself” (p. 23) que traduzi como
“controlar-se”; “attaching them too closely” (p. 25), que em BR diz respeito ao amor de
um pai por um filho e que traduzi como “manter uma afeição imoderada”; e “it would
oil things” (p. 25) que traduzi como “as coisas seriam mais fáceis”. Outros exemplos
deste género incluem a frase “I never got ahead enough to carry anything but my
insurance” (p. 26), que partindo do contexto e da referência ao pagamento do seguro,
traduzi como “nunca ganhei o suficiente para pagar nada além do meu seguro”; e “it’s
always been in the back of my mind that I might see you” (p. 27) que traduzi como
“sempre esperei ver-te”. Finalmente, a frase “They don’t know about me down there”
(p. 3), na qual Charlie fala da ignorância dos seus atuais empregadores acerca das suas
ações passadas, e a qual traduzi como “Lá em baixo não sabem como era”.
Um último recurso à paráfrase envolveu a omissão, método que implica a
supressão de certas palavras ou expressões que não são essenciais para o texto: “[If it] is
not vital enough to the development of the text to justify distracting the reader with
lengthy explanations, translators can and often do simply omit translating the word or
expression in question” (Baker, 2011: 42).

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Posto isto, durante o trabalho de tradução de BR tomei a decisão de omitir certas
palavras e expressões que considerei prescindíveis no TC. Uma dessas expressões foi
“head barman” (p. 2), que optei por traduzir apenas por “barman”, uma vez que na
cultura portuguesa é incomum existir uma preocupação com este tipo de hierarquia. Na
frase “I’ll stick to it all right” (p. 2) optei por omitir a expressão “all right” e traduzir
apenas como “Vou cumpri-lo”; finalmente, traduzi o segmento “He heard […] the
ticking bell of a telephone receiver picked up” (p. 32) como “Ouviu […] alguém a pegar
no auscultador do telefone”, omitindo o tipo de som produzido (“ticking”), visto que
não é essencial para a compreensão do texto e porque acredito que iria apenas distrair o
leitor com informação desnecessária.
Mais ainda, na tradução do excerto “talked to a cross Béarnaise and to a buxom
Breton peasant” (p. 25-6), optei também por eliminar as proveniências das duas
mulheres, de modo a evitar a inserção de novas notas de rodapé e com o objetivo de
tornar o texto mais fluído, traduzindo a expressão como “falou com uma montanhesa
carrancuda e uma provinciana rechonchuda”. Deste modo, substituí a província francesa
de Béarn, uma região montanhosa, por um adjetivo que qualifica a mulher como
proveniente das montanhas e omiti a naturalidade da segunda mulher pois acredito que
o leitor Português não fica a perder com a tradução.
Segundo Vinay e Darbelnet, a tradução literal é possível em determinadas
situações e acontece quando o tradutor faz uma transferência direta da LP para a LC
(Vinay & Darbelnet, 2000: 86-8). Optei por utilizar o método de tradução direta com
algumas expressões do texto como por exemplo “encouraging stare” que decidi traduzir
como (p. 9) como “olhar encorajador”, pois acredito que uma tradução literal aqui
resulta perfeitamente. Contudo, tive alguma dificuldade em traduzir o segmento
“playing through the yellow oblongs that led to other rooms” (p. 5). O termo “oblong”
está definido no dicionário Merriam-Webster.com como “algo com quatro lados
paralelos, dois a dois, em que dois deles são mais compridos”. Penso que o autor está a
referir-se aos aros de passagem interiores de uma casa, mas uma vez que Fitzgerald
utilizou apenas o formato do aro para descrever o que seria, em Inglês, “door frames”,
optei por fazer uma tradução literal em português: “brincavam entre os quadrilongos
amarelos que conduziam a outras divisões”.
Nem sempre foi possível a tradução literal de determinados segmentos de texto,
uma vez que, tal como defende Walter Benjamin: “Fidelity in the translation of
individual words can almost never fully reproduce the meaning they have in the

60
original” (Benjamin, 2000: 21). Resolvi traduzir a expressão “blue hour” (p. 4) como
“crepúsculo” pois é da minha opinião que uma tradução literal (“hora azul”) não faria
muito sentido para o leitor português. Além disso, de acordo com o contexto da história,
sabemos que é final de tarde, o que me leva a acreditar que o termo escolhido se encaixa
melhor na LC. Finalmente, traduzi a expressão “evening clothes” (p. 8) como “roupas
de gala”, pois uma tradução literal resultaria em algo como “roupas de noite”, que para
o leitor da LC, além de não fazer muito sentido, visto que é uma expressão incomum,
tem um significado um pouco diferente e provavelmente menos elegante.
Numa tentativa de manter a naturalidade do original, esforcei-me por preservar o
vocabulário considerado como gíria ou calão, tal como defende Eugene Nida:

Some translators are successful in avoiding vulgarisms and slang, but fall into
the error of making a relatively straightforward message in the source language […]. In
such a translation little is left of the grace and naturalness of the original. (Nida, 2000:
138)

Contudo, optei por não manter o calão em todas as situações, como por exemplo
na expressão “damn well” (p. 6) que traduzi como “extremamente bem”, uma vez que a
gíria aqui é utilizada para expressar intensidade, tal como o que acontece com a frase
“You have to be damn drunk” (p. 8) que traduzi como “É preciso estar a cair de
bêbedo”. Ainda assim, e tal como referi anteriormente, decidi manter a gíria nas
expressões “poor as hell” (p. 13) e “I’m behaving damn well” (p. 20), que traduzi
respetivamente por “pobres como um raio” e “estou a comportar-me muito bem
caramba”, de modo a não omitir este tipo de vocabulário por completo.
No que diz respeito aos maneirismos da fala, procurei preservar as diferenças e
particularidades do diálogo de cada personagem, pois, tal como Eugene Nida, acredito
que cada participante deve ser representado com exatidão: “individuals must be
properly characterized by the appropriate selection and arrangement of words, so that
such features as social class or geographical dialect will be immediately evidente”
(Nida, 2000: 139). Em BR esta questão não se coloca na forma de diferentes dialetos;
contudo, foi necessário considerar as falas de Lorraine e Duncan em casa dos Peters.
Devido ao estado de embriaguez em que se encontra, o par não consegue evitar um
discurso mais arrastado, que contrai e/ou omite algumas letras. Tentei reproduzir no TC
o mesmo género de discurso, ao traduzir “Lorraine and I insist that all this shishi, cagey

