O Albatroz - Jose Geraldo Vieira
O Albatroz - Jose Geraldo Vieira
O Albatroz - Jose Geraldo Vieira
O ALBATROZ
Editora Descaminhos
São Paulo
2014
Copyright ©2014 by José Geraldo Vieira
Capa
Marcio Scavone
Edição
André Caramuru Aubert
Prefácio
Alfredo Bosi
Produção editorial
Clélia Aubert
Revisão
Douglas Batalha
Leda Botton
“Não procurar deixar de sofrer ou sofrer menos; e sim, não ser alterado
pelo sofrimento.”
Simone Weil
I
BARCOS DE PAPEL
O jazigo inútil...
LUZIA, a cozinheira, não entendeu aquela expressão do professor
Maurício. Mas ele sabia bem o sentido profundo da sua referência
aparentemente vaga. E, mais do que ele, a sentia em sua veracidade cruel a
mana Virgínia.
Treze anos antes do último fato narrado no capítulo anterior — e
mero aspecto da vida feliz levada na chácara do Jardim Botânico — o
coronel Aleixo, sogro de Virgínia, certa manhã convidara Maurício, que
então dispunha de tempo pois abandonara a Politécnica e cursava a Escola
Naval, para acompanhá-lo até à o cina dum marmorista italiano na rua da
Matriz, em Botafogo.
— Pode parecer uma ideia extemporânea e um convite
despropositado; mas quero que dê sua opinião sobre o jazigo perpétuo que
mandei fazer sem a aquiescência de minha mulher. Resolvi empregar nisso o
dinheiro do material de demolição dum prédio.
Quando entraram na o cina em cuja porta principal se vendiam
ores, pois o cemitério de São João Batista era ali perto, lhes veio ao
encontro o velho Tronchi, encordoado de pele e músculos como um galo de
briga (mas comparável em sua feiura esquelética a uma estátua móvel de São
Jerônimo). Foi logo dizendo para o coronel enquanto com um gesto
mostrava o jazigo:
— Oblatis, Domine, placare muneribus.
Ao que o coronel, conspícuo latinista, respondeu:
— Presta, quaesimus, ut quod temporaliter gerimus, aeternis gaudiis
consequamur.
Maurício achou aqueles dois interlocutores extravagantes, o coronel
de cartola, sobrecasaca e barba Souvarov, o escultor de melenas revoltas,
calças de veludo e avental inteiriço, dois excelentes gurões contracenando
para uma plateia invisível de fantasmas. O coronel Aleixo traduziu logo o
diálogo:
— Não se assuste. Sei que sabe muito bem matemáticas e ciências,
mas provavelmente desdenha o latim. Tronchi atirou-me com esta: “Aplacai-
vos, Senhor, com as dádivas que vos oferecemos”. E eu pespeguei-lhe:
“Esperemos que o combinado cá na terra nos proporcione conforto eterno”.
Traduzido, não era tão estrambótico.
Tronchi inseriu-se no meio dos dois como uma dobradiça de porta
dupla, levou-os por entre uma exposição de cruzes, anjos e vasos de
mármore, e mostrou com gesto declamatório o mausoléu.
O coronel Aleixo assim que viu cou rubro, deu um safanão simétrico
nas abas da sobrecasaca e recuou, enfurecido.
— Não foi isso que lhe encomendei. Exigi e expliquei muito bem que
fazia questão duma pirâmide. Não aceito! Inde ro! Não serve! Não pago!
Mas o Tronchi, sem levar nenhum susto, explicou que tinha sido
ordem categórica de dona Maria-Amélia.
— Minha mulher não tem nada que ver com isto! Já que não permite
que eu me intrometa nas coisas deste mundo, que não se imiscua nas do
outro! Demais a mais, como foi que ela adivinhou?
— Disse-me, coronel, que descobriu os esboços e desenhos no seu
bolso; veio imediatamente me procurar, ordenou modi cações e decretou
segredo! Declarou que numa pirâmide abafava. Que ela não era a rainha
Karomama nem o senhor o faraó Amenó s IV. Trouxe-me depois um álbum
do cemitério monumental de Gênova, escolheu uma graciosa composição
circular.
— Não concordo, absolutamente! Encomendei uma pirâmide por sua
síntese de incomparável sabedoria. Então você não sabe que a estrutura da
pirâmide está regulada por seu triângulo vetor?
Tronchi abaixou os olhos como um péssimo aluno de geometria,
deixou que o coronel falasse da divina proporção representada pelo símbolo
da letra grega phi; depois criou coragem e ponderou:
— Mas, coronel, não z o jazigo que Dona Maria-Amélia escolheu!
Um artista da minha responsabilidade não se sujeitaria, mesmo estando no
exílio em situação precária por motivos losó cos, não se sujeitaria, digo, a
fazer um monumento de gosto burguês copiado dum catálogo. Este
sarcófago que lhe estou mostrando vai dirimir uma possível desavença
doméstica e é a cópia exata da tumba do principal discípulo de Arquimedes
em Siracusa, minha terra natal. Sua senhora me disse peremptoriamente:
“Seu Tronchi, embirro com a pirâmide de Quéops. Se Aleixo fosse solteiro
admito que quisesse descansar onde muito bem lhe desse na veneta. Mas
com a família, não! Não estou para que no dia de Finados, cada ano,
zombem do meu mausoléu, futuramente”. Vai então, coronel Aleixo,
conciliei as coisas. Agora, indago com o coração na boca: Recusa-se a aceitar
um mausoléu que é a reprodução conscienciosa da tumba grega do principal
discípulo de Arquimedes? Dum monumento que é uma joia de Siracusa?
Uma con uência de harmonias? O vão sublime do silêncio! A quietude
magní ca onde a própria eternidade se contempla? Veja! Observe! Que
paz... Que serenidade... Que vitória merecida contra o tempo! Que vaso de
imanência!...
— Seu Tronchi, olhe-me bem. Isso é mesmo dum discípulo de
Arquimedes?
— Palavra, coronel! Vou mostrar-lhe postais. Tem a reprodução no
livro de Vasari!...
— Bem. De fato, não mereço a pirâmide. E muito menos a merece a
Maria-Amélia. Não sou Amenó s IV e ela está longe de ser a rainha
Karomama. A pirâmide cará para depois de outras desencarnações...
Tirou e repôs a cartola, encheu um cheque ali mesmo em cima do
balcão que rescendia a goivos, enquanto Maurício dava uma olhadela aos
anjos e às cruzes por mais que o estatuário procurasse demovê-lo
confessando:
— Robaccia! (Coisa ordinária.)
O coronel, agitando o cheque para que este secasse, entregou-o a
Tronchi, ordenou a compra do mármore e o início dos trabalhos, co ou o
queixo deixado livre pela barba Souvarov, deu um repelão na aba da
sobrecasaca, foi até à porta da rua, chamou com um gesto a vitória cujo
cocheiro também encartolado tratou logo de obedecer.
Depois de olhar de relance a quantia declarada no cheque, o Tronchi
se desfez em amabilidades.
— Para que essa pressa, coronel Aleixo? Se há um caso em que o
pagamento e a realização devam ser adiados é este, non é vero?
