James Hillman - Psicologia Arquetípica PDF

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JAMES I-llLLMAN

~~~C(Q)[L(Q)CGJ~~
~~@[UJ~U~~~~~
Urn Breve Relato

Tradu¢o
LUCIA ROSENBERG
GUSTAVO BARCELLOS

EDITORA CULTRIX
SAO PAULO
~Tftu1o do original:
Archetypal Psychology
A Brief Account
\
Sumtirio
Copyright © 1983 by James Hillman.
Listagem Campleta dos Trabalhos de James Hillman INTRODU<;AO - Gustavo Barcellos 7
© 1988 by James Hillman. PREFAcIO - James Hillman 17

PARTE 1

1. Origens da Psicologia Arquetipica 21


2. Ima.gem e Alma: A Base Poetica da Mente 27
3. Imagem Arquetipica 33
4. Alma 40
- Anima e Ret6rica 43
- Alma e Mito 44
5. Alma, MetMora e Fantasia 46
6. Alma e Espilito 51
7. Cultivo da Alma 54
8. Profundeza e Dire<;ao Vertical 57
9. Locus Cultural: Norte e SuI 59
10. Psicologia Politefsta e Religiao 62
11. Psicopatologia 69
12. A Pratica dci Terapia 75
- Sentimento 81
13. Eros 84
14. Teona da Personalidade: Personifica<;ao 87
AIIO
15. BiogrMico 91
92·93·94·95
PARTE 2
Direitosde tradu~1io para a llngua portuguesa
adquiridos com exclusividade pela
EDITORA CULTRIX LTDA. Referendas 97
Rua Dr. V!tio Vicente, 374·04270· Sao Paulo, SP· Fone: 272·1399
que se reserva a propriedade literaria desta tradu~ao. PARTE 3
Impresso nas oficinas grdficas da Editora Pensamento.
Ustagem Completa das Obras de James Hillman 107
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Introdu9iio: A Anima 30 Anos P6s"JungJ;,~Tit}~:'i!! •..


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':-.L.J

Ern 1970, James Hillman escreveu urn artigo para a


revista Spring corn 0 seguinte titulo: "Por que Psicologia
Arquetipica?" Era a primeira vez que 0 termo era"uti.-
lizado como tal. Corn esse artigo, Hillman abria urna pos-
sibilidade diferente de pensar a psicologia junguiana.
Logo de jnfcio, visava se distanciar do tenno mais co-
mumente utilizado de "analftica", exatamente por suas
irnplica<;pes a principio exclusivamente ligadas a pratica
da psicoterapia.
Quais sao as conseqiiencias reais desse afastamento
do analitico ern busca do urquetipico? Qual e a marca
essencial da contribui<;ao de Hillman e de seus compa-
nheiros para a psicologia junguiana e, mais, qual a sua
importancia?
Este livro aborda essas quest5es da forma mais ob-
jetiva possfvel. 0 leitor interessado numa compreensao
mais sistematica da pskologia arquetipica e, mais especifi-
camente, da obra de Hillman, encontra aqui uma espe-
cie de guia capaz de orienta-Io na leitura dessa obra.
Aqui esta 0 tra<;ado intelectual de cada urn dos conceitos
fundarnentais que Hillman, ern outros trabalhos, ocupar-
se-a de arnpliar e saborear mais profundamente. Essa e
a importfmcia deste volume.
James Hillman aparece de fato como a figura cen-
tral dentro dessa perspectiva de pensamento que, e pre-
ciso deixar claro, pretende-se menos co~o uma "escola"
g-:::==:--:-::bitioiltu;iio: A Anima 30 Anos Pas-Jung Introdu~iio: A Anima 30 Anos Pas-Jung 9

em si e mais como urn aprofundamento e urn avan<;o das possa agora livrar-se de ser pensada sempre em termos
ideias originadas no trabalho do psic610go suf~o Carl de opostos, sempre presa nas sizlgias, seja com animus,
-Gustav -Jung. Por isso e diffcil falar em psicologia ar- com sombra, com self. Podemos ver que anima, alma,
quetipica como urna linha ou uma escola. Simplesmente, esta por tudo e em tudo, nao 50 na interioridade femi-
nao faz sentido. nina do homem. Esta no homem e na mulher. Anima
G ---, , .Hillman, seguindo urna tradi~ao essencialmente re- pertence a todas as coisas, exatamente como a possibili-
tqmada por Jung, fala de alma, de urn senti do de alma. dade de interioridade de todas as coisas. Anima refere-
Adma de tudo, alma aqui e entendida como "urn a se, numa s6 palavra, a interioridade. Ai podemos ter, en-
perspectiva, ao contrario de uma substancia, urn pon- fim, uma metodologia com a qual entender e penetrar
.toldeyista sobre as coisas, rna is do que uma coisa em os misterios que nos apaixonam e perseguem.
si'VSeus textos e os de seus amigos falam da alma Para essa perspectiva, a area mais fundamental do
do mundo, do amor, do puer, do senex, da guerra, da trabalho de Jung e naturalmente a teoria arquetipica. E
psicoterapia, da imagina~ao, do estado da cultura, dos para la que voltamos a nossa aten~ao. Estamos nos ref~
sonhos, da masturba~ao, da arquitetura, examinam os rindo aqui ao trabalho de Jung na maturidade, onde 0
detalhes das figuras mlticas em busca de uma psic<r conceito de arquetipo ganha a -profundidade e 0 alcance
-patologia descrita numa linguagem mais rica e sensu- que ele apontava desde 0 inicio. Como comenta 0 pr6prio
, _al.~-JEalam, portanto, de muita coisa. Falam, acima de Hillman, ha urn aprofundamento constante no trabalho
. . - Judo, de: anima. Falam de anima de uma maneira li- de Jung: do pessoal para 0 universal, da consciencia para
bertaria, que identifica anima imediatamente com alma, o inconsdente, do particular para 0 coletivo, enfim, dos
. cQm)psique.Retomam, assim, 0 sentido, presente em tipos para os arque-tipos. -
IJHPg,~;d~ desfazer a ilusao subjetivizante de que a ani- Diferentemente de Freud, que regularmente revisa-
.- .1XlC},:.esta -em n6s em vez de n6s estarmos na anima. Hill- va suas ideias em busca de urna teoria sistematica, Jung
'-r!1fn,"diz que ."porque tom amos a anima personalisti- nao revisava nada. Jung nao tern, nesse sentido, uma
.i.~C!m~Ilte, ou-,porque ela engana 0 ego dessa forma, per- mente critica, aristotelica. Ele construfa em cima do que
';~~iS.~m\R~JO significado. mais amplo de anima".2 Esse sig- ja tinha, num modo peculiar de aprofundamento.4 E tam-
;'.I}~f\~~.Qo)-?1ais amplo constela a alma como perspectiva bern nesse espirito que me parece inscrever-se 0 trabalho
.;g~!i~Clme.nte.;psicol6gica: esse in anima, nos diz Jung, da psicologia arquetipica.
,.-lIser humane e ser na alma des de 0 come~0".3 A formula~ao do conceito de arquetipo e encarada
-·-fISj-A.nit~a~Oianos depois da morte de lung, essa ani- como a contribui~aomais radical e importante de Jung
;--:r.na{ qe\:9q:anosf:es~a. "balsaquiana", talv.ez esteja se tor- para a hist6ria do pensamento psicol6gico no Ocidente. ,
: -i:~9.W~$.1mJmrus; mdependente. Com Hillman talvez ela o conceito de arquetipo aqui parece fundamental nao 50 .
'. :.;";.
10 Introdu¢o: A Anima 30 Anos P6s-Jung Introdu¢o: A Anima 30 Anos p6~,-Jimg. ". .jr~;~·
. . '.~:

porque refletea profundidade do trabalho de Jung, mas Uma imagem.e sempre mais abrangente, mrus.coinple,ca~
tambem porque leva a reflexao psicologica para alem da que urn concelto. . '.··.;i"r/:,
preorupa¢o clinica e dos modelos dentificos: "arquetipico Nessa perspectiva, a imagem, em sonhos, nas fantii;;.
pertence a toda a cultura, a todas as formas de atividade sias, na poetica, nos mitos e na sua maneira de' revelar
humana....Assim, os vfnculos primaIios da psicologia ar- os pa.dr5es c:rquetipicos, e sempre 0 primeiro dado psi-
quetipica sao mais com a cultura e a imagina<;ao do que cologI.~o: ~ Imagens sao ~ meio atraves do qual toda a
com a psicologia medica e empirica".5 expenenCla se toma possIve!. Elas tern uma qualidade
Hillman nos faz enxergar os arquetipos como as es- autonomal' independente, e indicam complexidade:' em
truturas basicas da imagina<;ao.. enos diz que a nature- t~da i~':.gem ha uma mUlti pIa rela<;ao de significados, de
za fundamental dos arquetipos so e acessivel a imagi.~ diSPOSI<;oeS, de proposi<;5es presentes simultaneamente.
na<;ao e apresenta-se como imagem. . Nossa dificuldade em compreende-las, por exemplo, nos
Se 0 conceito basico da psicologia arquetipica e en- sonhos, vern de nosso vido de linearidade. Nossa inca-
tao 0 arquetipo, sua area de atua<;ao focaliza-se na i11Ul- pacidade de experimentar e vivenciar a simultaneidade
gem. Encontramos a psicologia arquetipica voltada para de significados de cada imagem vern da necessidade de
o trabalho com a imagina<;ao, voltada para ressuscitar transforma-las em hist6ria, em temporalidade: uma coisa
nosso interesse pela capacidade espontanea da psique de por vez" uma coisa depois da outra. Aqui, como sem-
criar imagens. Hillman cita Jung quando diz que "ima- pre, 0 mite d? desenvolvimento: nossa abordagem forte-
gem e psique"6, radica1izando assim a ideia de que a rea- mente evolutiva dos eventos nos faz ver primeiro 0 de-
lidade psiquica e constitufda de imagens. senvolvimento. Mas no reino do imaginal, todos os pro-
Dessa forma, "ficar com a imagem" transformou-se cessos que pertencem a uma imagem sao ineren tes a ela
num.a regra basica no metodo da psicologia arquetipica. e estao presentes ao mesmo tempo, todo 0 tempo.
"Fiear com a imagem" ira influenciar todo 0 procedimen- Nessa enfase tao grande e radical com relac;ao a ima-
to terapeutico, especialmente no que toca a questao da ?em na vida psfquica, cabe-nos en tao buscar por uma
interpreta<;ao. As imagens psfquicas sao encaradas como Imagem que nos facilite penetrar mais diretamente, e den-
fenomenos naturais, sao espontaneas, quer seja no indi- tro de, s~a pro~ria retorica, na perspectiva da psicologia
wduo, quer na cultura, e necessitam, na verda de, ser ex- arquehplca. A llnagem-chave que assim nos aparece e
perimentadas, cuidadas, acariciadas, entretidas, enfim, res- profundidade. Desde Freud, Adler, e passando natural-
pondidas. As imagens necessitam de reladonamento, nao mente por Jung e seus colaboradores, falamos de uma
deexplica<;ao. No momento em que interpretamos, trans- psicologia profunda. Com Hillman, percebemosa exten-
formamos 0 que era essendalmente natural em conceito, sao da metafora. Vma psicologia profunda e aquelaque
em'linguagem conceitual, afastando-nos do fenomeno. avan<;a para 0 inconsciente, e na metafora 0 inconsdente
12 Introdu¢o: A Anima 30 Anos P6s-lung IntrodUt;iio: A Anima 30 Anos P6s-lung 13

e aquele terreno de experieneias que esta mais abaixo da Na psicologia arquetfpica, a dire<;ao vertical se con-
consdeneia, subposto. "0 campo da psicologia profunda funde, alem do mais, com a dire<;ao para 0 suI. Aqui, ~
tern sido sempre direcionado para baixo, quer seja na diferentemente que em Jung, onde se convencionou 0 di-
dire<;ao de mem6rias enterradas na infancia, quer em lema de Leste/Oeste, Norte e Sul tomam-se geografias
dire<;ao a mitologemas arcaicos". 7 simb6licas, ao mesmo tempo que culturais e etnicas. A
A metMora do profundo leva a psicologia arquetipi- Viena de Freud ou a Zurique de Jung sao lugares da fan-
ca a urna dire<;ao sempre de aprofundamento vertical e tasia e "siiuam as ideias numa imagem geogrMica".9 As-
a obriga, nesse sentido, a concentrar-se na depressao como sim, a psicologia arquetfpica, em suas bases, afasta-se da
oparadigma da psicopatologia, tal qual a histeria para Hngua alema e da visao de mundo judeu - protestante
Freud,ou a esquizofrenia para Jung. A depressao leva 0 do "norte" europeu ariano, apolonico, positivista, raeio-
sUjeito necessariamente para baixo, para urn aprofunda- nalista, dentificista em dire<;ao ao "suI" mediterraneo, a
mento em si mesmo. Diminui 0 ritmo, desacelera 0 in- Greeia da mitologia classica, onde os padrOes arquetfpi-
telecto, aproxima 0 horizonte. Talvez nada hoje em dia cos sao elaborados em hist6rias, em mitos, e a ItaIia da
consiga para n6s 0 que consegue a depressao, e por isso Renac;cen<;a com Fieino, e depois com Vico em Napoles
sua presen<;a tao marcante: esfor<;os da farmacologia a no seculo XVill, rom suas imagens e seu hurnanismo sen-
parte, na depressao somos lan<;ados irremediavelmente no sual. Aqui, segundo Hillman, "a cultura da imagina<;ao
vale da alma. e a maneira de viver carregavam aquilo que seria for-
A preocupa<;ao com profundidade e depressao mulado ao norte como 'Psicologia"'.l0
tambem permite a psicologia arquetipica uma critica a Ao faze-Io, a psicologia estara certamente deslocan-
cultura, na medida em que "uma sociedade que nao do a morada da alma do cerebro para 0 cora<;ao.
permite a seus indivfduos deprimir-se nao pode en- A dire<;ao vertical, a metMora do profundo, adma de
contrar sua profundidade e deve ficar permanente- tudo leva a psicologia arquetfpica e a contribui<;ao essen-
,mente inflada numa perturba<;ao manfaca disfar<;ada de cial de Hillman a mostrar finalmente sua verdadeira mar-
'crescimento' ".B ca, sua verdadeira importancia: novamente, enxergar in-
}:i~);: Tudo isso afasta a psicologia arquetfpica das teriormente como uma possibilidade em todas as coisas, .
tradw;Oes interpretativas horizontalizantes de sintomas, e a buscar em cada evento algo mais profundo. "0 'in-
'SQnhos;fantasias, enfim imagens, e constela a pr6pria terior refere-se aquela atitude dada pela anima que per-
:anaIiSe~ comodescidil: urn procedimento que deseja apro- cebe a vida psfquica dentro da vida natural. A pr6pria
fundar-sei que de fato come<;a pOl' baixo, procurando os vida natural toma-se 0 vaso no momento em que reco-
.i" sophos,;p~. inc6nsciente, aquilo que esta naturalmente nhecemos que ela possui urn significado interior, no mo-
.:.,,:apaixo;dasida'cotidiana. mento em que vemos que ela tambem sustenta e carre-
14 Introdu~iio: A Anima 30 Anos P6s-Jung Introdu¢o: A Anima 30 Anos Pas-lung 15
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ga psique. A anima faz vasos em todos'os lugares, em aprofundamento dos eventos em experiencias. A opus da
qualquer lugar, ao ir para dentro."l1 psicologia e necessariamente a alma. '
Nenhuma outra perspectiva dentro da psicologia Podemos nos aproximar urn pouco mais do usa que
analitica parece-nos demonstrar de modo tao integral e a psicologia arquetipica faz da palavra alnla contrastan-
coerent~ como e possivel, e enriquecedor levar as catego- dc:a, como de fato 0 faz em diversos trabalhos 0 proprio
rias do pensamento junguiano para a analise e a com- Hillman, com seu oposto, espmto. Este contraste serve
preensao tambbn das coisas do mundo, tambem para acima de tudo, para clarificar nosso caminho com~
aquila que esta do lade de fora dos consultorios de psico- ~sicologos, de volta it alma. Se a alma e aquilo que esta
logia. Hj.llman e seus companheiros insistem em escre- la no fundo, nas profundezas, 0 espirito esta nas alturas.
ver e refletir sobre a alma do mundo, a anima mundi, A alma e rnultipla, pessoal, feminina, metaforica' 0 es-
mostrando a alma como possibilidade de todas as coi- 0
pirito e unitario, concentrado, masculino, radonal. con-
sas. 0 dinheiro, a organiza<;ao urbana, 0 transporte pu- traste serve para nos rnostrar que a analise nao e' urna
blico, os tetos, 0 caminhar, os esportes, a AIDS" as edifi- o~p~<;ao espiritual. ''Ha uma diferen<;a entr~-{oga, me-
ca¢es e a propria arquitetura forC;l,m e sao temas de ar- d1ta<;ao transcendental, contempla<;ao religiosa e recolhi-
tigos e livros. mento, e ate mesmo Zen, por urn lado, e a psicoterapia
Portanto, alma e a metruora-chave, e indica na ver- por outrO."13 A alma nos remete aos sonhos e as ima~
dade' aquilo de que se esta falando. 0 que esta por baixo, gens; 0 ;spirito nos conduz it ilumina<;ao e aos milagres.
na dire<;ao vertical, na profundeza, e a alma. Alma refere- Na metMora famosa de Hillman, 0 espfrito esta nos pi-
se a profundidade, tern a ver com profundeza. Em Hill- cos, a alma esta nos vales.
man, alma refere-se a uma perspectiva reflexiva entre nos Para terminar, urna nota sobre pskopatologia. A alma
e os eventos. A alma deve ser a metruora prinuma da
/I volta sempre as suas mesmas feridas, ela insiste nas mes-
psicologia", nos diz ele12, uma metMora ja etimologica- mas figuras e emo<;5es, vemos os mesmos temas nos so-
mente determinada: psicologia, logos da psique, significa nhos p~r muit~s e muitos anos. Desse angulo, a psico-
o dLc;;curso ou a narrativa ou a verdadeira fala da alma. patolog1a em Sl aponta para a circularidade da alma. A
A alma, no entanto, deve ser imaginada, nao defini- alma repete-se infinitamente, e na repeti<;ao estci uma ten-
da. 13 uma metruora, e ao mesmo tempo urn campo de tativa de aprofundamento. A alma volta constantemente
experiencias. , as suas feridas para extrair delas novos significados; volta
, .; Essa metruora, alem de tudo, toca a analise direta- em busca de uma experiencia renovada. Ficamos fami-
mente, que, na perspectiva de uma psicologia arquetipi- liarizados com nossos complexos e nosso sofrimento. 0
ca,nao intenciona a cura da alma, mas facilitar aquilo ego, .i~entificado com 0 arquetipo do her6i, chama a
que Hillman define como cultivo da alma: de novo, urn repeti<;ao de neurose. Mas na repeti<;ao, na drcularidade,
,16 dntfodu¢o: A Anima 30 Anos P6s-]ung

of,ego: e forc;ado a conscientizar-se de que ha uma outra


-forc;a governando a coisa toda. N a repetiC;ao 0 ego e
forc;ado' a Servira psique. Ha urn aspecto ritual aqui, uma
. humilhac;ao.!Acircularidade, por fim, nos personaliza. Do
,; pontocde vistada, alma, a repetiC;ao e urna maneira de Pre/aciD
; nos tornarmos aquilo que somos.