61
business ‘bout your address got to stop” (p. 30) como “Lorraine e eu insistimos q’esta
coisa de chiquezas e secretismo sobre o teu endereço tem d’acabar”. Penso que devo
explanar também a tradução do termo “shishi”. Visto ser um termo bastante incomum,
apenas encontrei referências no UrbanDictonary.com, que o define como um adjetivo
que qualifica algo sofisticado ou chique. Contudo, partindo do contexto situacional
acredito que o termo é utilizado num sentido irónico, e que se justifica a sua tradução
por “chiquezas”, algo facilmente reconhecível para o leitor da LC.
Ainda em relação ao método de contração de palavras traduzi os segmentos
frásicos “Sure your cousins won’ mine. See you so sel’om. Or solemn.” (p. 31) como
“De certeza q’os teus primos não s’importam. Pareces tão distante. Ou distinto”. Deste
modo, penso que consegui dotar as personagens de uma certa “individuality and
personality as the author himself gave them in the original message” (Nida, 2000: 139).
Segundo Antoine Berman: “Every translation tends to be longer than the
original” (Berman, 2000: 290). Isto acontece porque o tradutor pode ver-se obrigado a
fornecer algum tipo de informação complementar ao leitor da LC para que este
compreenda a mensagem, e deve fazê-lo da maneira mais breve e clara possível:
“Knowledge, standards of comparison, classical background: all must be supplied by
the translator in his choice of words or in the briefest of introductions” (Cohen 1962;
apud Venuti, 2008: 25). Notas de rodapé, explicações, anotações e outros tipos de
informação complementar, devem ser utilizados pelo tradutor de forma bastante
moderada, pois a experiência do leitor deve ser fácil e fluída, tal como afirma Antoine
Berman: “Explicitations may render the text more «clear,» but they actually obscure its
own mode of clarity. The expansion is, moreover, a stretching, a slackening, which
impairs the rhythmic flow of the work” (Berman, 2000: 290).
Durante o processo de tradução de BR procurei recorrer o menos possível a
explicações e notas de rodapé. Contudo, decidi preservar as palavras francesas presentes
no texto original, pois acredito que contribuem para naturalidade e ambiente da história.
Visto que optei por manter os francesismos recorrentes em todo o conto, tornou-se
necessária a introdução de breves notas de rodapé com uma simples tradução dos
termos em Francês, o que facilitou a sua introdução em outras partes do texto. Para
oferecer uma melhor explicação da minha intenção, cito as palavras de Mona Baker:

Following the loan word with an explanation is very useful when the word in
question is repeated several times in the text. Once explained, the loan word can then be

62
used on its own; the reader can understand it and is not distracted by further lengthy
explanations. (Baker, 2011: 33)

Expressões e termos tais como “Snow Bird” (p.1) e “football weather” (p. 10),
mereceram também uma breve nota explicativa para facilitar a compreensão do texto
por parte do leitor da LC. O meu objetivo com este tratamento de empréstimos foi
transpor um pouco da cultura de partida para o TC, tal como defendem Jean-Paul Vinay
e Jean Darbelnet: “[…] borrowing is the simplest of all translation methods […] in order
to introduce the flavour of the source [language] (SL) culture into a translation, foreign
terms may be used” (Vinay & Darbelnet, 2000: 85).
Para concluir a minha reflexão sobre o processo de tradução de Babylon
Revisited, passo a citar Gill Paul, que numa breve explicação aborda todas as
dificuldades que um tradutor terá de enfrentar ao lidar com uma tradução literária e com
a qual me identifico no papel de tradutora:

Literary translation involves making endless choices, weighing up whether to


privilege meaning over music, rhythm over rules of grammar, spirit rather than letter of
text, in order to give a translation its distinctive voice, while conveying the many layers
of the original in a way that preserves the author’s intentions. (Paul, 2009: 2)

63
Conclusão

64
Fitzgerald surge como uma presença incontornável nas suas histórias. A sua
vertente de contista, ainda que motivada primeiramente pela necessidade financeira,
colocou-o entre os melhores escritores da sua geração e designou-o o símbolo e epítome
dos Loucos Anos 20. Babylon Revisited reflete, tal como grande parte das suas histórias,
um momento marcante na vida do autor, que exprime os seus medos, desilusões e
esperanças para o futuro através das suas personagens. Penso que a temática da
dualidade entre passado e presente que marca a história pode ser facilmente transportada
para a atualidade, fazendo de Babylon Revisited uma história intemporal.
Iniciei o trabalho de projeto com uma tradução do conto, para mais tarde fazer
uma pesquisa e análise extensa sobre o autor, a obra e o contexto, assim como as
metodologias que se relevaram essenciais no processo de tradução. Finda a análise já
referida, fiz várias revisões à tradução inicial com o objetivo de colmatar quaisquer
dificuldades iniciais que, sem um estudo e interpretação mais aprofundados do conto,
teria sido impossível ultrapassar. Diferentes estratégias de tradução produziram
diferentes resultados e ofereceram variadas opções de escolha na resolução de
problemas. Apesar das dificuldades que surgiram ao longo do processo, sobretudo no
que diz respeito à interpretação do texto original e ao típico conflito entre sentido e
forma, inerente à tradução literária, este foi um trabalho verdadeiramente estimulante e
instrutivo, e que me deu imenso prazer.
Traduzir Fitzgerald foi um desafio não só pelo facto de Babylon Revisited ser
uma história repleta de significados ambíguos e ideias implícitas, mas também por ser
um texto com imensas referências culturais e bastantes expressões francesas que me
obrigaram a trazer um pouco da cultura da LP para a LC. Contudo, penso que consegui
produzir uma tradução para Português com a qual os nossos leitores se podem
identificar e que se integra plenamente na cultura e Língua Portuguesa. Com este
trabalho, espero contribuir para a continuidade e propagação de traduções dos contos de
Fitzgerald em Portugal e, apesar de ficar ainda muito por escrever sobre o autor, espero
ter elucidado o leitor deste trabalho acerca da mente brilhante, atribulada e
constantemente dividida que hoje representa toda uma geração.

65
Referências Bibliográficas

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75
Apêndice 1

Tradução: “Babilónia Revisitada”

76
Babilónia Revisitada

I
— E onde está o Sr. Campbell? — perguntou Charlie.
— Viajou para a Suíça. O Sr. Campbell é um homem muito doente, Sr.
Wales.
— Lamento saber. E George Hardt? — inquiriu Charlie.
— Voltou para a América, em trabalho.
— E onde está o Snow Bird32?
— Esteve cá a semana passada. Em todo o caso, o amigo dele, Sr.
Schaeffer, está em Paris.
Dois nomes familiares da extensa lista de há um ano e meio. Charlie
rabiscou um endereço no seu caderno e arrancou a página.
— Se encontrar o Sr. Schaeffer, entregue-lhe isto — disse. — É o
endereço do meu cunhado. Ainda não escolhi um hotel.
Não estava desiludido por encontrar Paris tão vazia. A quietude no bar do
Hotel Ritz era estranha e portentosa. Já não era um bar Americano... ali sentia-se
educado, e não como se fosse o dono. O bar tinha regressado a França. Sentiu a
quietude desde que saiu do táxi e viu o porteiro, normalmente num frenesim de
atividade a esta hora, a falar com o chasseur33 perto da entrada dos funcionários.
Ao atravessar o corredor, ouviu uma única voz entediada, na casa de
banho das mulheres, em tempos clamorosa. Quando se dirigiu ao bar caminhou
sobre os seis metros de carpete verde com os olhos fixados em frente como era
hábito; e então, com o pé firme no corrimão, virou-se e examinou o espaço, e no
canto encontrou um único par de olhos que espreitava atrás de um jornal. Charlie
perguntou pelo barman, Paul, que nos últimos dias do mercado em alta vinha
trabalhar num carro personalizado... ainda assim, desembarcava com conveniente
subtileza na esquina mais próxima. Mas Paul estava na sua casa de campo hoje e
Alix informava-o.
— Não, não quero mais — disse Charlie — hoje em dia vou com calma.
32
Indivíduo viciado em cocaína.
33
Paquete; moço de recados.