— Concordo com o reparo — observou o coronel instalando-se na
carruagem logo seguido por Maurício. — Mas, atendamos ao que São Paulo
disse aos coríntios: “Omnes quidem resurgemus sed non omnes
immutabimur”.
A vitória seguiu para o Jardim Botânico onde o coronel, a esposa, a
nora e a lha mais o Maurício almoçaram.
— Onde esteve, Aleixo? Demorou tanto... — disse à certa altura dona
Maria-Amélia.
— No Ministério da Guerra! Dizendo umas verdades nas bochechas
do marechal Bittencourt. Fiz-lhe ver que há responsáveis e instigadores sub-
reptícios da resistência de Canudos... Sim, os monarquistas! Perfeitamente.
Esse café vem ou não vem?
Depois do almoço o coronel desceu para a cidade com o Maurício,
tendo desde o Largo dos Leões até à Lapa pespegado no irmão da nora,
durante o trajeto do bonde, uma aula quanto às vantagens do Withworth 32
sobre a bateria Krupp, uma catilinária contra Moreira César e um panegírico
ao coronel Tamarindo, assuntos estes que entrecortava com pormenores
arquitetônicos, sociais e políticos de fatos e coisas antiquíssimas, sempre que
o bonde passava diante ou perto dalgum ponto de referência que o
in amasse. Como sempre, muito loquaz e redundante.
— Como é, Maurício! Já esteve alguma vez em Copacabana, rapaz? Já
estou beirando os cinquenta anos, mas ainda hei de ensinar-lhe um caminho
formidável para o lado de lá. Não pela Ladeira do Leme, o caminho que
Maria Graham descobriu; e nem pelo túnel aberto por meu parente Coelho
Cintra no Morro de Vila Rica, prolongamento do Morro da Saudade. Sei um
trecho, contornando Sacopenapã que, embora seja longo, é admirável como
vista e passeio até se chegar à Praia de Fora. Mas se o Governo quiser abrir
mesmo uma passagem inteligente para Copacabana, sabe o que ele deve
fazer, rapaz? É varar o Morro da Babilônia.
E, mais adiante:
— Mas ao Jardim Botânico você já tem ido, não? Merece a pena. Sim,
merece a pena. O antigo Horto Real é qualquer coisa de extraordinário.
Dizer-se que aquilo começou nos terrenos da fábrica de pólvora do Marquês
de Sabará! E começou com quê, aquele mundo quase fronteiro à minha
casa? Com uns pés de cravo-da-índia, de pimenta-do-reino, de cana de
Caiena, de noz-moscada... Depois, em 1809 recebeu a palmeira imperial...
Até chá eles plantaram, Maurício. Não entro lá faz muito tempo. Decerto
por morar quase defronte. Mas sempre tenho uma reação. O velho Horto
Real, ou o Real Jardim Botânico, foi o primeiro trecho do Brasil que se
desnacionalizou; nada tem de nosso, a não ser alguma coisinha da
Amazônia. Foi por isso que, antes de decepcionar a mim, decepcionou a
Maria Graham, a Ribeyrolles e a Gardner. No meu entender o único
elemento bem brasileiro que existiu ali dentro foi frei Leandro do
Sacramento. Mas, merece a pena ir. Merece.
Ou então, mais adiante:
— Cá estamos diante do Palacete Abrantes com a sua capelinha à
Nossa Senhora da Piedade. O Calmon melhorou-o muito. O Calmon é um
gentleman. Este palácio só teve um interesse igual ao de hoje no tempo de
Carlota Joaquina; mas decaiu quando o habitou o Barão do Catete que
depois foi Visconde de Silva.
E mais adiante:
— Este, sim; este o Governo fez muito bem de comprar. Está em
obras. Foi um grande sujeito o Antônio Clemente Pinto. Se foi! Deixou a
nossa gente de boca aberta. E não menos formidáveis e aluados foram os
herdeiros dele. O Antoninho, Barão, Visconde e Conde de São Clemente! E
o Bernardo, Barão, Visconde e Conde de Nova Friburgo.
A seguir, mostrando o palácio que um tal Martins Cornélio comprara
ao Ribeiro da Silva:
— Veja que beleza! É pena estar tão rente à rua! Consta que acabou de
ser doado à Misericórdia. Mas, espere, que já lhe mostro o palácio do
Visconde de Meriti. Aqui, meu caro, houve sangue nobre! O palacete Bahia
tem estirpe. Vem dos Lopes Pereira e dos Abrantes. Mas, bonito,
monumental mesmo, com ar de qualquer coisa europeia, é o palácio
Itamarati que o Governo comprou ao Francisco José da Rocha. Aquilo sim!
Pouco depois, antes do Passeio Público, o coronel Aleixo deu uma
risada, bateu no joelho de Maurício e exclamou:
— Não há coisa pior no mundo do que o erudito. Vê essa demolição?
Parece que o Governo vai levantar aqui na Praia da Lapa um prédio
reunindo o Instituto Histórico e Geográ co Brasileiro, a Academia de Letras
que falam em fundar, a Academia Nacional de Medicina e a Ordem dos
Advogados. Foi o que me disse o Paranhos... E me contou que embora a
planta ainda não esteja pronta (os estupores ao menos zessem uma cópia
do Instituto de França!), o Ramiz Galvão já anda a estudar nomes para o
prédio. É claro que está emaranhado em raízes e desinências gregas,
pensando (isto vai por conta do Paranhos), em absurdos como estes:
Polilógio, Panetásio, Logossinédrio!... ah! ah! ah! Esses sujeitos são fósseis,
Maurício! Fósseis, digo-lhe eu!
Ainda ria quando saltou do bonde e foi tomar um tílburi no Largo da
Carioca a m de seguir para o Quartel General.
Mas a verdade é que naquela tarde não andou pelo centro, como de
hábito, e apareceu em casa relativamente cedo. É que de repente, na cidade,
se lembrou duma coisa: o número de sarcófagos dentro do mausoléu. Subiu
pois mais cedo só para interpelar o Tronchi, que se assustou ao vê-lo.
— Mostre-me outra vez essa joça! Quero ver lá dentro. Não vi, esta
manhã.
Então o Tronchi se aproximou da enorme maqueta de gesso e a
descobriu como quem destampa um açucareiro. Ladeando uma espécie de
complúvio se viam duas ordens de sarcófagos; quatro de cada lado. Os da
esquerda, delicados; os da direita, pesados. E o Tronchi explicou,
especi cando:
— Para homens, os da direita. Para mulheres, os da esquerda.
— Não serve! Isso de “para cavalheiros” e “para senhoras” está
parecendo coisa sanitária, seu Tronchi! Quero casais juntos. E, antes de mais
nada: só oito? Não acha pouco?
— Bem, com licença; vamos por partes; primeiro: com que então o
coronel quer homens e mulheres juntos?
— Lógico. Se em vida há eventuais separações, que pelo menos na
morte quem lado a lado.
— Bem. É fácil. Ó Zoroastro, ajude aqui.
