Emilia Mota - Racismo Religioso PDF
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Emilia Mota - Racismo Religioso PDF
2017
Apontamentos sobre racismo religioso contra Religiões de Matrizes
Africanas
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Ocorreram entre agosto e dezembro. A primeira foi a Casa Axé Querioz -Ilê Orinlá Funfun, em Santo
Antônio do Descoberto, que sofreu três ataques. Depois houve uma tentativa de incêndio ao Ilê Axé Omi
Gbato Jegede, em Águas Lindas; em outubro, foi a vez da casa de Pai Adauto Alves da Silva, em
Valparaíso e, em novembro, o Ilê Axé Oyá Bagan foi incendiado no Paranoá. Muitas mobilizações
aconteceram e reverberaram pelo estado.
Em Goiás, a Federação de Umbanda e Candomblé de Goiás (FUCEG) e algumas
casas de axé tem utilizado a expressão ‘racismo religioso’. Os movimentos negros em
parceria com afrorreligiosos têm endossado também essa perspectiva em diversas regiões
do país. Fernandes (2017, p.123) comenta que muitos afrorreligiosos estão reivindicando
respeito “argumentando que outras religiões não cristãs não sofrem o mesmo tipo de
preconceito”. Segundo a autora, a reivindicação se sustenta também na ideia de que esse
“preconceito estaria ligado à formação colonial, à divisão e valoração racial negativa,
influenciando na compreensão da religião”. A frase “não queremos ser tolerados, nós
queremos ser respeitados” tem aparecido cada vez mais nos discursos dos afrorreligiosos
e parece dar o tom da luta e combate ao racismo religioso.
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Segundo Catherine Walsh (2009, p.15), trata-se da “colonialidade cosmogônica ou da mãe natureza, que
se relaciona à força vital-mágico-espiritual da existência das comunidades afrodescendentes e indígenas,
cada uma com suas particularidades históricas.” Essa colonialidade atua na negação ontológica e
epistêmica, “categorizando como não-modernas, “primitivas” e “pagãs” as relações espirituais e sagradas
que conectam os mundos de cima e de baixo, com a terra e com os ancestrais como seres vivos. Assim,
pretende anular as cosmovisões, filosofias, religiosidades, princípios e sistemas de vida, ou seja, a
continuidade civilizatória das comunidades indígenas e as da diáspora africana”.
Axé; ou dizer-se católico, espírita. Inúmeras formas de resistência foram criadas e
continuam sendo criadas nas comunidades de terreiro que procuraram, desde a
sobrevivência física de cada um/uma, à continuidade de seu modo de viver e se organizar
nesse mundo, fortalecendo vínculos, estabelecendo redes de solidariedade; cuidando do
saber vivo (os mais velhos) e cultivando, cuidadosamente, a continuidade (os mais
novos) material e espiritual.
Os tempos são outros mas assim como os tempos mudaram as formas de
violências se atualizaram e não deixaram de existir. Outras estratégias mostraram-se
necessárias e uma delas foi mostrar a cara, as contas no pescoço e as roupas, sobretudo, a
voz. Sempre em movimento, um dos diferentes caminhos encontrados recentemente foi o
de mobilizar, através de meios como a internet, comunidades de terreiro espalhadas pelo
país. Muitas campanhas já foram realizadas e várias organizações, seminários, encontros,
aconteceram e estão acontecendo buscando combater as violências que ainda sofremos
cotidianamente.
Será que tolerância é o comportamento desejado?
Diante de toda mobilização que vem sendo feita há alguns anos, parcerias com
outros movimentos, também em instâncias que antes pareciam inatingíveis e hoje contam
com a presença das populações negras e de afrorreligiosos, o clamor que se escuta e se
percebe parece estar para além do desejo de ser tolerado.
Queremos respeito! E talvez esse termo seja muito mais amplo do que o uso
corriqueiro que se faz dele. Envolve um respeito que se dê mesmo na horizontalidade...