77
Alix felicitou-o:
— Há dois anos ninguém o parava.
— Vou cumpri-lo — Charlie assegurou-o. — Tenho cumprido há mais de
um ano e meio.
— Sabe como estão as coisas na América?
— Há meses que não vou à América. Estou a tratar de negócios em Praga,
a representar duas empresas. Lá em baixo não sabem como eu era.
Alix sorriu.
— Lembra-se da noite do jantar de despedida de solteiro de George
Hardt? — disse Charlie. — Já agora, o que é feito de Claude Fessenden?
Alix baixou a voz em modo de confidência:
— Está em Paris, mas já não vem aqui. Paul não o permite. Acumulou
uma dívida de trinta mil francos, ficou a dever todas as suas bebidas e almoços, e
normalmente o jantar, durante mais de um ano. E quando Paul finalmente lhe
disse que tinha de pagar, deu-lhe um cheque careca.
Alix abanou a cabeça tristemente.
— Não entendo, um camarada tão elegante. Agora está todo inchado… —
As suas mãos gesticularam a forma de uma maçã carnuda.
Charlie observava um grupo de homossexuais berrantes que se instalavam
num canto.
— Nada os afeta — pensou. — Ações sobem e descem, pessoas vadiam
ou trabalham, mas eles vivem para sempre. Aquele sítio oprimia-o. Pediu os
dados e apostou uma bebida com Alix.
— Ficará muito tempo Sr. Wales?
— Durante quatro ou cinco dias para ver a minha menina.
— Oh! Tem uma menina?
Lá fora, os sinais fúmeos de vermelho-fogo, azul-gás e verde-fantasma
brilhavam através da chuva tranquila. A tarde corria longa e as ruas estavam
cheias de movimento; os bistros34 brilhavam. Na esquina de Boulevard des
Capucines apanhou um táxi. Place de la Concorde movia-se num rosa majestoso;

34
Bares; restaurantes.

78
atravessaram o lógico Sena, e Charlie sentiu a súbita qualidade provinciana da
margem esquerda do rio.
Charlie dirigiu o táxi para Avenue de l’Opera, que ficava fora do seu
caminho. Mas queria ver o crepúsculo espalhar-se sobre a magnífica fachada, e
imaginar que as buzinas dos táxis, que tocavam incessantemente as primeiras
notas de La Plus que Lent, eram as trombetas do Segundo Império. Estavam a
fechar as grades de ferro à frente da livraria Brentano’s, e já havia pessoas a
jantar atrás da pequena cerca viva aparada e burguesa do Duval’s. Nunca tinha
comido num restaurante realmente barato em Paris. Jantar com cinco pratos,
quatro francos e cinquenta, dezoito cêntimos, vinho incluído. Por alguma
estranha razão gostava de o ter feito.
Quando chegaram à margem esquerda do Sena e sentiu o seu súbito
provincialismo, pensou, “Estraguei esta cidade aos meus olhos. Não me apercebi,
mas os dias vinham um atrás de outro, e passaram dois anos, e tudo desapareceu,
eu desapareci.”
Tinha trinta e cinco anos, e boa aparência. A expressividade Irlandesa do
seu rosto era nivelava por uma ruga profunda entre os seus olhos. Ao tocar a
campainha do seu cunhado na Rue Palatine, a ruga afundou-se até franzir as
sobrancelhas; sentiu um aperto no estômago. Por detrás da empregada que abriu
a porta lançou-se uma menina encantadora de nove anos que gritou — Papá! — e
saltou, debatendo-se como um peixe, até aos seus braços. Agarrou uma das
orelhas dele para fazer girar a sua cabeça e colocou a sua bochecha contra a dele.
— Meu docinho — disse ele.
— Oh papá, papá, papá, papá, paizinho, paizinho, paizinho!
Arrastou-o até ao salão, onde esperava a família, um rapaz e uma rapariga
da idade da sua filha, a sua cunhada e o marido dela. Cumprimentou Marion num
tom de voz cuidado para evitar entusiasmo simulado ou desprazer, mas a sua
resposta foi francamente tépida, embora tenha minimizado a sua expressão de
inalterável desconfiança ao focar a atenção na filha dele. Os dois homens
apertaram mãos de forma amigável e Lincoln Peters pousou a sua no ombro de
Charlie por um instante.

79
O espaço era acolhedor e confortavelmente Americano. As três crianças
movimentavam-se intimamente com o espaço, e brincavam entre os quadrilongos
amarelos que conduziam a outras divisões; o ânimo das seis da tarde
pronunciava-se com o estalar ardente do fogo e os sons da atividade Francesa na
cozinha. Mas Charlie não relaxava; o seu coração colocava-se rígido no seu
corpo e era da sua filha que retirava confiança, a qual de vez em quando se
aproximava dele, e segurava nos seus braços a boneca que ele tinha trazido.
— Mesmo muito bem — declarou na sua resposta a Lincoln. — Lá
existem muitos negócios inativos, mas estamos melhor que nunca. Na verdade,
extremamente bem. Vou trazer a minha irmã da América no próximo mês para
cuidar da minha casa. O meu rendimento no ano passado foi maior do que
quando tinha dinheiro. Sabes, os Checos…
A sua ostentação tinha um objetivo específico; mas após um instante, ao
ver uma leve impaciência nos olhos de Lincoln, mudou o assunto:
— Os teus filhos são encantadores, muito bem-educados, têm boas
maneiras.
— Também achamos a Honoria uma excelente menina.
Marion Peters regressou da cozinha. Era uma mulher alta com olhos
preocupados, que em tempos possuíra um refrescante encanto Americano, algo
que Charlie nunca conseguiu ver. Ficava sempre surpreendido quando as pessoas
falavam de como costumava ser bonita. Desde o início existia uma antipatia
instintiva entre eles.
— Bem, o que pensas da Honoria? — perguntou Marion.
— É maravilhosa. Fiquei surpreso com o quanto cresceu em dez meses.
Todas as crianças parecem estar muito bem.
— Há um ano que não precisamos de chamar um médico. Gostas de estar
de volta a Paris?
— É muito curioso ver tão poucos Americanos por aqui.
— Acho encantador — disse Marion com veemência. — Pelo menos
agora podemos entrar numa loja sem que assumam que somos milionários.
Sofremos tal como toda a gente, mas no geral é bem mais agradável.

80
— Mas foi bom enquanto durou — disse Charlie. — Éramos como
realeza, quase infalíveis, com uma espécie de magia à nossa volta. Hoje à tarde
no bar — tropeçou, ao aperceber-se do seu erro — não encontrei ninguém
conhecido.
Ela olhou-o intensamente. — Pensei que já te tinhas fartado de bares.
— Só fiquei um minuto. Posso beber um copo por dia, mais nada.
— Não queres um cocktail antes do jantar? — perguntou Lincoln.
— Só bebo um copo por dia, e hoje já bebi.
— Espero que continues assim — disse Marion.
O seu desagrado era evidente na frieza com que falava, mas Charlie
apenas sorria; tinha planos mais importantes. A sua agressividade dava-lhe uma
vantagem, e ele sabia que o melhor era esperar. Queria que fossem eles a iniciar a
conversa sobre o que sabiam tê-lo trazido a Paris.
Durante o jantar não conseguia decidir se Honoria se parecia mais com ele
ou com a sua mãe. Felizarda se não combinou os traços de ambos que os tinham
levado à desgraça. Atravessou-o uma enorme onda de protecionismo. Pensava
saber o que fazer por ela. Acreditava em caráter; queria voltar atrás toda uma
geração e acreditar novamente no caráter como elemento eternamente valioso.
Tudo o resto se esgotava.
Saiu pouco depois do jantar, mas não foi embora. Tinha curiosidade em
ver Paris à noite com um olhar mais claro e judicioso do que em dias passados.
Comprou um strapontin35 para o Casino e assistiu aos arabescos de chocolate de
Josephine Baker36.
Uma hora mais tarde saiu e caminhou até Montmartre, passou pela Rue
Pigalle e passeou até Place Blanche. A chuva tinha parado e havia algumas
pessoas com roupas de gala que desembarcavam de táxis em frente a cabarés, e
cocottes37 que circulavam sozinhas ou em pares, e muitos Negros. Passou por
uma porta iluminada que emitia música, e parou com a sensação de
familiaridade; era o Bricktop’s onde se tinha separado de muitas horas e muito