E o Tronchi e o servente, bufando e se sujando de gesso, puseram na
ordem desejada pelo coronel os oito sarcófagos. Dois casais dum lado, dois
casais do outro.
— Agora, a outra questão...
— Exatamente! Por que só oito? — perguntou o coronel.
— Bem. Quatro gerações, quatro casais, em teoria. Segundo a frase
bíblica: “E que possais ver os lhos dos vossos lhos até à terceira e à quarta
geração...”
— É pouco! Tenho lho. Breve vou ter neto. Vai ser um nunca mais
parar.
— Bem. Sempre haverá espaço para mais. Tiram-se os ossos
anteriores, substituem-se pelos corpos dos pósteros... Isto, coronel, é um
jazigo, uma coisa limitada e não... um cemitério! O cemitério é em redor,
non é vero? — perguntou o Tronchi com certa desenvoltura de quem não crê
que além de quatro gerações perdurem os vínculos.
— Está bem. Está bem. Concordo. Toque esse negócio! Quero ser
patriarca!
***
***
E tais leis deviam existir mesmo, conquanto latentes, visto como bem
menos dum ano depois Virgínia, já tendo terminado o curso, se achava no
Hotel White com o pai, lá perto das furnas da Tijuca e, certa manhã radiosa,
ao entrar correndo do jardim para a sala, resvalou num hóspede opulento
que jogava bilhar com um moço fardado.
O coronel Aleixo voltou-se, abraçou-a com estouvamento, deu-lhe
passagem, porque era a vez do lho jogar. Virgínia, reconhecendo-o, embora
ele estivesse em mangas de camisa e com o colete entreaberto, resolveu
perguntar:
— Como vai a sua a lhada minha xará?
— Hein? Como? A Virgínia? Conhece-a? Você quem é?
— Eu sou aquela aluna dos Santos Anjos, a outra Virgínia que
chamaram ao parlatório por engano.
— Ahn! Dê-me um abraço. Não garanti que não há acasos nem
enganos? E vou cumprir minha promessa. Cá está meu lho. Artur, eis um
partidão. Escute, Virgínia, você não tem sentado sempre à mesa do Gama, o
assistente do Barão de Pedro Afonso? Ah! É lha dele, do Gama?... Artur,
melhor ainda! Eis um partidão. Mais bonita, é impossível!
E contou logo ao lho, em meia dúzia de palavras, como conhecera
aquela moça.
E Virgínia viu um rapaz de menos de vinte anos per lar-se, esticando
para um lado o taco, depois cumprimentá-la enquanto o pai dizia:
— Virgínia Gama e o guarda-marinha Artur Cintra.
— Já depois do almoço o coronel Aleixo travou uma briga ideológica
com o doutor Gama. Era um dos seus modos de fazer camaradagem. Assim,
após algumas frases sobre Paris, a ciência, etc., o coronel lhe perguntou:
— ... E que notícias me dá de Augusto Comte e de Clotilde de Vaux,
prezado doutor?
— Bem, se não me falha a memória, Comte morreu em 1857,
portanto, há trinta e oito anos...
— Ora, doutor Gama, não tome as perguntas em sentido literal, pelo
amor de Deus! Re ro-me ao halo... à doutrina, à lição permanente de
harmonia. Compreende?
— Compreendo! O senhor é positivista, não? E do exército, não? Pois
consinta que lhe declare que perante Augusto Comte co do lado de Littré,
para não dizer de Saint-Simon. Dou apreço muito relativo a Comte, cuja
in uência no Brasil é paradoxal. Faz nossos militares estudarem loso a do
bom comportamento em lugar de estudarem balística.
Claro que com tais rompantes recíprocos caram amigos desde
aquela temporada em diante.
Se as manhãs às vezes tinham certa névoa, as tardes eram límpidas e
belas não só nos terrenos do Hotel White com admiráveis recantos
sombreados por guarajubas, aroeiras e araribás, como nas encostas e vales
que ambos, Artur e Virgínia, percorriam a pé ou de carro até ao crepúsculo,
indo visitar locais românticos e admirar vistas surpreendentes: o Excelsior, a
gruta de Paulo e Virgínia, as Furnas, a fonte Pirauí, a Mesa do Imperador, a
Vista Chinesa, a Cascatinha. E se Virgínia durante o percurso interrompia as
tentativas de idílio de Artur perguntando o nome de certas árvores, ele, além
de explicar que eram caneleiras, cedros, angelins, imbus e ipês, dizia que na
sua chácara no Jardim Botânico, perto da Lagoa, as quaresmas, as cássias e
as buganvílias tapavam da rua para dentro a vista da casa; e que se o jardim
em redor do prédio tinha manacás, hibiscos, crótons e agapantos em
profusão, já a chácara propriamente dita era um pomar selvagem cheio de
pés de cambucá, abio, grumixama, goiaba, caju, pitanga, araçá, manga,
sapoti, fruta-pão, jaca e cajá. Árvores enormes, matriarcais. Sem contar as
amendoeiras junto à lagoa. Que no jardim, dos lados do casarão, havia
caramanchéis de tanta sombra e perfume que pareciam grutas para
aparições de santas, ou nichos para estátuas... E pequenos lagos arti ciais, de
cimento, para onde a água escorria cantando e fazendo tremer avencas e
begônias, por entre arestas reluzentes de miríades de cacos de ladrilhos,
vidros, conchas e seixos embutidos. E tudo isso por entre muros em cujos
portões pinhas e hipogrifos de louça já tinham a pátina do tempo. Mas,
perguntava Artur, que lhe adiantava tudo aquilo se nos poucos dias que saía
da Escola Naval a mãe enchia a casa de velhotas tagarelas e o pai o chamava
a todo instante para discutir teorias esdrúxulas? Ah! Estava muito isolado, lá
no Jardim Botânico...
Foi um grande mês decisivo aquele no Hotel White; Virgínia sempre
muito animada por dona Maria-Amélia e pelo Coronel Aleixo que não raro
a acompanhavam com o lho até à Biquinha do Monteiro descendo o
Caminho da Fazenda, ou então indo até à Ermida Carvalhais. Sentia-se já
envolta pelo amor de Artur que naqueles trinta dias lhe mostrou tudo
quanto foi encantamento de paisagem e de vista, de horas e de passeios, de
relações e de conhecimentos, ora merendando na varanda do conselheiro
Mayrink, ora tomando chá no pavilhão da chácara do Cochrane, muitas
vezes cando embevecidos no sossego bucólico e edênico do Açude da
Solidão e, muitas tardes a o, contemplando em doce enlevo os vales do
Andaraí e do Engenho Novo, a baixada de Jacarepaguá; ou então, da Mesa
do Imperador, deixando que Artur lhe mostrasse rente à Lagoa Rodrigo de
Freitas certo ponto invisível dizendo: “É lá que eu moro... sozinho com meus
pais... Mas ele é um lósofo meio patusco... e mamãe só recebe visita de
matronas...”
