Santos e Demonios No Portugal Medieval PDF
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FIOS DA HISTÓRIA
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Prefácio de José Mattoso
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Prefácio . ............................................................................................................................... 7
Nota Prévia................................................................................................................................ 11
III. As andanças dos demónios – uma leitura dos casos de possessão do Livro
de Milagres de Nossa Senhora da Oliveira (1342-1343)............................................ 107
1. Contexto de produção do “livro de milagres”: protagonismos leigos
e apropriação eclesiástica?........................................................................................ 108
2. As narrativas de curas de possessão – produção e estrutura de textos complexos..... 111
3. Roteiros demoníacos................................................................................................. 114
4. Salem em Guimarães? Maldições, almas penadas e pacto com o demónio............... 116
5. Viagem às crenças.................................................................................................... 125
5.1. Os demónios..................................................................................................... 125
5.2. Os homens-santos............................................................................................. 132
6. Marcas no espaço sagrado........................................................................................ 132
Os textos de Lurdes Rosa foram redigidos, se não me engano, entre 1993 e a actualidade.
Mas o percurso de que dão conta parece bem mais longo. Ao reler alguns deles – aqueles
que representam passos mais decisivos do ponto de vista historiográfico – revi o meu próprio
caminho desde o longínquo ano de 1960 em que escrevi a minha tese de licenciatura, até
2000, quando considerei encerrado o meu percurso de investigador (o Dom Afonso Henriques
foi um «extra»). O paralelo a que me refiro assim se pode considerar, tendo em conta o pro‑
gresso historiográfico nacional de que fui actor e produto, pelo contraste e distância entre o
ponto de partida e o termo; mas em 1960 seria difícil imaginar que a velocidade adquirida
pelo comboio historiográfico português fosse tão grande como aquela que ganhou, e em que
Lurdes Rosa tem já um papel importante.
Em 1982, numa breve panorâmica acerca das riquezas e lacunas da historiografia me‑
dieval portuguesa, publicada Revista de História Económica e Social (não reeditada) apontava
o enorme atraso da nossa investigação científica em relação ao que se praticava então na
Europa. Referia-me, entre outras coisas à falta de edições críticas de textos fundamentais,
ao carácter aleatório da publicação de documentos, à debilidade conceptual da problema‑
tização e à quase total ausência de obras acerca das estruturas económicas e sociais. Havia
uma razoável produção erudita mas uma confrangedora ausência de estudos sobre temas
estratégicos cuja investigação seria indispensável para ter um panorama estruturado da so‑
ciedade portuguesa na época medieval. Não faltavam investigações de mérito em quantidade
nem em qualidade no campo académico de então. O fundamental Guia do estudante de his
tória medieval portuguesa de Oliveira Marques era deste facto a mais evidente demonstra‑
ção. Enumerava uma razoável quantidade de obras sobre os mais variados assuntos; todavia,
Este prefácio foi redigido como texto de apresentação ao conjunto dos artigos dispersos da autora.
*
Por razões editoriais, entendeu-se dividi-los por quatro volumes autónomos, os dois primeiros agora
publicados (Longas guerras, longos sonhos africanos. Da tomada de Ceuta ao fim do Império e Santos e
demónios no Portugal medieval) e os outros dois a sair brevemente (Senhores, cavaleiros e mercadores no
Portugal das Descobertas e A economia da salvação: espiritualidade, peregrinação e caridade no Portugal
medieval e moderno) [N. E.].
· Maria de Lurdes Rosa
Os estudos reunidos neste livro falam realmente de “santos” – na sua acepção mais cor‑
rente, a dos candidatos à santidade, na Igreja Católica – e de “demónios” – que, na Guima‑
rães de meados do século XIV, foram responsabilizados por um conjunto de acontecimentos
extraordinários e de grande impacto sobre as populações. Pelo meio encontra-se um estudo
sobre uma sacralização verdadeiramente “de fonteira” entre os dois anteriores, no mundo me‑
dieval – a do corpo dos guerreiros, entre a Igreja que os custodiava e procurava enquadrar, e
a cultura bélica, que prosseguia uma luta secular para sobreviver. Santos, demónios, poderes
sobrenaturais dos corpos de guerreiros - são temas que a História das últimas décadas tem
vindo a explorar, na tentativa de propor visões mais complexas e aprofundadas da realidade
da época conhecida pela etiqueta de “Idade Média”.
As historiografias portuguesas sobre o sagrado e a religião no Portugal de Antigo Regi‑
me, aqui com particular incidência na chamada “Idade Média”, têm gradualmente renovado
as suas problemáticas. No momento em que republico estes estudos, o avanço é notável. Co‑
nhecem-se muito mais textos, figuras, tendências. Foi possível elaborar as primeiras sínteses.
Estas, em boa parte, já estão a ser ultrapassadas por estudos aprofundados de escopo mais
focado. Há porém ainda muito a fazer, na senda da recuperação do atraso estrutural que afec‑
ta a nossa historiografia. Nos anos ’90, enquanto andávamos a descobrir campos que outros
desbravam desde os anos ’70, e nos mantínhamos ainda muito sob a “luz francesa”, descolou
uma verdadeira revolução historiográfica, no que ao medievalismo diz respeito (mas não só,
embora aqui nos atenhamos sobretudo à época que mais temos estudado). Ao contrário dos
vaticínios do “Fim da História” e dos avisos lúgubres sobre as consequências da “viragem
“Hagiografia e santidade”, originalmente publicado em Dicionário de História Religiosa de Portugal,
II vol, pp. 326-361, Lisboa, Centro de Estudos de História Religiosa / Círculo de Leitores, 2000
(Agradeço ao Círculo de Leitores a permissão para a publicação do texto); e “A santidade no Portugal
medieval. Narrativas e trajectos de vida”, que foi editado pela primeira vez em Lusitania Sacra, 2ª s., vols.
13-14 (2001-2002), pp. 369-450.
“As andanças dos demónios – uma leitura dos casos de possessão do «Livro de Milagres de Nossa
Senhora da Oliveira» (1342-1343)” – parte do artigo “Santa Maria da Oliveira, demónios e reis: o uso
do poder sagrado por um santuário medieval”, Boletim de Trabalhos Históricos do Arquivo Municipal
Alfredo Pimenta, 2007-2008, 135-209.
“As feridas do chefe guerreiro, as chagas de Cristo e a quebra dos escudos: caminhos da mitificação de
Afonso Henriques na Baixa Idade Média”, originalmente publicado em Actas do 2º Congresso Histórico
de Guimarães, vol. 3, pp. 83-123, Guimarães, Câmara Municipal de Guimarães/ Universidade do
Minho, 1997.
12 · Maria de Lurdes Rosa
linguística”, o questionamento dos avanços dos anos 60 e 70 acabou por dar lugar a um mun‑
do teórico certamente bem menos «unificado» em torno de uma ou outra “escola”, e ainda
mais incerto e difícil de apreender, na sua multiplicidade. Mas a pluralidade é uma virtude
em si, e o cheque-mate à velha História “sem teoria”, refugiada no método e na segurança
documental, é hoje uma tendência global.
No que à História medieval diz respeito – e em especial aos campos da “religião”, das
“mentalidades”, e outras taxinomias arcaicas – conta hoje cada vez mais a discussão dos
conceitos, a descolonização dos mesmos, a interrogação das démarches científicas dos “Pais
fundadores”. À construção de um passado de forma identitária, se quisermos, segue-se a
valorização da alteridade, neste caso a alteridade pré-moderna. Isto faz com que a antro‑
pologia histórica, em especial, se revele como a melhor forma de construir um questionário
científico que permita a compreensão não anacrónica das sociedades de pré-liberais. É certo
que há muitas antropologias, que também esta disciplina tem um nascimento historicamente
marcado, e que o conceito de “antropologia histórica” tem merecido discussões; no entanto,
o acento na igualdade das culturas, o esforço de compreensão do Outro, a rejeição das narra‑
tivas de progresso, fazem com seja um bom “discurso de controle” das investigações da His‑
tória que, à sombra da sua posição de supremacia eurocêntrica e iluminista sobre as restantes
ciências sociais e humanas, ainda pode preocupar-se pouco, em muitos âmbitos, quanto à
discussão dos seus próprios preconceitos. Os fetiches do “documento autêntico” e da “prova
documental” a tal ajudam - embora na verdade nem eles resistam à averiguação da construção
social da informação e do arquivo...
É pois sob o signo da Antropologia histórica da Idade Média que coloco estas incursões
no mundo mental e social dos séculos XIII a XIX (o que se estuda do XX não está longe
daquilo que o precede), convicta que as viagens de compreensão contextual nestes “países
estrangeiros” implicam um despaísamento dos viajantes.
No que diz respeito à génese dos textos aqui reunidos, eles reflectem boa parte de um
percurso de investigação de cerca de quinze anos, no campo da História religiosa da Idade
Média portuguesa, de finais da década de 90 do século XX, a meados da primeira década da
centúria seguinte. Talvez devesse dizer antes, de verdadeira descoberta, gradual conhecimen‑
to e profunda exploração. Os assuntos estudados eram quase inéditos na nossa historiografia,
embora a sua escolha tivesse obedecido à constatação de que, em diferentes tradições acadé‑
micas, constituíam um campo em grande actividade, mesmo já com bastantes anos de exis‑
tência. Assim, beneficiei das reflexões sobre a história da santidade e do sagrado medievais
que nos anos ’90 se desenvolviam em França, Espanha, Itália, Inglaterra e EUA, em grande
parte graças às bolsas de investigação concedidas pela École Française de Rome e, num período
posterior, pela FCT, para a realização do doutoramento na École des Hautes Études en Sciences
Sociales (Paris). Neste sentido, os estudos aqui reunidos são em primeiro lugar uma demons‑
tração da crucial importância da mobilidade internacional, da frequentação de ambientes
de investigação com mais recursos e com tradição mais antiga de inovação na pesquisa, que
– nunca é demais salientá-lo – me acolheram com a maior naturalidade e generosidade.
Beneficiei ainda, é claro, do contacto com algumas redes nacionais, de que é obrigatório
destacar o Centro de Estudos de História Religiosa (UCP-Lisboa), de resto muito ligado aos
ambientes internacionais referidos, nos quais facilitou a minha introdução; no seu seio se de‑
senvolveram os dois trabalhos sobre história da santidade que aqui se reeditam, num trabalho
de equipa altamente sugestivo e muito pouco hierárquico, que me marcou profundamente.
Santos e demónios no Portugal medieval · 13
De forma mais isolada, diferentes colegas e professores saberão o que vários destes artigos
lhes devem, mas relembraria aqui um deles, que marcou muito, em pessoa ou através dos
seus escritos, as gerações de jovens historiadores inseríveis no «boom» dos anos ’80-90: Luís
Krus. Todos estes colegas tinham uma característica comum: a irreverência e a curiosidade
historiográfica, a vontade de “contribuir para o progresso da Ciência”, como me repetia, meio
a brincar, um deles, quando nos queixávamos de um certo espírito de funcionariato univer‑
sitário, que fazia da prossecução de graus o grande objectivo, definindo balizas medianas de
problematização (histórica, historiográfica, académica) e relegando constantemente para
segundo plano a discussão de lacunas e problemas de fundo, no nosso campo de trabalho de
investigação, que hoje nos afectam de forma irreversível. A importância dessas curiosidade,
irreverência e trabalho pela Ciência, é a segunda mensagem que gostaria de deixar aqui, atra‑
vés da invocação de um percurso de estudo.
I. A santidade no Portugal medieval: narrativas e
trajectos de vida1
superioridade: não fora o Cristianismo fundado sobre um relato de uma vida, a de Cristo,
muito mais que sobre preceitos soltos?6 Avancemos ainda um pouco: não se trata de uma
escrita qualquer, administrativa ou legal. Essa era domínio de outros especialistas, menos
versados em algo de fundamental, o próprio poder religioso da escrita, a sua capacidade para
transmitir experiências sagradas anteriores, para unificar, conferir sentido, garantir exem‑
plaridade; ou seja, os que trabalhavam com o elo entre Deus e a palavra, forma visível do
mistério da Criação. Voltando ao campo específico da hagiografia: os que criavam os santos
para a posteridade.
Não de um modo mecanicista, manipulador da crença dos “leigos”. Afastemos, de novo,
leituras simplistas. Estes biógrafos do sagrado sabiam que a manifestação do Divino que
fora a vida do santo só perduraria depois da sua morte, como exemplo actuante, dinâmico e
gerador de sucessores, se estivesse também então penetrado pelo Divino. Se estivesse inse‑
rida na corrente da Palavra, escrita e oral, que as Sagradas Escrituras transmitiam. A tarefa
principal destes “cronistas do sagrado” era, pois, a de fazer a crónica das irrupções divinas na
história humana7. Só compreenderemos a evocação narrativa do sagrado como um dos fun‑
damentais processos constituintes do Cristianismo, se trabalharmos com a premissa coetânea
– geradora de um dos mais intensos debates da teologia medieval – da ligação entre o real, a
linguagem e a Essência8. Deus estava presente nas Escrituras, nas obras dos Padres da Igreja,
nas Actas de Mártires e nas Vidas de Santos; a composição de um novo exemplo fazia‑se
justapondo temas, frases e palavras deste corpus com os dados biográficos do bem‑aventurado
em causa. Fazia‑se ainda recorrendo a exercícios de estilo (metáforas, hipérboles, anagnorisis9,
linguagem figurativa), tidos como mais apropriados à reprodução (se quisermos à represen‑
tação) do sobrenatural. Os escritores cultuais que eram os hagiógrafos obtinham assim textos
entretecidos, de que não eram os autores, mas sim os artífices. As suas mãos perpetuavam a
manifestação do divino que fora a vida concreta de um santo; os textos que teciam não eram
literatura, mas instrumentos religiosos, de devoção e culto, como o “moderno” mendicante
Gérard de Frachet irá dizer, no século XIII, equiparando literalmente as vidas de santos à
Eucaristia: “um grande número de pessoas alimentou‑se espiritualmente com o exemplo
dos santos, tanto do Antigo como do Novo Testamento, como se fosse pão partilhado. Para
seguir cumprindo o mandato divino, é conveniente agora recolher as sobras para que não se
percam por esquecimento ou negligência”10.
Confrontado com uma ausência terrível, a de um Deus que vivera entre os homens e
partira, o Cristianismo tenta uma evocação permanente desse momento, procurando iden‑
tificar os sinais dos tempos, e relacionando‑os com o momento fundador11. Não só através
dos santos: a repetição litúrgica da Eucaristia, a construção de tempos cíclicos dominados
pela permanente recriação do ciclo de vida de Cristo, a delimitação do espaço pelos símbolos
religiosos, e em última análise a definição do universo civilizacional pela adopção da religião
cristã, são outras tantas formas de tentar viver com o sentimento constante de um desapare‑
cimento culpabilizador (que desde o início se tenta enjeitar, lançando‑o para os ombros dos
Judeus), com uma angustiante espera, na sombra permanente da “Outra Cidade”.
A formalização das ideias de exílio e de passagem temporária neste Mundo, bem como a
da inversão do sentido da morte tornada verdadeiro nascimento (dies natalis, em que se cele‑
bra a maioria dos santos), data dos primeiros tempos do Cristianismo. A sua permanência ao
longo de todo o período cultural e religiosamente cristão é um dado de fundo que não pode
ser desprezado, ou lido seja como topos, seja como fragmento ideológico. A inserção daquelas
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ideias no tema da fuga mundi também não basta para dar conta da amplitude da sua difusão
e da natureza da sua percepção. Mais do que ideias, tornaram‑se categorias de apreensão e
vivência da realidade, de que os escritos escatológicos participam sem necessidade de expli‑
cações. Voltando aos nossos textos, poderíamos citar como exemplar a Vita Sancti Martini
Sauriensis, também nascida no âmbito de Santa Cruz de Coimbra, pela forma como apre‑
senta uma leitura do mal subjacente à acção narrada: “(...) desde que, por mordedura viperina
da serpente matreira saímos da nossa pátria, passámos a viver neste mundo de exílio como
cativos e desterrados, e nunca o mundo deixará de nos infligir maus tratos de toda a ordem
(...)”12. É que o próprio tempo em que se vivia fora inaugurado pela vinda de Cristo, numa
ruptura com o círculo da morte que os homens tinham porém desprezado: “veio para o que
era Seu, e os Seus não o acolheram”, acusa João, logo no início do seu Evangelho (1, 11). De
novo o pecado interrompera a reunião da Criação ao Criador, grande sonho religioso, que na
época medieval integrava mesmo a forma definitiva do conhecimento e da apreensão do sen‑
tido da vida. A anulação do mal que é a acção do santo – basta verificar a constante presença
da impotente figura demoníaca, em qualquer vita – é também uma anulação do tempo, do
hiato entre Deus e os homens.
A Vita beatissimi domni theotonii é um fascinante exemplo do trabalho de narrativa sagra‑
da, do esforço em verbalizar uma santidade que se conhecera de perto e se quer preservar. A
existência de trabalhos de erudição textual que identificam grande parte dos textos utilizados,
bem como vocabulários e formas de construção narrativa específicas, permitem‑nos tentar
demonstrar a partir desta Vita algumas das características e funções que temos vindo a referir,
para as biografias sagradas13.
O Autor refere várias vezes ter conhecido Teotónio, e mesmo ter mantido com ele uma
relação de dependência e amizade profundas. Porque descreve então a vida do santo, as suas
acções e as suas palavras, recorrendo a uma teia de citações que vão desde as Sagradas Escri‑
turas aos textos litúrgicos, passando pelos escritos dos padres da Igreja? Descartada a falta
de conhecimento pessoal, poderemos falar de dificuldades de redacção, que o levariam a
recorrer ao pastiche, e mesmo ao plágio14 (nomeadamente porque boa parte das citações são
implícitas15) ? A análise dos textos empregues e das circunstâncias da sua utilização leva‑nos
a afastar estas duas interpretações, correntes na análise historiográfica destas narrativas, até
há bem pouco tempo16 .
Uma importante parte dos extractos intertextuais provém das Sagradas Escrituras (c. de ¼,
no que é o segundo maior “grande repositório” singular)17, como seria de prever, dada a dupla
função que estas revestiram, especialmente importante para a redacção da vida de um santo:
por um lado eram o próprio modelo de narrativa sagrada18; por outro, a fonte do alimento
espiritual dos crentes. Numa proporção bastante equilibrada, cerca de metade das citações
pertencem ao Antigo Testamento, metade ao Novo, com uma ligeira vantagem para o pri‑
meiro19. Entre estas, cabe aos Salmos a grande vantagem20. Significativamente, muitas das
citações dos Salmos são postas na boca de Teotónio, para sintetizar os seus pensamentos, pa‑
lavras e acções. Esta escolha não é de modo algum ocasional: desde o Antigo Testamento que
os Salmos são a palavra orante por excelência, a linguagem da comunicação entre o Homem
e Deus, a expressão do pedido, da gratidão, do amor. Além disso, no período medieval, o sal‑
tério foi particularmente apreciado pela espiritualidade e técnica orante do monaquismo. Os
salmos foram ainda, tanto numa época como noutra, a corrente de veiculação das ideias mais
poéticas, místicas e messiânicas. A inserção da palavra de Teotónio nesta tradição de palavra
18 · Maria de Lurdes Rosa
poética21, de ampla ressonância emocional, teria sem dúvida um forte efeito numa audiência
que nela tinha alguns dos seus principais referentes. De resto, a grande maioria das citações
bíblicas é empregue no texto em estreita relação com a personagem do santo, reproduzindo
as suas palavras ou caracterizando as suas acções22. Narrando deste modo a santidade fazia‑se
Teotónio entrar directamente no mundo das figuras bíblicas e reproduzia‑se em texto a sua
presença junto delas, à face de Deus, no momento da redacção da Vita.
Para além das análises baseadas em dados quantitativos, o trabalho de identificação da
última edição torna possível observar usos qualitativos das narrativas sagradas, em determi‑
nadas partes ou momentos especiais23. Assim, repare‑se na concentração de textos bíblicos
e evangélicos quando se conta a forma como Teotónio aconselhava paternalmente os seus
monges, ou quando descreve as visões que tem da Jerusalém celeste24; há além disso a impor‑
tante particularidade de, nestes dois trechos, aquelas citações serem aduzidas sob forma de
discurso directo, do próprio Teotónio. Poderiam aduzir‑se vários outros exemplos, dos quais
mencionamos alguns. No relato dos anos finais de Teotónio, ele é comparado a Job, usando
‑se o “Livro” homónimo e os salmos25; por detrás da caracterização da vida contemplativa que
pode passar a levar, estão ecos da parábola dos Talentos26; por fim, de forma muito significa‑
tiva, ao situar o início da cena da morte “num sábado, o sétimo dia”, tenta‑se uma associação
daquela com o descanso divino27. Estão ainda presentes outros paralelos, como o feito entre
Teotónio e José do Egipto, ou entre uma das visões dos últimos dias do santo, e a alegoria da
“escada de Jacob” – ambos já referidos por Mário Martins28.
A inserção de Teotónio na grande narrativa cristã passa ainda pelas significativas referên‑
cias a S. Jerónimo e S. Gregório Magno, em pontos cruciais do texto. Exprimir a própria dor
e o pranto através de uma citação implícita e literal de S. Jerónimo29, não significa um sacri‑
fício do afecto às convenções literárias. Antes, colocava o Autor num plano semelhante ao
grande Padre da Igreja, equiparando os lamentos de ambos. Por outro lado, referir Jerónimo
a propósito da comunhão dos “vivos em Deus”, e Gregório na própria definição de santidade,
ambas as citações em directa relação com Teotónio30, era inseri‑lo francamente no número
dos eleitos tal como eram definidos pela grande tradição cristã.
De resto, como claramente ressalta da identificação de autoridades feita por Agostinho
Frias e Aires Nascimento, os textos de S. Jerónimo são a grande fonte desta Vita31. Em ter‑
mos de número de referências (68 num total de 180); mas também em extensão da utilização,
e em localização dos empréstimos. Assim, o prólogo recorre abundantemente às cartas 60 e
127 de Jerónimo, que constituem um elogio fúnebre e uma vida de personagem santa (Santa
Marcela): nas palavras de Agostinho Frias, “a similitude de situação e de sentimento deter‑
mina esta escolha, sancionada com a adjunção de 4 citações dos Moralia in Iob de S. Gregó‑
rio”32. As obras do Padre da Igreja voltam a ser convocadas em variadíssimos momentos do
texto, destacando‑se a descrição da ida e estadia em Jerusalém, bem como a dos momentos
finais de Teotónio, que se baseia quase exclusivamente em cartas de Jerónimo33. O recurso a
S. Gregório, disperso por vários pontos do texto, apresenta uma significativa concentração
aquando da narração dos milagres em vida, “quase exclusivamente suportada pelos Diálogos
(5) e passos bíblicos (6).”34. Este facto mais uma vez aponta para um conhecimento quase
“profissional” das autoridades por parte do Autor do texto, uma vez que o Liber Dialogorum
de Gregório Magno foi, na época, uma obra fundamental tanto em termos de elaboração de
uma teologia dos milagres, como enquanto repertório dos mesmos35.
Santos e demónios no Portugal medieval · 19
A especial atenção dada à liturgia pela vida monástica – mesmo quando se preconiza
totalmente despojada – explica o terceiro universo de referências da Vita em análise. A par
do uso disseminado de vocabulário litúrgico36, podem apontar‑se pelo menos três instâncias
de intertextualidade com peças litúrgicas de importante significado. Em primeiro lugar, a
apreciação da forma como Teotónio alcançara a sua ordenação sacerdotal, que é directamente
bebida num livro de costumes do mosteiro de S. Rufo de Avinhão, o cenóbio onde o Santo
Prior fora buscar as regras monásticas, as formas de vida comunitária, as leituras sagradas37.
Em segundo lugar, a descrição da morte do santo, onde se evoca a liturgia dos defuntos38,
assimilando portanto a sua morte ao passamento de todos os fiéis. Na economia deste tipo
de narrativas, como aliás em todos os textos cristãos sobre a morte, o momento de passagem
ao Além é crucial; as palavras que se colocam na boca dos santos são especialmente escolhi‑
das, pelo poder profético de que se revestem. O emprego frequente da exclamação de Cristo
reportada em Lucas, 23:46 (“Pai, nas tuas mãos entrego o meu espírito”), é um dos mais
claros exemplos de amplificação textual entre uma vasta rede de narrativas, a começar pelos
próprios Evangelhos39.
Em terceiro e último lugar, refiramos o uso da liturgia de Sexta‑feira Santa ao descrever
a Cruz do Calvário, aquando da visita de Teotónio a Jerusalém. Mais significativamente
ainda, recorre‑se a um passo do hino do poeta Venâncio Fortunato (m. c. 600), Vexilla regis
prodeunt40, escrito para a recepção do fragmento da Vera Cruz de Jerusalém que foi ofere‑
cido por Justiniano II de Constantinopla. No contexto da espiritualidade de Santa Cruz de
Coimbra, a inserção deste hino não passaria despercebida. Provavelmente também se conhe‑
ceriam as implicações políticas que o culto da realeza de Cristo, a ele associado, sempre re‑
vestiu em mosteiros que o promoveram41. Como veremos no final deste capítulo, a exaltação
da Cruz confere um dinamismo muito próprio à pastoral dos cónegos regrantes, susceptível
de os aproximar do rei guerreiro que foi Afonso Henriques.
Dois últimos grandes repositórios de referenciais tornaram‑se visíveis depois da recente
edição da Vita Theotonii: os textos relativos à vida e espiritualidade canonical, e as vidas de
santos produzidas no âmbito do mosteiro coimbrão42. Devem ser referidos a par, uma vez que
testemunham da intenção do Autor em inserir a Vita Theotonii em duas tradições específicas,
ambas fundamentais para o programa crúzio43. No que diz respeito ao primeiro conjunto, ele é
especialmente referido nos trechos dizendo respeito ao percurso de Teotónio até à ordenação
presbiterial – fornecendo assim um claro modelo do bom sacerdote segundo a espiritualidade
canonical, a partir sobretudo de Hugo de S. Victor44. Quanto às “vitae” provenientes de Santa
Cruz de Coimbra, há um recurso disseminado à Vita Martini Sauriensis45, onde está igualmen‑
te presente a proposta do “bom sacerdote”46, bem como o uso mais pontual da Vita Tellonis47.
Como salientam vários Autores, de Aires Nascimento a Agostinho Frias, passando por José
Mattoso, Leontina Ventura e Armando Martins, este uso tem um profundo significado: uma
actualização de modelos ideais, o reforço do programa crúzio através da hagiografia dos seus
personagens exemplares48. Era de resto um processo comum às biografias sagradas, cujo objec‑
tivo era inserir cada biografado numa espécie de “comunhão dos santos” textual49.
Sem podermos explorar em pormenor vários outros aspectos, salientemos algumas grandes
linhas da construção da narrativa. Desde logo, o uso de vocabulário específico (latim monás‑
tico, litúrgico e teológico, com palavras apenas compreensíveis nestes contextos50. Depois, o
emprego muito frequente de alegorias, na linha do método quadripartido de exegese dos textos
sagrados (literal, alegórico, moral e anagógico, sendo precisamente a leitura alegórica aquela
20 · Maria de Lurdes Rosa
que favorecia a fé, enquanto as outras, induziam respectivamente ao saber, à acção e à busca
da perfeição)51. É ainda de relevar o recurso à “retórica”, mesmo que se subordine a este saber
de origem pagã a “majestade do mistério”, no episódio em que se compara Teotónio a José do
Egipto52. Os conhecimentos de cultura clássica do Autor não se ficam de resto por aí, pois se
pode apontar um passo da Eneida como subjacente à descrição da tempestade aquando da
peregrinação a Jerusalém53, e o texto abre mesmo com uma citação do “Filósofo”54 (Platão, no
Timeu, conhecido, ao que tudo indica, a partir da Consolação da Filosofia, de Boécio)55.
Entendida como até agora a caracterizámos, a tradição narrativa das biografias sagradas,
do Portugal do séc. XII até finais do século XV, servir‑nos‑à de linha condutora de exposição.
Que modelos de presença e vivência do sagrado transmitem, que santos suscitam elas no terri‑
tório português – (porque um santo estabelece‑se sempre em função da tradição de santidade
do seu tempo, mesmo que em ruptura com ela)? Como se entrecruzam com outras formas de
vivência do sagrado, de transmissão e percepção da presença divina? Neste primeiro capítulo,
trataremos em especial dos séculos XI e XII, período no qual podemos falar de uma santidade
essencialmente ligada ao meio rural, mas em que se sentem também já os ventos da mudança.
Com efeito, as narrativas que se devem aos cónegos regrantes de Santo Agostinho, embora es‑
critas no âmbito do grande mosteiro, que se basta a si próprio, estão indissoluvelmente ligadas a
duas cidades, Coimbra e Lisboa. O contexto urbano da sua produção não pode todavia ser lido
anacronicamente, atribuindo‑lhes um modernismo: os textos cultuais dos Crúzios incorporam
elementos bem “arcaicos”, ligados à aliança entre guerreiros e sacerdotes para o domínio do
Inimigo, seja ele encarnado pelas forças da Natureza, seja pelos adversários de guerra. A grande
ruptura dar‑se‑à sem dúvida a partir do séc.XIII, quando a religiosidade das ordens mendican‑
tes faz florescer os exemplos de piedade e devoção individualizadas, interiorizadas e acessíveis
a todos, mesmo aos grandes excluídos até então, os leigos que viviam no Século. Desta grande
viragem e seus desenvolvimentos iremos ocupar‑nos na segunda parte do artigo.
Fortunato e Isidoro de Sevilha, traçam a imagem do bispo activo, culto, evangelizador, último
expoente do grande eclesiástico do mundo antigo65. Sobre a sua santidade não existe um
escrito próprio, embora logo em 656 o 10º Concílio de Toledo o refira como santo66, e no
séc. IX o mosteiro de Dume apareça como centro do seu culto67. Manter‑se‑à sempre viva
a memória da sua acção no arcebispado de Braga, que o venera liturgicamente pelo menos
desde o séc. XIII, e que promovia através dele a imagem do activo apóstolo68. Não por acaso,
a festa fora instituída por D. João Peculiar, arcebispo de Braga e grande diplomata de Afonso
Henriques69, que lutou precisamente pela restauração dos direitos da metrópole bracarense,
herdados do período áureo de Martinho de Dume. É enquanto grande senhor da Igreja que
ainda nos séculos XV e XVI, S. Martinho é venerado pelos grandes senhores temporais, nas
pessoas de D. João II, D. Manuel e Infante D. Luís70.
Sobre S. Frutuoso (n.600‑610), pelo contrário, subsiste uma interessante Vita, cons-
truída a partir de um rico conjunto de referentes textuais, quase todos pertencentes à grande
tradição hagiográfica e martirológica. Destacam‑se a Vita Martini, de Sulpício Severo, os
Diálogos de S. Gregório Magno, a Vita Pauli, de S. Jerónimo, no que toca à tradição dos gran‑
des escritores do início da medievalidade e aos textos modeladores das figuras dos grandes
dirigentes eclesiásticos, abades e bispos. No que diz respeito ao enraizamento peninsular,
o autor da Vita utiliza amplamente o Passionário Hispânico, num interessante paralelo de
subentendidos com uma das devoções explicitadas do santo, ou seja, as peregrinações pelos
santuários dos mártires da Espanha71.
No que toca à figura assim construída, em S. Frutuoso ressalta‑se sem dúvida mais o
monge do que o bispo, numa contrapartida clara a Martinho de Dume. Não somente, porém,
o abade fundador: se Frutuoso surge como um incansável fundador de conventos, e autor
do célebre “Pacto” reorganizador da vida monástica norte‑peninsular, na Vita ele parece‑nos
ser mais o protótipo do monge que anseia pela solidão, que foge para o deserto, e que tem
uma relação privilegiada com a natureza. O emprego da Vita Pauli, de S. Jerónimo, fonte
não muito comum, prender‑se‑à porventura com estas características. O peso da atracção
pela vida isolada e contemplativa é uma das linhas de força de um texto que salienta a opção
radical de um membro da mais alta nobreza, após a morte dos pais, tendo ainda de vencer
alguns obstáculos temporais de monta. De resto, com ajudas que equivalem à tenacidade
do santo, e que passam pelo envio do fogo divino e da doença aos seus inimigos. Ainda que
dentro de todo um enquadramento eclesiástico correcto, sobressaem traços de um homem
auxiliado por poderes sobrenaturais, que no deserto é servido por aves domesticadas, e que
protege dos caçadores animais em fuga. Ele próprio é uma vez confundido por um arqueiro
com uma apetecível presa de caça, devido às vestes de pele de cabra que envergava, enquanto
orava estático entre penedos. As águas – sejam elas rios, torrentes ou chuvas – são outro dos
teatros privilegiados dos seus poderes, que lhe permitem sair sempre imune dos perigos nelas
sucedidos. Esta vida eremítica e esta relação íntima com a natureza, são permanentemente
contrariadas pelos outros homens de Igreja e do mundo, que o procuram e o arrancam às suas
solidões, fazendo‑o iniciar períodos de grande actividade em que claramente os seus dons
são canalizados em benéfico já não da natureza mas da sociedade. O texto, no seu conjunto,
exprime assim uma curiosa tensão, entre a desejada relação individual com Deus de um ho‑
mem com poderes a que poderíamos chamar “cósmicos” (mais numa linha de monaquismo
oriental), e as permanentes tentativas da sua integração na sociedade eclesiástica e civil, que
o puxa e prende72.
22 · Maria de Lurdes Rosa
Em termos de difusão do culto, esta Vita, escrita entre 670 e 680, parece estar ligada à
promoção do santuário de Montélios, onde se exumou o corpo do santo73. O célebre roubo
das relíquias, pelo arcebispo de Compostela, em 1102, teve algumas repercussões no culto de
Frutuoso no Norte de Portugal74, mas a sua memória perpetuou‑se fortemente a vários níveis.
Na liturgia, para começar: já o “Breviário do Soeiro” recolhe na lição do santo, importantes ex‑
tractos da Vita que brevemente analisámos; e daí para a frente, estará presente, sem interrupção,
nos diferentes breviários de Braga75. Por outro lado, a memória do corpo do santo persiste em
tradições que no século XVI fazem com que um João de Barros ou um Mestre André o refiram
entre os corpos santos que sacralizam e demarcam o Entre Douro e Minho76.
A difusão do monaquismo beneditino no território galego e portucalense do século X
andou de par com a afirmação política de algumas grandes famílias condais da mesma área.
A unificação de costumes, e o esboço de grandes abadias semelhantes às carolíngias e clunia‑
censes, caracterizam a acção de S. Rosendo (m.977), pertencente aquelas mesmas famílias.
Procedendo a uma renovação que soube respeitar e aceitar os antigos costumes monásticos77,
S. Rosendo irá ficar como o paradigma do grande monge, construtor do mosteiro ideal que
foi Celanova, conselheiro de reis e ele próprio chefe militar78. Terá tido em Santa Senhori‑
nha (m.982) a sua contrapartida feminina, embora muito pouco se possa saber sobre a vida
real desta personagem. A memória de um e de outra chegam até nós em duas vitae muito
posteriores às suas existências efectivas79. Não se tratando de verificar a coincidência de to‑
dos os pormenores com as vidas concretas, estes textos interessam‑nos enquanto produto
do encontro entre a memória e os documentos contemporâneos dos santos (que de resto
citam, atribuindo‑lhes um estatuto de autoridade), e as concepções e intenções dos biógrafos.
Não será porém a partir das hagiografias que se pode caracterizar de modo claro o tipo de
santidade que os dois personagens encarnaram, na época. De Santa Senhorinha, em parti‑
cular, pouco resta além de testemunhos comprovadamente tardios, que a transformam no
protótipo de um tipo de santidade muito diverso daquele que seria o do seu tempo. Quanto
a Rosendo, é menos polémico imaginá‑lo, em vida, como um importante modelo para a alta
nobreza condal, da qual era, de resto, oriundo80. Vejamos, portanto, como se entrecruzam os
dois níveis, em termos da sua biografia sagrada. Santa Senhorinha será abordada mais tarde,
como um modelo da santidade feminina beneditina, no qual tentaremos porém respigar
os indícios de uma santidade anterior, porventura consentânea com a proposta às grandes
senhoras do século X.
Os textos hagiográficos sobre S. Rosendo foram compostos no mosteiro de Celanova
entre meados ou último quartel do séc. XII e 122981, visando a promoção do culto do santo
no contexto próximo da sua canonização, bem como a afirmação do mosteiro82. Reflectem,
porém, concepções indubitavelmente arcaicas em termos de santidade monástica, só explicá
veis em função de uma filiação num modelo já consolidado da figura do santo. São, em todo
o caso, extremamente ricos e completos, em termos de construção de biografia cultual. S.
Rosendo é o filho tardio, e de nascimento milagrosamente anunciado, de uma família da
mais alta estirpe, que segue uma carreira de prestígio eclesiástico e civil (a primeira começa
com a sua eleição como bispo de Dume aos dezoito anos, a segunda com o desempenho de
tarefas de defesa e organização dos territórios da Galiza e Portucale)83. No auge desta, o apelo
monástico leva‑o à fundação de Celanova, onde viverá a partir de então.
De S. Rosendo não existe uma grande tradição de milagres em vida, apenas se salien‑
ta a sua capacidade visionária. Esta sobriedade é porém completamente ultrapassada pela
Santos e demónios no Portugal medieval · 23
imagem de santo todo‑poderoso, vingador e mesmo violento que transmitem os seus livros
de milagres, complemento das Vitae. Os dons e acções reais do santo – capacidade de defesa,
organização, delimitação clara dos direitos do seu mosteiro – são integrados num ciclo de
acontecimentos milagrosos, que relançam Celanova como um grande centro de poder mo‑
nástico e dons taumatúrgicos. O próprio Afonso Henriques e os seus magnates serão alvo
de uma das típicas vinganças do santo, cujo relato mistura elementos heterogéneos – entre
os quais um esquadrão aéreo, rutilante e belo, presidido por S. Rosendo, que faz evocar irre‑
sistivelmente a “Santa Companha” 84 – e procura representar, quanto a nós, um período de
enorme tensão entre as forças celestes e as terrestres, que acabam derrotadas por virtude do
intercessor Rosendo85.
Uma série muito vasta de milagres condensa uma relação retributiva com um divino
quotidianamente áspero, poderoso e exigente. Os monges batem no túmulo de S. Rosen‑
do e chamam‑lhe impostor quando ele não os liberta logo da opressão do magnate Pedro
Gonçalves; este, pouco depois, “quando estava a repousar seu leito, rebenta pelo meio com
grande estrondo, e imediatamente morreu como herege”86. Uma mulher cega que fora curada
e não cumprira a promessa ao santo, perde de novo a visão e o seu filho é atormentado pelo
demónio, até que ela presta homenagem a Rosendo. Uma das freiras do mosteiro de Tomino,
para obter o fim dos tormentos de um militar aí albergado, dirige‑se sem rodeios ao santo:
“Bem‑aventurado Rosendo, se não vos dignardes socorrer‑nos e libertar aquele desgraçado
homem, desnudarei completamente o vosso altar”87. Quando o Santo demora a socorrê‑los
dos ataques de Afonso Henriques, as gentes da região de Limia comentam depreciativa‑
mente a sua conduta88. Mas S. Rosendo, por seu lado, dirige‑se aos seus fiéis no mesmo tom:
“Levanta‑te, homem, levanta‑te, nada temas, avança tranquilo. Mas cumpre com as tuas
acções o voto que fizeste”, responde a um preso que lhe suplicava a liberdade89.
Entravam entretanto em competição com estes, outros tipos de santidade, acompanhan‑
do o evoluir das próprias tendências religiosas. É completamente diferente a figura episcopal
que nos transmite a Vita Geraldi, redigida entre 1128 e 114690. Escrita algum tempo depois
da morte de Geraldo de Moissac (1108), por um seu discípulo e conterrâneo, Bernardo, é ao
mesmo tempo um testemunho emocionado, uma biografia sagrada construída segundo to‑
dos os cânones, e um libelo da acção programática do notável e activo grupo de homens que
foram os monges de Cluny companheiros de Bernardo de Toledo, promotores da reforma
gregoriana no ocidente da Península.
Desde 1073 que Cluny marcava etapas na expansão peninsular, ao receber o primeiro de
uma série de mosteiros em Leão. Pouco posteriormente, a sagração como arcebispo de Toledo
do cluniacense Bernardo irá permitir a solidificação deste processo, e terá em Portugal rápi‑
das consequências. Em 1089 aquele prelado preside à sagração da nova catedral de Braga; em
1099 está à frente desta o discípulo Gerardo, que é coadjuvado pelo arcediago Bernardo, seu
futuro biógrafo91. Três anos depois, sucederá ao também beneditino Crescónio de Tui, bispo
de Coimbra, o terceiro discípulo trazido de França, Maurício Burdino. Em termos de estrutu‑
ras monásticas, alguns anos mais tarde (1110) a doação do mosteiro de S. Pedro de Rates a La
Charité‑sur‑Loire pelo conde D. Henrique irá constituir uma significativa etapa da influência
cluniacense em Portugal. Desde fins do século XI, espalham‑se no território portucalense as
exigências da reforma eclesiástica e litúrgica de Gregório VII, e inicia‑se uma profunda mu‑
dança nas estruturas da Igreja, que se irá prolongar por todo o século seguinte. No que diz res‑
peito aos mosteiros, desaparecem progressivamente os pequenos agregados de três ou quatro
24 · Maria de Lurdes Rosa
coloca nela uns grilhões de ferro, tidos como instrumentos de um dos milagres atribuídos
ao bispo, e facilita o seu toque pelos romeiros, em especial mulheres grávidas, a quem alega‑
damente aliviam os partos; por fim, consagra no testamento que as alfaias e vestes litúrgicas
que deixa ao tesouro da Sé possam ser emprestadas para a capela. Depois, no próprio paço,
manda fazer uma sala dedicada ao Santo, cujas paredes e tecto são decoradas com cenas da
sua vida104. Os estudos recentes de Manuel Pedro Ferreira permitem verificar ainda que D.
Fernando da Guerra operou modificações importantes na liturgia do seu santo predecessor,
solenizando‑a ao mais alto nível.105
A par da Vita Geraldi, surge‑nos uma outra Vita de probabilíssima origem beneditina,
agora relativa a uma personagem feminina. Referimo‑nos à Vita Sanctae Senorinae, que o
trabalho recente de Otília Gameiro permite contextualizar de modo claro. Resumamos as
conclusões desta Autora. Os textos existentes, tardios, remontam a um manuscrito perdido,
que dados de crítica interna permitem situar entre o último quinquénio do século XII/ iní‑
cios do século XIII106. O contexto de produção desse original tem a ver com várias realidades.
Em primeiro lugar, a rivalidade política com Leão, que promovia desde pouco antes o culto
de S. Rosendo, com os seus vexatórios milagres a D. Afonso Henriques. Em segundo lugar,
na corte régia que nisto estaria empenhada, era mordomo‑mor um suposto descendente da
linhagem da Santa, o conde Mendo Gonçalves de Sousa. A redacção da Vita estaria assim
também ligada aos Sousas, poderosos senhores da região de Basto, e que são exaltados num
texto contemporâneo de outra natureza, a chamada “Gesta de Afonso Henriques”. A redac‑
ção teria estado a cargo de um monge beneditino, provavelmente do mosteiro de Refóios de
Basto, o que explica a sua erudição e o modelo de santidade proposto (de resto consentâneo
com as opções religiosas das senhoras do estrato nobiliárquico agora associado ao poder)107.
Quanto à relação com uma personagem real, Otília Gameiro comprova abundantemente
a sugestão de José Mattoso, de que o texto se distancia muito dela, propondo um modelo de
santidade baseado em valores muito diversos dos finais do século X108; avança ainda com a
sugestão de que, com o patrocínio dos Sousas, se teria redigido “(...) uma hagiografia onde,
partindo da existência de um culto rural ligado a histórias e lembranças de milagres trans‑
mitidos oralmente de geração em geração, se redefinisse e sublinhasse a primitiva condição
fidalga da Santa de Basto, competindo aos redactores da sua vida torná‑la numa modelar
abadessa beneditina que pudesse servir de referência e exemplo às comunidades monásticas
femininas que então emergiam e se afirmavam”109.
O trabalho que temos vindo a seguir, muito cuidado, dispensa‑nos de maior referência à
“santa beneditina” que o texto propõe como modelo. Apontamos portanto apenas algumas
questões que nos ficaram, da sua leitura. A primeira prende‑se com uma das perspectivas que
mais nos interessa, neste trabalho: a das referências intertextuais. A Vita Sanctae Senorinae,
sem se igualar ao esplendor da produção de Santa Cruz, é também um texto denso, onde
ressoam trechos e citações de vária proveniência, implícitos ou explícitos. Um trabalho de
exaustiva identificação destes elementos traria decerto novidades sobre algumas questões por
resolver. Aqui limitamo‑nos a reunir algumas ideias. Uma boa parte dos trechos “entreteci‑
dos” é constituída por extractos doutrinais, que servem a construção da novel santidade: é o
caso dos discursos de Godinha sobre a virgindade, sobre a Regra de S. Bento, sobre o “corpo,
o diabo e a carne”110. Abundam também as fontes hagiográficas, que estão por detrás do
episódio do pretendente à mão da santa111, e de vários milagres112. Como seria inevitável, na
linha do que acima expusemos sobre o emprego e a função dos textos bíblico e evangélico nas
26 · Maria de Lurdes Rosa
“biografias sagradas”, abundam as citações deles provenientes. Tal como na Vita Theotonii, há
um privilegiar do recurso à palavra poética do Salmos�.
Um destes milagres, em particular, leva‑nos ao outro grupo de questões. Referimo‑nos
ao “milagre da seca”, em que a Santa acode as preces dos camponeses, impedindo que as co‑
lheitas desapareçam sobre a chuva que caía. É apresentado em contraste com um milagre de
Santa Escolástica, figura por demais solene aos beneditinos; ora, a luz a que tal é feito não nos
descansa totalmente sobre uma total “refundição” de tradições anteriores. Com efeito, Santa
Senhorinha é posta a par da irmã de S. Bento, colocando‑se mesmo a questão sobre qual
delas seria superior, em virtude daquilo que Deus lhes concedera (em vez da subalternização
da “abadessa” à “irmã do fundador”, que seria de esperar). O Autor, que toma uma posição de
salomónica igualdade, remete para cada leitor a decisão final...113
Entremos portanto nas restantes perplexidades, que se prendem com o modelo de santi‑
dade proposto. Como vimos, os estudos de Otília Gameiro apontam para a existência de uma
figura protagonista de um culto rural anterior, familiar e local. Poderemos alguma vez chegar
a caracterizar a figura que teria sido alvo desse culto rural? O caminho reside eventualmente
na exploração de algumas pequenas incoerências, no que é de facto um quase definitivo mo‑
delo de santidade feminina beneditina, do final do século XII. Elas são de molde a propor‑
cionar interrogações sobre a sua manutenção na hagiografia, se esta tivesse sido inteiramente
re‑inventada pelo redactor beneditino, de tal modo se mostram contrárias aos modelos que
a Ordem beneditina propagava, para as suas monjas. Já foram apontados por José Mattoso,
que os classificou de “arcaísmo”, sugerindo por outro lado que se poderiam explicar pela
circulação recente dos modelos de religiosidade implícitos114. Trata‑se, em primeiro lugar, da
referência às três igrejas que o pai de Senhorinha lhe dá, quando ela ingressa definitivamente
no mosteiro, que serviriam para seu sustento115. Vamos mais tarde encontrá‑la a Santa a
passear entre elas – o que, como refere José Mattoso, seria contrário à regra da clausula im‑
posta às monjas beneditinas desde o início do século XII (o que seria de facto tempo suficien‑
te para a difusão desta regra, em relação à data de redacção da Vita). Não estará aqui, além
disso, uma reminiscência das “igrejas próprias” detidas pela nobreza condal – que as viam
como fonte de prestígio ‑, que os beneditinos tanto combateram? Se sim, porquê manter esta
referência tão explícita? O texto acrescenta que Santa Godinha – que representa nitidamente
a figura de uma “iniciadora” ao beneditismo, uma propaladora da ortodoxia –, as retirou da
mão de Senhorinha e as entregou a administradores. Menciona contudo que a Santa embe‑
lezou duas delas, e sabemos que circulava entre elas116. Estas acções coadunam‑se bem tanto
com o gosto pelo esplendor litúrgico das senhoras piedosas da nobreza condal, como com a
liberdade de movimentos das “devotas” da mesma época117. O segundo arcaísmo referenciado
por aquele historiador prende‑se com o elogio das esmolas aos pobres dadas por Senhorinha,
o que implicaria a posse de fortuna pessoal. É certo, como ele aponta, que o elogio da pobreza
individual só se começaria a impor com os mendicantes; no entanto, juntamente com o outro
elemento de caracterização que acabámos de mencionar, não poderia ser oriundo de uma
outra figura de santa, mais consentânea com a religiosidade sumptuosa da antiga aristocracia
onde a Vita coloca a santa, por nascimento?118 Por fim, a familiaridade com que Senhorinha
visita as suas igrejas, acompanhada por S. Rosendo, ressoaria ao mesmo período e formas de
relacionamento entre, por exemplo, Mumadona e aquele santo, seu parente também119 – mas
seria já bem mal compreendida no período da “refundição” beneditina, dando azo ao milagre
do castigo dos maldizentes120.
Santos e demónios no Portugal medieval · 27
Por fim, algo nos parece relevar da forma como Santa Senhorinha aparece inserida no
mundo rural. A análise atenta feita por Otília Gameiro aos conjuntos de milagres post‑mortem
da santa evidencia uma figura demasiado próxima, a nosso ver, de um domínio mágico da
natureza, para poder ser uma simples “abadessa administradora”121. Neles, Santa Senhorinha
surge‑nos antes como uma santa do pequeno mosteiro rural, onde tem servas e monjas, e ao
qual preside como a propiciadora da natureza. E onde assume, ainda, uma outra dimensão
menos consentânea com uma acabada figura de “abadessa beneditina” – a de protectora dos
parentes, do fabuloso irmão Gervásio ao real parente Gonçalo Mendes de Sousa. Num e
noutro milagre, Senhorinha não é diplomática, mas poderosa e destemida122....
O avanço da sociedade em expansão que foi Portugal nas primeiras décadas do século
XII, levou à transferência da sede do poder para o Sul, e a uma recomposição generalizada
dos equilíbrios sociais. No campo religioso, e em particular no que respeita às concepções de
santidade, irá iniciar‑se a etapa marcante que foi a da predominância dos crúzios de Coim‑
bra123.
Em 1131, no jogo das alianças entre poderes políticos e eclesiásticos, o candidato mais
natural ao episcopado coimbrão, o arcediago Telo, é preterido a favor de Bernardo, monge
cluniacense a quem o apoio de Afonso Henriques eleva àquela dignidade. Quatro anos de‑
pois, porém, o mesmo Telo surge à frente de um grupo de notáveis e dinâmicos jovens ecle‑
siásticos, fundando o mosteiro de Santa Cruz de Coimbra. Tal como nos são transmitidos
pelos dois grandes textos fundadores, a Vida de D. Telo e a Vida de S. Teotónio, estes factos
– em termos de enredo, podemos falar da superação da derrota pelo herói, e do encontro do
verdadeiro caminho‑ explicam‑se à luz dos desígnios da Providência, da ordem escondida
das coisas124. Telo desde há muito acalentava o desejo da vida monástica, e a derrota é afinal
uma vitória, um sinal que o leva a fundar o mosteiro. “(...) aqui amostrou Deus como guardava
dom Tello pera atanto bem e pera fundar este santo moesteiro de Santa Cruz”, reza a tradução qua‑
trocentista da Vita Tellonis125. Celebrando uma ruptura criadora, a primeira tradição narrativa
do mosteiro coloca‑a claramente sob o signo da profecia e do mistério, na lógica da inversão
do real praticada pela pregação de Cristo: não por acaso, recorre‑se a um texto emblemático
desta, as “bem‑aventuranças”, para a narração da entrada de Teotónio no seio dos novos
“Doze Discípulos”126.