.
" ~ . {.
Gustavo Barcellos Esta monografia foi escrita durante 0 outono de 1979,
Junho 1991 a pedido do Instituto dell'Encic1opedia Italiana para ser
inc1uida no Volume V (paginas 813-27) da Enciclopedia del
lCongresso Brasileiro de Psicoterapia Junguiana, "30 Novecento, publicada em 1981, onde ela pode ser lida na
Anos P6s Jung", Sao Paulo 6/9 Junho de 1991. h"aduc:;ao italiana de Bianca Garufi, cuja atenc:;ao cons tan-
;,1'
te muito ajudou para que essas formulac:;5es tao conden-
Notas sad as encontrassem sua forma final.
Embora me sinta hesitante quanta a esse tipo de
't'James Hillman, Psicologia Arquetfpica: Um Breve Relato, Editora Cul- abreviac:;5es, pareceu-me que, estando a traduc:;ao ja pu-
,r,;'trix,1991.
.2~_ James Hillman, Anil1Ul: Anatomia de UI1Ul No¢o Personificada, tradu<;iio blicada, POI' que nao 0 original? Para esta primeira publi-
. de Lucia Rosenberg e Gustavo Barcellos, Editora Cultrix, Sao Paulo, ca~ao em ingles fiz pouquissimas alterac;oes, quer seja
, 1990. atualizando a literatura (apenas algumas inser<;5es), quer
3. James, H::::..tan, op. cit.
<4:; James Hillman, citado em The Wisdom of the Dream, Stephen Segaller seja enumerando as direc;5es que a psicologia arquetipi-
",;;e"Merril Berger, Shambala, Boston, 1989, p. 43. ca tomou, em diversas maos, desde 1979, ou ainda in-
}., James Hillman, Psicologia Arquetfpica: Um Breve Relato, Editora Cul- formando sobre palestras, conferencias, encontros. as de-
"trix, 1991.
senvolvimentos se 'fazem tao rapidamente que a fantasia
6.~ C.G. Jung, CW 13, pgr. 75.
_,7. James Hillman, op. cit. de "manter-se atualizado" parece deslocada. Ao contrano,
,,~. JaIlles Hillman, op. cit. este ensaio serve meramente para situar a psicologia ar-
,f,Jai:nes Hillman, op. cit. quetipica como urn t6pico de ideias apresentado no esti-
e10:' James Hillman, op: cit. 10 de uma enciclopedia do secul0 XX.
11;' James' Hillman, Anil1Ul: Anatomia de UI1Ul No¢o Personificada, tradu<;ao
. ~rrnde Lucia,Rosenberg e Gustavo Barcellos, Editora Cultrix, 1990. A fun de suprir essa monografia com sua propria bi-
\H }am,es, B.iF~an, Psicologia Arquetipica: Um Breve Relato, Editora Cul-
..... trix, 1991.., '
bliografia, inc1uiu-se uma listagem completa de meus tra-
baThos, tradu<;;Oes e ensaios ineditos, que substitui e amplia
, ..,j3/j~h:es:Hu:~an,:Re-Vi5ioning Psychology, Harper & Row, New York,
aquela cfu.poruvel em Locse Ends, que se estendia ate 1975.
. \t/'iJt~;1915Pp/67P i'-; " .
Sou extremamente grato a Robert Scott Dupree por
se.u trabalho de mestre com essa listagem, a Susan Du-
pree, que compos 0 texto com pericia e cuidado, e a
Mary Helen Gray por supervisionar e editar todo 0 tra-
balho. Ela fez este livro.

J.H.
Dallas, outubro de 1982

Parte 1
- ",.,,:-

1. Origens da Psicologia Arquetfpica

A psicologia arquetfpica, conforme denomina~ao


de Hillman (1970b), teve desde seu inlcio a inten<;ao
de ir alem del. pesquisa clinica dentro' do consult6rio
de psicoterapia, ao situar-se dentro da cultura da ima-
gina<;ao ocidental. E uma psicologia deliberadamente
ligada as artes, a cultura, e a hist6ria das ideias, na
forma como elas florescem da imagina<;ao. 0 termo
"arquetfpico", em oposi<;ao a "anali tico", referencia co-
mum utilizada para a psicologia junguiana, foi preferi-
do nao s6 porque reflete a "profundidade te6rica dos
ultimos trabalhos de Jung, os quais tentam resolver os
problemas psicol6gicos para alem dos modelos cientf-
ficos" (Hillman 1970b); foi preferido principalmente
porque "arquetfpico" pertence a toda a cultura, a to-
das as tormas de atividade humana, 'e nao somente
aos profissionais que praticam a terapeutica moderna.'
Pela defini<;ao tradicional, arquetipos sao as formas
primarias que govemam a psique. Mas' nao podem ser
contidos apenas pel a psique, uma vez que tambem s€
manifestam nos pIanos fisico, social, lingi.i{stico, esteti-
co e espiritual. Assim, os primeiros vinculos da psi-
cologia arquetfpica sao mais com a cultura e a imagi-,
na<;ao do que com a psicologia medica e empirica, que'
Origens da Psicologia Arquetfpica 23
22 Origens da Psicologia Arquetfpica ".',"

sonhos enos habitos sociais de todos os povos, e mani-


tendem a confinar a psicologia as manifesta<;oes posi- festam-se espontaneamente em distUrbios mentais.! Para
tivistas da condi<;ao da alma do seculo XIX. lung, eles sao antropo16gicos, culturais e tambem espiri,;.
A psicologia arquetfpica pode ser vista como urn tuais na medida em que transcendem 0 mundo empiri-
movimento cultural; parte de sua tarefa e a revisao da co do tempo e espa~o e, de fato, nao sao propriamente
psicologia, da psicopatologia e da psicoterapia de acor- fenomenais. A psicologia arquetipica, diferentemente da
do com a imagina<;ao cultural do Oddente. junguiana, considera 0 arquetipico sempre como feno-
Numa revisao recente do campo e num exame de meno16gico (AvE:ns 1980), evitando assim 0 idealismo .
\
suas principais afirma<;5es, Goldenberg (1975) ve a psico- I kantiano implfcito em Jung (de Voogd 1977).
logia arquetipica como uma "terceira gera<;ao" derivada \ A linguagem primaria. e irredutivel desses padr5es
da escola junguiana, na qual Jung e reconheddo como arquetfpicos e 0 discurso metaf6rico dos mitos. Eles
fonte, mas nao como doutrina. Dois temas que ele levanta podem assim ser compreenclidos como os padr5es funda-
-, a enfase na psicopatologia e a radical relativiza<;ao e mentais da existencia humana. Para estudar a natureza
desubstancia<;ao do ego - serao discutidos adiante. humana no seu nfvel mais basico, e necessario voltar-se
Nao ha duvida de que 0 pai direto da psicologia para a cultura (mitologia, religiao, arte, arquitetura, 0 epi-
arquetipica e 0 psic610go sui<;o C. G. Jung, (1875-1961). co, 0 drama, 0 ritual) onde esses padr5es sao retratados.
~,Hillman, Lopez-Pedraza, Berry, Kugler, M. Stein, Guggen- Esse rnovimento, que se afasta das bases bioquimicas,
biihl, Garufi, Grinnell, e outros tantos autores que serao hist6rico-sociais e comportamentais da natureza human a,
referidos abaixo foram treinados como analistas jun- e privilegia a imagina<;ao, foi articulado por Hillman
guianos. (De qualquer maneira, urn numero significativ~ como "a base poetica da mente". Suporte para 0 signi-
de outros autores rnencionados - Miller, Casey, Durand, ficado psicologico e arquetipk:o do mito, alem do trabalho
Watkins, Sardello -' nao receberam forma<;ao junguiana de Jung, vern tambem de Ernest Cassirer, de Karl Kere-
espedfica e contribuem para a psicologia arquetfpica nyi, de Erich Neumann, de Heinrich Zimmer, de Gilbert
atraves da fenomenologia, da literatura, da poesia, da Durand, de Joseph Campbell e de David Miller.
filosofia, dos estudos religiosos, etc.). De Jung vern a ideia o segundo nome da psicologia arquetipica e Henry
de que as estruturas basicas e universais da psique, os Corbin (1903-1978), acadernico frances, fil6sofo e mistico,
padr5es formais de seus modos de rela<;ao, sao padr5es conhecido principalmente por sua interpreta<;ao do pen-
arquetipicos. Sao como 6rgaos fisicos, e aparecern de for- samento islfunico. De Corbin (1971-73) vern a ideia de que
ma congenita na psi que (ainda que nao necessariamente o mundus archetypalis ('alam al-rnithaJ.) e tamoom 0 mun-
herdados geneticamente), rnesmo que de alguma maneira, dus imaginalis. E urn campo distinto de realidades imagi- ,
rnodificados por fatores hist6ricos e geogrMicos. Esses pa-, nais, que requer metodos e habilidades perceptuais dife--
dT5es ou "archai" aparecem nas artes, nas religiOes, no?
24 Origens da Psicoiogia Arquetipica
Origens da Psicoiogia Arquetipica 25

rentes daqueles do mundo espiritual para alem dele, ou


:do . mundo empfrico da sensopercep~ao generica e das Ao dar continuidade a tradi~ao de Jung e Corbin, a
;.formula<;Oes ingenuas. 0 mundus imaginalis oferece urn psicologia arquetfpica teve que vol:a~ a se.us ~recursores,
·modo ontol6gico para a localiza~ao dos arquetipos da particularmente a tradi~ao neoplatoruca VIa VICO e a Re-
;;psique: como estruturas fundamentais da imagina~ao ou nascen~a (Fieino), atraves de Proclus e Plotino, a Platao
;como fenomenos fundamentalmente imaginativos que (Phaaio, Phaedrus, Meno, Symposium, Timaeus), e mais ainda
transcendem 0 mundo dos sentidos em seu valor, senao a Heradito. (Os trabalhos de Corbin sobre Avicena, Ibn'
em sua aparencia. Seu valor esta na sua natureza Arabi e Sohrawardi pertencem tambem a essa traeli~ao,
teofanica e na sua virtualidade ou potencialidade, que sao assim como 0 trabalho de Kathleen Raine sobre William
sempre ontologicamente maiores do que a realidade e Blake e sobre Thomas Taylor, 0 tradutor ingl~ dos prin-
sellS limites. (Como fenomenos, eles devem aparecer, mas eipais escritos de Platao e dos Neoplatonicos.)
.essa apari~o se da para a imagina~ao ou na imagina~ao.) . A elabora~ao dessa tradi~ao por Hillman nas Con..,
,0 mundus imaginalis prove para os arquetipos urn fun- fereneias de Eranos e em artigos (1973a), por Miller em
':damento c6smico e valorativo, quando necessario, dife- seminarios na U ni versidade de Siracusa, por Lopez-
rente de bases tais como: instinto biol6gico, formas eter- Pedraza na Universidade de Caracas, e .pelo trabalho de
.nas,' nfuneros, transmissao social e lingiHstica, rea~6es bio- Moore (1982) e Boer (1980) sobre Fieino da urn matiz
qufmicas,c6digo genetico, etc. diferente a psicologia arquetfpica, quando comparada a
\;;';};~'iPorem, mais importante que a localiza~ao ontol6gica de Jung. La 0 background e mais vigorosamente alemao~
das realidades arquetfpicas e 0 duplo lance de Corbin: (Nietzsche, Schopenhauer, Carus, Von Hartmann, Kant,
;;:(a) que a natureza fundamental do arquetipo e acesslvel Goethe, Eckhart e BOhme), cristao, psiquiatrico e oriental.
;;primeiro a imagina~ao e apresenta-se primeiramente A psicologia arquetfpica situa-se mais confortavelmente ao
\como imagem, de tal modo que (b) todo 0 procedimen- suI dos Alpes.
·:toida psicologia arquetfpica como urn metoda e imagi- Em particular - essa tradi~ao neoplatonica e total-
{nativo. Sua exposi~ao cleve ser poetica e ret6rica, seu mente oeidental, mesmo que seu metodo nao seja
'·:.~{faeiodnio nao l6gico, e seu objetivo terapeutico nao deve empirico, sua concep\ao nao seja radonalista e seu apelo
. ·.···~$eI'jnema,adapta~ao social ou a inclividualiza~ao pessoat nao se confunda com doutrinas espirituais ou
. . ',;:roCl$,ao'inves elisso, urn trabalho a servi~o da restaurar;ao sobrenaturais. Essa tradi~ao se atem a no~ao de alma
~•. "':;:f\Q~jre:alidadejmaginal do paeiente. 0 objetivo da terapia como primeiro prindpio, localizando-a como urn tertium
;;'~;'~(:o;id~senyolvimento de urn sentido de alma, 0 territ6rio entre as perpectivas do corpo (materia, natureza, empiris-
;/,:}'cglJlillXl;das,realidades psfquicas, e seu metodo, 0 culti- mo) e da mente (espirito, logica, ideia). Alma como ter-
:,:1 . ,~Y,O }d~i imagina~ao.•" . tium, a perspectiva entre outros e de onde outros podem
~t{'~~ .:~;'::~~~~~~.\.\',' . '., . ser vistos, tern sido descrita como a consciencia hermeti-
~~11t4;{~i:;,':: ,';'
'.'.: :.:~~~;s~.:
===============================:::::=;:;;:;.;:;:;;:::::===::;....::;,-,.;.,.:. :;. :., .:.~.:.:;,:.:.:.. .:•
.il·~:~·cl~,);~'~'~ ''''"",~,,~

26 Origens da Psicoiogia Arquetipica

ca (Lopez-Pedraza 1977), como "esse in anima" (Jung


[1921] CW6, §66, 77), como a posi~ao do "mundus imagi-
naUs por Corbin, e pelos esCritores neoplatonicos falando
sobre os intermediarios ou figuras da metaxy. Corpo,
alma, espmto: esta antropologia tripartite mais adiante 2. lmagem e Alma: A Base Poetica da_0ente
separa a psicologia arquetipica da tradidonal divisao dua-
lista ocidental, cuja historia volta para antes de Descartes o dado inidal da psicologia arquetipica e a imagem.
ate pelo menos 0 seculo IX (869: Oitavo ConCl1io Ceral Jung identificou imagem com psi que (llimagem epsi que"
de Constantinopla), ocorrendo tambem na. ascensao - CW 13, §75), uma maxima que a psicologia arquetipica
medieval do aristotelianismo de A verrois sobre 0 pla- elaborou ao ponto de entender que a alma e' constituida
tonismo de Avicena. As consequendas dessa divisao dua- de imagens, que a alma e primariamente uma atividade
lista ainda sao sentidas na medida em que a psi que se imaginativa, mais original e paradigmaticamente apresen-
tornou indiferendavel da vida corporal, por urn lado, ou tada pelo sonho. Porque e no sonho que 0 sonhador atua
da vida espiritual, por outro. Na tradir;ao dualista, a como uma imagem dentre outras e onde legitimamente
psique nunca teve 0 seu pr'oprio logos. Nao poderia pode se ver que 0 sonhador esta na imagem em vez de
haver uma psicologia verdadeira. A primeira tentativa a imagem estar no sonhador.
metodologicamente consistente de articula-Ia num estilo A Fonte de imagens - imagens oniricas, imagens de
fiJOC'...6fico tambem pertence ao perimetro interne da psico- fantasia, imagens poeticas - e a atividade autogeradora
logia arquetipica (Christou 1963). da propria alma. Em psicologia arquetipica, a palavra
"imagem", entao, nao se refere a uma imagem posterior,.
resultado de sensa~5es e percep<;Oes; tampouco significa
urn constructo mental que representa de forma simb6lica
certas ideias e sentimentos que expressa. De fato, a
irnagern nao tern referente alem de si mesma, nem
proprioceptiv~, nem externo, nem semantico:"as imagens
representam coisa nenhuma" (Hillman, 1978a).1 Elas sao
a psique na sua visibilidade irnaginativa; como repertorio
primario, a imagem e irredutivel. (A rela~ao de imagem
com "estrutura" foi discutida por Berry 1974 'e por Ku~
gler 1979b.)
·..... ::.2:;>.'.fi£~~~-e·Alma:ABase Poetica da Mente Imagem e Alma: A Base Poetica da Mente 29
··~~~i,..;.\<:l~:~ ~- . . ", . . .,. .
;~".;:".~;·;;'!W~';"(·Vi~ibH~dade,todavia, nao significa que a imagem mais amplo sentido da palavra, uma atividade psicol6gica
L::j:y::pre&atserVista. Ela nao tern que ter propriedades aluci- de natureza criativa, na qual e dado a fantasia criativa 0
:;:,' riht6ti'rui;as'''quais confundem 0 ate de perceber imagens lugar principal" (Jung, CW 6, §84) .