35
Lugar; bilhete.
36
Artista afro-americana que ganhou fama em Paris durante os anos 20 e 30.
37
Prostitutas.

81
dinheiro. Algumas portas adiante encontrou outro rendezvouz antigo e espreitou
para dentro imprudentemente. De imediato uma orquestra irrompeu em música,
um par de dançarinas profissionais começou a dançar e o maître d'hotel38
precipitou-se até ele, a gritar — A multidão está a chegar, senhor! — Mas ele
retirou-se rapidamente.
“É preciso estar a cair de bêbedo” pensou.
O Zelli’s estava fechado, os hotéis baratos que o rodeavam eram sombrios
e sinistros; na Rue Blanche, onde havia mais luz, conversava um grupo de
habitantes locais. Poet’s Cave tinha desaparecido, mas as bocas enormes do Café
of Heaven e Café of Hell ainda bocejavam... devoravam até, enquanto ele
observava, o escasso conteúdo de um autocarro de turistas - um Alemão, um
Japonês, e um casal de Americanos que o olharam de relance com medo nos
olhos.
Lá se vai o esforço e engenho de Montmartre. Todo o atendimento ao
vício e ao desperdício atingia uma escala completamente infantil, e subitamente
compreendeu o significado da palavra “dissipar” - dissipar em pleno ar; fazer
nada de alguma coisa. Durante a madrugada toda a deslocação de um lugar para
outro era um enorme salto humano, um aumento do preço pelo privilégio de um
movimento cada vez mais lento.
Lembrou-se das notas de mil francos oferecidas à orquestra por apenas
uma atuação, notas de cem francos lançadas a um porteiro por chamar um táxi.
Mas não tinham sido oferecidas para nada.
Tinham sido oferecidas, até a quantia mais largamente desperdiçada, como
uma oferenda ao destino para que não se lembrasse das coisas que mais valem a
pena lembrar, as coisas que agora iria lembrar-se para sempre... a sua filha
afastada do seu controlo, a sua mulher que escapou para uma sepultura em
Vermont.

38
Mordomo.

82
No brilho de uma brasserie39 uma mulher falou com ele. Ele comprou-lhe
o pequeno-almoço, e depois, esquivando o seu olhar encorajador, deu-lhe uma
nota de vinte francos e apanhou um táxi para o seu hotel.

II
Acordou para um agradável dia de outono...tempo de football40. A
depressão de ontem tinha desaparecido e ele gostava das pessoas nas ruas. Ao
meio-dia estava sentado em frente a Honoria no Le Grand Vatel, o único
restaurante que não o fazia lembrar jantares de champanhe e longos almoços que
começavam às duas e acabavam num crepúsculo vago e turvo.
— Então, que tal uns legumes? Não devias comer legumes?
— Bem, devia.
— Há épinards, chou-fleur, cenouras e haricots41.
— Quero chou-fleur.
— Não queres mais um legume?
— Só costumo comer um ao almoço.
O empregado de mesa fingia um gosto desmedido por crianças. “Qu’elle
est mignonne la petite? Elle parle exactement comme une Française42.”
— E sobremesa? Decidimos mais tarde?
O empregado desapareceu. Honoria olhou com expetativa para o pai.
— O que vais fazer?
— Primeiro, vamos à loja de brinquedos na Rue Saint-Honoré comprar
tudo o que quiseres. E depois vamos ao vaudeville no Empire.
Ela hesitou.
— Gosto da ideia do vaudeville, mas não da loja de brinquedos.
— Porque não?
— Bem, ofereceste-me esta boneca — tinha-a com ela. — E tenho
imensas coisas. E já não somos ricos, pois não?
39
Cervejaria.
40
Com a chegada do outono inicia-se uma nova época de futebol americano.
41
Espinafres, couve-flor, feijões.
42
“Que menina tão bonita. Fala exatamente como uma Francesa.”

83
— Nunca fomos. Mas hoje podes ter tudo o que quiseres.
— Está bem — concordou resignada.
Quando a sua mãe era viva e havia uma ama Francesa costumava ser
rigoroso; agora estendia-se, tentava alcançar uma nova tolerância; tem de ser os
dois pais para ela e não pode excluir qualquer comunicação da sua parte.
— Quero conhecer-te melhor — disse ele seriamente. — Primeiro, deixe
que me apresente. O meu nome é Charles J. Wales, de Praga.
— Oh, papá! — A sua voz estalou com riso.
Ele insistiu, e ela aceitou o papel de imediato:
— E quem é a menina, por favor?
— Honoria Wales, Rue Palatine, Paris.
— Casada ou solteira?
— Não, não sou casada. Solteira.
Ele apontou para a boneca.
— Mas vejo que tem uma filha, madame.
Incapaz de a deserdar, levou-a ao coração e pensou rapidamente:
— Sim, já fui casada, mas não sou casada agora. O meu marido morreu.
— E qual é o nome da criança? — Ele continuou rapidamente.
— Simone. Como a minha melhor amiga da escola.
— Estou muito contente por te estares a sair tão bem na escola.
— Estou em terceiro lugar este mês — gabou-se. — A prima Elsie só está
no décimo-oitavo lugar, e Richard está mais para o fim.
— Gostas do Richard e da Elsie, não gostas?
— Oh, sim. Gosto muito do Richard e gosto dela mais ou menos.
Com cautela e descontração perguntou:
— E a Tia Marion e o Tio Lincoln... de qual gostas mais?
— Oh, do Tio Lincoln, acho eu.
Estava cada vez mais consciente da sua presença. Quando entraram,
seguia-os um murmúrio de “...adorável”, e agora as pessoas na mesa ao lado
dobravam sobre ela todos os seus silêncios, olhando fixamente como se fosse
algo tão consciente como uma flor.

84
— Porque não vivo contigo? — perguntou ela subitamente. — Porque a
mamã morreu?
— Tens de ficar aqui e aprender mais Francês. Teria sido difícil para o
papá cuidar tão bem de ti.
— Já quase não preciso que tomem conta de mim. Faço tudo sozinha.
Ao sair do restaurante um homem e mulher saudaram-no subitamente.
— Ora, o velho Wales!
— Olá, Loraine... Dunc.
Súbitos fantasmas do passado: Duncan Schaeffer, um amigo da
universidade. Lorraine Quarrles, uma loira pálida e encantadora de trinta anos;
uma na multidão que o ajudou a transformar meses em dias nos tempos pródigos
de há três anos.
— O meu marido não conseguiu vir este ano — disse, em resposta à sua
pergunta. — Estamos pobres como um raio. Por isso deu-me duzentos por mês e
disse-me para me desenrascar... Esta é a tua filha?
— Que tal voltarmos a entrar e sentar-nos? — perguntou Duncan.
— Não podemos. — Estava contente por ter um pretexto. Como sempre,
sentia a atração apaixonada e provocante de Lorraine, mas agora o seu próprio
ritmo era diferente.
— Bem, e que tal um jantar? — perguntou ela.
— Não posso. Dêem-me o vosso endereço e eu telefono-vos.
— Charlie, acredito que estás sóbrio — disse ela com severidade. —
Acredito honestamente que ele está sóbrio, Dunc. Dá-lhe um beliscão e vê se está
sóbrio.
Charlie indicou com a cabeça para Honoria. Ambos se riram.
— Qual é o teu endereço? — perguntou Duncan ceticamente.
Ele hesitou, relutante em dar o nome do seu hotel.
— Ainda não estou instalado. É melhor ser eu a telefonar. Vamos ver o
vaudeville ao Empire.
— Isso! É isso que quero fazer — disse Lorraine. — Quero ver palhaços e
acrobatas e malabaristas. É isso mesmo que vamos fazer, Dunc.