Sintetizemos as inovadoras características religiosas da recente fundação, nomeadamente
em termos pastorais e culturais, a partir dos estudos existentes: contacto com as classes vilãs,
acompanhamento da pastoral em territórios fronteiriços, proclamação ideológica da guerra
santa, atitude tolerante para com os moçárabes e cultura islâmica, transmissão de correntes
de pensamento oriundas de Roma e de França, pregação no meio urbano127. Destacam‑se
e contrapõem‑se ao pesado e solene modelo religioso dos beneditinos de Cluny, que aliás
não terá suscitado um entusiasmo generalizado por parte dos mosteiros portucalenses e de
diferentes camadas de leigos128. O enquadramento sociológico do lançamento e rapidíssi‑
mo sucesso dos Cónegos Regrantes tem também sido objecto de análise: os cavaleiros de
Coimbra e da região do Entre Douro e Vouga, os jovens guerreiros de Afonso Henriques,
identificam‑se de imediato com uma fundação que aliás parte de um dos seus pares, Telo;
encontram nele a formulação de um ideal religioso que os satisfaz e apoia, contrastante com
o dos mosteiros ligados aos magnates do Norte. À força, juventude e autoconfiança dos ca‑
valeiros afonsinos, correspondeu o dinamismo dos Cónegos Regrantes129.
28 · Maria de Lurdes Rosa
Um e outro factor vão ser potenciados pela singular capacidade de “leitura dos tempos”
em que os crúzios se revelam mestres. O profetismo e evangelismo dos fundadores, próprios,
de resto, das correntes radicais de renovação religiosa cristã, facilitam‑lhe uma visão escato‑
lógica que se mostrará extremamente sedutora no meio de guerreiros jovens em que surge.
Características como o conhecimento profundo da espiritualidade e devoção hierosolami‑
tana, a crítica à corrupção eclesiástica, o aceno da vida comunitária despojada, e a arrojada
independência que perpassam nas Vitae de Telo e Teotónio – todas são de molde a seduzir
um grupo afeiçoado ao imprevisto, ao arriscado e ao novo. Tem sido sobejamente salientado
a atracção que exerceram sobre as aristocracias guerreiras medievais as correntes religiosas
radicais, especialmente as que utilizam metáforas como o “miles christi”, valores como o com‑
panheirismo e solidariedade (monásticas, no caso), e rituais orantes em que se canalizam
forças semelhantes à agressividade militar130.
Todos estes elementos estiveram presentes nos tempos iniciais de Santa Cruz de Coim‑
bra, e encontram‑se perfeitamente reproduzidos nos escritos cultuais que, até meados do
século XII, acompanham e incentivam o avanço para sul dos guerreiros de Cristo131. Este
facto parece‑nos mesmo ser o mais importante elemento do sucesso de Santa Cruz, seja em
termos de adesões à Ordem, seja de enquadramento dos leigos que a ela se ligam de diferen‑
tes formas. É extremamente significativo que a fundação do convento seja equiparada a uma
investidura cavaleiresca, na Vita Theotonii: “no dia sexto antes das calendas de Março seguinte,
ao começar do jejum quaresmal, foram armados cavaleiros de Cristo não já doze, mas quase setenta
e dois, com o propósito apostólico de viverem em comum debaixo do hábito e da regra de Santo
Agostinho”132. E ainda que, no próprio dia do início da vida comunitária, se comece a travar
uma batalha, contra os cónegos da Sé que “levantavam renhida oposição”, como regista a mais
acintosa Vita Tellonis, para em seguida pintar a rápida acção de Telo, que convoca os irmãos
e decide a estratégia: o recurso imediato à Santa Sé133.
A Vita Tellonis, redigida nos vinte anos que se seguiram à morte do seu protagonista
(m.c.1136), por um dos companheiros de aventura, é uma espécie de pedra angular do riquís‑
simo edifício de textos cultuais construído por Santa Cruz de Coimbra em menos de cem
anos. Estes textos englobam biografias, trasladações e livros de milagres, relatos de prodígios,
ordines litúrgicas, crónicas monásticas. Inserem na narrativa cristã uma galeria de personagens
que marcou de modo indelével os primeiros tempos da existência de Portugal: Telo, Teotónio,
Afonso Henriques, D. João Peculiar. Erguem junto a elas figuras que teriam sido menos im‑
portantes, não fosse a narrativa crúzia: S. Martinho de Soure, o cavaleiro Henrique de Bona.
Memorializam acontecimentos fundadores: a criação e fundação do mosteiro de Santa Cruz,
a conquista prodigiosa de Santarém, a conquista de Lisboa e posterior construção do grande
mosteiro dedicado a S. Vicente, santo propiciador da desejada integração de elementos tão
díspares como eram os mocárabes e os cruzados do Norte da Europa. A corrente de narra‑
tivas assim criadas coloca‑se de facto, como os Cónegos fazem dizer a Afonso Henriques,
sob o signo das eras novas sempre abertas, no Cristianismo, pelo regresso a Jerusalém, de
onde partira Telo: “Nos últimos tempos, [o Deus do céu] não repete os milagres antigos, mas
ultrapassa‑os”134.
Não sendo viável a exploração de cada um destes textos no conjunto do presente trabalho,
e dado vários deles têm sido alvo, nos últimos anos, de inovadores e importantes estudos135,
limitar‑nos‑emos a acrescentar às ideias acima expostas um facto que nos parece especial‑
mente relevante. A produção “sacra” dos Crúzios acompanha a expansão territorial de Afonso
Santos e demónios no Portugal medieval · 29
Henriques, até estabelecer os dois pólos fixos de uma corrente religiosa, cultural e política
que dominará os primeiros reinados. De Santa Cruz de Coimbra a S. Vicente de Fora, em
Lisboa, textos comemorativos marcam um avanço guerreiro que se torna ipso facto uma ca‑
minhada de santos combatentes, ademais protegidos na retaguarda por rituais de intercessão
simultâneos às batalhas. O assalto a Santarém é acompanhado pela oração colectiva e ineter‑
rupta de Teotónio e seus monges em Santa Cruz de Coimbra, e mais tarde é relatado pelo
texto De expugnatione Scalabis136. Para o avanço nas terras a sul do Mondego, em simultâneo
do ponto de vista pastoral e guerreiro, surge a Vita Martini sauriensis, relato da acção de um
pároco que é também guerreiro, e irá morrer mártir, depois de acompanhar os cavaleiros
do Templo contra os Sarracenos137. Em Lisboa, finalmente, fecha o círculo a narrativa da
fundação do mosteiro de S. Vicente, com redacção da versão primitiva atribuível ao período
decorrente entre a fundação do mosteiro e a trasladação das relíquias de S. Vicente, em 1173
(Indiculum Fundationis Monasterii Beatii Vincentii Vlixbone). O texto foi alvo de uma edição
crítica recente138, bem como de estudos já concluídos139 e em curso140, no que diz respeito a
uma das suas personagens principais, o “cavaleiro Henrique”. Será portanto necessário aguar‑
dar, para se perceber completamente o contexto da sua produção, as intencionalidades da
narrativa, e as tradições subjacentes. Refira‑se no entanto que se filia claramente nos textos
que reclamam para os mosteiros a “fundação régia”, sinal de prestígio e supremacia sobre as
restantes instituições eclesiásticas141. Por outro lado, a sua figura central é a de um “santo
mártir”, Henrique de Bona, que seria alvo da veneração do próprio D. Afonso Henriques. O
acentuar destas características prende‑se sem dúvida com as mutações político‑religiosas que
ameaçavam a supremacia dos Crúzios, nos anos em que se assistiu à estabilização da “socie‑
dade guerreira” que eles tão bem tinham enquadrado, do ponto de vista da espiritualidade e
legitimação religiosa. Com efeito, a Lisboa do Indiculum é já uma de pluralidade religiosa,
em que vários grupos de eclesiásticos disputam o espaço e os favores do rei, e em que este a
todos precisa de contentar, mesmo que isso passe pela subalternização dos seus adjuvantes
crúzios. Alguns anos mais tarde, a cidade que nos revela o texto de Mestre Estêvão, chantre
da Sé de Lisboa142, aponta mesmo para um desfecho menos feliz da situação, no que toca à
supremacia crúzia: os cónegos do mosteiro de S. Vicente não conseguem assegurar a posse
do recém‑chegado corpo de S. Vicente, apesar de a terem reclamado violentamente, contras‑
tando em tal com a ponderação dos partidários da deposição na Sé143.
Uma última vertente da produção ou utilização de textos sagrados de Santa Cruz, paralela
às crónicas e hagiografias, mas menos conhecida, é a relativa a cerimoniais. Alguns destes não
são de todo alheios à mística guerreira que os restantes textos exploram; com a força própria
dos rituais religiosos, numa sociedade como a que nos ocupa, eles enquadrariam cerimónias
potencializadoras de toda a mensagem transmitida pelos Crúzios noutros canais menos es‑
pectaculares. Embora seja necessário alargar o inquérito para comprovar a ligação entre todos
estes textos e cerimónias, por agora destacaríamos dois em especial: a cópia do “Pontifical” de
Braga realizada no último quartel do século XII144, e o “Ritual” vindo de São Rufo, e copiado
em Santa Cruz, entre 1228 e 1230, mas com várias modificações, entre as quais uma oração
que parece original, designada por Pro Pace145. O primeiro é sobretudo importante enquanto
contém o Ordo benedicendi regis, com sinais claros de ter sido efectivamente utilizado, e com‑
provando assim a tese da sagração dos primeiros reis, ao que tudo indica em Santa Cruz146.
A oração Pro pace, que contém também sinais de utilização, e mesmo notação musical, parece
ter sido composta no próprio mosteiro a fim de implorar a vitória das tropas cristãs nas
30 · Maria de Lurdes Rosa
batalhas da Reconquista, segundo os indícios internos, entre os quais avulta a súplica insur
gentesque repellat inimicos147. Os Crúzios teriam assim alargado aos importantissímos níveis da
liturgia e das cerimónias o seu discurso de suporte dos “santos combatentes”. De resto, toda a
exploração que virão a fazer em torno da posse dos corpos dos primeiros reis, em especial de
Afonso Henriques, e das insígnias do seu poder guerreiro, têm de ser vistas desde esta época,
e à luz destes indícios. Se a transferência dos favores régios para Alcobaça e, muito depois,
para a Batalha, lançam os Crúzios na sombra, e a própria Ordem atravessa momentos difí‑
ceis, a recuperação é marcada por um imediato investimento neste património tão simbólico.
O século XV irá marcar um reviver na insistência do poder sagrado do mosteiro a partir do
apoio que lhe dão agora as aparições dos “Santos Reis”; todo este movimento culminará nas
primeiras tentativas de canonização de Afonso Henriques, que começaram no reinado de D.
Manuel. Em Quatrocentos circulam várias lendas de intervenções maravilhosas do primeiro
monarca e por vezes do seu filho; praticam‑se diferentes rituais em frente aos túmulos dos
santos reis; uma crónica como a de Duarte Galvão e o apoio dado por D. Manuel à mesma,
são tudo fios de uma história que começou muito antes e que seria fascinante deslindar...148
dos candidatos à santidade dos séculos XIII a XV, procuraremos caracterizar a evolução da
nova forma de encarar a relação santificante com o Divino: aquela que nasce da afirmação
da vontade individual e que se afirma em ruptura com as concepções religiosas vigentes. Se
bem que alguns destes traços sejam característicos do afrontamento religioso do mundo, e
tenham estado presentes ao longo de todo o Cristianismo, sobretudo em torno de persona
lidades fortes como os reformadores ou os profetas, nunca como a partir do século XIII elas
se exprimiram de forma tão coerente e difundida. Não isenta de vicissitudes, porém: o élan
dos reformadores irá esbater‑se e modificar‑se, apertado entre as querelas internas, os limites
impostos pelo Papado, e o esgotar de alguns dos antagonismos que o tinham feito surgir...
Da síntese entre as novidades que trouxera – entre as quais avultam as formas femininas
de expressão religiosa‑, as desilusões provocadas e a evolução de toda a sociedade, nascerão
as correntes místicas do final da Idade Média/ início da Época Moderna, num esforço de
retracção interior que procura a resposta contra o esvaziamento de um evangelismo dema‑
siado dependente dos símbolos exteriores154. Procuraremos dar breve conta deste processo,
tentando também tornar familiares os seus fascinantes protagonistas.
À excepção das Infantas Teresa, Mafalda e Sancha, ligadas à Ordem de Cister155, todas as
principais figuras de santos e aspirantes à santidade dos séculos XIII e XIV, em Portugal, se
relacionam com as duas grandes ordens de Mendicantes, franciscanos e dominicanos. Este
panorama tem evidentes paralelos no resto da Europa central e, sobretudo, mediterrânica,
seja em termos de florescimento de santidades, seja em termos de canonizações156, e é afinal
mais uma das manifestações da rapidez com que se espalharam as novas ordens religiosas157.
Entre a conversão de Francisco de Assis (1205) e a entrada em Portugal dos seus primeiros
discípulos, medeiam uma dezena de anos; no caso dominicano, é ainda menor o hiato, já que
um ano depois da aprovação papal da ordem (1216), se fundava em Montejunto o primeiro
convento158. A localização nos centros urbanos, ou junto dos mais desfavorecidos (lepro‑
sos, pobres, marginais), em todo o caso predominantemente para o sul do Mondego, são as
principais características da rede franciscana159. Quanto aos Dominicanos, é igualmente o
século XIII a época da grande dinâmica das fundações, que irão decrescer acentuadamente
na centúria seguinte160.
Rápida e impressiva foi também a primeira grande manifestação da nova santidade, em
terras portuguesas: a chegada a Coimbra dos restos de cinco franciscanos que, pouco antes de
sofrerem o martírio em Marrocos, tinham sido hóspedes da infanta D. Sancha, em Alenquer.
Testemunha dos seus esforços evangélicos e guardião dos despojos dos corpos, um outro
infante, Pedro Sanches, terá sido porventura um dos primeiros promotores da canonização
dos frades italianos161. Não sem que tivesse manifestado alguma perplexidade face às atitudes
agressivas dos novos prosélitos, no seio de uma sociedade onde ele de resto se encontrava
instalado162.
O culto dos Cinco Mártires de Marrocos irá progredir em Coimbra, ora em relação com
os Franciscanos, ora com o mosteiro Sta. Cruz, de acordo com estratégias de promoção dos
vários cultos, entre os quais o da Rainha Santa Isabel. Uma das manifestações mais espontâ‑
neas foi a “procissão dos nus”, associando os Mártires à cura da infertilidade agrícola e humana,
a partir do castigo que a sua morte trouxe aos marroquinos, segundo o relato hagiográfico
– cinco anos de esterilidade dos solos163. A canonização, porém, virá apenas no século XV
(1481), apesar das tentativas de Jaime de Aragão em 1321164. Longe do culto local de Coim‑
bra, que aliás irá conhecer limitações nos seus aspectos mais populares, a partir de Trento, a
32 · Maria de Lurdes Rosa
fracassada que fora a aventura de Francisco no Egipto. António, que ainda procura esconder
a sua cultura aos primeiros frades que encontra em Assis, será reconhecido e eleito pelo pró‑
prio Francisco para a função de “seu bispo”. Data destas circunstâncias o que se poderia cha‑
mar de verdadeira entrada na Ordem: a integração no novo combate franciscano da ardente
vocação de António, modificando‑lhe o que tinha de mais arcaico. Os vastos conhecimentos
de teologia que lhe proporcionara a formação numa ordem tradicional, que ele procurara
abandonar e esconder, serão afinal postos ao serviço de um grupo religioso que professava
desprezar o saber mas que conhecia a importância do mesmo no seio de uma sociedade em
rápida mudança173.
______________
ajuda os doentes, limpa as enfermarias, e recusa especulações sobre o saber mundano, do qual
procura sempre desviar as conversas. Místico e iluminado, como ele próprio testemunha, era
dado a arrebatações súbitas e, pelo menos numa ocorrência, mostrou possuir o dom de expli‑
car as visões de um frade moribundo185. Não há porém acenos milagrosos nestes dons, e está
completamente ausente a explicação da origem demoníaca do seu saber.
Tanto o percurso de vida como as características espirituais que lhe atribuem os con‑
frades, demonstram ter sido Gil de Santarém um dominicano perfeitamente conforme ao
espírito da sua Ordem. Teólogo e médico, pregador e homem interveniente na política do
seu tempo, viajado por Paris, Espanha, Itália e Portugal, Gil encarna bem o tipo do novo
religioso idealizado por Domingos de Osma para a renovação da Igreja. Em termos de san‑
tidade, por acréscimo, podemos reunir alguns indícios que apontam para precoces tentativas
de canonização, decerto popular mas talvez também envolvendo os dominicanos. É assim
que a primeira vida quinhentista relata uma rápida veneração do túmulo pelo povo, que acaba
por forçar o Prior do Convento de Coimbra a trasladar o corpo santo para uma sepultura
mais ilustre. Durante a trasladação sente‑se a inevitável fragrância e realizam‑se várias curas.
O autor regista depois uma longa série de milagres, enquadrados por referências humanas e
geográficas concretas, que apresenta como uma resenha dos mais coerentes, prosseguindo até
ao presente. Não é impossível aliás que a Vita do séc. XIII, embora tivesse talvez um cunho
mais memorialista que hagiográfico, se inserisse num incipiente processo de canonização,
que teria sido acompanhado pela recolha de milagres (os mais antigos que figuram na obra de
Baltasar de S. João); pelo menos, ela é solicitada como peça para o processo de canonização
intentado em 1627 pelo bispo de Viseu, D. Frei João de Portugal. Nesta época existia de resto
um culto conventual de Fr.Gil, circunscrito aos cenóbios onde havia relíquias suas186.
O reverso da medalha na história de Fr.Gil reside no episódio da gruta de Toledo. Su‑
cintamente, e tal como nos chega na fonte mais antiga (Baltasar de S. João), consiste na
história da atracção fatal do jovem estudante em viagem para Paris, por uma gruta na região
de Toledo onde os nigromantes praticavam as suas artes. É conduzido aí pelo próprio de‑
mónio, e acabará por lá ficar sete anos, completando um período ritual de aprendizagem. Ao
fim do primeiro ano, e a instâncias dos demónios seus professores, faz um pacto com eles,
entregando‑lhes a alma, o que comprova através de um documento escrito com o próprio
sangue. Acabada a aprendizagem, dirige‑se a Paris, onde exerce medicina com dotes sobrena‑
turais. Um sonho que lhe anuncia a morte próxima, caso não mude de vida, abre o processo
da conversão, alcançado por fim junto dos Pregadores. Várias vezes resistindo a diferentes
tentações, acaba por obter a anulação do documento infernal que assinara, graças a uma
ardente devoção à Virgem Maria187.
Ausente nas fontes dominicanas do séc. XIII, esta lenda ter‑se‑à formado nas duas cen‑
túrias seguintes. Às explicações anteriores para a presença deste estranho episódio na vida de
Gil tem‑se vindo a impor uma outra, que parte da própria natureza do textos. Existe, antes
de mais, uma incorporação de elementos mais antigos e de larga circulação, num processo
típico do discurso hagiográfico, que procurava ilustrar uma conversão implicando radical
mudança de vida, resgate e redenção. O tema do pacto com o Demónio para aquisição de
saberes profanos e ocultos, e inclusivamente a ligação à medicina árabe de Espanha, surgem
noutras vidas de santos ou relatos edificantes: “Vida do Papa Silvestre II”, milagre mariano
de Teófilo, “exemplum” de Estêvão de Bourbon sobre o fidalgo arruinado, etc.188.
36 · Maria de Lurdes Rosa
o manda ingressar na ordem religiosa que Lhe faz uma especial honra litúrgica. A mensagem
mariana reveste a forma de um enigma, que o incita a uma “pia demanda”: “Levanta‑te, vay e
busca antre os estados dos religiosos em o qual o meu officio de cada dia se começa em “Ave Maria” e
em “Ave Maria” se acaba. E entra aa cõpanhia dos frades dessa religiom. Ca este he o estado o qual
eu afermosentey cõ habito que do Ceo trouxe e em elle acabarás e aa gloria sempiterna viinrás”198.
Munido com estas instruções enceta a sua segunda errância, e acaba por reconhecer nos
Pregadores a ordem eleita. Ingressando no convento de Guimarães, não irá ficar aí muito
tempo, pois é enviado em pregação, indo por fim viver na mesma cela eremítica. Depois de
alguns anos, nos quais realiza milagres vários, morre, orando sempre à Virgem Maria. A sua
santidade é então proclamada por coros de anjos, e as populações locais correm a sepultá
‑lo, honrando o seu túmulo desde essa mesma hora. Depois da morte, aparecerá vestido de
Pregador para defender contra as correntes invernais a ponte que edificara com o auxílio de
vários milagres.
Neste relato entrecruzam‑se elementos muito diversos, não apagados pelo que pensamos
poder chamar de “refundição dominicana”, que em si mesma também é curiosa. Vejamos
aqueles, para em seguida abordarmos esta. O percurso de Gonçalo antes de se tornar frade
aponta‑nos para duas realidades religiosas anteriores aos mendicantes: a das igrejas familiares
e a do eremitismo. A primeira, patente na entrega da paróquia ao sobrinho, seu criado, é so‑
bretudo interessante enquanto remete para uma organização eclesiástica mista, contra a qual
se manifestaram várias correntes de reformadores. O resultado inesperado e negativo que é a
ingratidão do sobrinho, e a má orientação que durante vários anos sofrem os paroquianos, são
claras chamadas de atenção para os inconvenientes desta prática. Mais interessante, porém, é
o que pensamos ser o centro da opção religiosa de Gonçalo. Com efeito, percorre toda a nar‑
rativa o seu pendor para o eremitismo e vida ascética – já praticada enquanto pároco –, para
a errância e peregrinação. Ao todo, Gonçalo cumpre três grandes errâncias: a peregrinação a
Roma e Jerusalém, durante catorze anos; a procura dos Dominicanos, obedecendo à ordem
da aparição miraculosa da Virgem; e a pregação e vida eremítica posterior. Por outro lado,
os feitos miraculosos que realiza revelam todos um domínio das forças naturais e terríveis:
rios, animais, torrentes invernais. Não é por acaso que o único mais directamente ligado a
práticas eclesiásticas seja uma demonstração assombrosa do poder da excomunhão: Gonçalo
transforma em pedras negras uns alvos pães, fazendo ver à assombrada multidão o que a
exclusão dos fiéis pela Igreja faz às almas. Frei Luís de Sousa apercebe‑se bem do âmbito da
referência, pois põe na boca de Gonçalo um discurso que equipara a excomunhão aos raios
que fulminam, e cita dois outros milagres onde as excomunhões secam árvores antes viçosas,
como que atingidas por relâmpagos199.
Todas estas características nos remetem para um tipo de santidade muito específica, a
eremítica. Errância, correspondendo a uma busca da alma visualizada no deambular do cor‑
po; austeridade e devoções intensas; vida em lugares recônditos; poderes sobre a natureza e
os animais200. Talvez a que recolheu maior adesão espontânea por parte dos fiéis, ao longo de
toda a Idade Média, nem por isso entusiasmou a Igreja institucional, e o culto grande parte
dos santos eremitas ficou ao nível local. Ou, e aqui entra o que chamámos “refundição domi‑
nicana”, estes homens milagrosos, carismáticos, são integrados no tipo de santidade e espiri‑
tualidade mendicante, tornando‑se possível uma sua aceitação menos cautelosa. É exemplar
a figura de S. Nicolau de Tolentino, tal como a transmite o processo de canonização de 1325:
eremita, acaba por se acolher à influência do convento local de mendicantes, continuando
38 · Maria de Lurdes Rosa
embora a viver solitário e a exercer com infatigável zelo a sua pastoral errante201. Ora, como
relembra Cristina Sobral, já Frei Luís de Sousa notara as semelhanças entre a hagiografia de
S. Nicolau e a do santo amarantino202.
Para que esta integração da “santidade de franja” se realizasse harmoniosamente, havia
porém que manter, mesmo reinterpretando‑as no global, sinais e devoções que lhe eram
próprias. Assim se explica, segundo nos parece, que seja a sua antiga devoção mariana, que
Gonçalo vivia de modo ardente, a indicar‑lhe a Ordem Dominicana, mas sob a forma de
“enigma”, de busca, quase ao tipo do conto popular203. Neste último universo, por fim, talvez
se encontrem algumas explicações para outras características menos comuns desta hagiogra‑
fia. Alguns aspectos da ingratidão do sobrinho, o regresso incógnito de Gonçalo, a constru‑
ção de uma ponte, são traços que daí proviriam. De resto, parece‑nos mesmo encontrar sinais
de uma estrutura narrativa de tipo tradicional, como sejam os ditados e máximas (“se queres
edificar ponte, edificarás antre mõte e mõte”204, e “sentença de excomunhõ nõ quebrava os ossos, ne~
danpnava a alma” 205), e os traços de rima, remetendo para uma leitura oral e cadenciada (“E
Gonçalo nom esquecido, novo sacerdote e novo prelado, do preceito sagrado do seu prelado, que sob
tanta discriçom lhe era emposto e mandado...”)206.
Isabel de Aragão (m.1336) avulta como a grande figura, quase única, da santidade no sé‑
culo XIV português. É tanto mais interessante quanto encarna um tipo de transição, de fortes
características autónomas, que os Franciscanos integraram durante os seus tempos áureos,
mas sobre o qual irão perder algum controlo na época das grandes controvérsias internas.
Falamos da santidade feminina, nascida do anseio de ascetismo e pobreza, mas perfilando‑se
cada vez mais numa mística nem sempre disposta a aceitar a mediação eclesiástica.
Campos historiográficos novos, florescentes sobretudo a partir dos movimentos de li‑
bertação feminina dos anos 60/70 deste século, e do pós‑Vaticano II, no campo católico, a
espiritualidade e santidade das mulheres suscitaram e suscitam uma enorme bibliografia.
Cingindo‑nos necessariamente aos temas principais para a Idade Média tardia, tentemos
uma breve síntese207. Os autores sublinham desde logo um significativo aumento quantitati‑
vo das canonizações femininas, implicando um reconhecimento e mesmo estratégia da alta
hierarquia eclesiástica em relação às aspirações religiosas das mulheres. Dos 10% do período
entre 500 e 1200, passa‑se a 18% de 1198 a 1431; esta percentagem eleva‑se ainda mais se
excluirmos os santos necessariamente masculinos, como os bispos, e os pertencentes às or‑
dens religiosas tradicionais: 21,4% de mulheres entre os santos mendicantes, e 58,8% entre
os santos leigos208. Como os últimos números indiciam, as alterações têm uma raiz de ordem
qualitativa: as mulheres foram singularmente atraídas pelas novas ordens mendicantes, tanto
na sua versão de vida consagrada conventual como nas Ordens Terceiras, que permitiam a
manutenção do estado leigo. De resto e, segundo fortes indícios, a partir dos movimentos
mais espontâneos, grande número de devotas optaram por um estado intermédio, em que se
votavam a Deus mas não professavam solenemente, mesmo que toda a vida se movessem em
círculos clericais e não contraíssem laços familiares. Entre os casos mais famosos conta‑se
Santa Catarina de Sena (m. 1380), que nunca professou na Ordem Dominicana, ainda que
tivesse sempre vivido rodeada de Pregadores, sobre os quais aliás exercia uma considerável in‑
fluência209. As dificuldades que atravessam os mendicantes durante o século XIV, bem como
uma certa desconfiança generalizada em relação à excessiva proximidade entre as devotas e
os seus confessores210, vão permitir que estes traços se desenvolvam com maior liberdade,
de tal modo que a centúria de Quatrocentos irá conhecer o apogeu destas figuras de santas
Santos e demónios no Portugal medieval · 39
femininas, no que será talvez o cume da liberdade em relação ao clero masculino: as “santas
vivas” que alcançam o estatuto de profetisas. Particularmente notório em Itália211, este desen‑
volvimento terá alguns paralelos entre nós, como veremos adiante. Entretanto, indiquemos
três últimas características da espiritualidade feminina deste período.
Em primeiro lugar, uma inclinação particular para o ascetismo e para as devoções com
acentuados traços afectivos, que nos casos extremos assumem facetas mórbidas e mesmo
sensuais. Sem querermos com isto elaborar formulações valorativas, há que analisar com
propriedade os contornos de temas como, por exemplo, a aspiração ao martírio sangrento212,
a devoção ao “Corpo de Cristo” na Eucaristia e o desejo da união mística213, ou ainda, a
relação com o próprio corpo, entendido como palco da luta contra o mal214. Já no auge do
período de influência mendicante, mas sobretudo a partir da autonomização em relação aos
confessores, a insistência de algumas devotas nestes temas irá trazer‑lhes problemas215. É
conhecido sobretudo o desejo de comunhão frequente, e a crença no poder de alimentação
também corporal que tinham as partículas sagradas, a ponto de se recusar outro alimento.
Opôs violentamente aos respectivos confessores e directores espirituais santas como Catarina
de Sena ou Doroteia de Montau (n.1347), mas foi um fenómeno muito generalizado, que
continuará ao longo do misticismo feminino católico216.
Em segundo lugar, deve apontar‑se que, na generalidade dos casos, muitas destas mu‑
lheres, e em especial as místicas, foram elementos extremamente activos na sociedade. Seja
em práticas caritativas, seja em intervenções directas na política eclesiástica e civil, toda uma
galeria de mulheres encontrou na razão religiosa um poderosa via de acção: entre as princi‑
pais, Isabel de Hungria, Catarina de Sena, Clara de Assis, Joana de Maillé, Beatriz da Suécia,
Isabel de Aragão217.
Por fim, e regressando pois à virtuosa consorte de D. Dinis, parece‑nos poder falar da
existência de uma certa consciência da força e dos traços distintivos da sua espiritualidade,
por parte destas mulheres. Por um lado, participava da piedade mendicante e era propiciada
pela orientação comum das redes franciscana e dominicana. Por outro, no entanto, era exis‑
tencial, e potencializava‑se pelo conhecimento das vidas das mulheres santas com as quais
se identificavam as “aspirantes à santidade”. A influência da literatura hagiográfica para os
devotos em busca de perfeição é de sempre, e já a salientámos várias vezes. De igual modo
teve influência nos processos que se diriam mais “administrativos” da Igreja católica: é visí‑
vel nos processos de canonização, através das respostas das testemunhas, que um ou outro
modelo de santidade é invocado, ao tentar caracterizar o santo em questão218. Entramos aqui
no complexo problema da construção individual e social da santidade em vida dos próprios
santos, e nas transformações a que se sujeitam estes, depois de mortos. As lendas de santos
funcionavam como “estratégias de vida” para os aspirantes a santos219; serviam ainda como
quadros de reconhecimento e proclamação de esta virtude ou mesmo daquele comportamen‑
to mais estranho: choros, extâses, venda dos bens aos pobres, mendicância220. É um pouco
de tudo isto que encontramos na tessitura da obra fundamental que é o Livro que fala da boa
vida que fez a Raynha de Portugal, dona Isabel, e dos seus bõos feitos e milagres em sa vida e depoys
da morte.221
Esta obra, que terá sido escrita pelo próprio confessor da Rainha, o mendicante Frei
Salvado Martins, chegou até nós apenas numa versão quinhentista, sendo o título acima
indicado uma reconstituição. No entanto, além de algumas acrescentos no fim do texto, o
grosso da obra permanece fiel ao original e constitui portanto um rico material de trabalho222.
40 · Maria de Lurdes Rosa
Na impossibilidade de nos alongarmos sobre ele, apontaremos aqui algumas ideias, na linha
que temos vindo a seguir.
Poder‑lhe‑iamos talvez chamar‑lhe uma “crónica hagiográfica”, pois o facto de evocar
a vida de uma grande senhora leiga fá‑la seguir algumas regras da biografia cortesã; mas é
necessário insistir no carácter exemplar, de construção da santidade, que manifesta, pois este
é singularmente semelhante ao de outras vidas de grandes nobres ligadas aos franciscanos.
Aqui parece‑nos residir precisamente a sua maior importância, nem sempre suficientemente
realçada pelo enfoque de que tem sido alvo, excessivamente literário e restringido a Portugal.
De facto, os traços biográficos de Isabel de Aragão são completamente “versados” no modelo
de vida que percorre um certo número de vidas de grandes damas da corte que optam pela
vivência franciscana, entre as quais avulta Isabel da Hungria, tia‑avó da Santa. As circuns‑
tâncias reais da vida das várias santas reflectem‑se em diferentes enredos; porém, sempre
presente, está uma das propostas franciscanas de concretização prática do ideal de pobreza,
por parte de grandes senhoras temporais. Entre as várias, precisamente aquela que propõe a
via intermédia. Vejamos como.
Dada a grande receptividade do franciscanismo no seio das cortes reais e senhoriais da
Europa do sul, pôs‑se muito cedo o problema da oposição entre a riqueza e pobreza, entre
poder e despojamento e, com maior acuidade no caso das mulheres, entre o seguir a Deus
ou cumprir a sua função social, mormente no jogo das alianças matrimoniais223. Nem sem‑
pre os Frades Menores souberam formular o “elogio da moderação” que alcançou consenso
entre os seus congéneres Pregadores224. Surgem assim opções radicais, como a de Dauphine
e Elzéar de Sabran (m.1360 e 1323), um casal da mais alta nobreza provençal, que opta pela
castidade conjugal e, mais, tenta criar no seu castelo e terras uma espécie de sociedade pura,
mandando banir pelos seus oficiais, os “sensuais e impúdicos” e os adúlteros renitentes225. As
influências dos espirituais franciscanos são claras nesta atitude, que esteve longe de ser única:
há vários outros casos semelhantes226, e o casal de aristocratas provençais teve uma vasta rede
de apoiantes ou admiradores na França do Sul, Espanha mediterrânica e Itália, ao nível das
famílias da alta nobreza, como demonstrou o inquérito para a canonização. Facilmente se vê,
porém, o perigo social da generalização desta atitude, que os Franciscanos mais moderados
tentam limitar. No jogo de influências que se desenhou no seio da própria Ordem, tão depen‑
dente de apoios políticos, podiam ser decisivas as formulações alcançadas num problema que
tocava de perto a própria função e objectivos do poder temporal. A corte de Aragão, de onde
provinha Isabel, era uma bolsa de influência franciscana importante ( Jaime de Aragão, avô
da santa, patrocina uma primeira tentativa de canonização dos mártires de Marrocos, como
vimos), ligada ainda por laços matrimoniais às dinastias do centro da Europa onde houve
pela mesma época um florescimento de santas e beatas entre as altas senhoras de corte227.
Assim, a mensagem que “Vidas” como a de Santa Isabel da Hungria, ou Isabel de Aragão
fazem passar, é a da “fidelidade à regra” através da dupla conduta. Não no sentido de duplici‑
dade, mas no sentido de vida interior, de perfeição nos vários papéis sociais – rainha, esposa,
mãe –, de vida devota orientada. Se existem condições para tal, a nobre senhora poderá então
fazer mudanças radicais: é o caso da viuvez de Isabel de Aragão, que verdadeiramente inau‑
gura a sua nova vida. Desde logo anunciada no privado cortesão: presente junto de D. Dinis
nos últimos momentos deste, a Rainha retira‑se logo de seguida à sua câmara e veste o hábito
de Sta. Clara das mãos de uma freira da Ordem. Mas também em público, no primeiro ani‑
versário da morte, e de uma forma bem simbólica. Indo em secreta peregrinação a Santiago,
Santos e demónios no Portugal medieval · 41
entrega aí valiosas jóias e tecidos ricos, e o próprio símbolo daquilo a que renunciava: “a
mais nobre coroa que ela avia com muitas pedras preciosas”228. A esmolas e os jejuns que fazia
às escondidas de D. Dinis equiparam‑se aos cuidados de Isabel de Hungria, que participava
dos faustosos jantares de corte mas tentava saber pelos criados se os alimentos que comia
tinham sido obtidos justamente. Uma e outra vão fundando hospitais e mantendo pobres
em vida dos maridos, por vezes sendo por eles censuradas, como a lenda lembra para Isabel
de Aragão, através do “milagre das rosas”. Mas é verdadeiramente depois da viuvez que, mais
libertas da função política, podem disponibilizar os seus bens para a causa da pobreza. De
resto, durante a vida do marido e depois da morte deste, Isabel de Aragão é a santa exemplar
do ponto de vista político: pela via da moderação, evita várias vezes os confrontos armados
entre os membros masculinos da sua família. Desde bebé: o seu avô faz as pazes com o filho,
pai de Isabel, enquanto tem à sua guarda a pequena infanta229.
A este elemento central agregaríamos apenas mais três ideias. Em primeiro lugar, a pre‑
sença no meio deste grande quadro de conduta de outras pequenas lições, em especial sobre
a piedade quotidiana das senhoras de corte. Os momentos devocionais de Isabel são cuida‑
dosamente retratados: “ela em cada uu dia rezava as oras canonicas e as oras de Santa Maria
e dos passados e fazia comemoraçom de muitos santos e santas e saia‑se aa capela que ela consigo
trazia, mui rica e mui bem apostada...”230. Depois, uma atenção especial às mulheres, por parte
desta santa feminina, demonstrada na esmola às pobres envergonhadas, no casamento das
jovens, no ensinamento das donzelas. É especialmente interessante o facto desta protecção
se prolongar após a morte da Rainha, pois tanto nos milagres realizados imediatamente após
a morte, como nos que refere o inquérito de canonização iniciado em 1576, a maioria das
beneficiadas são mulheres231.
Por fim, a atenção dada aos aspectos dinásticos no conjunto desta obra merece alguma
atenção. Tem sido objecto de debate historiográfico o papel dos carismas familiares e di‑
násticos na dimensão da santidade dos reis e rainhas. Dada a persistência, ao longo de todo
o período medieval, na crença da transmissão dos carismas pelo sangue, e da posse destes
pelas dinastias reinantes e aristocracias, os primeiros autores que investigaram a santidade
régia tenderam a ver nela uma sobrevivência, cristianizada, das ideias carismáticas da realeza
sagrada, de origem germânica ou do mundo antigo. Mais recentemente, insiste‑se antes no
carácter pessoal – e não de função, ou de carisma – dos homens e mulheres que, desempe‑
nhando cargos régios ou principescos, ascenderam à santidade. O que não implica, porém,
que nas interpretações posteriores e, sobretudo, nos usos destas santidades, afinal eminente‑
mente “políticas”, não se tivesse tentado sobrepor ao esforço individual de perfeição a ideia de
um dom herdado, transmitido pelo sangue232. Nas vidas de santos reis e rainhas influenciados
pela espiritualidade mendicante, onde é tão clara a afirmação da vontade individual em seguir
preceitos de santificação novos, podemos falar da presença de crenças mais arcaicas quanto à
fonte dos seus poderes? Se sim, como se conciliam elas com as opções conscientes de vida que
preconiza a religiosidade do tipo “moderno” que é a mendicante? Não podendo responder
totalmente a este vasto problema, no âmbito do presente trabalho, alinhemos uma síntese,
restringindo‑nos ao nosso estudo da Rainha Santa Isabel.
Já referimos a função pacificadora de Isabel no seio da aristocracia guerreira da sua pa‑
rentela; funciona nela como uma espécie de entidade tutelar da paz linhagística, fundamental
para o equilíbrio e manutenção do poder. A pertença de Isabel a uma vasta rede de príncipes
e reis é várias vezes realçada na obra, duas das quais em reminiscência da própria senhora:
42 · Maria de Lurdes Rosa
no enterro do avô vira ela dois reis e três rainhas, e no fim da vida, no mosteiro de Coimbra,
orgulhava‑se de ser a rainha que vira mais parentes, homens e mulheres, nas várias famílias
reinantes233).Como já referimos, dentro da parentela régia de Isabel existiam várias santas
rainhas e princesas, que por vezes funcionaram como modelos umas para as outras. É ainda
ela quem trata das missas por sufrágio da filha Constança, com a qual mantém uma co‑
municação além da morte234. Por fim, os seus descendentes irão por vezes colocar‑se sob
o seu patrocínio directo em acontecimentos especialmente importantes para a família real.
Referimo‑nos ao casamento do Infante D. Duarte na capela sepulcral da sua antepassada,
junto ao próprio túmulo, e às palavras do Infante D. Henrique, relatando a cerimónia, ao
referir‑se que a Infanta noiva repousara algum tempo no paço da Rainha Santa Isabel: “...
parecia que casava da casa da Rainha D. Isabel, e assim foi d’Aragom, e todos entendemos que pela
santidade da dita Rainha D. Isabel foy esto feito tão bem, e honradamente da sua casa”235.
No seu conjunto, os diferentes indícios não nos parecem provar uma crença na origem
carismática dos poderes de Isabel de Aragão. No relato da sua vida, é muito maior a insistência
no caminho de aperfeiçoamento individual, essencialmente baseado na renúncia e no sacrifício.
O dom da paz e a comunicação com o Além (de resto com uma presença muito discreta) vem
da sua relação privilegiada com Deus, e o facto de se exercerem também sobre a sua parentela
(não só de sangue, note‑se bem), não os prende a laços sacrais de origem familiar. No entanto,
existiram sem dúvida apropriações dinásticas da própria Rainha, que se estendem até às santas
suas parentas. Mas funcionaram num sentido inverso à transmissão dos carismas nos períodos
mais antigos, ou seja, a posteriori: a partir de santidades individuais, tingiram‑se os laços familia‑
res da áurea que delas derivava. O que não deixa de pôr em evidência um interessante contraste:
a percepção das santidades individuais por outros que não os próprios candidatos à santidade
ou o seu círculo próximo, fazia‑se afinal por traços bem tradicionais.
mesmo à meia‑noite, “como u~ religioso”253, jejuava amiúde, era grande frequentador de pere‑
grinações e esmoler. Este retrato, que já aponta para uma vivência religiosa intensa, completa
‑se com o seu projecto de abandono do mundo. Se acabou por concretizar‑se na fundação do
Carmo de Lisboa e ingresso nele, inicialmente tinha um programa bem mais completo. Se
bem que se torne difícil distinguir entre uma real intenção de abandono do Mundo e uma
forma de pressão à Coroa, frequente neste personagem de génio tempestuoso, as três formas
de que se reveste revelam o pleno conhecimento de aventuras eremíticas contemporâneas.
O Condestável planeara em primeiro lugar passar a viver de esmolas, pedindo por amor de
Deus o seu alimento; depois, abandonar a identidade conferida por títulos e apelidos, passan‑
do a chamar‑se só “Nuno”; por fim, “ir fora da terra e acabar lá, que nom soubessem dele parte”254.
Dissuadido de tal por D. Duarte, acaba por aceitar a via conciliatória da reclusão no Carmo
de Lisboa, e receber ainda do príncipe uma tença confortável que lhe permitiu assegurar os
que com ele haviam ficado, apesar de se ter desfeito de todos os bens.
O Condestável deve ter sido uma das figuras em torno da qual mais rápida e solidamente
tomou forma um culto de variadas irradiações. Existe um livro de milagres seus, que é mes‑
mo “a mais vasta compilação [de milagres] que nos legou o século XV”255. É legítimo supor
que seria uma recolha realizada tendo em vista a abertura de um processo de canonização. O
Infante D. Duarte e os seus irmãos tentam de várias formas promover o culto: para além de
patrocinarem a compilação dos milagres, o Infante D. Pedro compõe uma oração litúrgica
em honra do Condestável, D. Duarte elabora um extenso sumário para um sermão em honra
deste, e finalmente escreve para o Abade D. Gomes para que este tente abrir o processo de
canonização na cúria, em 1437256. Nesse mesmo ano, de resto, nas vésperas da partida para
Tânger, o convento do Carmo é palco de uma significativa encenação, onde a figura do Con‑
destável é alvo de um tratamento que elucida bem sobre a funcionalidade da sua santificação.
Na Igreja lê‑se solenemente a bula da Santa Cruzada; dela sai a procissão para a Sé, com um
andor onde se coloca o pergaminho papal, uma relíquia do Santo Lenho e uma “bandeira do
Santo Conde, que com ela já fora em alguns bons feitos”257. A mesma utilização sacro‑bélica está
presente na ida do Infante D. Henrique de Ceuta até Tânger, onde o cortejo de bandeiras
e relíquias é ainda mais curioso: a bandeira real, a da Ordem de Cristo, uma imagem de
Nossa Senhora e uma relíquia da Vera Cruz, acompanham dois estandartes com os vultos de
D. João I e do Condestável...258
Também interessados na sua santificação estariam os poderosos representantes da Casa
de Bragança, que se veriam assim dotados de um Fundador‑santo, figura de grande prestígio
na cultura da época. No entanto, esta aspiração parece ser mais tardia, em relação às tentativas
da Casa Real. Segundo o seu estudioso mais recente, é provável que a Crónica do Condestabre
(composta entre 1431 e 1443), tenha sido escrita por patrocínio dos Braganças259. Não lhe
atribui, no entanto, uma clara função hagiográfica, baseado na forma como Nuno Álvares é
representado260. Nesse sentido, avança a interessante hipótese de que existiam ainda lembran‑
ças contraditórias, na sociedade de então, sobre a figura do Condestável, e que o patrocinador
da biografia “tivesse consciência que demonstrar a legitimidade social e política do seu prota‑
gonista era um projecto exequível, mas que revelar um santo seria (ainda) impraticável”261.
É plausível, portanto, que a Casa de Bragança mostrasse prudentes reservas, não só aos
entusiasmos da Ordem do Carmo, que gostaria de contar com a prestigiosa figura do Con‑
destável entre os seus santos, como às tentativas de D. Duarte e seus irmãos, que podem
mesmo ser vistas como tentativas de apropriação régia de uma figura “santa” concorrencial.
46 · Maria de Lurdes Rosa
Para finais do século XV, contudo, parece‑nos poder afirmar que os poderosos descendentes
de Nuno Álvares se mostravam mais interessados em tal, talvez levados pela necessidade de
reabilitar a sua Casa, depois dos trágicos choques com D. João II. Sabemos que o manuscrito
da versão impressa foi fornecido ao impressor por D. Jaime de Bragança, e que conteria ves‑
tígios de ter sido trabalhado com informações sobre os descendentes do Condestável262. Ora,
num inventário do palácio de Vila Viçosa, elaborado em finais do século XVI, mas contendo
informações sobre objectos antigos, desde o próprio Nuno Álvares, referem‑se objectos que
remetem indiscutivelmente para o cultivo de uma memória do Fundador263. Assim, temos
retratos seus, em tábua (“Hua tauoa em que esta o Conde Nuno Alueres”)264 e em panos de armar,
que relatam a sua “estorea” (“Huma cama da mesma historia do Conde Nunalueres, a qual he ceo
cabiseira e ilharga tem corrediçes de dobrete de Milão raxado de ouro e prata e tem o ceo e cabeceira
e ilhargua cemto e onze couados de raz e ouro”)265. A “história” deveria ser longa e prezada, pois
são referidas três arcas para guardar os panos, feitas em precioso pinho da Flandres266. Os
Braganças conservavam, ainda, os textos. Na biblioteca dos Duques existia não só a Crónica
(impressa?)267, como uma recolha de milagres, que não podemos infelizmente saber se seria
a mesma daquela composta por Zurara, hoje guardada no Arquivo da Casa de Cadaval, mas
que era sem dúvida manuscrita: (“Milagres do Condestabre Dom Nuno alvarez Pereira escrito
de mão”)268. Por fim, conservavam e inventariam um significativo objecto: “Hum relicairo de
prata velho muito amtiguo posto em huma cadeiinha de prata sem reliquias que foi do Condestabre
Dom Nuno Alueres”269.
É certo que estes objectos, para os quais é quase impossível precisar a data de aquisição ou
confecção (excepto o último, herança do próprio fundador), não nos revelam directamente o
cultivo de uma memória “sacra”. Não sabemos quais as cenas da “história” contada nos panos,
nem a forma como aparece retratado o Condestável. Mais conclusiva é a presença do livro
de milagres, que pelo menos testemunha do conhecimento dos mesmos. Do mesmo modo, a
informação de que o Duque D. Jaime manda o preceptor dos filhos, Juan Fernandez, tradu‑
zir para latim a Crónica do Condestável270. Entre as finalidades possíveis de tal tarefa, estaria
o envio para a Roma, sondando a probabilidade de canonização. Estariam os Braganças da
época áurea, inaugurada pela ascensão de D. Manuel ao trono, finalmente interessados na
canonização do Fundador? É algo que só poderá ser totalmente respondido, por posteriores
descobertas documentais e investigações.
A santificação do Infante D. Fernando (m.1433) é a face mal‑sucedida da empresa a
que vimos Nuno Álvares ser posto a presidir em pompa e circunstância. Com efeito, o Infan‑
te sacrificado em Marrocos aos interesses políticos nacionais é transformado em mártir da
conquista norte‑africana, numa projecção sobre uma personalidade de base que teria fortes
traços religiosos mas que não se desenvolvia nesse sentido. A história do martírio, morte e
“santificação” do Infante interessa‑nos menos do que um outro aspecto: a sua vivência re‑
ligiosa anterior, enquanto grande senhor leigo com projectos de reforma religiosa bastante
completos, que experimenta na sua corte271.
Neste particular, a grande fonte para a vida e morte do Infante D. Fernando, o Trautado
de Fr. João Álvares, pode ser completada (e comprovada na sua veracidade) pela correspon‑
dência do próprio ao abade D. Gomes, na altura em Florença e Roma. O Trautado272 começa
o retrato do príncipe relacionando‑o com o Divino desde antes do nascimento – o parto é
feliz graças à intervenção da relíquia da Vera Cruz do Marmelar, depois da heróica renúncia
da Rainha D. Filipa em abortar, mesmo em perigo de vida. O Infante sofrerá sempre de uma
Santos e demónios no Portugal medieval · 47
compleição frágil e de dor do coração, à qual o seu biógrafo associa as virtudes que Deus nele
pôs273. Um ser de excepção desde o nascimento, a quem a fragilidade física teria favorecido
o lado contemplativo, o Infante não deixou de ser porém perfeitamente determinado nas li‑
nhas porque pautou o seu comportamento religioso, muito exigentes de resto. Assim, à opção
pela virgindade aliou práticas devocionais bastante completas, e tentou alargar o seu modo
de vida à corte a que presidia. Fazia confessar e comungar anualmente todos os seus depen‑
dentes em idade para tal, vigiava as conversas e actos dos seus criados, e tentava que eles se
mantivessem castos enquanto serviam em sua casa, ou até certa idade. A luxúria parecia‑lhe
de facto o maior dos pecados, a ponto de se abster de alimentos e cheiros que o pudessem a
tal induzir274. Empenhou‑se a fundo na criação de um espaço sagrado interno à sua própria
corte, para a qual alcançou do Papa graças especiais. Minuciosamente descritas numa carta
de 1436 ao abade Gomes, vão “das mais rreliquias de samctos que aa ssua sanctidade prouuer” às
“moores endulgençias que poderdes auer” para a assistência a várias festividades na sua capela. E
acrescenta o Infante, comentando uma possível oposição papal a tantos pedidos, que eles não
deveriam ser negados por “quem deseia a ssaluaçom de todos”275. Uma opinião portanto perfei‑
tamente nítida e voluntariosa em relação ao papel do Papa na dispensação de favores aos lei‑
gos: os poderes de que dispõe o Pontífice estão condicionados ao serviço dos fiéis. Uma série
de outras exigências passam por especificidades na administração dos sacramentos: escolha
de confessores, faculdades de absolvição, número de capelães e missas quotidianas, relação
privilegiada dos seus criados e comensais com os capelães da casa no que toca aos mesmos
assuntos. Também do ponto de vista litúrgico o Infante planeia, pretendendo seguir pessoal‑
mente o costume de Salisbury e torná‑lo ainda o comum da sua corte. Por fim, providencia
pelas almas dos que viviam nesse local tão devoto, ao pedir a absolvição em artigo de morte
de todos os seus servidores, quando morressem em sua casa276.