.' com imagina-Ias. Nem tampouco precisamser ouvidas Corbin (1958) atribui esse reconhecimento ao cora~ao
como numa passagem poetica. Esf,as no~5es de "visibili- desperto como locus do imaginario, locus tambem
dade~',.tendem a literalizar imagens como eventos distin-- fruniliar na tradiC;ao ocidental atraves da immagine del cuor
tosapresentados aos sentidos. Assim Casey (1974), no seu de Michelangelo. Essa interdependencia de coraC;ao'e
.el).s~i() ,r~volucionario "Toward an Archetypal Ima- imagem liga intimamente as bases da psicologia arquetfpi~
'gination", 'afinna que uma imagem nao e aquilo que se ca com 0 fenomeno do amor (eros). A teoria de Corbin
i.Y~j~las,a ,maneira como se ve. Vma imagem e dada pela sobre a imaginaC;ao criativa do coraC;ao vai signifkar
,:p~rspectivaimaginativa e sO pode ser percebida pelo ate para a psicologia que, quando esta se baseia na imagem,
:9.~jmaginar. . e preciso que ao mesmo tempo reconhec;a que a ima-
.,,}~::L A,qualidade aut6ctone· das imagens como indepen- ginac;ao nao e meramente uma faculdade humana, mas
',4erztes (Watkins 1981, pp. 124 s.) da imagina~ao subjetiva uma ati vidade da alma a qual a imaginaC;ao humana
:~ue::percebe leva a ideia de Casey urn passo adiante. presta testemunho. Nao somos nos quem imagina, mas
Rrimeiro, acredita-se que as imagens sao alucina~5es nos que somos imaginados.
. (coisas vistas); daf, sao reconhecidas como atos da imagi- Quando "imagem" e entao transposta da represen-
:naC;ao subjetiva; mas entao, terceiro, vern a conscientiza- ta~ao das condic;6es humanas pJ.ra uma atividade sui ge-
.~ao,de que as imagens sao independentes da subjeti- neris da alma apresentando sua natureza essencial de for-
'yjdade, e ate mesmo da pr6pria imaginac;ao como uma ma independente, todos os estudos empfricos sobre ima-
atividade mental. Imagens VaG e vern (como em sonhos) gina~ao, sonho, fantasia, e 0 processo criativo nos artis-
:4e:acordo com sua propria vontade, com seu pr6prio rit- tas, bern como os metodos do reve dirige, POUCD contri-
Jllo",dentro de seu pr6prio campo de relac;5es, e nao sao buirao para a psicologia da imagem se come~arem com
;9~terminadas pela.psicodinfunica pessoal. De fato, as ima- o empirismo do imaginar em vez do fenomeno da irna-
;g~I)S ~ao. os, fundamentos que tomam os movimentos da gem -- que nao e urn produto do imaginar. Abordagens
;:p,sj,codinfunica .' possivel. Elas exigem realidade, ou seja, empiricas que tentam analisar e guiar as imagens,
,~l,l_tQridade'; objetividade e certeza. Neste terceiro reconhe- procuram ganhar controle sobre elas. A psicologia ar-
(cjm~Ilt()/:a' mente esta na imaginac;ao em vez de a imagi- quetfpica distingue-se radicalmente desses metodos de
::nac;aoi~starna:mente. 0 noetico e 0 imaginario nao mais controle da imagem como foi irrefutavelmente argumen-
se;:.{opoem;(Hillman 1981a.b). "Contudo isto e ainda tado por Watkins (1976, 1981). A maneira como Casey
Ipsicologia', embora nao mais ciencia; e psicologia no alterou a noC;ao de imagem de algo visto para urn modo
30 Imagem e Alma: A Base Poetica da Mente
Imagem e Alma: A Base Poetica da Mente 31

de ver (urn ver com 0 corac;ao - Corbin) oferece a


soluc;ao da psicologia arquetipica para urn antigo dilema . A enfase sobre a resposta levou a psicologia arque-
entre iroaginac;ao verdadeira (vera) (Paracelso) e falsa,ou tipica, quando discute julgamentos morais, a usar a ana;.
fantastica (Coleridge). Para a psicologia arquetipim, a dife- logia do artesao. Como fundonou a imagem? Tera a ima-
renc;a depende da maneira como se trabalha e se reage gem .liberado e aprimorado 0 imaginar posterior? Estara
aimagem. 0 crib~rio usa do, entao, refere-se a resposta: a a resposta "fiel a imagem" (Lopez-Pedraza) ja que esta
metaf6rica e imaginativa como sendo uma res posta e a tare fa a ser realizada em lugar de assooa-Ia ou am-
.melhor que a fantastica ou a literal, e isso porque, onde plia-Ia em simbolismos nao-imageticos, opini5es pessoais
aquela e "fecunda" (Langer), levando adiante 0 aprofun- e interpreta<;5es? Sao estas as perguntas da psicologia ar-
damento e a elaborac;ao da imagem, esta dissipa OU pro- quetipica.
grama a imagem numa significac;ao mais ingenua, rasa "Fiel a imagem" (cf. Jung, CW 16, §320) tornou-se 0
ou fixamente dogmatica. lema do metodo da psicologia arquetfpica ja que a
Para a psicologia arquetipica, imagens nao sao nem irnagem e 0 primeiro dado psicol6gico. Embora a ima-
boas nem ruins, falsas ou verdadeiras, demonfaca" 011 gem sempre signifique mals do que ela apresenta, "a pro-
angelicais (Hilman 1977a), embora a imagem sempre im- fundeza da imagem - sua" ilimitadas ambigilidades ...
plique urn "contexto, disposic;ao e cena com qualidades podem ser apenas parcialmente compreendidas como
predsq.s" (como ja foi definida por Hillman _. [1977b]). implico.c;5es. Entao, ampliar a imagem onlrica e ao mes-
Assim, elas realmente convidam ao julgamento, para uma mo tempo estreita-Ia - mais uma razao pela qual dese-
maior precisao da imagem, julgamento nascido da jamos nunca nos afastar demais da origem" (Berry 1974,
propria imagem, como urn efeito da necessidade que a p.98).
imagem tern de obter urna resposta. Eliminar 0 julgamen- Devemos no tar que a "origem" e complexa: a
toseria, enta~, cair na fantasia objetivista. Julgamentos sao psicologia arquetipica e, a principio, complexa, uma vez
inerentes a imagem (assim como urn trabalho de arte traz que a imagem e uma mUltipla relac;ao de significados,
eIIl si os padr5es atraves dos quais pode ser avaliado ou disposic;oes, eventos hist6ricos, detalhes qualitativos e
urn texto traz consigo a hermeneutica atraves da qual possibilidades expressivas que se autodelimita. Como seu
pode ser interpretado). A psicologia. arquetipica examina referente e imaginal, ela sempre retem uma virtualidade
os julgamentos sobre a imagem imageticamente, enca-: para alem da sua realidade (Corbin 1977, p .. J67).Uma
rand~s como maiores especifica¢es da imagem e comp irnagem sempre parece mais profunda (arquetipica),mais
afirmac;5es psicologicas que nao devem ser .tomadas" li- poderosa (potendal), e mais bonita (teofanica) do que a
teralmente de urn ponto de vista espiritual, pUramel}te compreensao dela, dill a sensac;ao de pouca clareza quan-
intelectual, desligado docontexto da imagem julgada.' : do lembramos de um sonho. Dai, tambem, a compulsi-
vidade presente nas artes, pois estas fomecem complica-
"'e',t:if
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~~;;~;:~~i~''!C~ ,~~~":":''''.<'<''.~':' . .,.~:.,\;
....: .. .•.. _ .

,32 ':,' '. ilmagerrfeAlma: A Base Poetica da Mente

das:'disciplinas' que permitem realizar a complexa virtua-


lidade da imagem.
,"IYf;t} Esta complexidade polissemica indica uma psicologia
politeista de' personifica<;5es amuoga a teoria junguiana
dos complexos, ou seja, a consciencia mUltipla como base
da:vida pSlquica (CW 8, §388 ss). Come<;ando com urn 3. lmagem Arquetipica
dado complexo, a imagem, a psicologia arquetipica livra-
se deconsiderar a vida 'pslquica em termos simplistas de
mecanismos elementares, de origens ou estruturas basi- A psicologia arqueHpica assume axiomaticamente
cas·'numericamente limitadas. Evita-se, desde 0 come<;o, imagens universais, comparaveis aos universali fantastid de
oreducionismo, uma vez que a mente e poetica, e a cons- Vieo (S.N. II, I, 1:381), ou seja, figuras mfticas que su-
. ciencia nao e uma elaoora<;ao secundana, a posteriori, so- prem as caracteristicas po€ticas do pensamento, sentimen-
bre uma base primitiva, mas e dada com esta base em to e a<;ao humanas, bern como 1. inteligibilidade fisiog-
cada imagem.' nomica do mundo qualitativo dos fenomenos naturais.
:~'"; A "base poetica da mente", uma tese que Hillman Atraves da imagem arquetipiea, os fenomenos naturais
(1975a) primeiro apresentou em 1972 nas Terry Lectures apresentam aspectos que falam a alma imaginativa, em
na Universidade de Yale, atesta que a psieologia arque- vez de simplesmente ocultar leis e probabilidades secre-
tipica "nao come<;a nem na fisiologia do cerebro, na es- tas e manifestar sua objetifiea<;ao. .
trutura da lingua gem, na organiza<;ao. da sociedade ou Urn universal psicologico deve ser considerado
naanalise do comportamento, mas sun nos processos da psicologicamente. Uma imagem arquetipica e psieologica~
jmagina<;ao". A rela<;ao inerente entre psicologia e imagi- mente "universal" porque seu efeito amplia e desper-
na~ao'cu1tural e uma necessidade da natureza da mente. sonaliza. Mesmo se a no<;ao de imagem considera cada
Amais fecunda aoordagem do estudo da mente, portan- imagem como urn evento linico e individualizado, como
,tOl dei-se atraves de suas rea<;oes imaginarias mais "aquela imagem e nao outra", esta imagem serauniver;.
,elaboradasnasquais as imagens sao total mente libera- sal porque ecoa uma importancia transempfrica e coleti-
das'eitrabalhadas (Hough 1973; Giegerch 1982; Berry va. Assim, a psicologia arquetfpiea usa "universal" como
1982) ' ".."
i- .. ,':: .' adjetivo, denotando urn valor essenciale duradouro v
:.( qual a ontologia define como hipostase. E 0 problema, do
universal para a psicologia nao e se ele existe, onde e
como participa no particular, mas sim se 0 evento pes-
soal e individual pode ser reconhecido como portador de
Imagem Arquetrpica 35
34 Imagem Arquetrpica
s~rnbolos visuais ou verbais. Se as imagens arquetipicas
importancia essencial e coletiva. Psicologicamente, 0 sao os fundamentos da fantasia, elas sao os meios atra-
problema do universal e apresentado pela pr6pria alma, ves dos quais 0 mundo e imaginado, e entao elas serao
cuja perspectiva harmoniza tanto a limitada particu]a- os modos pelos quais todo 0 conhecimento toda e
. '
ridade da experiencia vivida quanta a universalidade da qualquer experienda se tornam possiveis. "Todo 0 pro-
experiencia arquetipicamente humana. No pen.,amento cesso psiquico e uma imagem e urn 'imaginar'; de outra
neoplatonico, e equivalente a referencia a minha alma ou forma, a consdencia nao poderia existir..." (CW 11,
a alma do mundo, e 0 que e valido para uma e valido §889) .. l!ma ima?e~ arquetipica opera como 0 significa-
para ambas. Assim, a universalidade de uma imagem do orIgInal da ldem (do grego eidos e eidolon): nao so-
arquetipica significa tambem que a resposta a imagem mente "aquilo que" se ve, mas, tambem "aquilo atraves
implica mais do que conseqiiendas pessoais, ampliando do ,que'~ se ve. A demonstra<;ao da imagem arquetipica
a alma para alem de seus confins egocentricos e alargan- esta entao tanto no ato de ver como no objeto visto, uma
do os eventos da natureza de distintas particularidades vez que a imagem arquetfpica aparece na conscienda
atomicas para sinais esteticos que fIazem informa<;ao para como a fantasia diretriz por meio da qual a consdencia
a alma. e possive!. Coletar dados demonstra objetivamente mais
Porque a psicologia arquetipica da priori dade ao pa- a fantasia dos "dados objetivos" do que a existenda dos
drao particular sobre a particula literal - e considera que arquetipos.
os eventos particulares sao sempre imageticos e portanto Diferentemente de Jung, que radicalmente distingue
"dotados de alma" -, assume tambem que a imagina<;ao o arquetipo numinoso per se da imagem arquetipica
e primordialmente padronizada em tern as, motivos, fenomenal, a psicologia arquetipica recusa rigorosamente
regi6es, generos e sindromes tipicos. Esses padraes infor- ate mesmo especular sobre urn arqw?tipo nao apre-
mam toda a vida psiquica. Gilbert Durand (1960, 1979) sentado. Sua preocupa<;ao e com 0 fenomeno: a imagem
-. seguindo linhas abertas por Bachelard - e seu centre ~rquetipica. Isto nos leva ao proximo passo: " ... qualquer
de recherche sur l'imaginaire em Chambery vern mapean- lffiagem pode ser considerada arquetipica. A palavra 'ar-
do a inerente organiza<;ao do imaginario como a base da quetipico' ... em vez de apontar para algo arquetipico,
antropologia cultural e da sociologia, e ate mesmo como aponta algo, e isto e valor... por psicologia arquetipica que-
base do significado psicologico em toda a conscienda. as remos dizer uma psicologia de valor. E nossa perspec-
trabalhos de Durand publicados nos Eranos Yearbooks, tiva tern por objetivo restituir a psicologia a sua mais
desde 1%4 apresentam·uma serie de amHic;es arquetipico- ampla, mais rica e mais profunda dimensao/ de tal ma-
culturais. neira que ela ressoaria com alma nos seus-~entidos·· de
A psicologia arquetipica tern insistido para alem da irnpenetravel, mwtipla, anterior,geradora emecessana.
coleta de dados objetivos e da correla<;ao de imagens com
36 Imagem Arquetipica Imagem Arquetfpica 37

Assim como todas as imagens podem ganhar este senti- do novos dados para nos oferecer - e esse sentimento
do arquetipico, da mesma forma toda a psicologia pode de ser amado pelas imagens... chame-o de amor imagi:"
ser arquetipica... 'Arquetfpico' aqui refere-se a urn movi- nal" (Hillman 1979a, p. 196). Esta experiencia da imagem
mento que se faz mais do que a uma coisa que existe." como mensageira - e a sensa<;ao abenc;oada que uma
(Hillman 1977b, pp. 82-83). imagem po de trazer - lembra 0 sentido neoplatonico de
. Aqui, a psicologia arquetipica revela-se estritamente imagens como 'daimones' e anjos (mensageiros). ''Talvez
como uma psicologia dos arquetipos, uma mera analise - quem sabe? _0 essas imagens etemas sejam aquilo que
das estruturas do ser (Deuses em seus mitos), e, ao en- os homens entendem por destino." (CW 7, §183)
fatizar a fun<;ao valorativa do adjetivo "arquetipico", res- Embora uma imagem arquetipica apresente-se
titui as imagens seu lugar primordial como sendo aque- carregada de significado, este nao e dado simplesmente
Ie que da valor psiquico ao mundo. Qualquer imagem como uma revelac;ao. Ele deve ser elaborado atraves do
denominada "arquetfpica" e imediatamente valorada "trabalho com a imagem" e do "trabalho com 0 sonho"
como universal, trans-hist6rica, basicamente profunda, ge- (Hillman 1977b, 1979a), que pode ser realizado· de
radora, extremamente intencional, e necessaria. maneira concreta e fisica, como nas artes, no movimen-
Vma vez que "arquetipico" denota tanto a for<;a in- to, no jogo e nas terapias ocupacionais; porem, 0 quee
tencional ("instinto" em Jung) como 0 campo mftico de mais importante (porque menos fixamente simb6lico), este
personifica<;5es (''Deuses'' em Hillman), uma imagem ar- trabalho e feito sendo "fiel a imagem" como uma pene-
quetipica e .animada como urn animal (uma das mais tra<;ao psico16gica daquilo que e realmente apresentado,
freqiientes metMoras de Hillman para imagem) e como incluindo 0 nivel de consciencia que esta tentando esta
uma' pessoa a quem se ama, se teme, com quem se deli- hermeneutica. 0 trabalho com a imagem s6 podera ser
cia"e inibido por, e assim por diante. Como for<;a inten- legitimad~ como tal se tiver impHcito 0 envolvimento de
cional' e pessoal, essa imagem apresenta uma rei vindica- uma perspectiva subjetiva, assumida desde 0 principio,
<;ao -' .moral, er6tica, intelectual, estetica - e demanda pois esta tambem e parte da imagem e de sua fantasia.
uma resposta. E uma "presen<;a que afeta" (Armstrong o trabalho com a imagem requer tanto a cultura es-
J97Heque oferece urna rela<;iio afetiva. Parece conter urn tetica quanta 0 conhecimento adquirido em mitos e sfm-
son,.hecimento'anterior (informa<;ao codificada) e uma bolos para uma apreciac;ao da universalidade das ima-
direc;ao instintiva a urn destino, como se profetica, gens. Esse trabalho requer tambem uma serie de taticas
.progn6stica. Jmagens "em sonhos querem 0 nosso bern, (Hillman e Berry 1977), muitas vezes experiencias lin-
. . ap6iam-nose:nos encorajam a ir adiante, compreendem- gUfsticas e foneticas (Sardello et al. 1978; Severson 1978;
'lios~mais,profundamente que n6s mesmos, expandem Kugler 1979b), etimo16gicas (Lockhart 1978; 1980;
:;nOS5a:"sensualidade
..... .