85
— Temos de fazer um recado primeiro — disse Charlie. — Talvez nos
encontremos lá.
— Está bem, seu snobe… Adeus, linda menina.
— Adeus.
Honoria acenou educadamente.
De certo modo, um encontro indesejado. Gostavam dele porque estava
funcional, porque estava sério; queriam vê-lo, porque agora era mais forte do que
eles, porque queriam extrair algum tipo de sustento da sua força.
No Empire, Honoria recusou orgulhosamente sentar-se sobre o casaco
dobrado do seu pai. Já era uma pessoa com o seu próprio código, e Charlie ficava
cada vez mais absorvido pelo desejo de colocar parte de si nela, antes que
cristalizasse por completo. Era escusado tentar conhecê-la em tão pouco tempo.
Entre atos, encontraram-se com Duncan e Lorraine na entrada, onde a
banda tocava.
— Bebes um copo?
— Pode ser, mas não no bar. Vamos para uma mesa.
— O pai perfeito.
Distraído da conversa com Lorraine, Charlie observava os olhos de
Honoria sair da mesa, e seguia-os com melancolia pelo espaço, imaginando o que
viam. Cruzou-se com o seu olhar e ela sorriu. — Gostei daquela limonada —
disse.
O que é que ela disse? O que é que ele esperava? Mais tarde, na viagem de
táxi para casa, puxou-a para si até a cabeça dela repousar sobre o seu peito.
— Querida, costumas pensar na tua mãe?
— Sim, às vezes — respondeu vagamente.
— Não quero que te esqueças dela. Tens uma fotografia dela?
— Sim, penso que sim. De qualquer maneira, a Tia Marion tem. Porque
não queres que me esqueça dela?
— Ela amava-te muito.
— Eu também a amava.
Ficaram em silêncio por um momento.

86
— Papá, quero ir viver contigo — disse subitamente.
O seu coração saltou; queria que acontecesse desta forma.
— Não estás feliz?
— Sim, mas tu és a pessoa que amo mais. E eu sou a pessoa que amas
mais, não sou, agora que a mamã morreu?
— Claro que és. Mas não vai ser assim para sempre, querida. Vais crescer,
conhecer alguém da tua idade, casar com ele e vais esquecer que alguma vez
tiveste um papá.
— Sim, isso é verdade — concordou tranquilamente.
Ele não entrou. Voltaria às nove horas e queria estar descansado e
preparado para o que teria de dizer nessa altura.
— Quando estiveres lá dentro em segurança, vai até àquela janela.
— Está bem. Adeus, paizinho, paizinho, paizinho, paizinho.
Esperou no escuro da rua até ela aparecer, calorosa e brilhante, na janela
de cima e beijou os seus dedos para a noite lá fora.

III
Estavam à espera. Marion estava sentada atrás do serviço de café com um
vestido preto formal e respeitável que dava a ligeira impressão de luto. Lincoln
andava de um lado para o outro com a energia de alguém que já tinha estado a
falar. Estavam tão ansiosos como ele para falar no assunto. Charlie abordou-o
quase de imediato:
— Suponho que saibam do que vos quero falar... a verdadeira razão
porque vim a Paris.
Marion brincava com as estrelas pretas do seu colar e franzia o rosto.
— Estou muito ansioso por ter um lar — prosseguiu. — E estou muito
ansioso por ter Honoria lá também. Estou agradecido por cuidarem da Honoria
em consideração à sua mãe, mas as coisas mudaram — hesitou e então continuou
com mais rigidez — mudaram de forma radical comigo, e quero pedir-vos que

87
reconsiderem o assunto. Seria insensato negar que há três anos me comportava
mal...
Marion lançou-lhe um olhar severo.
— ... mas isso acabou. Como vos tinha dito, há mais de um ano que bebo
apenas um copo por dia, e bebo esse copo deliberadamente, para que a ideia do
álcool não cresça demais na minha imaginação. Entendem?
— Não — disse Marion sucintamente.
— É uma espécie de desafio que propus a mim mesmo. Mantém tudo em
proporção.
— Eu entendo — disse Lincoln. — Não queres admitir que ainda te atrai.
— Algo do género. Às vezes esqueço-me e não bebo. Mas tento beber. De
qualquer maneira, não me posso dar ao luxo de beber na minha posição. As
pessoas que represento estão muito satisfeitas com o meu trabalho, e vou trazer a
minha irmã de Burlington para cuidar da minha casa, e quero muito ter a Honoria
também. Mesmo quando a sua mãe e eu estávamos com problemas nunca
deixamos que nada do que aconteceu a prejudicasse. Sei que ela gosta de mim e
sei que consigo cuidar bem dela e... bem, é isso. O que acham?
Sabia que agora teria de levar uma tareia. Prolongar-se-ia uma ou duas
horas, e seria difícil, mas se do seu inevitável ressentimento moldasse a atitude
casta do pecador arrependido, poderia vencer a discussão.
Mantém a calma, pensava. Não queres justificar-te. Queres a Honoria.
Lincoln foi o primeiro a falar:
— Temos discutido o assunto desde que recebemos a tua carta no mês
passado. É um prazer ter Honoria aqui. É uma menina muito querida, e estamos
contentes por poder ajudá-la, mas claro que não é essa a questão...
Marion interrompeu subitamente.
— Durante quanto tempo vais continuar sóbrio, Charlie? — perguntou.
— Permanentemente, espero.
— Como é que podemos contar com isso?

88
— Vocês sabem que nunca bebi em excesso até abandonar o negócio e vir
para aqui sem nada para fazer. Depois disso Helen e eu começamos a rodear-nos
de...
— Por favor deixa a Helen fora disto. Não aguento ouvir-te falar dela
dessa forma.
Olhou-a fixamente de forma sombria; nunca teve a certeza sobre como era
a relação entre as irmãs.
— O meu vício apenas durou um ano e meio... desde que viemos para aqui
até ao meu... colapso.
— Foi tempo suficiente.
— Foi tempo suficiente — concordou.
— A minha obrigação é inteiramente para com Helen. Tento pensar no
que ela teria desejado que fizesse. Francamente, desde a noite em que fizeste
aquela coisa horrível deixaste de existir para mim. Não o consigo evitar. Ela era
minha irmã — disse ela.
— Sim.
— Na altura da sua morte pediu-me para cuidar de Honoria. Podia ter sido
diferente, se nessa altura não estivesses num sanatório.
Ele não tinha resposta.
— Nunca na vida serei capaz de esquecer aquela manhã em que Helen
bateu à minha porta, completamente encharcada e a tremer, e disse que a tinhas
trancado lá fora.
Charlie segurou-se nos braços da cadeira. Isto era mais difícil do que
estava à espera; queria lançar-se numa longa expostulação e explicação, mas
apenas disse:
— A noite em que a tranquei lá fora...
— Não me sinto capaz de falar sobre isso novamente — ela interrompeu.
Depois de um momento de silêncio Lincoln disse:
— Estamos a afastar-nos do assunto. Queres que Marion renuncie a sua
tutela legal e te dê Honoria. Penso que o mais importante para ela é saber se pode
ou não confiar em ti.