Assim, depois de serões no Club Beethoven (onde foram com a prima
Judite, pois para Dona Maria-Amélia e para o coronel tal local poderia
trazer evocações irritantes sobre o Gottschalk), de chás cerimoniosos no
Cailteau após compras no Grão Turco e na Notre Dame, de dois bailes, um
em O Recreio dos Militares e outro na rua do Passeio no Club dos Diários,
certa noite o coronel Aleixo, vestido como um diplomata vienense, e Artur
todo garboso como o Achille do quadro de Degas, compareceram à
residência do doutor Gama no Cosme Velho, perto da Bica da Rainha, para
o pedido o cial. A seguir, a lufa-lufa de enxoval, proclamas, noivado
assíduo, idas alternadas às Laranjeiras e ao Jardim Botânico, passeios
românticos.
Ah! Petrópolis; saindo de barca da Prainha, contemplando a
Guanabara até Mauá. As ilhas. A serra dos Órgãos. O trem por entre
orestas e precipícios. A caleça por entre bastidores de hortênsias. Os
passeios a cavalo nas manhãs brumosas...
***
***
***
“Artur,
“Escrevo-te não duma barraca de campanha no Alto da Favela,
mas duma choça na estrada do Canabrava, sobre uma tábua atravessada
diante de mim. Lá fora está a minha ordenança de olho vivo e de
Comblain preparada, não vá (aqui tudo é possível porque tudo é
empírico) surgir algum êmulo do Tranca-Pés ou do Raimundo Boca Torta
com um facão-jacaré ou com uma lazzarina para me dar cabo do
canastro. É que vim para cá com espírito positivo (inclusive quanto às
precauções), e não afoitamente como o Nunes Tamarindo ou o Quirino
Vilarim, pois isto aqui é Canudos e não, como decerto eles pensavam, um
campo de Vernéville onde as tropas se deslocariam segundo lances de
xadrez. Esta vai mesmo a lápis cuja ponta z com uma parnaíba. Por
enquanto mando um relato às pressas do que tem sucedido, porque conto
narrar-te durante noites seguidas no Jardim Botânico o que vem sendo
esta expedição e o que foram as outras, já que aí nos ministérios, no
Palácio e na rua do Ouvidor ignoram o que isto foi e está acabando de
ser. Sim, está acabando de ser porque vamos arrasar tudo, pois que não
temos meios de desviar o Vasa-Barris para dentro deste monturo. E, se
não o zemos ontem é porque estamos à espera hoje de que um tal
Bentinho e um tal Barnabé nos tragam, conforme prometeram, os únicos
prisioneiros que ‘vamos fazer’, isto é, umas trezentas mulheres e crianças.
“A função está no m. Pudera! Somos aqui uns cinco mil homens,
sem contar os que estão de reserva na estrada de Monte-Santo. Sim,
rapaz, onze batalhões. Tropas do Pará, do Amazonas e de São Paulo, sem
contar a polícia deste Estado. O assalto vai ser iniciado por duas brigadas,
com o Dantas Barreto e o César Sampaio. Pretendo escrever-te a próxima
carta já de dentro do arraial. Diga a Maria-Amélia e a Virgínia que não
se a ijam. Estou no meu elemento. Esta frase pode parecer ambígua.
Quero dizer ‘em operações’ e também no meu elemento quanto à terra,
aos homens, às disparidades humanas e sociais... en m, fenômenos e
estados de coisas, sobre que, se tivesse tempo, ainda escreveria um livro
amargo. Espero que algum gênio ainda anônimo venha a fazer isso um
dia para conhecimento de nossas lazeiras. As de cá e as daí... Como vai o
garoto? Um abraço de teu pai que se recomenda a todos.”
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Mas eis que coisas mais gerais e mais veementes surgiram com um
crime na remota Sérvia... Ameaça de guerra. Ultimato. Telegramas.
Nervosismo.
Ainda bem que o avô e a mãe chegaram pelo Astúrias.
Con agração europeia! Opiniões ponderadas do velho Gama.
Emoção atenta de Virgínia. Conversas agradáveis às refeições, contando
coisas de França e de Itália.
O Eusébio passou a in uir com sua força de boêmio. O grande
incentivo foi decerto o automóvel. Passeios vagarosos junto às calçadas do
lado par do Flamengo cheias de bandos de moças e raparigas, estudantes e
namoradas, com bancos e palmeiras, gradis e canteiros. Do outro lado, o
mar, a barra... Passeios em velocidade até ao Leme, e ao longo da Avenida
Atlântica que orlava o areial de Copacabana com uma faixa de asfalto junto
a terrenos baldios, muros, residências apalacetadas, prédios de mau gosto,
edifícios tipo Biarritz ou Cannes, diante dum mar aconcavado em jade e
alabastro.
Discussões até altas horas na Brahma ou na Americana, ali debaixo do
Hotel Avenida, na Galeria Cruzeiro, por entre a música das orquestras
vienenses e os ruídos dos bondes. A batalha do Marne. A atitude da Itália. A
senilidade de Francisco José. A juventude do príncipe de Gales. Ou, na rua
do Passeio, na rua Chile, ou então na Lapa, o conhecimento equívoco de
clubes e botequins onde uma vida noturna se arrastava até de madrugada.
Carlos esqueceu a violinista incógnita, agitou-se com as peripécias
preocupadoras do con ito mundial, até que, quando a guerra passou a ser
paradoxalmente estática nas trincheiras, ele a procurou conhecer em livros
como Le Feu e Les Croix des Bois.
VIII
IDÍLIO NAS LARANJEIRAS
***
A gripe de 18. Que calamidade brusca, soturna, num país de tanto
sol! Vindo do Realengo onde já servia como tenente, Carlos via os subúrbios
brilando ao sol, os poucos trens vazios, as estações desertas, as ruas com
aspectos lúgubres de enterros. Encontrou a cidade fechada como num
feriado compulsório. Parecia uma metrópole em véspera de invasão,
esvaziada, esquisita, com o comércio sem funcionar, com las esquálidas nas
portas das farmácias. Uma desolação sinistra.
Em casa, naquele bairro que lembrava assim agora um latifúndio
abandonado, encontrou a mãe dando colheradas de poção à tia Judite e à
criadagem, fazendo canja e mingaus, tomando nota de temperaturas,
agitando o termômetro, atendendo aos chamados pelo telefone. O velho
Gama voltou a clinicar desde o Cosme Velho até à rua Ipiranga e aos altos da
rua Alice, perto do túnel do Rio Comprido; a lha quase não o via, pois saía
de manhã, ignorava quando voltaria. Ao chegar já achava uma lista de
chamados e telefonemas.
Bom doutor Gama! Um caráter, um coração e uma cultura! Quando
clinicava, jamais teve tempo para frequentar uma estação hidromineral, um
pouso de férias; as duas viagens à Europa signi cavam escrúpulo de quem
queria manter-se em dia com a ciência. Depois que resolveu dedicar-se à sua
obra sobre grandes vultos da nacionalidade, levava horas e horas escrevendo
de noite; e muitas vezes almoçava às carreiras para ir consultar documentos
no Arquivo Nacional, conversar com o amigo Capistrano ou o inimigo João
Ribeiro. Quando a lha enviuvou, não teve dúvidas em deixar seu conforto
tradicional do Cosme Velho para ir fazer-lhe companhia numa chácara
decrépita. Em Paris esforçava-se por facilitar-lhe passeios, visitas, teatros,
museus, não obstante os seus horários de hospitais e cursos.