Reflitamos um pouco sobre tolerância/ intolerância.
Poderíamos ser indagados sobre a melhoria e avanço em contraposição a tempos
mais difíceis que nosso país já viveu. Sem dúvidas: algo mudou. Mas vejamos uma
possibilidade de interpretação para alguns usos discursivos de pontos que
consideraríamos, em outro momento, de forma apressada e direta, parte do quadro dos
‘avanços’.
Se pensarmos o cenário do neoliberalismo e dos Estados, observarmos que eles
têm construído discursivamente, noções sobre multiculturalismo e a valorização da
diversidade como parte de seus programas. A ideia de tolerância caminha junto com essa
forma de se apropriar e utilizar o multiculturalismo. Entende-se o direito de ser diferente,
que tolera a diferença desde que esta não interfira em seu fluxo de convivência social
nem desestabilize seus privilégios. Catherine Walsh (2009) nos ajuda a compreender
melhor isso. De acordo com essa autora, podemos identificar um processo por ela
denominado “recolonialidade”, que seria a “colonialidade do poder agora em pleno
processo de reacomodação dentro dos desígnios globais ligados a projetos de
neoliberalização e das necessidades do mercado” (idem, p.16). Ela fala sobre o
neoliberalismo étnico e multicultural que incorpora a diferença ao mesmo tempo em que
a neutraliza e a esvazia de seu significado efetivo.
O multiculturalismo e interculturalidade têm sido utilizados de modo funcional, o
que implica em não transformar as estruturas sociais racializadas; “pelo contrário, seu
objetivo é administrar a diversidade diante do que está visto como o perigo da
radicalização de imaginários e agenciamento étnicos” (WALSH, 2009, p.20). Esse
interculturalismo funcional buscaria promover diálogo e a tolerância “sem tocar as
causas da assimetria social e cultural hoje vigentes” (Tubino apud WALSH, 2009, p.21).
Ao pensar no uso ‘funcional’ dessas abordagens percebemos que os povos de
religiões de matrizes africanas fazem parte do conjunto de cosmos e espiritualidades que
constituem “vallas disfuncionales al capital” e ao desenvolvimento (SEGATO, 2016).
Assim, o movimento de incorporar suas diferenças não é parte de uma postura crítica e
voltada às transformações. Os mecanismos teriam por objetivo gerar um reconhecimento
instrumental que serviria mais para reforçar as relações de poder e dominação dentro de
perspectivas de mercado e de hierarquizações, do que para gerar redistribuição e
mudanças estruturais reais.
A tolerância tem sido pensada, também, como uma prática de aceitação
harmoniosa em algumas argumentações sobre as questões de liberdade religiosa. É o que
mostra Ilzver Oliveira (2014) em sua tese de doutorado. Este autor posiciona-se de modo
contrário a essa perspectiva, entendendo que a trilha a ser seguida para o combate às
repressões contra religiões de matrizes africanas, é a de ruptura com o racismo sobretudo
o racismo institucional.
Acredito que experiência com o mito da democracia racial e ideia de convivência
harmônica entre as raças, confere-nos experiências suficientes para questionar, no
mínimo suspeitar, de noções tomadas como ‘prática de aceitação harmoniosa’. O que se
tem visto com o crescente registro de ataques contra os afrorreligiosos juntamente com a
perspectiva apresentada por Catherine Walsh, é justamente o contrário de um tom
harmonioso.
O par tolerância/ intolerância, da maneira como o pensamento tem sido
construído aqui, parece qualificar atitudes específicas que servem como instrumentos
num cenário racializado. Tolerar sugere uma constante tensão de que ora pode vigorar
sob a construída imagem de respeito ora pode se decidir apagar. Indica que algo modula
essa chave conforme seus desejos. Como bem coloca Goldman (Jornal Adital, 2014),
“significa que a tolerância sempre envolve um sentimento de superioridade que permite
até mesmo ser "tolerante” com os outros”. Num mesmo sentido, Tomás y Valiente,
segundo Fernandes (2017, p.125), rejeita a tolerância e a define como uma
‘concesión graciosa y unilateral que el dominante hace al dominado, trata de una actitud
que podría expresarse en la frase – te tolero, pero podría no hacerlo”. A tolerância
vista como uma indulgência.
