OLIVEIRA-ABRAMOWICZ - Infancia Raça e Paparicação

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INFÂNCIA, RAÇA E “PAPARICAÇÃO”1

Fabiana de Oliveira*
Anete Abramowicz**

RESUMO: Atualmente, o campo das discussões que se referem às relações étnico-raciais


vem se ampliando em um espaço político-educacional considerável e que contribui para
desmontar um forte campo discursivo que se hegemonizou como verdade e que afirma-
va a existência de uma democracia racial. Este artigo é o resultado de uma pesquisa
desenvolvida numa instituição de educação infantil durante um semestre letivo, com visi-
tas diárias. A coleta de dados foi realizada utilizando os seguintes recursos: observação,
realização de um diário de campo e entrevistas com as profissionais da creche. O obje-
tivo foi analisar as práticas educativas que ocorrem na creche, verificando as maneiras
como essas práticas produzem e revelam a questão racial. A presente pesquisa constitui
mais um subsídio para o questionamento das relações raciais no Brasil, desde a educação
infantil, visando ao enfrentamento de práticas pedagógicas de homogeneidade e racismo.
Palavras-chave: Infância; Creche; Relações Raciais.

CHILDHOOD, RACE AND SPOILING KIDS


ABSTRACT: Currently the field of discussions on ethnic-racial relationship is expanding
into a political-educational space that contributes to dismantle a strong discursive field
that became hegemonic as truth and stated the existence of a racial democracy. This arti-
cle is the result of a qualitative research developed at an infant school during a school
term with daily visits. The data collection was performed using the following resources:
observation, preparation of a field diary and interviews with professionals of the nurs-
ery school. The objective was to analyze the educational practices that occur in the nurs-
ery schools, verifying the ways in which these practices produce and reveal a racial issue.
This research is subsidy for the questioning of racial relationship in Brazil since the early
stages of child education aimed at coping with teaching practices of homogeneity and
racism.
Keywords: Childhood; Nursery Schools; Racial Relationship.

* Doutora em Educação pela Universidade Federal de São Carlos (UFSCar); Docente Universidade Federal de Alfenas (UNIFAL).
E-mail: [email protected]
** Doutora em Educação pela Universidade Estadual de Campinas (UNICAMP); Docente do Departamento de Metodologia de Ensino
e dos Programas de Pós-Graduação em Educação e Sociologia da Universidade Federal de São Carlos (UFSCar). E-mail:
[email protected]

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Introdução

O objetivo deste trabalho é discutir a maneira como as práticas


educativas que ocorriam no trabalho cotidiano da creche pesquisada, com
crianças de zero a três anos, visibilizavam a questão racial na relação adul-
to/criança.
As fontes de pesquisa utilizadas foram coletadas em uma creche
no interior de São Paulo2 e discutidas com base no referencial teórico
apoiado nos estudos sobre infância e raça. O conceito de raça, apesar de
ser controverso3 também nas ciências sociais, tende a, cada vez mais, se
consolidar como categoria analítica, na medida em que há um acirramen-
to sem precedentes das lutas étnicas e raciais na contemporaneidade.
A relevância do desenvolvimento da pesquisa pautou-se na exi-
guidade de trabalhos envolvendo creche e relações raciais, além de cons-
tituir mais um subsídio para o questionamento das relações raciais no
Brasil desde a educação infantil, visando ao enfrentamento de práticas
pedagógicas de homogeneidade e racismo, pois isso ainda se faz presente
e é ensinado cotidianamente para as crianças, a partir de uma mecânica e
de uma micropolítica de funcionamento da escola.
Faremos uma discussão inicial baseada em alguns trabalhos pro-
duzidos na área da educação, com o recorte racial, visando a mostrar
como a questão racial é um aspecto que está presente no meio escolar e
acaba se tornando elemento curricular, mesmo que os professores não
tenham clareza dessa ocorrência. Dessa forma, os processos de subjetiva-
ção que ocorrem na escola constituem a criança negra de maneira subal-
ternizada e inferiorizada. Evidente que, de alguma maneira, a criança
negra resiste a esses modelos negativos de construção de sua identidade,
que serão analisados minuciosamente neste artigo, com base na análise do
cotidiano da creche pesquisada. Esse movimento entre as forças ativas de
constituição dos sujeitos e de subjetividades e as múltiplas formas de
resistências a esse processo é tratado neste artigo, de maneira a se visuali-
zar a relação entre o que foi chamado por Foucault4 de biopolítica, que é
a relação entre o poder sobre a vida e o poder da vida na produção de
maneiras de se viver.
Nas pesquisas sobre as questões raciais, a escola é apresentada,
de modo geral, como tendo base conservadora e excludente, ao se pautar
em um modelo de currículo denominado de “embranquecido” diante da