Estes e outros traços da sua piedade – atento seguimento dos ofícios religiosos na sua
capela, frequência de igrejas, procissões e confrarias, prática de esmolas em grande humilda‑
de, preocupação pela justiça quanto aos seus dependentes – traçam‑nos um retrato bastante
completo da vida de um grande senhor devoto, um leigo que planeia extensamente sobre a
vida religiosa do universo a que preside, dominando bem os meandros institucionais da vida
religiosa. Parece‑nos poder afirmar que o Infante se situa num estádio intermédio entre os
grandes senhores ligados ao primeiro franciscanismo, e uma vivência religiosa já claramente
autonomizada, neste caso concreto subjacente à lógica de manutenção e reforço espiritual da
sua corte277 .
O culto posterior organiza‑se em torno de problemas bem diferentes, excepção feita ao
texto de Fr. João Álvares, cuja circulação se restringiu decerto a pequenos círculos. As relí‑
quias recuperadas em 1451, e o corpo depois da conquista de Arzila, são recebidas em grande
pompa e transportadas processionalmente para a Batalha. Em redor do monumento fúnebre
do Infante cedo se forma um núcleo de culto, servido por cerimónias litúrgicas várias (D.
Henrique, por exemplo, instituíra uma missa diária cantada) e por suportes iconográficos278.
Um deles, extremamente interessante, fornece‑nos a imagem quatrocentista da santidade em
que se engloba o Infante: o grande senhor cativo, que apesar disso é vencedor, calcando sob
os seus pés três coroas: o Diabo, o mundo e a carne279. A crónica de Fr. João Álvares recolhe
ainda alguns milagres realizados pelo corpo, que na edição impressa em 1577 são ampliados
com vários outros junto ao túmulo280.
48 · Maria de Lurdes Rosa
devoções e experiências vividas da Infanta, tornam novo este texto, um dos primeiros teste‑
munhos, ainda que indirecto, de uma vivência mística.
A Infanta Santa do Memorial é a figura de grande lutadora pela liberdade de prosseguir
uma experiência religiosa pessoal, de cariz afectivo e místico, que não contemporizava com
razões de Estado ou com vivências religiosas impostas: “a não vencida donzela e forte bata
lhadora de Cristo mais que mártir”294. Toda a espiritualidade que experimenta desde pequena
desenvolve‑se em torno de traços típicos, dos quais destacaremos três: i)seguimento pessoal
da paixão de Cristo; ii) consciência aguda do pecado e empenhamento existencial, físico, na
redenção dos pecadores; iii) relação directa com Deus.
Assim, a Infanta seguia passo a passo a liturgia da Paixão, identificando‑se ao Cristo
sofredor através de gestos físicos de flagelação e dor295; prepara‑se para a morte recriando
de diferentes formas a agonia de Cristo296; toda a vida contempla os passos, sinais e instru‑
mentos da Paixão: coroa de Espinhos, oração no Horto, agonia..Chora abundantemente297,
cai no chão, e geme, repetindo as palavras de Cristo, quando ouve ou lê a Paixão, que tem
representada no quarto no seu quadro preferido, centro do oratório privado298. Quando mor‑
re, é o próprio Céu que confirma esta ardente devoção da Princesa: um seu capelão, longe do
convento, conhece a sua morte através de uma impressiva visão – uma grande claridade, e no
meio dela “uma muito grande, formosa e resplandescente coroa de espinhos; e assim a coroa como
os espinhos eram todos robricados e cheios de um muito vermelho e fresco sangue e em cada ponta de
cada um dos espinhos pendia uma muito grande e clara gota de sangue”299. Note‑se que estas ex‑
pressões claras e, por vezes, rudes, da afectividade religiosa, apanágio sobretudo de mulheres,
só pouco a pouco foram aceites como sinal de santidade300. Por outro lado, nunca deixaram
de ser alvo, ao longo de todo o período tardo‑medieval, de fortes críticas de vários sectores da
Igreja, inclusivamente dos teólogos do misticismo moderado301.
O pecado, próprio e alheio, era para a Princesa um tema central, vivido de forma quase
obsessiva. Inventava penitências especialmente dolorosas para o sacrifício pessoal, fonte de
redenção; assentava num pequeno papel que trazia sempre consigo, todos os pecados que
cometia para depois se confessar e penitenciar; orava e pregava continuamente pela salvação
dos pecadores, dizendo mesmos as freiras que ela, em vida, salvara do pecado várias condicí‑
pulas, pelas suas orações302.
Por fim, a Infanta várias vezes recebe mensagens divinas directas, bem como se dirige a
Cristo e Nossa Senhora e com eles conversa. Assim, é um “fremoso e splandecente mancebo”
que lhe anuncia a morte do marido que D. João II lhe pretende impor, tendo ela caído em
“leve sonho” no decurso da oração em que implorava desesperado socorro ao “seu amado sposo”
(o que remete esta ocorrência para o campo da visão, e não do sonho em sono profundo)303.
A cena da sua morte é atravessada por alocuções directas a Deus, pedindo misericórdia e
perdão: “...falava com ele razoando‑se como com amigo e senhor que muito senpre amara e amava e
desejava ver...”; a Nossa Senhora e outras imagens que estavam junto ao leito; e, sublinhemos
o facto, ao Santíssimo Sacramento, quando o recebe304. Todo o texto é, por fim, percorrido
pela convicção nos dotes proféticos da Princesa, manifestação evidente da sua relação privi‑
legiada com Deus. Dotes que se manifestam de forma indirecta, através de sinais: o cometa
que precede a sua entrada no mosteiro e que desaparece à sua chegada, momento em que
todos percebem a presença da estrela; o rosto resplandecente quando morre, a visão do seu
dedicado capelão305. Mas também de forma directa, pois ela desde pequena tem “palavras
de sabedoria” e grande “eloquência”306 – termos que num contexto não equívoco como o de
Santos e demónios no Portugal medieval · 51
Margarida Pinheiro remetem para a figura do profeta do Antigo Testamento. Aliás, a ex‑
pressão é utilizada, e num contexto fundamental...: “profetica palavra”, ao relatar‑se uma ci‑
tação literal dos Salmos feita pela Infanta, em relação ao local da sua morte. Não por acaso,
Margarida Pinheiro invoca o estatuto de testemunha presencial (com outras freiras), para
a veracidade do episódio e sua realização posterior307. A Infanta de resto prevê mais coisas:
a morte do filho do rei de França, outro dos impostos noivos; idêntico destino a todos os
eventuais pretendentes; o seu próprio fim308. Numa aparição depois de morta, a Infanta irá
mesmo mostrar que soube morrer em bom tempo, já que pouco depois se seguiriam as mor‑
tes do Infante D. Afonso e de D. João II, que a obrigariam a desempenhar as suas funções de
herdeira. Sobre estas premonições, explicadas de forma velada a uma irmã, comenta Marga‑
rida Pinheiro: “evidentemente vimos em breve tempo cumprido, per obra, o que esta santa senhora
alumiada já mui inteiramente do espírito profético, em aquele espelho divinal vendo e sabendo todas
as coisas e o que a sabedoria eternal ordenava de se fazer”309.
Não por acaso, é neste último conjunto de relatos que Margarida Pinheiro se mostra mais
cautelosa, fazendo por diversas vezes o reparo de que só o presenciamento dos prodígios rela‑
tados pode levar à total crença neles. Se bem que algumas vezes se possa ter estas afirmações
na conta de topos, o mesmo não sucede para o longo excurso que faz sobre revelações e visões
divinas, antes de relatar as diferentes experiências visionárias que as monjas tiveram depois
da morte da Infanta. Remetendo o tempo das visões para um passado mais afortunado, crê
contudo que Deus dá a mortos muito especiais o poder de consolar os vivos. É neste contexto
que a Infanta Santa aparece às suas monjas. E a Autora redobra de cuidados, nesta altura:
atrever‑se‑à a falar disso, mas através de passos das Escrituras e exemplos de santos. E, so‑
bretudo, afirma a sua ortodoxia: “Não digo isto porque contra a santa fé católica aja de afirmar
o que ela nega, defende e manda: não avermos de crer em sonhos; mas porque levemente leia e ouça
o que aqui disser com boa e sã consciência, para nisso receber alguma consolação”310. A extensão e
meandros deste texto só nos parecem explicáveis face a contextos de crítica e suspeita em
relação a este tipo de experiências, deste modo justificados directamente através da santidade
de Joana.
Beatriz da Silva (m. 1492) e o seu irmão João, mais conhecido por Amadeu (m.1482),
viveram fora de Portugal as suas experiências religiosas: a primeira, residindo em Toledo du‑
rante quase três décadas no convento de dominicanas, funda pouco antes de morrer a Ordem
da Imaculada ou da Conceição de Maria (1489); o segundo, depois de viver alguns anos entre
os eremitas jerónimos, no santuário de Guadalupe, irá criar e espalhar em Itália a congrega‑
ção dos Amadeítas. A ausência de estudos que temos referido para vários dos personagens
em estudo, é mais grave para estas duas grandes figuras da espiritualidade quatrocentista.
Envolvidos por alguma historiografia numa aura romanesca que ligava as suas vocações com
desgostos de amor palacianos, ou que, quanto ao Beato Amadeu em particular, lhe conferiu
fama de herético pela atribuída obra Apocalipsys Nova, apenas recentemente se têm vindo a
renovar os estudos a seu respeito311. Assim sendo, e porque nos pareceu incorrecto terminar
sem os referir, faremos uma síntese da sua espiritualidade a partir dos trabalhos disponíveis.
Beatriz e Amadeu parecem‑nos sobretudo paradigmáticos de uma das formas de resolução
das mais importantes questões subjacentes à variedade das propostas quatrocentistas de san‑
tidade: aceitação decisiva da vivência mística da relação com Deus, no quadro porém de um
empenhamento reformista activo312.
52 · Maria de Lurdes Rosa
Amadeu da Silva surge na sua Vita mais antiga como um campeão da vida austera, solitá‑
ria e contemplativa. Vivera numa “caverna da montanha”, “caminhava descalço e vestido só com
a túnica; o seu alimento era pão e água, uma vez por dia, depois da Noa, logo após a Missa”. Outros
testemunhos contemporâneos reforçam esta imagem: em constante penitência de cilícios e
jejuns, chegou a ser humilhado pelas populações, que o consideravam herege313. No entanto,
o movimento religioso por ele iniciado irá depois gozar de grande popularidade, reclamando
por exemplo as povoações de Burgos, em 1478, a vinda dos Amadeítas, tidos como austeros
e devotos314. É difícil delinear influências sofridas, na sua infância, passada entre Ceuta e o
Alentejo, por parte de correntes religiosas radicais que tiveram nessas zonas algum impacto
(por exemplo, a surpreendente rapidez da expansão dos eremitas da Serra de Ossa, na cen‑
túria de quatrocentos315); no entanto, têm sido salientadas as impressões que, tanto sobre ele
como sobre sua irmã Beatriz, causaram duas constantes da religiosidade cortesã portuguesa:
a evangelização norte‑africana, e a devoção à Imaculada Conceição, uma e outra na órbita
da Ordem Franciscana316. Surge‑nos depois entre os eremitas de S. Jerónimo, onde levou
por dez anos vida contemplativa; a fundação dos Amadeítas insere na corrente de renovação
franciscana, preconizando pequenos eremitérios rudes e em locais ermos, e a vivência de uma
espiritualidade contemplativa, penitência corporal e imitação literal de Cristo317. Neste sen‑
tido, seriam várias as afinidades e laços com a corrente de renovação franciscana dos “Frades
do Santo Evangelho”, também nascida de experiências de vida eremítica ligadas a círculos
cortesãos. Esta corrente veio a estabelecer amplas ligações com as cortes de D. João II e D.
Manuel e foi protegida em especial do Duque D. Jaime de Bragança, que tentou mesmo
fazer‑se frade capucho. Um dos resultados palpáveis desta protecção foi a fundação do con‑
vento da Piedade em Vila Viçosa, nas terras do Duque, no terreno propício a estas experiên‑
cias de vida religiosa que foi o sul de Portugal318. Retornando aos Amadeítas, refira‑se ainda
que os aspectos de pregação e estudo não eram descurados, havendo notícia de bibliotecas
bem providas em alguns dos pequenos conventos italianos319. Amadeu gozou da protecção
dos duques de Milão, que ajudaram à expansão da sua ordem na Lombardia, e do Papa Sisto
V, que o escolhe para confessor e favorece o estabelecimento do seu movimento religioso em
congregação autónoma, sob obediência directa do geral dos Franciscanos320. Será em Roma
que escreve a Apocalypsis Nova, cuja versão actual parece conter relativamente pouco da sua
autoria321. É uma obra profética e visionária, de ressonâncias evangélicas e apocalípticas,
onde as revelações e os extâses constituem a tessitura de base322. Texto de grande difusão, foi
proibido em Portugal pela Inquisição, em 1581, o que não impediu a sua circulação entre nós
por outras vias, algumas das quais ligadas aos altos círculos da corte e da Igreja323.
Também a sua irmã Beatriz viveu percursos religiosos específicos. Residindo no convento
dominicano durante quase trinta anos, nunca nele professou, mas veio a fundar uma ordem
religiosa no fim da vida324. A protecção directa da Rainha Isabel, a Católica, está patente
na súplica ao Papa que marca o início da nova Ordem, então ligada juridicamente a Cister
porventura para efeitos de facilidade de aprovação, mas de clara influência franciscana. Em
1511, por via da regra concedida pelo Papa Júlio II, passará a estar formalmente sujeita aos
Franciscanos325. Tal como é definida pelo seu principal estudioso, a espiritualidade de Be‑
atriz da Silva, na directa influência de S. Francisco, caracteriza‑se pelo “espírito de oração
contínua, a raiar pelo alto misticismo da contemplação, da humildade e penitência ligada à
devoção da Paixão de Cristo e à Eucaristia (....), da terna devoção à Imaculada, crença e dou‑
trina ilustrada pelos teólogos franciscanos e vivida também pelo irmão...”326. Alguns destes
Santos e demónios no Portugal medieval · 53
Notas
1 A primeira versão deste trabalho foi escrita em 1995, para ser publicada numa obra colectiva
que nunca conheceu edição efectiva. Já em provas tipográficas, circulou entre vários colegas,
tendo sido citado por demasiadas vezes na quase‑eterna condição de “prelo”... Algumas partes
foram parcialmente utilizadas em outros trabalhos meus, como será devidamente anotado.
A versão que agora se publica foi largamente revista, tentando incorporar todos os avanços
que se deram, desde então para cá, na historiografia sobre o tema, em particular a portuguesa.
Vários deles foram muito importantes para essa revisão, contribuindo para algumas alterações
de monta às suas propostas iniciais; vários outros, em curso de elaboração, virão sem dúvida
enriquecer este campo historiográfico, tornando porventura possível a realização de encontros
colectivos de debate e troca de informações (do que fazemos voto, seja‑nos permitida a ex‑
pressão “hagiográfica”). Resta salientar que não pretendemos aqui explorar monograficamente
cada uma das personagens e textos, mas sim fornecer grandes linhas de análise, a partir da
renovação historiográfica neste campo, em particular dos trabalhos de A. Vauchez, S. Boesch
‑Gajano, Th. Heffernan, Peter Brown.
2 A edição clássica foi feita por PEREIRA, 1987; cfr, ainda FREIRE, 1984. Deve agora ser
utilizada a edição e tradução de NASCIMENTO, 1998:138‑222, que oferece perspectivas
completamente novas e resulta de um apurado trabalho de contextualização histórica e textual,
que contou com a colaboração de Agostinho Frias.
3 HEFFERNAN, 1988:16, 94.
4 Vita Theotonii, ed. e trad. NASCIMENTO, 1998:186‑87.
5 Vita Theotonii, ed. e trad. NASCIMENTO, 1998:196‑197, PEREIRA, 1987: 45, nt. 45, já
chamara a atenção para o carácter alegórico deste trecho, remetendo para MARTINS, 1980:
29‑30).
6 BOUREAU, 1993:10.
7 HEFFERNAN, 1988:95‑97.
8 BLOCH, 1989: 46‑80.
9 HEFFERNAN, 1988:115‑122, considera essencial às vitae o uso desta técnica de construção
literária herdada da retórica clássica, que consistia na inserção de referências de outros textos
cujo reconhecimento pela audiência criava uma associação imediata e amplificava os elemen‑
tos caracterizados.
10 Gérard Frachet, cit. in GALLEGO SALVATORES, 1991:25‑45.
11 BOUREAU, 1993:45.
12 Na tradução de NASCIMENTO, 1998:241.
54 · Maria de Lurdes Rosa
45 NASCIMENTO, 1998:nts. 26, 41, 43, 47 e 144 do texto latino (quase todas dizem respeito à
caracterização das qualidades presbiteriais de Teotónio).
46 Cfr. pp. 28-29.
47 NASCIMENTO, 1998:nts. 54 e 146 do texto latino.
48 FRIAS, 1997:147; para os restantes, cfr. pp. 28-30.
49 HEFFERNAN, 1988:118‑120.
50 FREIRE, 1984: 99, p. 101 e 115.
51 LUBAC, 1959, I,:23‑29, sobre algumas alegorias desta Vita, MARTINS, 1980:29‑30.
52 PEREIRA, 1987: 13.
53 PEREIRA, 1987: 1; MARTINS, 1957:148.
54 NASCIMENTO, 1998:138‑139.
55 Identificação em FRIAS, 1997:147; e em NASCIMENTO, 1998: nt. 1 do texto latino e 2 da
tradução. FREIRE, 1984:98, não conseguira identificar o passo, e indica a possibilidade de se
poder tratar também de Séneca, Platão ou Cícero (p.98); PEREIRA, 1987: 44, nt.1.
56 NASCIMENTO, 2001:114 (com observ. e bibliografia sobre o tema: p. 166), (sobre o texto
cfr., para além da introdução da obra, a cargo de Mª João Branco, a tese recente de MOTA,
2001); OLIVEIRA, 1964:99‑101; GARCÍA‑RODRIGUEZ, 1966:346‑51; MATTOSO,
1999:32‑34; para a análise da construção de uma “santidade territorial” por meio destes textos,
ROSA, 2001:335 (neste livro, pp. 80-81)
57 NASCIMENTO, 2001:95; já tinham aliás sido invocados na descrição que o Cruzado faz de
Lisboa, referindo o seu santuário de “Campolide” (NASCIMENTO, 2001:79). Sobre o culto
medieval a estes mártires cfr. as pp. 164 e 167 desta obra; cfr, por todos, a recente revisão de
SOBRAL, 2000:142‑164 (agradecemos à Autora a oferta de um exempl. dactil. da sua tese, a
leitura da primitiva versão deste texto e todas as informações prestadas) e GAMEIRO 2007.
58 Mas não só: poderia ser uma actividade muito anterior. A hipótese extremamente interessante
de Cristina Sobral sobre o Autor da primitiva (e perdida) lenda de S. Iria de Tomar propõe
um eventual hagiógrafo do séc. XIII, talvez membro da Colegiada de Santa Iria de Santarém,
a recuperar tradições muito antigas, talvez ligadas a uma divindade aquática, cujo culto se
teria fundido com uma mártir histórica, eventualmente visigótica (SOBRAL, 2000:289‑295 e
315‑316).
59 RESENDE, 1593; sobre as “operações” hagiográficas de André de Resende, GAIFFIER,
1942; Rosa, 2001: 338 (neste livro, pp. 83-84).
60 ESTAÇO, 1625.
61 CARDOSO, 2002 (que aliás tece extensas reflexões sobre as lógicas de pertença dos santos às
comunidades, e propõe os critérios de selecção dos santos do reino de Portugal e suas conquis‑
tas, CARDOSO 2002, I: 7‑41; Rosa, 2001: 339‑340. Sobre este autor surgiram entretanto os
estudos essenciais de FERNANDES, 1996; FERNANDES, 1997:105‑132; FERNANDES,
2000; e de MATTOSO, 1999.
62 BARROS 1919: 72; BARROCA/REAL, 1992:135‑136; SILVA, 1979; SILVA, 1991. Sobre
o papel das descrições geográficas na construção de uma “santidade territorial portuguesa”,:
ROSA, 2001: 337‑338 (neste livro, p. 83).
63 Sobre este tipo de santidade, SOT, 1991; e ainda as interessantes observações sobre a contami‑
nação do “bispo cristão” pelo “mágico pagão”, em FLINT, 1991:386‑392.
64 MATTOSO, 1992a: 340‑42.
65 OLIVEIRA, 1964: 67 e 76.
Santos e demónios no Portugal medieval · 57
89 Estas datas alteram substancialmente a datação tradicional, que apontava os anos de 1108
a 1112, e são proposta de SOBRAL 2001‑2002 (cfr. ainda, sobre a hagiografia e o culto ao
santo, desta Autora, SOBRAL,2000: 192‑230. Será fundamental em toda a análise desta Vita
o trabalho, há muito aguardado, de Aires Nascimento (cfr. algumas indicações em NASCI‑
MENTO: 2000)
90 Síntese biográfica em FERREIRA, 2009: 211 ss., a partir dos dados revistos por Avelino Jesus
da Costa e José Mattoso.
91 MATTOSO, 1984e; MATTOSO 1984d; MATTOSO, 1993: 183‑84.
92 MATTOSO, 1996:85. Não nos sendo possível desenvolver este assunto no âmbito do pre‑
sente trabalho, anotamos aqui que a Vita Geraldi deve também ser estudada no conjunto da
restante produção hagiográfica cluniacence, fora de Portugal. A este respeito é fundamental
IOGNA‑PRAT, 1992.
93 CARDOSO, 1959:5‑7; MATTOSO, 1984a e MATTOSO, 1996:83‑85.
94 CARDOSO, 1959:9‑10.
95 CARDOSO, 1959:10.
96 CARDOSO, 1959:10, p.14.
97 CARDOSO, 1959:10‑12.
98 MATTOSO, 1984d: 206; CARDOSO, 1959:15‑20.
99 CARDOSO, 1959:21‑22 e 27‑28; MATTOSO, 1984d: 206.
100 CARDOSO, 1959:33‑34.
101 CARDOSO, 1959:33‑43.
102 FERREIRA, 2009: 225.
103 CUNHA, 1635:235; CARDOSO, 2002, II:392; MARQUES, 1988: 146‑147; MARTINS,
1957: 66‑70.
104 FERREIRA, 2009: 226 ss.
105 GAMEIRO, 2000; para os três testemunhos existentes do texto, suas edições, e um quarto que
se conhece a partir da referência a Jorge Cardoso, cfr GAMEIRO, 2000:85‑94. Já José Mat‑
toso aventara esta ideia, a partir de traços da espiritualidade proposta nesta vita (MATTOSO,
1982b:375, nt. 42).
106 GAMEIRO, 2000:104‑105; 111‑112, 107 e 109.
107 GAMEIRO, 2000:110‑111, e toda a sua análise da Vita, 112‑117.
108 GAMEIRO, 2000:133.
109 PEREIRA, 1970a:115‑116 e 125; MATTOSO, 1982b:375; GAMEIRO, 2000:110.
110 Recorrente em várias hagiografias de “virgens”, como seja Santa Iria (SOBRAL, 1996:143)
(embora na versão portuguesa do Flos Sanctorum de 1513, que a Autora aqui analisa, o trata‑
mento do pretendente revista outras formas). Ver também uma importante contribuição em
SCHULENBERG, 1998.
111 Identificações em MATTOSO, 1982b:387‑388. A utilização da Vita Martini e do Liber Dia
logorum faz do redactor da Vita um bom conhecedor da literatura hagiográfica típica (FON‑
TAINE, 1966; e BOESH‑GAJANO, 1983:304‑305; sobre S. Gregório, neste contexto, cfr.
bib. cit. nt 35.
112 Identificações em PEREIRA, 1970a: (porventura de uma pequena parte).
113 Vita Sanctae Senorinae, ed.PEREIRA, 1970a : 135.
Santos e demónios no Portugal medieval · 59
139 PEREIRA, 2003: 71 ss., recenseando ainda a última historiografia. O Autor do texto não será
aliás de origem portuguesa, mas sim um monge teutónico (segundo PEREIRA, 2003: 72), o
que necessariamente matiza a sua inserção nas narrativas crúzias anteriores.
140 PEREIRA, 2005.
141 REMENSNYDER, 1995.
142 Referimo‑nos ao texto dos Miracula S. Vicentii, datável do período entre 1173 e 1185 (ed. Crí‑
tica NASCIMENTO/GOMES, 1988:28‑68). Sobre o texto e o contexto, cfr., para além desta
obra, a síntese recente de SOBRAL, 2000: 548‑552; sobre a evolução das narrativas, ROSA,
2000: 447.
143 Miracula S. Vicentii, ed. NASCIMENTO/GOMES, 1988:34‑35. Sobre a crucial importância
do culto de S. Vicente, que justificava toda a disputa, cfr., além da introdução dos Autores à
obra: FERNANDES, 1993; KRUS, 1994; e SOBRAL, 2000: 548‑551.
144 MATTOSO, 1987:222.
145 BRAGANÇA, 1976.
146 MATTOSO, 1987:222.
147 BRAGANÇA, 1976:202.
148 Tentámos entretanto algo neste sentido, em ROSA, 1997. Veja-se entretanto ARAÚJO
2004.
149 Surge logo na Vita Prima, ou Assidua, e repete‑se nas restantes versões de forma quase imu‑
tável. Consultámos as diferentes “vidas” na colectânea que delas apresenta, para o ingresso de
Fernando Martins na ordem franciscana, COSTA, 1982:166‑173 (para a citação do texto, p.
167).
150 Segundo algumas fontes, a sua saída de Santa Cruz não fora pacífica, tanto para os seus su‑
periores eclesiásticos, como para os parentes de sangue. Quanto ao desagrado dos cónegos
regrantes, pode pressupor‑se da dificuldade em obter a licença do Prior, que surge mencionada
logo na Assidua (COSTA, 1982: 167) e que se repete nas “vitae”posteriores (COSTA, 1982:
169‑173). Como veremos de seguida, a repetição de casos de abandono das ordens tradicio‑
nais em favor das mendicantes, foi de modo a causar alguma tensão, agravada por todas as
posteriores rivalidades jurisdicionais e religiosas. Quanto à provável perseguição dos parentes,
que o teria levado a mudar de nome, é também referida na Assidua (COSTA, 1982: 169) e em
algumas das posteriores (Vita secunda e Dialogus, (COSTA, 1982: 168 e 169)); outras preferem
a explicação “etimológica” para a mudança de nome, já presente na Assidua, que jogava com
as palavras “alte tonans”, profetizando os dons oratórios de António. BARBERO,1991: 247,
enquadra a mudança de nome por possível perseguição parental no tema das resistências fami‑
liares, comuns a muitas hagiografias.
151 Legenda prima in COSTA, 1982: 167.
152 Apesar de antigo, continua fundamental KERVAL, 1906: 228.
153 Para os santos e beatos portugueses dos séculos XIII a XV não existe uma série de textos ha‑
giográficos tão completa como anteriormente, desde logo em função das alterações históricas:
os frades menores e os dominicanos organizam as suas hagiografias ao nível das respectivas
cúrias, inaugurando de resto um registo hagiográfico de características muito diferentes do
anterior, como salienta BOUREAU, 1993:53‑80 (cfr. também VAUCHEZ, 1991:170 e DIN‑
ZELBACHER, 1991:496‑497, 489‑506). Por outro lado, não se encontram disponíveis ou
perderam‑se as versões mais antigas de vidas importantes, como a de S. Gonçalo de Lagos ou
a de S. Gonçalo de Amarante (cfr.infra, nestes santos). Por fim, temos importantes notícias
biográficas que, ainda que participando no género hagiográfico, se afastam dele: é o caso da
Santos e demónios no Portugal medieval · 61
Crónica do Condestrabre ou da obra de Fr. João Álvares sobre o Infante Santo (cfr. infra). Não
deixaremos porém de utilizar os textos “mais” hagiográficos, se existentes – é o caso da Rainha
Santa Isabel ou da Infanta Santa Joana – com os devidos reparos, que acompanharão o texto.
154 VAUCHEZ, 1988:475 ss; KLANICZAY, 1990:76‑77.
155 Cuja santidade é de resto muito posterior (a primeira abertura do túmulo, com vista a eventual
processo de beatificação, data de 1617: ROSA, 2001: 332 e 346 (neste livro, pp. 95 e 97). Sobre
a “encruzilhada” religiosa em que viveram, e as diferentes tonalidades da sua religiosidade, cfr.
ROSA, 2000:452‑460.
156 GOODICH, 1982:172 e passim; VAUCHEZ, 1988:449 – 478.
157 MATTOSO, 1984f: 329‑346.
158 ALMEIDA, 1967‑1971, I: 136 e 139.
159 MATTOSO, 1984f.
160 GOMES, 1990:6.
161 COSTA, 1982:157‑159.
162 BRÁSIO, 1959; desenvolvemos o tema em ROSA, 2000, 452‑460.
163 KRUS, 1984.
164 FERNANDES, 1988:15.
165 KRUS, 1984:39, nt. 47; COSTA, 1989:169 e COSTA, 1993: 153‑157 (agradecemos ao Autor
ter‑nos facultado a versão dactil., muito antes da sua publ.).
166 A bibliografia antoniana, científica ou não, é imensa. Não temos a pretensão de poder resumir
aqui o que disseram sobre a vida e cultura de Sto. António autores como F.Félix Lopes, Pinto
Rema, Sousa Costa, Gama Caeiro, Cândida Pacheco, para referir os principais e portugueses
apenas. Seguimos essencialmente os dados biográficos e as citações de fontes de COSTA,
1982, e COSTA, 1982a. Uma importante aprofundada síntese dos dados conhecidos, com
muitos elementos novos, foi feita por COELHO, 1996; quanto ao seu culto e hagiografia, cfr.
as imprescindíveis páginas de SOBRAL, 2000:323‑376.
167 BARBERO, 1991:233‑251.
168 BARBERO, 1991:217‑222.
169 VAUCHEZ, 1980: 139‑169.
170 BÉRIOU, 1990. Sobre a evolução agitada da hagiografia franciscana e as modificações inter‑
nas à Ordem, que ela reflecte, são agora essenciais algumas obras de renovação: FRUGONI,
1993; a sua revisão, com muitos outros elementos, por DUFFY, 1997; DALARUN, 1996
(depois debatido no vol. de 1998 da Rivista di Storia e letteratura religiosa).
171 COSTA, 1982: 174‑176.
172 LOPES, 1947:12‑24; RIGON, 1992:173‑178.
173 RIGON, 1990.
174 BOUREAU, 1993:53‑80; caracterização da santidade dominica em GOODICH, 1982:
146‑155.
175 Principais estudos bio‑bibliográficos: MARTINS, 1973; TUTHILL, 1981; TUTHILL,
1984:347‑363; NASCIMENTO, 1993; GOODICH, 1982: 235.
176 NASCIMENTO, 1993:506.
177 MARTINS, 1934: 353‑354.
178 FRACHET, 1990:306‑308.
62 · Maria de Lurdes Rosa
na Cúria de Guimarães, o clero reporta que os meirinhos régios afirmam “quod non darent pro
excommunicatione paleam unam”; 1361: nas cortes de Elvas, queixam‑se dos oficiais de justiça
do rei declararem “que escomunhom nom brita osso, e que o vinho nom amarga ao escõmun‑
gado” (SILVA, 2000:245).
206 SOBRAL, 2000:607.
207 Para além da bibliografia citada de seguida a propósito de pontos concretos, cfr. pontos da
situação e sínteses em obras como MUÑOZ FERNANDEZ, 1989, MUÑOZ FERNAN‑
DEZ/GRAÑA CID, 1991; SCARAFIA/ZARRI, 1994; MUÑOZ FERNANDEZ 1994;
uma recente nota bibliográfica sobre a hagiografia confirma a importância deste campo de
estudo: LAUWERS, 2000, Vol.95/3: 71‑96.
208 VAUCHEZ, 1987:190.
209 VAUCHEZ, 1987:265‑271.
210 PAPI, 1986; GARÍ, 1994.
211 ZARRI, 1990.
212 VAUCHEZ, 1988: 426‑427.
213 VAUCHEZ, 1987: 259‑264.
214 Abundante bibliografia, da qual ver, em especial, BYNUM, 1987; BYNUM, 1995: 329‑340;
BELL, 1987; ACCATI, 1990; BARBERO, 1991: 269‑264; WIETHAUS, 1993; para a for‑
mação dos tópicos, BROWN, 1988; para as fontes devocionais, MACDONALD, 1998; vários
estudos recentes em BILLER, 1997.
215 COAKLEY, 1991.
216 VAUCHEZ, 1987: 261‑63; BELL, 1987; BYNUM, 1987.
217 GOODICH, 1982:179‑184.
218 VAUCHEZ, 1988:590‑615.
219 KLANICZAY, 1990: 95‑110.
220 KLEINBERG, 1992:30‑39.
221 NUNES, 1921. ROSA, 2000: 470‑480.
222 Estudos principais: VASCONCELLOS, 1894; MUÑOZ FERNANDEZ, 1988; MUÑOZ
FERNANDEZ, 1989; FOLZ, 1992; MACHADO, 1993.
223 VAUCHEZ, 1980:19‑56, e VAUCHEZ, 1984.
224 BARBERO, 1991: 285.
225 VAUCHEZ, 1987:212.
226 VAUCHEZ, 1987:203‑209.
227 Quadro genealógico em KLANICZAY, 1990: 100; CARVALHO, 1991.
228 Vida e milagres de Dona Isabel, ed. NUNES, 1921:52.
229 Vida e milagres de Dona Isabel, ed. NUNES, 1921:18‑19; FOLZ, 1992: 147‑149.
230 Vida e milagres de Dona Isabel, ed. NUNES, 1921: 41; MUÑOZ FERNANDEZ,
1989a:1132‑1136; enquadramento destas práticas na devoção das grandes senhoras nobres
suas coevas e próximas, em ROSA, 2000, 470ss. Para o estudo da intervenção da Rainha na
fundação do mosteiro de Santa Clara de Coimbra, importante foco das vivências religiosas
femininas, SANTOS, 2000.
231 MUÑOZ FERNANDEZ, 1989a:1142‑1143.
64 · Maria de Lurdes Rosa
232 Pontos da situação em CORBET, 1986; LAUWERS, 1988; KLANICZAY, 1989: 69‑80;
FLINT, 1991:386‑90 (cristianização da “realeza sagrada” dinástica e linhagística).
233 Vida e milagres de Dona Isabel, ed. NUNES, 1921:20 e 64‑66.
234 Vida e milagres de Dona Isabel, ed. NUNES, 1921:26‑28. Eventualmente, um topos tirada da
vida de Sta. Isabel de Hungria, que, numa das suas versões mais tardias, apresenta um milagre
com algumas semelhanças (SOBRAL, 2000:116).
235 VASCONCELLOS, 1894, Vol.1:273‑74.
236 VAUCHEZ, 1988: 457ss; KLANICZAY,1990:76‑77; ZARI, 1990: 87‑89.
237 ALONSO, 1988.
238 MENESES, 1964: 39‑41.
239 MENESES, 1964: 13‑14.
240 AZEVEDO, 1989.
241 GOODICH, 1982:168‑170; VAN LUIJK, 1959.
242 NOBRE, 1961.
243 MENESES, 1964: 37‑38.
244 Dados sobre as várias tentativas de canonização, MARTINS, 1917:470‑474; MATOS,
1990:137‑142; LIMA, 1993; desenvolvemos o tema em ROSA: 2001: 341‑42 (neste volume,
pp. 88 ss.).
245 GOODICH, 1982:170.
246 KALLENBERG, 1993:260.
247 MARTINS, 1957:141; SOUSA, 1989.
248 MARTINS, 1957:23‑24.
249 A actividade cronística das ordens religiosas militares é mal conhecida; a Crónica da Conquista
do Algarve, onde este episódio se insere, pode encerrar parte da perdida Crónica do Mestre Paio
Peres Correia, que exalta os feitos do Mestre e seus companheiros na reconquista do Algarve,
subalternizando o papel régio (KRUS 1993:176). Assim sendo, o relato da morte dos sete
combatentes e a sua transformação em mártires e protectores das conquistas da Ordem, refor‑
çaria pela via sobrenatural as façanhas dos Cavaleiros de Santiago. Recentemente, Bernardo
Vasconcelos e Sousa explorou uma outra fonte que não a cronística da Ordem – a lápide fune‑
rária de Estêvão Vasques Pimentel –, para alcançar interessantes conclusões sobre a construção
da figura daquele Hospitalário famoso, pelo mentor da obra, precisamente o pai de Nuno
Álvares, o prior Álvaro Gonçalves Pereira SOUSA, 2000: 167‑170; segundo a nova proposta
de Otília Gameiro sobre o culto quatrocentista aos Ss. Veríssimo, Máxima e Júlia, a Ordem de
Santiago também aí teria interesses, através das Donas de Santos (cfr. supra, nt. 57).
250 PINA, 1977:408 (Rui de Pina, Crónica de D. Afonso IV, cap. XXXXI); o relato mais antigo foi
recentemente estudado por BRANCO, 1996.
251 CALADO, 1991:8 (Estoria de Dom Nuno Alvarez Pereyra, cap. 4).
252 CALADO, 1991:198 (Estoria de Dom Nuno Alvarez Pereyra, cap. 80).
253 CALADO, 1991:199 (Estoria de Dom Nuno Alvarez Pereyra, cap. 80).
254 CALADO, 1991: 202 (Estoria de Dom Nuno Alvarez Pereyra, cap. 80).
255 MARTINS, 1957: 181; TAROUCA, 1948.
256 SANTOS, 1928; SANTOS, 1949.
Santos e demónios no Portugal medieval · 65
257 Segundo a descrição de D. Duarte, na carta em que relata a cerimónia a D. Gomes, abade de
Florença (CORTESÃO, 1975, Vol.2:384).
258 PINA, 1977: p. 541 (Rui de Pina, Crónica de D. Duarte, cap. XXIII).
259 BRANCO, 1998:49‑61 e 363.
260 BRANCO, 1998:366‑68. Distancia‑se portanto de MONTEIRO, 1989:48‑52, que defende
ser aí o Condestável representado em claros traços hagiográficos, distinguindo‑se nisso da for‑
ma mais sóbria e realista como é tratado Nuno Álvares Pereira nas crónicas de Fernão Lopes.
261 BRANCO, 1998:387.
262 MONTEIRO, 1989:50.
263 IAN/ TT, Ministério das Finanças, Inventário do Senhor Duque D. Teodósio, 2 vols., dactilogra‑
fados.
264 IAN/ TT, Ministério das Finanças, Inventário do Senhor Duque D. Teodósio, vol. 1, fl. 262.
265 IAN/ TT, Ministério das Finanças, Inventário do Senhor Duque D. Teodósio, fls. 428‑29.
266 “Tres arquas de pinho de frandes das que se fiserão pera os panos da Historia de Nuno Alue‑
res” (IAN/ TT, Ministério das Finanças, Inventário do Senhor Duque D. Teodósio fl.504).
267 A referência é difícil de interpretar: “Hua chronica do conde Nuno Alueres em purgaminho empresa
em purgaminho” (IAN/ TT, Ministério das Finanças, Inventário do Senhor Duque D. Teodósio
fl.263).
268 IAN/ TT, Ministério das Finanças, Inventário do Senhor Duque D. Teodósio fl. 685.
269 IAN/ TT, Ministério das Finanças, Inventário do Senhor Duque D. Teodósio fl.160.
270 MATOS, 1959:18, 24.
271 As linhas que se seguem foram escritas antes da elaboração da tese de mestrado de FONTES,
2000 sobre Fr. João Álvares. Cremos que no essencial não desmentem a análise que o Autor
fez da santidade fernandina, e mantivemo‑las sem alteração de monta. Remetemos, evidente‑
mente, para este trabalho, análise cuidada e muito mais completa do tema. Cfr. ainda, agora,
REBELO 2001‑2002 e REBELO 2007.
272 ÁLVARES, 1960 (Trautado da vida e feitos do muito vertuoso S. or Infante D. Fernando).
273 ÁLVARES, 1960: 7 (Trautado da vida e feitos do muito vertuoso S. or Infante D. Fernando,
cap. [III]).
274 ÁLVARES, 1960: 8‑11 (Trautado da vida e feitos do muito vertuoso S. or Infante D. Fernando,
cap. [IV]-[VII]).
275 Carta cit. em SANTOS, 1930.
276 Carta cit. em SANTOS, 1930.
277 RICARD, 1970.
278 Cfr., por todos, GOMES, 1992:65‑67.
279 SANTOS, 1927.
280 ÁLVARES, 1960: 261 (Trautado da vida e feitos do muito vertuoso S. or Infante D. Fernando,
cap. 42).
281 CARDOSO/ SOUSA, 2002: vol. I‑ 117‑118, p. 124; CUNHA, 1635, 245.
282 ESPERANÇA, 1656, vol. I: 179‑180; MARTINS, 1957:168.
283 ESPERANÇA, 1656, vol. I: 180 e p. 183.
284 ESPERANÇA, 1656, vol. I: 182. É muito curioso que trabalhos de restauro em curso neste
convento tenham posto a descoberto uma tábua pintada com uma figura feminina, que os
66 · Maria de Lurdes Rosa
estudiosos pensam ser identificável com Constança de Noronha. O seu culto teria assim che‑
gado à fase da representação retabular (notícia, com hipótese de identificação, em jornal Pú
blico de 13.02.01).
285 WIRT, 1978.
286 KLANICZAY, 1994; KIECKHEFER, 1994; desenvolvemos o tema das santidades femini‑
nas alternativas ROSA, 1998b: 266‑269.
287 SANTOS, 1967, Vol.II/2:189.
288 SANTOS, 1967, Vol.II/2:191.
289 BARBERO, 1991: 285 ss.
290 A obra de referência, em termos de fontes documentais e análise monográfica, é SANTOS,
1967. O estudo que se segue, de Santa Joana, já foi por nós parcialmente publicado em ROSA,
2000:501ss.
291 Seguimos a edição de SANTOS, 1967, Vol.II/2:225‑301; cfr. MARTINS, 1980: 295‑298, e
SILVA, 1993 e SILVA, 1993a:660‑661.
292 VAUCHEZ, 1987: 245‑249 e 265‑275.
293 Sobre estes textos, ZARRI, 1990: 21‑50; VASTA, 1992; CHANCE, 1999; VOADEN, 1999.
294 PINHEIRO 1967: 264 (Memorial da mujto excellente Princessa, ed. SANTOS, 1967, vol.
II/2).
295 PINHEIRO 1967: 244, 269, 276 e 286 (Memorial da mujto excellente Princessa, ed. SANTOS,
1967, vol. II/2)
296 PINHEIRO 1967: 275, 280, pp.286‑287 (Memorial da mujto excellente Princessa, ed. SAN‑
TOS, 1967, vol. II/2)
297 Sobre a importância devocional das lágrimas, cfr. MATTOSO, 2000; para as bases teológicas,
com uma interessante análise de antropologia religiosa: NAGY, 2000.
298 PINHEIRO 1967: 244 (Memorial da mujto excellente Princessa, ed. SANTOS, 1967, vol.
II/2).
299 PINHEIRO 1967: 295(Memorial da mujto excellente Princessa, ed. SANTOS, 1967, vol. II/2).
300 KLEINBERG, 1992:30‑39.
301 VAUCHEZ, 1987: 272‑275.
302 PINHEIRA 1967: 259, p. 268, p. 271, p.284, pp.255‑256 (Memorial da mujto excellente Prin
cessa, ed. SANTOS, 1967, vol. II/2).
303 PINHEIRO 1967: 264 (Memorial da mujto excellente Princessa, ed. SANTOS, 1967, vol.
II/2).
304 PINHEIRO 1967: 77, 280, 284‑285(Memorial da mujto excellente Princessa, ed. SANTOS,
1967, vol. II/2).
305 PINHEIRO 1967: 242‑243 e 249, 288 e 295 (Memorial da mujto excellente Princessa, ed. SAN‑
TOS, 1967, vol. II/2).
306 PINHEIRO 1967: 240, 245 (Memorial da mujto excellente Princessa, ed. SANTOS, 1967, vol.
II/2).
307 PINHEIRO 1967: 269(Memorial da mujto excellente Princessa, ed. SANTOS, 1967, vol. II/2).
308 PINHEIRO 1967: 262, 271, 273, e 285‑86 (Memorial da mujto excellente Princessa, ed. SAN‑
TOS, 1967, vol. II/2).
309 PINHEIRO 1967: 297(Memorial da mujto excellente Princessa, ed. SANTOS, 1967, vol. II/2).
Santos e demónios no Portugal medieval · 67
310 PINHEIRO 1967: 296(Memorial da mujto excellente Princessa, ed. SANTOS, 1967, vol. II/2).
311 MARTINS, 1951; COSTA, s.d; COSTA, 1985; COSTA, 1987; COSTA, 1989; algumas ob‑
servações em CARVALHO, 1991, CARVALHO, 1991a.
312 ROSA, 1998. (onde defendemos que Amadeu da Silva foi alvo de um tratamento semelhante
ao de D. Jaime, pela “psicologia histórica” de finais do século XIX, que muito contribui para a
incompreensão do percurso religioso destes personagens).
313 MARTINS, 1951: 289.
314 COSTA, 1989: 163.
315 ALMEIDA, 1967‑1971, vol. I: 331; BEIRANTE, 1985:262.
316 COSTA, 1989: pp. 160‑161; GUTIÉRREZ, 1955.
317 MARTINS, 1951: 239‑240.
318 COSTA, 1989:181‑182.
319 COSTA, 1989:163, p. 166.
320 COSTA, 1989:162.
321 COSTA, 1989:163; CARVALHO, 1991: 88.
322 MARTINS, 1951: 240‑242; VASOLI, 1986.
323 MARTINS, 1951: 241; sobre a difusão: CARVALHO, 1991: 89‑91.
324 GUTIÉRREZ, 1967; OMAECHEVARRIA, 1976 [é importante confrontar estas obras com
os dados mais recentes e críticos de COSTA, 1990 na bibliografia cit.. na nt. 311.
325 COSTA, 1989:163‑165.
326 COSTA, 1989:166; A devoção à Imaculada Conceição estava, significativamente, presente em
círculos tão próximos quanto a corte de Beja de D. Beatriz (cfr. ROSA, 1998b: 269).
327 GRAÑA CID / MUÑOZ FERNANDEZ, 1994.
II. Hagiografia e santidade em Portugal
Introdução
Desde os seus inícios, no século XVII, até, sobretudo, ao grande alargamento pluridisci‑
plinar das últimas duas décadas1, a historiografia erudita/ científica da santidade tem vindo
a propor várias leituras funcionais do santo cristão: “sucessor dos deuses”, herói da epopeia
cristã, “mágico branco” – mais recentemente holy man à maneira antropológica, “local fulcral
da inscrição do eterno no presente”2. Estas perspectivas, sucessivamente aperfeiçoados mercê
quer de um melhor conhecimento da natureza das fontes, quer do uso de instrumentos de
análise antropológicos e sociológicos, fazem com que já não se torne possível uma leitura
piedosa da santidade cristã. Uma sua análise histórico‑antropológica tem, assim, de partir de
uma realidade fundamental: a função do santo enquanto elemento central da identificação
das comunidades cristãs, reinterpretado consoante os diferentes contextos epocais. A partir
de dentro, já que se concentra nele a procura de sentido religioso, de exemplaridade; e a partir
de fora, enquanto se insere e é condicionado por uma realidade muito estruturada, o discurso
teológico sobre a santidade. “Fora” e “dentro”, de resto, que se entrecruzam com frequência
nas diferentes realidades que se configuram em torno de uma personagem “santa”: a sua vida
real, a “biografia sagrada” e outros textos que suscita, o culto que a ela se vota, e as formas
de reconhecimento oficial por que pode vir a passar. Todos estes problemas, no contexto
de uma análise histórica, têm de ser antes de mais equacionados a partir dos discursos que
produzem.
O presente artigo aborda o tema em três etapas: primeiro, o lento processo de construção
da hagiografia científica em Portugal; depois, a formação da santidade “territorial” portugue‑
sa; por fim, a evolução dos modelos de santidade entre nós. Dentro destes grandes enquadra‑
mentos tentou‑se ainda aprofundar alguns estudos de caso de santos, beatos e pessoas com
fama de santidade.
variaram entre as diferentes dioceses portuguesas, casos houve em que o trabalho se baseou
num verdadeiro esforço de crítica histórica, cuja influência sobre círculos historiográficos não
eclesiásticos não deve ser minimizada. Não é por acaso que muitos dos mais significativos
nomes da hagiografia crítica desde fins do século XIX estão ligados de algum modo aos
trabalhos litúrgicos ou mesmo já a uma investigação “pura” de hagiografia histórica: António
Garcia Ribeiro de Vasconcelos, José Augusto Ferreira, Carlos da Silva Tarouca, Mário Mar‑
tins, Avelino de Jesus da Costa, Miguel de Oliveira, Pierre David, Joaquim O. Bragança, Pe‑
dro Romano Rocha4. Esta corrente, porém, não se afirmou com facilidade, vindo demonstrar
como a santidade é um assunto delicado, sobretudo quando ligada às identidades territoriais.
A arquidiocese de Braga pode fornecer neste particular um bom estudo de caso, que constru‑
ímos a partir das investigações eruditas de José Augusto Ferreira5.
um homem de vasta cultura e clara inserção nas correntes mais avançadas da época. É nes‑
te contexto que se deve colocar uma nova preocupação – não já só a de promover estudos
críticos, mas a de mandar publicar os próprios textos antigos. Entre 1803 e 1805, saem três
volumes contendo as obras de dois grandes bispos de Braga, São Martinho e São Frutuoso. A
edição deve‑se mais uma vez a um erudito não pertencente à arquidiocese: o cónego de Évora
D. António Caetano do Amaral, da Academia das Ciências de Lisboa. Ao promover‑se a
edição crítica dos textos de dois dos mais antigos e ilustres santos do território, oferecendo‑os
ao estudo e à posteridade, torna‑se possível deslocar a discussão de terrenos desacreditados
em sectores de importância crescente, e em simultâneo oferecer uma saída digna ao partido
contrário. Com efeito, reorientam‑se os critérios valorativos dos pais fundadores, ao refundar
‑se a arquidiocese em grandes personagens de estatuto não menos elevado que São Pedro de
Rates, ainda que menos rico em elementos míticos. Se a este chegara a dar‑se o estatuto de
antigo profeta hebraico, filho do profeta Urias e vindo com doze tribos enviadas por Nabu‑
codonosor de Jerusalém para a Hispânia14, Martinho e Frutuoso são os dois grandes bispos
organizadores, cultos e politicamente influentes de duas épocas prestigiantes, cada vez mais
apropriadas para o passado português, e bracarense em particular – a sueva e a visigótica.
peninsular, Santa Liberata, Santa Quitéria e as suas oito irmãs, os mártires Veríssimo, Máxi‑
ma e Júlia, e São Pêro‑Fins. Num último artigo de globalização sobre a evolução dos próprios
litúrgicos portugueses, traça em linhas claras a evolução do santoral português, fornecendo
ao mesmo tempo quase que uma primeira sociologia dos seus produtores e contextos de
produção. Publicado em 1964, Lenda e História recolhe porém artigos escritos desde 1951;
toma‑se assim contemporâneo da fundamental obra de Mário Martins, Peregrinações e livros
de milagres na nossa Idade Média, que sai pela primeira vez na Revista Portuguesa de História
de 1951. Se bem que circunscrita ao período medieval, a obra traz para a análise histórica
uma plêiade de textos até aí quase restritos à investigação litúrgica, ao uso literário, ou ao
desdém histórico. Vidas de santos e livros de milagres são utilizados numa tentativa de ca‑
racterizar a mentalidade religiosa medieval ainda hoje actual, em termos historiográficos. Ao
mesmo tempo, são revelados vários textos desconhecidos ou de incerto paradeiro, no que era
a segunda das características da investigação de Mário Martins – a história dos textos. Dos
anos 30 ao final da década de oitenta, publicou em várias revistas – na Brotéria em particular
– estudos sobre diferentes hagiografias individuais, livros de milagres, recolhas de lendas, cró‑
nicas monásticas e mesmo processos de canonização caídos no esquecimento, estudos estes
que se mantêm indispensáveis hoje em dia21. Beneficiado tanto pelos seus conhecimentos
de teologia – fundamentais para o correcto enquadramento da natureza e função dos textos
– como por um interesse histórico mais alargado, Mário Martins contribuiu decisivamente
para a definição de um campo de trabalho quase inexistente. Entrara‑se numa relativa para‑
gem, depois das publicações de hagiografias no princípio do século, por eruditos como Pedro
de Azevedo ou J. J. Nunes, com contribuições de filólogos como Leite de Vasconcelos, de
resto quase sempre na Revista Lusitana.