Enrique Dussel (s/d) faz uma discussão sobre a intolerância indicando que ela
articula uma certa unidade entre teoria da verdade e o poder político. Segundo este autor
“el intolerante afirma “poseer” la verdad o encontrarse en un acceso privilegiado con
respecto a lo que se conoce como “verdadero” (s/d, p.01). De acordo com o autor, trata-
se de uma relação entre dominante e dominado, em que a tolerância só pode ser
promovida ao sujeito com menos poder, uma vez que “o sujeito dominante/ hegemônico
não necessita da indulgência ou condescendência de sujeitos subordinados
hierarquicamente a ele” (DUSSEL apud FERNANDES 2017, p.125).
Os agenciamentos do par tolerância/ intolerância estão ligados à atitude de tomar
os conhecimentos, saberes e modos de vida das comunidades de terreiro como
meramente crenças, pensadas na chave da representação. Também estão relacionados à
dimensão que Sueli Carneiro (2008) aciona como elemento constitutivo do dispositivo de
racialidade, a saber, o epistemicídio, importante para pensar o racismo religioso.
Comentarei sobre isso mais a frente. Passemos agora ao conceito de dispositivo de
racialidade.
4. Dispositivo de racialidade
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É importante pontuar que está em andamento uma campanha de mobilização denominada Liberte nosso
Sagrado, que reivindica a devolução dos objetos apreendidos. Página online
<https://m.facebook.com/profile.php?id=245804462571950&ref=content_filter>
objetos, praticantes e cultos- diretamente à criminalidade, ao desvio social e aos aspectos
negativos vinculados ao que se chamou de magia negra e feitiçaria.
O racismo religioso, como podemos visualizar a partir do que tem sido dito aqui,
é um dos efeitos de poder desse dispositivo que pela via do epistemicídio ganha maiores
dimensões. Embora algumas instâncias governamentais insistam hoje que os ataques aos
terreiros são “na verdade” brigas entre vizinhos, mero dano ao patrimônio privado; nas
violências físicas e morais praticadas contra os afrorreligiosos como desentendimentos
particulares, o que verificamos é mais uma operação do dispositivo de racialidade. A
6
Essa
discussão pode ser aprofundada em Reflexão sobre o culto moderno dos deuses fe(i)tiches, de Bruno
Latour (2002), editora: Edusc.
negação completa das diferentes relações com o corpo, com o território e com os
conhecimentos, que não são da mesma ordem que a perspectiva ocidentalizada,
cristianizada e moderna7 pressupõe!
O dispositivo de racialidade, ao cumprir funções estratégicas, articula práticas
divisórias que têm efeitos ontológicos (CARNEIRO, 2008). Uma das formas de abordar
essa questão é pensar que a enunciação do ‘eu’ parte da enunciação do ‘outro’, no sentido
de que, para dizer quem sou eu afirmo que não sou o outro. É o Não- Ser afirmando a
existência do Ser, que nesse caso se funda na brancura, um ‘eu’ que adquiriu
superioridade pela produção do inferior (idem, p. 42).
Aquilo que Deleuze e Guatarri (1996) mobilizaram para falar sobre a máquina
abstrata de rostidade pode ser uma outra forma de pensar os caminhos de operação e
articulação desse dispositivo. Arrisco aqui uma aproximação desses dois conceitos. A
perspectiva maquínica elaborada pelos autores pode ser lida como uma reelaboração dos
desenrolares das sociedades de controles, pensadas por Foucault.