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ausência de conteúdos que possam contribuir para que os alunos negros


se vejam contemplados, além do silêncio da equipe pedagógica a respeito
das questões raciais (OLIVEIRA, 1992; SILVA; BARROS, 1997;
GUSMÃO, 1999; SILVA, P. B. G.; MONTEIRO, 2000).
Estudos tem mostrado que os alunos negros enfrentam dificuldades
para permanecer na escola, apresentando as maiores taxas de evasão e repe-
tência. Tem-se concluído que o rendimento escolar da criança negra acaba
sendo condicionado por processos intraescolares, pois mesmo quando o
nível socioeconômico das famílias é equivalente, ainda assim, os negros,
muitas vezes, apresentam trajetória escolar diferenciada, ou seja, o sucesso
do aluno negro é menor do que o dos alunos brancos na escola (ROSEM-
BERG, 1987; HASENBALG, 1987; HASENBALG; SILVA, 1990).
Essa temática foi abordada com base em estudos referentes às
séries iniciais do primeiro grau do ensino fundamental, mas esses mesmos
aspectos podem ser encontrados desde a mais tenra idade, com as crian-
ças da educação infantil, como mostram algumas pesquisas e o reflexo
disso no processo de constituição da identidade.
Kappel, Carvalho e Kramer (2001), em pesquisa sobre o perfil
das crianças de 0 a 6 anos que frequentavam creches, pré-escolas e esco-
las, baseados nos resultados da pesquisa sobre padrões de vida do IBGE,
concluíram que, no que se refere à cor, o acesso de crianças brancas à edu-
cação infantil mostrou-se maior que o de pretas/pardas, o que, segundo
as pesquisadoras, “configura um contexto em que a discriminação está
presente, confirmando resultados de outras pesquisas” (KAPPEL; CAR-
VALHO; KRAMER, 2001, p. 46).
Rosemberg (2002, p. 2) também vem confirmando esse fato: “o
acesso de crianças brancas é maior que o acesso de crianças não brancas
(consideradas as crianças pretas, pardas e indígenas) se as crianças estive-
rem na idade correta de frequentar a educação infantil”. Considerando o
total de crianças na educação infantil, a autora compara nosso sistema de
ensino a um funil: “você tem uma entrada muito pequena na creche e pré-
escola, um aumento espetacular no ensino fundamental e uma diminuição
progressiva. Estamos no Brasil numa situação em que nós temos menos
crianças frequentando a creche do que adultos frequentando o ensino
superior” (ROSEMBERG, 2002, p. 2).
A obra de Cavalleiro (2000), cujo objetivo era analisar a sociali-
zação das crianças negras no espaço da pré-escola e na família, no que se

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refere ao reconhecimento da questão racial na constituição da identidade


dessas crianças, mostrou um contexto bastante delicado, no qual crianças
negras estão internalizando determinados conteúdos que contribuem
negativamente para a construção de sua identidade. A pesquisa é revela-
dora de um silêncio envolvendo a questão racial na escola e também na
família, o que acaba não oferecendo um repertório para que essa criança
enfrente os preconceitos presentes na sociedade e também no espaço
escolar, pois a questão é ocultada nas duas instituições.
Assim, as crianças negras vivem diversas experiências que as
levam a constituir uma autoimagem negativa. Os dados obtidos pela auto-
ra mostram que há um tratamento diferenciado em relação às crianças
negras e brancas, baseado em uma linguagem não-verbal, por meio de ati-
tudes, gestos e tons de voz que reforçam o racismo e a rejeição por parte
das crianças negras em relação ao seu pertencimento racial, algo que foi
confirmado também pelos resultados obtidos no espaço da creche pelas
pesquisadoras e que será discutido mais adiante.
A escola veicula, em conjunto com outros equipamentos centra-
lizadores e difusores de sentido e de estética, entre eles a mídia, um mode-
lo estético hegemônico, bem como um modelo de “saúde” que é veicula-
do e produzido incessantemente como o melhor, o único, o bonito e o
que deve ser perseguido por todos. Esse modelo estético é difundido de
maneira capilar por todos, inclusive as crianças pequenas, das quais este
artigo pretende se ocupar.
Esse fato indica que a escola atua de maneira a realizar uma
inclusão diferenciada das crianças. Os indicadores estatísticos brasileiros
mostram que quase a totalidade das crianças está na escola, no entanto, os
trabalhos e as pesquisas sobre o cotidiano escolar mostram que essa inclu-
são é diferenciada. Isso leva a supor que as crianças nessa faixa etária já
conseguem apresentar uma percepção das diferenças raciais, podendo, a
partir dessa idade, começar a cristalizar determinadas atitudes com senti-
do preconceituoso em relação aos que diferem de suas características físi-
cas, evidenciando a necessidade de se iniciar uma intervenção pedagógica
que vise à destituição desse tipo de atitude em relação aos colegas.
Souza (2002) aponta que as crianças negras revelaram, muitas
vezes, o desejo de serem brancas, de cabelo liso, querendo se comparar
com os personagens das histórias infantis, reforçando a imagem que a
criança negra faz de si, evidenciando a negação de sua condição racial. Em