Embora a renovação das problemáticas históricas e literárias dos anos 70 tenha também
influência, é na sequência dos trabalhos do erudito jesuíta que devem ser entendidas duas
correntes posteriores, com crescente vitalidade: os estudos de mentalidade religiosa medieval
e a publicação crítica de fontes hagiográficas, entre as quais avultam as dos códices alco‑
bacenses22. Da publicação de fontes às sínteses interpretativas sobre o texto hagiográfico,
a passagem tem sido mais lenta. Podem ser apontados como motivos o isolamento entre
historiadores e especialistas da literatura, bem como desconhecimento da renovação francesa,
italiana e americana dos estudos sobre a santidade23.
Surgem, no entanto, alguns sinais de renovação, como sejam as tentativas de Maria Clara
Lucas24 e, sobretudo, as duas sínteses recentes de Aires do Nascimento25 e José Mattoso26.
Desde 1996, Maria de Lurdes Rosa tem vindo a analisar as hagiografias medievais, propondo.
o seu tratamento como “textos cultuais” e a sua inserção nos vários modelos de santidade27
Daquele ano data o excelente número da revista Via Spiritus dedicado às “Formas e conte‑
údos da hagiografia em Portugal na Época Moderna”. Refiram‑se, por fim, as numerosas
entradas, sobre as diferentes hagiografias, do Dicionário de literatura medieval galega e portu
guesa, editado em 199328, que participam do mesmo movimento de renovação. Fora do perí‑
odo medieval, destacaremos investigações no seio do Centro Interuniversitário de História
da Espiritualidade, da Faculdade de Letras do Porto. Na sua revista Via Spiritus publicam‑se
importantes estudos directa ou indirectamente relacionados com hagiografia e santidade, ali‑
ás na sequência de um interesse antigo pelo assunto, da parte do seu director. Com efeito, se
para o discurso hagiográfico da época moderna os estudos científicos são menos numerosos
que para o período medieval, datam já de 1970 importantes observações de José Adriano de
74 · Maria de Lurdes Rosa
Carvalho sobre traços hagiográficos n’A vida de Fr. Bartolomeu dos Mártires, de Frei Luís de
Sousa29. A este autor e a Maria de Lourdes Belchior se deve também um artigo de síntese
sobre a espiritualidade moderna, onde os textos de biografias devotas são enquadrados30.
Será ainda a obra de Frei Luís de Sousa sobre o arcebispo bracarense a suscitar uma das raras
análises actualizadas especificamente dirigidas a uma vida de santo moderna, por Ana Maria
Machado, em 199131, a que recentemente se adicionaram os artigos do número monográfico
da revista Via Spiritus acima referido.
Na época contemporânea, no dizer de Michel de Certeau, a hagiografia é antes a “lite‑
ratura devota”, relegada para segundo plano por um discurso intelectualizante sobre a verda‑
de32. Sob essa denominação, no entanto, é um facto indiscutível que continua vivo o género
hagiográfico no mais puro estilo do maravilhoso e sobrenatural, ainda que essas categorias
estejam sujeitas a censuras e autocensuras várias, nem sempre conscientes mas em todo o
caso tornadas necessárias por uma exigência de contenção. Um rápido olhar sobre a produção
escrita relativa aos candidatos à santidade do Portugal contemporâneo33 permite detectar
para quase todos eles obras hagiográficas, muito diferentes de biografias mais científicas
existentes para vários. Com frequência, essas hagiografias tomam uma forma discreta – a
de livros para crianças ou “para o povo”, por vezes ilustrados. As estampas para encomendar
a causa ou para difundir a instituição promotora junto da juventude revelam‑se um outro
veículo de transmissão de uma imagem mais piedosa, mais afectiva, com traços bem diferen‑
tes da sobriedade com que são traçadas biografias em livros a que se pretende dar um outro
estatuto. Por outro lado, as biografias de santos de pendor nacionalista, ao longo de todo o
século XX, e em especial durante o Estado Novo, assentaram muitas vezes nas mesmas ca‑
tegorias que a mais “devota” literatura devota, mesmo quando de sinal contrário. Para certos
momentos e círculos, tem‑se a intuição de que a mitificação – seja piedosa ou patriótica – das
grandes figuras da santidade portuguesa se reforça na literatura de divulgação em exponen‑
cial contrário aos progressos da hagiografia crítica ou da sobriedade processual exigida pelo
direito canónico nas causas de beatificação/canonização.
Seriam necessárias, porém, investigações sobre a literatura hagiográfica da Epoca con‑
temporânea, que, em termos historiográficos, é um campo quase inexplorado. Poder‑se‑ia
verificar, entre outras coisas, a presença de características isoladas em estudos italianos e fran‑
ceses34: a importância dos modelos hagiográficos na “Reconquista católica”, as tensões que
suscitam com os sectores ditos progressistas e de associativismo juvenil (veja‑se a “construção
da santidade” de Maria Goretti para edificação da juventude feminina católica italiana35), a
explosão de figuras exemplares femininas, as tentativas discretas mas empenhadas de con‑
quistar novos meios de difusão, como seja o cinema 36.
A par deste desenvolvimento historiográfico “de fundo”, que temos vindo a caracterizar
por épocas – ou das suas lacunas – cumpre referir a permanência de uma corrente já aludida,
a das monografias de carácter mais erudito sobre cultos específicos, um pouco na linha de
Miguel de Oliveira. E precisamente em relação a este que se situa o importante artigo de
Avelino de Jesus da Costa sobre Santa Iria37. Numa mesma linha se inserem trabalhos do
Autor, sobre cultos a São Bento, São Tiago e São Mateus38 ou ainda a investigação de Carlos
da Silva Tarouca sobre a realidade histórica de São Manços39. As monografias nem sempre
são deste calibre, e é de assinalar que a grande quantidade publicada ao longo das últimas
décadas sobre santos e cultos locais tem valor e estatuto muito desiguais, e funciona com
Santos e demónios no Portugal medieval · 75
frequência, por bairrismo ou por deficiência da divulgação científica, como veículo difusor de
inúmeros erros factuais já esclarecidos.
Para finalizarmos esta breve caracterização da evolução da abordagem historiográfica,
falta‑nos referir o contributo da hagiotoponímia. É entre nós uma área circunscrita, que gi‑
rou sobretudo em torno de dois eruditos estrangeiros, Pierre David e Joseph Piel. Ao primei‑
ro se deve o magistral estudo sobre a difusão e permanência do santoral hispânico nas igrejas
do Entre Minho e Mondego40, em 1947 – pela mesma época, portanto, em que investigavam
Miguel de Oliveira, Mário Martins, Ave1ino de Jesus da Costa, entre outros, e em círculos
algo afins: Coimbra, os meios “universitário‑eclesiásticos”. Também em Coimbra no início
dos anos 50, na Biblos, se publicam os estudos de hagiotoponímica de Joseph Piel. Ainda que
de raiz e objectivos diversos, ligados antes à filologia e história da língua, o seu catálogo de
santos tradicionais hispânicos suas subdivisões, com áreas de incidência dos nomes, fornece
válidos contributos à visão histórica41. Pela força das circunstâncias, são trabalhos de escassa
descendência – um projecto de investigação apresentado em 1984 por H. Barrilaro Ruas42 e
uma tentativa de prosseguimento para a época moderna, mais circunscrito quanto a fontes,
por Cândido dos Santos43.
De maior vitalidade, pelo contrário, é a corrente de estudos sociológicos e antropológi‑
cos sobre cultos e devoções, da qual referiremos algumas investigações de base. Em 1989,
Pina Cabral analisa três formas de cultos estreitamente ligados à santidade, na área do Alto
Minho: os mortos, os corpos incorruptos e os jejuadores44. Partindo do conceito de limina‑
ridade, coloca aquelas entidades como elementos de fronteira, ou mediadores, entre o Além
e o mundo terrestre. No grupo de jejuadores analisados conta‑se de resto Alexandrina de
Balasar, cujo processo de beatificação está introduzido pela diocese do Porto. Como ve‑
remos adiante, é possível avançar ainda mais na análise de casos semelhantes através das
metodologias psiquiátricas45. Dentro da corrente sociológica destacaremos mais três estudos
importantes, sobretudo na reconstrução de conjuntos coerentes de práticas em tomo dos
“homens santos”, e da função social dos mesmos, nem sempre possíveis ao historiador. Em
1991, o doutoramento de A. Santos Silva sobre a cultura popular, onde o estudo de caso se
centra na freguesia de São Torcato e assume como central as relações que os seus habitantes
teceram com o “corpo santo” de “São” Torcato, num presente com um passado de séculos,
também analisado46. Pouco depois, a tese de mestrado de Maria Teresa Rito sobre a Ladeira
do Pinheiro, em 1992, baseada na observação participada no próprio “movimento devocio‑
nal” durante um período suficientemente longo para lhe detectar fases de vida e reacções às
tentativas de rejeição/apropriação por parte das lgrejas institucionais, seja a católica seja a
ortodoxa. É ainda importante uma das opções de análise, ao enquadrar a Ladeira do Pinheiro
num conjunto de manifestações devocionais diversas: aos corpos incorruptos, a videntes, a
casos de intervenção divina, e a padres considerados possuidores de dons especiais (Padre
Miguel de Meimão, Padre António de Mafra)47. Também “popular” e “marginal” à Igreja Ca‑
tólica, mas com permanentes cruzamentos com ela, quanto a adeptos e práticas devocionais,
se situa o culto a Sousa Martins, exemplarmente estudado por José Machado Pais numa obra
publicada em 199448.
No contexto de investigações sobre a religião popular, a santidade tem sido pouco con‑
templada; seria porém fundamental estudá‑la, sobretudo a partir de entidades como as ana‑
lisadas por Pina Cabral e, ainda, dos personagens com dons de cura (dado que o elemento
taumatúrgico era central – quase indispensável – na construção popular da santidade). O
76 · Maria de Lurdes Rosa
colóquio organizado em 1984 sobre “religiosidade popular” oferece algumas pistas neste sen‑
tido, nomeadamente com os artigos de Pina Cabral49 e de António Lourenço Fontes50. Men‑
cionaremos ainda a rica e antiga linha dos estudos etnográficos, que em tomo da “religião”
ou “catolicismo popular” tem vindo a publicar recolhas de tradições indispensáveis à boa
compreensão das diferentes facetas das apropriações “populares” dos santos. Sem pretensões
de exaustividade, referiríamos as Contribuições para uma mitologia popular portuguesa, de Con‑
siglieri Pedroso51, vários estudos de Adolfo Coelho52, as fichas sobre “entidades míticas” e as
recolhas de contos, lendas e peças de teatro de tema hagiográfico, de Leite de Vasconcelos
– entre muitos outros trabalhos seus –, os “registos de santos”, de Luís Chaves53, ou o estudo
sobre a canonização popular de A. Pires de Lima54.
Terminaremos referindo uma última corrente constitutiva dos estudos científicos sobre
hagiografia e santidade, a oriunda da medicina psiquiátrica. E um terreno disciplinar de
abordagem cautelosa, no qual as incursões pouco preparadas teoricamente depressa se to‑
mam prejudiciais. No entanto, a sua utilização por historiadores do fenómeno da santidade
tem dado interessantes resultados, tanto numa abordagem psicológica geral, quanto na aná‑
lise de fenómenos mais particulares como o êxtase, os jejuns prolongados ou permanentes,
as “loucuras religiosas”. Entre outros, poderemos referir “novos historiadores” como Rudolph
Bell55, Caroline Bynum56, G. Raimbault e C. Eliacheff57, ou o colóquio sobre “simulação da
santidade”, organizado em 1989 por G. Zarri58. Mas estava presente também em obras mais
antigas, como a tentativa de nova interpretação por parte de um autor “clássico” como Jean
Leclercq, no seu Nouveau visage de Bernard de Clairvaux: Approches psycho‑historiques, já em
1976 (analisando sem rodeios as relações entre estados psicológicos e santidade)59 ou na
abordagem diacrónica de Joel Saward em 198060.
a ser reverentemente elogiada por um grupo de beatas. Estas reagem com espanto, louvando
as virtudes da personagem, e explicando que está entrevada há 25 anos, e que se “sustenta da
graça de Deus”. E um “milagre dos milagres”, de que “os jornais de Lisboa estão cheios”. A
mais odiosa das beatas, Josefa, ataca com fúria João Eduardo, quando ele sugere à assembleia
devotamente recolhida em torno do prodígio que “a coisa é o que os médicos dizem: “é que
aquilo é uma doença nervosa”. Semelhante opinião é “uma afronta”, algo susceptível de atrair
naquele momento a ira divina, e o homem que a profere alguém “sem religião e sem respeito
pelas coisas santas”, que se deve excluir do convívio familiar67. O episódio é breve, mas Eça de
Queirós pinta magistralmente as posições em confronto, e deixa claro quem seria o vencedor,
numa disputa que fosse realizada em círculos semelhantes: a opinião intransigente das beatas,
que excluem sem remissão quem se atreva a sugerir a loucura da “Santinha”. Através da ficção
literária, condensa‑se o que seria a tendência da sociedade da época, mau‑grado as visitas de
estudo e a ironização de Eça...
Com efeito, ainda em vida de Ana de Jesus Maria José de Magalhães, começa a surgir
uma literatura devota que a “canoniza” de imediato, e propala as suas virtudes curativas(em
1873, o folheto A Santa de Arrifana do concelho de Feira, na Vila da Feira). De tal modo, que as
diferentes instâncias de controlo eclesiástico do fenómeno se sentem na obrigação de produ‑
zir “escritos verídicos” e conformes às normas. Esta acção tomava‑se tanto mais importante
quanto, de facto, a pessoa em causa multiplicava as visões e fenómenos extraordinários, entre
os quais profecias que se teriam cumprido, quase sempre relativas à difícil situação então vivi‑
da pela Igreja. E assim que de 1876 a 1877 surge n’O Mensageiro do Coração de Jesus, periódico
expressivo do catolicismo intransigente, publicado pelos Jesuítas, o artigo de José Maria de
Almeida Garrett, sobre a vida de Ana: História das maravilhas que o Senhor obrou com a alma
devota e singela entregue ao seu divino amor. O opúsculo de 1873 é aí acusado como “falsa
história destas maravilhas, que parecia mais bem escrita para obscurecer os factos que formar
história. Escreveram o falso e o inverosímil para que, depois, não se acreditasse o mais possí‑
vel no verdadeiro”68. Não por acaso, algumas visões de Ana, que tinham contornos bastante
alegóricos, são “interpretadas” por José Maria de Almeida Garrett. À visão das “serpentes
aquando da contemplação das chagas de Cristo”, de 16 de Janeiro de 1858, atribui o autor o
significado de que “as serpentes simbolizam os pecados que abriram aquelas chagas de Jesus
e, em todo o tempo, são sensíveis aos agravos feitos a Jesus Cristo”. Relatara Ana, sobre a
visão de 25 de Fevereiro de 1859: “meditando na desmoralização destes tempos, cheguei
a temer os grandes castigos que caíam sobre Sodoma, mas vi, perto de mim, uma criatura
que suspendia as iras da Divina Justiça”; interpreta o autor: “talvez Maria que, por aqueles
tempos, apareceu em La Salette, interessada em apartar da Europa esses grandes castigos,
que a Devota Serva de Deus temia”69. As visões são com efeito extremamente referenciadas
a acontecimentos de então, sendo a “serpente” identificada por vezes com a França e Roma,
e o papa sofredor com Gregório XVI, afligido pelas nações ímpias e pelos “maus sacerdotes
que, do lado esquerdo da Igreja, se refocilavam” (1845 a 1 848)70. O caso irá seguir o seu curso,
com atenção cada vez mais precisa das autoridades eclesiásticas. Em 1915 o bispo do Porto,
D. António Barroso, nomeia um sacerdote para “entregar à escrita todos os testemunhos,
documentos e tradições” relativas a Ana de Jesus Maria José. O resultado, um texto intitula‑
do Honroso testemunho da vida e virtudes cristãs de Ana de Jesus Maria José de Magalhães, será
publicado em 1920. O processo será retomado formalmente em 1933, seguindo a partir daí
trâmites vários que não interessam de momento71.
Santos e demónios no Portugal medieval · 79
Entretanto, Manuel Laranjeira pronunciava o seu veredicto clínico sobre Ana de Jesus
Maria José: ela fora um caso típico de “êxtase galopante”, de contornos quase inevitáveis,
dadas as suas histórias familiar e pessoal. Com efeito, “pertencia a uma família de loucos e
de místicos”. O pai, um tio, um irmão e uma sobrinha sofriam de loucuras várias; o irmão,
“padre e talvez místico, sofria de monomania religiosa. Naturalmente, a loucura religiosa
deste padre era a psicose mística, talvez complicada de degenerescência”. O problema da
adolescência teria sido de natureza histérica; os êxtases seriam “estados cataplégicos”, e o
jejum, a não ser “uma piedosa” fraude, explicar‑se‑ia também pela histeria72. As citações, por
breves que sejam, e por datados que estejam os parâmetros de análise, evidenciam um acen‑
tuado simplismo, que percorre todo o texto. Para além da explicação pela universal histeria
feminina e degenerescência familiar (duas figuras constantes da psiquiatria de inícios do
século, extremamente contestadas quanto à sua fundamentação clínica), as bases empíricas de
Manuel Laranjeira são frágeis. Não só se baseia num testemunho indirecto – apontamentos
de um colega, médico local – como tira conclusões erróneas de factos explicáveis com recolha
de informação concreta. E o caso das longas considerações sobre o nome da “santa”, que
abrem o texto. Pela sua composição, ele indicaria, só por si, a loucura congénita: “feito com
os nomes místicos da Sagrada Família, é um elemento patogénico precioso, indicando na as‑
cendência da santa uma feição acentuadamente mística. Esse nome, creio poder afoitamente
interpretar‑se como sendo um verdadeiro sintoma psicopatológico de misticismo na família
da santa”. Ora, na realidade, esse não fora o nome dado pelos pais de Ana no baptismo, mas
sim adoptado por ela em consequência de certas experiências místicas73.
de que Lisboa lhes pertencia – nada menos que o sangue dos mártires Veríssimo, Máxima
e Júlia, aí executados pela sua fé, no tempo dos Romanos81. De facto, Lisboa era demasiado
fulcral, em termos do avanço de Afonso Henriques, e da justificação aos olhos dos cruzados
do Norte, para não se investir na sacralização da sua reconquista.
Este texto é uma das peças, a primeira, da construção de um espaço sagrado para a cidade
de Lisboa a partir da mais prestigiante base: os mártires da fé. Ao sangue dos mártires dos
imperadores romanos, antigos adversários do cristianismo, junta‑se o dos mártires de Lisboa,
que são os cruzados mortos pelos muçulmanos, novos inimigos da fé. Com efeito, em torno
dos guerreiros falecidos em combate vai assim gerar‑se um movimento devocional importan‑
te, na Lisboa reconquistada. O Indiculum Fundationis Monasterii S. Vincentii, escrito talvez
a partir de relatos de testemunhas presenciais ao cerco, durante os reinados de Sancho I, ou
Afonso II, conta como, com aprovação do arcebispo D. João Peculiar, o rei manda fazer dois
mosteiros para dar sepultura aos cavaleiros estrangeiros mortos no cerco82: o de São Vicente
e o de Santa Maria dos Mártires. No discurso posto na sua boca, está condensada a circu‑
laridade que referimos: “Importa, pois, que também nós demontramos cuidado e dedicação
por eles, no que toca a enterrar os corpos daqueles que caem de entre eles, e or isso levemos
a cabo as suas exéquias com honras dignas de mártires de Cristo. Efectivamente, não tenho
dúvidas de que, por misericórdia de Deus, no céu serão associados aos santos mártires, pois
fica comprovado, pelo seu grande empenhamento, que seguiram os passos deles na terra”83.
Figura exemplar desses mártires anónimos é o cavaleiro Henrique de Bona, que tem no
Indiculum uma pequena “vita” e uma colecção de milagres, depois bastante ampliadas na Cró
nica da fundação do Mosteiro de S. Vicente, tradução parafrásica feita talvez no século XV84. Ele
é o santo do cerco de Lisboa, sobre cuja sepultura se sucedem os milagres, e onde acabará por
nascer uma palmeira, indício claro de que o martírio fora aceite por Deus85. De acordo com
o costume da época, em que as autorizações de cultos não pertenciam ainda à Sé de Roma,
o arcebispo de Braga e o bispo de Lisboa, Gilberto, autorizam os cónegos de São Vicente a
celebrarem festa particular aos guerreiros falecidos enquanto “santos mártires”, sendo‑lhes
composta uma oração própria86. A crónica quatrocentista de Duarte Galvão, que volta a
tratar extensamente do culto aos guerreiros falecidos, refere a prática devocional de Afonso
Henriques junto das sepulturas dos “santos mártires”: quando se sentia doente, deitava‑se em
oração sobre elas e logo melhorava87.
À construção, assim realizada, de um espaço sagrado específico – Lisboa libertada pelos
mártires para a recristianização –, irá colocar‑se como pedra‑de‑toque o culto a São Vicente.
Este, para além de ser um dos mais prestigiados mártires hispânicos, gozava de uma grande
difusão europeia, em termos de culto. As suas relíquias serão resgatadas de território ainda
infiel a mando de Afonso Henriques, que as colocará no novo espaço santificado pela reunião
de sangue dos dois ciclos de mártires. Como sintetiza Luis Krus: “O corpo é recuperado em
plena Reconquista. Tal como antes acontecera com São Tiago, em relação à Galiza, também
São Vicente se exila por mar em terras cristãs. Foge do espaço profanado pelo Islão e restituí
‑se aos fiéis, oferecendo‑lhes as suas relíquias, os seus poderes taumatúrgicos. Percorrendo
um itinerário marítimo inverso ao dos invasores da Cristandade, profetiza um retomo vito‑
rioso, simbolizado pelo seu próprio nome”88.
A justificação da expansão para Sul dos guerreiros do Norte e do Centro, enquanto recu‑
peração dos lugares onde repousavam os “santos evangelizadores” e os “mártires da fundação
cristã”, está assim terminada. Pela passagem do espaço sagrado local à sacralização do reino,
82 · Maria de Lurdes Rosa
ter‑se‑á de esperar quase quatrocentos anos. Com efeito, um esboço de primeira territoriali‑
zação portuguesa da santidade surge apenas em 1513, com a compilação dos santos extrava‑
gantes ao Flos Sanctorum impresso nesse ano. O conjunto baseia‑se com toda a probabilidade
em recolhas litúrgicas das dioceses e ordens religiosas, e talvez também em fontes de outra
natureza, como as tradições locais89. Compilado em inícios do século XVI, a investigação
recente sobre a sua “autoria” aponta para um Cónego de S. João Evangelista. Fr. Paulo de Por‑
talegre90. No presente contexto, interessa‑nos referir que existe uma clara intenção, por parte
do compilador, de alterar a colecção de “extravagantes” hispânicos do exemplar castelhano
da Legenda Áurea cuja tradução constitui o Flos Sanctorum propriamente dito. Com efeito, a
comparação com o exemplar em castelhano, existente no Museu Britânico, permite verificar
a supressão das vidas de treze santos, onze dos quais espanhóis ou com lugares de culto em
Espanha. Será especialmente significativa a eliminação da vida de D. Femando III, o Santo,
ao mesmo tempo que se mantém a de São Luís de França91. E que, pela positiva, se afirma
a importância dos “santos portugueses”: “E nom menosprezando nem esquecendo os nossos
santos que nos reinos de Portugal resplandecem por muitos milagres, acrescentamentos des‑
tes à presente dezanove vidas.” A difusão do património sacro “territorial” é acompanhada de
uma intenção didáctica e edificante – foi realizada uma tradução do latim para que os que
ignoram essa língua “não sejam privados de tão excelentes e maravilhosas vidas e exemplos. E
por que cada um estando em sua casa despenda o tempo em ler tão excelentes e santas vidas
e exemplos que outras histórias vãs ou livros de pouco fruto”92.
Esclarecer quais são os “santos portugueses” – ou seja, quais as bases de atribuição da
“naturalidade” a um santo – torna‑se porém um pouco mais difícil. Onze deles são seguros:
Veríssimo, Máxima e Júlia; Gonçalo de Amarante; Geraldo de Braga; São Frutuoso; São
Victor de Braga; Santa Iria; Santo António; Vicente, Sabina e Cristeta; São Pero Gonçalves;
a trasladação de São Vicente; a trasladação de São Pantaleão. De outras duas santas, sabemos
que se discute mais tarde a sua origem portuguesa, num debate que poderia ser anterior:
Quitéria e Engrácia93; a um terceiro, São Goldofre, assaz desconhecido de resto, sabemos
ter existido culto no centro de Portugal, Portugal, na Idade Média94. Os santos Crispim e
Crispiniano foram distinguidos pelo facto de Afonso Henriques ter escolhido o seu dia para
tomar posse solene da Lisboa reconquistada, e a partir daí o seu culto teve alguma impor‑
tância na cidade95... Os critérios da territorialização revelam‑se portanto não imediatamente
descodificáveis, sintoma de que os dois espaços, o sagrado e o geográfico, não coincidiam
de modo óbvio96. No entanto, sejam quais forem os seus critérios, no fim do século xv está
definido um conjunto de personagens exemplares conterrâneas dos portugueses receptores
do Flos Sanctorum, que se desejam público alargado e leigo. Numa das vidas recolhidas pelo
compilador, da autoria de Frei Paulo de Portalegre, lóio quatrocentista e confessor do duque
de Bragança D. Fernando97, refere o próprio Paulo que tivera ocasião de verificar como este
público prezava e multiplicava as maravilhas dos seus santos. Quando andava pelo Alentejo
com o pregador das indulgências da Capela de Santo António de Lisboa: “recontavam[‑lhe]
as gentes as infindezas dos milagres deste glorioso santo”98. No cólofon da obra, estes e outros
sucessos milagrosos são o sinal visível do espaço territorial celeste: “os muitos milagres com
que em Portugal resplandeciam os santos”99.
A característica de base dos santos portugueses, neste momento – sejam quais forem
as fronteiras da sua inclusão – parece ser portanto a ajuda milagrosa aos conterrâneos.
Em relação ao tom épico da protecção guerreira e vitoriosa dos vários estratos de mártires
Santos e demónios no Portugal medieval · 83
nacionalistas não estavam em jogo”, não hesita em afirmar que o famoso humanista “cede já à
preocupação que será a dos autores dos Falsos Cronicões: exaltar uma cidade, um santuário, uma
abadia, permite manipular os textos e mesmo forjar inteiros documentos”105...
Os grandes organizadores desta “casa em desordem” irão ser os Jesuítas. O culto dos
santos era demasiado central no catolicismo pós‑Trento para ser deixado de lado pelos prin‑
cipais obreiros da Contra‑Reforma. A formação intelectual e universitária, por outro lado, vai
contribuir para o interesse de um escol de Jesuítas nas pesquisas críticas sobre os cultos mais
antigos: é no seio da Companhia que, desde fins do século XVI, com R. Roswey, nasce e se
desenvolve o programa de edição crítica de textos dos futuros bolandistas106. Por outro lado,
e isto numa vertente que até hoje se mantém, como adiante veremos, a Companhia de Jesus
é também especialista numa versão “mais popular” do culto dos santos, onde as preocupações
críticas se subalternizam à exemplaridade e à função catequética107.
A “arrumação”, subordinada a estas duas grandes linhas, tem a sua expressão, em fins do
século XVI, na preparação do primeiro martirológio de âmbito nacional, impresso em 1590
sob responsabilidade “de alguns padres da Companhia de Jesus”108. A lista de santos, que
reproduzimos abaixo, é uma síntese das duas correntes; incluem‑se os santos das tradições
locais acompanhados de “advertências críticas” (Santa Comba, São Frutuoso, abade, Santa
Godinha, Santa Vilgerforte, Santa Engrácia), unificando‑os pela presença conjunta ao ter‑
ritório de todo o reino:
Janeiro
10 – São Gonçalo de Amarante – Amarante
16 – Santos Mártires de Marrocos – Coimbra
21 – Vigília de São Vicente – arcebispado de Lisboa
22 – São Vicente – Lisboa
Fevereiro
1 8 – São Teotónio – Coimbra
Março
1 – São Rosendo – Portugal
20 – São Martinho – Braga
Abril
12 – Martírio de São Victor – Braga
16 – Santa Engrácia – Portugal; São Frutuoso, arcebispo – Braga; São Frutuoso, abade
– Constantim, termo de Vila Real
22 – Santa Senhorinha – Basto; Santa Godinha – Basto
26 – São Pedro Mártir (Rates) – Braga
Maio
1 4 – São Frei Gil – Santarém
17 – Trasladação de São Torpes – Sines
21 – São Manços – Évora
22 – Trasladação de Santiago Interciso – Braga
Santos e demónios no Portugal medieval · 85
Junho
12 – Vigília de Santo António – arcebispado de Lisboa
1 3 – Santo António – Lisboa
Julho
4 – Santa Isabel – Coimbra
20 – Coroa de Santa Vilgeforte – Portugal
27 – São Pantaleão – Porto
Agosto
1 – Trasladação de São Félix – mosteiro de Chelas, Lisboa
Setembro
14 – Vigília da Trasladação de São Vicente – arcebispado de Lisboa
1 5 – Trasladação de São Vicente – Lisboa
Outubro
1 – Santos Veríssimo, Máxima e Júlia – Lisboa
17 – Trasladação de São Pedro Mártir (Rates) – Braga
20 – Santa Iria – Santarém
25 – Conquista de Lisboa e Santos Crispim e Crispiniano – Lisboa
27 – Santos Vicente, Sabina e Cristeta – Évora
30 – Batalha do Salado – Évora
Dezembro
5 – São Giraldo – Braga
11 – São Dâmaso, papa – Portugal
12 – Trasladação de São Pantaleão – Porto
1 8 – Expectação da Virgem (“Senhora do Ó”) – Portugal
3 1 – Santa Comba – Coimbra
portanto os critérios da pertença ao reino. São de Portugal todos os santos que se ligaram a
ele seja pelo nascimento, seja pela morte, seja pela presença de relíquias110.
Esta teorização ganhará novo alento com Jorge Cardoso, o grande especialista seiscentis‑
ta dos santos portugueses. Começara por compor, em 1637, o Officio menor dos santos de Por
tugal, no qual se tratava de distribuir uma lista de “portugueses”, bem mais alargada que a dos
Jesuítas, não já pelo calendário civil, mas pela liturgia das horas. A sua grande obra é porém
a que começa a editar em 1652, significativamente intitulada Agiológio Lusitano dos Sanctos e
Varoens illustres em virtudes do Reino de Portugal, e suas conquistas 111. Nas longas “Advertências”
ao primeiro volume, Jorge Cardoso apresenta três novos critérios de apropriação de santos:
o “nascimento espiritual” (baptismo), a dignidade (ter exercido uma função eclesiástica no
território) e a habitação. Vai, porém, ainda mais longe, porque discute as próprias fronteiras
históricas: pertencem a Portugal os santos da antiga Lusitânia, os da Galiza (porque estivera
sujeita espiritualmente a Braga) e os de todas as conquistas ultramarinas portuguesas. Por
fim, alarga ainda as classes das personagens incluídas: para além dos santos canonizados, dos
beatos e dos mártires têm lugar as pessoas “de esclarecida virtude, e acreditadas no céu com
maravilhas”, e as de “conhecida e exemplar vida, dignas de se proporem para imitação”112.
A operação de Jorge Cardoso é, pois, de escopo grandioso – alarga enormemente o espa‑
ço da santidade portuguesa, e consegue obter personagens para preencher com ela o tempo
de todo o calendário. Não é por acaso que o Agiológio Lusitano surge no contexto das guerras
da Restauração, em que urgia recuperar o prestígio de Portugal, e incutir‑lhe forças para
enfrentar os perigos. Jorge Cardoso termina as “Advertências” com uma oração aos santos de
Portugal, para que intercedam junto de Deus por este “devoto Portugal, pátria vossa: para o
qual o vedes cercado, e combatido, de tão poderosos inimigos, e calamidades, não cesseis no
divino conspecto de lhe impetrar soberanos favores, e de seus adversários gloriosas vitórias,
para que livre desses possa com mais quietação empregar‑se todo no divino culto em vosso
serviço, divino obséquio e religiosa veneração”113.
No mesmo contexto se devem colocar duas outras apropriações de santidade ao serviço
do empenho patriótico, embora de diverso critério. A primeira foi composta por volta de
1616, e consta de uma lista dos ascendentes santos dos duques de Bragança, os futuros mo‑
narcas de Portugal. Feita por iniciativa do arcebispo de Braga D. Aleixo de Meneses, elenca
dezassete santos de diferentes nacionalidades, desde o rei Segismundo, martirizado no ano
de 520, até à rainha Santa Isabel114. É assim definida uma beata stirps, que acumula prestígio
para a dinastia que se tentava lançar como candidata a polarizar a oposição ao reino castelha‑
no. É interessante esta reutilização da santidade dinástica, comum na Idade Média mas caída
em desuso a partir do humanismo e em definitivo depois de Trento, e congregando uma série
nunca antes tão vasta de antepassados santos.
Uma outra lógica, de um universalismo mais doutrinário e eclesiástico, mas também ao
serviço do patriotismo defensivo, preside ao elenco de santos portugueses apresentado no
sermão de Frei Cristóvão de Lisboa pregado em 2 de Março de 1646, na Capela Real. Aí é
o reino o sujeito da congregação de santos, e estes estão distribuídos por tipos de santidade:
ainda antes de ter reis próprios, já Portugal contava com o primeiro mártir e as primeiras
mártires da Europa (São Pedro de Rates; Santa Quitéria e irmãs), o primeiro confessor
canonizado com solenidade (São Rosimundo), o primeiro anacoreta (São Félix). Depois dos
“reis próprios”, sucederam‑se inúmeros santos, vários fundadores de ordens religiosas, santos
evangelizadores das terras ultramarinas e, por fim, “nenhum reino do mundo teve tantos reis
Santos e demónios no Portugal medieval · 87
Se a apropriação estatal da “santidade” também serviu a Igreja, esta não deixou de alimen‑
tar publicações próprias sobre o assunto, como que frisando que, apesar de serem patriotas e
exemplos cívicos, os santos eram afinal, antes de mais, católicos. O delinear de 1984 da figura
de Nuno Álvares, por D. António Ribeiro, acima referido143, é um exemplo. Outros serão as
colecções sobre santos, talvez mais importantes pelo que revelam de “programa editorial”. Neste
sentido destacaremos dois exemplos – os diferentes livrinhos infantis de “Maria da Soledade”
(pseudónimo literário) e a obra mais “séria” de João Ameal, Santos de Portugal144, significativa‑
mente publicada com um prefácio de D. Manuel Trindade Salgueiro, arcebispo de Évora.
Maria da Soledade é um caso de longevidade literária prolongada, uma vez que publica,
pelo menos, entre 1947 e 1981. Por outro lado, é também um dos mais significativos casos
de “escritora especializada” em hagiografias, servida algumas vezes por editoras também elas
especializadas, como a do Apostolado da Imprensa (AI). A “obra hagiográfica” de Maria da
Soledade abarca vários santos e candidatos a tal: Gonçalo da Silveira145, Bartolomeu dos
Mártires146, São João de Brito147, Nuno Álvares Pereira148, os Mártires do Brasil149, Santa
Joana Princesa150. Misto de hagiografia infantil e didáctica, com obra literária, tem títulos
em consonância: o de São João de Brito, para crianças, intitula‑se O sonho do Joãozinho, o
herói do Maduré; no dos Mártires do Brasil, o tom é dado pelo título Uma página de epopeia.
Conferem‑lhe autoridade os prólogos e prefácios assegurados por entidades eclesiásticas de
vulto: Domingos Maurício Gomes dos Santos para Gonçalo da Silveira, Raul Rolo para
Bartolomeu dos Mártires. O primeiro, de 1947, coloca a obra dentro de parâmetros bem
claros: “Já que, na rota do Império, a falange dos soldados da Cruz é cada vez mais neces‑
sária, aponte a ilustre autora, nesse quadro tão simpático da vida familiar como é aquele em
que sempre nos coloca, ao falar aos pequeninos portugueses de hoje, os heróis de ontem. A
história missionária de amanhã será, assim, digna do Portugal de sempre.”151 Já o segundo, de
1983, coloca‑se numa perspectiva totalmente diferente. Sendo o seu autor o maior estudioso
e historiador de Bartolomeu dos Mártires, apresenta a obra de Maria da Soledade como uma
divulgação popular do saber científico: “Com a preocupação de ser clara e breve, transmite,
por vezes num simples adjectivo, as vibrações da alma heróica do Venerável, ou mete num
inciso de frase uma nova conclusão histórica largamente documentada e debatida em traba‑
lhos monográficos. “Toma e lê”. Com a breve e amena leitura deste livro ficarás a conhecer
melhor e a estimar com sólidas razões a maior alma de Prelado, de Apóstolo e de Santo de
muitos séculos de Portugal”152.
A par de Maria da Soledade, João Ameal é o divulgador para as elites153. A sua obra reflecte
um programa mais vasto, e assume a responsabilidade de ser a primeira recolha de santos
portugueses do pós‑laicismo, que os tenta apresentar num registo a meio caminho entre o
estudo histórico e a religiosidade esclarecida. As personagens estudadas dividem‑se em três
grandes grupos: os santos portugueses (São Teotónio, Santa Isabel, Santo António, São João
de Deus, São Gonçalo Garcia, São João de Brito), os “pré‑portugueses” (São Martinho de
Dume, São Frutuoso, São Rosendo, Santa Senhorinha e São Geraldo), e os beatos (infantas
Sancha, Teresa e Mafalda, Gonçalo de Amarante, Gil de Santarém, Gonçalo de Lagos, Nuno
Álvares Pereira, infante D. Fernando, João e Beatriz da Silva de Meneses, princesa D. Joana
e Inácio de Azevedo). O prefácio de D. Manuel Trindade Salgueiro fornece um enquadra‑
mento muito importante, por duas razões principais. Em primeiro lugar, demarca‑se de urna
“hagiografia devota” e “milagreira”, impondo uma crença na santidade fundada numa teolo‑
gia mais exigente e esclarecida: “João Ameal não pertence àquela categoria de autores que
Santos e demónios no Portugal medieval · 91
pretendem fazer‑nos acreditar, com as suas miragens e suas fantasias, que tudo, nos santos, se
passa em atmosfera de milagre. [...] A santidade é sempre heroísmo que, em carne tão frágil,
só se explica pela força visível que penetra a pessoa humana, elevando‑a aos desígnios de
Deus”154. Em segundo lugar, tanto por parte do autor como do prefaciador, representa uma
das primeiras e claramente assumidas tentativas de ultrapassar um “nacionalismo religioso”
quase sempre algo estreito e comprometido, que se vinha afirmando quase desde... Jorge
Cardoso, trezentos anos antes: “A participação de Deus implica a universalidade do santo.”
Referindo‑se ao nascimento de João Cidade, em Montemor‑o‑Novo, pleno Alentejo, escreve
João Ameal que “podemos bem proclamar que se trata de um Santo Português”. Mas, pouco
depois, pergunta, com razão: “Fará sentido, aliás, insistir em sublinhar a nacionalidade dum
Santo?” E em explanação magnífica: “Na verdade, os raros que à santidade se elevam, deixam
de caber nos limites exíguos de uma pátria, e tornam‑se expoentes de glória universal. Parece
absurdo reduzi‑los à estatura comum, avaliá‑los à luz de perspectivas ultrapassadas”155.
Se representa uma viragem, em termos de avanço teológico e histórico, as próprias cara-
cterísticas externas do livro, cuidado e caro, de tiragem limitada, indiciam que se destinava a
um público muito diverso da hagiografia de divulgação, de cariz popular. Existiam assim, e
alimentavam‑se conscientemente, na mesma esfera católica níveis bem diversos de discursos
sobre a santidade...
As últimas obras que referiremos neste ponto são também “recolhas de santos”, e situam
‑se a meio caminho entre as duas correntes que definimos. Distinguem‑se porém da obra
de João Ameal enquanto não manejam a linguagem histórica de forma independente, mas
sim subordinada à edificação dos fiéis. Os “santos de Portugal” são, para o padre jesuíta Es‑
tanislau Martins da Gama, “esta maior glória e melhor tesouro nacional”, “bem dignos dum
mais atento e devoto conhecimento, e dedicada estima. Esta lhes continua a manifestar, com
todas as suas festas e romarias, rezas, velas e flores, o bom povo lusitano, como aos mais altos
personagens, a Legião Sagrada, qual significa, para todos, a Hagiografia Nacional Portugue‑
sa”156. A obra retoma o esquema seguido por Jorge Cardoso em 1637, distribuindo os santos
pela liturgia das horas. Embora forneça uma primeira lista bastante útil para a abordagem do
tema, era decididamente “de dentro”, e visava uma divulgação de carácter devoto. E a mais
recente obra de conjunto sobre os santos portugueses, Os santos de cada dia, compilado por um
outro jesuíta, José Leite157, tem âmbito universal e segue a ordem do calendário. À lógica da
nacionalidade preferiu‑se portanto a do tempo cristão, e os santos portugueses encontram‑se
sob as respectivas data de festa. No entanto, existe um apêndice dedicado aos “portugueses
a caminho do altar?”, e um outro aos “santos e beatos portugueses”, reproduzindo os índices
de Martins da Gama. É de novo uma obra de devoção, onde as lendas hagiográficas nem
sempre são interrogadas (é o caso de Santa Engrácia, São Gaudêncio de Évora, Santa Gema.
os santos Vicente, Sabina e Cristeta, São Victor de Braga). Noutros casos, apesar de se referir
expressamente a falta de fundamento histórico, transcrevem‑se as lendas, por vezes com a
justificação de “não privar os leitores duma das mais interessantes criações da imaginação
popular sobre hagiografia” (“lenda de Santa Marinha e oito irmãs” que, como demonstrou
em 1964 Miguel de Oliveira, é de facto imaginada, mas não pelo “povo”)158. Tanto uma como
a outra obra devem ser incluídas dentro da “literatura devota”, na qual a verdade histórica é
um critério secundário.
Referiríamos por fim, ainda que brevemente, a importância de estudar algumas condi‑
cionantes do campo discursivo católico hagiográfico e sobre a santidade, que decorrem dos
92 · Maria de Lurdes Rosa
agentes que nele trabalham e das suas ligações orgânicas. Nas várias “Reconquistas Católicas”
dos últimos dois séculos são elementos fundamentais os “escritores” e a rede editorial “ao ser‑
viço da causa”. No campo da produção hagiográfica, e de um modo mais geral nos diferentes
registos da construção da santidade, os sentidos são também determinados por quem se
encarrega de escrever e por quem publica. Numa primeira análise, a partir dos levantamentos
bibliográficos realizados em 2000159, podemos referir as ideias que se seguem.
Em termos de autores, os mais especializados estão ligados invariavelmente a ordens reli‑
giosas. o que determina de forma óbvia algumas das características desta produção escrita. O
grupo mais numeroso é, de longe, constituído por Jesuítas: desde os compiladores José Leite
(Santos de cada dia; Padre Cruz) e E. Martins da Gama (Santos de Portugal), ao hagiógrafo
mais polivalente, Dário Pedroso (São João de Brito, Luísa Andaluz, Maria da Conceição Pinto
da Rocha), passando pelos mais circunscritos Mariano Pinho (para Alexandrina de Balasar),
Joaquim Abranches (Maria da Conceição Pinto da Rocha) e Fernando Leite (Sílvia Cardoso,
Abílio Gomes Correia). Mas existem hagiógrafos especializados de outras variadas proveniên‑
cias, cujas ligações aos biografados variam: Humberto Pasquale (Alexandrina de Balasar), Ga‑
briel de Sousa (Bernardo de Vasconcelos, padre Américo), Maria Lumi, pseudónimo ( Jacinta
e Francisco), Oliveiros de Jesus Reis (Sãozinha), Porfírio Gomes Moreira (Ana de Jesus Maria
José de Magalhães). Existem depois as biografias realizadas por membros das próprias ordens,
especialmente numerosas para as figuras femininas das congregações contemporâneas.
Seria necessário proceder a uma sociologia bem mais aprofundada dos autores, para se
poderem tirar conclusões de fundo. Arriscamos aqui apenas algumas primeiras hipóteses.
Não é por acaso que os Jesuítas surgem em número significativo neste panorama. Já os vimos
como “especialistas da santidade” em épocas anteriores, e é conhecido o seu envolvimento
na “edição e imprensa católicas”, entre nós, nos dois últimos séculos. São eles de resto que
acusam uma maior autoconsciência dessa forma de apropriação “territorial” da santidade que
é a da própria família religiosa... Apenas a título indicativo, a Companhia de Jesus publica
sobre os seus santos, beatos e “proto‑santos” obras que preenchem um largo espectro: o sóbrio
e completo Ano Santo da Companhia de Jesus em Portugal, em 1930160; a colecção “Santos da
Companhia de Jesus”, de pequeno formato, económico e devoto (anos 30 e 40); e os Santos e
beatos da Companhia de Jesus, já em 1974, no Apostolado da Oração (obra de carácter históri‑
co, bastante contida em termos “devotos”, e onde as biografias de portugueses são entregues a
membros da Companhia, mas em simultâneo historiadores especializados sobre elas)161. De
que forma surgem como hagiógrafos de personagens fora da sua família religiosa, será algo
a esclarecer caso a caso. Maria da Conceição Pinto da Rocha, por exemplo, sempre esteve
sob a direcção espiritual de jesuítas, a começar pelo próprio irmão... Por outro lado, a partir
das várias edições do Index ac Status Causarum162, verifica‑se que são jesuítas os postuladores
romanos de diversas causas portuguesas... Numa análise mais profunda, que aqui apenas
podemos aflorar, esta continuada presença e interesse da Companhia de Jesus pelos “santos”
terá a ver também com o carisma próprio da sua espiritualidade: uma concepção da perfeição
cristã como resultado da acção da graça divina no esforço humano. Os santos aparecem como
exemplo de virtudes que podem ser alcançadas pelo homem e portanto como estimulo para
todos os cristãos buscarem a perfeição163.
Nos outros casos apontados, temos a lógica dos párocos (para a Sãozinha e Ana de Maga‑
lhães), a dos directores espirituais (Alexandrina) e, mais generalizada, como referimos, a dos
membros de uma ordem que escrevem sobre o fundador. Neste caso as biografias podem ter
Santos e demónios no Portugal medieval · 93
objectivos não só hagiográficos, e inserir‑se, as mais das vezes, em tentativas de fazer avançar
os processos de reconhecimento oficial.
Para além dos autores, existe também uma rede de editoras mais atentas às hagiografias.
Para além do já citado “Apostolado da Imprensa”, surge como grande editora destas obras o
“Apostolado da Oração”, e os prelos de obras religiosas ou dioceses por detrás de determi‑
nados cultos: o Instituto da Sãozinha para Maria da Conceição Teixeira, os Salesianos para
Alexandrina de Balasar, diferentes organismos ligados às missões e à administração colonial
para Gonçalo da Silveira, António Barroso ou António Ferreira Viçoso, o Santuário de Fá‑
tima e a diocese de Leiria para Jacinta e Francisco Marto, a diocese de Évora para Manuel
Mendes da Conceição Santos, e as editoras próprias das ordens ou congregações para a
generalidade dos casos.
O número de edições seria um último parâmetro a analisar. É comum uma vida muito
longa de várias hagiografias, como a de Jacinta Marto, por Maria Lumi: a primeira edição é
de 1939, e em 1978 já se ia na 9ª; A doentinha de Balasar, de Mariano Pinho, alcança em 1990
a sua 5ª edição; a Sãozinha publica‑se de 1954 a 1990, pelo menos, com dez edições... Se isto
pode significar que as tiragens são limitadas, também causa que se repitam durante décadas
as mesmas imagens de uma personagem, sugerindo a voluntária continuação da atemporali‑
dade do discurso hagiográfico antigo.
fundamental para o debate em torno da religião e da Igreja, talvez nunca tão vivo como nesse
momento, no Ocidente europeu166.
O reinado de D. Manuel é como que uma fronteira, uma arrumação de todo este mundo
religioso, que ainda fascina na sua diversidade – ao contrário do progressivo encerramento
decorrente do Concilio de Trento, que entre nós teve uma pronta recepção. O rei Venturoso
empenha‑se na beatificação de Isabel de Aragão, santa protectora da dinastia a que ele per‑
tence por linha transversal, assim transformada em obtentora de mercês; alcança a concessão
da Festa do Anjo Custódio de Portugal, e com ela planeja uma unificação da protecção reli‑
giosa do reino semelhante à unificação que fazia de forais, capelas e hospitais, leis e arquivos;
tenta ver canonizadas figuras tão pequenas como o mourisco Gonçalo Vaz, importante por‑
que morto em África sem renunciar à fé a que se convertera, e tão grandes como o fundador
do reino, Afonso Henriques (que surge porém ainda envolto em tradições pouco canónicas,
como a prisão da mãe, a ameaça ao cardeal‑legado, ou as aparições vingadoras a quem des‑
respeite seu mosteiro de Coimbra)167.
O panorama, depois, irá tornar‑se bem mais enquadrado. O quadro que apresentamos
nas páginas 97 e seguinte, fornece uma sinopse dos principais acontecimentos relativos à
beatificação e canonização de portugueses, da Reforma Católica aos nossos dias. Com os
dados nele coligidos, pensamos poderem definir‑se algumas linhas de base. De fins do sé‑
culo XVI até inícios do século XVIII, é nítida a importância de três grupos: os mártires da
evangelização (Salsete, Marraquexe, Japão Brasil, Achém, Gonçalo Garcia) em boa parte
jesuítas; as princesas‑freiras (Teresa, Sancha, Mafalda, Joana); e os grandes organizadores
(Bartolomeu dos Mártires, João de Deus). Correspondem, afinal, a outras tantas característi‑
cas de base do cristianismo pós‑Trento. Desde logo, a evangelização, se possível tingida com
o sangue do testemunho, face a hereges e pagãos. Depois, a presença maciça dos conventos
femininos, adquirindo tanto mais poder quanto melhor ancorados nos principais estratos
sociais, e chegando a funcionar de forma autónoma, promovendo as suas figuras santas com
à‑vontade financeiro notável e por vezes em aberta competição interconventos. Por fim, a
execução vigorosa da reorganização religiosa e social, seja no quadro da diocese, seja no da
ordem religiosa nova, que se dedica com fervor aos marginalizados. Um fenómeno bastante
específico ao quadro português, dadas as condições políticas do período e o da “interferência”
espanhola, que é em certos casos fruto também do campo privilegiado que foi, para certas
mentalidades religiosas, a diáspora dos impérios: nestes contextos se devem entender a ca‑
nonização da Rainha Santa, e a abertura de processos para um Gregório Lopes, um Gonçalo
Dias, um António de São Pedro, todos eles adquirindo fama de santidade na América espa‑
nhola, em quadros de errância prévia, comuns a tantos aventureiros por ai dispersos. Algumas
personagens surgem mais desenraizadas, e a sua presença deve entender‑se como fruto da
continuação de processos mais antigos, ou de circunstâncias específicas: o Infante Santo e
Nuno Álvares Pereira (este em ligação com a reordenação política pós‑Restauração), o lóio
António da Conceição (por influência talvez dos sectores devotos da corte), Pedro da Guar‑
da, o eremita franciscano da Madeira (eventualmente numa lógica de obtenção de padroeiro
para um território deles pouco fornecido).