. . ~
e espirito, estao continuamente crian- Kugelman), gramaticais e sintaticas (Ritsema 1976;
:;\;}g;,l,;\,,',
~41~~~:<·;;,.·:·~· .:
38 lmagem Arquetipica
lmagem Arquetipica ···--·39 •
Hillman 1978a). Outras hiticas referentes a emoc;ao, tex-
tura, repetic;5es, invers6es e reafinnac;5es foram descritas l6gica como ontologicamente, que 0 verdadeiro trabalho
por Berry (1974). com a imagem nao apenas da urn sentido de tempo para
A intenc;ao primaria deste trabalho verbal com a alma, ou faz de eventos temporais eventos de alma
imagens e a "recuperac;ao da alma no discurso" (Sardel- mas tambem cna 0 tempo na alma. '
10 1978a), 0 que ao mesmo tempo revela os aspectos er6-
ticos e esteticos das imagens - que elas cativam, sedu-
zem, persuadem, tern urn efeito ret6rico sobre a alma
alem de seu conteudo simb6lico. 0 trabalho com ima-
gens restaura 0 sentido poetico original· das mesmas, li-
bertando-as de servir a urn contexto narrativo, tendo que
contar uma hist6ria com suas irnplicac;6es lineares, se-
. ;.
qiienciais e causais que favorecem depoimentos, na
primeira pessoa, das a<;5es e intenc;5es egocentricas de urn
sujeito personalista. A diferenc;a entre imagem e narrati-
va (Berry 1974; Miller 1976a) e fundamental para a dis-
tinc;ao no estilo imaginativ~ entre psicologia arquetipica
politeista e as psicologias tradicionais que sao ego centra·,
das e constituem narrac;5es epicas.
Tres desenvolvimentos posteriores na teoria das
imagens arquetipicas mere cern atenc;ao. 0 trabalho de
Paul Kugler (1978, 1979a) elabora uma teoria actistica das
imagens como estrutu.ras de significado invariavel a par-
te do significado lingilistico, etimo16gico, semantico e
gintatico. Boer e Peter Kugler (1977) correlacionaram ima-
gens arquetipicas corn a teoria de percep<;ao de J. J. Gib-
son, afirrnando que imagens arquetipicas sao diretamente
proporcionadas pelo ambiente (e nao sao subjetivas), de
tal fonna que "a psicologia arquetipica e realismo miti-
co". Casey (1979) leva adiante a ideia de que imaginac;ao ., ..... )

esta tao intimamente relacionada corn tempo, tanto psico-


/' .". j" ' Alma 41

nao am''Jigua, mesmo que usemos 0 termo para nos


referir aquele fator humane desconhecido que torna pos-
sivel 0 significado, que transforma eventos em experien-
cias e que e comunicado no amor." Em 1967a, urn quarto
aspecto roi apresentado: a alma tern uma referenciareli-
giosa. E em 1975a (p.x) tres qualifica<;5es posteriores fo-
4. Alma ram adicionadas: ''Primeiro, 'alma' refere-se ao aprofun-
damento de eventos em experiencias; segundo, a signi-
fica<;ao que a alma torna possivel, seja em assuntos' do
A alma deve ser a metMora primaria da psicologia. amor ou religiosos, deriva da sua particular relaqiio com a
Psicologia (logos da psique) etimologicamente significa: morte. E terceiro, por 'alma' entendo a possibilidade
razao, discurso ou narrativa compreensivel da alma. E imaginativa em nossa natureza, 0 experimentar atraves
trabalho da psicologia encontrar urn logos para a psique, de especula<;ao reflexiva, de sonho, imagem e fantasia -~
e prover a alma com uma rtarrativa adequada de si aquele modo que reconhece todas as realidades como
mesma. A psique como anima mundi, a alma neoplatonica primariamente simb6licas ou metaf6ricas."
do mundo, ja esta dada junto com 0 mundo, de tal forma Os perigos de literalizar e ontologizar, concomitantes
que a segunda tarefa da psicologia e escu tar a psique com a elevac;ao da alma ao prindpio primeiro, sao trata-
falando atraves de todas as coisas do mundo, recupe- dos com um certo tom subversivo na psicologia arque-
rando assim 0 mundo como lugar da alma. tipica que fala dos eventos da alma de modo imagetico,
No seu pr6prio discurso sobre a alma, a psicologia ironico, e ate humoristico (Hillman e Berry 1977). E
arquetipica mantem um evasiva obliqiiidade (Romanyshyn comum a varios escritores, ainda que diferentemente em
1978-79). Este trabalho continuo para nao substancializar cada urn - Guggenbiihl-Craig, Miller, Ziegler, Lopez-
aalma segue a seguinte maxima: "Por alma entendo, an- Pedraza, Giergench, Sardello - urn estilo mordaz e som-
tes'de mais nada, uma perspectiva mais do que uma brio. A psi que e mantida perto de suas sombras. Ha uma
substancia, urn ponto de vista sobre as coisas mais do continua tentativa de quebrar os vasos mesmo enquanto
quea coisa em si" (Hillman 1975a, p.x.). Num exame ex- estao sendo formados.
.tenso da "alma", Hillman (1%4) conclui: "A alma e urn o termo "alma" e tambem usado de modo livre, sem
.conceito deliberadamente ambiguo que resiste a toda uma defini¢o de usos e sentidos espedficos, de maneira
defini~ao, da mesma maneira que os simbolos
a manter presente seu total poder conotativo. E e usado
~':~"~lemeritares;·que. fomecem as raizes metaf6ricas para os intercambiavelmente com 0 grego psichi, a figura mitica
r;siStemas dc);pensamento humano." Mas adiante, afirma: grega Psique (do conto de Apuleio Eros e Psique), 0
'Naosomos'.' capazes de usar a palavra de uma maneira
. . '. : ~: '~;:\:;: ..
~;.; '.'
42 Alma
Alma 43-

alemao Seele e 0 latim anima. Aqui, "anima", na mais es- j

pecffica descri~ao junguiana como uma figura personifi- ( pertencem ao proprio "cultivo da alma", sua continua
cada e fun~ao da imagina~ao (E. Jung 1957; Hillman a.tividade de fantasia, e esses relatos- chamados
1973c, 1974b), confere urn rico imaginario, patologias e "psicologia" devem ser tornados mais como fic¢o do qu~
qualidades de sentimento aquilo que de outra forma como respostas positivistas sobre a natureza da alma. A
poderia se tomar apenas um conceito filos6fico. alma so pode ser objeto de estudo quando for tambem-
o ser humane esta inserido no ambito da alma; alma reconhecida como 0 sujeito que se estuda atraves das
e a metMora que inclui 0 humano. "Dasein como esse in fic\5es e metMoras da objetividade. Examinar afirma\Oes
anima supera infinitamente 0 homem" (Ayens 1982a, p. pelas suas implica\Oes psiquicas e urn principio estra-
185). Mesmo que a vida humana seja somente uma tegico da psicologia arquetipica e fomece seu metoda
manifesta¢o da psi que, uma vida hurnana e sempre uma tatico chamado "psicologizar ou enxergar atraves" 2
vida psicologica - que e como a psicologia arquetipica (HilJman 1975a, pp. 113-64). 0 metoda pOe em pratica a
Ie a n~ao aristotelica da alma como vida e a doutrina no\ao de inconsdente: tudo 0 que e afirmado contem na
crista da alma como imortal, isto e, alem das fronteiras afirma\ao uma inconsciencia. "IncQnsciente" envolve
dos limites do individuo. Vma psicologia humanista ou implicar;ao e suposir;ao (Berry 1974), isto e, .0 que esta por
personalista ira sempre perder a perspecti va completa da dentro ou por baixo. Assim, afirma<;5es de qualquer natu-
alma a qual se estende para alern do comportamento pes- reza iraQ de toda maneira tQrnar-se psicologicas, ou
soal, humano. Este movimento que situa 0 homem den- revela\Oes da psique, quando seu literalismQ e subvertido
tro da psique (e nao a psique dentro do homem) reve de tal fQrma que permita a apari\ao de suas suposiC;5es.
toda a atividade human a como psicol6gica. Cada parte A estrategia implica que a psicologia nao pode ser limi-
do comportamento humano, qualquer que seja 0 seu tada a urn campo entre outros, uma vez que a psique
conteudo manifesto ou literal, e sempre tam'bem uma afir- mesmo permeia todos os campos e coisas do mundo.
mat;aO psicologica.
Se toda a afirma~ao tern urn conteudo psicologico, Anima e Ret6rica
entao cada afirma~ao pode ser examinada pelo seu signi-
ficado psicologico, por aquilo que ela significa pa.ra a Ao falar de alma como uma metdfora primaria, em
alma. Os discursos sobre a alma em si -- sobre 0 que lugar de definir a alma substantivamente e tentar deduzir
ela. e, suas rela\Oes corporais, suas origens e desenvol- seu status ontologico de demonstra~5es empfricas ou
vimento, de que consiste e como fundona - sao preo- argurnentos teologicos (metafisicos), a psicologia arque-
cupa<;5es da psicologia somente porque estes sao os meios tipica reconhece que a realidade psiquica esta inextrica-
pelos quais a alma se revela em teImos conceituais. Eles velmente envoI vida com ret6rica. A perspectiva da alma
e inseparavel da maneira de falar em alma, uma maneira
Alma Alma 45

que evoca a alma, puxa-a para a vida, enos induz a uma siveis comportamentos ou 0 de circunscrever as fonnas
perspectiva psicologica. Em sua preocupac;ao com a de energias transpessoais (no senti do neoplatonico), mas
retorica, a psicologia arquetipica vern contando com re- abrir as quest5es da vida a reflexao transpessoal e cul-
cursos poeticos e literanos para ampliar sua visao, sempre turalmente imaginativa. Podemos assim enxergar nossas
trabalhando como "enxergar atraves" de metaforas vidas cotidianas tanto encaixadas na vida dramatica e
mecanicistas e personalistas (empregadas por outras psico-- cosmogonica das figuras rniticas quanto enobreddas por
i logias) de forma a recuperar a alma daqueles literalismos. ela (Bedford 1981). 0 estudo da mitologia permite reco-
, 0 metoda retorico exige a pilhagem polemica de reser- nhecer eventos em contraste com seu fundo mitico. 0
vas alheias. mais importante, contudo, e que 0 estudo da mitologia
torn a-nos capazes de perceber e experimentar a vida da
Alma e Mito alma rniticamente.

o mite e a retorica primana da psicologia ar-


quetipiea.O caminho ja foi previamente aberto por Freud..
Jung, Cassirer (Avens 1980), e, e claro, por uma tradic;ao
de pensamento mitico que volta atraves dos romanticos
e'de Vieo ate Platao. Este movimento em direc;ao a rela-
tos miticos como uma linguagem psieologka localiza a
psicologia na imaginac;ao cultural. Alem disso, esses mi-
tos sao em si, metMoras (ou, ('Orno disse Vieo, "metMora...
e urn mite (tabula] abreviado" [5. N., II, II, 2]), de tal
forma que, tomando 0 mite como sua retoriea primaria,
. a psicologia arquetipica situa-se numa fantasia que na~
pode ser tomada historica, fisica ou literalmente. Mesmo
que alembranc;a da mitologia seja a principal mudanc;a
caracteristicapartilhada por todos os "arquetipalistas", os
mitos saocompreendidos como metMoras - nunca como
"metafisica transcendental cujas categorias sao figuras divi-
.', npg .. Corho Hillman (1979a) diz: ''Mitos nao fundamen-
"ttam,! eles"abrem.", 0 papel do mite na psieologia arque-
"tipica}naOiero de fornecer uma lista exaustiva de pos-
Alma, Metafora e Fantasia 47

Alma-como-metruora tambem des creve a fOffila como


a alma atua. Ela atua como a metruora, transpondo sen-
tidos e liberando significados interiores enterrados. Tudo
o que e escutado com 0 ouvido da alma reverbera em
meios-tons (Moore 1978). A perspectiva escurece corn uma
luz m~is profunda. Mas esta perspectiva metaf6rica tam-
bern mata: ela ocasiona a morte do realismo ingenu~, do
5. Alma, Metafora e Fantasia naturalismo e da compreensao literal. A rela<;ao da alma
corn a morte - urn tema que percorre toda a psicologia
arquetfpica - e portanto uma fun<;ao da atividade
o problema filos6fico de "como definir a alma ou
lf
metaf6rica da psi que. 0 metodo metaf6rico na~ fala por
de como expressar urn "logos da alma" (ChriAstou 196~) afirma<;5es categ6ricas nem explica por contrastes elaros:
deve ser visto em primeiro lugar c:omo u~ fenomeno PSl- ele entrega todas as coisas as suas sombras. Assim, sua
col6gico, 0 qual nasce do pr6pno deseJo. da. alma por perspectiva anula qualquer tentativa her6ica de obter uma
autoronheCl'mento, que pode melhor ser satlSfelto . nosI ter- defini<;ao clara dos fenomenos; em vez disso, 0 metodo
mos de sua pr6pria constitui<;ao: i:nagens. As,slm, 0 og.os metaf6rico da alma e "evasivo, alusivo, ilus6rio" (Ro-
da alma isto e seu verdadeiro dlScurso, sera num estilo manyshyn 1977), derrubando a pr6pria defini<;ao da cons-
imagetido, urn ;elato ou reat (Corbin 1979, pp. 43 S5.) que dencia como intencionalidade e sua hist6ria como desen-
e totalmente metaf6rico. . ,. volvimento.
A afirma<;ao acima de que "a metMora. pnmana ~a A conscienda humana e falha na sua capaddade de
psicologia deve ser a alma". tenta dua:' c?lS~: (a) aflr- compreender na~ por causa do pecado original ou da
mar a natureza da alma em sua propna. lmg~agem neurose pessoal, nem por causa da obstina<;ao do mundo
(metafora) e (b) reconhecer que todas as afimla<;oes da- objetivo, ao qual ela Supostamente se opOe. A consdenda
psicologia sobre a alma sao metaforas. Deste modo,}lma- humana falha, de acordo com uma psicologia baseada na
como-metafora leva a ultrapassar 0 problema de co~o alma, porque a natureza metaf6rica da alma tern uma
definir a alxi-ta" e favorece urn relato da aln:a no se~tido necessidade suidda (Hillman 1964), uma afinidade com
da imagina<;ao, em vez da defini<;ao. AqUl,. a metMora o mundo das trevas (Hillman 1979a), umamorbidez
serve a uma fun<;ao psico16gica: torna-se urn ll~t:urnenJo _ (Zjegler 1980), urn destino - diferente das reivindica<;5es
de cultivo da alma em lugar de uma m~ra flgura e do mundo da vigilia - os quais tornam a psique fun-
li gem" porque ela transpoe 0 questionamento da damentalmente incapaz de se submeter a hubris de uma
:aasobre' a sua natureza a un:a ~i:opoesia do real no~ao egocentrica da subjetividade como conquista
imagina:r:, uma continua cria<;ao pSlCologlca (Berry 1982).-
48 Alma, Metd/ora e Fantasia Alma, Metd/ora e Fantasia 49

(Leistung), definida como cogni~ao, conota~ao, inten~ao, subjetividade autocentrada e a restitui as suas profunde-
percep<;ao e assim por diante. zas na alma, permitindo a reapari('ao da alma no mundo
Assim, aquele senti do de fraqueza (Lopez-Pedraza, das coisas.
1977,1982), de inferioridade (Hillman 1977c), de mortifi- . .A ~e-anima~ao das coisas em termos metaf6ricos ja
ca~ao (Berry 1973), de masoquismo (Cowan 1979), de es-
fOl mdlcada por Vico (5. N. II, I, 2) que escreveu,
curidao (Winquist 1981) e de fracasso (Hillman 1972b) e " metMora ... da senti do e paixao a objetos inanimados."
inerente ao metoda metaf6rico em si, 0 qual anula a Como a perspectiva metaf6rica da nova vivacidade a
defini~ao da consciencia como urn controle sobre os fenD-
alma, ela tambem re-vitaliza areas supostamente "des-al-
menos. A metmora, como 0 metoda do logos da alma; ~a?as" e nao psicol6gicas: os eventos do corpo e da me-
basicamente resulta na entrega ao que e dado, 0 que per-· dIana, 0 mundo ecol6gico, os fenomenos cu1turais da ar-
mite a aproxima~ao do misticismo (Avens 1980). quitetura e transporte, educa~ao, alimenta~ao, lin-
A transposi~ao metaf6rica - esse movimento de "U- guagem e sistemas burocraticos. Tudo isso foi examinado
dar com a morte" que ao mesmo tempo re-desperta a co~o. imagens metaf6ricas e sofreu intensa revisao psi-
consciencia para urn sentido de alma - ' e 0 ponto cen- C?loglca por Sardello e seus alunos, primeiro na Univer-
tral da tarefa da psicologia arquetfpica, sua inten~ao sldade de Dallas e posteriormente no The Dallas Insti-
maior. Assim como Freud e Jung tentaram descobrir 0
tute of r:umc:nities and Culture. A perspectiva metaf6rica,
"erro" fundamental da cultura ocidental de maneira a que reve fenomenos do mundo como imagens, pode en-
resolver affiiseria do homem encapsulado no declinio do contrar "senti do e paixao" onde a mentalidade cartesiana
Ocidente, a psicologia arquetipica especifica esse erro ve a mera extensao de objetos des-almados e inanima-
como uma perda da alma, perda que ela depois identi-
d?s. Des:a ~orma, a base ~~tica da alma tira a psicolo-
ficani com a perda das imagens e do senti do do ima- gIa dos llmltes do laboratono e do consu1t6rio, e ate da
ginario. A conseqiiencia foi urna intensifica~ao da subjeti-
subjetividade pessoal do individuol' e a transforma numa
vidade (Durand 1975), que aparece tanto dentro de urn
p~ico~ogia. das cois~ como encarna~5es de imagens com
egocentrismo fechado como na hiperatividade, ou fa-
VIda mtenor, as COlsas como uma exposi~ao da fantasia.
natismo pela vida, da consciencia ocidental (isto e, seten-
Para a psicologia arquetipica, "fantasia" e "reaUdade"
trional) a qual perdeu sua rela~ao com a morte e com 0
trocam de lugar e de valor. Primeiro, elas nao sao mais
mundo das trevas.
opo~ta:" Segundo, a fantasia nunca e apenas mentalmente
o processo de re-imaginar e de re-animar a psique subJetlva, mas esta sempre sendo vivid a e encarnada
. cultural, o~jetivo da psicologia arquetipica, necessita de
(Hillman 1972a, pp. xxxix-xl). Terceiro, 0 que quer que
. ::.patologizar, pois somente esse enfraquecimento, ou
~eja nsica ou literal mente "real", e sempre tambem uma
.:2~;des7strutura~ao" (Hillman 1975a), quebra ume
lmagem de fantasia. Entao 0 mundo da chamada reali-
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50 Alma, Metafora e Fantasia
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~ dade concreta e factual e tambem sempre a exposi<;ao de


urna fantasia especificamente modelada. Ou seja, de
acordo com Wallace Stevens, 0 filosofo-poeta americano
da imaginac;ao de quem a psicologia arquetipica rnuito
extrai, ha sempre "urn poema no corac;ao das coisas".