O processo de afirmações e negações se assemelha ao que propõe os dois autores
citados quando tratam do caráter de resposta seletiva que a máquina de rostidade assume.
Ela passa a escolher o que está entre os conforme e os não-conformes. Afirmam que o
rosto é político, sendo a máquina de rostidade assim chamada porque trata da produção
social de rostos. As significâncias e subjetivações se articulam nos rostos, que formam
lugares de ressonância. Daí cabe entender que “determinados agenciamentos de poder
têm necessidade de produção de rosto, outros não” (DELEUZE E GUATARRI,
1996,p.42). Esse parece ser o caso do dispositivo de racialidade.
Deleuze e Guatarri (idem) se referem no texto sobre a rostidade ao que
denominaram de racismo europeu. Ao falar do Ano-zero, fazem alusão ao ano-cristo.
Baseando-se nisso, afirmaram que o rosto não é universal, logo, o do Homem-branco
também não, entretanto, este mesmo rosto faz parte da invenção da rostificação de todo o
corpo transmitindo essa referência por toda parte (DELEUZE E GUATARRI,
1996,p.43).
Consideradas essas proposições e os postulados sobre a máquina de rostidade,
que se detém a unidades e escolhas, observamos que independente do conteúdo a
7
No sentido em que Bruno Latour toma esse termo, para falar como a sociedade pensou a si mesma
assumindo a modernidade como uma ruptura. Para esse autor, essa ‘ruptura’ é entendida como
superioridade de certos tipos de conhecimentos.
máquina irá priorizar a constituição de uma unidade de rosto, rejeitando os não-
conformes ou com ares suspeitos (idem, p.45). A relação com os rostos e suas desvianças
se dá de modo que um “sim” a um deles marca tanto uma tolerância a outros, em
determinadas condições, quanto pode apontar um inimigo que deve ser abatido a
qualquer preço.
Quando o rosto é o cristo – o rosto do Homem-branco, as primeiras desvianças
seriam as raciais (idem). Portanto, o amarelo, o negro, e assim por diante, deverão ser
cristianizados- rostificados- conforme esse rosto de referência. Assim, o racismo europeu
procederia através da determinação das variações de desvianças, alocando-as de acordo
com as escolhas da máquina de rostidade que “ora tolera ora apaga no muro que jamais
suporta a alteridade” (idem). O que retomar também a afirmativa de Antônio Sérgio
Guimarães sobre o caráter heterofóbico do racismo, que não aceita diferenças e tende a
homogeneizar.
A partir da máquina de rostidade podemos olhar para aquela situação em que o
artigo do código deu brechas para interpretações policiais, que enfocaram grupos
específicos de “espíritas” para persegui-los sob acusação de práticas associadas ao mal.
O racismo e os agenciamentos maquínicos estão articulados, como se pode ver, nas
estruturas estatais que controlam conformes e não conformes.
Conseguimos perceber outro jogo que o termo “tolerância/ intolerância” pode
articular nos termos de seleção, afirmação, identificação e negação. Se extrapolamos para
8
o caso da demonização das religiões de matrizes africanas veiculada pelo
Neopentecostalismo. O posicionamento assumido é o de que cabe tolerar a existência
delas para que sejam o inimigo eleito (aquele identificado como demônio e fonte de todas
mazelas) e, ao mesmo, tempo, cabe a intolerância, desenhada como a decisão de que
devem extinguir a qualquer preço e da maneira como desejarem aqueles não-conformes.
O caso da disseminação de ódio e outras práticas daqueles conhecidos como
neopentecostais contra as religiões de matrizes africanas tem sido abordado - para citar
alguns nomes conhecidos - , por Vagner Gonçalves da Silva (2005, 2007, 2007a, 2014),
Ari Pedro Oro (1997, 2003).
8
Ver Vagner Silva (2005)- Concepções religiosas afro-brasileiras e neopentecostais: uma análise
simbólica.