O século XVIII é o das causas das ordens religiosas, com distinções claras conforme se
trate de homens ou mulheres. Para os primeiros, pontificam as grandes figuras portuguesas
da inovadora ordem dos oratorianos: Bartolomeu de Quental e José Vaz. O perfil é o do or‑
ganizador com forte componente intelectual, tanto mais curioso quanto oposto ao feminino:
96 · Maria de Lurdes Rosa
Wilson, Rita Amada de Jesus, Isabel Picão Carneiro, Ana Faria de Amorim e Luisa Andaluz.
Casos como Bernardo de Vasconcelos ou Maria da Conceição Pimentel terão talvez de ser
analisados a partir da perspectiva das sensibilidades muito afectivas, com forte sentimento
de culpa, numa religiosidade mesclada de sentido poético e trágico, a que não serão alheias
mortes prematuras, na flor da juventude
Acontecimento
Data Data Referência
relacionado com processo Nome
signif. morte bibliográfica
de canonização
1556 Extensão culto todo o reino D. Isabel (rainha) 1336 VASCONCELOS, 1894
1577 Trasladação corpo Infanta D. Joana 1475 SANTOS, 1967
Impressão texto
1577 Infante D. Fernando 1433 ROSA, 2001‑2002
hagiográfico
1598 Início inquérito local Mártires de Salsete 1583 MOLINARI, 1961‑1969
Em andamento o inquérito Mártires de
1606 1585 SANTOS, 1957
em Portugal Marráquexe
Bartolomeu dos
1609 Trasladação solene 1590 VENCHI
Mártires
Aber. túmulo (para processo
1612 Rainha Santa 1336 VASCONCELOS, 1894
canon.)
1617 1ª abert. túmulo (privada) D. Teresa/D. Sancha .../1229 MENDONÇA, 1918
1617 1ª abert. túmulo (privada) D. Mafalda 1256 MENDONÇA, 1918
Inquérito local (por
1618 Gonçalo Dias 1610 CARDOSO, 2002
Espanha)
1625 Canonização Rainha Santa 1336 VASCONCELOS, 1894
CONGREGATIO,
1625 Deo. intr. caus. pro. cont. cultu Pedro da Guarda 1505
1988‑1994
1626 Início inquérito local Infanta D. Joana 1475 GASPAR, 1988
1627 Beatificação Gonçalo Garcia 1597 TESTORE, 1961‑1969
Capítulo Geral Ordem Bartolomeu dos
1629 1590 VENCHI
Dominicana inicia processo Mártires
1630 Beatificação João de Deus 1550 BOTIFOLI, 1977
Início inquéritos locais (por
c. 1630 Mártires Japão 1596/97 GORDINI, 1961‑1969
ordem de Roma)
1630 Início inquérito local Inácio de Azev. et soc. 1570 LEITE, 1961
98 · Maria de Lurdes Rosa
Mª Custódia do CONGREGATIO,
1785 Abert. processo ordinário 1721
Santíssimo Sacramento 1988‑1994
CONGREGATIO,
1792 Decr. conf. culto D. Mafalda 1255
1988‑1994
Tentativa relançar inquérito
c. 1804 Bartolomeu do Quental 1698 BRANDÃO, 1867
local
CONGREGATIO,
1820 Decr. conf. culto Lourenço Lusitano Séc. XIV
1988‑1994
António da Conceição CONGREGATIO,
1843 Decr. super virt. 1602
(Lóio) 1988‑1994
Concessão do título de Bartolomeu dos
1845 1590 VENCHI
“Venerável” Mártires
1852 Beatificação S. João de Brito 1693 PEDROSO, 1992
CONGREGATIO,
1854 Reintegração de culto Inácio de Azev. et soc. 1570
1988‑1994
1862 Canonização Gonçalo Garcia 1597 TESTORE, 1961‑1969
1867 Beatificação Mártires do Japão 1596/97 GORDINI, 1961‑1969
1893 Beatificação Mártires de Salsete 1583 MOLINARI, 1961‑1969
SANTA MARIA,
1900 Beatificação Mártires de Achém 1638
1961‑1969
Diogo de Mesquita CONGREGATIO,
1901 Abert. proc. ord. sup. martyr. 1614
(Macau) 1988‑1994
Sebastião Vieira CONGREGATIO,
1901 Abert proc. ord. sup. martyr. 1634
( Japão/ Macau) 1988‑1994
Apolinário de Almeida CONGREGATIO,
1902 Dec. intr. causa 1638
(Abissínia) 1988‑1994
Gonçalo da Silveira CONGREGATIO,
1905 Abert. proc. ord. sup. martyr. 1561
(Cochim) 1988‑1994
António J. Henriques CONGREGATIO,
1906 Decr. s. script. 1748
(China) 1988‑1994
CONGREGATIO,
1912 Decr. conf. culto Pedro da Guarda 1505
1988‑1994
CONGREGATIO,
1918 Beatificação Nuno Álvares Pereira 1431
1988‑1994
Ana de Jesus Maria CONGREGATIO,
1939 Abert. proc. ordinário 1875
José 1988‑1994
1947 Canonização S. João de Brito 1693 PEDROSO, 1992
100 · Maria de Lurdes Rosa
CONGREGATIO,
1955 Decr. s. script. José Vaz (Ceilão/Goa) 1711
1988‑1994
CONGREGATIO,
1968 Decr. intr. causa Agnelo de Sousa (Goa) 1927
1988‑1994
CONGREGATIO,
1971 Decr. s. script. Francisco R. Cruz 1948
1988‑1994
CONGREGATIO,
1972 Abert. proc. ordinário João Cardim 1615
1988‑1994
CONGREGATIO,
1975 Beatificação Maria Droste 1899
1988‑1994
Manuel Mendes da C. CONGREGATIO,
1975 N.o. ex p. S. Sede 1955
Santos 1988‑1994
1976 Canonização Beatriz da Silva 1492 COSTA, 1989
CONGREGATIO,
1978 Decr. s. script. Alexandrina da Costa 1955
1988‑1994
CONGREGATIO,
1979 Abert. processo Francisco Marto 1919
1988‑1994
CONGREGATIO,
1979 Abert. processo Jacinta Marto 1920
1988‑1994
Fernando de Santarém CONGREGATIO,
1983 Abert. proc. ord. sup. martyr. 1616
(Durang.) 1988‑1994
Bernardo de CONGREGATIO,
1983 N.o. ex p. S. Sede 1932
Vasconcelos 1988‑1994
CONGREGATIO,
1984 N.o. ex p. S. Sede Sílvia Cardoso 1950
1988‑1994
António F. Viçoso CONGREGATIO,
1986 Decr. val. proces. s. virt. 1875
(Brasil) 1988‑1994
CONGREGATIO,
1987 N.o. ex p. S. Sede Mary Jane Wilson 1916
1988‑1994
Mª. Conceição P. CONGREGATIO,
1988 N.o. ex p. S. Sede 1958
Rocha 1988‑1994
Américo Monteiro de CONGREGATIO,
1990 N.o. ex p. S. Sede 1956
Aguiar 1988‑1994
CONGREGATIO,
1990 N.o. ex p. S. Sede Joaquim Alves Brás 1966
1988‑1994
CONGREGATIO,
1991 N.o. ex p. S. Sede Rita Amada de Jesus 1913
1988‑1994
CONGREGATIO,
1992 N.o. ex p. S. Sede António Barroso 1918
1988‑1994
Santos e demónios no Portugal medieval · 101
CONGREGATIO,
1993 N.o. ex p. S. Sede João Oliveira Matos 1962
1988‑1994
CONGREGATIO,
1994 N.o. ex p. S. Sede Sãozinha 1940
1988‑1994
Ana Jesus Faria de (Informação dos
1994 Em prep. local 1976
Amorim promotores)
(Informação dos
1994 Em prep. local Libânia Albuquerque 1899
promotores)
(Informação dos
1994 Em prep. local Luísa Andaluz 1973
promotores)
Mª Isabel Picão (Informação dos
1994 Em prep. local 1962
Carneiro promotores)
Dec. intr. caus. pro conf. cultu= decreto de introdução de causa de confirmação de culto
Decr. intr. causa = decreto de introdução de causa
Aper. proc. super non cultu = abertura de processo de “não existência de culto”
Decr. conf. cultu = decreto de confirmação de culto
Decr super script. = decreto sobre os escritos
Decr super virt. = decreto sobre as virtudes
Aber. proc. ord. sup. martyr. = abertura de processo ordinário de martírio
N.o. ex p. S. Sede = nihil obstat da parte da Santa Sé
Decr. val. proces. s. virt.= decreto de validade do processo sobre as virtudes
Notas
50 FONTES, 1984
51 PEDROSO 1988b.
52 Agora em COELHO, 1993b.
53 CHAVES, 1915.
54 LIMA, 1946.
55 BELL, 1987.
56 BYNUM, 1987; BYNUM, 1984; BYNUM, 1991.
57 RAIMBAULT, ELIACHEFF, 1989
58 ZARRI, 1994. Para uma análise crítica da tendência, cf. SANTI, 1991; TRONCARELLI,
1991.
59 LECLERCQ 1976
60 SAWARD, 1980
61 Enquadramento em BELO 1986.; RAMOS; 1993 :330, 315‑320
62 LARANJEIRA, 1986:48
63 MOREIRA 1975 e MOREIRA 1984.
64 KANE 2002
65 Cfr. p. 96.
66 MOREIRA 1975:315.
67 EÇA DE QUEIRÓS, s.d: 66‑67
68 MOREIRA 1975:335
69 MOREIRA 1975:244
70 MOREIRA 1975:240‑241
71 MOREIRA 1984
72 LARANJEIRA, 1986:95‑100
73 MOREIRA 1975
74 GAMEIRO 1978
75 GAMEIRO 1978: 163
76 BYNUM, 1988
77 ABRANCHES 1982 :147‑155
78 PEDROSO, 1994: 53‑56
79 HERRMAN‑MASQUARD, 1975; HÉLIOT, CHASTANG, 1964‑1965; SNOEK, 1995.
80 In NASCIMENTO 2001: 95
81 In NASCIMENTO 2001: 95; OLIVEIRA, 1964: 157‑159; GAMEIRO 2007
82 In NASCIMENTO 2001: 181‑183
83 In NASCIMENTO 2001: 181‑183
84 Ed. in MENDES 1991.
85 Veja‑se agora PEREIRA 2005.
86 SANTA MARIA, 1668:119
87 GALVÃO, 1995:133‑134
104 · Maria de Lurdes Rosa
88 KRUS, 1994: 145‑146; cf. ainda sobre o culto NASCIMENTO; GOMES, 1998; FALCÃO
1974; DIAS 2003; DIAS 2005, DIAS 2007; PICOITO 2007
89 SOBRAL, 1996: 137‑146 ; SOBRAL, 1997: 271‑281.
90 SOBRAL 2001‑2002.
91 SOBRAL 2009: 71.
92 Cit. in LUCAS 1988a: 8; cfr. ainda NASCIMENTO, 1993:310
93 OLIVEIRA, 1964:142; SOBRAL 2000, 87 ss
94 PEREIRA, 1984: 159‑174; SOBRAL 2000, 479 ss
95 FALCÃO, FERREIRA, 1987: 117‑123
96 Discussão sobre a razão dos critérios, SOBRAL 2000, 563 ss
97 SOBRAL, 1997.
98 SOBRAL 2000, 653.
99 O Flos sanctorum, ed. LUCAS, 1988, lâmina após p. 271.
100 Sobre este género em Portugal, cf. MAGALHÃES, 1980.
101 CORDEIRO, 1959:458; BARROS, 1919:126.
102 ROSA 1997.
103 CASTRO, 1885:3.
104 SANCHIS 1983.
105 DE GAIFFIER 1942 : 137.
106 CHIOVARO, 1986:100
107 Cfr. p. 92.
108 MARTYROLOGIO, 1591
109 MARTYROLOGIO, 1591: 2v‑3
110 MARTYROLOGIO, 1591: 3v.
111 CARDOSO/ SOUSA 2002. Sobre o Agiológio deve agora ver‑se, por todos, esta edição fac
‑similada com estudo introdutório, índice e bibliografia actualizada.
112 CARDOSO/ SOUSA 2002: I, 52.
113 CARDOSO/ SOUSA 2002: I, 59.
114 MENESES, 1616: 2, 136v.
115 LISBOA, 1646: 52-53.
116 MARQUES, 1991.
117 OLIVEIRA, 1964:196.
118 Cfr., para o período fulcral que foi a 1 República, MEDINA, 1990.
119 Sobre esta cfr. FERREIRA, 1987.
120 MENDONÇA, 1918:11
121 MARTINS [19‑‑]
122 MARTINS [19‑‑]a
123 MARTINS 1930
124 MARTINS 1928
125 MARTINS, 1928
Santos e demónios no Portugal medieval · 105
164 Para a consideração de todos estes problemas, na realidade muito vastos, indicamos alguns dos
principais títulos da renovação historiográfica sobre a santidade: BAKER 1992; BARONE
1994; BOESCH‑GAJANO 1982; BOESCH‑GAJANO 1990, BOESCH‑GAJANO, SA‑
BATINI 1984; BOESCH‑GAJANO, SCARAFFIA, 1990; BROWN 1981; CHIOVARO
1986; KIECKHEFER, BOND, 1988; WEINSTEN, BELL, 1982; KLEINBERG 1992; LA
FONCTION, 1991; VAUCHEZ 1988; DE LODZ 1969; KEMP 1980; RENOUX 1993;
WODWARD 1992. Remetemos para ROSA 2001:359‑360, para uma bibliografia exaustiva
da temática.
165 Para tudo isto cf. ROSA 2001‑2002: 369‑404 e bibliografia referida.
166 ROSA 2001‑2002: 404‑ 450
167 ROSA 2007 (no vol. 1 desta colecção).
168 ZARRI, 1990
169 Veja‑se, agora, GUIMARÃES 2004.
170 DARRICAU, PEYROUS, 1990:230
171 BARRETO 1961; GARCIA 1961; PINA 1961
172 PAXECO 1961 e PAXECO 1963
173 A data final refere‑se ao ano de redacção do artigo, sendo que a análise feita a partir destes
dados não inclui acontecimentos afins a ela posteriores.
III. As andanças dos demónios – uma leitura dos
casos de possessão do Livro de Milagres de Nossa
Senhora da Oliveira (1342‑1343)
De quatro de Janeiro a vinte e sete de Março de 13432 – em menos de três meses, por‑
tanto – sucederam‑se junto à Igreja de Nossa Senhora da Oliveira, em Guimarães, qua‑
renta e quatro milagres de cura de várias doenças. Interessa‑nos, neste estudo, uma parte
deles: os onze casos que incidiram na recuperação de possessões diabólicas. Nos termos da
fonte escrita que os reporta o “Livro dos Milagres de N.ª S.ª da Oliveira”, terão sido epi‑
sódios de grande tensão, com forte impacto na sociedade local3. Por um lado, os momentos
de possessão e as cerimónias de exorcismo devem ter sido impressionantes espectáculos
públicos; por outro, elementos vários, entre os quais avultam as confissões dos “demónios
em fuga”, fizeram emergir conexões entre quase todos (senão todos) os casos, prenuncian‑
do a revelação de uma realidade mais complexa – e decerto aterradora, para o espectador
de então. É que as diferentes curas surgem ligadas entre si por várias constantes, a mais
perturbadora das quais a denúncia – como membros de associações demoníacas, respon‑
sáveis, em parte, pelas possessões – de personagens vivas, e concretamente descritas. Não
menos impressionantes teriam sido várias viagens dos demónios que, na fase de expulsão,
pediam para ir buscar sinais a locais geográficos bem precisos, partiam, e regressavam, por
vezes com histórias para contar.
Nas duas primeiras partes deste texto, procederemos à contextualização da produção
documental do “Livro de milagres” e ao estudo mais pormenorizado da estrutura e fabrico
das “narrativas” dos casos de possessão. Passaremos de seguida à análise dos próprios ca‑
sos, examinando, sucessivamente, os “roteiros demoníacos” e os conteúdos das denúncias
(“Salém em Guimarães?”), procurando identificar, depois, as crenças que lhes possam estar
subjacentes (“Viagem às crenças”). Por fim, e já com recurso a um outro tipo de fontes,
tentaremos provar como este conjunto impressivo de cerimónias marcou o próprio espaço
onde decorreu (“Marcas no espaço sagrado”). Parece‑nos possível, de facto, sustentar a
existência de uma ligação próxima entre estes testemunhos de “irrupção diabólica” e dife‑
rentes vestígios materiais interiores ao templo de Nossa Senhora da Oliveira – concreta‑
mente, sinais e relíquias. De forma mais indirecta – pelo menos em termos de atmosfera
criada –, poderá ainda existir algum tipo de relação entre aqueles testemunhos e algumas
pinturas do tecto da Colegiada.
108 · Maria de Lurdes Rosa
que se procede ao primeiro treslado, parecem indicar claramente que o registo dos milagres
e a carta eram um todo11.
Temos assim elementos para uma contextualização mais precisa do “livro de milagres”.
Dado que estes milagres se sucedem entre 16 de Dezembro de 1342 e 27 de Março do ano
seguinte12, a carta deverá ser posterior a esta data (e anterior a 1351, quando Afonso Peres já
estaria morto)13. Em todo o caso, relembre‑se que o subscritor dos dois tipos de documento é
sempre o notário Afonso Peres. Se as nossas hipóteses estão correctas, este, portanto, estava a
registar os milagres para os enviar ao rei. Este contexto de produção não é muito comum na
tipologia em causa. Que motivos, então, o explicam?
Talvez possamos encontrar alguns elementos de resposta examinando agora a substância
da relação do registo com a Colegiada. Para tal, vejamos o que nos diz o texto, por ordem dos
acontecimentos.
No momento do acontecimento fundador, ou seja, a colocação da cruz, não se reporta a
presença de eclesiásticos – o que é tanto mais estranho quanto tudo se passava num dia de
festa solene mariana14. Todo o protagonismo vai para o mercador Pero Esteves, que com‑
parece no local onde o objecto sacro é implantado. O relato que faz não tem qualquer cariz
institucional, antes pelo contrário: toda a explicação do seu gesto remete para uma atitude
religiosa autónoma e bem específica. Com efeito, conta que o gesto devocional lhe fora su‑
gerido por Deus, no que parece ter sido uma visão (“que lhy deu a entender”), conduzindo
a uma atitude peregrina, cumprida pelo seu irmão, que se deslocara a um local preciso, para
adquirir a cruz. Logo aqui temos alguns aspectos estranhos, que revisitaremos passo a passo.
Começa por ser fundamental sublinhar que a implantação não é feita tendo em conta
a centralidade da igreja da Colegiada. Na verdade – e este aspecto tem sido muito pouco
salientado – a igreja românica encontrava‑se numa posição bem diversa da do actual templo.
O cruzeiro, em 1342, foi colocado a sul do hodierno portal principal, sensivelmente a meio
da largura do claustro de então. Apenas depois das obras joaninas a posição relativa dos
dois elementos se tornou um sinal de poder da Colegiada. Segundo Mário Barroca, aliás, a
decisão de erguer o templo gótico com um novo alinhamento ficou‑se a dever ao cruzeiro,
e estaria relacionada com o crescente prestígio deste. A Colegiada passava assim a controlar
um foco de poder sacral que lhe estava bastante alheio15. Que espaço veio o cruzeiro então
enobrecer? O próprio “livro de milagres” fornece a resposta, ao referir a “alcaçaria”. Como já
salienta Albano Belino, tal termo designa “um espaço com casas e locais onde os mercadores
se recolhiam”16; José Pedro Machado define‑o como a palavra árabe que designa “bazar”, ou
“casa grande rodeada de pórticos e de lojas”17. Esta função está de resto em consonância com
a disposição urbana descrita por Conceição Falcão, com as ruas de S. Tiago e Santa Maria,
e a praça desta invocação, zonas circunvizinhas da Colegiada, ocupadas, na parte mais perto
desta (e mais cara), por tendas e açougues18. Assim, torna‑se claro que o cruzeiro foi colocado
não no espaço eclesiástico, mas sim no mercantil.
Neste âmbito, é de realçar que os actores do gesto devocional são dois irmãos leigos, um
dos quais... mercador. Esta profissão é sempre referida com destaque, seja no texto da mis‑
siva, seja na inscrição no fuste do cruzeiro, que parece ser coeva da implantação19. O próprio
local de origem da cruz parece ter a ver com a ocupação mercantil dos seus mecenas, já que
Honfleur, na Normandia, era um porto comercial que fora agraciado, no ano anterior, com
privilégios régios especificamente destinados aos mercadores portugueses – junto ao qual,
ainda, se localizava um santuário mariano bastante frequentado por marítimos20. Em terceiro
110 · Maria de Lurdes Rosa
lugar, o letreiro que se encontrava embutido no fuste do cruzeiro indicava como, motivos da
obra, além da “honra de Deus e de Santa Maria”, um factor a que poderemos chamar mais
cívico – “por esta vila mais honrada ser e o povo”21. Por fim, o que nele se realça de adicional
não é qualquer ligação à igreja, mas sim o que parece ser uma origem familiar: nos quatro
cantos do fuste, foram gravadas as abreviaturas de outras tantas palavras, que a investigação
recente considera provável serem os nomes da família de Pero Esteves (para além do próprio
e de Gonçalo, os do pai e mãe de ambos)22.
Também na narração do primeiro sucesso milagroso, ou seja, o florescimento da oliveira
seca, três dias depois da alçada da cruz, os cónegos estão ausentes, e não se indicam quaisquer
reacções ao evento23. A análise das imagens que se encontravam representadas junto à cruz
pode ajudar a situar melhor o gesto devocional de Pedro Esteves? No presente estado da
investigação, ela fornece mais questões do que respostas. Desde logo, é difícil provar que elas
tenham feito parte da peça original, ou seja, tenham sido encomendadas por Pedro Esteves.
As descrições medievais não falam de imagens, apenas da cruz. É certo que isto não é uma
prova cabal, uma vez que aquela poderia estar ornada de outras imagens sem ser preciso referi
‑lo – nomeadamente as canónicas Maria e João‑ mas tem sido relevado a grande diferença
de manufactura entre a cruz e os restantes elementos24. De resto, Gaspar Estaço, escreven‑
do entre c.1592 e 1625, não menciona qualquer imagem25 – ao contrário do que sucede
no testemunho seguinte sobre o conjunto, datável de entre 1656‑1692, que descreve já um
numeroso (e heterogéno) grupo de imagens, quanto a nós muito dificilmente remontável à
época medieval26.
Uma última palavra quanto ao “padrão”, na mesma busca de sentidos. A tradição atribui
‑lhe uma notável origem, ou seja, a celebração da batalha do Salado. Há uma sugestiva hipó‑
tese que poderia contribuir para explicar a notificação dos milagres ao rei, por Afonso Peres.
A Colegiada teria tentado, de algum modo, “colar‑se” à vitória afonsina, tentativa de que teria
resultado a construção do padrão, e que poderia agora estar a assistir a novo episódio? Ou
seja, a Colegiada, que se pretendia relacionada com as empresas guerreiras do rei Fundador,
estaria agora a re‑lançar a sua importância com uma nova vitória sobre os mouros? Há um
elemento de relevo neste sentido: nas pinturas das traves do tecto, está nitidamente repre‑
sentada uma batalha entre guerreiros cristãos e muçulmanos – obra que pode ser datável da
primeira metade do século XIV27. Por fascinante que seja a hipótese, precisa (no mínimo),
de maiores bases documentais. Em primeiro lugar, como demonstrou Maria da Conceição
Falcão, comprovando com uma exaustiva pesquisa documental a pertinência das dúvidas
já antigas de Sousa Viterbo, não há fontes coevas que assegurem o relacionamento entre o
“padrão” e a batalha do Salado28. Afonso IV não terá mesmo demonstrado grande predilecção
pela cidade29. Em segundo lugar, num documento que nos parece ser, verdadeiramente, um
“livro dos milagres de Nossa Senhora aos reis de Portugal”, datável do século XV (até 1492),
Afonso IV é um grande ausente, ao contrário de Afonso Henriques e D. João I, protegidos
dilectos de Nossa Senhora da Oliveira, nos seus transes guerreiros30. De resto, a igreja da
Colegiada de Guimarães não desempenha qualquer papel nas várias tradições do Salado,
estudadas por Bernardo Vasconcelos e Sousa.31
Ausentes na altura do milagre fundador, os cónegos apenas fizeram sentir a sua presença
mais de dois meses depois, no primeiro milagre humano, desta feita na forma em que sur‑
girão até ao final do texto – realizando uma procissão de acção de graças por cada milagre
alcançado. É de notar que os cónegos não são os únicos presentes nas procissões: o “livro de
Santos e demónios no Portugal medieval · 111
milagres” refere sempre “o chantre e os coonygos e os clerigos da vila”. Tal conjunto pres‑
supõe que os eclesiásticos da Colegiada não eram creditados como únicos intermediários
cerimonais possíveis, o que de novo limita o seu monopólio sobre o que se estava a passar. De
resto, eram relativamente frequentes na tradição dos séculos XII e XIII, relatos de eventos
miraculosos despoletados por um ardor dos leigos, que destrona pela recompensa divina o
cepticismo e mesmo a negação da Igreja institucional32.
Seja como for, a procissão é, sublinhe‑se, quase a única modalidade de intervenção dos
cónegos no conjunto dos quarenta e cinco milagres. Nos casos de cura dos endemoninhados,
tal facto torna‑se ainda mais intrigante. Teremos ocasião de voltar ao tema, pelo que real‑
çaremos agora apenas que, nos sete casos em que são mencionados os nomes dos exorcistas,
bem como alguns dos seus atributos, a única ligação aos cónegos é a de um deles ser “homem
de João Peres Aranha, cónego”. E, embora tal nos pareça demasiado estranho, os elencos de
testemunhas sugerem que muito poucos membros da Colegiada teriam presenciado as cenas
– no conjunto dos onze, num total de quarenta e quatro testemunhas nomeadas, apenas é
referido um cónego, por duas ocasiões33.
O que pensar, por fim, da presença do Arcebispo de Braga, D. Gonçalo Pereira, acom‑
panhado de várias personalidades, durante os dois primeiros dias de Fevereiro de 1343?
Ocorreram então oito casos de milagres, incidindo em variadas doenças (possessão, cegueira,
paralisia) e representando um dos picos mais altos de concentração de ocorrências34. É crível
que o Arcebispo tenha sido atraído pela fama dos fenómenos, que tinham ocorrido em gran‑
de número durante o mês de Janeiro... Nesse caso, estaria a verificar de que modo, e até que
ponto, as autoridades religiosas locais dominavam situação? Esta verificação poderia até nem
se revestir de uma atitude crítica face aos cónegos, embora saibamos que entre a Colegiada e
o Arcebispado de Braga existiam fortes diferendos35. Nesse caso, a presença de D. Gonçalo
serviria sobretudo para reforçar o controle eclesiástico sobre as estranhas e sucessivas ocor‑
rências. De novo, porém, não temos dados que nos permitam ir para além da conjectura.
De tudo o que temos vindo a dizer, poderemos sustentar que os acontecimentos narrados
no “livro de milagres”, passados junto à Colegiada, passaram na verdade ao lado desta? Não
nos parece ser possível que isto tenha acontecido de forma plena. Há, de facto, traços de imis‑
cuição dos cónegos, que apontam para a gradual apropriação de um fenómeno que nos parece
ter‑lhe sido alheio, na origem, e que permaneceu com laivos de tal até ao fim (a notificação
autónoma dos milagres ao rei). A realização da procissão após os milagres é o mais claro
sinal. Talvez o aumento gradual dos interrogatórios aos possessos aponte no mesmo sentido,
embora, como veremos, haja outras explicações para este fenómeno. Os objectos materiais de
memória a que nos referiremos na última parte deste trabalho poderão, também, reflectir a
consciência da necessidade de apropriação dos milagres. Antes de analisarmos em pormenor
estes vários aspectos, devemos porém examinar de mais perto os textos.
três situações distintas: um registo inicialmente menos treinado, que se aperfeiçoa à medida
que sobe o tom das declarações demoníacas e que, portanto, se torna mais urgente intervir
eficazmente, por parte da comunidade (leiga, clerical, ou ambas, aos seus modos próprios);
em relação com este, evolução da atitude comunitária, do testemunho à perseguição, indo‑se
buscar aos locais pessoas indiciadas pelas declarações dos primeiros possessos, e investigando
as ligações; por fim, laços complexos entre os casos, revelados por indícios muito esparsos.
Comecemos por apresentar os relatos, genericamente e em conjunto. O primeiro caso
de possessão dá‑se no início do segundo ciclo de milagres em seres humanos. Depois do
florescimento da oliveira, em Setembro de 1342, tinham‑se passado mais de dois meses
até recomeçarem os sucessos milagrosos, desta feita em pessoas. A dezasseis de Dezembro
iniciara‑se um pequeno ciclo de dois milagres, a cura de um mudo e de uma cega. Segue
‑se novo um hiato, agora menor: cerca de quinze dias, pois os milagres recomeçaram a
quatro de Janeiro de 1343. Este regresso foi porém em força, característica que marca todo
o segundo (e último) ciclo de sucessos extraordinários. Naquele dia verificaram‑se quatro
milagres, e mais nove até ao final do mês; a cadência mensal continuará semelhante, com
quinze milagres em Fevereiro e catorze em Março. Podemos assim dizer que a curva ascen‑
dente abre em pleno, com um tipo de milagre que se irá tornar preponderante, quantitativa
mas, em especial, qualitativamente38.
O milagre de cura de possessão que abre o ciclo é, no conjunto dos onze, o que apresenta
um relato mais pequeno. Apresenta‑se o miraculado, referindo‑se a sua idade, o local de
morada e o acompanhante. A “doença do demónio” é referenciada apenas pela indicação da
sua duração (dezasseis anos). Passa‑se de seguida à cena de exorcismo, sem relato da tomada
de possessão, e introduzindo logo a acção dos exorcistas, que não são identificados: “travarom
do moço ao pé da cruz”. Podemos mesmo pensar que a vinda do demónio é provocada pelos
exorcistas, o que não sucede nos casos posteriores. Ao contrário dos restantes relatos, não são
transcritas as perguntas feitas ao demónio, e este fala em monólogo. Diz apenas duas frases,
referindo por um lado que a sua expulsão se devia a Nossa Senhora da Oliveira e, por outro,
que maldizia a hora em que aí viera39. Sem que a tal tivesse sido intimado, deitou um sinal
pela garganta do rapaz possesso e desapareceu. Contrariamente às seguintes narrativas afins,
não se refere qualquer deslocação para ir buscar o sinal, nem alguma identificação do demó‑
nio, seja por nome, seja por proveniência geográfica.
Sucedido exactamente quinze dias depois, o segundo caso de possessão é já alvo de um
relato muito mais circunstanciado, excepto na identificação da possuída, para quem apenas
se indica o nome próprio e a origem geográfica. O episódio é narrado de forma completa, co‑
meçando pela possessão de “Domingas” junto à cruz e com a interpelação do demónio pelos
exorcistas. Se estes não são identificados, são referidas as perguntas que fazem, típicas de um
ritual de exorcismo (se bem, como diremos, nesta época ele não tenha alcançado o grau de
formalismo de tempos posteriores)40 – quem era o demónio e porque tomava a sua vítima – e
a ordem para que deixasse esta. É o início de um diálogo em que se medem as respectivas for‑
ças (nem sendo imediata a vitória do bem, como veremos). O demónio identifica‑se, dando
nome, filiação e local de origem. Os exorcistas voltam a ordenar‑lhe que deixe a vítima, e ele,
se indica Nossa Senhora da Oliveira como a fautora da sua queda e maldiz a vinda ao local,
estabelece porém uma hora de saída (“ao galo cantante”) – o que, como veremos na última
parte deste trabalho, pode significar uma vitória demoníaca, no meio da expulsão41. Pelo que
percebemos dos restantes relatos, o período de espera seria para ir localizar o sinal, mas neste
Santos e demónios no Portugal medieval · 113
tal não é explicitado. A narrativa termina com o momento em que, depois da pausa, e à hora
indicada, a mulher é de novo possuída pelo Diabo. Este fala dela, dizendo que a deixaria para
sempre, e lança pela sua garganta um comprovativo de tal42.
A estrutura dos relatos mais não faz, doravante, que completar‑se e enriquecer‑se, sempre
em torno destes episódios, e organizando‑se no diálogo entre exorcistas e demónios. A partir
do terceiro texto e até ao oitavo, passa a surgir a descrição do local onde os demónios vão
buscar o sinal, e refere‑se a espera a que isso obriga todos os intervenientes. Os três últimos
casos não referem viagens do demónio, mas fornecem variada informação, nomeadamente
a extensa lista de acusados de pertencerem a associações diabólicas, no relato do penúltimo
milagre de possessão.
Vejamos então agora os problemas textuais acima referidos. Há várias narrativas que
apresentam sobreposições diversas, o que poderia levar a pensar que o registo se repete. A
nossa posição inclina‑se, no entanto, para a segunda explicação acima adiantada: parece‑nos
que existem causas que afastam a hipótese de confusões textuais e apontam, antes, para um
“emaralhamento” da própria realidade, que o texto reproduz, reflecte, ou incorpora. Estu‑
demos o primeiro caso, que envolve os relatos dos milagres quarto e décimo43. Em ambos a
possessa se chama “Maria”, e em ambos a sua filiação é indicada como “Martim Miguéis e
Maria Frutuosa”. Num e noutro é acusado de demónio um “Estêvão Domingues”, tabelião de
Baião, já falecido, e, como causadora da possessão, a mãe da vítima. No entanto, parece‑nos
que seriam duas raparigas irmãs, pois a segunda é apelidada de “pequena”, a seguir ao nome
de “Maria” – o que serviria para a distinguir. Por outro lado, moram em locais diferentes,
vivem circunstâncias diversas, e o demónio “Estêvão Domingues” tem papéis distintos nas
duas possessões44. Por fim, o segundo relato, separado do primeiro por quase dois meses, é
muito mais prolixo que este em termos de identificação de todos os demónios envolvidos.
Assim, podemos supor que a complexificação do texto corresponde a uma pressão sobre a
possessa, e mesmo que a presença da que pensamos ser a segunda irmã poderá ter sido pro‑
vocada, exigida? Talvez, por outro lado, na mesma família/ comunidade local se observassem
práticas semelhantes.
É também importante esclarecer dúvidas sobre o par formado pelos relatos dos milagres
9 e 11. As sobreposições são menores, mas igualmente podem levar a colocar o problema
de erros e duplicações de registo. Ambos os demónios se chamam “Pedro” (nome comum
do diabo, como veremos)45, e ambos proferem uma frase relativa aos “seus companheiros”,
maldizendo a hora em que tinham tomado para eles as possessas; não se refere “viagem pelo
sinal” de nenhum dos demónios, que lançam logo os sinais46. No entanto, as duas mulheres
possessas são diferentes em tudo, e os pormenores da possessão divergem; no primeiro caso
há apenas um exorcista, que no segundo ganha um acompanhante. Pensamos assim que, tal
como no caso anterior, se está perante casos relacionados pelos conteúdos das possessões
relatadas e não por engano de registo. Por outras palavras, dois casos independentes que
comungam de uma mesma visão.
Se bem que não tenhamos evidência tão directa, merecem esclarecimentos dois últimos
conjuntos. Em primeiro lugar, os milagres 3 e 8, em que o elemento comum seria o nome
do diabo. Aqui a incerteza é grande, dado que um se chama “Fagundo” (nome possível e
que, ademais, não apresenta dúvida de leitura47) e o segundo “Fargalho”, palavra que pode
resultar de uma má leitura de Antoninho Durães (embora a tradição dos nomes dos dia‑
bos apresentasse muitas vezes formas “bufas”, e estranhas)48. Maior substância parece ter
114 · Maria de Lurdes Rosa
3. Roteiros demoníacos
Esta geografia pode ser afinada com recurso a outros tipos de informação. Verifiquemos
o que testemunha o destino final das viagens dos demónios, em busca do “sinal” que são for‑
çados a dar. Se as ocorrências são menores, pensamos que se pode concluir do mesmo mapa
como elas reforçam a concentração acima mencionada (dois casos em Ribadouro e um em
Lamego), ainda que estendam muito a sul a “geografia demoníaca” (Lisboa e o Alentejo). Um
deste dois últimos casos, porém, já era excêntrico em termos da origem do possesso, que era
Tomar; o outro estende no entanto muito a sul a rede demoníaca, visto que a possessa é de
Vila Fria, junto ao mosteiro de Pombeiro (mais perto, portanto, do epicentro referido), e o
“seu” diabo viaja até ao Alentejo. Um e outro caso, de resto, não parecem ter laços entre si, e o
milagre 9 poderá antes ter, como vimos, relações com o milagre 11, que cremos ser plausível
ligar a Santa Marinha do Zêzere.
Vejamos, em terceiro lugar, o que nos dizem as referências às origens geográficas dos de‑
mónios. O Mapa permite‑nos visualizar imediatamente como assim se reforça a importância
do centro referido. Todos os demónios que informam sobre a sua origem são desta zona: um
demónio em Ribadouro, um em Lamego, um em Paços de Baião, um em Santa Marinha de
Paços52. Acresce que a “companha de demónios” revelada nos milagres 4 e 10 identifica mais
seis membros, para além dos autores do possessão e que, dos cinco que indicam a sua origem
geográfica, todos provêm desta zona (Santa Marinha do Zêzere, Paços de Baião/ Santa Ma‑
rinha do Zêzere/ Carvalho, Santa Maria de Sedielos [dois demónios], e Mesão Frio).
Temos portanto, perfeitamente isolado, quanto a nós, um epicentro de manifestações
demoníacas. Mais: quase todos os casos excêntricos da zona norte se relacionam com ele de
algum modo. Alguns apresentam ligações bastante incertas, que no entanto vale assinalar: no
milagre 8, cuja única referência geográfica é a origem da possessa (Vila Flor), surge como
acompanhante desta (sem indicação de parentesco) um Martim Miguéis, que é o nome do
pai das possessas dos milagres 4 e 10, fortemente ligados a Sta. Marinha do Zêzere53; como
vimos, o milagre 9, com a mesma única referenciação geográfica, poder‑se‑à relacionar com
o 11, cuja possessa poderá ser igualmente oriunda de Santa Marinha do Zêzere54. Outros são
mais prováveis: no milagre 5, se a possessa é de Marialva, o demónio talvez seja de Lamego55
e, pelo menos, certamente viaja até lá – localidade próxima do epicentro. O milagre 1, que
apesar de tudo é mais próximo que os que acabámos de referir, enferma de um relato muito
curto, que não inclui (terão sido feitas, neste início dos prodígios?) as perguntas de identifi‑
cação do diabo, nem o relato da viagem.
Para além do centro, isto é, pouco ou nada relacionáveis com ele, temos apenas os milagres
7 e 6. No primeiro deles, a possessa é de Pombeiro, mesmo assim não muito longe do epicen‑
tro; mas nada mais o liga a este, e o local de busca do sinal é deveras longínquo (o Alentejo).
No milagre 6, tudo se passa fora da zona principal. O possesso é de Tomar, e o demónio vai
a Lisboa buscar um sinal, a um local e pessoa perfeitamente identificados – a Rua Nova, a
casa do mercador João Martins. Esta última característica permite‑nos uma aproximação a
alguns dos restantes milagres do epicentro, não já geográfica mas sim de natureza: existência
de redes de pessoas vivas que, de algum modo, são conotadas com práticas diabólicas. Sem
entrarmos neste tema, que analisaremos adiante, assinalemos antes o seu contributo aqui. É
que, em termos espaciais, tem também relevância‑ redes afins estendem‑se bem para além
do ponto mais cerrado e numa zona dele cortada, Tomar – Lisboa. Estender‑se‑ão até ao
Alentejo? É a pergunta com que terminamos. O milagre 7 é um dos mais lacónicos, em
termos de elementos de ligação aos restantes. O diabo recusa a identificar‑se (o que poderá
116 · Maria de Lurdes Rosa
ter algum significado, na altura em que ocorre, com estudaremos), e não há nem pormeno‑
res sobre o motivo da possessão, nem denúncias. Não podemos pois saber porque motivo o
Alentejo surge como local de busca do sinal. Acresce o pormenor, eventualmente relevante,
de a possessa deste caso ser aquela que há menos tempo está nesta condição, no conjunto dos
que mencionam este parâmetro56; talvez isto explique a ausência de outras informações. Em
todo o caso, como referimos, Pombeiro não é mais longe de Santa Marinha do Zêzere do que
outros “locais diabólicos” com esta zona relacionáveis.
Vejamos agora para que mundo o estudo da dimensão espacial nos abriu as portas e, por
sua vez, de que forma este marcou o espaço real. A “descoberta” do epicentro não implica, de
resto, como veremos, uma sua explicação fácil.
“demónios”. Nesta parte do nosso texto, tentaremos reconstruir cenários, mais do que expli‑
car conteúdos.
Em termos de género dos possessos61, temos uma clara predominância feminina – nove
mulheres e dois homens. A presença masculina é difícil de caracterizar, porque um dos re‑
latos relativos a homens é o primeiro, muito lacónico (caracterização mínima do possesso,
com nome e estatuto de idade; nada sobre a possessão ou o demónio); a segunda presen‑
ça masculina apresenta várias singularidades, que analisaremos adiante62. Esta distribuição
por géneros contraria a apresentada por Pierre Sigal, que encontra, no sua amostra de pos‑
sessões diabólicas nos milagres dos séculos XI e XII, uma clara predominância masculina
(surpreendendo‑se com o facto, mas não avançando explicações para ele)63. Como veremos,
no conjunto das possessões femininas têm predominância as que surgem em consequência de
desobediência à comunidade familiar. Podemos pensar que a maior independência masculina
obviava este problema? O elevado número de possessões sem causa indicada convida‑nos à
prudência neste tipo de generalizações.
Será mais profícua, quanto a nós, uma outra questão: a do eventual uso de um “estado de
possessão” para alcançar protagonismo, tão mais apetecível quanto marginalizado é o grupo a
que se pertence. A um nível mais superficial, teríamos a arma da denúncia dos opressores (fa‑
miliares, sexuais); mais profundamente, poderíamos falar de encarnação de um papel social,
ambíguo decerto, mas podendo conferir poder, vasto e de especial natureza64. Não podemos ir
muito longe neste campo, no entanto, devido à falta de informação sobre as possessas. Como
veremos de seguida, os dados sobre idades e estado civis são demasiado incertos para que se
possa tirar conclusões. É certo, porém, que várias das/os possessos referem encontrar‑se nessa
situação por efeito do que poderemos chamar de violência social: coações das mães/ do irmão
(mils. 4, 8, 10 e 11), convivência sexual aparentemente forçada (mil. 6)65. A auto‑vitimação
daí decorrente poderia levar à assunção do papel de profeta pela voz dos demónios – no que
seria ao mesmo tempo um mecanismo psicológico de recusa das próprias culpas? A hipó‑
tese é sugestiva, mas necessita de uma corroboração adicional que as fontes disponíveis não
conseguem dar.
No que diz respeito à faixa etária, quase todos os possessos parecem situar‑se maioritaria‑
mente entre a juventude e a primeira idade adulta. A esta faixa corresponderiam os qualifi‑
cativos indistintamente utilizados de “moço/a” e “manceba”66, que certamente não indicam a
infância, pois alguns deles são casados e um “moço”, para além de ser atormentado pelo diabo
“há mais de dezoito anos”, exercia o ofício de sapateiro. De novo poderemos tecer algumas
considerações sobre este aspecto. Na amostra estudada por Sigal, há menos jovens possessos
do que padecentes de outras afecções, mas tal parece explicar‑se pela ausência quase total de
crianças67. Aqui dá‑se a mesma falta, mas estão igualmente ausentes os velhos e as velhas.
As mulheres jovens, na força da vida, e os rapazes na mesma faixa etária, parecem ser os
alvos mais cobiçados pelos “demónios”; mas como várias das ocorrências parecem ter a ver
com faltas relacionadas com o casamento/ sexualidade, tal não espantará. Em todo o caso, e
a comprovar‑se a hipótese da identificação de “bruxas”, esta será não tanto a mulher velha,
viúva ou solteira, mas sim a jovem mulher, de vários estados civis (casada, solteira, amanceba‑
da). Este último campo é porém particularmente difícil de analisar, uma vez que no total das
ocorrências apenas temos a certeza do estado civil de quatro mulheres (três casadas e a outra
amancebada com um clérigo).
118 · Maria de Lurdes Rosa
Vejamos agora o que podemos saber quanto às possessões que afectavam estas pessoas.
Aqui devemos falar de dois tipos: em primeiro lugar, os episódios sucedidos antes do milagre,
e fora da “jurisdição” de Santa Maria da Oliveira; depois, o momento final, específico porque
provocado pelos objectos e cerimónias sacras e consistindo numa dominação do demónio, ao
invés da sua livre manifestação. Como é evidente, sabemos muito mais sobre as segundas do
que sobre as primeiras. Tentemos, apesar disso, destrinçar as duas.
Nos oito possessos que referem o início cronológico do seu padecimento68, encontramos
uma maioria de cinco casos recentes (entre de um ano até uma semana antes do registo);
quatro destas possessões ocorrem já depois do início dos milagres, em Setembro de 134269 e
a quinta não muito tempo antes dele (por volta de Março de 1342). É sabido que a existência
de um centro produtor de milagres provocava, de certo modo, o surgimento de fenómenos a
curar70, no sentido de os tornar visíveis; mas provocaria a sua existência? Na tipologia mila‑
grosa em estudo, isto torna‑se mais importante. A revelação do poder de Nossa Senhora da
Oliveira poderia conduzir a uma espécie de agitação colectiva, criadora de tensões suficientes
para despoletar casos novos. No entanto, como alguns destes estão claramente ligados a pelo
menos um caso bastante anterior ao milagre inicial (mil. 10, que situa o início da possessão
“desde antes de” 1335 e que é dos últimos a ocorrer), pensamos estar antes face à emergência
de “fenómenos diabólicos”, ou práticas de vária natureza, até então escondidos ou ignorados.
E a possessão “antiga” aqui em discussão, revelada no exorcismo mais pródigo em denúncias,
seria conduzida à luz pela pressão do desvendamento das recentes... Acresce a isto o facto
de todos eles dizerem respeito a mulheres, pois os outros dois milagres antigos efectuam‑se
sobre homens. As nossas possibilidades de análise destes não são porém grandes, dada a
brevidade do texto do milagre 1. As duas possessões começaram numa época próxima‑ c.
1327 e c. 1325, e afectaram os dois únicos homens presentes. A distância talvez explique
as particularidades do caso de Tomar, e o laconismo do relato do milagre de S. Salvador de
Biqueira (habituação dos familiares ao estado da vítima). Em todo o caso, e para concluir
neste tema, é importante notar que ambas as vítimas se apresentam como possessos de longa
duração (dezoito e dezasseis anos).
Os relatos são parcos em pormenores sobre o que sucedia aos possessos antes da vinda
a Guimarães. Quase sempre os acompanhantes se limitam a indicar há quanto tempo o
possesso sofria; mas nos dois casos em que se alongam mais, ficamos a saber que a “doença
do demónio” “tragia [a possessa] muy tormentada”71 e que o demónio tomava outra “muy
brauamente”72 (adjectivo com que por vezes também caracteriza a tomada de possessão fi‑
nal)73. Para um destes casos e um terceiro, podemos saber que os demónios falavam – se bem
que as mensagens então dadas fosse atípicas, porque consistiam na promessa de deixarem as
suas vítimas, caso fossem levadas a Santa Maria da Oliveira74. Em suma, se podemos julgar
por estes testemunhos, os episódios de possessão eram momentos de grande dor, violência
e descontrolo – o que é corroborado por múltiplos exemplos afins, noutros locais e datas75.
Escritos eclesiásticos vários tinham mesmo definido uma tipologia de comportamentos vio‑
lentos e blasfemos, que indiciavam a possessão diabólica76.
Analisemos agora as possessões finais. Para principiar, a evolução do conjunto. É muito
interessante verificar que aquelas seguem uma curva ascendente, em termos de relação tem‑
po/ número de casos, que é tão mais significativa quanto contrasta com a cadência do con‑
junto dos milagres, assaz constante, como já dissemos: dois milagres no fim de Dezembro de
1342, e treze, catorze e quinze, nos três meses seguintes. Em Janeiro dão‑se três casos de cura
Santos e demónios no Portugal medieval · 119
de possessão, em Fevereiro dois; é em Março que eles explodem, alcançando um total de seis.
Além disto, neste mês há uma outra novidade: os demónios surgem/ são chamados em dias
mais variados que anteriormente: segundas‑feiras e domingos, para além do habitual sábado.
A variação começara na verdade no final de Fevereiro, com uma aparição fora do normal,
a última do mês, que se dera na “terça‑feira gorda”77. Pierre Sigal encontrou alguma lógica
nos ritmos semanais dos milagres – apesar de todas as suas variantes, seguem certas normas,
nomeadamente uma concentração maior ao domingo, e na sequência sábado/domingo/ se‑
gunda. Este padrão deve‑se, segundo o A., a uma maior concentração das cerimónias religio‑
sas nesses dias78. Apesar da diferença cronológica e espacial, pensamos que esta hipótese, de
substância doutrinal, se mantém no caso de Guimarães; mas que aqui também podem estar
presentes outras causas, mais presas com o “mundo dos demónios” (a que teremos ocasião de
regressar)79.
Em termos de conteúdo, as possessões finais são descritas em grande pormenor, dado
que formam parte do processo de cura em que consiste o milagre propriamente dito. A for‑
ma como principiavam não variava muito. Os demónios acometiam as suas vítimas “ao pé
da cruz”, fulcro sacral onde decerto estas eram colocadas e onde principiava a cerimónia de
exorcismo. Mais variada é a sequência dos episódios, como já aludimos ao analisar a estrutura
dos textos. Os demónios são interpelados pelos exorcistas com uma sequência ritual de per‑
guntas, destinadas a expulsá‑los, mas não desistem facilmente, desdobrando‑se em ameaças,
promessas, idas e regressos, até serem finalmente afastados (mesmo no relato mais curto, o
diabo amaldiçoa o momento e os presentes, antes de sair). Antes de tudo, notar‑se‑à como
estes meandros revelam uma força demoníaca importante, capaz de resistir em solo sagrado
a pontos extremos.
Importa agora caracterizar os partidos em presença. Os exorcistas, desde logo. Tanto
quanto expulsar o demónio, pretendem descobri‑lo e caracterizá‑lo. A identificação dos res‑
ponsáveis pelas possessões parece‑nos, de facto, um elemento central em todo o processo80.
Assim, forçam‑nos com a repetição da sequência de perguntas81, causam‑lhe dor, fazendo‑o
falar82, exigem‑lhe que cumpra o prometido83. Pouco sabemos sobre os responsáveis pelas
primeiras expulsões. Nunca são nomeados como sujeito, entrando em cena pela acção ritual:
“trauarom dele/a”84. É mesmo provável que no primeiro milagre não estivesse presente exor‑
cista, dado não serem reportadas as fórmulas por este proferidas (poderá ser problema de
registo, porém). O panorama muda a certa altura, quando surgem em cena três personagens
perfeitamente nomeadas, que se encarregam dos exorcismos dos milagres quinto a décimo
primeiro (precisamente de 25 de Fevereiro, terça‑feira de Carnaval, até ao final da tempora‑
da– não sendo portanto alheios, com toda a probabilidade, ao aceleramento das curas85). Em
termos pessoais, sabemos porém pouco sobre deles. O primeiro a surgir (chamado por um
demónio, como veremos)86, é um certo “Diogo Gil”, sobre quem apenas se diz que era filho
de “Gil Domingues de Guimarães” (mil. 5). Presente em cinco dos sete exorcismos desta se‑
gunda fase, está sozinho em quatro deles87. No último surge, a seu lado, um “Estêvão Louren‑
ço”, numa única ocorrência, e de quem somente sabemos que era “homem del Rei”88. Por fim,
operando sozinho nos dois exorcismos consecutivos que cortam a preponderância de Diogo
Gil, esteve “Gonçalo Peres, homem de João Peres Aranha, cónego” (sábado e domingo, 15
e 16 de Março)89. Reservamos para outro local as conjecturas que se podem fazer quan‑
to à natureza destas personagens90. Aqui, em termos objectivos, apenas podemos dizer que
120 · Maria de Lurdes Rosa
aparentam ser todos leigos, sendo a única ligação à Colegiada e ao estado eclesiástico a liga‑
ção clientelar de Gonçalo Peres a João Aranha.