89
— Não culpo a Marion — disse Charlie lentamente — mas penso que
pode ter plena confiança em mim. Comportava-me bem até há três anos. Claro, é
uma possibilidade humana que tenha uma recaída a qualquer altura. Mas se
esperarmos muito mais tempo perco a infância de Honoria e a minha
oportunidade de um lar.
Abanou a cabeça. — Vou simplesmente perdê-la, não percebem?
— Sim, eu percebo — disse Lincoln.
— Porque não pensaste nisto antes? — perguntou Marion.
— Acho que pensei, algumas vezes, mas Helen e eu estávamos com
problemas. Quando consenti com a tutela, estava deitado de costas num sanatório
e a bolsa tinha-me limpado por completo. Sabia que tinha agido mal, e pensei
que desde que isso trouxesse alguma paz a Helen, concordaria com qualquer
coisa. Mas agora é diferente. Estou funcional, estou a comportar-me muito bem
caramba, até...
— Tento na língua, por favor — disse Marion.
Olhou para ela, assustado. Com cada comentário tornava-se mais e mais
evidente a força do seu desagrado. Tinha construído uma muralha com todos os
medos da vida e ergueu-a contra ele. A sua repreensão foi possivelmente o
resultado de um problema com o cozinheiro várias horas antes. Charlie sentia-se
cada vez mais alarmado ao pensar em deixar Honoria naquela atmosfera de
hostilidade contra ele; mais cedo ou mais tarde iria notar-se, numa palavra aqui,
num abanar de cabeça ali, e alguma daquela desconfiança seria irrevogavelmente
implantada em Honoria. Mas manteve a calma na sua face e calou a sua
inquietude; fez valer o seu ponto de vista, pois Lincoln percebeu como era
absurdo o comentário de Marion e perguntou-lhe delicadamente desde quando se
opunha à palavra “caramba”.
— Há mais uma coisa — disse Charlie. — Agora posso dar-lhe certos
privilégios. Vou levar uma governanta Francesa para Praga comigo. Aluguei um
novo apartamento...
Parou, ao perceber o seu disparate. Não podia esperar que aceitassem com
indiferença o facto de o seu rendimento ser novamente o dobro do deles.

90
— Suponho que lhe possas oferecer mais luxos do que nós — disse
Marion. — Quando andavas a deitar dinheiro fora nós vivíamos à margem, e
poupávamos cada moeda de dez francos... Suponho que o voltarás a fazer.
— Oh, não — disse ele. — Eu aprendi. Sabem, trabalhei arduamente
durante dez anos... até ter sorte na bolsa, tal como muitas outras pessoas. Muita
sorte. Não voltará a acontecer.
Fez-se um longo silêncio. Todos sentiram o nervosismo aumentar, e pela
primeira vez num ano Charlie queria uma bebida. Agora tinha a certeza que
Lincoln Peters queria que ficasse com a sua filha.
Marion estremeceu de súbito; parte dela viu que agora os pés de Charlie
estavam assentes na Terra, e o seu próprio instinto maternal reconheceu a
naturalidade do seu desejo; mas viveu durante muito tempo com um
preconceito... um preconceito fundado numa curiosa descrença na felicidade da
sua irmã, e que, no choque de uma noite terrível, se transformou em ódio por ele.
Tudo tinha acontecido numa fase da sua vida em que o desânimo causado por
problemas de saúde e circunstâncias adversas a obrigaram a acreditar na vilania
tangível e num vilão tangível.
— Não consigo evitar o que penso! — gritou subitamente. — Até que
ponto foste responsável pela morte de Helen, não sei. É algo que terás de ajustar
com a tua própria consciência.
Percorreu-o uma corrente elétrica de agonia; por um instante quase se
levantou, na sua garganta ecoava algo por dizer. Controlou-se por um momento,
outro momento.
— Espera um pouco — disse Lincoln com desconforto. — Nunca pensei
que fosses responsável por isso.
— Helen morreu devido a problemas de coração — disse Charlie
surdamente.
— Sim, problemas de coração — Marion falou como se para ela a frase
tivesse um significado diferente.
Depois, no silêncio que seguiu a sua irrupção, ela viu-o de forma clara e
soube que de alguma maneira ele tinha conseguido controlar a situação. Ao olhar

91
para o seu marido, não encontrou ajuda, e tão abruptamente como se o assunto
não tivesse importância, deu o braço a torcer.
— Faz o que quiseres! — gritou, ao saltar da cadeira. — Ela é tua filha.
Não vou atravessar-me no teu caminho. Acho que se fosse minha filha preferia
vê-la... — conseguiu controlar-se. — Vocês os dois decidam. Não aguento isto.
Estou maldisposta. Vou para a cama.
Saiu apressadamente da sala; após um momento Lincoln disse:
— Foi um dia difícil para ela. Sabes que tem uma opinião muito... — a sua
voz era quase apologética. — Quando uma mulher mete uma ideia na cabeça.
— Claro.
— Vai correr tudo bem. Acho que agora ela percebe que tu... podes
acomodar a criança, e por isso não podemos impedir-te a ti ou Honoria.
— Obrigado, Lincoln.
— É melhor ir ver como ela está.
— Eu vou embora.
Ainda estava a tremer quando chegou à rua, mas uma caminhada pela Rue
Bonaparte até aos quais43 acalmou-o, e enquanto atravessava o Sena, pelas
lâmpadas do quai, descansado e revigorado, sentiu-se exultante. Mas de volta ao
seu quarto não conseguia dormir. A imagem de Helen assombrava-o. Helen a
quem tinha amado tanto até começarem a abusar insensatamente do amor um do
outro, rasgando-o em pedaços. Naquela terrível noite de fevereiro da qual Marion
se recordava tão vivamente, uma pequena discussão prolongou-se durante horas.
Houve uma cena no Florida, e depois ele tentou levá-la para casa, e então ela
beijou o jovem Webb numa mesa; além disso havia também o que ela tinha dito
histericamente. Quando chegou a casa sozinho rodou a chave na fechadura,
enraivecido. Como podia saber que ela chegaria sozinha uma hora mais tarde,
que haveria uma tempestade de neve na qual ela vaguearia em chinelos,
demasiado confusa para chamar um táxi? Depois o rescaldo, ela escapar à
pneumonia por um milagre, e todo o horror que o acompanhou. Estavam
“reconciliados”, mas era o início do fim, e Marion, que o viu com os seus

43
Cais.

92
próprios olhos e o imaginava como uma de muitas cenas do martírio da sua irmã,
nunca esqueceu.
Rever o que aconteceu reaproximou-o de Helen, e na suavidade da luz
branca que surge durante o sono leve de manhã falou com ela de novo. Ela disse-
lhe que tinha toda a razão acerca de Honoria e que queria que ela ficasse com ele.
Disse que estava contente por ele estar melhor e por se comportar. Disse muitas
outras coisas... coisas muito amigáveis... mas estava num baloiço com um vestido
branco, e balançava cada vez mais e mais depressa, de maneira que no final não
conseguiu ouvir claramente tudo o que ela disse.