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contrapartida, o educador infantil, segundo Souza (2002), depara frequen-


temente com uma série de evidências das questões raciais e do preconcei-
to, tendo ou não clareza delas, algumas vezes utilizando práticas do senso
comum que podem, segundo a autora, até mesmo reforçar o racismo.
Afonso (1995), em pesquisa sobre diferenças na socialização de
meninos e meninas em creches comunitárias de Belo Horizonte e
Contagem, constatou que, embora comportamentos discriminatórios em
relação às crianças de dada cor tenham sido pouco observados, as educa-
doras relataram vários casos de discriminação entre as crianças e de suas
dificuldades de intervir para pôr fim à discriminação. Segundo a pesquisa-
dora, não se tratava de uma discriminação assumida, mas de um “mal-
estar” relativo à cor, que passava despercebido, a menos que a educadora
fosse pressionada a enfrentá-lo.
Alguns exemplos são citados por Afonso (1995), em artigo sobre
esse “mal-estar” relativo à cor:

uma criança branca pergunta à educadora se ficará suja se pegar na mão de


outra criança negra, a educadora que também era negra contou o caso sorrin-
do e disse à criança “que é claro que não, todo mundo é igual”; um monitor
relembra o dia em que um grupo de meninas brincava “de casinha” e, dentre
elas, a menina negra, a qual ele denominou “a de pele mais escura” fazia o
papel de empregada doméstica, ele resolveu intervir sugerindo que as meni-
nas trocassem de papéis, mas elas abandonaram o jogo e quando ele se afas-
tou, elas retomaram a brincadeira com a mesma divisão de papéis; a lingua-
gem usada pelas educadoras ao definir as crianças que passavam por episó-
dios preconceituosos: “cabelo ruim” ou “mas essa era pretinha mesmo, pre-
tinha que chegava a ser azul de tão preta”. (AFONSO, 1995, p. 17)

Podemos concluir que as crianças aos 4 anos de idade já passa-


ram por processos de subjetivação que as levaram a concepções já tão
arraigadas no nosso imaginário e na realidade social sobre o branco e o
negro e, consequentemente, sobre as positividades e negatividades atribuí-
das a um ou outro grupo racial, entendendo o processo de subjetivação
como uma espécie de “dobra do fora” – de maneira tal que não sabemos
mais o que é fora e o que é o dentro, que é a característica de uma dobra
aberta, o fora, em dado momento, se transforma em dentro. Esse proces-
so de subjetivação faz com que as crianças negras e brancas “dobrem” o
fora e, no fora, o negro, em qualquer dimensão, ainda tem sido represen-
tado de maneira inferior, menor e subalternizado. Dessa maneira, as crian-

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ças negras também dobram esse fora e acabam vendo a si mesmas como
ruins, feias e todos os atributos com os quais a sociedade ocidental desig-
na o diferente, o outro.
No entanto, isso pode ser favorecido pela instituição com base
nas concepções e nos valores das profissionais envolvidas com essas
crianças e, também, é claro, da mídia, que atua de forma bastante forte na
veiculação de imagens e ideias que acabam fortalecendo o grupo racial
dos brancos e estigmatizando negativamente o grupo racial dos negros.
Há décadas, o Movimento Negro e outros movimentos sociais
como o de mulheres, por exemplo, propõem uma educação no sentido de
que todos se vejam incluídos. Isso será muito importante tanto para as
crianças negras quanto para as brancas, pois os alunos negros encontra-
rão na escola uma fonte para o desenvolvimento de uma possibilidade
positiva de pertencimento, e os alunos brancos terão oportunidade de
adquirir abertura maior para as diferenças.
Isso implica, por parte da escola e dos educadores/professores,
uma nova postura frente aos seus alunos de diferentes classes sociais,
raças, gêneros, religiões, etc., com diversas formas de entendimento de
mundo, o que leva à necessidade de trabalhar com as diferenças no
ambiente escolar, em contraposição à visão hegemônica de aluno que, na
maioria das vezes, não corresponde ao aluno que se tem em sala de aula,
pois há uma questão racial que perpassa a instituição escolar desde a edu-
cação infantil, como as pesquisas apresentadas mostraram.
Na realidade, a escola brasileira funda-se na ideia de escola única
e igual para todos, mantendo, de forma oculta, uma ética de indiferença
em relação às diferenças, já que a convicção na qual ela se apoia é a de ser
indiferente aos territórios, à cultura de origem das famílias, ou seja, há
uma indiferença ao outro como fundamento da escola.
A seguir, são apresentados os dados que deram origem ao pre-
sente artigo e que foram coletados na creche, para analisarmos como a
questão racial aparece nesse espaço que acolhe crianças ainda tão peque-
nas e apresentam a necessidade de os educadores possuirem um saber
específico para tratar da questão racial no ambiente escolar.