Pois bem, a gripe zombou de seus esforços já experimentados nas
campanhas contra a varíola, a bubônica e a febre amarela, roubou-lhe
muitos clientes, fê-lo subir ladeiras, descer grotões, esbofar-se em morros,
pagar remédios a famílias de casas de cômodos e estalagens. E, por m, o
pegou também. De fato, certa noite voltou esquisito, mal-humorado, com
calafrios, deitou-se, quis mas não pôde atender a dois chamados, pois o
coração e as pernas não ajudavam. Certa manhã não se levantou. Ficou
assim quatro dias e três noites, prostrado, muito ofegante, a ito por voltar à
clínica. E morreu de colapso, meio para fora da cama, embora a lha, o lho
e o neto tivessem cado à sua cabeceira até às duas da madrugada, sem
intuição sequer da gravidade do caso, mesmo porque o dr. Romero ao sair às
onze horas a ançara que aquela era a marcha normal...
Quase vinte e quatro horas depois, quando Botafogo e Laranjeiras
sem nenhum trânsito eram um hospital marasmado disposto em alvéolos a
domicílio, Carlos e Maurício desceram as ruas das Laranjeiras e Guanabara
e rumaram para São João Batista, sentados na boleia duma vitória ao lado
do cocheiro. Atrás, atravessado sobre o capacho, e ultrapassando os dois
degrauzinhos, se via um caixão de pinho (conseguido com muito empenho)
contendo o corpo insigne e brosado do dr. Gama.
Virgínia, com as lágrimas distendidas em orações, não o pôde
acompanhar porque a tia Judite parecia que ia morrer também, assim como
a cozinheira e a copeira, as três quase subindo pelas paredes do quarto dos
fundos, como três loucas...
***
***
Ao regressar e dar conta ao Itamarati e ao Ministério da Guerra em
relatórios percucientes das atribuições que lhe competiam, Carlos encontrou
porém no exército e na imprensa uma atmosfera exacerbada. Ao
desembarcar, vindo da Conferência de Gênova presidida por Facta, se viu
compelido a rmar um critério exato sobre as contendas político-militares,
pois uma semana antes tinha havido o desfecho da revolta do Forte de
Copacabana. Emocionou-se sobremaneira com os fatos, mesmo porque
tinha amigos de sua geração ligados aos acontecimentos mais agudos.
Emocionou-se e interessou-se. Esqueceu o romantismo pragmático
de Genebra, voltou a aprofundar-se nos problemas nacionais, procurando
alhear-se de in uências e místicas debatidas em jornais. E o primeiro passo
que deu para racionalizar-se deveras no ambiente e na tradição foi,
curiosamente, procurar notícias referentes àquele seu primeiro sentimento
espontâneo de amor.
Certo dia, por um in uxo qualquer, subiu até às imediações da antiga
vivenda das roseiras. Não contava absolutamente recuperar o tempo lírico
perdido. Era apenas uma procura de sossego, como se subisse a Paineiras
para ver uma sombra de árvore densa ou ouvir um murmúrio de águas entre
lajes sombreadas. Contudo...
Contudo viu, na tarde serena, que dum poste (não o em que parava de
longe, mas num outro mais para diante e do outro lado) saía um o de
telefone que entrava por um canto da esquadria da última janela, aquela
donde na última vez provinham os sons da Berceuse do Jocelyn, de Godard.
Na manhã seguinte, um domingo, quando Virgínia foi à missa, Carlos
pediu informação do número do aparelho da rua tal número tanto...
Escreveu a lápis. Ligou. Atendeu uma voz meiga.
— Como vai de violino?
— Bem. Tenho tocado muito. Quem fala?
— Aquela pessoa que há muito tempo a acompanhava desde a saída
do Instituto de Música até aqui ao Cosme Velho... Que depunha postais na
caixa do correio... — Nisto parou. E se não fosse ela? Se a resposta quanto ao
violino representasse uma brincadeira?
— Eu ainda os tenho. Estão guardados comigo. Tão bonitos... Aquele
claustro do convento de São Francisco... Aquele angelo musicante de Fra
Angélico...
— Aquele anjo é você...
— Acha? Por quê?
— Porque parece.
— Por que telefonou?
— Passei, vi o o do telefone... resolvi saber notícias. Então tem
tocado muito?
— Agora toco quatro horas todas as manhãs.
— Escute: essas janelas não se abrem nunca? Isso aí é convento?
— Pra que abrir? Posso ver por trás das persianas e do caramanchão...
Mas, onde esteve? Continua no Exército?
— Estive na Europa. Adido às delegações da Conferência da Paz, e da
Liga das Nações.
— Por que não mandou postais de lá?
— Tenho uma porção. Posso entregar? Mas, pessoalmente. Na caixa,
não ponho mais.
— Pode entregar, sim.
— Quando?
— Quando quiser.
— Onde?
— Ora! Onde! Aqui em casa.
— Veja lá! Olhe que eu vou.
— Pode vir.
— Onde me espera? Escondida atrás do caramanchão ou da persiana?
— Não tem mais caramanchão.
— E a sua gente? Quantas pessoas vivem fechadas nessa casa?
— Só eu, papai e mamãe, como sempre.
— Como é que durante aqueles dois anos nunca vi ninguém?
— Porque papai trabalhava na Baixada e saía muito cedo. E mamãe
era professora da Escola Normal e seguia para o Estácio antes das oito.
— Provavelmente foi por isso que nunca os vi.
— Decerto. Então esteve na Europa...? Desde aquele tempo?
— Não. Depois da guerra.
— Esquisito. Não é o cial do Exército?
— Sou. Por quê?
— Nada. Estranhei...
— Mas fui tratar da paz.
— Ah! Então está bem. Chegou agora?
— Ainda não faz um mês. Uma semana depois da revolta do Forte de
Copacabana.
— Então não é um dos dezoito?
— Infelizmente não. Escute! Falando sério: onde me espera?
— Aqui na sala.
— Bato ou sacudo o portão para que aquela sineta enorme badale!
— Não tem mais sineta. Agora é um simples botão do lado.
— Mas... não vai avisar seus pais, antes?
— Mamãe já sabe do seu aparecimento.
— Como assim? Pois se ela nem me conhece!
— Conhece, sim. Ontem quando nós duas descíamos da estufa que
temos aqui no morro, eu o reconheci parado na calçada de lá. Olhei bem,
certi quei-me, subi correndo pela escada dos fundos, fui espiá-lo por detrás
da persiana. Mamãe chegou, eu mostrei.
— E ela, que disse?
— “Emília, ele deve gostar muito de você. Reaparecer assim de
repente, depois de levar sumido tanto tempo? Quem sabe se esteve no
interior ou mesmo na guerra?”
— E que foi que você respondeu, Emília? Bonito nome...
— Gosta? Respondi: “Eu sabia que ele voltaria, mamãe”.
— Sabia como?
— O violino me dizia.