Jung assume a mesma ideia (ON 6, §78): "A psique cria 6. Alma e Espirito
realidade todo dia. A (mica expressao que posso usar
para tal atividade e fantasia." E ele toma a pal2.vra "fan-
tasia" "do uso poetico" (CW 6, §743). Se imaginar e a atividade inata da anima mundi,
As ultimas explorac;Oes da psicologia arquetipica - -enta~ a fantasia esta sempre acontecendo e nao esta su-
algumas publicadas em Spring 1979-82 -- foram em jeita a urn epochi fenomenol6gico (Husseri: separar ou co-
direc;ao ao poetico,a estetica e a critica literaria. Isto e locar em evidencia no senti do de mover-se diretamente
menos a influencia das preocupac;Oes psicanaliticas con- para 0 evento em si). Mais ainda, se a fantasia esta sem-
temporaneas com a linguagem do qu~ uma re-ava~ia<;ao pre acontecendo, entao epocht e uma fantasia em si: de
da pr6pria psicologia como uma atiVldade de poeszs e 0 isolamento, de objetividade, e de uma consciencia que
fato d.e que fantasia e a atividade arquetipica da psique. pode ser verdadeiramente mobilizada pelos fenomenos
como eles sao. A psicologia arquetipica sustenta, contudo,
que nao podemos nunca ser puramente fenomenol6gicos
ou verdadeiramente objetivos. Nunca se esta ah~m do
subjetivismo dado pelos dominantes das estruturas de
fantasia inerentes a alma. Estes control am as perspectivas
subjetivas e as organizam em "instancias", de tal modo
que a unica objeti vidade que pode se tornar m ais
pr6xima resulta do olho subjetivo voltado para si mesmo,
observando seu modo de olhar, examinando sua pr6pria
perspectiva com relac;ao aos sujeitos arquetipicos, os quais
estao neste momenta direcionando nosso modo de ser no
mundo dos fenomenos. A psicologia, como uma denda
objetiva, sera sempre impossivel, uma vez que se reco-
nhece que a objetividade em si e urn genero poetico
(semelhante ao "escritor-como-espelho" do naturalismo

.'
52--- ~: - Alma eEsptrito Alma e Espfrito

frances) / urn modo de construir 0 mundo, de tal forma como sua tare fa imaginar a linguagem espiritual da
que as coisas aparecem puramente como coisas (sem face, "verdade", da "fe", da ''lei'', e assim por diante, como
animac;ao, ou interioridade), sujeitas a vontade, separadas uma ret6rica do espirito, mesmo que 0 espirito seja obri-
umas das outras, mudas, sem sentido ou paixao. gado, por essa mesma ret6rica, a tomar sua posic;ao ver-
Ha uma posic;ao que e particularmente obstinada em dadeira e fielmente, isto e, literalmente.
prender-se a fantasia de que a fantasia esta sempre acon- Mais ainda, a diferenc;a entre alma e espfrito protege
tecendo, e essa e a instanda do espirito. Aparece como a terapia psico16gica de ser confundida com disciplinas
objetividade cientifica, metafisica e como teologia. E espirituais - orientais ou ocidentais - e da ainda uma
quando a psicologia arquetipica criticou essas abordagens outra razao para a psicologia -arquetipica evitar empres-
foi como parte de uma estrategia mais ampla para dis- timos de tecnicas de meditac;ao e/ou condicionamentos
tinguir os metodos e a ret6rica da alma daqueles do espi- operantes, os quais conceituam eventos psiquicos em
rito, de tal forma que a alma nao seja mais obrigada a termos espiri tuais.
abrir mao do seu estilo para preencher as obrigac;5es re-
queridas per uma perspectiva espiritual, quer seja filosO-
fica, cientifica ou religiosa. Para que a psicologia seja pos-
sivel e preciso que se mantenha a diferenc;a entre alma e
espirito (Hillman 1976; 1975a, pp. 67-70; 1977a).
Algumas vezes a posic;ao do espirito com sua ret6rica
de ordem, numero, conhecimento, permanencia e l6gica
autodefensiva foi discutida como "senex" e sutumina (Vi-
tale 1973; Hillman 1975d); outras vezes, por causa da sua
ret6rica de c1aridade e observac;ao independente, foi dis-
cutida como apolfnea (Hillman 1972c); em outras ocasi5es,
devido a sua ret6rica de unidade, fundamentalida-
de, identidade, foi denominada de "monoteista"; e em
outros contextos ainda, de ''her6ica'' e tambem de "puer"
(1967b) .
. Ao reconhecer que a perspectiva do espirito deve
situar-se em posic;ao superior (como a alma situa-se em
posic;ao inferior) e deve falar em termos transcendentes,
fundamentais e puros, a psicologia arquetipica concebe
Cultivo da Alma 55

tancia e sua perspectiva. Lidar com imagens - da for-


ma como sera discutido abaixo com rela<;ao a terapia
- e portanto urn equivalente de cultivo da alma. Esta
habilidade pode acontecer nos modos concretos de Urn
artesao, urn trabalho das maos e com a etica dasmaos.
7. Cultivo da Alma E pode a.contecer em sofisticadas elabora<;6es da re-
flexao, da religiao, dos relacionamentos ou na a<;ao so-
cial, desde que essas atividades sejam imaginadas do
o prindpal obFtivo do trabalho da psicologia arquetfpica ponto de vista da alma, tendo a alma como sua preo-
foi denominado "cultivo da alma", parafraseando ex:; poetas cupa<;ao maior.
William Blake e, particularrnente, John Kea.ts: "chamE' 0 mun- Em outras palavras, somente quando a imagina<;ao
do, eu the ~, '0 vale do cultivo da ahna'. Entao desco- e reconhecida como urn compromisso nos limites do hu-
brira para que serve 0 mundo..."3 Pela enfase sobre a alma mano e urn trabalho em rela<;ao aos dominantes miticos,
individualizada, a psioologia arquetipica coloca essa alma, e essa articula<;ao de imagens pode ser considerada uma
sua fonna¢o, exatamente no CEntro do mundo. E nao procura psico-poesis (Miller 1976b) ou cultivo da alma. Sua in-
urna safda para fora ou para alem do mundo em dire<;ao a ten<;ao e a realiza<;ao das imagens - pois elas sao a
reden<;ao ou transcendenda rnistica, porque "0 caminho psique, - e nao meramente do sujeito. Como disse Cor-
atraves do mundo e mais diffci1 de enmntrar do que 0 cami- bin: ''E a individua<;ao delas, nao nossa", sugerindo que
nho para alem dele" (Wallace Stevens, ''Reply to Papini"). cultivo da alma pode ser mais sucintamente definido com
A visao de cura ou salva<;ao da psicologia arquetipica focali- a individua<;ao da realidade imaginal.
za-se sobre a alma no mundo que e tanlbern a alma do mun- o cultivo da alma e tambem descrito como imagi-
do (anima mundl). A ideia de que 0 cultivo da alma se faz nar, ou seja, ver ou ouvir por meio de uma imagina.<;ao
tornando qualquer amntedmento no mundo como tambem que enxerga a sua imagem atraves de urn evento.
urn lugar da alma insiste que mesrno essa psicologia nro- Imaginar significa libertar os eventos de sua compreen-
,.plalonica e "arcana" esta encaixada no "vale", e seu mm- sao literal para uma aprecia<;ao mitica. Cultivo da alma,
promisso tambem esta nisso. A oposi<;ao artificial entre alma neste sentido, equipara-se com des-literaliza<;ao - aquela
e mundo, privado e publim, interior e exterior, ira portanto atitude psicol6gica que suspeita do nivel dado e ingenuo
desaparecer quando a alma como anima mundi, e sua for- dos acontecimentos e 0 rejeita para explorar seus signifi-
rna¢o, estiver localizada no mundo. cados sombrios e metaf6ricos para a alma.
Mais especificamente, 0 ate de cultivar a alma e Entao a pergunta do cultivo da almae "0 que este
" . imaginar, uma vez que imagens sao psique, sua subs- evento, esta coisa, este momento mobiliza em minha
56 . CUltiVD da Alma

alma? 0 que isto significa para a minha morte?" A


questao da' morte entra aqui porque e com relaGao a
morte que a perspectiva da alma se distingue mais com-
pletamente da perspectiva da vida natural.
.. Cultivo da alma realmente sugere uma fantasia
metafisica, e a metafisica implfdta na psicologia arqueti-
pica e melhor encontrada em The Dream and the Under-
8. Projundeza e Dire~ao Vertical
world (Hillman 1979a), que elabora as relaG5es entre
psique e morte. La 0 sonho e tornado como 0 paradig-
Desde seus primordios, nos estudos de Freud sobre
rna da psi que - onde a psique apresenta-se abarcando
as carnadas profundas da mente - pre-consciente,
o ego e empenhada no seu proprio trabalho (trabalho de
s,:bconsdent~~ ou ~nconsdente - 0 campo da "psicolo-
sonho). Pelo sonho, pode-se admitir que a psique esta
gI~ p~ofunda (as~l1n chamada na virada do seculo pelo
fundamentalmente preocupada com 0 seu imaginar e
p~lql~latra de Zunque Eugen Bleuler) tern sempre side
ape~a:' secundariamente preocupada com as experiendas
direClonado para baixo, quer seja na dire<;lio de memorias
subJetivas no mundo da vigI1ia, as quais 0 sonho trans-
ente:radas da. inf~da, quer em direGao a mitologemas
forma em imagens, isto e, em alma. 0 sonho esta assim
arcrucos. A pSlcologIa ru'quetipica tomou essa metMora do
criando alma todas as noites. As imagens se torn am 0
profundo com a mesma seriedade _. embora menos lite-
meio de traduzir os eventos da vida em alma, e esse tra-
ralmente. Levou a metMora da profundeza da alma para
balho, ~uxiliado pela elaboraGao consdente da imagina<;lio,
tras na h~storia ate Herac1ito (Diels-Kranz, Frag. 45:
COnstrOl urn vasa imagiario, ou ''barco da morte" (urn a
b~thun) ate 0 thesaurus ou memoria de Agostinho (Confis~
expressao de D. H. Lawrence), que e semelhante ao cor-
po sutil, ou ochema dos neoplatonicos (Avens 1982b). A
soes X). Sobretudo, ela reverteu 0 proprio movimento de
Freud com relac;ao ao profundo, a desdda ao sonho como
questao da imortalidade da alma nao e diretamente res-
e descrita em seu Traumdeutung, as mitologias do mun-
pondida por uma afirmac;ao metafisica. Antes, a propria
do das trevas, Hades, Persefone, Dioniso - e as teolo-
natureza da alma no sonho - ou pelo menos a perspec-
gias cristas da desdda (Miller 1981b) - explorando a re-
tiva da alma com respeito ao sonho - mostra sua de-
lac;ao fundamental da psique com 0 dominic dos mor-
satenc;ao e indiferenc;a pela experiencia mortal como tal,
tos, 0 qual e tambem 0 dominio das imagens ou eidola
ate pela propria morte fisica, recebendo em seu ambito
(Hillman 1979a).
ar:n~ aqueles rostos e eventos do mundo mortal que
comCldem com a obra de seu destino. ,Por ~qusa da direc;ao vertical da psicologia profunda,
ela e obngada a preocupar-se corn a depressao e com a
redu<;ao dos fenomenos as suas essendas "mortais", seu
"'>;:}',;:dJ~~:;
58 Profundeza e Direc;iio Vertical .. ,._.';i'~>.;"";,::,:>,,.,.:;_,;~~,~;::~~~

exh'emo patologizado (Berry 1973), onde os experimen-


tamos tanto materialmente destrutivos e negativos quan-
to como base de apoio (Berry 1978b).
A literaliza<;ao do movimento descendente na
psicologia profunda resultou num estreitamento do seu
significado: interioridade introvertida para dentro do in- 9. Locus Cultural: Norte e S u I '
divIduo, para 0 "abismo" e a "camara secreta" do self
pessoal (Agostinho). 0 que e feito entao da rela<;ao com
os outros, com 0 mundo horizontal'? A dire<;ao descendente pode tambem ser vista co-
Para a psicologia arquetipica a dire<;ao vertical refere- mo a dire<;ao ao SuI. Diferente das principais psicolo-
se a interioridade como uma capacidade de todas as gias do seculo xx as quais se originaram na Europa
coisas. Todas ascoisas tern uma significa<;ao arquetfpica Setentrional - a Hngua alema e a "Welt~mschauung"
e sao passIveis de penetra<;ao psicol6gica, e esta interiori- monoteista judaico-protestan te -, a psicologia ar-
dade se manifesta no carater fisiognomico das coisas do quetfpica come<;a no SuI. Nem a civiliza<;ao grega nem
mundo horizontal. Profundeza nao e, portanto, 0 literal a Renascen<;a desenvolveram "psicologias" como tal. A
escondido, 0 que esta '1a embaixo", dentro. Melhor, a palavra "psicologia" e term os psicol6gicos mais mo-
fantasia do profundo nos encoraja a olhar para 0 mun.. dernos (Hillman 1972c) nao aparecem num sentido ati-
do novarnente, a procurar em cada evento "algo mais vo ate 0 seculo XIX. Levando em considera<;ao estes
profundo", a ''busca interior" (Hillman 1967a) (mais do fatos hist6ricos, a psicologia arquetfpica situa seu tra-
que a pesquisa) de significados ainda mais profundos que balho numa geografia pre-psicologica, onde a cultura
estao abaixo daquilo que parece ser meramente evidente da imagina<;ao e os mod os de vida carregavam 0 que
e natural. A fantasia da interioriza<;ao do movi.mento des- iria ser formulado no Norte como "psicologia". "Psi-
cendente esta, portanto, na pr6pria base de toda psi- cologia" e uma necessidade de uma cultura p6s-Refor-
canalise. A fantasia das profundezas escondidas €nche de rna que havia side privada de sua base poetica.
alma 0 mundo e encoraja 0 imaginar cada vez mais pro- Vma vez que, como afirma Casey (1982),0 espa<;o e
fundo em dire<;ao as coisas. Profundeza - mais do que anterior a possibilidade do pensamento - todo pensa-.
uma loca<;ao fisica ou literal - e a metMora primaria in- mento precisa ser situado para poder existir - a
dispensavel ao pensar psicol6gico (ou "psicologizar", Hill- psicologia arquetipica requer uma locac;ao imaginal. A
man 1975a). ''Viena'' de Freud e a "Zurique" de Jung, ou as "Escolas
da Calif6rnia" sao lugares da fantasia, e nao meramente
contextos socio16gicos e hist6ricos. Eles situam as ideias
··60~·=-"";.:~LocusCultural: Norte e Sui Locus Cultural: Norte e Sui 61

numa imagem geografica. Assim e 0 "sul" na imagina<;ao quando a psicologia esta identificada com as perspec-
da· psicologia arquetfpica. tivas da geografia psiquica setentrional.
"Sul" e tanto urn espa<;o etnico, cultural e geogrMi- Monografias de Robert Avens (1980, 1982a,b)
co como tambem simb6lico. Ele e tanto a cultura Medi- mostram que a psicologia arquetipica e nada men os que
terrane a, suas imagens e fontes textuais, sua humanidade uma formula<;ao paralela de certas filosofias orientais.
concreta e sensual, seus Deuses, suas Deusas e mitos, seus Como estas, ela tambem dissolve ego, ontologia, subs tan-
generos tragi co e picaresco (em lugar do heroismo epico dalidade, literalismos do self e divis5es entre este e as
do Norte); como e tambem uma instancia simb6lica coisas -- todD 0 aparato conceitual que a psicologia
"abaixo das fronteiras" que nao considera a regiao da setentrional constr6i a partir do ego her6ico e em sua
alma apenas de uma perspectiva moralista setentrional. defesa - numa realidade psiquica da imagina<;ao experi-
o inconsdente, assim, pode ser radicalmente re-visto e mentada sem media<;ao. 0 "esvaziamento" dos po-
pode tambem ser localizado "la ao Norte" (como ariano, sitivismos ocidentais, comparavel a urn exercicio Zen ou
apolonico, alemao, positivista, voluntarioso, racionalista, a urn caminho ao Nirvana, e precisamente 0 que tern feito
cartesiano, protestante, cientffico, personalista, monoteista, a psicologia arquetfpica, embora por vias completamente
etc.). Ate mesmo a familia, em vez de uma fonte de neu- ocidentais, onde "oddentais" refere-se a uma psicologia
roses "setentrionais", pode ser re-avaliada como a base da alma como e imaginada na tradi<;ao do SuI.
dos la<;os ancestrais e sociais.
Ao mencionar esta divisao fundamental na hist6ria
cultural do Ocidente, a psicologia arquetfpica ques-
tiona 0 dilema convencional de "Leste e Oeste". Pos-·
turas geralmente atribuidas ao "Leste" estao inc1uidas
dentro da pr6pria orienta<;ao da psicologia arquetipi-
ca. Tendo re-orientado a consciencia em dire<;ao a fa-
tores nao-eg6icos - as personifica<;5es multiplas da
alma, a elabora<;ao da base imaginal dos rnitos, a direta
imedia<;ao das experiencias sensoriais acoplada.s a am-
bigiiidade de suas interpreta<;5es, e a fenomenologia
radicalmente relativa do pr6prio "ego", como apenas
uma fantasia da psi que - a psicologia arquetipica tor-
na superfluo 0 movimento em dire<;ao as disciplinas
orientais que tiveram de ser encontradas no Leste
Psicologia Politeista e Religiiio 63

mente polimorfa da origem a libido num campo poli-


m6rfico, polivalente e policentrico de zonas er6genas. 0
modelo junguiano de personalidade e essencialmente
multiplo, e Jung correlaciona a pluralidade da estrutura
arquetipica com 0 estagio politeista da culhrra (CW 9, ii,
10. Psicologia Politeista e Religiiio §427). Dai, "a inerente multiplicidade da alma demanda
uma fantasia teol6gica de igual diferencia~aolf (Hillman
1975a, p. 167).