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A pesquisa

A pesquisa que originou o presente artigo se caracteriza como


um estudo de caso descritivo de natureza qualitativa. O estudo está rela-
cionado à creche e envolve a análise das práticas pedagógicas e o trata-
mento da questão racial na faixa etária entre 0 e 3 anos de idade. Diante
disso, foi proposto o seguinte objetivo: realizar uma análise das práticas
pedagógicas que ocorrem na creche, com ênfase na criança negra, verifi-
cando as maneiras como elas produzem e revelam a questão racial.
A pesquisa foi realizada em uma creche no interior de São Paulo,
durante um semestre letivo, com visitas diárias. A escolha da instituição
foi realizada intencionalmente, elegendo-se aquela que continha maior
número de crianças negras.
Para atender ao objetivo proposto, a metodologia utilizada con-
templou a observação de salas de aula na creche, acompanhada de entre-
vistas com as profissionais da instituição (professoras e diretora da creche)
e a produção de um diário de campo.
Das profissionais da creche, 100% eram mulheres que, em 65%
dos casos, atuavam como professoras, sendo que o restante ocupava
outros cargos: diretora, faxineira, cozinheira e ajudante de serviços gerais.
A creche era composta por um total de doze profissionais, entre as quais
havia quatro profissionais negras (35%), sendo apenas uma professora. As
outras três ocupavam cargos que se encontram na base da pirâmide pro-
fissional e salarial, atuando como cozinheira, faxineira e ajudante de ser-
viços gerais. Suas idades variavam entre 33 e 54 anos. A escolaridade entre
as professoras era de 90% com segundo grau, sendo que, deste total, ape-
nas uma tinha curso de magistério/nível médio5.
O Quadro 1 mostra a relação das funcionárias da creche, cons-
tando nome fictício, idade, raça, atuação, escolaridade, tempo de serviço
na creche e faixa etária em que atua.

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Quadro 1: Relação das funcionárias da creche com nome,


idade, raça, área de atuação, tempo de serviço e faixa etária infantil em que atuam
Nome6 Idade (anos) Raça Atuação Escolaridade Tempo de serviço Faixa etária
na creche (anos) em que atua
Rute 39 branca professora 2o grau 5 Berçário
Dulce 39 branca professora 2o grau 3 1 ano
Marli 41 branca professora 1o grau 15 1 ano
Silvia 37 branca diretora 3o grau 4 -
Dirce 54 branca professora 2o grau 15 berçário
Nice 38 branca professora 2o grau 10 (meses) 2 anos
Raquel 33 negra professora 2o grau/Magistério 3 3 anos
Rosinha 40 branca professora 3o grau 2 2 anos
Vânia 45 negra cozinheira 1o grau incompleto 5 -
Alda 35 negra faxineira 2o grau 3 -
Rosa 41 negra serviços gerais 1o grau incompleto 5 -

Os participantes da pesquisa foram crianças (total de 61, sendo


que 14 eram negras e 47, brancas) e 8 adultos (7 professoras e a diretora).
Foram realizadas observações diárias, nos períodos da manhã e da tarde,
durante um semestre letivo, para saber como as crianças estavam sendo
cuidadas pelas profissionais brancas e negras inseridas na instituição esco-
lhida para a pesquisa, pois a comparação ou contraponto na relação entre
as profissionais da creche e as crianças negras e brancas era crucial para a
pesquisa.
As observações na creche foram feitas durante o período de um
semestre letivo, num total de 19 semanas, somando 228 horas, estando-se
na instituição três vezes por semana, em sistema rotativo por meio do qual
se passava por cada sala uma vez por semana.
O diário de campo foi utilizado para descrever as seguintes situa-
ções: expressão verbal (falas valorativas ou depreciativas), prática não-ver-
bal (atitudes que demonstrem aceitação ou rejeição do contato físico),
maneira como o espaço é utilizado, rotina das crianças e atividades peda-
gógicas.
Como a pesquisa tratava das práticas educativas em relação às
crianças negras, optou-se por utilizar o termo “raça” em vez de “etnia”,
pois o componente que entra é a cor da pele, elemento usado para as clas-
sificações raciais, seguindo, assim, a mesma terminologia de Guimarães
(2002, p. 52) na qualidade de uma categoria analítica, pois, de acordo com
o autor, as “raças sociais” são “epifenômenos permanentes que organi-
zam a experiência social humana e que não têm chances de desaparecer”.
Apesar do que já ficou provado pela genética de que não existem raças

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biológicas, as classificações raciais continuam a ser feitas baseadas na ideia


de raças superiores e inferiores.

A paparicação no tratamento diário da creche como aspecto da diferenciação


no relacionamento entre adultos e crianças nas relações raciais

A questão racial apareceu nas práticas pedagógicas ocorridas na


creche em situações que demonstravam determinado “carinho”, que
optamos por chamar de “paparicação”, por parte das professoras em rela-
ção a determinadas crianças, estando as negras, na maior parte do tempo,
“fora” ou excluídas.
O termo “paparicação”7 foi utilizado anteriormente por Ariès
(1981), demarcando o surgimento de uma nova mentalidade em relação à
criança a partir do século XVIII, na Europa, especificamente no contex-
to francês, que possibilitou a construção da moderna ideia de infância des-
crita pelo historiador. Não podemos desconsiderar que sua pesquisa foi e
continua sendo um marco para todos aqueles que discutem o tema da
infância, pois foi a partir dele que se iniciou a compreensão dessa catego-
ria como construção social.
O historiador francês defendia as seguintes ideias:
n somente a partir do final do século XVII e início do XVIII é
que vemos surgir a moderna ideia de infância, quando o historiador situa
o início de um sentimento em relação à criança denominado por ele de
“paparicação” (primeiro sentimento da infância);
n esse movimento acontecerá nas classes sociais mais abastadas
(na aristocracia), em que as crianças foram sendo consideradas a partir de
certa especificidade, que se verificará, por exemplo, por meio de um ves-
tuário próprio para sua faixa etária e da preocupação com a saúde e a edu-
cação (segundo sentimento da infância);
n até a Idade Média, as crianças eram consideradas “adultos em
miniatura”; as crianças aprendiam tudo com os adultos, na convivência
direta nos trabalhos, nas festas, etc.