***
***
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Assim, durante seis anos, tempo esse lento como a traslação dum
século, e todo ele estruturado em ânsia e angústia, não especi cado em
informes, pelo contrário constituído só de dúvidas e apreensões, áreas
opacas de mistério e perplexidade, sem fórmulas nem métodos possíveis de
comunicação, obtendo de longe em longe apenas certezas sumárias e rudes
que no mais das vezes só lhe chegavam através de lenda difusa embora
expressassem verdade categórica — e por isso a deixando mais zonza do que
a negação empastada e lúgubre de qualquer notícia — Virgínia foi sofrendo
os juros compostos da adversidade que em dois lances, (a morte do marido e
o desaparecimento da nora) já transformara sua vida numa angústia trágica.
Maurício insinuava-se em labirintos de informações desencontradas à
cata duma notícia recente e concreta. Os pais de Emília rodeavam Virgínia
de atenções solícitas. Mas Virgínia perseguia o lho com mais ardor e com a
mesma di culdade do que as tropas legalistas. Ela e o Governo lhe iam no
encalço, mas Carlos se livrara não em fugas e desistências, mas pela tática do
movimento. Deixara o mar, a costa, que nada tinham que lhe dar, antes lhe
haviam roubado tudo, despojando-o até mesmo daquele alforje de
recordações (o casarão do Jardim Botânico, as risadas e abraços do pai, os
carinhos e conselhos da mãe, os cenários e deslumbramentos do Surrey, da
Ilha de França, da chã de Villeneuve, dos jardins da Riviera, a placidez de
Cosme Velho, o sortilégio beatí co do “angelo musicante”, o cabelo revolto
do pimpolho) e acreditava agora, fanaticamente, só na terra, homiziando-se
nela, exilando-se na aura da ilegalidade, largando a pátria periférica para se
apoderar, sentir, percorrer, ser dono da topogra a inconsútil dum chão
sempre ao seu dispor.
Bauru. A primeira sensação dum malogro provisório. Necessidade
dum reajustamento. A primeira veri cação de que não existia
homogeneidade de ideias. (Ou de ideais?) Que havia duas opções sempre
em tudo... A errada e a certa. A dos outros, a o cial. E a de alguns e dele.
A seguir, as barrancas do Paraná. A pátria com suas vísceras de
cenário estático e dinâmico; mas a pátria reservada em potencial. Que eram
ali naquelas paragens os seus companheiros e ele? Glóbulos sanguíneos,
quase uma trombose no vaso popliteu da pátria?
A marcha para Iguaçu. A realidade e a mística, o ímpeto e a estratégia,
o cálculo e a pertinácia, para a formação dum campo magnético, para um
enrolamento de primário e secundário como nas bobinas de alta indução.
O malogro de Catanduvas, depois de sete meses de lutas e marchas até
Campos do Mourão...
Agora, um roteiro de formigas sobre manchas de umidade grumosa,
mas que macroscopicamente, em escala real de quilômetros, paralelos e
longitudes, não eram manchas em zarcão e cloro la, mas sim Mato Grosso,
Goiás, Bahia, Maranhão, Ceará, Rio Grande do Norte, Paraíba, Pernambuco,
outra vez Bahia, Minas, Goiás, Mato Grosso.
***
Virgínia fora despojada do lho no sentido de não o ter mais ali junto
de si nem de Fernando. Passara a ser paradoxalmente irreal e ausente
porque, posto em termos de lho e de pai, se tornara um mito; porque,
posto em termos de soldado e o cial, não estava em nenhum quadro da
legalidade, mas fazia parte dum grupamento tático, alhures. Como lho e
pai se desagregara do lar, e como soldado e o cial saíra dos quartéis, mas se
tornara difuso, legendarizado, núcleo de boatos e constas onde os episódios
se iam deformando em mística. Dera para estudar sociologia, marxismo,
optara pela Esquerda, vivia nos subterrâneos da clandestinidade.
Mesmo ausente, não cara reduzido a esquema de lembranças,
porque o anuviava a apoteose, esse consenso brusco, imediato de louvor,
essa teoria amorfa de apreciação transubstanciando realidades e fatos.
Virgínia olhava para o mapa do percurso, e seu dedo traçava uma
linha de roteiro. Mas naqueles seis anos aquela linha do mapa sempre se
aproximava cada vez mais, como um o que gradualmente viesse invadindo
e transpassando seus olhos qual diâmetro de quilômetros trazendo em sua
superfície rios, serras, chapadões, orestas, cansaços, noites, dias, percursos,
vigílias, desesperos, obstinações. E durante aqueles seis anos ela arrancava
para estudo e avaliação os componentes dessa linha tornada agora horizonte
total.
Rios. (Manhã fria junto à corredeira; uma escolta espera junto à
fogueira de hipotéticas barcas trazendo munições, víveres e remédios.)
Serras. (Relevos dum dorso eriçado de matas e pedras e que lá de
cima patenteiam vastidões.)
Chapadões. (Noção de perspectiva inexistente, já que tudo assim ao
sol é um êxtase de eterno primeiro plano.)
Florestas. (A abertura de picadas de cem, duzentos quilômetros de
recesso da selva interposta entre eles e o objetivo a empolgar.)
Cansaços. (Molambos humanos, ora mansos, ora brutais, formando
trânsitos enviesados e já agora ralos nos crepúsculos constritores ou nas
madrugadas em expansão.)
Noites. (A presença do pensamento e da saudade, do desânimo e do
cálculo, dos sons e da treva, do inseto e da fera, da ferida e da cicatriz, da
inanidade das coisas e da ronda milenar da fome, da doença e do ideal.)
Dias. (Soma das veracidades e das surpresas, das contingências e das
determinações, dos malogros e dos exemplos, das vitórias e dos desvios, das
esperas e das ações, dos embates e dos sóis.)
Percursos. (Apa. Rio Pardo, Anápolis, São Romão, Picos, Crateús,
Boqueirão, Piancó, Umburana, Tabuleiro, Tucanos, Ouricuri, Jurumenha,
Olhos d’Água, Planaltina, Campo Formoso, Córrego de Estrela, Pilões,
Colônia do Sangradouro, Rio das Mortes, Rio Manso, Pantanal...)
Vigílias. (A recordação de casa. Duma rua de Paris ou de Gênova.
Duma estátua, dum cipreste. Do jardim do Cosme Velho. Da capela
mortuária da Casa de Saúde. Daquela frase materna sobre as brasas
enterradas...)
Desesperos. (Aquela manhã no colégio... A saída da aula. Os
jornaleiros bradando a explosão do Aquidabã. Aquela tarde em que fechara
o caixão onde não mais anjo franzino, louro e azul, mas valquíria violácea,
inchada, disforme, Emília jazia, depois de ter dado à luz Fernando... Que
criança era essa, que destino, que força trazia para assim, ao irromper,
quebrar os portais do sacrário?)
Obstinações. (Sim. Seis anos de teima, não por orgulho, nem por
insensível disposição de pertinácias vãs... mas por alguma coisa que era
mensagem e ação, escondendo sob a cinza os tições no campo para que
houvesse sempre, aqui e acolá, sementes de fogo.)