Nenhum movimento teve alcance tao largo em sua (2) A tradi~ao de pensamento (grega, renascentista,
implica~ao cultural quanta a tentativa de recuperar as roma.ntica) da qual a psicologia arquetipica se considera
perspectivas do politeismo. Moore (1980) considera esta herdeira acontece dentro de atitudes politeistas. Os produ-
perspectiva como a conseqiiencia racional de uma psi- tos da imagina~ao desses periodos hist6ricos nao podem
cologia baseada na anima, a qual pode "animar" 0 estu- contribuir mui to para a psicologia a menos que a cons-
do da religiao ao oferecer tanto "urn caminho decompre- ciencia que os receba seja capaz de transportar-se a uma
ensao da religiao... como uma maneira de encarar estudos estrutura politeista similar. As mais altas realiza~5es da
religiosos" (p. 284). A cristologia de Miller (1981a) de- cultura ocidental, onde a cultura contemporanea pode
monstra a relevancia da perspectiva politeista ate mesmo encontrar fontes para sua sobrevivencia, permanecem
para uma religiao cujo .dogma deriva hist6ricamente de fechadas a consciencia modema a menos que esta ganhe
uma posi~ao antipoliteista. As questoes complexas do uma perspectiva mimetica para aquilo que esm exami-
novo politeismo foram tratadas por Miller (1974, com um nando. Portanto, a psicologia politeista e necessaria para
apendice de Hillman 1981), e por Goldenberg (1979). Os a continuidade da cultura.
movimentos politeistas da psicologia arquetipica ocorrem (3) A critica social, politica e psiquiatrica, implicita
em quatro modos inter-relacionados. na psicologia arquetipica, preocupa-se prindpalmente com
(1) 0 modele rna is acurado da existencia humana o mite monoteista do her6i (agora chamada psicologia do
deve ser capaz de considerar sua diversidade inata, tanto ego) do humanismo secular, isto e, a no~ao autocentrada,
entre individuos como dentro de cada individuo. AIem auto-identificada da consciencia subjetiva humanista (de
disso, esse mesmo modelo deve tambem fomecer valores Protagoras a Sartre). 13 este 0 mite que dominou a alma
e estruturas fundamentais a essa diversidade. Para Freud e que leva tanto a a~ao irrefletida como ao cegar-se CEdi-
e Jung, a multiplicidade e basica para a natureza huma- po). Ele e responsavel tambem pela repressao de uma
na, e seus modelos de homem ap6iam-se numa fantasia diversidade psicol6gica que ira entao aparecer como psi-
policentrica. A n~ao freudiana da crian~a como sexual- e
copatologia. Assim, a psicologia politeista .necessaria
..
64 Psicologia Politeista e Religiao Psicologia Politeista e Religiao 65

para re-despertar a consciencia reflexiva e para trazer cr'iando apelos ern cada vida humana e dando as atitudes
uma nova reflexao para a psicopatologia. pessoais mais do que uma significac;ao pessoal. Os DeUses
(4) a perspectivismo da psicologia arquetipica requer sao, pOl"tanto, os Deuses da religiao e nao simplesmente
urn aprofundamento da subjetividade alem da mera pers- denomi~1a<;Oes, categorias, dispositivos ex machina. Eles sao
pectiva nitzscheana ou das instandas existendais. Perspec- respeitados como poderes, pessoas e criadores de valor.
tivas sao formas de visao, ret6rica, valores, epistemologia Mantem-se, todavia, uma distinc;ao entre politefsmo
e estilos vividos que perduram independentemente da como psicologia e como religiao. Esta distinc;ao e diffdl
individualidade empirica. Para a psicologia arquetipica, porque a "analise profunda leva a alma, a qual inevi-
pluralismo, multipliddade e relativismo nao bastam: eles tavelmente envolve a analise corn religiao e ate corn teo-
sao apenas generalidades filos6ficas. A psicologia neces- logia, enquanto que ao mesmo tempo a religiao vivida,
sita espedficar e diferendar cada evento, 0 que s6 pode experimentada, e originaria da psi que human a e como
ser feito diante do varia do background das flgurac;5es ar- tal e urn fenomeno psico16gico" (Hillman 1967a, p. 42).
queHpicas, ou daquilo que 0 politeismo denomina a
Quando a alma e a primeira metcifora, psicologia e a
Deuses, no sentido de tomar a multipliddade autentica religiao devem estar entrelac;adas e sua distinc;ao seria
e precisa. Assim, a questao que ela levanta em cada even- arbitraria ou ambigua. A questao do politeismo e apre-
to nao e par que ou como, mas sim 0 que espedficamente sentada pela pr6pria alma tao logo sua perspectiva vi-
esta sendo apresentado e fundamentalmente quem, qual vende 0 mundo como animado e sua pr6pria natureza
figura divina esta falando nesse estilo de conscienda, nes- como f('Pleta de diversidade dinamica. au seja, tao logo
sa forma de apresentac;ao. Dessa maneira, uma psicolo- a alma se liberte da dominac;ao do ego, a questao do poli-
gia politeista e necessaria para justificar urn "universo teismo aparece ..
pluralista" (William James 1909), para coerendas dentro Alem disso, a psicologia arquetipica "nao esta af para
dele, e para a predsao de sua diferendaC;ao. adorar os Deuses gregos ou nenhum outro de qualquer
A analogi a politeista e tanto religiosa quanta nao-re- alta cultura politeista ... Nao estamos ressuscitando uma
ligiosa (Miller 1972, 1974; Bregman 1980; Scott 1980; fe morta, pois nao estamos preocu pados com fe"
Avens 1980). Os Deuses sao tornados de fonna essendal, (Hillman 1975a, p. 170; cf. A. H. Armstrong 1981). as
como fundarnentos, de tal modo que a psicologia apon- Deuses da psicologia nao sao criveis, nem pod em ser
ta para alem da alma e nao pode nunca ser meramente tornados literalmente, ou imaginados teologicamente. "A
agnestica. A dimensao sagrada e sacrifidal - 0 instinto religiao aborda os Deuses corn ritual, prece, sacrificio,
religioso, como Jung 0 chama - recebe urn lugar de adoraC;ao e credo... N a psicologia arquetipica, os Deuses
. 8!a.nde'valor; e, na verdade, e predsamente na atrac;ao sao imaginados. Sao abordados atraves de metodo psi~
. pelos'Deuses que 0 valor entra no campo psicol6gico, co16gicos de personificac;ao, de patologizac;ao, de psico-
66 Psicologia Politefsta e Religiiio Psicologia Politefsta e Religiiio '67

logizac;ao. sao fonnulados ambiguamente, como metaforas tint~ religioso e inerente a psique, como afinnava Jung,
para tipos de experiencias e .Icomo pessoas limitrofes en~ao qualquer tentativa da psicologia de fazer justic;a a
numinosas. Sao perspectivas c6smicas das quais a alma pSI que devercl reconhecer sua natureza religiosa. '
participa" (ibid., p. 169). Esta participac;ao se faz princi- Vma visao politeista difere de urn panteismo indife-
palmente de modo reflexivo: os Deuses sao descobertos rendado, de urn vitalismo sagrado, de urn animismo
no reconhecimento da perspecti va e da sensibili.dade naturalista - os quais do ponto de vista da consdencia
psicol6gica de cada urn para com as configurac;5es que ~o~o~e.ist~, tenden: a s~r dassificados como "pagao e ll

dominam 0 seu pr6prio estilo de vida e pensamento. Os pnmItivo . Na pSlcologm arquetipica, os Deuses nao sao
Deuses, para a psicologia, nao tern que ser vivenciados uma energia primal espalhada pelo universo, nem s~o
num encontro mistico dire to ou em efigies, quer sejam imaginados como poderes magicos independentes que
figuras concretas ou definic;5es teoI6gicac;. agem sobre n6s atraves das coisas. Os Deuses sao
Vma fala atribuida a Hegel declara: "0 que e imaginados como a inteligibilidade formal do mundo
necessario e urn 'monoteismo de razao e corac;ao, urn po- fenomenol6gico, pennitindo a cada coisa ser discernida
liteismo de imaginac;ao e de arte'" (Cook 1973). Desde pela sua inteligibilidade inerente e pelo seu lugar espe-
que a psicologia arqueupica e imaginativa, ela requer que cifico de pertinencia a este ou aquele kosmos (padrao or-
os primeiros prindpios sejam imaginativos e 0 politeismo denado ou organizac;ao). Os Deuses sao lugares, e os mi-
toma-se necessario, embora ela nao assurna a separac;ao tos abrem espac;o para eventos psiquicos que sO se tor-
radonalista entre corac;ao e arte, entre sensibilidades valo- narao patol6gicos num mundo humano. Oferecendo abri-
rativas e estE~ticas. go e altar, os Deuses podem ordenar e tomar inteligivel
A o·itica da religiao teol6gica da continuidade aquela todo 0 mundo fenomeno16gico da natureza e da conscien..;
feita por Freud e Jung, embora em moldes ainda mais cia humana. Todos os fenomenos sao "salvos" pel a aC;ao
radicais. A psicologia arquetipica nao tenta rever a de situa-Ios, 0 que de imediato lhes concede valor. Des-
religiao judeu-crista como ilusao (Freud) nem transfonna- cobrimo~ 0 lugar de cada coisa atraves de semelhanc;as,
la em unilateral (Jung). Ela troca 0 ambito geral da a analogla dos eventos com as configurac;5es miticas. Este
questao para urna posic;ao politeista. Neste (mico golpe, modo foi corrente durante milenios de nossa cultura na
leva as criticas de Freud e Jung as ultimas consequen- alquimia, na astrologia planetaria, na filosofia natural e
cias - a morte de Deus como fantasia monoteista, ao na medicina, tendo cad a urn deles estudado as coisas
mesmo tempo restaurando a totalidade dos Deuses em microc6smicas em confonnidade com os Deuses macro-
todas as coisas e, porque nao dizer, revertendo a pr6pria c6sn:ico~ (Moore 1982; Boer 1980). Era esta questao de
psicologia ao reconhecimento de que ela tamberri e urna localzzaqao que era enderec;ada aos oraculos gregos: "A
atividade religiosa (Hillman 1975a, p. 227). Se urn ins- quais deuses ou her6is devo eu rezar ou pagar sacrificio
68 }'sicplogia Politefsta eReligiao

para' conseguir esta ou aquela grac;a?" Sabendo 0 lugar


aoqual 0 evento pertence, a quem pode estar rela-
cionado, somos capazes de ir adiante.
,,'.Hoje, entretanto, a descoberta do lugar das coisas, a
epistrophl ou reversao pela semelhanc;a de um evento ao
seu padrao mftico, nao e tanto 0 objetivo da psicologia 11. Psicopatologia
arquetipica, mas sim uma sensibilidade arquetipica de que
todas as coisas pertencem ao mi to. Os estudos dessas 10-
calizaC;Oes arquetipicas, oriundas do trabalho de Frances o ponto de partida para a re-visao da psicopatologia
Yates (1966) relacionado com 0 Memory Theatre of the e uma afirmac;ao de Jung (1929, CW 13, §54): "Os deuses
Florentine, Ciullo Camillo (c. 1480-1544), continuou em tornaram-se doenc;as; Zeus nao mais govema 0 OUmpo
semimmos de Lopez-Pedraza e Sardello. mas, ant8s, 0 plexo solar, e produz curiosos espedmes
para 0 consult6rio medico..."
o vinculo entre Deuses e d6enc;as e duplo: por urn
lado, dando a dignidade de uma significac;ao arquetipica
e uma reflexao divina a todo e qualquer sintomai por
outro, sugerindo que os mitos e suas figuras podem ser
examinados como padr5es de patologia. Hillman (1974a)
chamou esta patologia nas figuras mfticas de infinnitas do
arquetipo, pelo que se entende a "nao-firmeza" essencial
de todas as formas arquetipicas - que elas nao sao per-
feitas, nao sao transcendentes, nao sao idealizac;5es - e
que assim sen do elas proveem "assistenda" as condic;5es
humanas; sao background dentro do qual nossos sofrirnen- ~
tos pessoais podem encontrar apoio e cuidado.
o duplo vinculo - que a patologia e mitologizada
e que a mitologia e patologizada - ja h~via side prenun-
dado pela apresentac;ao do mite de Edipo por Freud
como a chave para a patologia da neurose e ate mesmo
da civilizac;ao como urn todo. Antes de Freud, a ligac;ao
entre mythos e pathos pode ser encontrada no Nascimento
70 Psicopatoiogia Psicopatoiogia 71

da Tragedia de Nietzsche e na importante pesquisa do do excepcional, mas 0 excepcional nao pode ser
grande clacissista e enciclopedista alemao Whilhein Hein- entendido pela ampliac;ao do lugar-comum. 0 excepcio-
rich Roscher, cujo Ephialtes (1900), uma monografia sobre nal e crucial tanto 16gica quanto causalmente, porque ele
Pan e 0 Pesadelo, foi subtitulada como "A My tho- introduz... a categoria mais compreensfvel."
pathological Study" (d. Hillman 1972a). Precisamente porque 0 mite apresenta 0 excepcional,
As relac;5es entre mitos e psicopatologia sao elabo- o estranho, a dimensao mais-que-humana, ele oferece
radas nurna serie de estudos: Lopez-Pedraza (1977) so- background para os sofrimentos de alrnas in extremis, isto
bre Hermes e (1982) sobre os Titas; Berry (1975) sobre e, aquilo que a rnedicina do seculo XIX chama
Demeter/Persefone e (1979b) sobre Eco; Moore (1979a) 'psicopatologia'. 0 duplo movimento entre patologia e
sobre Artemis; Micklem (1979) sabre Medusa; Hillman mitologia, mais do que tudo, implica que 0 pato16gico
(1970a, 1975d) sobre Saturno, (1974a) sobre Atena e esta sempre acontecendo na vida humana na medida ern
An.anke, (1972c) sobre Eros e Dionisio, (1972a) sobre Pan que a vida desempenha fantasias rnfticas. A psicologia ar-
e (1967b) sobre 0 puer aeternus ou a figura jovem divina quetipica ainda chama a atenc;ao para 0 fato de que e
nas varias rnitologias; M. Stein (1973) sobre Hefestos e principalmente atraves dos ferimentos na vida humana
(1977) Hera. Nestes estudos, 0 mite e examinado pelas que os Deuses entram (e nilo atraves de eventos
suas implicaC;6es patol6gicas. A herrneneutica comec;a com pronunciadarnente sagrados ou mfsticos), porque a pato-
os mitos e as figuras mfticas (nao corn urn caso), fazen- logia e a maneira mais palpavel de testemunhar os po-
do uma leitura em direc;ao a profundeza para a compre- deres que estao aMm do controle do ego e mesmo da
ensao psico16gica das fantasias que estao ocorrendo no insuficiencia da perspectiva eg6ica.
comportarnento. Esta recorrencia constante do "patologizar" e definida
Assim, a psicologia arquetipica segue 0 metoda como "a autonomia da psique de criar dcenc;a, morbi-
epistr6fico (reversao) de Corbin, retornando ao principio dez, desordem, anorrnalidade e sofrimento ern qualquer
superior no sentido de poder encontrar espac;o e com- aspecto do seu comportamento e de experiendar e ima-
preensao para 0 menor - as imagens antes de seus ginar a vida atraves desta perspectiva deforrriada e afli-
exemplares. A imaginac;ao torna-se urn metoda para a ta" (Hillman 1975a, p. 57). Nao ha cura para 0 patologi-
investigac;ao da psicopatologia. Este metodo helmeneuti- zar; ha, isto sim, uma re-avaliac;ao.
co tarnbem e essencialmente neoplatonico; e a maneira o fato do patologizar ser tambem uma "perspectiva
mais indicada para decifrar as configurac;5es grotescas e deforrnada" explica seu lugar no trabalho da irnaginac;ao
patologizadas da psicologia da Renascenc;a. Como diz o qual, de acordo com Gaston Bachelard (1884-1962) _
Wind ern seu "Observations Method" (1967, p. 238): "0 outra fonte irnportante da tradic;ao arquetlpica - deve
lugar-comum pede ser compreendido como uma reduc;ao acontecer atraves da "deforrnac;ao das imagens oferecidas
72 }Jsic07?atolo~
Psicopatologia 73

~la percepc;ao" (Bachelard 1943, p. 7). 13 esse olho patolo- A psicologia arquetipica, no entanto, da tres passos adi-
gtzado que, como 0 do artista e 0 do psicanalista, im- ante da antipsiquiatria. Primeiro, ela examina a pr6pria
pede que os fenomenos da alma sejam inocentemente perspectiva de normaliza<;ao no senti do de mostrar suas
compreendidos como meramente naturais. De acordo com "anormalidades" e propens5es patol6gicas. Segundo, ao
J~ng ,(e sua pesquisa em alquimia), 0 trabalho psicol6-
contrario de Szasz e Laing, a psicologia arquetipica man-
gIco e urn opus contra naturam. Esta ideia Hillman (1975a, tern a existencia real da psicopatologia como tal, inerente
pp. ~96) ap~0£:lnda ao ~tacar.a "falacia naturalista" que a realidade psiquica. Ela nem nega e nem tenta encon-
domma a malOna das pSlcologIas normativas. trar causa para a psicopatologia fora do ambito da alma:
Uma outra direc;ao da conexao mythos/pathos come<;a na polftica, no poder profissional, ou nas conven<;5es so-
com uma. f?:ma espe~ca de patologia, procurando por ciais. Terceiro, porque 0 patologizar e inerente a psique,
suas posslbilidades lll1ticas, como se descobrindo "0 Deus ele tambem e necessario. A necessidade de patologizar
na doen<;a". Os exemplos sao: Lockhart (1977), cancer; deriva, por urn lado, dos Deuses que mostram padr5es
'Moore (1979b), asma; l..everanz (1979), epilepsia; Hawkins de psicopatologia, e, por outro, cia alma a qual se toma
(1979), enxaqueca; Severson (1979), doen<;as da pele; atenta ao seu destine na morte exatamente atraves da in-
Kugelmann, glaucoma; Sipiora (1981), tuberculose. cansavel e assombrosa capacidade inventiva da psique de
. Ea tambem reflex5es mais genericas sobre patologia patologizar.
revlSta dentro de urna hermeneutica arquetipica: R. Stein Como 0 paradigma da psicopatologia em Freud foi
(19~4) sobre as desordens psicossexuais; Guggenbiihl- a histeria (e a paranoia) e em Jung foi a esquizofrenia, a
C~rug (197:) ~bre ? problema do poder arquetipico nas
psicologia arquetipica tern tratado, ate agora, prin-
atitudes medicas; Ziegler (1980) sobre medicina arquetipi- ci palmente da depressao (Hillman 1972c, 1975a,c,d, 1979a;
ca; Sardello (1980a) sobre medicina, doen<;a e corpo. Esses Vitale 1973; Berry 1975, 1978b; Guggenbiihl-Craig 1979;
trabalhos encaram 0 cerpo, a patologia e seu tratamento Miller 1981b; Simmer 1981) e perturba<;5es de humor
livr~s do positivismo da tradi<;ao clinica e empirica que (Sardello 1980b). A depressao tambem fomeceu urn foeo
o seculo XX herdou da medicina materialista e dentifi- para a K'-llturkritik, urn ataque a conven<;5es rnedicas e
cista do seculo XIX, bem como sua visao de sa tide sociais que nao perrnitem urn aprofundamento vertical da
doen<;a, e do poder her6ico do papel do medico. ' depressao.