O termo “paparicação” pode ser definido como o surgimento de


um novo sentimento da infância em que “a criança, por sua ingenuidade,
gentileza e graça, se tornava uma fonte de distração e de relaxamento para

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o adulto” (ARIÈS, 1981, p. 158). No entanto, era caracterizado pelo autor


como “um sentimento superficial”, que ocorria em seus primeiros anos
de vida e que “originariamente, pertencera às mulheres, encarregadas de
cuidar das crianças”. A passagem destas pela família era muito breve e
insignificante, pois se não morressem e sobrevivessem a esse período (da
paparicação), logo seriam misturadas aos adultos e a única diferença que
poderia existir entre eles era o tamanho.
No caso da presente pesquisa, “paparicação” também assume o
mesmo caráter superficial descrito por Ariès. Na creche, correspondia a
uma prática ou a um tratamento diferenciado em relação às crianças, jus-
tamente por algumas ganharem essa paparicação e outras, não.
As crianças negras estavam, na maior parte do tempo, fora dessa
prática da paparicação, em um processo de exclusão que não está sendo
entendido como ato de segregação, mas como o recebimento de um cari-
nho diferenciado, com menor paparicação. Isso também ocorria com
algumas crianças brancas que não estavam entre os “preferidos”.
Vejamos:
n Ganhar ou não o colo da professora: uma situação que ocorreu várias
vezes. Algumas crianças chegavam chorando e não ganhavam colo, no
entanto, com determinadas crianças, era diferente: M. (loura, 2 anos) che-
gou chorando, então Nice (professora branca) a pegou no colo até que ela
parasse de chorar. Depois chegou P. (negro, 2 anos) também chorando, mas
Nice sentou-se em uma cadeira e o colocou entre as pernas. Essa situação
ocorreu da mesma forma, só que com outra professora, quando B. (negro)
chegou chorando e Marli encostou-o em sua perna e disse para ele não cho-
rar. Depois chegou L. (loura) também chorando, mas o procedimento foi
outro: a professora a pegou no colo até que parasse de chorar;
n Durante a pesquisa, também pode-se perceber que as meninas
preferidas pelas professoras eram caracterizadas como “princesas” ou
como “filhas”, de acordo com os exemplos: as crianças vão chegando,
mas a professora só beija L. (loura, 1 ano) e diz: “oi, minha princesa”.
Num outro dia, no refeitório, a diretora também elogia essa mesma meni-
na dizendo: “que linda você é”.
n Várias vezes, no refeitório, quando todas as crianças se encon-
travam para fazer as refeições, sempre se presenciava as professoras bei-
jando algumas crianças: Marli (professora, branca) passa e beija G. e H.
(ambas louras) e diz: “não são lindas?”. J. (negra, 3 anos), da mesma sala

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que as duas meninas citadas, estava sentada ao lado de G. (loura) e, no


entanto, passou despercebida aos olhos da professora.

Os dados mostraram que a creche funcionava a partir de práti-


cas educativas baseadas em uma micropenalidade do corpo, baseando-se
num todo social homogêneo:
n Um corpo negro tende a ser rejeitado segundo uma norma de
negação do diferente em relação ao modelo estético de beleza e saúde
convencionalmente estipulado como “padrão” a ser seguido. Vejamos:
Situação 1 – durante o tempo em que ocorreu a coleta de dados na cre-
che, foi possível perceber que as professoras beijavam somente determi-
nadas crianças. Na chegada das crianças no período da manhã, de 13
crianças (oito crianças brancas e cinco crianças negras), a professora bei-
java sete, sendo que, desse total, apenas duas crianças eram negras (num
total de cinco na sala das crianças de 1 ano). Situação 2 – quando I. (bran-
co, 1 ano) chegava, era sempre recebido com beijos e ouvia: “ai, que
lindo”, da mesma forma que J. V. (branco, 1 ano): “olha o J., ele não é
lindo? É lindo e não me dá um pingo de trabalho”. Situação 3 – Outra
situação ocorreu quando estávamos no parque e algumas crianças da sala
de 2 anos andavam de velotrol. No entanto, como os brinquedos não são
em número suficiente para todos, havia sempre alguém chorando. Então
Nice (professora) disse para J. A. (louro) deixar R. (negro) dar uma volta.
Aquele se levantou e passou o velotrol. A professora disse: “esse menino
é uma gracinha. É o homenzinho da tia”. J. A. sorri e sai.
n Um corpo negro gordo destituído de algumas brincadeiras com
a professora, devido ao seu peso, e também considerado causa de proble-
mas na coluna. Vejamos: Situação 1 – Num certo dia, no parque, Nice (pro-
fessora das crianças de 2 anos) pegou V. (negro) e o colocou dentro de uma
caixa de papelão. Em seguida, B. (negro) também quis entrar. Ela o pegou
e disse: “nossa, eu não aguento, que menino pesado”, e deixou-o no chão,
sem colocá-lo dentro da caixa. Marli (professora das crianças de 1 ano)
disse: “ele é que acaba com a minha coluna”. Situação 2 – No berçário, Rute
(professora) estava brincando com N. (branca) e V. H. (branco) de suspen-
dê-los, quando W. (negro) se dirigiu até ela, demonstrando também querer
brincar da mesma forma. Rute disse: “você não, você é muito pesado”.
n Um corpo negro suado tende a ser rejeitado, pois o suor tem
algo que pode ser associado ao ato de misturar, de trocar, no qual “um”