***
***
Dias depois, o guarda-livros da rma atacadista da rua São Bento veio
entregar o telegrama cifrado. Ainda bem que Maurício já chegara de São
Paulo trazendo a certeza de que a articulação do movimento oferecia bases
sólidas. E lá partiu Maurício de novo para Santos agora, a m de esperar
Carlos num avião...
Sempre a ilegalidade. Ainda a ilegalidade. A condição do passaporte
falso, da entrada secreta, do esconderijo predeterminado.
Ainda no mês passado Virgínia fora a Olaria, de táxi, para encontrar-
se com o tenente França, comparticipante da Coluna, que estava no Rio
escondido, estabelecendo ligações. Fora para quê, se não atuava em nada,
aguardava apenas o lho? Para receber aquela primeira carta depois de seis
anos.
De regresso, tirou de dentro do oratório o enxoval de Emília, que
arrumou nas gavetas e armários do antigo quarto do casal. Disse a Fernando
que papai ia chegar. Fernando exigiu de dentro da fragata “Kuimbaé” aquele
volume ilustrado da Saga de Frithof, porque tinha guras de heróis.
Fernando! Moreno como o pai e com os olhos azuis da mãe! Tinha
seis anos, já lia quase tudo. Quis ler inclusive a carta do pai, escrita a
máquina. Corria pela casa, arrastava-se por baixo das mesas e do piano,
galgava a serra do Lajeado.
Quis vestir calças compridas, para esperar o pai. Sim, este chegaria.
Mas, segredo, hein? Tanto que o cadeado passou a aprisionar o portão, e ele
próprio foi submetido a censura rigorosa pela Idalina, a ama seca. Os
coleguinhas de brinquedos foram barrados no gradil. O acesso à casa dos
avós (mais adiante, onde a rua começa a subir e a fazer curva) foi impedido
por contingências de severa scalização.
Compreendeu. Não abriu o bico. Só se referia ao pai deitado na cama,
de noite, quando a casa já estava fechada e apagada.
— Quando é que ele chega? — sussurrava.
— Qualquer dia...
— Vem a cavalo? Fardado? Com barba?
— Trate de dormir.
Ah! Carlos ia chegar. Aleixo e Artur colhidos pelo mar, lá estavam
nesse mar por onde ela, Virgínia, passara quatro vezes, e ele, Carlos, duas
vezes. Que é o mar, com relação à pátria? Que são as águas paradoxalmente
chamadas de territoriais? A terra, sim, era a pátria. O sogro e o marido
tinham sido vítimas da traição desse mar aí. Mas o lho, apreendera
estoicamente a ciência e o engenho da superação. Se durante aqueles seis
anos alguns companheiros seus estavam usufruindo vida anônima e normal
em deveres de rotina, àquela hora da noite talvez nalgum cinema, passeio,
visita, distribuídos ao léu de injunções medíocres, o lho chegaria não para
a apoteose, mas se esgueirando ainda pelo último bastidor, depois de ter
sido fragmento de mercúrio se arrebentando pelo sertão, fulgurando ao rés
dos rios, cintilando através do quadriculado dos Estados, bolha metálica
derramada. Também não aceitara a mística de mártir con nado em
Fernando de Noronha, em Dois Rios ou na Detenção, atento talvez a anistias
acenadas ou se sujeitando à vida civil, provisória ou amorfa.
Virgínia compreendia dum certo modo que a vida de Carlos
correspondia a uma espécie de fusão da própria vida com a do pai que não
tivera tempo de realizar-se. Seu empreendimento era pessoal no ímpeto e
tinha também algo da preocupação deixada como herança. Carlos
desempenhava a missão de duas gerações.
Virgínia depois da última notícia do malogro de 24, suportou e
compreendeu por intuição aquela ausência cada vez mais distante e lendária
do lho, e jamais o esperou como um foragido noturno, porque acreditava
numa outra chegada longínqua mas propícia. E desde o desfecho de
Catanduvas, se desinteressou de vez de tudo que não fosse a sua única
atribuição permanente: criar Fernando, e acompanhar o lho.
O dr. Nunes, já não mais um alto funcionário da Prefeitura, mas
engenheiro dinâmico absorto em construções de alta monta pelo centro da
cidade e em Copacabana, cujas sionomias meãs estava modi cando,
naquele intervalo de seis anos, desde a morte da lha, recebeu e cumpriu as
procurações recebidas de dona Virgínia.
Esta, presa em casa pelos encargos de avó e pelo desinteresse total
duma vida que não fosse a que dedicava a educar o neto e digni car o lho,
nem tempo tinha de sair. As poucas vezes que foi ao centro para assinar
coisas em tabelião, entrar nalgum Banco ou repartição pública, estranhava
as modi cações do trajeto e do centro da cidade, desde as novas linhas de
ônibus, pois havia agora o bairro da Cinelândia com arranha-céus e a
Esplanada do Castelo. Esta já se ia con gurando num aspecto inédito atrás
da Policlínica, do Jockey Club, da Escola de Belas-Artes e da Biblioteca
Nacional, havendo ruas e avenidas com nomes inteiramente novos. Aquele
trecho do aterro e grande parte diante do Monroe e do Passeio Público se
modi caram; os lances de ajardinamento tinham alterado o trecho de
outrora. Quanto a Copacabana, o dr. Nunes insistia sempre sobre as
transformações desde o Leme até Ipanema, fazia-lhe ver que o imenso
terreno deixado na antiga Praia de Fora pelo coronel Aleixo valia agora uma
fortuna. Assim, sua ideia era derrubar as casas existentes na avenida
Atlântica e na rua Nossa Senhora de Copacabana (e que junto com o
pardieiro de Jardim Botânico constituíam a renda módica de dona Virgínia)
e levantar ali dois arranha-céus. Não, não se incomodasse nem se a igisse!
Não seria preciso fazer empréstimo na Caixa Econômica nem hipotecar o
terreno. Com as abas que venderia, pois o lote era enorme, dando para
quatro ruas, ergueria dois blocos de apartamentos. Quanto à chácara do
Jardim Botânico, abriria ruas, venderia lotes e ainda caria com espaço para
um arranha-céu... Os tempos estavam mudados. Agora ele não trabalhava
mais na Baixada. Pois o próprio sertão não fora lancetado de Sul a Norte
pela Coluna, com o genro entre seus desbravadores? Outros tempos!
De fato, com a vinda de Carlos que chegaria incógnito a Santos num
avião, outros tempos iam começar. Para ela. Para a família. Para a política.
Para a pátria. Dizia “pátria” sem atitudes de arrebatamento dum “porque-
me-ufanismo” retórico, sem tolerar sequer a conceituação do sublime
teórico. Isso era para antologias. A pátria real, o chão, o povo; disso tinha
agora uma noção vera, estruturada em dialética.
Mas naquela cruz onde se viu pregada em 1906, onde em 1924 foi
posta em pé, desequilibrada no baque abrupto do penúltimo ato da sua
paixão, viu agora, depois da esponja de fel, do golpe lateral, chegar a hora
sexta da consumação.
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“— Nasce no mato
E no mato se cria;
Quando sai de casa
É choro em demasia.”