.. ' '. N~ .certo senti do, essa posic;ao esta pr6xima da an- Uma sociedade que nao perrnite a seus individuos
tipsIqrnatrta de Thomas Szasz e de R. D. Laing. Cada urn Jldeprirnir-se" 4 nao pode encontrar a sua profundidade e
encara ascondi<;5es' "anormais" como existencialmente deve ficar permanentemente inflada numa perturba<;ao
humanas e assim fundamentalmente normais. Ton1am-se maniaca disfar<;ada de "crescimento". Hillman (1975a, p.
condi<;5es psiquiatricas quando vistas psiquiatricamente. 98) liga 0 horror ocidental a depressao com a tradi<;ao
74 Psicopatologia

do ego her6ico e a da salva¢o crista pela ressurrei<;ao.


"A depressao e ainda 0 Grande Inimigo... Nao obstante, , ,
• '.;' "~>'

atraves da depressao adentramos as profundezas e hi en-


contramos a alma. A depressao e essencial para 0 sentido
tragico da vida. Ela umedece a alma seca e enxuga a 12. A Pratica da Terapia
molhada. Ela traz refUgio, limita<;ao, foco, gravidade, peso
e humilde impotencia. Lembra a morte. A verdadeira re-
volu<;ao (no que toea a alma) come<;a naquele individuo A psicologia arquetipica segue os rituais de
que pode ser honesto com a sua depressao." procedimento da analise chlssica originados em Freud e
Jung: (1) encontros regulares (2) individuais (3) face a face
(4) no locus do terapeuta (5) mediante pagani't=nto. (Gru-
pos, casais e crian<;as sao geralmente evitados; pouca
aten<;ao e dada a diagnostico, categorias tipol6gicas e
testagem psicoI6gica). Esses cinco proeedimentos, toda-
via, nao sao rigidos e qualquer urn deles pode ser modi-
ficado ou abandonado. A analise dassica (Hillman 1975b,
p. 101) tern side definida como: "urn processo de trata-
men to numa atmosfera de simpatia e confian<;a de uma
pessoa por outra mediante pagamento, 0 qual pode ser
eoncebido como educativo ou terapeutico em varios sen-
tidos e que procede principalmente atraves daexplora¢o
interpretativa conjunta de comportamentos habituais e de
eategorias de eventos mentais que tern side tradicional-
mente chamados de fantasias, sentimentos, mem6rias,
sonhos e ideias, e onde a explora<;ao segue urn conjunto
coerente de metod os, eonceitos e convic<;6es,originados
principalmente em Freud e Jung, onde 0 foeo e preferi-
velmente sobre 0 inesperado e sobre 0 material com car,:"
ga afetiva, e L"'UjO objetivo e 0 desenvolvimento (subjeti-:
va e/ou objetivamente determinado) do analisando e 0
termino do tratamento."
76:< A Pratica da Terapia A Prtitica da Terapia 77

Se a analise "termina", entao ela e govemada por urn como intendonais. Mas 0 terapeuta nao literaliza essas in-
tempo linear. Casey (1979, p. 157) eXpOe esta hip6tese: ten<;Oes, e assim a terapia segue 0 metoda freudiano de res-
" ...0 tempo da alma nao e presumivelmente continuo ... e tri<;ao e absten<;a:o. Ela se move ao longo de uma via negati-
descontfnuo, nao simplesmente em termos de rupturas ou W, tentando desliteralizar todas as formula<;Oes de inten¢o

lacunas... mas tendo muitas manifesta<;5es, varios tipos e de tal fo.ma que a analise permane<;a ligada as imagens
modalidades. A policentl'icidade da psi que demanda nao reais.
menos que isto, ou seja, urn tempo polimorfo ..." 0 fato o foco e a atmosfera especffiros do modo de trabalho
de as analises terem se tornado cad a vez mais long as da psicologia arquetipica e seu distandamento da analise
desde 0 principio com Freud e Jung deve ser compreen- dassica podem ser encontrados entre diversas pub1ica~Oes
dido como urn fenorneno da temporalidade da alma: ''E por duas raz5es: nao ha programa de treinamento (nao
a alma, de qualquer maneira, que esta tornando todo esse ha didatica), e nenhum trabalho sozinho exp5e a teoria
tempo extra, e deve estar fazendo isso por suas pr6prias da pratic:a da terapia. (Publica<;5es particularmente rele-
raz5es que tern aver primeiramente com ... estar toman- vantes sao: Guggenbiihl-Craig 1970, 1971, 1972, 1979; Ber-
do mais tempo do mundo para assim encorajar a flo- ry 1978a, 1981; Hillman and Berry 1977; Grinnell 1973;
rescenda de seu pr6prio tempo imaginal" (ibid., p. 156). Frey, Bosnak et.a!. 1978; Giegerich 1977; Hillman 1975a,
A prMica esta enraizada na visao de Jung da psique 1972a, 1964, 1977b,c, 1975c, 1974a; Hartman 1980; New-
como inerentemente intendona1: todo e qualquer evento man 1980; Watkins 1981).
psiquim tern telos. A psicologia arquetipica, contudo, nao o distandamento da analise dassica nao esta tanto
anunda esse telos. A intendonalidade qualifica os eventos na fonna da terapia mas em seu foeo. A psicologia ar-
psiquicos, mas nao e para ser literalizada a parte das ima- quetipica concebe a terapia, assim como a psicopatologia,
gens as quais ela pertence. Assim a psirologia arquetipica como a representa\.ao da fantasia. Em vez de prescrever
se abstem de instituir metas para a terapia (individua<;a:o ou ou empregar a terapia para a patologia, ela auto-exami-
totalidade) e para seus fenomenos tais como sintomas ou so- na a fantasia da terapia (de tal forma que a terapia nao
nha3 (comp"~saQ5es, avisos, indica¢es proreticas). A inten<;ilo perpetua a patologia literal, a qual traz a terapia a tona
permanece com urna perspectiva sobre os eventos, na des- e e tr~i.da a tona por uma terapia literal). A psicologia
cri<;ilo original de Jung da visao prospectiva versus a mo arquetiplca procura remeter a terapia as suas noQ3es de
redutiva. Fonnula<;6es positivas sabre 0 teles da analise Ie- si mesma (Giegerich 1977), tentando suspender a re-
yam apenas a teologia e a objetivos dogmaticos. A psicolo- pressao da inconsdenda da pr6pria terapia.
gia arquetipica encoraja 0 sentido de inten<;a:o como terapeu- Em "The Fiction of Case History", Hillman (1975c)
tiro em si porque ele intensifica 0 interesse do padente em examina 0 modelo de caso usado por Freud, e por analis-
fenomenos psiquicos, induindo os sintomas mais censuraveis, tas desde entao, como urn estilo de narrativa. De uma
78 A Pratica da Terapia A Pratica da;~r.phn1il1
" '. . ~. . :..".. .' .,: ' : :. .'

s6 vez 0 problema dos casos e os problemas contados neiro de 1977) afirma: A nossa pode ser· charnada.d~·
1/

'pelos casas tornam-se 0 assunto para uma reflexao imagi- I


I
~ma terapia focada na imagem. Assim, 0 sOrulo,'com:o:\trrif
nativa e litenlria da qual 0 clinico e apenas urn genero.
I
Imagem ou urn. a~pamen:o de imagens e paradigm~~~ ..' . '
Generos ou categorias da imagina<;ao literaria - epico, I.
i co~ como ~e ~stivessemos sltuando todo 0 procedimento
policial, cornico, social, realista, picaresco - tomam-se pSlcoterapeutico dentro do contexte de urn sonho.'~ (ct.
'relevantes para a compreensao da organiza<;ao de narra- Be;ry 1974, 1978a, e Hillman 1977b, 1978a, 1979a,b,pani
tivas em terapia. Desde que "0 modo como contamos a metodo e exemplos de trabalhos corn sonho.) !sso nao
nossa hist6ria e 0 modo como formamos a nossa tera- significa, entretanto, que os sonhos como tal se tornem 0
pia" (Berry 1974, p. 69), todo 0 procedimento do trabalho foco da terapia, mas que todos os eventos sao vistos de
terapeutico deve ser reconcebido em termos da base urn p_onto de ~~ta omrieo, como se fossem imagens, ex-
poetica da mente. Urn trabalho essencial da terapia e tor- ~ressoes metafoncas. 0 sonho nao esta no padente e nem
nar-se consciente das fic<;6es nas quais 0 padente esta pro- e alg? que ele fa<;a ou construa; 0 padente esta no sonho
jetado e re-escrever ou ghost-write, colaborativamente, a e esta fazendo ou sendo feito pela sua fic<;ao. Essas mes-
hist6ria re-contando-a num estilo mais profundoe auten- mas dissertac;6es sabre 0 trabalho corn sonho mostram ca-
tico. Nesta versao re-contada, na qual a arte imaginativa mo uma imagem pode ser criada, isto e, como urn evento
torna-se 0 modelo, os fracassos pessoais e os sofrimentos pode ser ouvido como metMora atraves de vanas mani-
do paciente sao essendais para a hist6ria como 0 sao para pul~<;6es: _revers6es gramaticais, remo<;ao de pontua<;ao,
a arte. reafinna<;oes e eco, humor, amplia<;ao. 0 objetivo de tra-
A explication du text (com a qual 0 exame das ima- balhar corn sonhos, ou acontecimentos da vida como so-
gens e dos detalhes narrativos em terapia podem ser com- nhos, e trazer reflexao ao discurso declarativo e irrefleti-
parados) deriva em parte da "teoria do constructo pes- do de tal fonna que as palavras nao mais acreclitarn re-
soal" (1955) de George Kelly (1905-1966). A experiencia meter-se a referentes objetivos; ao contrano, 0 discurso tOr-
nunca e crua ou bruta; e sempre construida por imagens na-se imagistico, auto-referente, descritivo de' uma condi-
que sao reveladas nas narra<;6es do paciente. A fantasia <;ao psfquica como sua verdadeira expressao (Berry 1982).
na qual 0 problema esta projetado diz mais sobre a rna- . 0 exame detalhado da apresenta<;ao das imagens _
neira com que 0 problema esta construido e como ele seJa ern sonhos, situa<;5es cotidianas, ou na imagina<;ao
po de ser transformado (reconstruido) do que 0 faz desp,erta da ~antasia - tern side assunto para Watkins
qualquer tentativa de analisar 0 problema em seus pro.. (1~7b); Garufl (1977); Humbert (1971); Berry (1979a,b);
prios termos. I-Iillman (1977a,c~. ~qui. 0 tr~balho e urn posterior apri-
Urn trabalho apresentado por Hillman e Berry no moramento da tecmca JungUlana da "imagina<;ao ativa"
First International Seminar of Archetypal Psychology (ja- (Hull 1971).
80 A Prtitica da Terapia
A Prtitica da Terapia 8t ..

'.' 0 metodo da imaginac;ao ativa toma-se algumas ve-


zes. uma .opc;ao em terapia. Ha uma percepc;ao direta e resposta estetica, imaginativa. Quando 0 meio ambiente
um en?aJamento com uma ou mais figuras imaginarias. e reconheddo como imagetico, entao cada pessoa vai rea-
Essas figuras com quem se convive, se contracena ou se gir a ele de uma maneira mais psicologica, estendendo
:e~ata 'pl~~camente nao sao concebidas como meras pro- assim as noc;OOs de 'psicologico' ao estetico e a de tera-
Jec;~s mtemas ou apenas partes da personalidade. Con- pia de horas ocasionais no consultorio a uma atividade
fenmos a elas respeito e dignidade proprios de seres in- imaginativa continua no lar, na rna, ao comer ou ao ver
d=pe~dentes. Elas sao imaginadas seriamente, ainda que televisao.
nao llteralmente. Como os daimones neoplatonicos, e como
anjos no sentido dado por Corbin, sua realidade "inter- Sentimento
mediaria" nao e nem fisica nem metafisica, embora "tao
real quanto voce - enquanto entidade psiquica - e real" A liberac;ao da terapia como atividade exc1usiva de
(Jung, CW 14, §753). Este desenvolvimento do verdadei- consultorio, primeiramente requer uma re-avaliac;ao da
r~ poder imaginativo (a vera imaginatio de Paracelso; 0 identidade psique = sentimento, aquela identificac;ao do
hlma do corac;ao de Corbin) e a habilidade de viver a indivfduo com emoc;ao, que caracterizou todas as escolas
propria vida na companhia de fantasm as, de familiares, de psicoterapia desde 0 trabalho de Freud com a con··
de ancestrais, de guias -- a populac;ao da metaxy - sao versao histerica, a ab-reac;ao emocional e a transferencia.
tambem objetivos de uma terapia arquetipica (Hillman Em suma, a terapia tern se preocupado com os sentimen-
1977c, 1979c). tos pessoais, e as imagens do paciente tern side reduzi-
Recentemente, a terapia focada na imagem estendeu- das a seus sentimentos. Hillman (1960, 1971), em dois
se ao mundo dos objetos perceptuais e das formas ha- livros dedicados a emo¢o e ao sentimento, comec;ou uma
bitu~ - edificios, sistemas burocraticos, linguagern con- analise fenomenologica e diferenciada das n0<;OOs e teo-
venclOnal, transportes, meio ambiente urbano, alimen- rias de sentimentos e emoc;ao como urn caminho no sen-
tac;ao, educac;ao. Este projeto tern a ambic;ao de recupe- tido de liberar a terapia, e a propria psicologia, do ine-
rar a anima mundi, ou alma do mundo, pela escrutiniza- vihlvel estreitamento a um personalismo ocasionado pela
c;ao da face do mundo como fisiognomia estetica. Este identificac;ao de alma com sentimento. 0 principal argu-
movimento eneara a terapia toda para alem do encontro mento contra 0 modo confessional de terapia (Hillman
de duas pessoas em particular, e assume a tarefa maior 1979c) - alem de perpetuar a divisao cartesiana entre
~ere-~aginar. 0 mundo publico dentro do qual 0 pa- sujeito almad%bjeto sem vida - e que ele favorece a
cente Vlve (Ogilvy 1977). Esta noc;ao de terapia tenta per- ilusao da emoc;ao, como pertencente ao 'proprium' (All-
ceber a base poetica da mente na realidade, como uma port 1955). A intensa singularidade que as emoc;5es
trazem, seu efeito monocentrico de estreitamento sobre a
82 A Prtitica da Terapia

consciencia, ap6ia a tendencia ja monotefsta do ego de


I, medo, a situa<;ao de desespero. Sentimentos sao imagi~;S,:j.
nados nos seus detalhes. Este movimento e semelhante,:';~~
apropriar-se e identificar-se com suas experiencias. As aquele da teoria do imagismo na poesia (Hulme1~24),\1'· . .
emo<;Oes refor~am a psicologia do ego. Mais ainda, quan- 1 onde qualquer emo<;ao nao diferenciada por uma Ima';;','
do emo<;ao e sentimento sao concebidos como primarios, gem especifica e incipiente, comum e silenciosa, per- .'
a') imagens devem desempenhar urn papel secundario. manecendo sentimentalmente pessoal e ainda coletiva-
BIas sao consideradas como deriva<;5es' e descri<;5es de
sentimentos.
I mente des-individualizada.

A psicologia arquetfpica, ao contrario, reverte a re-


~ la<;ao de sentimento e imagem: sentimentos sao consi-
derados, como diz William Blake, "influxos divinos",
acompanhando, qualificando e energetizando imagens.
Eles nao sao meramente pessoais, mas pertencem a reali-
dade imaginal, a realidade da imagem, e ajudam a ima-
gem a ser sentidacomo urn valor especifico. Os senti-
mentos elaboram sua complexidade, e sao tao comple-
xos quanta a imagem que os con tern. As imagens nao
representam sentimentos, mas os sentimentos s~o ineren-
tes as imagens. Berry (1974, p. 63) escreve: "Uma ima-
gem onfrica e ou tern a qualidade de uma emo<;ao ... Elas
[as emo<;oes] aderem ou pertencem a imagem e nao
podem ser explicitadas de fonna alguma. Naopodemos
acolher nenhuma imagem em sonhos, poesia Ou. pintura
sem experimentar uma. qualidade emocional apresentada
pela pr6pria imagem." Isto ira implicar que qualquer
evento vivenciado como uma imagep"\ esta ao mesmo
tempo animado, emocionalizado e situado num ambito
de valor.