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lança de si odores e vapores que acabam fazendo do outro também “um”,


a partir da umidade que passa para os dois corpos, como se um contami-
nasse o outro com o que tem de mais particular, no caso do negro, sua
negritude. Além da questão do corpo, o cheiro faz parte de uma cuida-
dosa construção racista sobre o que é um corpo esteticamente aceitável,
na qual ao negro cabe uma concepção depreciativa do corpo. Vejamos:
Marli (professora das crianças de 1 ano) fez o seguinte comentário: “olha
como o D. (negro) fica suado no sol”. Depois de algum tempo, após ter
se referido ao suor do menino, este vem até Marli, que estava sentada no
chão, e tenta abraçá-la, mas quando foi encostar em seu rosto, ela disse:
“nossa, você está todo suado”. Ela sempre enfatizava a questão de D.
(negro) ficar suado quando permanecia sob o sol.
É preciso considerar que há certa positividade em estar fora
dessa prática da paparicação, pois o âmbito relacional também pode se
transformar em um aparelho de captura e controle que não é positivo
nem mesmo para as crianças brancas. No entanto, devemos construir uma
prática pedagógica que não faça diferenciações entre as crianças.
É importante destacar que a escola pública se funda sobre dois
princípios básicos: a disciplina e o higienismo. Nessa configuração, as prá-
ticas sociais e discursivas colocaram o negro no lugar de “mal-cheiroso”
e do “indisciplinado”. Vejamos: Situação 1 – Outra forma que também
classificamos como pejorativa foi a maneira como as professoras se refe-
riam ao modo como R. (negro) comia. Nice (professora branca), respon-
sável pelas crianças de 2 anos, diz para R: “ai, R., que lambança você faz
para comer”. E vem me dizer que R. (negro), além de querer comer com
a mão, ainda come rápido e faz a maior lambreca. Em outra ocasião, no
refeitório, Marli (professora branca), responsável pelas crianças de 1 ano,
veio dizer, com cara de nojo: “olha o jeito que o R. come. Nossa!”. J.
(loiro, 2 anos) também fazia a maior bagunça para comer, no entanto,
Nice (professora branca) só dizia: “não pode derrubar a comida assim”.
O menino citado era chamado de “loiro” por todos na creche, tanto que,
quando cheguei, perguntei seu nome para as crianças da sala, pois ele
ainda não falava, e as crianças disseram “Loiro”. Nice (professora) então
disse: o nome dele é J., mas nós só chamamos ele de “Loiro”; Situação 2
– Outro estereótipo também corrente na creche é que as travessuras sem-
pre estavam associadas às crianças negras, pois elas eram as “vilãs” da his-
tória. Na creche, em toda sala havia um “furacão”. O “furacão” pode ser

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conceituado, de acordo com as professoras, como “um menino bastante


terrível, que se movimenta o tempo inteiro, que estraga as brincadeiras,
que também bate nos colegas”, ou seja, o vilão da sala, com o seguinte
detalhe: ele é negro. Toda sala tinha um “furacão negro”; Situação 3 –
Em outra ocasião, estávamos no refeitório e V. (negro) estava sentado à
mesa com as outras crianças, aliás coisa rara de se ver. No entanto, antes
de o menino terminar de comer, Marli o colocou no cadeirão. Não enten-
demos o motivo, pois ele estava comportado, ao contrário de I. (branco),
que tirou o tênis e jogou em cima da mesa, em seguida, levantou-se e cor-
reu pelo refeitório. Marli foi atrás e disse para ele ficar quieto. Diante da
situação, Raquel (professora negra) veio e se sentou ao lado de I. (branco),
dizendo: “vamos ficar quieto, que negócio é esse de ficar correndo, não
deixa eu ficar brava”, “só assim, para ele ficar sentado”. Marli nem cogitava a
possibilidade de colocá-lo no cadeirão, que era uma forma de castigar as
crianças pelos seus atos. I. (branco) estava sempre livre de tal castigo,
parecendo ser uma questão de pele, diante desse tratamento diferenciado.
Dessa forma, há uma atualização “moderna” desses princípios e
uma capilaridade nas práticas educativas que refazem constantemente essa
lógica, que é, sobretudo, racista e discriminatória. São crianças diante de
adultos que tem o poder de mando, de recompensa, de castigo, de classi-
ficação, ou seja, é uma relação de poder que se exerce por meio das prá-
ticas ocorridas diariamente e que atuam no corpo e nos desejos. De acor-
do com Foucault (1987), o poder é uma prática social constituída histori-
camente e que intervém materialmente, atingindo a realidade mais concre-
ta dos indivíduos, o corpo.
O racismo presente na educação infantil aparece de forma um
pouco distinta daquela encontrada no ensino fundamental. Enquanto na
escola o desempenho escolar mais baixo das crianças negras é fator iden-
tificador do racismo no ensino fundamental, na educação infantil, o racis-
mo aparece nas relações afetivas e corporais entre adultos e crianças e nas
brincadeiras espontâneas destas, já que sabemos que o jogo é uma prática
fundamental nessa faixa etária. Mas devemos considerar que essas situa-
ções também podem ser encontradas nas crianças e nos adolescentes do
ensino fundamental e médio.
Nas brincadeiras na educação infantil, esse racismo aparece
quando as crianças negras são as empregadas domésticas, quando as
crianças brancas temem ou não gostam de dar as mãos para as negras, etc.