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Só uma hora depois foi que o velho Maurício conseguiu ser ouvido
com relativa docilidade. Expôs-lhe tudo com lentidão persuasiva, em ordem
de entendimento gradual. Satisfez-lhe as perguntas graves e lacônicas.
Relatou-lhe que tinham con ado que se tratasse apenas dum extravio,
contou os termos do primeiro e do segundo comunicado; pormenorizou as
condições em que Fernando havia morrido a 12 de dezembro do ano
passado. Depois lhe disse que, se ela quisesse, a criada Constança podia ir
fazer-lhe companhia por algum tempo na rua Tonelero; mas a aconselhava
que aceitasse o convite de Virgínia (e lhe parecia a melhor solução) vindo
morar nos aposentos de Fernando, com absoluta liberdade de decidir
quanto ao futuro.
Ela repelia tudo, meneando a cabeça.
— Quero voltar para a França... Quero ir viver com minha tia
Geneviève.
— Está bem, Nanny. Tão logo a guerra acabe.
— A Riviera já foi libertada. Assim que houver navio. Leve-me ao
consulado. — E depois pediu que a acompanhasse até ao apartamento, a m
de pensar...
Maurício mandou telefonar para o Leblon, pedindo um carro. Daí a
quarenta minutos levou-a para a rua Tonelero.
Lá, chegando à janela, chamou-o, disse, apontando para baixo:
— Ele parava o carro embaixo daquela árvore. Assobiava, eu surgia.
Atravessava a rua rindo e fazendo sinais. Eu ia esperá-lo junto à porta do
elevador...
Atirou-se sobre o divã, ali cou de bruços mais de hora a soluçar
tanto que aquelas estranhas sílabas amorfas cortavam o coração de Maurício
à medida que recordações pungentes iam iluminando seu rosto voltado para
o retrato de Fernando, ali entre porcelanas e coleções de campainhas. Era
como se estas perdessem seus tons e timbres metálicos, tornadas carne e
bra, submersas em pranto.
E Maurício apertava os lábios, contraía os maxilares, cerrava as
pálpebras, sem que nada disso adiantasse. Cada soluço rouco batia em
determinada porta que logo solícita, obediente e automática, se escancarava
para a passagem de rajadas visuais e acústicas. Assim, enquanto Nanny se
desesperava na treva dum túnel de desvalimento, Maurício se via atrás de
extensa perspectiva para onde se abriam portas lançando golfadas de cenas e
de diálogos, onde ele via e ouvia: Artur e Virgínia balançando Carlinhos
numa espécie de trapézio na chácara do Jardim Botânico; Emília com o
rosto apoiado no violino do qual seus cabelos louros pareceriam in nitas
cordas de sons arquiangélicos; Carlos, barbudo e severo, no primeiro plano
dum painel ecológico; Fernando a cavalo, jogando polo, a dupla imagem
parecendo um centauro; Virgínia, com os cabelos grisalhos ao vento,
apoiada sobre a bossagem do promontório à espera de que o horizonte
túrgido lhe devolvesse seus mortos, enquanto suas próprias lágrimas, como
resinas da serra, a ligavam ao oceano...
Depois, o raciocínio lógico, sem romantismo nem apoteose: a mera
recordação quase cronológica dos fatos medonhos vindo em sentido
contrário, crescendo, como ondas de encontro a uma rocha.
Depois a realidade neutra da sala, da hora, daquela mulher deitada de
bruços, como se tudo, exausto da crispação, aturasse a trégua do marasmo.
Maurício desceu, foi chamar o zelador, voltou contando-lhe o que
acontecera. O bom homem escutava-o, lívido, exclamando:
— Mas, é impossível! É impossível!...
Sem nenhuma combinação prévia, levados os três por uma coerência
de silêncio lúcido, abriram a mala-armário, de cabina, e outra menor,
começaram a enchê-las de roupas, vestidos, sapatos, livros, quadros, discos,
bric-à-brac, e tudo quanto se achava à mão. Como ainda restassem para fora
mais de dois terços de coisas, o zelador resolveu ir buscar um caixote. De
fato, daí a um quarto de hora voltou, achando os dois arrumando as duas
malas em mútua compreensão.
Ao crepúsculo, Maurício e Nanny seguiram de carro para a Gávea, só
com a mala menor, enquanto o zelador cou dando marteladas no caixote
fechando-o com pancadas que eram como símbolos dum m. Lá dentro,
mudas, as campainhas recolhiam em seus bojos as camadas ocas dos tempos
como asas aquecendo pintainhos.
Depois, dum lado a serra; do outro lado o mar; mas tudo em declive,
se esbarrondando... Um portão. Riscos verticais de troncos. Um chão em
duas rampas; uma subindo para o promontório e a casa; outra descendo
para o estúdio, os cômodos de Fernando e a praia. O carro entrou, virou
para a esquerda, desceu a rampa e por m parou. Júlio, magro e esquálido
na noite difusa, abriu a portinhola. Como um vestíbulo não dando para
nada e sim apenas para as alegorias, o estúdio, com a comprida parede de
cristal de doze metros, com as duas cortinas superpostas, uma de seda cor
de cíclame, outra de veludo “mordoré”, lá estava apenas com a presença das
estátuas. No centro, junto à parede, a mesa enorme, vazia. A mesa para uma
criatura apoiar os braços, a cabeça, pensar e compreender.
Daí a uma hora, os rapazes rodearam Constança que saía de lá com a
bandeja.
— Sempre comeu alguma coisa. Estivemos as duas arrumando
gavetas e armários.
Maurício, assim que a Luzia desceu dos aposentos de Virgínia com os
pratos intatos, resolveu subir para lá; na saleta das estantes os dois
conversaram por muito tempo. Quando ele desceu, os rapazes estavam
distribuídos da seguinte maneira: Mílton ajeitava o dial do aparelho de rádio
para ouvir a BBC, lá no bar do galpão onde entre tufos a “Ibonocori” parecia
encalhada de vez; Lauro passeava por entre as aglaias, sozinho; Júlio,
sentado diante do estúdio, num dos degraus, fumava cachimbo. Maurício
entrou. Constança, ao fundo, sentada, era a solicitude em fase de
acanhamento. Nanny com os braços estendidos sobre a mesa, a cabeça
inclinada para um dos ombros, volvia o olhar duma para outra estátua,
percorrendo-as com pensamentos vagarosos. A porta aberta à direita
mostrava a biblioteca de Fernando e da qual só se via um trecho do piano de
cauda. E a porta esquerda, também aberta, mostrava o quarto dele, com a
cama arrumada, da qual só se via um daqueles quatro cantos de que falava a
balada “La Belle, si tu voulais...”
— Nanny, experimente por uns dias. Se se der bem, que. Se sentir o
menor constrangimento, volte para a rua Tonelero. Quando a guerra acabar,
e as notícias neste sentido são alvissareiras, você, se quiser, irá para
Villefranche. Mas também pode car aqui, como em sua casa.
— Quero voltar para junto de tia Geneviève...
— Está bem. A Virgínia aqui, vigiando o Atlântico. Você lá, vigiando
o Mediterrâneo.
***