4.3 Operações do dispositivo de racialidade em casos mais recentes
Este mesmo autor (2014, p.18) relembra que o aparato de medidas legislativas
que se referem às comunidades tradicionais no país tem lá sua robustez.
Vejamos: a Constituição de 1988, com ênfase no Artigo 5º que trata da liberdade
de expressão; a Lei Caó” (Lei 7.716/89; modificada pela Lei 9.459/97) e o Estatuto da
Igualdade Racial, Lei Nº 12.288, de 20 de julho de 2010, que aborda especificamente o
tema da religiosidade no Capítulo III; criação da Secretaria de Políticas de Promoção da
Igualdade Racial; a Lei federal no 11.635 de 2007, do Dia Nacional de Combate à
Intolerância Religiosa, comemorado no dia 21 de janeiro; o Decreto 6.040 de 7 de
fevereiro de 2007 instituiu a Política Nacional de Desenvolvimento Sustentável dos
Povos e Comunidades Tradicionais; a presença de um parágrafo no Código Estadual9 de
Proteção aos Animais que destaca a liberdade das religiões de matriz africana para
realizarem os procedimentos ritualísticos com a utilização de animais.
Houve também a criação do disque 100, órgão ligado à ouvidoria da Secretaria de
Direitos Humanos da Presidência da República (SDH/PR), um dos mecanismos
utilizados para a denúncia de violações de direitos, e que tem recebido um número
crescente de denúncia com relação ao racismo religioso contra as religiões de matrizes
africanas.
Em concordância com Oliveira (idem), de fato temos atualmente muitas leis que
permitiriam melhores condições de vida às comunidades de terreiro. Contudo, pensando
a operação do dispositivo de racialidade, a mesma instância que produz essas leis é a que
nega os direitos dessas comunidades. Oliveira (2014, 62) percebe que se “a repressão
policial e dos órgãos do sistema de justiça não são explícitas”, é porque “apresentam de
outras formas- sutis- veladas de negação de direitos dos afrorreligiosos”. E no caso de
Santa Luzia- MG nem podemos dizer que a justiça agiu de modo ‘sutil’ e ‘velado’.
Muitas acusações assolam as comunidades de terreiro atualmente, que chegam a
fechar casas das religiões de matrizes africanas sob a alegação de perturbação do
sossego, poluição sonora, poluição ambiental e maus-tratos a animais, casos de cobrança
de impostos. Verifica-se que ainda que exista uma legislação que ‘ampara’ as religiões de
matrizes africanas, outras formas de operação do racismo de estado encontra formatos de
acusações que tornam a inviabilizar a existência dos terreiros. É o uso funcional de
categorias de que falou Catherine Walsh (2009) que não tencionam as estruturas
racializadas e as assimetrias sociais. É também uma das formas de decidir quem o Estado
deixa viver ou faz morrer.
Recentemente, após discussões levantadas por proposições de leis, que possam
regular o sacrifício ritual de animais, em diferentes estados do país (ORO, 2005;
GOLDMAN, 2015; COELHO et al, 2016; VIEIRA e SILVA, 2016, dentre outros).
Assim, outros setores começaram a se pronunciar sobre as questões, como aqueles que
advogam pelos direitos animais. Outros abordam o tema como forma de evidenciar que
9
Necessário verificar ainda a amplitude disso nos estados brasileiros.
se trata de, mais uma vez, posicionamento racistas do Estado e dos proponentes das leis
para com as religiões de matriz africana. Uma vez que o discurso camuflaria a tentativa
de embaraçar a prática religiosa desses grupos, o que contradiz o próprio Estatuto da
Igualdade Racial- para citar ao menos um dos instrumentos jurídicos.