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O racismo aparece na educação infantil, na faixa etária entre 0 a 2 anos,


quando os bebês negros são menos “paparicados” pelas professoras do
que os bebês brancos. Ou seja, o racismo, na pequena infância, incide
diretamente sobre o corpo, na maneira pela qual ele é construído, acari-
ciado ou repugnado.

Considerações finais

A ideia central que direcionou este trabalho foi analisar as práti-


cas educativas que ocorriam na creche, com ênfase na criança negra, veri-
ficando as maneiras como tais práticas produziam e revelavam a questão
racial.
Os dados coletados na creche mostraram que havia uma compa-
ração/classificação entre as crianças. A questão racial apareceu na relação
das professoras com as crianças negras na forma da “exclusão”8 de certa
paparicação que ocorria com determinadas crianças, das quais as negras
estavam, na maior parte do tempo, “fora”, em situações como as seguin-
tes: recusa do contato físico em determinados momentos, recebimento de
elogios relacionados à beleza e ao “bom comportamento” e estereótipos
na relação professora/criança negra.
As práticas educativas descritas, apesar de se referirem às crian-
ças negras em específico e que poderiam ser analisadas somente a partir
do critério racial, não são semelhantes, pois, como já foi descrito, o poder
disciplinar atua sobre os corpos com base na individualização. As práticas
em relação a crianças negras, crianças negras e gordas e criança negra
suada diferem entre si, pois, em determinado momento, cada uma delas
ocupava uma posição, com base nas classificações: a criança bonita, a
criança educada, o furacão, o gordo que não podia participar de determi-
nadas brincadeiras e o “lambão”.
No entanto, ressaltamos neste artigo não somente a denúncia de
situações de discriminação que são lamentáveis, mas a positividade das
crianças, que, de alguma forma, eram “excluídas” do “carinho” das pro-
fessoras. Essas crianças poderiam ficar livres de determinadas práticas
educativas baseadas numa relação entre professora/criança na qual a
“paparicação” era o eixo central. É evidente que, do ponto de vista da
constituição do bebê e da criança negra, essta prática traz consequências,

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no entanto, precisamos entender que o âmbito relacional é um aparelho


de captura e controle do qual tais crianças estão fora. Assim, as crianças
negras estavam “excluídas” de serem tratadas como bibelôs, bonecas,
estando livres desse afeto inibidor, fraternal e familiar que asfixia e apri-
siona, tal como um abraço de urso, que acolhe e mata. As crianças negras
tem, em potência, a possibilidade de desfrutar da exuberância e da capa-
cidade diruptiva de serem diferentes.
Apesar das práticas ostensivas de diferenciação, principalmente
de caráter racial e estético, as professoras diziam trabalhar como se não
houvesse diferença, pois “todos são iguais”, ou seja, havia um apagamen-
to/apaziguamento das diferenças no discurso da igualdade ainda presen-
te como um resíduo da “democracia racial” e também do entendimento
de que a diferença significa desigualdade.
Precisamos de uma educação que não seja prisioneira do discur-
so da igualdade, para que, segundo Jódar e Gómez (2002, p. 34), “diante
da vergonha de ser Homem e da exigência de educar para não repetir
Auschwitz (ADORNO, 1998), uma resposta possível é devir-outro, o
outro de Homem”. Ou seja, uma educação que não esteja presa à forma-
homem dominante: homem-branco-adulto-heterossexual-cristão.
Isso é o que Katz (1995, p. 93), chamou de “crianceria”, dando-lhe
o seguinte significado: “crianceria onde afetos se recusam à inscrição, afetos
errantes em seus encontros, afetos-criança. Afetos que não se querem prisio-
neiros de algum sistema. Nem de si próprios, em busca do novo e criativo,
permanentemente”. É o que Deleuze denominou “devir-criança” como
uma forma de resistência aos agenciamentos empreendidos pelos adultos.
De acordo com Jódar e Gómez (2002, p. 35), “devir é sempre
experimentar e explorar a alteridade da forma do ser Homem”, é um pro-
cesso que não reivindica um estado identitário, codificado, mas que evoca
uma indiscernibilidade na qual “não seja possível distinguir-se de uma
criança” (JÓDAR; GÓMEZ, 2002, p. 35). Esse “uma” sendo usado como
forma de quebrar qualquer generalidade, tratando-se de uma singularida-
de em sua expressão mais elevada. Assim, experimentar e explorar o
“devir-criança” como um modo diferente de se fazer educação, além de
pensar a criança, ou seja, a noção de educação e criança, tendo como base
a infância, na qualidade de experiência propulsora da educação.
Dessa forma, conforme Jódar e Gómez (2002, p. 35), “introduzir
o devir-criança nas formas de pensar e viver a educação não é simplesmen-