A tarefa da terapia e restituir os sentimentos pessoais
(ansiedade, desejo, confusao, t€:dio, afli<;ao) as imagens
especificas que os contem. A terapia tenta individualizar
o rosto de cada emo<;ao: 0 corpo do desejo, a face do
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Eros 85

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er6tico. Sempre que a psi que for levada em considerac;ao
ou for tomada como uma perspectiva em relac;ao' aos
acontecimentos, 0 enredo er6tico ira necessariarnente apa-
recer porque 0 tandem mito16gico' necessita de sua apa-
ric;ao conjunta. Enquanto 0 mite de Apuleio detalha os
obstaculos na relac;ao entre amor e alma, R. Stein (1974)
13. Eros desenvolveu uma abordagem arquetfpica aos impedimen-
tos incestuos05 na familia os quais previnem 0 eros de
tomar-se psicologico e a psi que de tomar-se er6tica.
Desde 0 principio, a psicologia profunda tern reco- A ideia de urn tandem mftico como base datranS-
nheddo 0 papel especial de eros em seu trabalho. Na ver- ferenda foi primeiramente sugerida pela teoria edfpica de
dade, a psicanaIise tern sido muito mais uma eroto- Freud e elaborada por Jung em sua teoria de, animal ani-
analise, :nqu~n~o uma analise da alma, uma vez que sua mus (CW 16). A psicologia arquetfpica continuou a des-
perspectiva baslca com relac;ao a alma tern sido libidinal crever uma variedade de tandens: Senex e Puer (Hillman
~ onipresenc;a de eros na terapia e na teoria de todas ~ 1%7b); Venus e Vulcano (M. Stein 1973); Pan e as Nin-
psicologias profundas e reconhedda sob 0 termo tecnico fas (Hillman 1972a); Apolo e Dafne; Apolo e Dioniso;
de transferencia. Hermes e Apolo (Lopez-Pedraza 1977); Zeus e Hera (M.
, A psicologia arquetfpica, analogamente a teoria Stein 1977); Artemis e Puer (Moore 1979a); Eco e Nard;.
alqufmica da psicologia da transferencia de Jung, imagi- so (Berry 1979b); Demeter e Persefone (Berry 1975); Mae
na a trans~erencia em contraste com urn background mfti- e Fillio (Hillman 1973b). Guggenbiihl-Craig discutiu as
co - 0 mttologema de Eros e Psique do asno de ouro de fantasias arquetipicas que operam na relaC;ao padente-
Apuleio (Hillman 1972c, pp. 63-125) - assim des-his tori- terapeuta (1971) e na dfade do casamento (1977). Esses
cizando .e des-personalizando a fenomenologia do amor tandens fornecem a oportunidade para 0 exame das di-
na terapla, bem como em qualquer paixao humana. "Ao versas formas de relac;5es er6ticas, suas ret6ricas e
reconhecer a primazia da imagem, pens amen to ar- ° expectativas, os diferentes estilos de sofrimento e as reci-
q~etfpico libera psique e lo~os para urn Eros que e ima- procidades entrelac;adas que cada tandem imp5e. Esses
"gt~~l ~Bed~ord 1981, p. 245). A transposiC;ao imaginal e tandens sao imaginados ocorrendo tambem intrapsiquica-
, mttica tm~hca que todo e qualquer fenomeno er6tico, in- mente, como padr5es das relac;5es entre complexos num
", Flu~n?o os sintomas er6ticos, bus cam consciencia psi- individuo.
,~~l?gtca ~que todo e qualquer fenomeno psiquico, in- Vma vez que 0 amor da alma e tambem 0 arnor da
",. ,dllmdo smtomas neur6ticos e psic6ticos, buscarn 0 abrac;o
'.< ',' ",
imagem, a psicologia arquetfpica considera a transferenda,
00 1:.r05
., ~ ~'.: .:
=======================7====~
induindo suas mais extremas demonstra~5es sexualizadas,
como sendo urn fenomeno da imagina~ao. Em nenhum
outro lugar a impessoalidade do mite toea a vida huma-
na mais pessoalmente. Assim a transferencia e 0 para-
digma para a elabora~ao das rela~Oes do pessoal elite-
ral. com 0 impessoal e imaginal. A transferencia e, por-
tanto, nada menos do que 0 eros exigido pelo proprio
despertar da realidade psiquica; e esse despertar imp5e 14. Teoria da Personalidade: Personificar;ao
papeis arquetipicos ao paciente e ao terapeuta, ressaltan-
do 0 do "paciente pskoI6gico", que se refere aquele que
sofre ou esm. apaixonado pela psique. Por esta rmo er6ti- A teoria de personalidade da psicologia arquetipica
ca - nao medica - a psicologia arquetipica prefere 0 difere fundamentalmente das principais visOes de perso-
termo "paciente" ao inves de cliente, analisando, orien- nalidade na psicologia ocidental. Se 0 patologizar per-
tando, etc. As lutas er6ticas em qualquer relacionamento tence a alma e nao deve ser combatido pelo ego forte, e
sao tambem lutas psicolOgicas com imagens e, a medida se a terapia consiste em dar apoio as for~as contra-eg6i-
que esta psychomachia procede nurna terapia arquetipica, cas, as figuras personificadas que sao alienigenas ao ego,
ha urna transforma~ao do arnor, de uma repressao e/ou entao a teoria da psicopatologia e a da terapia assumem
obsessao com imagens a urn paulatino amor por elas, a uma teoria de personalidade que nao e egocentrada.
urn reconhecimento de que 0 pr6prio amor esta enraiza- o primeiro axiorna desta teoria baseia-se nos ultimos
do em imagens, enraizado em sua continua apari¢o cria- desenvolvimentos da teoria dos complexos de Jung (1946)
tiva, e no arnor aquela alma humana particular na qual a qual afirma que toda personalidade e essencialmente
elas se manifestarn. mUltipla (CW 8, §388 ss.). Personalidade mUltipla e a hu-
manidade em sua condi~ao natural. Em outras culturas,
essas multiplas personalidades tern nomes, 10caliza<;5es,
energias, fun~Oes, vozes, formas angelicais e animais, e
ate mesmo formula~Oes te6ricas como diferentes tipos de
alma. Na nossa cultura, a multiplicidade de person ali.:.
dade e vista tanto como uma aberra~ao psiquiatrica ou,
na melhor das hip6teses, como introje~Oes desintegradas .
ou personalidades parciais. 0 medo psiquiatrico da per~
sonalidade multipla indica a identifica~ao da personali.;
dade com uma capacidade parcial, 0 "ego", quee por
Teoria da Personalidade: Personificat;iio 89
88 Teoria da Personalidade: Personificat;ao

sas personalidades como desintegrativas, a psicologia'ar-


sua vez a representa<;ao psicol6gica de dois mil anos de quetipica propida 0 encaminhamento de figuras nao-
tradi<;ao monoteista que tern exaltado a unidade sobre a eg6icas a uma ulterior conscientiza<;ao e considera esta
multiplicidade. tensao como 0 nao-eg6ico, a qual relativiza a certeza do
A psicologia arquetipica amplia a nomea<;ao perso- ego, beT1. como sua perspectiva singular, como sendo
nificada junguiana dos componentes da personalidade - uma das principais ocupa<;5es do cultivo da alma.
sombra, anima, animus, 0 trickster, 0 velho sabio, a grande Dessa maneira, a personalidade nao e concebida tan-
mae, etc. "Personificar ou imaginar coisas" (Hillman to em termos de estagios da vida e de desenvolvimento,
1975a, pp. 1-51) toma-se crucial para nos deslocar de uma de tipologias de carater e funcionamento, da psicoener-
psicologia abstrata e objetificada para uma que encoraje getica direcionada a objetivos (sociais, individuais, etc.)
o envolyimento animico com 0 mundo. A personifica<;ao ou de faculdades (vontade, afeto, razao) e seu equilibrio.
ira pennitirque a,multiplicidade dos fenomenos psiqui- Em vez disso, a personalidade e imaginativamente con-
cos, seja :experimentada. como vozes, faces, nomes. Os cebida como uma drama vivo e cheio de gente no qual
"fenomenos) psiquicos r podem entao'ser percebidos com o sujeito "Eu" toma parte mas nao e nem 0 (mice autor,
precisaoe' particularidade; em lugar de serem genera- nem 0 (diretor, e nem sempre a personagem principal. As
lizados nos; mol des de . uma psicologia de faculdades vezes, esta em cena. Muitas vezes, as teorias de perso-
como sentimentos, ideias, sensa<;Oes e que tais. nalidade acima revistas podem exercer seus papeis como
Para a psicologia arquetipica, a consdenda e dada fic<;6es necessarias para 0 drama.
junto com as varias personalidades "pardais". Em vez de A personalidade saudavel, rna dura ou ideal ira, en-
serem imaginadas como fragmentos separados do "Eu", tao, mostrar que conhece a sua situa<;ao ambigua e dra-
elas sao revertidas aos modelos diferendados das psico- maticamente mascarada. Ironia, humor e compaixao sera
logias mais antigas nas quais os complexos teriam side a sua marca, uma vez que estes tra<;os indicam uma mns-
chamados almas, "daimones", genios e outras figuras miti- dencia da multipliddade de significados e destinos e a
cas imaginais. A consdencia que e postulada a priori com multiplicidade de inten<;Oes incorporadas por qualquer
estas figuras ou personifica<;5es e demonstrada pelas in- sujeito a qualquer momento. A "personalidade saudavel"
terven<;Oes destas no controle do ego, isto e, a psicopato- e imaginada men.os sobre urn modele de homem natu-
logia da vida cotidiana (Freud), os disrurbios de aten<;ao ral, primitiv~ ou antigo com sua nostalgia, ou sobre urn
nos experimentos de associa<;ao (Jung), a intendonalidade homem s6cio-politico com sua missao, ou 0 racional bur-
e os objetivos das figuras nos sonhos, os humores obses- gues com seu moralismo; mas e imaginada em contraste
sivos e os pensamentos compulsivos que pod em intervir com 0 background do homem-artista para 0 qual imagi-
durante qualquer abaissement du niveau men'tal (Janet). En- nar e urn estilo de vida e cujas rea<;Oes sao reflexivas,
quanto a maior parte das psicologias tenta interditar es-
90 Teoria da Personalidade: Personificaf;iio

animais e imediatas; Este modelo nao pretende, obvia-


mente, ser literal ou isolado. Ele serve para enfatizar cer-
tos valores da personalidade aos quais a psicologia ar-
quetipica da importancia: sofistica<;ao, complexidade, e
profundidade impessoal; urn fluxo de vida animal que
desconsidera conceitos de vontade, escolha e dedsao; etica
como dedica~ao ao artesanato da alma; sensibilidade a 15. Biografico
continuidade da tradi~ao; a significac;ao do patologizar e
do viver nos ''limites''; rea~Oes esteticas.
Como foi mostrado acima, a psicologia arquetipica
nao e urn sistema te6rico que emana do pensamento de
uma pessoa que a nomeia, identificand<rse posteriormente
com urn pequeno grupo, tomand<rse uma escola, e en-
trando no mundo da mesma maneira que as psicologias
de Freud e Jung; nem tampouco emerge de uma clinica
particular, de urn laborat6rio ou de uma cidade que lhe
de 0 nome. Ao contrario, a psicologia,arquetipica apre-
senta a estrutura politeista de umaconsciencia p6s-m<r
dema. E urn estilo de pensamento, um modo mental, urn
engajamento revisionista em varias frentes:' terapia, edu-
cac;ao, critica literaria, medicina, filosofia e 0 mundo ma-
terial. Ela agrega e empresta sellS termos e pontos de vis-
ta a uma variedade de preocupac;5es intelectuais do pen-
sarnento contemporaneo. Eros e urn interesse comum pela
alma, imagem e patologia atrai individuos de diversas
areas geograficas e intelectuais a trocarem relatos para a
revisao de suas ideias e sellS mundos.
Visto que as fontes estao em Jung e Corbin, as ori-
gens biograficas podem ser trac;adas as Conferencias Era-
nos de Ascona, Sufc;a (Rudolf Ritsema), onde Jung e
Corbin foram continuamente os principais oradores; Du-
rand e Hillman adentraram aquele drculo nos anos
92--:- Teoriri fia Personalidcide: Personificat;ao Teoria da Personalidade: Personificat;iio 93

ses:enta, ~/1i~Ier nos setenta e Giegerich em 1982. A inspi- Sonoma State, California (Gordon Tappan), e na Univer;-
ra~o plaroruca em Eranos, seu interesse pelo espfrito nurn sidade de Dallas (Robert Sardello). Em 1976 Hillman, e
tempo de crise e decadenda, 0 compromisso mutuo que Berry juntaram-se aos docentes do Departamento. de Re-
transcende a espedaliza<;ao academica e 0 efeito educati- ligioes da Universidade de Siracusa) Nova York, e· em
vo de Eros na alma foram, juntos, formativos nas dire<;6es colabora<;ao com David Miller trabalharam mais a fundo
que a psicologia arquetipica tomou subsequentemente. os problemas do pensamento monoteista e politeista.Em
Uma segunda linha biogrMica pode ser encontrada janeiro de 1977, parcialmente patrocinado por uma bolsa
num determinado perfodo (abril de 1969) no Warburg do Rockfeller Brothers Foundation, a psicologia arquetipi-
~titute em Londres e no confronto de LopeZ-Pedraza, ca promoveu seu primeiro Semimlrio Intemacional' na
Hillman e Berry com a tradi<;ao das imagens ciassicas Universidade de Dallas, reunindo algumas das pessoas
(pagas, politefstas) na psi que ocidental. Aqui eles encon- mencionadas neste artigo; Outras conferencias e semina-
trar~ terreno para a psicologia na imagina<;ao cultural, rios foram dados na Unlversidade de Notre-Dame, India-
espeClalmente a Mediterranea, a qual permitiria 0 retor- na (Thomas Kapadnskas), na Universidade de Duquesne,
no da psicologia de seus desvios causados pela ciencia Pensilvania, e na Universidade do Novo Mexico, (Ho-
natural e pel a espiritualidade oriental. Terceiro, foi a re- ward McConeghey). Em janeiro de 1978, a Universidade
edi~ao (1970) em; Z~rique do antigo jornal junguiano de Dallas nomeava Hillman Professor de Psicologia e Se-
Sprmg como urn orgao do pens amen to arquetipico e 0 nior Fellow no Institute of Philosophie Studies (Robert
lan~ento de outras publica<;5es, bern como seminarios Sardello) e Berry como Professora Visitante.
sobre leituras psico16gicas de imagens renascentistas. Enqt:.anto isso, Lopez-Pedraza era nomeado Confe-
- r.; Quarto: desenvolvimentos subsequentes aconteceram rendsta em mitologia e psicologia na Faculdade de Le-
-no hemisferio ocidental. Em fevereiro de 1972, 0 convite tras da Universidade de Caracas. Com a inaugura<;ao
-para ministr~ as ~amosas Dwight Harrington Terry Lec., (1981) do Dallas Institute of Humanities and Culture (cujo
Jur~s; na Uruversldade de Yale permitiram a Hillman corpo docente induiu Sardello, Thomas, Moore, Stroud,
;{197Sa)apresentar a primeira formula<;ao abrangente da Berry, Hillman, Guggenbiihl-Craig) a psicologia ,arquetipi-
_;p~icolpgia arquetipica. Isso foi seguido pelo encontro de ca voltou-se para a "alma no mundo" (anima mundz) cia
Hillman e Berry como conferencistas visitantes da Facul- ddade. A "cidade" toma-se 0 paciente, 0 lugar do pa-
dadeide·Psicologiade Yale, onde sua associa<;ao com 0 tologizar e 0 loclls onde a imagina<;ao da alma e realiza-
Jil6sofodessa,Universidade Edward Casey direcionou seu da na terra, exigindo uma perspectiva arquetipicamente
:tr~p_alho . para ,mutuas e~plora<;5es da filosofia da imagi- psico16gica para 0 exame de suas doen<;as;
.na<;ape.:da,.fenomenologIa. Em meados dos anos 70, pro- N enhum pais europeu respondeu com maior atenc;ao
;gramas},de.;pos-gradua<;ao estavam sendo instalados ern a esse pensamento revisionista do que a ltalia. Urn grande~
94 Teona da Personalidade: Personificar;iio

nfunero de intelectuais engajados e terapeutas de Roma,


Horen~a, Pisa e Miltio conseguiram traduzir trabalhos de
pSitologia arquetipica (Aldo Giuliani) na Rivista di Psico-
logia Analitica, em livros (Adelphi, Communita) e em pu-
blica~Oes da Enciclopedia Italianna e apresentaram seu pen-
samento lecionando, editando e traduzindo (Francesco
Donfrancesco, Bianca Garufi). Na Fran~a, numa iniciati- Parte 2
va semelhante, ligando-se aos grupos afiliados a Corbin
e Durand, foram pioneiros as Editions Imago, Michel
Cazenave e Monique Salzmann.
Dois recentes acontecimentoseuropeus - uma con-
ferenda mundial em Cordoba sobre "Ciencia e
Consciencia" (Cazenave, 1980), refletindo 0 pensamento
de Jung e de Corbin e 0 circulo de Eranos (Miller, Izu-
tsu, Durand, Raine, Hillman) em rela¢o com as ciencias
fisicas contemporaneas, e uma palestra de Hillman (1982)
sobre psicologia arquetipica como uma psicologia renas-
centista, em Horen~a (Donfrancesco) - apresentaram 0
que foi revisto neste ensaio dentro da ampla corrente das
ideias ocidentais contemporaneas.

Notas

1. No original, "Images don't stand for anything".


2. No original, "seeing through", perceber, "enxergar atraves".
3. Cultivo da alma, no original, "soul-making": "Call the world if you
please, 'The vale of Soul-making". Then you will find out the use of
the world ..."
4. No original "to go dawn", que em ingles tam'bem significa "ir para
baixo".

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