O “ritual” de exorcismo aqui seguido merece alguma atenção. Referimo‑lo como tal
porque parece existir uma padronização ritual, tanto ao nível da palavra como dos gestos.
Sabemos, no entanto, que o exorcismo, enquanto cerimonial institucional, foi algo fluído já
bem entrado o século XV, e que, mesmo então, o controle eclesiástico foi menos forte do
que se poderia supor91. A presença de leigos entre os exorcistas foi comum e, dentro das fi‑
leiras eclesiásticas, a função não foi restringida ao alto clero92. Por fim, também as mulheres
podiam realizar exorcismos, como testemunha a Legenda dos milagres dos Santos Veríssimo,
Máxima e Júlia, num episódio que narra como uma “booa dona e de booa oraçom do dicto
mosteyro” interrogou o demónio e o levou à fuga final93. De facto, o que era indispensável
para o sucesso do exorcismo era a pureza de coração, ao nível mais íntimo, que só os de‑
mónios e, totalmente, Deus, podiam conhecer. A realização de exorcismos por eclesiásticos
com “pecados secretos” era de resto um exercício muito arriscado, pois a revelação destes
constituía um verdadeiro prazer para os demónios94. Em conclusão, parece‑nos que, no
caso vimaranense, os traços de ritual institucional – eventualmente, uma contaminação da
vizinhança eclesiástica – não devem obscurecer a verdadeira natureza do poder destes três
exorcistas – carismático e misterioso (veja‑se o seu “surgimento” a solicitação de um dos
“demónios”)95.
Face aos exorcistas, estavam as entidades identificadas como “demónios”. Vejamos o que
o texto nos diz sobre eles, entrando assim na análise das possessões propriamente ditas. Te‑
mos pormenores sobre dez demónios protagonistas das possessões96, vários “companheiros”
(seis explicitamente nomeados e alguns indiferenciados), e um associado (?) a casa de quem
um destes seres vai buscar o “sinal”, mas que não é referido como demónio97.
Antes de prosseguirmos, é importante uma precisão. No texto que se segue, identificam
‑se os demónios como actores. Tenhamos presente que esta é uma opção de comodidade ex‑
positiva. Como é evidente, quem falava eram os possessos, no momento vítimas (conscientes
ou inconscientes) de uma duplicação de identidade que os levava a assumir a presença de um
ser estranho dentro de si. Em qualquer caso de possessão, os “demónios” são sempre uma en‑
tidade outra; a sua ligação ao real que rodeava os possessos é que reveste diversas modalidades
– nomeadamente: mortos, vivos, parentes, amigos, desconhecidos, personagens vagas e/ou
inverosímeis, fantásticas. Neste caso, foram todos perfeitamente identificadas, irrompendo
na cena histórica como verdadeiros ausentes‑presentes. Mortos e/ ou vivos, foram acusadas
como demónios possuidores, pessoas contemporâneas do que se estava a passar. Importa
portanto ainda mais caracterizá‑los como seres dotados de realidade, para melhor perceber a
sua ligação aos possessos.
Voltemos então às diferentes modalidade de demónios nomeados. Os primeiros, ou seja,
os protagonistas das possessões, debitam quase sempre o nome (apenas um se recusa expli‑
citamente a fazê‑lo)98 e, menos frequentemente, a profissão, a origem e a filiação99. A estes
respeitos, sabemos que um dos acusados demónios fora tabelião e o outro (era?) clérigo; que
um era filho de um certo “Martim Domingues” e o outro, “do Redondo”. Um único des‑
tes demónios menciona claramente que está morto, “em pena” e “em pecado”; outro poderá
implicá‑lo, ao referir que “por esto andaua em el”, se entendermos esta última palavra no
sentido do caso anterior (“condenação”, “pena”) e não em relação a possuir a vítima100. Quan‑
to aos restantes, nenhum é explícito sobre isto, embora do relato do que se intitula “André
Santos e demónios no Portugal medieval · 121
Domingues” seja possível inferir que se identificasse como vivo: nomeia os seus “sete com‑
panheiros” e diz que todos viviam, excepto um (Estêvão Domingues, do mil. 4), parecendo
incluir‑se entre os primeiros101. A associação diabólica surge aqui explicitamente e, de forma
um pouco confusa, em dois outros relatos (mils. 9 e 11)102. Em todos os restantes casos, os
demónios agem sozinhos, ou pelo menos não denunciam companheiros (embora, como vi‑
mos através da cartografia, se possam detectar várias conexões entre eles). Três demónios, por
fim, indicam outros pormenores sobre si próprios, que nos abrem a porta para uma percepção
da sua(s) natureza(s).
Estêvão Domingues, o “tabelião de Baião”, já falecido, dissocia claramente o motivo
porque possui alguém da razão do seu estado. Assim, esta reside num pecado praticado
em vida, a alteração fraudulenta dos limites das suas propriedades, através do desvio dos
marcos103. O castigo de tal, porém, não o lançara na condenação eterna, mas sim “naquela
pena”, e numa outra, que apresenta autónoma, ao que cremos porque, enquanto a primeira
afectava a alma, esta dizia respeito ao corpo: “a terra não o comia”, apesar de estar enter‑
rado em solo sagrado (na igreja de Santa Marinha de Paços). Ambas eram temporárias,
podendo ser interrompidas pelos seus filhos, caso restituíssem os bens roubados e man‑
dassem rezar quinze missas na igreja da sepultura e outras quinze em Nossa Senhora da
Oliveira104. Segundo esta narrativa, Estêvão Domingues parece mais uma “alma em pena”
do que um demónio, o que já não sucederá na sua segunda comparência nos relatos, que
adiante analisaremos105.
O “demónio” Afonso Garcia não faz um relato tão composto do motivo do que terá sido
a sua perda, mas remata uma descrição pormenorizada de infracções ao parentesco espiritual
e ao celibato clerical, mesclada de violência sexual, com a observação “e que ffezera outros
maaos ffeitos que por esto andaua em el”106. O texto não é claro, mas percebe‑se da existência
de uma repetida relação de compadrio entre a família do possuído (este ou o seu pai) e o
clérigo, incidindo sobre os quatro filhos deste; talvez as crianças fossem filhas de uma irmã
(ou filha) do possuído, com quem Afonso Garcia “fora (...) e teue‑a em sseu poder ffazendo
com ella sa vontade”107 (eventualmente cedida pela própria família).
Por fim, o “demónio” André Domingues, já referido, apresenta‑se como membro de uma
“companha” de demónios, com pelo menos um morto (talvez dois, se ele assim estivesse)
e seis vivos (sete se contarmos com ele). Entre eles conta‑se um animal, um porco, ao que
cremos associado a um homem concreto, mas sem que sobre este sejam incluídos mais por‑
menores108. É importante referir que entre estes companheiros é incluído o tabelião Estêvão
Domingues, a auto‑identificada “alma em pena” do milagre 4, sem a menor alusão ao pecado
dos marcos, mas antes equiparado aos outros companheiros, que possuíam em grupo a víti‑
ma. Do mesmo modo, é muito relevante a presença de vivos, porque aponta não já para almas
em pena mas para a acusação de prática de associações diabólicas.
Nem todos os demónios identificam, ou aludem, à causa da possessão que exercem sobre
as vítimas: apenas seis o fazem. Um destes é evasivo, remetendo para a consciência de um
“pecador” (mil. 5)109; da “fala” do outro, o já referido clérigo Afonso Garcia, é possível conjec‑
turar que a possessão de um membro da família esteja ligada a uma convivência pecaminosa,
de parte a parte (mil. 6). Os restantes quatro, porém, são claros: os possuídos tinham‑lhe sido
“dados” (mils. 4, 8, 10 e 11). Estas doações processaram‑se, no entanto, segundo diferentes
modalidades e contornos.
122 · Maria de Lurdes Rosa
É pois capital percebermos o sentido das doações diabólicas. Podemos estar, por um lado,
no campo das consequências das maldições (que, se se liga ao diabo, tem uma abrangência
bem maior); mas também poderemos estar em presença de pactos voluntários, em que a
aliança com o demónio seja alcançada ao troco da cedência de uma pessoa. O primeiro caso
surge em várias narrativas de possessões diabólicas: alguém, irado, “dá ao demo” o seu anta‑
gonista, que passa literalmente a pertencer àquele110. Esta forma de aquisição de bens poderá
mesmo ter o seu lado pícaro, fazendo do demónio um ser mais ridículo que temível – no caso
de Guimarães, um dos demónios vai buscar um sinal, uma pedra, a um monturo, que é sua
porque um homem, magoado porque ela lhe entrara no sapato, a arremessara dizendo “que a
daua ao demo”111. No entanto, não se deve subestimar a força das maldições, nas sociedades
antigas. Como têm salientado diferentes autores, as maldições tinham mesmo poderosas co‑
notações positivas, podendo ser consideradas arma legítima contra a injustiça do mais forte.
Neste sentido, foram usadas pelas comunidades monásticas nos séculos X e XI, e perduraram
longamente na tradição católica sob formas diversas, apesar da relutância das mentes mais
esclarecidas112. E recorde‑se como, já em finais do século XV, Duarte Galvão sentiu neces‑
sidade de se ocupar longamente em clarificar o assunto da maldição materna que pesava
sobre Afonso Henriques, e que teria conduzido à factura da perna do monarca, no cerco de
Badajoz. Longe de a refutar como superstição, o cronista admitiu‑a como tendo sido efectiva,
e reflecte sobre a prudência que pais e filhos devem ter neste âmbito113. Porém, a maldição
familiar, se era considerada grave, porque correspondia a um pecado contra a caridade que
devia imperar nas relações de família114, podia ser compreendida, se justa (punindo filhos que
ofendessem ou desobedecessem aos pais). Tingida de legitimidade, a sua eficácia aumentava
enormemente115.
Regressando ao caso vimaranense, verificamos que todas as maldições se passam no âm‑
bito familiar: uma mãe e duas filhas, outra mãe e a filha, um irmão e a irmã. Num único caso
se apresenta a razão, que no enquadramento acima referido poderia ser considerada legítima:
a filha não quisera cumprir a vontade da mãe quanto ao casamento (mil. 4). Teríamos assim
uma história de desobediência em torno de um ponto fulcral na comunidade familiar e cam‑
pesina, culminando numa forma ameaçadora de imposição da ordem – nada de mais “sério”
do que isto, digamos, estaria por detrás da doação da filha aos diabos.
A situação pode porém complicar‑se quando se verifica que a mesma mãe “dá” outra
filha, Maria “pequena” a um grupo de diabos, aqui sem que se apresente motivo para tal (mil.
10)116. Esta possessa, além disso, parece estar à margem do grupo familiar, pois co‑habitava
com um clérigo, da mesma igreja, aliás, de um dos eclesiásticos acusados de pertencer ao
referido grupo117. Por fim, os dois outros casos de doação ao diabo surgem igualmente sem se
considerar necessário apresentar motivo justificativo, e um deles inclui também, ao que tudo
indica, “companhas diabólicas”.
Poderemos entrar, nesta sequência, na segunda hipótese acima enunciada: as “doações”
podem ser “pactos com o diabo”? O(a) doador(a) teria entregue o seu familiar ao diabo não
já em função de uma ira justa, embora deslocada, mas sim para alcançar objectivos perversos.
Há que pensar, antes de mais, se esta não poderá ser uma explicação fabricada. Com efeito,
os elementos que a indiciam têm algumas particularidades. Podemos fazer uma leitura ao
contrário do parágrafo anterior. Até à denúncia do milagre 4, não se conseguem saber as
razões das possessões; neste, indica‑se a mãe como culpada, mas com o motivo prosaico do
casamento recusado; não há nada sobre “companhas diabólicas”; “Estêvão Domingues”, o
Santos e demónios no Portugal medieval · 123
demónio, tem os contornos claros de uma “alma penada” que, na época ainda (e, em certos
meios, até muito mais tarde), podiam possuir os vivos para conseguirem indicar os meios da
sua salvação118. Ao vermos que é a partir deste milagre que se torna constante a presença dos
exorcistas identificados, podemos pensar que a sua acção transforma um motivo tradicional
num indício de algo mais complicado? E a segunda denúncia da mesma mãe, no milagre 11,
trazendo consigo a identificação pormenorizada dos “companheiros”, poderia assim ser fruto
de um efeito de catadupa ou, alternativamente, sinal de rancores comunitários profundos?
Os acusados de terem feito algum tipo de pacto com o demónio poderiam, neste caso, ser
meras vítimas inocentes.
Não sabemos até que ponto se consegue responder cabalmente a estas perguntas. A fonte
é demasiado lacónica, apesar da sua riqueza; e falta‑nos tudo sobre o enquadramento das
gentes envolvidas. Não há, por exemplo, qualquer vestígio de processo legal associado a estas
revelações, que parecem de molde a suscitá‑lo. Nem sequer ao endereçar ao rei o livro de
milagres, o tabelião que tudo registou faz qualquer apelo nesse sentido. Por outro lado, alguns
indícios refreiam‑nos a aceitar totalmente a tese da construção pelos interrogantes, de resto
contestada pela historiografia. No milagre 3, antes da intervenção de Diogo Gil, já há o que
pensamos ser uma alusão ao canto do galo como sinal de conclusão da presença demoníaca,
com a particularidade de se poder estar em presença de um “animal próprio” e não do galo
comum119. E deve por fim salientar‑se que a intervenção destes exorcistas conhecidos teve
as suas limitações. Os demónios falam sem dúvida mais, sendo a tal pressionados; mas as
respostas não se alargam muito mais dos que nos milagres 2 a 4, e há mesmo um demónio
que se recusa a responder, com sucesso (mil. 7), e vários outros pouco generosos, nas suas
respostas (mil. 5, 9 e 11).
Mas, se não há somente indução, também não se pode afastar a ideia de uma progressiva
reconstrução das figuras diabólicas. Tentemos procurar respostas no campo dos “companhei‑
ros do diabo” (mil. 10). Para além dos referidos indiferenciadamente, há um grupo de pesso‑
as perfeitamente identificadas, que constituem, a par dos demónios possuidores, o segundo
maior grupo de denunciados. Aqui está‑se, sem dúvida, em presença de algo muito diverso
de casos eventualmente tradicionais de maldições comunitárias. Pela “orelha” da possessa, um
demónio também ele totalmente referenciado, nomeia os membros de um grupo que possui
em colectivo uma vítima que lhe for dada pela mãe. Este testemunho é além disso importan‑
te porquanto se insiste em que quase todos estão vivos e não são, portanto, almas em pena.
Por fim, situa‑se no coração do “epicentro diabólico”, em termos geográficos e de conexões
a vários níveis120. Os seis acusados humanos pertencem todos à região de Santa Marinha do
Zêzere / Baião / Santa Maria de Sedielos. Sobre um nada mais se diz, além do nome (Estê‑
vão Pires); entre os restantes, encontramos dois tabeliães, um ex‑“vogado”, agora juiz, e dois
clérigos. De um dos homens de leis, diz‑se que é “velho”; de outro, que está morto. Completa
o grupo, além do próprio demónio acusador, o já referido animal, não por caso um “porco”.
Teremos ocasião de voltar aos conteúdos destas caracterizações. A questão aqui é a do
lugar deste milagre: central, proporcionando explicações para os restantes casos, ou excên‑
trico e original? A decisão por uma ou outra resposta pode condicionar de forma decisiva a
interpretação de todo o caso. Dentro do que podemos afirmar, tendo em conta os limites da
fonte, cremos que neste milagre reside uma importante fonte de compreensão, que coincide
com os dados da “geografia diabólica” apresentada mais acima. O diagrama seguinte conden‑
sa as bases da nossa convicção:
124 · Maria de Lurdes Rosa
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Fosse porque motivo fosse, a 24 de Março de 1343, uma das possessas procedeu à mais
longa confissão de todos os onze casos, implicando pessoas vivas numa forma de “associação
diabólica” que poderá estar presente em pelo menos oito dos restantes casos (mils. a 5 e 8,
9, 11). É certo que alguns dos laços são ténues e entrepostos; mas a sua maioria parece‑nos
suficientemente forte (ou plausível) para defendermos esta explicação como a mais provável.
Não afastamos a presença de várias outras camadas neste fenómeno complexo, à semelhança
de outros casos estudados, no Ocidente tardo‑medieval121. Assim, poderemos estar face a
manifestações da “cultura popular” em relação aos demónios (donos dos “malditos”), bem
como a intenções moralizantes sobre determinados pecados, particularmente gravosos, neste
tipo de organização social (a mudança dos marcos e o incesto, sendo que este último remete
também para uma categoria especial de falta)122. Podemos, ainda, assistir a graduais modifica‑
ções da visão tradicionais das visitas das almas em pena, ou, por fim, a manifestações de poder
Santos e demónios no Portugal medieval · 125
por parte de mulheres mais ou menos marginalizadas. Sobrepondo‑se a tudo isto, afirma‑se
a existência de um núcleo de pessoas que praticava reuniões de carácter mágico, associadas
pelos seus denunciantes (e/ou participantes) a “companhas diabólicas”.
5.1. Os demónios
Os vestígios da caracterização das entidades diabólicas não são unívocos. Estêvão Do‑
mingues, uma vez alma em pena, outra, membro de uma “companha de demónios”, é talvez o
caso mais notório. Para o historiador, é uma figura fascinante, pois nele parecem congregar‑se
duas camadas interpretativas de origem diversa, a “popular” e a teológica. No milagre 4, é de
motu proprio e após a ejecção do sinal que garantia a saída da possessa, que este “demónio”
se identifica como andando “em pecado”, confessando a sua falta e pedindo aos filhos a ce‑
lebração de determinadas missas, em locais certos, de modo a poder libertar‑se. Pensamos
ser possível estarmos aqui em presença de respostas a um exorcismo mais aprofundado, uma
vez que, caso se verificasse útil e necessário, este ritual podia incluir perguntas tão precisas
quanto o número de missas, os locais de celebração, o tipo de sacerdotes125. Há no entanto
– já no mil. 4, completando‑se no milagre 10 – outros temas deste “demónio” que merecem
nota, tanto isoladamente quanto pelo seu re‑agrupamento numa mesma figura; a profissão
(tabelião); a eventual pertença à “companha”; a afirmação de que “a terra não o queria comer”;
a questão dos marcos.
Em relação ao primeiro tema, refira‑se que as profissões ligadas à manipulação escrita da
lei estiveram sob suspeita na Idade Média, tanto por parte dos homens de Igreja, como das
camadas populares126; por outro lado, entre os virtuais praticantes de magia diabólica, encon‑
tramos com frequência homens de leis e clérigos127, perfil em que se enquadram a maior par‑
te dos “companheiros diabólicos” do Estêvão Pires do milagre 10, para além dele próprio. De
resto, não só neste milagre: a tipologia das profissões exercidas pelos demónios possessores
e associados é elucidativa, já que todos aqueles para quem temos informação neste aspecto,
vêm do mundo das leis e da Igreja: dois tabeliões (mil. 4 e 10), três clérigos (mil. 6 e 10), um
“vogado” e juiz (mil. 10).
126 · Maria de Lurdes Rosa
Estes demónios, por acréscimo, pertencem todos, excepto o clérigo incestuoso do milagre
6, à única associação demoníaca explícita do conjunto dos relatos (dado que pouco ou nada
podemos saber dos “companheiros” dos “Pedros” dos milagres 9 e 11)128. Vejamos este proble‑
ma mais de perto. Em conjunto com o “cochom”, um grupo de homens129, entre os quais dois
clérigos e três homens de leis, “tinham” uma moça que lhes fora dada pela mãe, há mais de
oito anos (mil. 10); “tinham” talvez, também, a sua irmã, que pelo menos pertencia a um deles,
o tabelião Estêvão Domingues (mil 4 e 10). Estavam todos vivos, excepto este último, com
quem estabeleceriam ou uma relação de companheirismo (neste caso sendo falsa a declaração
que fizera no mil.4), ou de subjugação (demónios controlando uma “alma em pena”). O que
se descreve, neste passo tão importante quanto difícil? A “companha” tem características bem
marcantes: incluiu um morto, vivos, um animal particularmente relacionado, na tradição cris‑
tã com as forças do mal (saliente‑se a relevância, para o nosso contexto, das ligações do porco
tanto aos demónios como aos maus mortos130), e possuía uma mulher (pelo menos). Por fim,
como acima referimos, é possível que por detrás das “doações” aos demónios estivesse alguma
forma de pacto.
Algumas características de membros deste grupo, embora parcamente referidas, podem
dar‑nos mais algumas pistas. 1) A presença dos clérigos poderia apontar para a uma acusa‑
ção de nigromância ou liga‑se a acusações de concuspicência (uma das “dadas” morava com
um eclesiástico)? 2) Quanto ao porco, como dissemos, foi com frequência assimilado aos
demónios, desde logo pela narrativa evangélica sobre a transferência, por ordem de Jesus, dos
espíritos malignos que atormentavam um homem, para os porcos de uma vara que passava
perto131. No relato vimaranense, há uma particularidade interessante, que é porém de difícil
solução. O “cochom” vem descrito como sendo de alguém, mas as dificuldades de leitura
do manuscrito não permitem perceber a primeira palavra de um grupo de duas, sendo a
segunda, sem dúvida, “Pedro”. A leitura tradicional de “cochom de Sam Pedro” parece‑nos
errada, paleográfica e interpretativamente132; propomos, em alternativa, “cochom de Estêvão
Pedro”, remetendo para uma personagem concreta (na mesma linha de acusação de pessoas
bem diferenciadas do resto do milagre), ou uma ligação qualquer a “Pedro”, nome que é o
de dois demónios presentes (mil. 9 e 11) e que, como diremos de seguida, é um dos nomes
do diabo, na tradição popular portuguesa. 3) Se juntarmos ao Estêvão Domingues da “com‑
panha” o primeiro castigo de Estêvão Pires, no milagre 4, ou seja, a ausência de consumação
do cadáver, estamos em presença de um castigo que é atribuído normalmente aos apóstatas
e feiticeiros133.
Perante tais características, cumpre a interrogação sobre a presença, nestes relatos, da
“diabolização” do sobrenatural de traços ameaçadores, no sentido dessa manifestação especí‑
fica de reunião demoníaca que foi conhecida como “sabat”, e que se foi constituindo durante
o século XV134. A ser assim, estaríamos em presença de uma manifestação muito precoce
desta apropriação clerical das relações entre os vivos e a variável mistura de almas penadas/
seres maléficos/ mortos.
A escassez dos dados convida‑nos à prudência, pois não é fácil interpretar os sentidos. Por
outro lado, a creditação do “demónio” Estêvão Domingues, no milagre 4, com a alteração dos
limites das propriedades pela manipulação dos marcos, que surge em Cesário de Heisterbach
como um dos pecados que mais ameaça a alma dos camponeses135, poderá apontar para uma
camada menos “diabólica” da figura de Estêvão Domingues. No Dialogus miraculorum, como
no nosso caso, a promessa de restituição e o arrependimento/ confissão, evitavam a condenação
Santos e demónios no Portugal medieval · 127
eterna. Tudo aponta para que a transformação desta “alma penada” em eventual demónio não
se tenha feito sem equívocos e sobreposições, em função da longuíssima duração do processo
de aceitação do Purgatório e da nova espacialização dos mortos136.
Vejamos agora outros elementos constitutivos da imagem diabólica, não associados à
“companha”. O “galo cantante” está presente em duas ocorrências, em ambas dando o sinal
para a saída do demónio (mil. 2 e 5), o que coincide com a designação da noite como mo‑
mento privilegiado para a actuação diabólica, que cessava quando a luz voltava a imperar
sobre as trevas137. No entanto, no segundo relato, há dois galos, e o demónio só deixa a sua
possuída ao canto do derradeiro; recusa‑se mesmo a obedecer ao exorcista Diogo Gil, que
o manda sair ao canto do galo, alegando que esse não era o “galo verdadeiro”. Ora, em Gil
Vicente, refere‑se como um das formas do diabo precisamente a de um “galo negro”, que
cantava para assinalar o fim das assembleias demoníacas138. Poderemos estar face a um tour
de force do demónio que possuía Justa Peres, que se reconhece vencido mas que não desiste
facilmente e que apenas sairia convocado pelo seu chefe, e não expulso.
Há por fim um conjunto de outros atributos do demónio com referenciais difíceis de
localizar, em termos de origem, mas que coincidem com as imagens diabolizantes tardo
‑medievais. Temos, em primeiro lugar, a rapidez com que processam as viagens dos demó‑
nios. Nos cinco casos em que se referem durações concretas, apenas uma pode fazer dúvida:
no mil. 6., em que se dá “da noite para o dia” ao demónio; em todos os outros, o demónio
“vem a cabo de pouco” (mil. 3 e 8), vai “mui toste ao Alemtejo” (mil.7) e “alla de perto veo”
(mil. 4). Esta capacidade de enganar a distância está repertoriada em múltiplas ocasiões, de
que podem ser exemplo, a montante, a história do “cavalo pardalo”, no Livro de Linhagens do
Conde D. Pedro 139 e, a jusante, as deslocações de dois demónios, entre o mosteiro de Santa
Maria de Aguiar e Alcácer Quibir, entre 4 e 5 de Agosto de 1578140. A extrema rapidez nas
deslocações era concedida pelo demónio aos seus sequazes, para que pudessem reunir‑se com
ele nos locais distantes onde se realizavam as assembleias, sem que ninguém notasse141. Esta
característica das feiticeiras e demónios foi, de resto, lida por Carlo Ginzburg como uma
transformação do acompanhamento ritual de uma divindade feminina arcaica142. Pode ainda
associar‑se a outras modalidades da diversa passagem do tempo sobrenatural, que tem eco
medieval nos romances do “monge e do passarinho” e todas as suas variantes143.
Entre outras características dos demónios vimaranenses que merecem relevo temos os
seus nomes, que depois vamos encontrar na tradição popular portuguesa, em especial o de
“Pedro” (lembre‑se o “Pedro das Malas‑Artes”) e, de forma mais hipotética, o de “Fargalho”,
que poderá remeter para “Galhardo”, epíteto ambíguo que evoca a beleza sedutora do de‑
mónio144. Estas identificações, que seriam, então, jocosas e não realistas, remetem‑nos para
o problema das identidades diabólicas destes milagres. Com efeito, parece existir um duro
jogo de medição de forças entre os exorcistas que tentam alcançar uma caracterização o mais
concreta possível dos demónios, e estes últimos, que resistem. Neste campo haverá que referir
o demónio que recusa totalmente a dizer o nome (mil. 7). Toda a questão é complexa, pois
os sentidos podem ser múltiplos. Nos exempla medievais do século XIII são frequentes os
casos de possessos com demónios que servem de coro da tragédia, ou de consciência moral
acusando hipócritas que escondiam pecados – com frequência, os próprios eclesiásticos que
os queriam exorcizar – associando‑se a eles ou não145. Na esteira de outros estudos, José Mat‑
toso salienta a novidade pastoral que eram estes relatos, ligando‑os ao desenvolvimento da
imposição da confissão auricular depois de 1215146. A denúncia de pecados secretos, próprios
128 · Maria de Lurdes Rosa
ou alheios, pelos espíritos possessores, era algo de socialmente aterrador. No caso vimaranen‑
se, a identificação dos diabos parece conduzir a momentos deste tipo, em que são acusados
tanto familiares dos possessos como outros, desconhecidos ou não. As identificações jocosas
poderiam assim ser mecanismos de protecção, contrabalançando com as identificações pre‑
cisas de outros milagres?
Um conjunto mais esparso de temáticas diabolizantes é igualmente importante. Parece
‑nos facilmente reconduzível à diabolização dos espíritos a ideia de que a estola dos exor‑
cistas causa dor aos “demónios”, fazendo‑os confessar (mil. 9). Trata‑se de um reforço dos
aspectos rituais do exorcismo, que no período em estudo não revestia ainda as características
formais muito acentuadas da Época moderna147. No entanto, já se aconselhava a colocação de
estola148, e a obrigação de envergar algum tipo de vestuário ritual, como condição de eficácia,
passa a fazer parte da construção social da figura do mediador dos demónios149.
Já dentro de um espectro mais alargado de referentes se situarão os últimos atributos que
referiremos. Em primeiro lugar, a condenação do demónio Afonso Garcia pelo pecado de
incesto – note‑se que não por infracção ao parentesco de sangue, mas sim ao espiritual (mil.
6). Parece‑nos nítida a influência eclesiástica150. Por outro lado, é interessante referir que, a
estar morto, e ser uma alma em pena, ou em condenação infernal, o demónio protagonista
desta cena usa como canal de comunicação um seu parente espiritual. Pela escassez da fonte,
não nos é possível saber se estamos perante uma associação de um vivo ao pecado de outro
(ou de um morto) ou face a uma tentativa de confissão reparadora. Seja como fôr, lembre‑se
que os laços de parentesco, incluindo os espirituais, parecem ter jogado um papel relevante na
continuidade de contactos entre os vivos e os mortos, como salientaram diversos autores151.
A questão dos “sinais” deixados pelos demónios como penhor da libertação dos possuídos
é muito interessante. Esta componente é frequente nos relatos de possessão, quer em fontes
portuguesas quer em estrangeiras152, mas a sua explicação não é fácil. Terá a ver, por um lado,
com a exigência de comprovação de saída, que a relação de exorcismo estabelece com as en‑
tidades diabólicas; por outro, com a crença na existência de “sinais” mágicos, testemunhos da
presença do sobrenatural no mundo terreno. Poderá ainda, segundo José Mattoso, encontrar
a sua explicação na tradição do óbulo de Caronte, que o morto levava na boca para pagar
a passagem para o outro mundo153. A materialidade dos sinais, por fim, relaciona‑se com a
convicção, religiosa e teológica, de que a possessão diabólica era uma espécie de constrangi‑
mento físico sobre o corpo e, sobretudo, sobre alma‑ já que a “possessão” desta pelo Espírito
era apenas possível a Deus154. Nem sempre é fácil, porém, discernir o sentido dos diferentes
sinais... Não temos a sorte de estar face a demónios explicativos, como os que assombraram
duas possessas em 1578, no mosteiro de Santa Maria de Aguiar: interrompendo a possessão
para se irem “abastecer” de almas ao desfecho de Alcácer Quibir, quando regressam e são
expulsos, comprovam o local da deslocação pelo sinalização de saída com pedaços de esporas
e de setas, explicando ainda que uma das esporas pertencera ao cavalo de um “alcaide arrene‑
gado” 155.. Mas este caso pode‑nos ajudar a perceber que os “sinais” parecem ser pertença dos
diabos, “vindos” com as almas que lhes pertenciam... – o que aclararia a referência, no mil.
8, a um sinal consistindo numa pequena pedra, que era propriedade do demónio porque um
caminhante, zangado quando ela lhe entrara no sapato e o magoara, a lançara ao ar, “dando‑a
ao demo”. A esta luz, a grande presença de moedas entre os sinais (nove, em onze casos), im‑
plicaria uma “danação do dinheiro”, uma conotação extremamente negativa do mesmo? Por
arrastamento, quando o demónio do milagre 6 diz que vai buscar o sinal (um “dinheiro novo
Santos e demónios no Portugal medieval · 129
superioridade, decerto, mas mesclada de uma certa protecção e mesmo benevolência. No dia
deste Santo, “o diabo anda à solta”, acreditava‑se no século XIX em várias zonas de Portugal
e no Brasil167. Mário Martins, aliás, refere‑se em 1962 a alocução como a um dito popular
contemporâneo, sugerindo, para a sua origem, precisamente a libertação do demónio da es‑
tátua de Astaroth168. Deve por fim mencionar‑se, como relevante neste âmbito, a célebre
romaria do “banho santo”, em S. Bartolomeu do Mar (Esposende), na qual tem lugar central,
pelo menos desde o século XVI, um intrincado ritual de protecção das crianças em relação
aos poderes do demónio, que envolve elementos de magia ritual, como a dádiva de um galo
negro169. As crianças afectadas por epilepsia são as grandes protagonistas dos rituais, tal como
o eram as “endemoninhadas”, genericamente, numa outra romaria de S. Bartolomeu (a 23
de Agosto, véspera da festa), a de Ponte de Cabez, no Minho, que ainda em finais do século
XIX reunia multidões170.
A este respeito é interessante referir que a eventual relação dos demónios vimaranenses
com épocas de “mundo ao contrário” (ou “de Diabo à solta”, como era o dia de S. Bartolo‑
meu)171 pode ainda estar subjacente à importância que terá tido a Terça‑feira de Carnaval
no despoletar da segunda fase das curas de possessão – marcada tanto pelo aumento da
frequência dos casos, como pelo surgimento dos exorcistas identificados. O primeiro destes,
realce‑se, entra em cena chamado, pelo nome, por um diabo, que só a ele queria dar o “si‑
nal”... Em relação aos “tempos dos demónios” vimaranenses, por outro lado, há que salientar
que, a partir deste momento, os exorcismos passam a suceder também à segunda feira, para
além dos habituais sábados e domingos172. Tratar‑se‑à de algo sem especial significado, ou
poderemos estar em presença de uma relação, de qualquer tipo, com a tradição do “descanso
dos danados”? Esta, que se encontra em fontes tão diversas quanto a Viagem de S. Brandão
e os exempla de Estêvão de Bourbon, vai de par com a inovação litúrgica verificada desde o
século XI, que consiste em orações especiais pelos mortos na noite de domingo para segunda,
momento em que aqueles eram de novo entregues aos castigos eternos. O uso difunde‑se nos
dois séculos seguintes, e encontramos em fontes eclesiásticas uma devoção específica, com
procissão nos cemitérios, benção dos túmulos, e celebração de missas pelos defuntos173. Po‑
derá este ínfimo indício levar‑nos, de novo, à pista das almas em pena? O primeiro “demónio
das segundas” é o clérigo incestuoso, que talvez esteja morto; o segundo é André Domingues,
o revelador da “associação diabólica”, que parece estar vivo. Não cremos, assim, que seja muito
clara aquela associação. De novo, são mais as perguntas do que as respostas.
Quanto aos demónios, vejamos por fim uma última característica, também ela rodeada de
alguma perplexidade nossa. No milagre 10, o demónio insiste em que lhe falem pela orelha da
possesa, e fala ele próprio por esse orifício. Este passo remete, claramente, para a questão das
“entradas do corpo” que, em termos da fisiologia da possessão diabólica, tal como a construiu
a Igreja medieval, eram considerados portas de entrada para os demónios174. Poderá ainda
indiciar da “confusão dos sentidos”, sinal de acção diabólica, ou da errância do demónio pelo
corpo, que é mencionada em obras teológicas e em exempla, a propósito do confinamento do
domínio do ser maligno ao corpo, e não à alma, dos possuídos175.
Como acabámos de ver, a identificação dos seres sobrenaturais está extremamente conta‑
minada pela figura do demónio judaico‑cristão, a ponto de formar com ele uma unidade com
identidade própria – ainda que dotada das contradições que tentámos destrinçar. É possível,
sem cairmos na procura do paganismo original, encontrarmos algumas raízes pré‑cristãs
para o(s) ser(es) fantástico(s) em presença? Algo semelhante, por exemplo, aos estudos de
Santos e demónios no Portugal medieval · 131
5.2. Os homens‑santos
Relacionada com a questão dos demónios, mas ultrapassando‑a, está a última temática
que abordaremos. Referimo‑nos aos exorcistas dos milagres 5 a 11, que acima descrevemos.
Serão apenas personagens desempenhando, à sombra da Colegiada, um ritual de exorcismo
mais ou menos ortodoxo, ou os traços mais estranhos que lhe apontámos, indicam de algo
de mais complexo? A hipótese que consideramos mais plausível é a de que possam ser um
testemunho trecentista dessas figuras que apenas conseguimos conhecer com precisão bem
entrado o século XVI, nos documentos inquisitoriais, e que perduram nas práticas populares
quase até aos nossos dias181: os “entre‑abertos”. No seu estudo sobre a bruxaria e superstição
no século XVII, José Pedro Paiva consegue desenhar esta figura com contornos claros: quase
exclusivamente mulheres, na zona de Entre Douro e Minho, praticavam curas “(...) através
de ensinamentos que lhes eram transmitidos por espíritos com os quais “contactavam””182. O
mesmo autor encontra uma “similitude de alguns dos procedimentos (...) com o que se passa‑
va no Friuli italiano com os “benandanti”, ou na Sicília com as “donas de fora”, ou na Hungria
com os “taltos””183. Eram chamados para tratar os possessos, e a cura processava‑se através
da entrada numa espécie de transe, durante o qual lhe falava o espírito que possuía a vítima,
revelando‑lhe as medidas a tomar. Alguns deles punham de seguida em prática as instruções,
conseguindo “lançar fora os espíritos”, que eram encaminhados para locais de perdição ou de
salvação, consoante a sua má ou boa natureza184. É certo que as semelhanças com os nossos
exorcistas não são grandes, a começar pelo sexo e a terminar no que será mais importante,
numa consideração comparativista da figura, como a que faz o autor que temos vindo a citar
– o transe. Não há vestígios claros de tal nos nossos milagres, embora os intervalos nas pre‑
senças de vários demónios, aos quais se sucedem as respostas, a emissão dos sinais e a expul‑
são, possam sugerir (meramente) algo afim. Em termos certos, o pormenor mais consentâneo
com uma hipotética natureza carismática dos “exorcistas” é a convocação de um deles por um
dos demónios, em terça‑feira de Carnaval, como acima dissemos. A situação intermédia de
gozavam os “entre‑abertos”, e que os habilitava a facilitar os contactos entre o mundo dos
homens e o dos espíritos, poderá nos nossos casos ser indiciada por esta data, dia em que as
contaminações entre mundos diversos eram nota185? Por outro lado, o reconhecimento pelo
primeiro demónio do poder de Diogo Gil, e as subsequentes confirmações deste, com outros
demónios, conferiram‑lhe decerto um estatuto superior (porventura ambíguo), mesclado de
mistério. O desempenho bem‑sucedido de um exorcismo ritual completamente ortodoxo só
por si conferia prestígio e reputação de proximidade divina, a par, por vezes, de suspeitas de
associação diabólica – em todo o caso, uma posição de poder186. O mesmo desenlace feliz,
em situação de alguma anomalia institucional, como era o caso vimaranense, seria de molde
a fazer crer numa natureza privilegiada destes homens, que parecem ter sido, em termos de
estatuto social, leigos e banais habitantes da vila.
Nesta última parte do nosso trabalho iremos formular hipóteses (sobretudo) sobre uma
última forma de espacialização das possessões de Guimarães. Parece‑nos plausível a defini‑
ção de três instâncias diversas.
Santos e demónios no Portugal medieval · 133
1342 a Maio de 1343, com cuja descrição abrimos este artigo. Nas palavras de José Mattoso,
estar‑se‑ia em presença de um “clima de excitação colectiva”199. Como temos vindo a tentar
demonstrar, seriam traços essenciais do quadro as cenas de exorcismos, os contornos realistas
de localizações geográficas precisas e de denúncia de pessoas concretas e, por fim, os conte‑
údos das “revelações”. No milagre que cremos central, a que se poderá ter chegado por um
caminho provocado (por interrogatórios? por dinâmica das vítimas?), o cerne da revelação é
a existência de uma “companha de diabos”, em plena actividade. As formas dessa actividade
podem ser alcançadas, muito fragmentariamente é certo, e apontam para a posse colectiva
das vítimas pelos demónios. Poderá tudo isto remeter, explicar, ou estar ligado, de algum
modo que seja, à representação da “adoração do bode”? A nossa convicção é de que poderá
existir alguma ligação. Se assim for, a consideração dos acontecimentos como uma forma de
“sabat” e a sua representação pictórica como tal, será uma das primeiras manifestações desta
colagem cultural, na Europa tardo‑medieval200.
É certo, porém, que a interpretação das pinturas requer uma análise física que não po‑
demos realizar, e conhecimentos iconográficos de que não dispomos. A hipótese fica posta,
aguardando melhor verificação.
Notas
1 DUBY, 1989:9.
2 Sobre estes limites cronológicos, cfr. infra, nt.
3 Realça já este facto José Mattoso, que fala de “um clima de excitação colectiva”: MATTOSO,
1987a:247. Por outro lado, FALCÃO, 1997, Vol.II: 395‑396, descobre a primeira referência aos
milagres, em documentação corrente, no testamento de um Nicolau Geraldes, mercador, de 1350,
que manda que lhe cantem as “trinta missas do milagre”. Não sabemos se se tratará exactamente
de uma referência aos milagres da Senhora da Oliveira, se de uma forma de designar o “trintário
gregoriano”. No entanto, se for relacionado com o sucedido localmente, poderá ter o interesse
suplementar de se poder relacionar com um pedido feito por um dos “espíritos” que atormentam
uma miraculada, que suplica que lhe mandem celebrar trinta missas numa dada igreja, metade
à honra do orago local, metade à de Nossa Senhora da Oliveira (cfr. infra, p. 121). Poderemos
pensar que os cónegos desenvolveram devoções litúrgicas directamente relacionadas com os “seus”
milagres”, de que o pedido de Nicolau Geraldes seria um exemplo?
4 Sobre esta tipologia de fonte, cfr. HEINZELMANN, 1981; SIGAL, 1985 : 10‑15 , 147 ss. ; SI‑
GAL, 1987; VAUCHEZ, 1988: 519 ss; KLEINBERG, 1989, Vol.20; DOLBEAU, 1992 :49‑75;
DUBOIS/ LEMAITRE, 1993: 21 ss.; WARD, 1987: 29 ss.
5 Seguimos a edição de FERNANDES, 1999: 217‑297, que foi feita a partir do testemunho mais
antigo (cópia de 1351, directamente sobre o primeiro registo); a informação do seu paradeiro, em
publicação de escassa circulação (VITERBO, 1907:4) escapou ao grande especialista do tema,
Mário Martins, que editou o “Livro” a partir de uma cópia seiscentista (assinalando a existência de
outra, pouco anterior): MARTINS, 1953: 83‑132. Esta edição foi de resto utilizada pela primeira
autora para a resolução de dúvidas postas pelo deficiente estado de conservação do pergaminho.
Também nós fizemos diferentes cotejos entre este e as duas edições, que serão indicados em nota.
Existe, por fim, uma outra cópia da autoria de Antoninho Lourenço, s.d. devido à truncatura do
manuscrito, que contem apenas parte dos milagres (cfr. FERNANDES, 1999, Vol.109: 220‑22).
Refere ainda as duas cópias trecentistas FALCÃO, 1997, Vol.III: 395, nt. 340.
136 · Maria de Lurdes Rosa
6 Mário Martins enumera os principais: Rainha Santa Isabel, S. Gonçalo de Lagos, a “Santa Du‑
quesa” Constança de Noronha (MARTINS, 1957:168‑170).
7 FERNANDES, 1999: 232; FALCÃO, 1997, Vol.III: 395, nt. 341, refere um “demandador para
a obra de Santa Maria da Oliueira”, documentado como tal em Dezembro de 1351; e no mesmo
loc., nt. 342, apresenta novos testemunhos de continuada angariação de donativos, entre 1353 e
1356.
8 Sobre a relação de Guimarães com os reis de Portugal, de Afonso Henriques a D. João I, cfr.
FALCÃO, 1997, Vol.I: 138 ss.
9 Tanto a edição de MARTINS, 1953:106, como a de FERNANDES, 1999: 234, contêm a pala‑
vra “outubro” neste passo. Ora, se na primeira é plausível que tal se deva a erro do texto editado, já
que este, leitura tardia, apresenta muitos outros erros, na segunda parece‑nos erro de transcrição,
eventualmente influenciado pela edição de Mário Martins. O pergaminho está muito obscure‑
cido e com pregões, neste passo; mas temos por mais plausível a palavra “setembro” do que a de
“outubro”. Aquela tem de resto muito maior plausibilidade: não só coincide com a data que consta
na inscrição da base do cruzeiro (sobre ela cfr., por todos, BARROCA, 2000, Vol.II:1641‑1645),
como também é a da leitura de Gaspar Estaço, no século XVI, a partir, como o próprio refere, de
pergaminhos antigos (cfr. MARTINS, 1953:106, nt.4). Por fim, já que o dia 8 de Setembro é o
dia da festa da Natividade de Nossa Senhora, a colocação da cruz teria a ver com esta efeméride,
o que a deixa mais enquadrada na acção eclesiástica (sem que esta seja a única ou mais importante
explicação) do que o dia “8 de Outubro”, data em que não se comemora nenhuma efeméride
mariana.
10 FERNANDES, 1999: 276‑77.
11 O texto inicial do treslado de Antoninho Lourenço relata as diligências feitas pelos cónegos para
obterem a cópia oficial do documento, dizendo que ele “catara” nos “escritos que forom do dito
Affonso Perez tabliom” um “liuro de pergaminho”. A carta parece ter feito parte integral do livro,
que assim seria destinado ao rei, no seu conjunto (FERNANDES, 1999: 232).
12 O último milagre não está datado, mas é introduzido por uma “depos desto” que, nos casos ante‑
riores, indica uma ocorrência pouco posterior ao milagre precedente (FERNANDES, 1999: 289).
É certo que os anteriores casos da mesma fórmula estão sempre datados
13 MARTINS, 1953: 83‑84. A investigação de Mª da Conceição Falcão comprova a razia que a
peste causou entre os tabeliães (FALCÃO, 1997, Vol.III:732‑34).
14 Mas já Pierre Sigal assinala que o início de uma “dinâmica miraculosa” se deve muitas vezes mais
à “piedade popular” do que à Igreja institucional (SIGAL, 1985, 167). Como se depreende e verá
do resto do texto, não concordamos aqui com a leitura que faz José Mattoso deste acontecimen‑
to: de que a cruz fora mandada fazer pela Colegiada, com ajuda de Pero Esteves (MATTOSO,
1987a:247).
15 Devemos a confirmação da nossa hipótese da excentricidade do cruzeiro face ao portal principal
da igreja sua coeva a Mário Barroca, cujas informações escritas seguimos de perto, nestas linhas.
Do mesmo colega retivemos a ideia de que a importância do controlo do cruzeiro foi suficiente‑
mente forte para provocar uma “trasladação” tão profunda do templo (caso raríssimo). Deixamos
aqui o registo das nossas dívida e gratidão.
16 Já em 1900, porém, Albano Bellino sugerira uma outra interpretação, que apresenta como mais
consentânea tanto com a disposição urbana de Guimarães, como com a profissão do doador da
cruz (mercador): o termo original seria “Alvaçaria”, (espaço com casas e lojas onde os mercadores
se recolhiam) (BELLINO, 1900:125‑26). A questão da disposição urbana de que fala este A. é
confirmada por FALCÃO, 1997, Vol.III:769‑812. Aceitando esta hipótese, o protagonismo dos
leigos em todo o episódio surge acentuado. Por todos estes motivos, a explicação parece‑nos mais
Santos e demónios no Portugal medieval · 137
correcta do que a avançada por Mário Martins na edição do “Livro de milagres”, de que este
termo desconhecido seja uma corruptela de “acaçaria” (“paço”) (MARTINS, 1953: 105, nt. 5).
17 MACHADO, 1991: 42, (de novo devemos e agradecemos esta referência a Mário Barroca).
18 FALCÃO, 1997, Vol.III: 769‑812.
19 “À honra de Deus e de Santa Maria e por esta vila mais honrada ser e o povo fez fazer esta obra
Pedro Esteves de Guimarães mercador morador em Lisboa filho de Estêvão Garcia e de Marta
Peres na era de [1380, 8 de Setembro] M. L. a fez” (BARROCA, 2000, Vol.II/2:1644‑45). Há
ainda uma tradição, cuja veracidade seria preciso (mas difícil) averiguar, que reforça a história de
Pero Esteves como mercador lisboeta (cfr. RIBEIRO, 1958. Embora sugestiva, parece‑nos pouco
plausível, pelo menos de forma directa, a “pista francesa” que ligaria a “cruz normanda” ao cunho
(e quase certa origem) francesa do túmulo do grande mercador lisboeta Bartolomeu Joanes (m.
1324), que tinha interesses comerciais em França e que refere um “Pedro Esteves” como seu
testamenteiro, podendo ser um dos “companheiros” que a historiografia tem identificados como
“sócios” (já que, além da vulgaridade do nome, acrescenta‑se um qualificativo que não parece
quadrar com os nome familiares do mercador vimaranense (“sobrinho de João Dias, reposteiro do
rei” – cfr. para tudo BARROCA, 2000, II/2:1493‑1505). No entanto, a prática destes mercadores
“internacionais” de encomendarem obras de arte fora do reino, talvez explique a proveniência da
cruz (cfr. ainda nt. seguinte). Sobre a influência francesa no túmulo de Bartolomeu Joanes, cfr. a
análise recente de FERNANDES, 2001:102 ss. Sobre a família do Pedro Esteves vimaranense,
refira‑se uma última hipótese incerta, mas que volta a tocar na questão francesa: entre 1358 e
1375, está documentada a existência de um “Gonçalo Esteves”, mercador em Guimarães, homem
influente e abastado, cujo testamento, naquela segunda data, revela a posse de moeda estrangeira,
decerto proveniente do negócio de panos que exercia (FALCÃO, 1997, III: 739 e 833‑34). Sobre
a importância para Guimarães do comércio com o norte da Europa, nomeadamente França, des‑
de o conde D. Henrique, resultando na existência de colónias e ligações várias, FALCÃO, 1997,
I:136‑138.
20 Esta atribuição do local de compra baseia‑se na leitura de um conjunto de palavras, muito ra‑
suradas, como “Lormandia Anafrol”. Ao que saibamos, a localização deste local não levantou
questões de maior até 1900, pois referia‑se sempre apenas “a Normandia”. Nessa data, Albano
Bellino discute explicitamente o problema, e identifica Anafrol com a actual “Honfleur” porto
marítimo daquela região francesa (BELLINO; 1900). A nossa leitura do documento não nos
trouxe a convicção total de que fosse correcta a leitura corrente, sendo nomeadamente possível
algo como “A[ceira(?)] Ffroll”. Como referimos, seria assim importante reabrir a questão pale‑
ográfica, recorrendo às técnicas modernas de auxílio à leitura de que hoje se pode dispôr. A ser
verdadeira a origem da cruz até agora seguida, porquê Honfleur? É certo que este era um porto
frequentado pelos mercadores portugueses (cfr. p.e. A reclamação apresentada nas cortes de 1331
pelos representantes do Porto, 1982:87), e que, cerca de um ano antes dos milagres, em Maio e
Setembro de 1341, Filipe, rei de França, concedera àqueles vários privilégios de comércio em
Honfleur, considerados pelo autor que seguimos “extraordinários” (THIEURY, 1860:14‑25) . E é
também verdade que existe no local um santuário mariano, de origem medieval, no qual se realiza
desde esta época uma peregrinação de marinheiros (“Notre‑Dame de Grâce”) (não conseguimos
por ora obter obras historiográficas sobre ele; as nossas informações provêm do “site” oficial do
Turismo da Normandia). Seria importante estudar estas duas pistas.