Conforme exemplifica Ilzver Oliveira (2014, p.141), “no Rio Grande do Sul, por
pressão de políticos e com o apoio das sociedades protetoras dos animais, o Código
Estadual de Proteção aos Animais tem sido acionado na tentativa de coibir os sacrifícios
rituais do candomblé”. Um trecho da proposta vedava a realização de cerimonias
religiosas em que fossem feitas imolações de animais. Mas segundo Silva (2007 apud
Oliveira, 2014), ainda que tenha sido barrada a ação, ocorreram alguns processos como
aquele contra a Mãe de santo Gisele Monteiro da Silva, “condenada a trinta dias de
prisão por realizar sacrifícios de animais em seu terreiro”.
Em São Paulo, por mais de uma vez pudemos ver a tentativa de emplacar uma
legislação semelhante. Em 2001, foi proposto o projeto de lei 992/201110, que proíbe o
sacrifício de animais em práticas de rituais religiosos no estado de São Paulo. Em 2016,
no município de Cotia (SP), propuseram a lei 1960 que dispunha “sobre a proibição da
utilização mutilação e/ou sacrifício de animais em pesquisas, em rituais religiosos ou de
qualquer natureza” (COTIA, 2016). A votação em 2017 gerou grande mobilização por
parte dos afrorreligiosos. De acordo com matéria divulgada em abril de 2017, pelo
ConJur, o advogado Hédio Silva Júnior declarou que “a norma também viola leis federais
que já tratam de maus tratos contra animais e discrimina religiões ao presumir que todo
abate desses seres é errado, enquanto a morte para fins comerciais é sempre considerada
legítima”.
O tema sobre a imolação de animais é complexo porque envolve a capacidade dos
julgadores de compreenderem que trata-se de uma outra forma de viver muito além de
mera crença em que se supõe que as práticas podem ser facilmente alteradas. Toca na
questão de segurança alimentar também, uma vez que os animais são preparados
ritualisticamente para alimentarem às divindades e também toda a comunidade, já que
não se desperdiça. Mexer nesse ponto é modificar a relação que as comunidades
estabelecem com os animais, os territórios, as divindades, as pessoas. Este é um assunto
10
Projeto de lei proíbe sacrifício de animais em rituais religiosos em SP. Nota do dia 18/ outubro/2011.
Disponível em <http://g1.globo.com/sao-paulo/noticia/2011/10/projeto-de-lei-proibe-sacrificio-de-animais-
em-rituais-religiosos-em-sp.html > Acesso 27/07/2017.
que será melhor desenvolvido noutro lugar.
O que se pode observar é que para além da existência de leis que possam
melhorar as condições de vida das comunidades de terreiro, o discurso da tolerância
segue invisibilizando o racismo religioso e jogando com as possíveis operações do
dispositivo de racialidade. Este, por ser uma rede de elementos heterógenos, consegue
operar em esferas diferentes que atingem as religiões de matrizes africanas, atualizando-
se.
***
Referências
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história, história de mulheres / Maria Elisabete Arruda de Assis; Taís Valente dos
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Sacrifício Ritual de animais não –humanos nas liturgias religiosas de matriz Africana:
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n. 22, pp 53‑82, Mai -Ago 2016.
COTIA, São Paulo. Leis municipais. Lei ordinária 1960 de 2016. Disponível em:
https://leismunicipais.com.br/a/sp/c/cotia/lei-ordinaria/2016/196/1960/lei-ordinaria-n-
1960-2016-dispoe-sobre-a-proibicao-da-utilizacao-mutilacao-e-ou-o-sacrificio-de-
animais-em-pesquisas-em-rituais-religiosos-ou-de-qualquer-natureza-no-municipio-de-
cotia-e-da-outras-providencias?q=religiosos#
CONJUR. Limites ao ritual: TJ-SP fica lotado em julgamento sobre sacrifício religioso
de animais. Abril/2017. Disponível em: http://www.conjur.com.br/2017-abr-26/tj-sp-
lota-durante-julgamento-sacrificio-religioso-animal
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