IV
Sentia-se feliz quando acordou. A porta do mundo estava aberta de novo.
Fazia planos, imaginava cenários, futuros com Honoria e ele, mas de súbito ficou
triste, ao recordar todos os planos que tinha feito com Helen. Ela não tinha
planeado morrer. O que importa é o presente... trabalho para fazer e alguém para
amar. Mas não para amar demasiado, pois ele sabia o dano que um pai pode
causar a uma filha ou uma mãe a um filho ao manter uma afeição imoderada:
mais tarde, no mundo lá fora, a criança iria procurar no cônjuge a mesma ternura
cega e, face à probabilidade de não a encontrar, voltar-se contra a vida e o amor.
Era mais um dia fresco e luminoso. Telefonou para o banco onde Lincoln
Peters trabalhava e perguntou-lhe se podia contar em levar Honoria para Praga
consigo. Lincoln concordou que não havia motivo para adiar. Uma coisa... a
tutela legal. Marion queria ficar com a tutela durante mais algum tempo. Estava
perturbada com o assunto, e as coisas seriam mais fáceis se ela sentisse que a
situação estaria sob o seu controlo durante mais um ano. Charlie concordou,
apenas queria a criança visível e tangível. Depois a questão da governanta. Numa
agência sombria Charlie falou com uma montanhesa carrancuda e uma
provinciana rechonchuda, nenhuma das quais conseguiu tolerar. Veria outras
amanhã.

93
Almoçou com Lincoln Peters no Griffons, e tentava esconder a sua
exultação.
— Não há nada como o nosso próprio filho — disse Lincoln. — Mas
também compreendes como Marion se sente.
— Ela esqueceu-se de como trabalhei no duro lá durante sete anos —
disse Charlie. — Apenas se lembra de uma noite.
— Há outra coisa — Lincoln hesitou. — Enquanto tu e Helen se
dilaceravam pela Europa e desperdiçavam dinheiro, nós batalhávamos para pagar
as contas. Nunca toquei em prosperidade nenhuma porque nunca ganhei o
suficiente para pagar nada além do meu seguro. Penso que a Marion via algum
tipo de injustiça nisso... tu nem sequer trabalhares no final, e ficares cada vez
mais rico.
— Foi tão depressa como veio — disse Charlie.
— Sim, a maior parte ficou nas mãos dos chasseurs e saxofonistas e
maîtres d’hôtel... bem, agora a festa acabou. Só disse aquilo para explicar como
Marion se sente em relação àqueles anos loucos. Se apareceres hoje à noite por
volta das seis horas, antes que Marion esteja demasiado cansada, tratamos dos
detalhes na hora.
De volta ao seu hotel, Charlie encontrou uma pneumatique44 que tinha
sido reencaminhada desde o bar do Ritz onde Charlie tinha deixado o seu
endereço com o propósito de encontrar um certo homem.

Querido Charlie:

Estavas tão estranho quando te vimos no outro dia que


pensei ter feito algo para te ofender. Se assim for, não tenho
consciência disso. Na verdade, pensei demasiado em ti no último
ano, e sempre esperei ver-te se viesse para cá. Tivemos momentos
mesmo muito bons nessa primavera louca, como na noite em que
roubamos o triciclo do talhante, e aquela vez em que tentamos ligar

44
Carta ou mensagem expedida através de um sistema de tubos pneumáticos.

94
ao presidente e tu usavas o velho chapéu de coco e a bengala de
bambu. Todos parecem tão velhos ultimamente, mas eu não me
sinto nem um bocadinho velha. Será que nos podemos encontrar
hoje em honra dos velhos tempos? Por agora estou com uma
ressaca horrível, mas esta tarde estarei melhor e irei procurar-te no
bar do Ritz pelas cinco.

Com eterno carinho, Lorraine

O seu primeiro sentimento foi de assombro pois tinha realmente, já um


homem feito, roubado um triciclo e pedalado Lorraine por toda a Étoile da
madrugada ao amanhecer. Em retrospetiva foi um pesadelo. Trancar Helen na rua
não se encaixava com nenhum outro ato da sua vida, mas o incidente do triciclo
sim... foi um de muitos. Quantas semanas ou meses de dissipação para chegar a
tal estado de absoluta irresponsabilidade?
Tentou lembrar-se de como via Lorraine naquela altura... muito atraente;
Helen não gostava disso, mas não dizia nada. Ontem, no restaurante, Lorraine
parecia vulgar, desfocada e desgastada. Não queria vê-la de forma alguma, e
estava contente por Alix não ter divulgado o endereço do seu hotel. Em vez
disso, era um alívio pensar em Honoria, pensar em domingos passados com ela,
em dizer-lhe bom dia e em saber que ela estava em sua casa à noite, a respirar na
escuridão.
Às cinco apanhou um táxi e comprou presentes para todos os Peters... uma
boneca de pano, uma caixa de soldados Romanos, flores para Marion, grandes
lenços de bolso de linho para Lincoln.
Percebeu, quando chegou ao apartamento, que Marion tinha aceitado o
inevitável. Agora cumprimentava-o como se fosse um membro obstinado da
família, ao invés de um intruso perigoso. Já tinham dito a Honoria que iria;
Charlie ficou contente por ver que ela tinha a moderação de esconder a sua
felicidade excessiva. Só no seu colo sussurrou a sua alegria e a pergunta —
Quando? — antes de se escapulir com as outras crianças.

95
Marion e ele ficaram sozinhos na sala por um minuto, e num impulso ele
disse ousadamente:
— Discussões de família são coisas amargas. Não seguem nenhum tipo de
regras. Não são como dores ou ferimentos; são mais como rasgões na pele que
não curam porque não há material suficiente. Gostava que a nossa relação fosse
melhor.
— Algumas coisas são difíceis esquecer. É uma questão de confiança. —
Não houve resposta a tal comentário e pouco depois ela perguntou — Quando
pensas levá-la?
— Logo que consiga arranjar uma governanta. Talvez no dia depois de
amanhã.
— É impossível. Tenho de preparar as coisas dela. Não pode ser antes de
Sábado.
Rendeu-se. De volta à sala, Lincoln ofereceu-lhe uma bebida.
— Vou beber o meu whisky diário — disse.
Aqui era aconchegante, era um lar, pessoas reunidas à volta da lareira. As
crianças sentiam-se muito seguras e importantes; a mãe e o pai eram sérios,
atentos. Tinham coisas a fazer pelas crianças mais importantes que a sua visita
aqui. Uma colher de remédio era, afinal de contas, mais importante do que a
tensa relação entre Marion e ele. Não eram pessoas enfadonhas, mas estavam a
braços com a vida e com as circunstâncias. Perguntou a si mesmo se podia fazer
alguma coisa que tirasse Lincoln daquela rotina no banco.
Um longo badalar da campainha; a bonne à tout faire45 passou pela sala e
atravessou o corredor. A porta abriu durante mais um longo badalar, e depois
vozes, e na sala os três levantaram o olhar com expectativa; Richard deslocou-se
para que o corredor ficasse no seu campo de visão, e Marion levantou-se. Então a
empregada voltou pelo corredor, seguida de perto pelas vozes, que sob a luz
revelaram Duncan Schaeffer e Lorraine Quarrels.