21 Ver nt. 19.
22 BARROCA, 2000, Vol.II/2:1642 e 1644.
23 Este milagre do reverdescimento da oliveira, aliás, põe vários problemas, cujo aprofundamento
pode trazer luz nova sobre o gesto fundador de Pedro Esteves e o seu relacionamento com a Cole‑
giada (bem como sobre as práticas sagradas relacionadas com árvores, num outro registo). Assim,
138 · Maria de Lurdes Rosa
se é certo que pertence a um tipo de ocorrências frequente nos relatos de milagres, talvez tenha
implicações mais vastas, que seria interessante investigar, em duas frontes. 1) Relação com o mos‑
teiro de S. Torcato: uma tradição posterior, que não conseguimos neste momento fazer remontar
para além de meados do século XVII, atribui a proveniência da oliveira do mosteiro de S. Torcato,
santuário localizado perto de Guimarães, que desde há séculos atraía peregrinos, devido à fama
de abrigar o corpo do Mártir, um dos míticos “companheiros de Santiago”. Esta lenda é referida
pela primeira vez, ao que saibamos, por Torcato Peixoto de Azevedo (que escreveu as Memórias
Resuscitadas entre 1656‑1692 (datas segundo BRITO, 1981:439). O autor diz então “quando ali
se colocou a cruz já havia a oliveira, da qual é tradição que viera de junto do mosteiro de S. Tor‑
cato” (AZEVEDO, 1845:264.). A história é retomada por A. Carvalho da Costa, na Chorografia
Portugueza, 1868, Vol.I, acrescentando‑se que a árvore “viera, havia séculos, segundo uma tradi‑
ção, para ali de junto ao mosteiro de S. Torcato e que a lâmpada do santo era alumiada do azeite
dela” (COSTA, 1868, Vol.I: p. 44). Ora F. Adolfo Coelho, que reporta este excerto, aduz também
uma opinião de Martins Sarmento sobre o assunto: “O nome de Oliveira, dado a N. Sª, recorda
uma bela e comovente lenda que aqui registamos, sem deixar de lembrar que toda a lenda contem
um fundo de verdade. – Conta‑se que em S. Torcato, lugar aprazível de que aliás muito gosto, não
longe da Igreja do mesmo nome, havia uma frondosa oliveira que dava azeite para a lâmpada que
ali ardia em sua honra. Esta oliveira foi um dia transportada para Guimarães, em frente da Igreja
da Colegiada. Infelizmente, o belo exemplar veio a secar, pouco tempo depois. Mas mesmo assim
deixaram‑na ficar.” (COELHO, 1993, Vol.I:215‑216). Na obra contemporânea de José do Vale
Castanheira sobre o culto a N. Sª da Oliveira em Portugal encontra‑se um outro relato da lenda,
do qual infelizmente não se cita a fonte: “(...) a árvore foi talvez roubada pelos cónegos da Cole‑
giada de Guimarães aos de S. Torcato, do mesmo modo que quiseram subtrair a própria múmia
do santo” (CASTANHEIRA, 1998:42‑43). Parece‑nos possível lançar uma interessante hipótese
a partir deste dados, que não só se enquadra na actuação da Colegiada para com S. Torcato,
como permitiria compreender melhor o episódio do assentamento da cruz. A morte da oliveira
significava um sério revês nos planos dos cónegos, e só um novo episódio sobrenatural provaria
que os poderes da Santa da Colegiada suplantavam os de S. Torcato... Neste caso, os mercadores
visionários “trabalhariam” com os Cónegos, ou estes apropriaram‑se de um gesto devocional (?)
dos primeiros? Importaria, é claro, analisar a fundo a relação da Colegiada com S. Torcato, que se
pautou pela conflituosidade (até aos dias de hoje – SILVA, 1994:180 ss.). O santuário do “Varão
Apostólico” era mais antigo e prestigiado – a sua comunidade monástica fora instituída no tempo
de Ramiro I (931‑951), como referem BARROCA, REAL, 1992: 135‑166, artigo fundamental
a este respeito, onde se podem ver os principais dados sobre a evolução cronológica do cenóbio
e do culto a S. Torcato, bem como a questão da relação com a Colegiada. Os AA. consideram
que esta última instituição pode ter tentado, de várias formas, “revitalizar o culto” (BARROCA,
REAL, 1992:162‑3, nt. 9). Parece‑nos que esta relação terá tido uma conotação de “apropriação”,
visando deslocar para a Colegiada o prestígio do “corpo incorrupto”, que os AA. sugerem poder
ter sido “encontrado” por esta época, ou seja, em torno da extinção do mosteiro e da transferência
dos seus bens para a Colegiada (1477). Ainda segundo os mesmos, a primeira referência ao “corpo
incorrupto” encontra‑se em João de Barros, meados do século XVI, BARROCA, REAL, 1992:
165, nt. 21). Há no entanto um documento de D. Manuel que, a ser verdadeiro, seria anterior a
João de Barros – em 1501, o rei teria ordenado aos Cónegos que fossem a S. Torcato tresladar o
“corpo do bem aventurado” para “o lugar onde ao prior parecer bem”; a concretização desta ordem,
pelo Cabido, Câmara e povo de Guimarães, provocou a defesa armada do corpo pelos “lavradores”
locais, que impediram a transferência. É certo que esta ocorrência só é referida em AZEVEDO:
1845: 253‑254, que transcreve mesmo a carta de D. Manuel, sem citar fonte), e em COSTA,
1868, Vol.1: 19 (que visivelmente copia aquele Autor). Há no entanto alguma verosimilhança no
relato de T. Peixoto, que atribui esta acção de D. Manuel a uma preocupação mais alargada do rei,
que “muito trabalhou (...) para que se recolhessem às igrejas das cidades, e vilas, as reliquias dos
Santos e demónios no Portugal medieval · 139
Santos que se achavam nas aldêas, por lhe parecer que assim estariam com maior veneração (...)”
(AZEVEDO, 1845:253‑254). Com efeito, D. Manuel revelou uma sensibilidade e preocupação
especial em relação à renovação de cultos antigos do reino, como seja o de S. Pantaleão (impulsio‑
nando a tresladação das relíquias deste de Miragaia para a Sé do Porto, empresa já começada por
D. João II), a D. Rainha D. Isabel e o “santo” D. Afonso Henriques (cfr. ROSA, 1998:349‑50).
2) Ligação a cultos pré‑cristãos de fertilidade agrícola. Na obra acima referida, Adolfo Coelho
liga a oliveira a raízes pré‑cristãs, através das tradições da “aguilhada” do rei Wamba e do templo
de Ceres que existira perto da Colegiada. O A. não cita fonte, mas encontramos esta história
do templo de Ceres em T. Peixoto de Azevedo, que reporta a tradição local de que a imagem
primitiva da Senhora da Oliveira teria sido colocada por S. Tiago num templo de Ceres, depois
de “lançar por terra os falsos ídolos”, templo esse que ficaria perto do que depois seria o Largo
da Oliveira; e que, nesse mesmo local, teria o Apóstolo baptizado S. Torcato. Em 1559 ter‑se‑ia
mesmo encontrado um letreiro em pedra comemorando a passagem de S. Tiago; T. Peixoto refere
que o viu, assim como as ruínas do templo (AZEVEDO, 1845:310 ss). Seria preciso, evidente‑
mente, situar de forma precisa a origem e a data das primeiras menções a esta tradição que, uma
vez mais, tem a “pegada” da ligação entre S. Torcato e a Colegiada. Mas lembre‑se que a oliveira
era uma árvore com poderes sagrados, cujos ramos, por exemplo, as posturas municipais lisboetas,
no início do século XIV, proibem ser pendurada nas portas das adegas (Posturas do Concelho de
Lisboa (séc. XIV), 1974: 53); para introdução ao tema pode ver‑se LIMA, 1951:142‑146.
24 BARROCA, 2000:1644.
25 “Este padrom e hūa cruz de pedra com a imagem de Christo crucificado assentada sobre uma
coluna e coberta de abóbada, que estiba em quatro pedestais” (é a única descrição do conjunto, na
obra ESTAÇO, 1625:156). Sobre as datas de redacção, CASTRO, 1885:170‑174.
26 Referimo‑nos a AZEVEDO, 1845:262 (cfr., sobre as datas de redacção, a nt. 23). As imagens são
as de Maria e João, ladeando a cruz e, por sua vez, ladeados de S. Dâmaso e S. Torquato. Do outro
lado do cruzeiro, ao alto, uma imagem de Nossa Senhora do Rosário e, de cada lado, mais abaixo,
de S. Filipe Apóstolo e de São Gualter. Neste “caldo” estavam representadas, pensamos, todas as
“forças vivas” da “santidade vimaranense”: os “santos locais” antigos, Dâmaso e Torquato; o “santo
franciscano”, Gualter; e Nossa Senhora do Rosário, cara aos dominicanos.
27 BONIFÁCIO, TEIXEIRA e BARBOSA, 1981:56 e 64; BARBOSA, 1981:487. Voltaremos às
pinturas na última parte deste trabalho, pp. 133 ss.
28 FALCÃO, 1997, I: 192, 196;II: 395‑401 e 490‑96.
29 FALCÃO, 1997 I:190.
30 Sobre este documento ROSA, 2005, p. 76 ss. A comprovar‑se a exclusão do Salado, a cena de ba‑
talha poderia, eventualmente, ser relacionada com as campanhas de Afonso Henriques (hipótese
já aventada em Horácio Pereira BONIFÁCIO, TEIXEIRA e BARBOSA, 1981:56; preparamos
um trabalho sobre o tema).
31 SOUSA, 1989.
32 SIGAL, 1985: 169‑172.
33 Fernão Vasques: milagres 35 e 41 (FERNANDES, 1999:272 e 282). Refira‑se que no elenco
das testemunhas é sempre acrescentado “e outros”, mas pensamos que não seria plausível que se
remetessem para esta categoria testemunhas com a força dos cónegos da Colegiada.
34 FERNANDES, 1999: 250‑259. No dia 1 de Fevereiro dão‑se três curas e no dia seguinte, cinco.
Este é o dia em que há mais curas, em todo o período.
35 FALCÃO, 1997, Vol.I: 152 ss., passim.
140 · Maria de Lurdes Rosa
36 Cfr. Quadro I (indicam‑se os números dos milagres no conjunto da fonte, seguindo a ed. cit., e
fez‑se uma numeração própria dos milagres de cura de possessão, que será aqui seguida).
37 Sobre a estrutura – tipo do registo de milagres, na sequência do desenvolvimento da prerrogativa
papal de canonização, no século XIII, cfr. GOODICH, 1995:7‑8.
38 Encontramos já em FERNANDES, 2001‑2002 :605, um estudo quantitativo das tipologias mi‑
raculosas: 23 curas de cegos, 11 de endemoninhados, 4 de paralíticos, 4 de mudos, 1 de “inchado”,
1 de surdo.
39 “disse ffalando del que sse saya del pera sempre por Sancta Maria da Oliueira que ueera aqui em
oya maa por elles” (FERNANDES, 1999:237).
40 Cfr. p. 120.
41 Cfr. infra, p. 127.
42 FERNANDES, 1999: 248.
43 Para a numeração, cfr. “Quadro I”.
44 Sobre os conteúdos destes casos, cfr. p. 126.
45 Cfr. p. 127.
46 Frases registadas de forma ligeiramente diversas, e com algum erro (?) – FERNANDES, 1999:279:
“dizendo que era Pedro e que se saya della pera sempre por esta sancta Maria da Oliueira que elle
e atros [sic, por “otros” (?)] a vyrom [sic, por “avyrom” (?)] em ora maa pera sy”; FERNANDES,
1999:289: “disse que se sai della pera ssempre por esta sancta Maria da Holiueira que el e os outos
seus comp[anheiros] nãa a uyam”.
47 É bastante claro no ms. 19, indiscutível no 20, foi lido de igual modo no séc. XVII (MARTINS,
1953:112). É de resto também possível que seja um nome diabólico, pois existia a forma “Gerun‑
do”, presente em Gil Vicente, p.e. (PICCHIO, 1982 :146). Voltaremos a esta questão adiante.
48 Cfr. infra, p. 127.
49 FERNANDES, 1999:242; IAN/TT, Colegiada de N. Sª da Oliveira, docs. eclesiásticos, mç. 3, doc.
19; MARTINS, 1953:110 (que apresenta a leitura de “Paao”).
50 IAN/TT, Colegiada de N. Sª da Oliveira, docs. eclesiásticos, mç. 3, doc. 19. Parece‑nos que “de La‑
mego” não está lá, de facto. Foi infrutífera a tentativa de localizar na região qualquer local com
este nome ou semelhante.
51 Sobre as dificuldades e opções de localização, cfr. nts ao “Mapa”.
52 Verificar o “Quadro II” para as proveniências duvidosas, aqui não contabilizadas.
53 Cfr. texto supra e “Quadro II”.
54 Cfr. supra, p. 122-123 e nts. ao “Mapa”.
55 Cfr. supra, p. 114.
56 Cfr. “Quadro III”.
57 Quanto ao debate historiográfico, referimo‑nos à polémica da “criação das bruxas pelos inquisi‑
dores” – cfr. p.e. o balanço em PAIVA, 2002:157 ss; a tentativa mais acabada de identificação da
criação do sabat pelos processos inquisitoriais deve‑se a KIECKHEFER, 1976 (crítica em GIN‑
ZBURG, 1995:15‑16) cfr. ainda a extensa análise da criação do estereótipo da bruxa COHN,
1982:129‑157.
58 Referimo‑nos aos livros de milagres 1) do Santo Condestável, 2) de Nossa Senhora das Virtudes,
3) dos Santos Veríssimo, Máxima e Júlia, 4) dos Santos Mártires de Marrocos, todos quatrocen‑
tistas, seguindo a cronologia a ordem de apresentação. Todos eles apresentam curas de possessos,
com características iguais às do caso em análise (promessa de saída pela deslocação ao santuário,
Santos e demónios no Portugal medieval · 141
exorcismos, sinais), mas apenas em 3) e 4) há lugar a descrições mais detalhadas dos demónios,
em todo o caso sempre mais breve e menos circunstanciada. Nos “SS. Veríssimo..”, ed. cit. infra,
pp. 84‑85, o demónio identifica‑se de modo quase casual, parecendo alguem de todos conheci‑
do – “ho mestre dom Martim Annes de Barbudo”; o texto reporta depois, indirectamente, que
ele “andou pasayando e bafordando per de fora e dando suas razões e respostas a alg as cousas,
que lhe forom preg ntadas per h a booa dona e de booa oraçom do dicto mosteyro, e esto asy
feyto tornose ante o dito sepulcro [dos Mártires] (etc.: sinal e saída)” (MARTINS, 1955); nos
“Mártires de Marrocos”, são dois os demónios identificados, de forma mais genérica, embora
com a particularidade curiosa de um estar vivo, o outro morto [que encontramos no nosso caso,
como veremos abaixo]: “ u Martim Correa e outro Pero Lopes que agora é vivo”, e não se reporta
nada mais sobre eles, nem há registo de conversas (FERNANDES, 1988:131‑132). Para os casos
de possessos nos restantes livros: SANT`ANA, 1745, t.I, p.III: 494‑495), CORREIA, 1988,
Vol.3:21, 23, 25; o Livro de Milagres de S. Gonçalo de Lagos não apresenta qualquer milagre
de cura de possessão (desconhece‑se o paradeiro do livro de milagres quatrocentista, mas no
processo de canonização foi feita a sua transcrição: em português, cfr. Archivio Segreto Vaticano,
Sacra Congregazioni dei Riti, proc. 3335, fls. 194v‑217, ed. (em tradução italiana), Sacra Rittum
Congregatione, 1777:23‑39.
59 Sobre a presença dos textos sagrados e da tradição cristã na narrativa miraculosa medieval, cfr.,
entre outros, BOESCH‑GAJANO, 1983; UYTFANGHE, 1984. Sobre o processo legal, VAU‑
CHEZ, 1988:69 ss; SIGAL, 1985 :149 ss; GOODICH, 1995:6 ss.
60 Cfr. quantitativos na nt. 38.
61 Caracterização dos possessos em “Quadro III”.
62 Cfr. p. 118
63 SIGAL, 1985:237.
64 NEWMAN, 1998:758 ss. Uma teorização completa da possessão por espíritos como processo de
“formação de identidade” é feita em CACIOLA, 2000:285 ss. Sobre a importância social confe‑
rida pelas capacidades mediúnicas, cfr. ainda CACIOLA, 2000a : 72‑73.
65 Cfr.a análise pormenorizada deste aspecto p. 122-123.
66 Dissémos “indistintamente” porque há “moças” casadas e solteiras, “mancebas” casadas e aparen‑
temente solteiras (sem o marido a acompanhar e referenciadas pelos pais) – cfr. “Quadro III”.
67 SIGAL, 1985:237‑38.
68 Ver “Quadro III”.
69 Contabilizámos neste grupo a possessão do mil. 9, referida como tendo começado “há pouco
tempo”.
70 SIGAL, 1985: 117 ss.
71 Mil. 5 (FERNANDES, 1999: 266).
72 Mil. 7 (FERNANDES, 1999: 272).
73 Mil. 8 e 9 (FERNANDES, 1999: 274 e p. 279).
74 Mil. 7 e 9 (FERNANDES, 1999: 272 e p. 279).
75 GOODICH, 1995:76‑79; sobre o gesticular do possesso, os seus esgares, etc., como manifestação
da presença diabólica, cfr. SCHMITT, 1990:127‑131.
76 GOODICH, 1995:76; NEWMAN, 1998:738.
77 Regressaremos ao tema p. 130.
78 SIGAL, 1985 :194‑195.
142 · Maria de Lurdes Rosa
101 FERNANDES, 1999. Como dissémos, discordamos neste ponto da interpretação de José Mat‑
toso, que considera que todos estavam mortos (cfr. nt. 80).
102 Mil. 9: “disse que daua por sinal huma mealha velha dizendo que era Pedro e que se saya della
pera sempre por esta sancta Maria da Oliueira que elle e atros [=outros?] auyrom em ora maa pera
ssy” (FERNANDES, 1999:279, com indicação de nossa leitura possível); mil. 11: “(...) disseque
se sai della pera ssempre por esta sancta Maria da Holiueira que el e os outros seus companheiros
nãa a uyam (...)” (FERNANDES, 1999:289).
103 Sobre os marcos, cfr. pp. 126-127.
104 FERNANDES, 1999:250.
105 Cfr. pp. 125-127.
106 FERNANDES, 1999:269.
107 FERNANDES, 1999:269.
108 A leitura do ms. 19 é neste caso problemática, mas cremos estar lá “cochom de Stv pedro” e não
“cochom de São Pedro”, forma de leitura do ms. quinhentista (ed. MARTINS, 1953: 129) e de
FERNANDES, 1999:282. Voltaremos a tudo isto adiante, cfr. p. 126.
109 FERNANDES, 1999:267‑268: “o pecador o sabe”.
110 GOODICH, 1995:78, relatando um caso praticamente contemporâneo dos nossos (data da pos‑
sessão: 1329; data do registo do milagre: 1330), em que uma mãe, enfurecida com uma atitude
do filho, o amaldiçoa de diferentes formas, terminando com a “doação aos diabos”. Nessa mesma
noite, o jovem entra em delírio, vendo dois demónios em forma de bode, que gritavam “You be‑
long to us. You belong to us because your mother has given you to us.” Também em Cesário de
Heisterbach encontram histórias afins, como a da mulher possessa desde os cinco anos, devido
a uma maldição paterna ou a das consequências de “dar ao diabo” as mulheres grávidas (excertos
do Dialogus miraculorum em HEISTERBACH, 1991:172 e 223). Jeffrey Barton Russel assinala
o mesmo tema no folclore relativo ao demónio (RUSSEL, 1984:77).
111 FERNANDES, 1999: 274. Tanto o ms. quinhentista como Célia Fernandes leram aqui “daua
ao dono”, mas a leitura atenta do ms.19 e o contexto dos milagres de possessão permite ver aí
“dou‑a ao demo”; só assim se compreende, de resto, toda a história. A “doação ao diabo” continua
presente na cultura popular, registando‑se diferentes fórmulas: cfr. PIRES, 1894:13‑15.
112 THOMAS, 1991:599‑611; LITTLE, 1993; CASAGRANDE, VECCHIO, 1991 :223‑229;
LAUWERS, 1997:108‑114; MATTOSO, 1982; MATTOSO, 1984; PAIVA, 2002 : 128‑129;
NEWMAN, 1998: 749: considera que os demónios revelando que a causa da “doação” tinham
sido maldições paternas ou de maridos, reforçavam os pontos de vista dominantes da autoridade
superior dos homens; cfr. ainda GOODICH, 1995:78.
113 GALVÃO, 1995:cap. XLV.
114 CASAGRANDE e VECCHIO, 1991 : 229.
115 THOMAS, 1991: 603‑04.
116 Cfr. p. 113, para a destrinça entre os dois relatos.
117 Clérigo Fernão Martins, de Santa Maria de Sedielos; Rodrigo Aires, “abade”de Sedielos (FER‑
NANDES, 1999: 282).
118 Cfr. pp. 126-127.
119 Cfr. p. 127.
120 Cfr. pp. 116-117.
121 A mescla de motivos parece‑nos particularmente clara no caso dos milagres de S. João Gualberto
(SIGAL, 1992: 104‑107; os trabalhos de Nancy Caciola que temos vindo a citar debruçam‑se
144 · Maria de Lurdes Rosa
estudo de PAIVA, 2002:137‑44; e, para o século XIX, nas obras dos etnógrafos (um dos trabalhos
mais completos é o de CONSIGLERI, 1988.
137 Sobre o galo como anunciador da luz, nos textos hagiográficos, CHAMBEL, 2003:50‑51; o A.
refere‑se depois directamente a este passo, defendendo que a presença de um “segundo galo” é um
reforço do galo de conotações positivas, não seguindo portanto a nossa análise.
138 PALLA, 1993:320; cfr. ainda BRAGA, 1986:111‑112.
139 No título relativo aos Senhores de Biscaia: PEDRO, Conde D. , 1980: 139‑140. Em MAT‑
TOSO 1987b: 80‑81, e em MATTOSO 1983:67‑68, José Matoso refere‑se ao fundo mítico
desta história, associando‑a aos cavalos mágicos que transportam os seus (múltiplos, por vezes)
donos, com celeridade e fidelidade. É ainda fundamental a análise de todo o episódio por KRUS,
1985:3‑34 (também KRUS 1994a).
140 LUND, 1980:59‑61.
141 GINZBURG, 1995:93 ss; DORNETTI, 1991:222‑223; na tradição oral encontram‑se testemu‑
nhos da ligação destas viagens às bruxas até muito tarde: cfr. COELHO, 1993a:367.
142 GINZBURG, 1993:109 ss.
143 MELO, 1988; NUNES, 1917‑18.
144 COELHO, 1993a: 337; VASCONCELOS, 1984:334; VASCONCELOS, 1980, Vol.VII:
244‑245 (os editores referem uma tese dactil. que não pudémos consultar: Ivone Mª Ferreira
Gabriel, Os nomes do Diabo em Portugal, diss. de literatura em Filologia Românica, 1950, FLUC);
PICCHIO, 1982: 145‑154; PAIVA, 2202: 154.
145 NEWMAN, 1998:749 ss..
146 MATTOSO, 2000a:54‑59.
147 Cfr. nt. 91. Sobre a dor que os objectos sagrados causavam aos demónios, cfr. também NEW‑
MAN, 1998:750.
148 SCHMITT, 1994 :184. O mesmo se verifica no caso citado do Livro da Cartuxa (cfr. nt. 91).
149 VASCONCELOS, 1988:114, referindo a cura de um feitiço por um “sábio” em Mesão Frio.
150 Sobre o papel fundamental da Igreja neste sistema de parentesco, GUERREAU‑JALABERT,
2002: 329‑334;
151 SCHMITT, 1994: 214 ss.; FINE, 1994 :225 ss.; cfr. também CACIOLA, 1996 : 79‑80.
152 Portugal: p.e., no “Livro dos Milagres de Nossa Senhora das Virtudes in CORREIA,1988: 23 e
25; no “Livro dos milagres do Santo Condestável”, in SANT´ANA, 1745, III: 495; na “Legenda
dos Santos Veríssimo, Máxima e Júlia”, MARTINS, 1955: 84‑85 e 88‑89; para outros países, cfr.
CACIOLA, 2000: 281.
153 MATTOSO, 1987:247.
154 NEWMAN, 1998:738; CACIOLA, 2000: 279 ss.
155 Sobre o “abastecimento”: diz um dos demónios que “eu com outros da minha ligião tratamos de
muitos meios esta sua [de D. Sebastião] dezaventura, cuidando que em mortandande taõ geral
se tirariaõ ao criador muitas almas”; sobre os sinais: “h dos quais lançou em sinal pla boca huã
fivela de espora gineta que disse fora de h alcaide arrenegado que morrera na batalha, e o outro
h ferro de setta coadrado com ponta de diamante que afirmou ser ttrazido da mesma batalha”
(LUND, 1980:60‑61).
156 LITTLE, 1984; as profissões mercantis e financeiras, apesar da reabilitação dos séculos XII e
XIII, continuaram sob suspeita, sempre na linha de fronteira da “utilização correcta” (LE GOFF,
1980. A suspeita de obtenção de riqueza por meios diabólicos recairá noutros grupos difamados,
146 · Maria de Lurdes Rosa
como foi o caso da maçonaria: Adolfo Coelho, no século XIX, recolhe a crença de que o diabo
dava dinheiro aos maçons, em função do pacto (COELHO, 1993a: 339).
157 VASCONCELOS, 1980: 265‑266, referindo um exemplo do tempo de D. João I (da crónica do
mesmo rei, por Fernão Lopes); sobre o uso de moedas na relação com os santos, cfr. ainda DU‑
FFY, 1992:183‑184.
158 KIECKHEFER, 2000: 125‑133; sobre os amuletos em Portugal, VASCONCELOS, 1985:
161‑300.
159 MARTINS, 1960, referindo vários exemplos de “rostos”.
160 Na carta de perdão de 1492 (Maio 10) a uma certa Leonor Pires, refere‑se que a judia a quem
ela recorrera para tentar, por meio das práticas mágicas desta, manter o afecto marital, usava uma
figura de homem feita em chumbo derretido com terra e outra de mulher, em barro; dava‑lhes
com um cordel e dizia orações e palavras (MORENO, 1985:76‑77. Vários exemplos posteriores
em PAIVA, 2002:124‑131.
161 Cfr. exemplos em COELHO, 1993a:363‑371.
162 cfr. supra,
163 WARD, 1987:132‑165; PHILIPPART, 1996; SIGNORI, 1996; sobre o papel das “Cantigas
de Santa Maria” na difusão do culto mariano LE GOFF, 1990:386; cfr. ainda MARTINS,
1969:229‑236.
164 GAIFFIER, 1967; SCHMITT, 1979:109‑118; para uma representação portuguesa, ALMEI‑
DA, 1991:258‑59 (o A. associa a devoção de D. Pedro a S. Bartolomeu, seu santo protector, aos
problemas que o rei teria tido, na infância).
165 O episódio está presente nas mais antigas recolhas hagiográficas de difusão (como a de Jean de
Mailly (c. 1225‑1230) – MAILLY, 1947: 358‑59, e no grande motor de circulação que foi a “Le‑
genda Aurea” de Voragine (1260‑67): VORAGINE, 1967: 125‑129); em Portugal, circulou ainda
na difundida tradução de Bernardo de Brihuega, das Vidas e Paixões dos Apóstolos (BRIHUEGA
19889, Vol. II: 212‑229) (cfr. MARTINS, 1962:177‑181). Um dos principais estudiosos da ro‑
maria de S. Bartolomeu do Mar, em Esposende, defende que a festa e os respectivos rituais têm
origem directa nesta narrativa hagiográfica (OLIVEIRA, 1995:246) (cfr. infra).
166 P.e. duas esculturas no acervo do Museu Nacional de Arte Antiga, “ESC 1411” (cfr. MNAA,
2002); e “ESC 1025” (agradecemos estas informações à Dra. Maria João Vilhena, do MNAA).
167 COELHO, 1993a: 316 (Brasil); PEDROSO, 1988a: 249 (Lisboa e Santarém).
168 MARTINS, 1962: 179; relaciona este facto com a romaria referida a seguir CALLIER – BOIS‑
VERT, 1969:361.
169 O mais abrangente e fundamentado artigo sobre a romaria parece‑nos ser o de Colette Callier
‑Boisvert, op.cit.; apesar de intencionalmente polémico, tem mérito pela inclusão de um inqué‑
rito aos peregrinos e pela tentativa de síntese, SOARES, 1988; DIAS, 1959: 199;OLIVEIRA,
1995:239‑250; é por fim interessante notar que Carlos Alberto Ferreira de Almeida relaciona
explicitamente esta festa de S. Bartolomeu, com os ritos de protecção das crianças, com a cena do
túmulo de D. Pedro (ALMEIDA, 1987:61).
170 BRAGA, 1986. vol. II: 220‑221; CALLIER‑ BOISVERT, 1969: 354.
171 Sobre o Carnaval como época de “mundo às avessas”, cfr. CARO BAROJA, 1979; HEERS, 1987;
uma concretização do tópico do “mundo às avessas” pouco posterior à época em estudo, pode ver
‑se na figura do “parvo”, em Gil Vicente (cfr. PALLA, 1992: 90 (que caracteriza aquele tópico
como “fundamental, arquetípico e mítico, território da memória e do imaginário”).
172 Mil. 6: segunda; mils. 7 e 8: domingo; mil. 9: sábado; mil. 10: segunda. O milagre 11 é feito em
dia não especificado, em termos de dia do mês, o que impossibilita a sua localização na semana.
Santos e demónios no Portugal medieval · 147
Fig. 1 – Dragões
Imagem cedida pela Divisão de Arquivos do IGESPAR
Santos e demónios no Portugal medieval · 149
Fig. 2 – Cães
Imagem cedida pela Divisão de Arquivos do IGESPAR
150 · Maria de Lurdes Rosa
Fig. 4 – Monstro
Imagem cedida pela Divisão de Arquivos do IGESPAR
152 · Maria de Lurdes Rosa
Nº Data Miraculado Morador Parentescos e outras caracter. Acompanhantes Padecimento Ref. docs.*
pessoais
Doença do
1343-01-04 Freg. de S. Salvador de Filho de Pedro Pires de
1 Nicolau Pai demónio há 16 4; 237
Sábado Biqueira Biqueira; moço anos
1343-01-18 Doença do
2 Domingas S. Gens, a par de Lamego 9; 242
Sábado demónio
Doente do
3 1343-01-25 Clara Riba Douro Manceba 15; 248
demónio
Fregª de Sta. Marinha de
Maria de Lurdes Rosa
Alentejo
·
Mil. nº Origem possesso/a Nome Idade Estado civil Acompa-nhantes Duração da possessão Razão da possessão
1 Biqueira Nicolau moço [solteiro] pai 1327 (“havia dezasseis anos”) Não lhe perguntam
2 Lamego (S. Gens) Domingas ---- ---- ----- ----- Não responde
3 Ribadouro Clara manceba [solteira?] --- ----- Não responde
[solteira?:
Sta. Marinha
apenas Porque lha dera a mãe dela, já que ela não
4 do Zêzere de Maria moça --- ------
referidos os quisera casar com quem ela queria
Ribadouro
pais]
1342 (“há mais de quarenta
5 Marialva Justa Peres moça casada marido e mãe “O pecador o sabe”...
dias”)
Vicente mancebo Castigo ao pai do possesso (?) de quem
c.1325 (“há mais de dezoito
6 Tomar Esteves [solteiro] ---- era quatro vezes compadre e com cuja
anos”)
Chães sapateiro filha co-habitara / sequestrara / violara (?)
Vila Fria, a par do
Maria marido e pessoas
7 burgo do mosteiro --- casada “Há uma semana” Não responde e recusa identificar-se
Eanes da terra
de Pombeiro
[solteira?: são
dois naturais da c.Março de 1342 (“há mais de
8 Vila Flor Deus-a-deu moça refs. os pais e Porque lha dera a sua mãe
sua terra um ano”)
não marido]
9 Grijó --- manceba casada pai e marido “Desde há pouco tempo” Não responde
Sta. Maria de Maria amancebada Porque lha dera a mãe dela, e a mais sete
10 manceba mãe c. 1335 (“ha mais de oito anos”)
Sedielos “pequena” com clérigo companheiros seus
[solteira?: são
Roça, freg. de Sta. Maria c.Setembro/ Outubro 1342
11 manceba refs. os pais e ---- Porque lha dera o irmão dela
Santos e demónios no Portugal medieval
Notas ao Mapa
Milagre 1 – Identificámos a freguesia de “S. Salvador de Biqueira” como o lugar de Biqueira, na freguesia de
S. Salvador de Infesta, concelho e comarca de Celorico de Basto (Américo Costa, Diccionário
Chorográfico, vol. III, p. 654, e vol. VII, p. 66, s.l., Ed. Autor, 132 e 1940
Milagre 3 – Identificámos “Ribadouro” como o povoado e freguesia de Santo António de Ribadouro, concelho e
comarca de Baião (Américo Costa, Diccionário, vol. X, pp. 204-205, Porto, Livr. Civilização, 1948)
Milagre 4 – Identificámos “Santa Marinha de Paços” como o lugar de “Passos”, na freguesia de Santa Marinha de
Zêzere (Américo Costa, Diccionário, vol. X, p. 680)
Milagre 8 – Identificámos “Vila Flor” como a localidade homónima do distrito de Bragança (Américo Costa,
Diccionário, vol. XII, p. 480, Porto, Livr. Civilização, 1948)
Milagre 9 – Identificámos o “mosteiro de Igreja”, bispado do Porto, como o mosteiro de Grijó (agradecemos esta
identificação ao nosso colega João Luís Fontes)
Milagre 10 – Identificámos “Santa Maria de Sedelos” como Santa Maria de Sedielos, do antigo concelho de
Penaguião (Américo Costa, Diccionário, vol. XI, p. 161, Porto, Livr. Civilização, 1948);
Identificámos “Paços” do mesmo modo que no milagre 4, pelas semelhanças entre ambos e porque
há dois “demónios” que se identificam como sendo de “Santa Marinha”. Assim sendo, seria também
na freguesia de Santa Marinha do Zêzere
Milagre 11 – Tivemos algumas dificuldades em localizar o “lugar de Calvos, freguesia de São Salvador de Roça”.
Existe um lugar na freguesia de Santa Marinha do Zêzere que se chama “Roça” (Américo Costa,
Diccionário, vol. X, p. 678-680).
IV. O corpo do chefe guerreiro, as chagas de Cristo
e a quebra dos escudos: caminhos da mitificação de
Afonso Henriques na Baixa Idade Média1
A vida e acções do primeiro rei de Portugal foram impressivas ao ponto de gerar, ao longo
de toda a história do País, sucessivas interpretações e apropriações2. Para a análise destas, é
necessário estudar, muito mais que o “rei histórico”, os motivos que as fazem nascer, os fins
a que se destinam, os veículos pelos quais se transmitem, os efeitos perversos que sofrem e
causam. No presente trabalho, tentaremos analisar a apropriação da figura do rei nos séculos
XIV e XV, por parte de dois núcleos de poder político‑religioso, por vezes trabalhando em
interligação, por vezes em concorrência: Santa Cruz de Coimbra e a corte régia, da Dinastia
de Avis a D. Manuel. Tanto um como o outro evocam Afonso Henriques para reforçar o seu
prestígio. O primeiro, para se defender ao nível mais restrito dos poderes locais e para tentar
recuperar a primazia simbólica entre os diferentes santuários do Reino (enquanto fundação
do próprio Afonso Henriques, guardião das suas memórias, e depositário do seu corpo). A
segunda, para investir o prestígio da ancestralidade que possuía mesmo traços sobrenaturais,
numa casa real oriunda de bastardia, e em concorrência forte com os poderes nobres. Recorre
‑se a cerimónias específicas, no mosteiro coimbrão ou nos diferentes palcos da Monarquia;
difundem‑se escritos de natureza vária, da crónica ao livro de milagres; procede‑se a grandes
programas, desde a tentativa de canonização à recuperação arquitectónica dos “lugares ré‑
gios”.
A matéria‑prima deste “trabalho” é porém difícil – a tradição tem uma vida própria,
forma‑se de múltiplos modos, numa espécie de processo cumulativo que não exclui necessa‑
riamente elementos contraditórios, e que agrega a figuras concretas elementos pertencentes
a outras muito diversas. É com ela que se chocam os motivos, os objectivos e os veículos de
transmissão da “nova figura” de Afonso Henriques, fazendo com que o processo se torne
muito mais complexo do que uma simples apropriação. Apenas tentando identificar todos
os meandros desta complexidade, se podem reconstruir os contornos e o impacto real da
proposta tardo‑medieval de mitificação do Rei Fundador.
O texto que se segue orienta‑se por estes parâmetros, estudando enquanto caso exemplar
o que entendemos ser a grande matéria‑prima de toda a proposta: o corpo de Afonso Hen‑
riques. É um ponto fulcral de análise, pois o “corpo do rei fundador” – ou seja, a sua custódia,
a interpretação dos seus sinais e dos objectos com ele ligados, o seu uso em cerimónias, as
narrativas que sobre ele se constroem – são, numa sociedade como a que analisamos, um lugar
único de concentração e irradiação de sentidos políticos, simbólicos e religiosos. Numa pri‑
meira parte analisar‑se‑á a transmissão textual do episódio das feridas de Afonso Henriques,
tentando delinear diferenças de tratamento; em segundo lugar, serão estudadas as tradições
subjacentes àqueles textos, bem como os processos de “trabalho” sobre elas por parte de agen‑
tes bem determinados, em contextos históricos concretos.
160 · Maria de Lurdes Rosa
1. O reino e o corpo do rei nos textos: a transmissão textual do episódio das
feridas
De meados do século XIV a fins do século XVI, uma série de textos dão como origem
das chamadas “chagas” do escudo de Portugal as feridas que Afonso Henriques recebeu na
Batalha de Ourique. Circulando sob forma oral, o episódio remontaria mais atrás, talvez aos
anos imediatos ao desastre de Badajoz ou, mais certamente, à morte de Afonso Henriques.
Nas versões escritas mais alargadas, são estas e outras feridas, que o monarca vai sofrendo ao
longo do seu reinado, que justificam a posse do Reino. No corpo do rei, as feridas desenham
como que um mapa das suas batalhas, registando e atestando miraculosamente o direito às
terras ganhas, numa representação mítica que tem paralelos noutras relativas a heróis con‑
quistadores. Vejamos texto a texto como se forma e transforma este episódio.
Na sua versão escrita mais antiga, o núcleo do episódio surge na segunda redacção da
Crónica de 1344, atribuída pelo seu editor a finais do século XIV3: é a cena de Afonso Hen‑
riques despindo‑se perante o enviado papal e mostrando‑lhe as feridas do seu corpo qual
mapa das suas batalhas, como prova de uma ortodoxia religiosa afirmada em tom irónico e,
mais substancialmente, como fundamento concreto do seu direito ao Reino, subvertendo a
submissão a Roma que o Cardeal que vinha propor como fonte deste mesmo direito:
“E o cardeal outorgou todo o que el rey quis e desy foisse sua vya. E, ante que os III meses fossem
conpridos, lhe veo a carta. E, des ally en diante, fez el rey dõ Affomso en toda sua terra arcebispos
e bispos e beneficiados quaaes elle quis. E, despois que el rey e o cardeal ouverom todo seu preyto
firmado, e ao tempo que lhe avia de mandar a carta, como ja ouvistes, desvestyosse el rey de suas
vestiduras e disse: – Querovos mostrar, dom cardeal, em como eu som herege. E entom lhe mostrou
todas as feridas que ouvera em seu corpo, dizendo e assignando quantas e quaaes feridas ouvera nas
batalhas e quaaes nos combates e quaaes nas entradas das villas que tomara aos mouros”.4
É dado como certo por este mesmo estudioso que o trecho citado se radica no cantar
jogralesco mais antigo – dataria de finais do séc. XII5 – que ele próprio e J. A. Saraiva aca‑
bavam de “re‑descobrir” e restituír à investigação histórica6. De facto, não fora utilizado nem
na Crónica dos Vinte Reis, primeiro texto a prosificar o referido cantar jogralesco7, nem no
seu derivado – com algumas variantes –, que é a IV Crónica Breve de Santa Cruz de Coimbra8.
Seria assim originário de uma “feliz refundição” do cantar, diversa da utilizada pelo autor da
Crónica dos Vinte Reis – uma vez que, continua L. Cintra, “não é provável que este magnífico
trecho épico estivesse no trecho da lenda utilizado pelo autor da Crónica dos Vinte Reis e que
este o tivesse desprezado”9. A primeira redacção da Crónica de 1344 incorpora a tradição de
uma forma algo diferente, mas que na nossa opinião deve ser vista em conjugação com o que
acabámos de expôr. Não subsistiram, para essa redacção, os capítulos ligados à História de
Portugal10, e é portanto impossível de verificar como se desenrolava o episódio do Cardeal
‑Legado. No entanto, a referência que nos resta sobre as feridas de Afonso Henriques, situada
no capítulo sobre a fundação do Reino de Portugal, liga‑as explicitamente com as exigências
que o Rei fizera a Roma, numa carta ao Papa, e relaciona‑as ainda com uma batalha concreta,
e muito especial – a de Ourique.
“E este rrey don Alfon, que se llamo rrey de Portogal, quando fue en la lide Orique, do lo fi
zieron rrey, commo oyredes adelante, troxo ssua menssajes con el papa Onorio, commo lo fizieron
rrey los ssuyos e en qual lugar lo fizieron e de commo vençiera çinco rreyes con muy grandes poderes
en aquel lugar; e que matara hy muy gran poder de los moros e que le morieron hy gran pieça de los
Santos e demónios no Portugal medieval · 161
suyos. E el ante traya las armas blancas como su padre; e enbio dezir al papa que possiera hy çinco
escudos cardeños, por los çinco rreyes que vençiera e que los pussiera en cruz, por la cruz que toviera
Jhesu Cristo las espaldas, e en cada escudo pusso treynta e dos dineros blancos, por los treynta e dos
dineros que Jhesu Cristo fue vendido, e que le pedia, por esto e por muchas feridas que rreçebiera en
ssu cuerpo en aquella batalla, que le otorgase e proviesse que lo llamasen rrey de Portogal e quel assi
sse llamasse de alli adelante en sus cartas e en ssus prevyllejos; e que le daria cada ano un ssomo de oro
para todo ssienpre. E el papa gelo otorgo; e este oro puede montar un marco o poco mas o menos”11.
A segunda redacção, por seu lado, não irá incluir esta ligação no capítulo corresponden‑
te12; e no episódio sobre a batalha de Ourique não se associa o escudo às feridas, mas sim aos
cinco reis vencidos e à cruz de Cristo13. Se não existe total coincidência – e em parte não a
podemos verificar por deficiência de fontes – as balizas do conjunto de referências parecem
‑nos claras. As feridas surgem como prova do direito do rei face a Roma, direito este que
é adquirido em batalha, em especial na batalha de Ourique. As discordâncias surgem num
ponto particular: a relação escudo/feridas.
O escudo não é explicitamente associado às feridas do rei, mas sim aos escudos dos reis
mouros e à cruz de Cristo. Veremos porém de seguida que esta referência aos escudos dos
reis mouros não exclue, antes talvez indique, o esforço físico do rei português, e as marcas
que deixou.
O grande significado do trecho da primeira redação da Crónica de 1344, ainda que as
referências nos apareceram de forma menos articulada que nos textos seguintes, como iremos
ver, parece – nos ser a de que fornecerá a explicação para a importância fulcral da referência
persistente às feridas do rei: elas provam o direito ao reino, a partir do campo de provas
que os guerreiros consideram legítimo, apesar do que lhes vêm exigir os clérigos. Unindo a
sua menção à explicação do escudo, tudo na famosa exigência ao Papa, a fonte parece‑nos
testemunhar de uma modalidade mais “degradada” sob alguns aspectos, mais completa sob
outros, em todo o caso complementar, da versão mais completa e “integrada” que possuímos:
o discurso que em 1380 o Bispo de Lisboa D. Martinho pronuncia perante o rei de França
Carlos V, enquanto embaixador do rei de Portugal14.
É um texto relativamente conhecido, na historiografia mais recente sobre as origens do
escudo régio português15. Porém, não nos parece ter sido suficientemente salientada a sua im‑
portância enquanto primeiro testemunho formal de uma interpretação daquele escudo que
irá conhecer vária fortuna a partir daí: a de que os cinco escudetes dispostos em cruz repre‑
sentavam as cinco feridas que o rei recebera no seu próprio corpo, com a mesma disposição.
A perspectiva muda se se tomar este texto como uma tradição interpretativa de pleno direito,
e não como a versão incorrecta ou confusa da versão “oficializada” – as chagas de Cristo.
A versão de D. Martinho é clara: D. Afonso Henriques dispõe no seu escudo cinco escu‑
detes, em forma de cruz, porque na batalha de Ourique lhe tinham surgido no corpo cinco
feridas, dispostas do mesmo modo:
“Propter quod rex noster facit quinque scuta in modum crucis cum quinque ictibus, in quolibet
scuto in asulio et albo, pro eo quod in bello victorioso in quo obtinuyt contra infinitos Sarracenos in
campo de Eurrique inventa sunt in corpor regis quinque ictibus in modum crucis”. 16
Inequivocamente posterior ao discurso do Bispo17, surge‑nos o pequeno trecho do Livro
de Arautos, datado de 1416:
162 · Maria de Lurdes Rosa
“Logo de imediato o fizeram rei no acampamento. No dia seguinte, travado o combate entre
sarracenos e cristãos, os cinco reis cairam mortos com o seu exército, e ao dito rei cristão foram
quebrados cinco escudos no seu vigoroso braço. E, porque antes daquele combate, tal rei cristão
vira numa aparição a Nosso Senhor Jesus Cristo com as cinco chagas, e pelo auxílio da graça do
mesmo Cristo vencera esses cinco reis infiéis, e naquele combate cinco escudos haviam sido despe
daçados no seu braço, traçou para si e para os seus sucessores as suas armas. Deste modo: mandou
pintar em honra das cinco chagas de Jesus Cristo cinco escudos em forma de cruz da cor do céu em
campo branco, e, nesses escudos, trinta dinheiros de prata, em memória da venda de Jesus Nosso
Senhor”.18
A sua grande importância está em que, de modo curioso, une todos os elementos disper‑
sos nas versões da Crónica de 1344 e na do prelado: os cincos escudos representam os escudos
dos reis mouros quebrados no braço de Afonso Henriques, este último passo referindo‑se
claramente, segundo Aires A. Nascimento – o editor do texto – às marcas deixadas no corpo
do rei pelo embate das armas19. A eles se acrescenta pela primeira vez a referência, doravante
fundamental, às cinco chagas de Cristo que aparecera ao rei na batalha. Para além da junção
dos elementos, duas outras características conferem importância a este texto, para a nossa
hipótese: por um lado, as chagas de Cristo, os escudos dos reis mouros e os escudos quebrados
no braço de Afonso Henriques não se excluem mutuamente como factores explicativos, o
que testemunha da coexistência pacífica das várias explicações e mesmo de uma vontade em
conciliá‑las; por outro são todos estes factores que dão legitimidade a Afonso Henriques, e
não só a aparição de Cristo. O que comprova a persistência, a funcionalidade da justificação
guerreira. Este texto testemunha ainda uma outra característica do escudo régio, desta vez
o próprio escudo objecto físico: pendurado em Sta. Cruz de Coimbra depois da batalha,
caiu quando morreu o seu dono – ou, segundo outra proposta de tradução corroborada por
textos vários e cerimoniais régios posteriores – cai sempre que morre um rei de Portugal20. É
referência de grande importância, em si e em associação à explicação do escudo/armas, como
veremos em breve.
De forma rápida, porque são textos já conhecidos, tracemos a descendência da versão das
feridas/escudos despedaçados. Se, no longo curso, esta versão foi ultrapassada pela das chagas
de Cristo – até porque, como salienta Carlos Coelho Maurício, a insistência na explicação de
“cariz guerreiro” poderia equivaler a negar a cristofania 21 – os textos que a apresentam não
são de modo algum secundários. Na oração de obediência ao Papa de Vasco Fernandes de
Lucena, em 1485, refere‑se, a par da cristofania, que o calor da batalha e o esforço de Afonso
Henriques fizera com que se lhe quebrassem cinco escudos na mão esquerda22. A referência
aos escudos quebrados aludiria aos golpes sofridos pelo Rei 23.
Poucos anos depois, nas Memórias (c.1490) do borguinhão Olivier de la Marche24, texto
de referências muito alteradas mas com inegável interesse pelos vestígios que conserva de
diferentes tradições, referem‑se várias versões para a origem dos cinco escudos nas armas
portuguesas: 1) as cinco bandeiras conquistadas aos mouros; 2) as cinco chagas “quase mor‑
tais” do corpo do rei, que adquirem direito de representação numa reformulação do episódio
do Cardeal‑legado que nada perde em dramatismo em relação ao “magnífico episódio épico”
de Lindley Cintra: transferido para a própria Roma o episódio do despojamento régio, o rei
ostenta perante o Papa e os Cardeais um corpo com “ un merveilleux nombre de playes: dont
cinq en y avoit si pres d’estre mortelés, que ce fut plus miracle que raison naturéle, que de la moindre
Santos e demónios no Portugal medieval · 163
il échapa sans mort recevoir”. Em recompensa compungida, o Pontífice ordena ao rei português
que meta cinco besantes de prata em cada um dos escudetes das suas armas; 3) a versão da
aparição de Cristo, de uma forma confusa e não referenciada aos cinco escudetes mas sim à
cruz que as armas portuguesas durante algum tempo no reinado de D. João 1, a quem Olivier
de la Marche, de resto, prefere atribuir a autoria da modificação.
Não associada ao escudo25, a tradição das feridas de Afonso Henriques como prova viva
do seu direito ao reino, permanece nos diferentes textos que transmitem a aparição de Ou‑
rique, desde a “versão oficial”26 que é a Crónica de 141927 à Crónica de el – rei D. Afonso
Henriques, de Duarte Galvão28. Mas, tal como a anterior, esta tradição vai sendo afastada
até ao ponto da censura total, que chega aos anos 50 do nosso século, como demonstraram
e analisaram Ana Isabel Buescu29, Carlos Coelho Maurício30 e José Mattoso31. O seu desa‑
parecimento não porém fácil, e entre os diferentes vestígios, refiramos como significativa a
reclamação de Diogo do Couto, no prólogo às Lendas da Índia, onde soam ecos da crença
na justificação do direito ao reino pelas feridas do corpo de Afonso Henriques. Apreciando
as crónicas existentes de Portugal, e considerando‑as insuficientes para que se conheça os
grandes feitos dos Portugueses, acusa entre outros Duarte Galvão, cuja Crónica “ nom foy a
décima décima parte do que deuia ser”, porque “forão grandes e muytos [seus] milagrosos feitos [de
Afonso Henriques], pois mostrou sinaes de muytas feridas em seus peytos, na requesta que teve com o
delegado (. . .), como se contém em sua lenda, em que se nom faz menção de pelejas em que fosse ferido,
de que tinha os sinaes”32. Numa linha que segue de perto a antiga forma de prova medieval,
Diogo do Couto defende que as crónicas deviam assim ter espelhado o que o corpo do rei
espelhava, para que depois da morte deste se soubesse exactamente donde vinha o direito a
todas as conquistas, numa espécie de meta‑corpo do rei que provasse para sempre o direito e
a grandeza dos Portugueses. . .
Em conclusão da análise esboçada nesta primeira parte, diremos que, de fins do século
XII a fins do século XV – com prolongamentos posteriores ‑, uma série de textos nos apre‑
sentam, de forma sobreposta e múltipla porque concorrendo com outras propostas textuais
mais fortes, elementos mais ou menos dispersos de uma importante tradição explicativa do
escudo régio. Visando ultrapassar impasses explicativos causados pela restrição da análise ao
universo textual, tentaremos agora, numa segunda parte, fornecer dados para a interpretação
da referida tradição explicativa, provenientes outras formas de “reformulação” das crenças
relativas à ligação entre o corpo do rei (chefe guerreiro), as suas armas e o seu reino.
Propomos a existência de dois grandes grupos destas formas de reformulação das tradições33.
Chamaríamos “leigo” ao primeiro, que nasce e actua nas formas culturais aristocráticas e
guerreiras, por um lado e, por outro, sofre as influências de uma cultura folclórica de âmbito
mais generalizado. Esta última não deve ser confundida com as famigeradas “tradições popu‑
lares”34 mas sim definida como um conjunto de motivos explicativos de larga circulação, com
origem frequente na cultura dita “erudita”, e expressando‑se nos géneros “romance”, “contos”,
“lendas” , tradições tópicas”. É particularmente importante durante o processo de composi‑
ção e reelaboração jogralesca dos cantares, em que motivos disponíveis num repositório vasto
são encadeados de forma original35.