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te promover um pensar, escrever, falar ou, em suma, educar “para” as crian-


ças (...). Ao contrário, esse ‘para’ é um processo em devir. Devir duplamen-
te e em paralelo, entre uns e outros, em direção à alteridade de ambos”.
Cada um tem como marca a sua “estrangeirice”, então faz-se necessário
pensar formas de ver a diferença não a partir de um desvio da “norma”, não
tentando trazer o “diferente” para o âmbito do “mesmo” a partir de um
apagamento dessas diferenças, pois é assim que se constitui o “racismo”.
Os dados da pesquisa remetem à discussão de como um saber
específico envolvendo a questão racial é importante para que os profissio-
nais que atuam na escola, desde a educação infantil, tenham clareza de
suas atuações, questionem suas práticas pedagógicas cotidianas, que, mui-
tas vezes atreladas a um fazer acrítico, reforçam situações de racismo que
interferem na constituição da autoestima positiva das crianças negras, de
seu pertencimento étnico e da construção de uma sociedade mais plural e
democrática, visando a que todos tenham seus direitos garantidos, inclu-
sive de aprendizagem e de respeito por suas raízes étnicas e raciais. Ou
seja, os professores necessitam escapar da ordem hegemônica produtora
de desejos, estéticas, prisioneiros para realizar práticas educativas que aco-
lham e produzam diferença, como estratégia pedagógica:

Em suma, precisamos, não o mapa de um outro mundo, mas a cartografia do


outro de todo mundo – aquilo que faz deste mundo um outro, liberando-nos,
como queria Kafka, “das cadeias da existência cotidiana”. Podem irromper a
partir daí, resistências inéditas e vozes inauditas, aptas a dobrar-nos diferen-
temente. (PELBART, 2000, p. 63)

Notas
1
Pesquisa do Projeto Negro e Educação financiada pela Fundação Ford, pela Ação
Educativa e pela ANPED.
2
Esta pesquisa, desenvolvida na cidade de São Carlos, tem como resultado a dissertação
de mestrado Um Estudo sobre a creche: o que as práticas educativas produzem e revelam sobre a
questão racial?, de Fabiana de Oliveira, sob orientação da Profa. Dra. Anete Abramowicz,
do Programa de Pós-Graduação em Educação da Universidade Federal de São Carlos
(UFSCar).
3
O industrialismo, como sistema de organização econômica e social surgido da
Revolução Industrial, nos legou, entre várias outras coisas, tanto a influência do aspecto
material sobre o moral e intelectual quanto a “promessa” de superação de todos os par-
ticularismos presentes nas organizações socioeconômicas anteriores. É por isso que os

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cientistas sociais têm mantido, por muitos anos, que a industrialização e as forças da
modernização tenderiam a diminuir o significado de raça e etnicidade em sociedades
heterogêneas. Eles pensavam que, com o desmantelamento de pequenas unidades sociais
particularistas e a emergência de grandes e extensas instituições burocráticas impessoais,
as lealdades pessoais (e dos povos) e identidade seriam primariamente direcionadas para
o estado nacional mais do que para comunidades raciais e étnicas. O desenvolvimento
oposto, no entanto, parece ter caracterizado o mundo contemporâneo (SILVERIO,
2009, mimeo.).
4
Ver FOUCAULT, M. Em defesa da sociedade. São Paulo: Martins Fontes, 2005.
5
Dados obtidos por meio das entrevistas com as profissionais da creche.
6
Nomes fictícios.
7
A utilização desse conceito no contexto brasileiro serve apenas como categoria analíti-
ca para pensarmos a questão das relações estabelecidas na creche entre adultos e crian-
ças, e não com o intuito de transpor para a nossa realidade a discussão teórica do histo-
riador sobre a construção social da ideia de infância a partir do século XVIII.
8
Exclusão: a palavra não está sendo utilizada para designar um ato de segregação em
relação às crianças negras, mas referindo-se ao recebimento de um carinho diferenciado,
tal com a menor paparicação.

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Endereço para correspondência:


Universidade Federal de Alfenas (UNIFAL)
Departamento de Ciências Humanas
Rua Gabriel Monteiro – Centro
37130-000
Alfenas – MG

Data de recebimento: 10/12/2008


Data de aprovação: 14/01/2010

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