45
Empregada doméstica.

96
Estavam alegres, estavam hilariantes, rugiam com riso. Por um instante
Charlie ficou boquiaberto; incapaz de compreender como descobriram o
endereço dos Peters.
— Ah-h-h! — Duncan sacudia maliciosamente o dedo em direção a
Charlie. — Ah-h-h!
Ambos deslizaram novamente numa cascata de risos. Apreensivo e
perplexo, Charlie rapidamente apertou mãos com eles e apresentou-os a Lincoln
e Marion. Marion acenou com a cabeça, quase sem falar. Tinha recuado um
passo em direção ao fogo; a sua filha estava ao seu lado, e Marion colocou um
braço sobre o seu ombro.
Com um crescente incómodo perante a intrusão, Charlie esperava uma
explicação. Depois de se concentrar um pouco Duncan disse:
— Viemos convidar-te para jantar fora. Lorraine e eu insistimos q’esta
coisa de chiquezas e secretismo sobre o teu endereço tem d’acabar.
Charlie aproximou-se deles, como que para forçá-los a recuar para o
corredor.
— Desculpem, mas não posso. Digam-me para onde vão e telefono-vos
daqui a meia hora.
Isto não causou impressão. Lorraine sentou-se subitamente no braço de
uma cadeira, e focando o seu olhar em Richard, gritou — Oh, que bom menino!
Vem cá meu menino. — Richard olhou para a sua mãe, mas não se mexeu. Com
um encolher de ombros percetível, Lorraine voltou a focar-se em Charlie:
— Vem jantar. De certeza q’os teus primos não s’importam. Pareces tão
distante. Ou distinto.
— Não posso — disse Charlie de forma ríspida. — Jantem vocês e eu
telefono-vos.
De súbito a voz dela tornou-se desagradável.
— Está bem, nós vamos embora. Mas lembro-me de uma vez em que
martelaste à minha porta às quatro da manhã. Fui simpática o suficiente para te
oferecer uma bebida. Vamos, Dunc.

97
Ainda em câmara lenta, de rostos turvos e zangados, com passos incertos,
saíram pelo corredor.
— Boa noite — disse Charlie.
— Boa noite! — respondeu Lorraine enfaticamente.
Quando ele voltou para a sala Marion não se tinha mexido, mas agora
tinha o seu filho debaixo do outro braço. Lincoln ainda balançava Honoria para a
frente a para trás como um pêndulo.
— Que ultraje! — irrompeu Charlie. — Que absoluto ultraje!
Nenhum deles respondeu. Charlie caiu numa poltrona, pegou na sua
bebida, pousou-a de novo e disse:
— Pessoas que não vejo há dois anos têm a enorme ousadia...
Parou. Marion proferiu o som — Oh! — num suspiro veloz e furioso,
afastou-se dele com um movimento brusco e saiu da sala.
Lincoln pousou Honoria cuidadosamente.
— Vão para dentro e comecem a sopa meninos — disse, e quando eles
obedeceram, dirigiu-se a Charlie:
— A Marion não está bem e não consegue aguentar estes choques. Aquele
tipo de pessoas deixa-a fisicamente doente.
— Não lhes disse para virem aqui. Arrancaram o vosso nome a alguém.
Fizeram-no deliberadamente...
— Bem, é lamentável. Não facilita as coisas. Dá-me licença por um
minuto.
Sozinho, Charlie estava tenso, sentado na poltrona. Na divisão ao lado
conseguia ouvir as crianças a comer, a falar em monossílabos, já abstraídos da
discussão entre os mais velhos. Ouviu o murmúrio de uma conversa vindo de
uma divisão mais afastada e depois alguém a pegar no auscultador do telefone, e
já em pânico deslocou-se para o outro lado da sala para não ouvir.
Um minuto mais tarde Lincoln voltou.
— Ouve, Charlie. Acho melhor cancelar o jantar de hoje. Marion não se
está a sentir bem.
— Está chateada comigo?

98
— Mais ou menos — disse Lincoln, quase áspero. — Ela não é forte e...
— Estás a dizer que ela mudou de ideias em relação a Honoria?
— Agora está bastante ressentida. Não sei. Telefona-me para o banco
amanhã.
— Gostava que lhe explicasses que nunca sonhei que estas pessoas
aparecessem aqui. Estou tão chateado quanto vocês.
— Não poderia explicar-lhe nada agora.
Charlie levantou-se. Pegou no seu casaco e chapéu e caminhou para o
corredor. Depois abriu a porta da sala de jantar e disse numa voz estranha — Boa
noite, crianças.
Honoria levantou-se e correu à volta da mesa para o abraçar.
— Boa noite, querida — disse Charlie vagamente, e depois tentando
suavizar a sua voz, tentando conciliar alguma coisa — Boa noite, queridos
meninos.

V
Furioso, Charlie foi diretamente para o bar do Ritz pensando que
encontraria Lorraine e Duncan, mas eles não estavam lá, e percebeu que de
qualquer forma não havia nada que pudesse fazer. Não tinha tocado na sua
bebida em casa dos Peters, e agora pedia um whisky-Cola. Paul aproximou-se
para o cumprimentar.
— É uma grande mudança — disse com tristeza. — Fazemos cerca de
metade do negócio de antes. Ouço falar de tantos camaradas lá nos Estados
Unidos que perderam tudo, talvez não no primeiro crash, mas no segundo. Ouvi
dizer que o seu amigo George Hardt perdeu cada centavo. Voltou para os Estados
Unidos?
— Não, estou a tratar de negócios em Praga.
— Ouvi dizer que perdeu muito no crash.
— Sim — e acrescentou, sombrio — mas perdi tudo o que queria no
boom.
— Desvalorização.

99
— Algo do género.
A memória daqueles dias invadiu-o de novo como um pesadelo... as
pessoas que conheceram nas suas viagens; depois as pessoas que não conseguiam
somar uma linha de números ou falar de forma coerente. O homenzinho com
quem Helen aceitou dançar na festa do navio, que a tinha insultado a três metros
da mesa; as mulheres e raparigas carregadas aos berros para fora de locais
públicos por causa de bebida ou drogas...
...Os homens que trancavam as mulheres fora de casa na neve, porque a
neve de vinte e nove não era neve a sério. Se não quiséssemos que fosse neve,
simplesmente pagávamos algum dinheiro.
Caminhou até ao telefone e ligou para o apartamento dos Peters; Lincoln
atendeu.
— Liguei porque isto não me sai da cabeça. A Marion disse alguma coisa
definitiva?
— A Marion está doente — respondeu Lincoln prontamente. — Sei que a
culpa não é inteiramente tua, mas não posso deixá-la ir abaixo por causa disto.
Receio que vamos ter de adiar durante seis meses; não posso correr o risco de a
perturbar até este ponto outra vez.
— Estou a ver.
— Sinto muito, Charlie.
Voltou para a sua mesa. O seu copo de whisky estava vazio, mas abanou a
cabeça quando Alix olhou para o copo de forma inquisitiva. Agora não havia
muito mais a fazer exceto enviar algumas coisas para Honoria; iria enviar-lhe
muitas coisas amanhã. Deveras aborrecido pensou que era só dinheiro... ele tinha
dado dinheiro a tantas pessoas...
— Não, não quero mais — disse a outro empregado de mesa. — Quanto te
devo?
Ele voltaria um dia; não podiam fazê-lo pagar para sempre. Mas ele queria
a sua filha, e agora nada era bom, a não ser isso. Já não era jovem, com imensos
sonhos e pensamentos para ter sozinho. Tinha a certeza absoluta que Helen não
iria querer que ficasse tão sozinho.

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Anexo 1

Texto Original: Babylon Revisited

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