164 · Maria de Lurdes Rosa
Dentro do grupo leigo de tradições ligadas ao corpo dos chefes, é possível definir dois
repositórios bem distintos. Analisemos o primeiro, que encontra as suas origens nas práticas
funerárias e nas concepções da chefia guerreira indo‑europeia pré‑cristã: o chefe está ligado
fisicamente ao território que conquista, e às armas com que o faz41. Assim, as suas armas são
apenas suas (por vezes dadas ou conquistadas sobrenaturalmente), revelam‑se ineficazes se
usadas por outrém ou roubadas, auxiliam‑no nas batalhas, avisam‑no do perigo, e por fim
acompanham‑no quando ele morre. O território liga‑se ao chefe de diferentes modos: tanto
este assegura a fertilidade daquele – por vezes através de uma verdadeira cerimónia de acasa‑
lamento – como chega mesmo a “incorporá‑lo”, ao ponto de se poder ver nas suas feridas o
mapa das batalhas que travou para o conquistar e, à sua morte, a terra ficar desolada e estéril.
As mitologias de raíz indo‑europeia são férteis em exemplos de todas estas formas de rela‑
cionamento, que em áreas afastadas, como a Irlanda, perduraram em tempos cristãos, sendo
finalmente integradas nos romances de cavalaria42. A esta solenização de carácter mítico, de
fundo geral, vem juntar‑se, nas monarquias peninsulares, uma veneração das armas – no caso
concreto, a espada – como símbolo da natureza guerreira que aquelas assumem43.
Por outro lado, e no seio das análises antropológicas do poder nas sociedades arcaicas, é
conhecido que o rei se justifica perante o seu povo – ou o chefe perante o seu bando guerreiro
– também através da capacidade que apresenta para o sacrifício físico, para o dom do corpo.
Santos e demónios no Portugal medieval · 165
Este seria afinal o expoente máximo do poder carismático que é a prodigalidade, a faculdade
de dispensar ou doar sem precisar de receber em troca44.
Em termos mais circunscritos à relação “feridas/ escudo/ território” que nos surge em
torno de Afonso Henriques, cremos serem três os principais grupos de crenças e cerimónias
que contribuem para a explicar. Comecemos pela tradição da quebra dos escudos, bandeiras
e outros instrumentos bélicos na morte dos guerreiros, que se radica precisamente na crença
da ligação real entre as armas e o corpo vivo dos respectivos donos. Interpretamos a queda do
escudo no mosteiro de Sta. Cruz de Coimbra como uma das diversas versões desta prática
cerimonial, que depois irá adquirir todo um regulamento específico nas exéquias dos reis
portugueses45.
Se, para os reis portugueses, o primeiro testemunho escrito deste costume fúnebre data
de 1433 (exéquias de D. João I)46 a própria cerimónia, que se designava por “correr les armes”,
era praticada pelos nobres desde, pelo menos, finais do século XIII, em áreas bem específicas
da Península e do sul da actual França: Portugal, Galiza, Astúrias, Catalunha, Foix‑Béarn47.
Consistia, no seu núcleo fundamental, em manifestar o luto por um chefe guerreiro através
da danificação e destruição das suas armas e dos símbolos heráldicos: arrastamento das ban‑
deiras, transporte dos escudos em posição invertida, quebra dos mesmos, aposição de sinais
negros aos brasões, por vezes quebra destes48. A referência mais antiga pertence a Castela,
com o sepulcro do infante D. Filipe, filho de Fernando, “O Santo”, feito pouco depois do seu
falecimento em 1274. Aí se representa um cortejo fúnebre, com escudos invertidos colocados
em cavalos, ou levados a pé por personagens que arrepelam os cabelos. Do mesmo século e
também de Castela, data um sepulcro da família Meneses, onde se representa o cavalo com
o escudo invertido49. Mas o costume era também português; mais, era apresentado como a
forma de enterro típica dos “cavaleiros e altos homens de Portugal”. Disto testemunha uma
importante fonte, de poucos anos posterior às que acabámos de referir, e além disso não es‑
cultórica. No seu testamento, feito em 1302, o nobre português Afonso Martins de Oliveira,
comendador‑mor de Santiago em Leão, estatui que: “Ileven mis caballos cobiertos de luto, con los
escudos cologando de las sillas, pintadas en ellos las mis armas, et lievenlos de mi casa hasta la iglesia,
delante del mio cuerpo, ansi como es costumbre en los enterramientos de los caballeros et los altos omes
en Portugal”50. A partir de então as referências são mais numerosas: na primeira metade do
século surgem relevos fúnebres representando o “correr les armes” no mosteiro de Avinganya,
junto ao rio Segre51; entre 1368 e 1371, lavram‑se motivos semelhantes num túmulo do mos‑
teiro de Santa Coloma, em Tarragona52. Da mesma época datam os monumentos fúnebres
dos Senhores de Boils e Manises, no mosteiro de S. Domingos de Valência, também repre‑
sentando um cavaleiro com o escudo invertido do defunto53. Importantíssima é a referência
contemporânea, em Portugal, de que após a vitória de Aljubarrota, em Lisboa, se arrastaram
pelo chão as bandeiras castelhanas confiscadas, alçando‑se em simultâneo as portuguesas54.
É um testemunho privilegiado de uma outra modalidade deste conjunto de cerimónias, pois
permite fazer entrar no universo em análise práticas de júbilo pelas vitórias guerreiras que
também implicam a manipulação dos símbolos e objectos dos vencidos e vencedores desde
o próprio campo da batalha. Tal como estavam associadas ao corpo do senhor, a ponto de o
acompanharem nas exéquias, as armas também estavam ligadas às suas vitórias e derrotas, e
eram simbolicamente manipuladas em conformidade55.
A plausibilidade das feridas de Afonso Henriques serem representadas nas armas dos reis
de Portugal, como sinal das suas vitórias e do seu direito ao reino conquistado, parece‑nos
166 · Maria de Lurdes Rosa
assim bem maior. E devemos, por fim, acrescentar a este conjunto outra expressão da mesma
crença, já acima referida: em Portugal, pelo menos desde 1416, data da redacção do De Mi
nisterio Armorum, existia a tradição de que no mosteiro de Santa Cruz de Coimbra o escudo
régio do Rei Fundador caía milagrosamente, sempre que morria um rei da descendência da‑
quele. A ligação entre o escudo e a realeza que conquistara e mantinha o território perpetuava
‑se assim na linhagem, e manifestava‑se em função do corpo do rei.
São vários os exemplos posteriores, que contribuem para o melhor conhecimento dos
meandros e modificações desta tradição. Refiramos apenas os mais significativos. Em inícios
do século XV a cerimónia revestia formas cada vez mais acabadas, como testemunham as
exéquias do Visconde de Foix‑Béarn (1414)56. Irá manter depois como prática dessa Casa,
de maneira cada vez mais barroca, por várias décadas57. É referida na Galiza, no testamento
de Pedro Vásquez de Valladares (1475), fonte importante porque menciona especificamente
a prática de quebrar os escudos (“no tempo das minhas honras se quebren por min unha ducia de
escudos y arrastren os meus pendoes pintados das armas de Meyra, Valadares y Camba”)58. No sé‑
culo XVI a prática é já tratada como um velho costume hispânico, de forma algo depreciativa,
na obra do humanista sevilhano Iván de Mal Lara (Filosofia Vulgar), onde é referida a par de
uma outra, proibida pela Inquisição e por ele escarnecida, o pranto fúnebre59.
Os exemplos portugueses não são menos notáveis, até porque testemunham da codifi‑
cação da cerimónia entre nós, e do seu transplante para áreas onde ela estava já em desuso.
Assim, em 1453, Nuno Martins da Silveira, poderoso nobre de Évora, antigo escrivão da
puridade, cortesão directo de D. Duarte, influenciado sem dúvida por uma piedade mais
austera e interiorizada, faz questão em renunciar à antiga cerimónia: “... mando que nom levem
ante mi caualos aparamentados nem pagens nem outras cousas que se com esto acostuma de leuarem,
nem escudos a pee com que se aia de fazer doo...“60. Anos mais tarde, em 1464, as exéquias do
Condestável D. Pedro de Portugal, em Barcelona, realizaram‑se precisamente seguindo o
cerimonial do “correr les armes”, que até aí não fora seguido pela Coroa de Aragão (apesar de
estar difundido entre a nobreza catalã desde o século anterior, poderia ter caído em desuso
ou não ter sido usado pela realeza). As cerimónias revestem‑se então de grande esplendor,
arrastando‑se por vários dias, e congregando diversas representações em torno da quebra e
arrastamento dos símbolos heráldicos do Príncipe português61. Ao mesmo tempo, desde D.
João I, como vimos, que as exéquias régias se desenrolavam segundo este cerimonial, também
aqui adquirindo formas cada vez mais sumptuosas e teatrais62. É por fim muito importante o
testemunho de Rui de Pina, novamente sobre a morte de Álvaro Vaz de Almada em Alfar‑
robeira. Antes de partir para a batalha final, já depois de saber da morte de D. Pedro, Álvaro
Vaz “... tomou suas armas para com ellas honrar sua sepultura, que era a terra em que auia de
cair...”63. Aqui, de uma forma metafórica, está perfeitamente ilustrada a eternidade da ligação
entre o guerreiro e as suas armas.
Um segundo grupo de tradições a explorar são as tecidas em torno do descanso final dos
guerreiros. Na Idade Média peninsular, existiu de facto a crença de que os mortos apenas
repousavam depois de cumprir o seu destino em vida. O cortejo dos mortos, almas penadas
condenadas à eterna errância pelos seus pecados e faltas, surge nas terras castelhanas sob a
denominação de “estatinga”, “exército antigo”, constituído por corpos mortos que não o eram
totalmente porque não tinham cumprido tudo o que deviam ter feito em vida. Os testemu‑
nhos surgem desde o século XIII, na poesia e na épica castelhanas64. Mas o caso mais para‑
digmático, para o que nos interessa, envolve directamente um nobre português, prestigiado
Santos e demónios no Portugal medieval · 167
em vida e lembrado após a morte, nas fontes linhagísticas e cronísticas, como protagonista de
um marcante episódio. Trata‑se de D. João Afonso de Albuquerque, ‘o do Ataúde”, da ilustre
linhagem dos Meneses e durante vários anos principal conselheiro de D. Pedro I de Castela,
“o Cru”65. Como se conta no Livro de Linhagens do Conde D. Pedro, D. João Afonso de Albu‑
querque tinha sido o grande conselheiro do monarca castelhano, deles separada em virtude
dos maus conselhos de homens de baixa condição. Depois de ter tentado, em vão, impôr o
seu antigo prestígio, o senhor de Albuquerque alia‑se aos adversários de D. Pedro e inicia
acções militares em Castela e Leão. Morre antes de conseguir os seus intentos, envenenado
a mando do seu antigo senhor. Não sem ordenar, porém, que os seus companheiros de armas
continuem a missão comum:
“Estes homeens boos meterom‑no em mui nobre ataúde e tragiam‑no consigo. E quando ha
viam d’haver conselho em estes feitos que haviam com el rei faziam nobre estrado de maronaques
e d’outros panos d’ouro, e poinham o ataude em meio, e elles a redor dele. E o primeiro que falava
em no conselho era Dom Rui Diaz Cabeça de Vaca, que tragiam os fidalgos de Dom Joham Afonso,
ca assi o mandara ele que os nom partisse de si ataa que estes senhores dessem acabamento ao que el
começara com eles. E porque Dom Joham Afonso era de boo conselho em as vida, deu‑lhe Deus esta
vertude a as morte, que todos seus conselhos que se fezerom a redor do ataude, todos forom pera bem,
assi que estes ifantes e homeens bons acabaram todo o que começarom. E, como o forom soterrar em
ua nobre capela, que chamam logo todos forom pera mall, ca el rei Dom Pedro matou uus, e os outros
pôs fora da terra”.66
Neste episódio, a ligação entre o corpo do chefe e a vitória dos seus homens, permanece
para além da morte. Esta permanência é representada precisamente pelas práticas em torno
do cadáver, entre as quais a reunião dos guerreiros para conselho, agora à volta do atáude, e
a desunião que se segue ao enterro de D. João, antes de vencida a luta. Elas pertencem ao
mesmo universo de sentidos que as honras ou ofensas infligidas aos objectos do morto – es‑
cudos, espadas. Por outro lado, o corpo insepulto do chefe guerreiro lembra a missão que não
cumprira em vida, e que o seu exército tem de levar a cabo. Se é a própria presença físíca do
cadáver que mantem unido e vencedor o grupo, este apenas o poderia enterrar depois de ob‑
tida a vitória. Ao fazê‑lo antes, é castigado com o insucesso, a desunião, e a perda do território
comum a que o chefe se achava fisicamente ligado, antes e depois de morto.
A expressão mais acabada da ligação entre o corpo do chefe e o território que conquista,
finalmente, parece‑nos estar num terceiro conjunto de práticas, referíveis à esfera do direito – as
que constituíam o próprio corpo ferido em objecto de prova da recompensa que por tal merecia,
ou do castigo que reclamava. Com efeito, elas tocam o cerne da questão: no universo de refe‑
rências dos guerreiros, o que justifica a posse de algo é o esforço físico dispendido para o obter
– e esse esforço físico espelha‑se no corpo, concretiza‑se no sangue que derrama. Fôra esta,
afinal, a idéia que Afonso Henriques transmitira ao Cardeal‑Legado, implicitamente negando
o sistema de direitos que Roma lhe propunha, e que viria a representar a sujeição a uma outra
lei que não a da conquista, na qual o Monarca baseava a construção do seu Reino.
Uma primeira modalidade deste conjunto de tradições reside no costume de se apre‑
sentarem as feridas para reclamar ao rei a recompensa de feitos guerreiros. No sistema de
concessão de mercês em função dos serviços ultramarinos, desde o século XVI, a referência
ao sangue vertido em defesa da Coroa tem um papel tão central, nos argumentos dos peticio‑
nários, que a forma da sua invocação é codificada no Regimento das Mercês67. A teorização
destas idéias, por outro lado, é feita pelos tratados de nobreza68. Mas a força da crença neste
168 · Maria de Lurdes Rosa
direito talvez não apareça em nenhum lugar de forma tão clara como nos próprios escritos
da nobreza tradicional, ao insurgir‑se quando os seus serviços são desdenhados em prol de
outras valias, mais consentâneas com as monarquias centralizadoras, como seria o trabalho
de legistas e funcionários administrativos. Neste contexto, um texto exemplar, pela carga dra‑
mática de que se revestem as reclamações, é a carta de António Pereira Marramaque a Pêro
de Alcáçova Carneiro (1556)69. Para além de ser um raro testemunho da mentalidade da no‑
breza tradicional ele é tanto mais importante para o presente estudo, quanto recolhe, nestas e
outras passagens, tradições familiares de várias linhagens, remontando a séculos anteriores e,
além disso, ausentes das versões oficiais do passado que eram as crónicas régias70.
António Pereira imagina uma cena do Juízo Final, que põe frente a frente os reis de
Portugal e os fidalgos injustiçados, entre os quais dois heróis das batalhas de 1383/1385: Rui
Mendes de Vasconcelos e João Rodrigues de Sá, “o das Galés” Ambos apresentam as feridas
de guerra, não recompensadas, como prova das injustiças régias:
“neste juízo justissimo de Deus aparecerá Ruy Mendes de Vasconcellos cõ muitas feridas,
pello corpo, com a setta da herva que o matou, com grandes serviços que fes a El rey Dom
Ioão, e dirá a Deos: “Senhor, tudo isto fiz, por fazer este homem Rey, porque me pareceo que
vos servia: (. .). E não bastou morrer, em seu serviço, e diante delle, pera deixar de tomar a villa a
meu filho orfão, ganhada com tantos e tam notaveis serviços”71.
“aparecerá ali aquelle João Rodrigues de Sá, grande em corpo, grande em forças, muito em esfor
ço, o corpo todo cheio de feridas: antre outras, aquellas catorze pela dianteira, que lhe deram aquelle
dia que depressa accodio ao rebate da tomada das galés de Lisboa e entrou da nossa galé, que já era
tomada dos Castelhanos, matando hus, ferindo outros, lançando outros ao mar. E não se contentan
do de tomar a nossa Galé, saltou na dos Castelhanos, que tomára a nossa, e tomou lha; e mostrará ali
aquellas feridas que recebeo na entrada de Guimarães (. . .). E mostrará ali outras muitas feridas
que lhe deram nas batalhas, recontros, e combates de lugares, e entradas dellas, onde muitas vezes foi
derribado das Escadas, por onde sobia: e dirá a Deos: “Senhor, ouvi‑me com estes Reys, que me derão
um reguenguinho de Matosinhos, e uns poucos vilãos das montanhas de Sever, por vassalos, que não
são tantos, como eu tenho de feridas no meu corpo”.72
Neste sistema mental, o sangue implica o sangue: ele representa a força dos guerreiros,
mas também a honra do chefe. Assim, em contraposição clara, os reis que não recompensam
as feridas dos seus guerreiros envergonham o sangue da sua linhagem. É o que defende num
outro escrito o mesmo autor, logo no ano seguinte. Não por acaso, convoca como contrapon‑
to dos reis ingratos a grande figura de Afonso Henriques:
[cala o assunto da morte de Rui Mendes de Vasconcelos] “... e o caso que el rei [D. João I]
fez por elle nella porque me parece que em o dizer faço offensa ao Real sangue da casa de Portuguall
que desçende daquelle gram Rei Dom afonso AnRiquez a que deus milagrosamente deu saude pera
livrar este Reino de mouros E fazer tantos serviços E tamanhos como fez a Deus”.73
A um nível mais profundo, esta prática gerou mesmo uma modalidade judicial de prova
– a ordália do “jus feretri”, ou “ius cruentationis”, em que as feridas dos corpos vinham provar
os direitos não satisfeitos de outro modo74.
Caso particular dessa forma de prova tão típica das sociedades guerreiras, que é a ordália,
testemunha da mesma ligação entre as feridas e o corpo, que se prolonga para além da morte,
tal como a missão não cumprida de João Afonso de Albuquerque. Permaneceu em diversas
zonas bem para além do período medieval, e não só no “direito popular”75: vale ainda como
forma de prova na processualística criminal do século XVI, em Itália por exemplo76.
Santos e demónios no Portugal medieval · 169
A. O nascimento
sobre o rei mouro de Lamego; ou o milagrado de Nossa Senhora, que o salva de dois ursos
na serra Estrela, segundo tradições também provenientes de Cárquere91.
Em terceiro lugar, a criança que nasce. – Ela é a mais bela do mundo – a beleza extrema é
uma das características mais frequentes ‘dos heróis do conto popular. No entanto, é aleijada,
e num ponto muito particular: as pernas. No contexto da cultura cavaleiresca, isto signifi‑
cava impedimento de montar a cavalo, logo de guerrear, e, por fim, de reinar. Porém, neste
e noutros contextos associáveis, o nascimento com um defeito físico pode indicar poderes
especiais, mesmo sobrenaturais, dos heróis92. A um nível mais profundo, o defeito nas pernas,
ou nos pés – o membro do corpo com que se toca a terra – indica sem dúvida poderes so‑
brenaturais, originariamente de natureza xamânica. É a “assimetria deambulatória” retomada
por Ginzburg a partir de Lévi‑Strauss, que seria característica de uma vasta série de heróis da
mitologia euro‑asiática, todos eles com ligações especiais ao Além93. Na épica medieval, esta‑
ria presente, entre outros exemplos, no ciclo carolíngio: a mãe do Imperador é “Berta dos Pés
Grandes”, aproximada por esta última característica da deusa celta “Perchta” ou “Berchta”.
No contexto de composição da épica esta origem já não era explícita, e o defeito de Berta não
surge como sinal de pertença a outro mundo, mas sim como uma espécie de marca conhecida
só dos iniciados, um truque que permite ao herói desmascarar uma falsa candidata a Rai‑
nha94. A um outro nível, também os heróis guerreiros indo‑europeus têm marcas no corpo;
na epopeia medieval do ciclo de Guilherme de Narbonne, o “nariz curto “ deste herói é um
vestígio disso mesmo95. Finalmente, refira‑se que na cultura tradicional galaico‑ portuguesa,
os “coxos” têm uma conotação sobrenatural, pela assimetria do seu andar, e “manquito”é um
dos nomes do diabo96.
Um quarto e último aspecto surgiria nesta linha, na sequência dos dois últimos. Trata‑se
da “cura” do aleijado, que é realizada pelo Aio, e que envolve a ida a um santuário. Depois
desta prova, o herói fica apto a exercer as funções para as quais nascera, até então anuladas
por um factor negativo – no texto, os “pecados”, do Conde ou de Egas Moniz. Numa linha
apenas exploratória, referíríamos que o ritual situado em Cárquere pela narrativa da Crónica
poderia ser lido noutras chaves. A tomada de consciência dos poderes sobrenaturais envolvia
com frequência a ultrapassagem de uma prova ao sair da infância, em que o herói pode ser
ajudado pelo seu velho conselheiro. Assim, a visão de Egas Moniz a deslocação a um santuá‑
rio específico – que possuía traços de ocupação pré‑cristã, como necrópole97 – e toda cena que
aí se desenrola, podem corresponder à mudança de estado de vida alcançada pela superação
de uma etapa. A cura das pernas e a consequente habilitação para a vida guerreira seriam o
resultado dessa superação.
Uma segunda leitura centrar‑se‑ia no tema da troca de crianças, que passou para a pró‑
pria tradição local, sob a forma da lenda de que Egas Moniz teria afinal trocado o príncipe
aleijado pelo seu filho são. Aqui, o herói ajudador estaria a enfrentar um dos outros motivos
para uma criança possuir defeitos físicos inexplicáveis – o de que fosse um filho de seres
sobrenaturais, disforme e aleijado, que o tinham por isso trocado com uma criança humana98.
Foi uma crença difundida por toda a Europa, que persistiu até ao século XX em várias zonas
periféricas99. A troca das crianças envolvia rituais realizados por personagens especializados, e
quase sempre implicava a presença de uma fogueira. Ora, nos relatos populares recolhidos em
Cárquere em fins do século XVII/ inícios do XVIII, a cura de Afonso Henriques envolveu
um fogo no altar, durante a vigília nocturna que precede a cura, em companhia do seu Aio. É
ao levantar‑se de repente para o apagar, que o Infante se cura, e todos vêm o milagre100.
172 · Maria de Lurdes Rosa
O motivo tinha mesmo sido cristianizado, em torno de vários santos: S. Estevão, S. Lou‑
renço e S. Bartolomeu. Qualquer um deles, segundo as hagiografias, sofre em criança uma
troca operada pelo diabo, que os substitui por um filho seu, disforme e defeituoso101. Um
motivo que aparece em algumas das lendas, o do aleitamento e salvamento por um animal
selvagem, aproxima estas crianças dos heróis cujo nascimento está envolto em circunstâncias
excepcionais. Estas, conhecidas antes do nascimento, forçam ao abandono do recém‑nascido,
e a sua educação por outros que não os pais naturais. Entre outros motivos, são conhecidos o
da profecia de que essas crianças virão a matar o pai (Édipo, Perseu), ou o facto do seu nasci‑
mento se dever seja a uma união secreta com a divindade, seja a um incesto102.
Esta referência é tanto mais importante quanto se possui prova de que a crença na troca
de crianças, pela via da hagiografia cristã, era conhecida no Portugal medieval. De facto, exis‑
te uma representação do episódio de S. Bartolomeu no túmulo de D. Pedro, em Alcobaça: o
diabo rouba o santo do berço e substitui‑o por um ser disforme. O bebé é protegido por uma
águia, que o alimenta e cria. Esta representação dever‑se‑ia ao facto do santo em causa ser o
patrono de D. Pedro, uma vez que era o protector das crianças gagas e epilépticas103.
Na sequência destas leituras, o “milagre mariano” surge como uma das formas possíveis ao
conferir carácter sobrenatural ao nascimento de Afonso Henriques. Existiriam outras, como
a que acabámos de propor, inspirada no herói tradicional, ou a sugerida por uma observação
da própria Crónica de 1419, que não consta porém de todos os manuscritos: após narrar o
episódio de Cárquere, rebate a tradição de Afonso Henriques nascera no Ultramar e fôra
baptizado no Jordão104. Aqui estariam presentes referenciais de uma natureza diversa dos que
propusémos – bíblicos, porventura. Coexistia com outra proposta, a ascendência húngara.
Foi suficientemente forte para perdurar até à crítica de Fr. António Brandão105, em parte
porque recebeu o patrocínio directo da monarquia manuelina106, mas em parte também pela
sua força interna. Com efeito, dava a Afonso Henriques um novo antepassado sobrenatural,
ainda que proveniente de um outro panteão – Santo Estevão, rei da Hungria, um dos mais
prestigiados santos reis da Europa medieval, Assim, de conteúdo em conteúdo, e através de
níveis culturais diversos em contacto mútuo, se foi mantendo o elemento crucial, que é o de
conferir nascimento sobrenatural ao herói fundador.
B. A entrada na vida: conselhos paternos. Não cumprimento das palavras do pai e
consequente traição dos vassalos. Afirmação de direitos perante a mãe e o novo
marido desta. O auxílio do Aio
não fecha o ciclo, dado ter sido acoplado à narrativa do desastre de Badajoz o estratagema da
carreta, que permite a D. Afonso Henriques uma vitória sobre os seus inimigos depois de uma
suposta derrota – na linha afinal da superação da traição dos homens de Astorga.
Analisemos em pormenor o referido episódio. O Conde dá vários conselhos a Afonso
Henriques para que oriente a sua conduta, e por fim exorta‑o a que, quando ele morrer, não
deixe a cidade de Astorga, excepto para o “honrar”, numa cerimónia em torno das muralhas
(refere‑se sem dúvida a uma cerimónia fúnebre, talvez do tipo acima referido, em todo o
caso envolvendo “honras”). Afonso não segue porém estas palavras, e vai‑se aconselhar com
outros, perguntando aos vassalos se devia ir enterrar o Pai a Braga. Estes dizem‑lhe hipocri‑
tamente que sim, assegurando‑lhe que não deve temer pelas terras que tem. No regresso, po‑
rém, o Infante encontra tomado tudo o que tinha em Leão, e muito do que possuía na Galiza.
É então constrangido a romper relações com o Imperador, e volta a Portugal. Aí o espera um
novo perigo, pois a Mãe casara de novo e recusa‑lhe qualquer direito à herança.
Estamos perante um esquema típico da narrativa tradicional. O pai moribundo profere
palavras sábias (motivo J154), que não são seguidas, e a promessa que lhe é feita, é quebrada
(M258). O conselho do Pai referia‑se com frequência à necessidade de evitar más compa‑
nhias ( J21.25), que aqui surgem como os vassalos pérfidos; não o seguir equivalia ao início
da aventura, neste caso para tudo recuperar (M 258.).
A batalha de S. Mamede representa a vitória do herói, que é porém conseguida, de novo,
com o auxílio de um guerreiro mais experiente, numa das versões Egas Moniz107. Na sua
sequência dá‑se o episódio da maldição de D. Teresa, também ele parte, afinal, do processo
de aprendizagem do herói. É ao reagir excessivamente, punindo a Mãe de forma desnaturada,
que Afonso Henriques vai incorrer em novo perigo: a maldição. É o herói juvenil, que ainda
não domina a força bruta, e que com tal sofrerá novas provações até se tornar sábio – este
tema, também muito comum, terá afinal uma raíz bem real no percurso de vida do próprio
Afonso Henriques, que outras fontes apresentam como impulsivo e temerário no início da
vida, temente a Deus no fim108. São esquemas frequentes a maldição materna (M41 1.1) ou,
de uma forma mais generalizada, a maldição como castigo (Q556) e a doença como conse‑
quência da ingratidão (Q 551.6.3). Os filhos ingratos são punidos (Q281.1), e a maldição do
Pai pode ser fatal ao ponto de impedir que o visado descanse em paz, após a morte (E4124).
Por fim, a afirmação de que o castigo de uma ferida infligida com determinada arma e em
determinada parte do corpo (os ferros nas pernas de D. Teresa), será feito com a mesma arma
e na mesma parte (o ferrolho nas pernas de Afonso Henriques), baseia‑se em noções de
magia simpática e surge também com frequência na narrativa tradicional (por exemplo, no
motivos D 1503.14, D 1782.2)109.
Nas gestas de Afonso Henriques e de Egas Moniz são vários os estratagemas utilizados
pelos guerreiros para vencer batalhas e cercos, na caracterização de um tipo de heroísmo
mais “manhoso” que cavaleiresco, mais tradicional que épico. O primeiro, estudado já por
diversos autores, é o artifício de Egas Moniz no cerco de Guimarães. Emprega um motivo
centralíssimo às narrativas de cercos guerreiros – enganar o sitiante convencendo‑o de que
a praça cercada está bem abastecida e pronta a resistir por meses, precisamente na altura em
que as reservas se esgotam (K 2365.1110). Nas narrativas medievais portuguesas, este motivo
174 · Maria de Lurdes Rosa
volta a aparecer no episódio do cerco de Celorico, que se situa historicamente no seio dos
conflitos entre Sancho II e o futuro Afonso III. Tem já essa forma na versão mais antiga
conhecida, precisamente a Crónica de 1419. Aí se conta que o senhor do castelo, Fernão
Rodrigues Pacheco, manda enviar uma bela truta aos sitiantes, convencendo‑os assim de que
tinham mantimentos suficientes para resistir111. No episódio de Guimarães, tal como no‑lo
apresenta a Crónica Geral de Espanha – em versão que Lindley Cintra considera depender
directamente de uma “lenda” de Egas Moniz independente da de Afonso Henriques, mas de
carácter semelhante – o Aio dirige‑se ao Imperador e diz‑lhe: “Senhor, vós nõ fezeste cordura
de viinr aco, ca, se vos algue disse que ligeiramete poderiades tomar esta villa, nõ vos disse verdade,
ca çerto seede que ella sta açalmada do que ha mester pera dez anos”112. O estratagema seguinte,
envolvendo a prestação de fidelidade vassálica e a deslocação a Toledo com a família, mostra
influências, como já foi sugerido, de uma codificação deste tipo de actos, no que diz respeito
à forma como se apresentam na Corte os prevaricadores113. Assim, elementos de diversa
proveniência congregam‑se em torno dos acontecimentos reais.
O cerco de Santarém é o segundo grande momento guerreiro em torno do qual se terão
reunido elementos tradicionais. Dele possuímos duas versões de natureza muito diversa: uma
na Crónica de 1344, que assente numa narrativa de tipo lendário, e outra no De Expugna
tione Scalabis, texto de origem crúzia114. Apesar da sua diversidade, tanto uma como a outra
nos parecem apresentar elementos de tipo tradicional. Na narrativa cronística, é episódio da
revelação do plano pela velha, na estrada, que serve para introduzir o aviso de Afonso Henri‑
ques aos seus homens, contra eventuais traições. E é ainda o modo como os Mouros tomam
conhecimento da derrota, apresentada sob a forma de “adivinha”, ou prova aos elementos
naturais115. No texto crúzio, incorpora‑se um estratagema de conquista. Afonso Henriques
mente deliberadamente aos seus homens, anunciando‑lhes que tinham partidários entre as
sentinelas inimigas, que os auxiliariam no momento do assalto. Considera‑se importante
acrescentar uma justificação do Rei que, feita a partir do esquema mental dos clérigos, des‑
virtua o motivo original. Com efeito, o acto é colocado sob o signo do “pecado da mentira”,
de que Afonso Henriques se penitencia, e afirma ter feito apenas para “consolidar mais o seu
espírito [dos seus homens]”116. A nota é algo incongruente, e só se compreende no contexto
da figura do guerreiro submetido a Deus e aos seus representantes, construída pelo De expug
natione Scalabis”. Substituiria eventualmente um antigo “ardil” guerreiro de que o seu mentor
nada se arrenderia – tal como, por exemplo, o Egas Moniz do cerco de Guimarães não se
arrepende nem retrai.
Mas é no episódio do cerco de Badajoz que mais claramente se manifesta o uso de um
elemento tradicional na narrativa, no tratamento dado à forma como Afonso Henriques con‑
segue obter a liberdade. Existe um primeiro ardil, da parte dos vencedores. Para ser libertado,
o rei cativo tem de jurar que presta homenagem ao Imperador assim que voltar a cavalgar. É
assim forçado a entrar num ciclo vicioso: se voltasse a cavalgar, teria de submeter ao Impera‑
dor; se não voltasse, não poderia reinar de facto. Afonso Henriques aceita, para obter a liber‑
dade, mas responde com um segundo estratagema: contorna a impossibilidade de se deslocar
através do recurso a uma carreta, na qual se passa a fazer transportar, mantendo as funções
de comando117. Como já demonstrou Lindley Cintra, o estratagema da carroça surge na Va
riante Ampliada da Primeira Crónica Geral ou Crónica de Castela, como uma inovação sobre a
versão anterior de que Afonso Henriques nunca mais pudera cavalgar. O mesmo estudioso
vê neste tratamento “uma evidente transfiguração lendária do facto histórico”, e aponta o
Santos e demónios no Portugal medieval · 175
Também em volta deste pormenor é possível uma leitura pela via do sistema referencial
tradicional. A ligação entre o corpo do guerreiro e as suas armas, em vida e na morte, está
nele presente de variadíssimas formas: as armas choram para avisar o dono de perigo120; a
espada castiga o dono quando ele mente121; a queda de um escudo é mau presságio para o seu
possuidor122; os escudos rugem quando alguém ameaça o dono123; os heróis são enterrados
em armadura e com o rosto virado para os inimigos, para terem possibilidade de regressar
em vingança124. É difícil determinar a influência que estes motivos possam ter sobre a tradi‑
ção das feridas de Afonso Henriques. Por um lado, como vimos, ela está presente de forma
desarticulada nos testemunhos que nos restam da gesta. Por outro, já igualmente sugerimos
como possível origem sua, as práticas fúnebres e os sistemas de prova das sociedades arcaicas
de base guerreira. Na complexidade histórica, um e um sistema não são estanques, antes se
contagiam mutuamente; e as suas influências sobre um produto cultural como a gesta foram
exercidas provavelmente em paralelo. O episódio do Rei mostrando as feridas ao Cardeal, a
sugestão de que no seu escudo estavam reflectidas as feridas que sofrera em guerra, a crença
na quebra do escudo em Santa Cruz de Coimbra à morte de cada descendente, são temas
suficientemente fortes para congregar elementos de variada proveniência, e ao mesmo tempo
para activar processos de ampliação.
A grande ofensiva ritual de Santa Cruz de Coimbra sobre os “reis santos” inicia‑se no
século XV, com as diversas acções empreendidas pelo Prior D. Gonçalo Pereira, e termina
em meados do XVI, quando o Mosteiro consegue obter o patrocínio de D. João III para
um processo de canonização formal. Atravessa quatro momentos altos, que analisaremos
separadamente, procurando observar como, em contextos diferentes, se trabalha uma mesma
“matéria‑prima”: 1) priorado de D. Gonçalo Pereira (1414‑1437); 2) priorado de D. João
Galvão (1459‑1460); 3) D. Manuel, os túmulos régios e uma primeira tentativa de canoniza‑
ção (c.1505‑1515); 4) o inquérito de 1556.
Desde muito cedo que os monges manipularam em seu benefício o património sagrado
de eram depositários, promovendo diferentes cerimónias litúrgicas sobre os túmulos125, ofe‑
recendo um vasto banquete – a cada um de cem pobres, ração igual à de um cónego senior
– nos aniversários da morte de Afonso Henriques126, escrevendo textos em que apresentavam
o mosteiro como a grande fundação do Rei e o depositário da sua memória127, mantendo
firmemente as funções de aconselhamento político junto dos sucessores do primeiro rei128.
Nunca, porém, o haviam feito de forma tão completa como o farão durante o século XV.
Esta é, de facto, a época forte da “investida ritual”, e o processo de 1556 surge como um pro‑
longamento final, sem a mesma força, aliás sem termo certo. Deixando esta última fase para
176 · Maria de Lurdes Rosa
o final, tentemos agora fornecer a explicação para a grande pujança quatrocentista. Para tal,
será necessário caracterizar, ainda que brevemente, o pano de fundo religioso da sociedade de
então. À crise religiosa do século XIV irá suceder em toda a Europa um período de intenso
debate, que alcançou também Portugal, e que se centrava no problema da relação entre a so‑
ciedade e a Igreja. De uma forma imediata, nascera do mal‑estar generalizado do século XIV,
mas representava, no fundo, o primeiro sintoma das brechas num modelo religioso holístico
– a Cristandade –, que fazia equivaler espaço social e espaço religioso. No século XV, porém,
o sentimento era ainda de optimismo, e a vitalidade religiosa grande129.
Uma primeira manifestação da vitalidade leiga é a proliferação das utilizações políticas
da santidade, como vimos para a corte régia de D. João I a D. Manuel. A santidade dinástica
é manipulada em função dos antigos reis, mas também de figuras contemporâneas, cujo im‑
pacto seria bem maior, e que podiam relegar os cultos propostos pelo mosteiro coimbrão para
formas ultrapassadas de devoção: “Rainha Santa Isabel”, Nuno Álvares Pereira, “Infante San‑
to”, “Princesa Santa” Joana, e até D. João I e D. João II130. Quase todas estas figuras, por acrés‑
cimo, viveram no próprio século XV, e as suas opções de vida espelham uma interiorização da
reflexão religiosa. Fruto da multiplicidade, surge a concorrência religiosa, que se instala entre
santos, santuários e ordens religiosas. Adquire mesmo uma dimensão internacional, como
testemunha o recurso contemporâneo, por várias monarquias – nomeadamente a espanhola,
à qual D. Manuel também nisto responde –, a devoções orgânicas como a do Anjo Custódio
do Reino131, ou a santos reis anteriores132. Os santuários entram na competição lançando mão
do património sacro que tinham, utilizando‑o em seu proveito. Santa Cruz de Coimbra é
forçado a competir não já só com Alcobaça133, mas também com a Batalha134, com Santa Ma‑
ria da Oliveira135, com Santa Clara de Coimbra136 e, finalmente, com os Jerónimos137. Mesmo
os outros únicos detentores de relíquias que em antiguidade e nobreza podiam rivalizar com
os corpos de reis da Canónica, procediam à capitalização dos mesmos: o arcebispo de Braga
D. Diogo de Sousa manda, em 1513, trasladar os ossos do Conde D. Henrique e de D. Te‑
resa, para um sumptuoso túmulo na nova capela‑mor da Sé, por ele construída138. É ainda
característico – senão totalmente novo, pelo menos adquirindo papel central – o surgimento
de círculos de devotos, muitas vezes centrados em cortes nobres e principescas, com vocação
e vontade cada vez maior de serem “opinion makers” em termos de opções religiosas139. Op‑
tavam quase sempre por novos modelos de piedade, em cuja implementação participavam, e
aconselhavam‑se com as ordens religiosas nascentes – mesmo já para além dos Franciscanos
e Dominicanos, grandes rivais dos Regrantes e outras ordens mais antigas, desde o sécu‑
lo XIII: Lóios,140Jerónimos141, Agostinhos142, observâncias franciscanas radicais143. Por fim,
afirmam definitivamente a sua importância as novas devoções surgidas no decurso século
XIV, caracterizadas pela interiorização e privatização da piedade, bem como pela insistência
no sofrimento corporal e na morte, por vezes com um realismo extremo144. É neste contexto
muito significativa, pela influência que pode ter tido sobre a transformação do tema das fe‑
ridas no escudo145, a devoção à chagas, forma particular da devoção à Paixão de Cristo146. E
é ainda expressiva a “santificação devota” que sofrem personagens investidas de sacralidades
mais antigas, mas agora menos apelativas. Foi o caso do Conde Fernão Gonçalves, em Cas‑
tela, por parte do mosteiro onde se encontrava a sua sepultura – a sua vida é rescrita em finais
do século XV por um monge reformista, defensor das correntes religiosas, que transforma
o antigo herói guerreiro num modelo de santidade próprio da “devotio moderna”147. E foi,
parece‑nos, o início do caso de Afonso Henriques. A Crónica de 1419 é um primeiro passo
Santos e demónios no Portugal medieval · 177
neste sentido. Explicar‑se‑à precisamente através de Santa Cruz de Coimbra a presença nela
da cristofania de Ourique, fulcro de toda a futura “santificação devota” do rei148, processo que
se completará séculos mais tarde, com a erradicação total dos elementos não condizentes com
aquele tipo de santidade149.
É porém ainda muito cedo para que as imagens anteriores sobre o rei se esbatam total‑
mente em função da nova. A própria imagem que o grande mosteiro de Coimbra difunde,
nesta altura, não é totalmente piedosa, como veremos de seguida, ao analisar a primeira fase
deste processo.
O priorado de D. Gonçalo Pereira foi dominado pelo objectivo de recuperar urgente‑
mente de uma época de decadência, que atingira o cume com o Prior D. Afonso Martins (fa‑
lecido em 1414), seu antecessor. Fruto dos problemas internos do mosteiro, ela deve também
ser compreendida em função da crise generalizada que afectou a instituição eclesiástica desde
o início do século XIV150. Ao assumir o governo do mosteiro, D. Gonçalo Pereira – que as
fontes do mosteiro virão a representar aureolado de santidade, com traços providencialistas151
– levará a cabo uma profunda restauração do património do mosteiro, sob todas as formas
que este assumia, do material ao simbólico.
Afonso Henriques vai surgir, neste contexto, como o grande defensor do mosteiro. D.
Gonçalo tem de enfrentar difíceis conflitos com diferentes poderes leigos: o próprio Rei e as
oligarquias locais desde os cónegos da Sé aos oficiais de Coimbra, passando pelo Duque D.
Pedro. Concomitantemente, constrói e difunde uma imagem de Afonso Henriques que zela
de espada na mão pelo Mosteiro que fundou, e cujos oponentes podem mesmo acabar por
morrer. É a mais pura lógica do “crime e castigo” a que acima nos referimos, como uma das
modalidades do uso clerical dos santos patronos.
A primeira via de difusão desta imagem são os milagres em defesa do mosteiro, realizados
sempre que se chega a vias de facto por causa de questões patrimoniais e recolhidos no códice
conhecido como “ Chronicas Breves e Memórias avulsas de Santa Cruz de Coimbra”, ou “Livro
das Lembranças”. Nesta compilação de finais do século XV, que reúne textos de natureza dís‑
par152, estão inseridas várias notícias sobre os problemas do mosteiro no tempo de D. Gon‑
çalo. A parte que condensa a intervenção sobrenatural do Fundador em prol do seu mosteiro
parece‑nos ser suficientemente estruturada para se poder falar de um verdadeiro”livro de
milagres”, ou pelo menos algo entre isso e uma hagiografia de D. Gonçalo.
O milagre que nos é relatado de forma mais longa e circunstanciada versa sobre uma
disputa das águas do mosteiro, entre Santa Cruz e o Alcaide local. Depois da invocação aos
“santos reis” feita pelo Prior, são punidos com a morte dois dos envolvidos na tentativa de
desvio daquelas águas: o filho do poderoso Lopo Vasques, comendador‑mor de Avis e alcaide
‑mor da cidade, afogado misteriosamente num troço rasteiro do Mondego, e um tabelião que
aconselhava os oponentes do mosteiro, de seu nome Pero Afonso “das Águas”153. A primeira
morte reveste‑se de circunstâncias particularmente trágicas. O pai do falecido tinha‑se com‑
portado de forma arrogante e iníqua com o mosteiro, a ponto de escarnecer das orações do
Prior junto aos túmulos de Afonso Henriques e Sancho 1, exclamando: “leixaaos amdar com
os Rex mortos amdemos com os Rex viuos e ueremos quem podera mays”154. Ao saber da morte
do filho, porém, a sua atitude irá mudar radicalmente. Exclama, angustiado, “. . . estas Som as
auguas de Samta Cruz que em esta noyte eu sonhaua em que morria o meu filho mujto amado”. E
irá depois suplicar a D. Gonçalo perdão pelo que tinha feito, bem como a sua presença e a dos
restantes cónegos no funeral do filho, “em louuor e omrra das chagas de Christo”155.
178 · Maria de Lurdes Rosa
Este milagre mereceu‑nos uma referência pormenorizada porque nos parece condensar
o cerne da mensagem eminentemente política da manipulação sacral de que faz parte. Os
monges rejeitam, em nome de Deus e dos reis antigos, o cinismo político da cariz raciona‑
lista que subjazia às observações do Alcaide. O poder temporal não se podia eximir à tutela
ética do sobrenatural; o pecado que a tal o conduz é a descrença, um vírus que os monges
querem impedir de lavrar, pois conhecem o seu poder laicizador. Assim, é esse pecado que se
pune no Alcaide, fazendo passar a idéia de que a relação política é também religiosa, e que
portanto implica uma posição crente, um acatamento reverencial dos intermediários, dos
intérpretes do sagrado. O milagre pertence a um tipo bem característico, que encontramos
noutros pontos da Cristandade tardo‑medieval, em torno de conflitos entre o poder político
e o religioso156.
Todo o “livro de milagres” se organiza quase como sabemos terem sido organizados os
cartórios conventuais em torno das propriedades disputadas e, neste caso, miraculosamente
salvas. Seguem‑se as mortes de Martim Dias de Ceira, escudeiro do Conde D. Pedro, e a do
sobrinho do Bispo de Coimbra D. Álvaro Ferreira. O primeiro tentara apoderar‑se fraudu‑
lentamente de umas vinhas do mosteiro contíguas às suas propriedades junto da sua quinta.
No preciso momento em que tenta enganar o Prior, perde a fala, e morre poucos dias de‑
pois157. O segundo sofre um ataque fatal quando, com o seu tio, se alimentava do produto do
arrombamento de uma quinta de Santa Cruz, protagonizado pelo Bispo, que injuriara ainda
o guarda e o próprio mosteiro. Comenta o narrador do episódio que “Esto entendemos que
Sobreveeo por a grande desonrra que fez o dicto bispo ao mosteiro da virtuosa Cruz e aos santos Rex
que em elle Jazem supultados que ho priujgisarom E asy todas as suas cousas”. Mais tarde, o Bispo
continuará a sofrer as consequências dos seus actos, estando mesmo a ponto de se afogar na
passagem de um rio158. Por fim, irão também morrer, castigados pelas ofensas ao mosteiro,
um tal Rui Dias e o seu filho Lopo Rodrigues, que se tinham recusado a devolver valiosas
alfaias sacras do mosteiro que tinham empenhadas159.
É ainda referido um último milagre, que não termina de forma tão drástica, mas que
envolve uma personagem superior a todas estas: D. João I. E a tão alto senhor, o castigo é
aplicado por um não menos ilustre: a aparição do próprio Afonso Henriques dissuade aquele
monarca do interesse numa quinta do mosteiro, que fora apreendida como bem da coroa.
Caso persistisse na sua atitude, o Rei Fundador afirma‑lhe ir ele mesmo defender o seu
mosteiro... D. João acorda, desfaz o sucedido e comenta: “... bem Se pareçia que nom aprazia ao
santo Rey Dom Afonso que Jaz em o Mosteiro de Santa Cruz que lhe tomasem o que lhe elle auja
dado”160.
Esta não fôra a primeira aparição do Rei, pois muitos anos antes sucedera uma outra,
também relatada agora. Afonso viera sossegar um prior de Santa Cruz contra as pretensões
do Bispo D. Soeiro (em 1233, segundo versões posteriores)161, prometendo‑lhe que em breve
oficiará o seu funeral. Depois disto, aparece ao Bispo, de forma terrífica: irado, grita e brande
uma lança, com que fere o Bispo. Este apenas tem tempo de acordar aos gritos, contar o
sucedido, e morrer dos golpes do rei162.
Para além da difusão destes relatos, e de todas as acções que eles referem – perdão mise‑
ricordioso de D. Gonçalo aos culpados, arrependimentos públicos, presença nos funerais das
vítimas – o Mosteiro socorre‑se ainda de uma segunda via de difusão da protecção sobre‑
natural que os “santos reis” lhe dispensam: um conjunto de cerimónias relacionadas com os
túmulos régios. Segundo as fonte disponíveis, parece‑nos possível apresentar quatro grandes
Santos e demónios no Portugal medieval · 179
Cruz, símbolo seu e da realeza divina (que já vimos manipulado de forma semelhante no
contexto da “recepção dos reis”). A enorme eficácia sagrada destas intercessões é apresentada,
na sequência narrativa do milagre, pelo facto de que ter sido precisamente a troça feita delas
que levara à punição do Alcaide.
Mais tarde, já no tempo do Prior D. Gomes, existe um segundo testemunho deste recurso
à intercessão em caso de necessidade. Ele é agora protagonizado não pelo Prior, que é apre‑
sentado como favorável ao oponente do mosteiro, o Infante D. Pedro – no que é sem dúvida
uma censura à tendência esboçada já desde antes, o “enfeudamento” dos Priores‑mores aos
monarcas, em desfavor do mosteiro172. A fidelidade aos reis antigos é defendida por um
monge de humildes funções, o sacristão Afonso Martins. Para que o mosteiro enfrentasse o
Infante, ele permanecia em oração depois das matinas, fazia devoções longas e variadas na
capela dos reis, e pedia a intercessão destes e de outros defuntos do mosteiro. Era secundado
por outros cónegos que, nos dias de nove lições, diziam a missa de defuntos oficiada em vez
de rezada, e saíam em responso sobre os reis173.
Por fim, uma quarta cerimónia seria de carácter ainda mais excepcional: a intercessão
permanente no mosteiro em altura de batalhas. As fontes são escassas, mas penso que me‑
recem a referência. Pela Vita Theotonii, sabemos que os monges crúzios acompanhavam a
progressão guerreira do Rei, nas batalhas cruciais, com solenes e prolongadas cerimónias
litúrgicas de intercessão174. Esta prática era comum, de resto, a outros grandes mosteiros
régios e nobiliárquicos, mais uma vez a partir da decisiva intervenção de Cluny175. Ora, uma
tradição tardia refere que, no próprio momento da tomada de Ceuta, enquanto os Cónegos
rezavam matinas, lhes aparecera D. Afonso Henriques e D. Sancho, vindo de África, onde
tinham ajudado à conquista. Após darem a novidade aos Cónegos, entram nas sepulturas,
não sem lhes ordenar que rezassem em acção de graças pela vitória176.
A par destas cerimónias, os túmulos régios são objecto de cuidados especiais, durante o
século XV, no que é uma outra faceta da sua sacralidade. Os promotores destas iniciativas são
dois, cada um com diversa intencionalidade. Em primeiro lugar, o prior D. Gonçalo Pereira, a
favor do seu mosteiro. Manda pintar e refazer “gardizelas” da capela dos reis, e colocar panos
vermelhos de lã sobre os túmulos177. Em segundo lugar, nada menos que o rei D. Duarte, que
doa panos de ouro para colocar sobre os túmulos178. O objectivo do monarca seria diferente
do do Prior: exaltar não o “rei crúzio”, mas sim o seu “santo antepassado”. Neste sentido, o
gesto de D. Duarte deve associar‑se a uma idêntica doação, que fizera pela mesma época a
Santa Clara de Coimbra: panos de ouro para o sepulcro “Rainha Santa”. Não se esqueça que,
ainda Infante, casara na capela da sua antepassada; e que o seu irmão D. Henrique, em carta
sobre o mesmo acontecimento, associava o bom futuro do casamento ao facto da noiva ter
saído dos paços da Rainha D. Isabel, cuja santidade beneficiaria o enlace179.
A nosso ver, e de um modo rápido, deve ainda ser relacionado com todo este investimento
sobre os túmulos a difusão da lenda da queda do escudo, pendurado junto às sepulturas, e
sucedendo sempre que morria um rei português (em 1416, no Livro dos Arautos); com a
redacção da Crónica de 1419, com o que ela traduz de “oficialização” do milagre de Ourique
(mandada escrever por D. Duarte, aproveitando relato de Sta. Cruz de Coimbra); e com
o novo epitáfio de Afonso Henriques, feito antes de 1429180. É referido ainda um outro
elemento, se bem que em fontes mais tardias e discutíveis. Segundo Manuel Severim de
Faria, até D. Manuel ter refeito os túmulos e encerrado definitivamente o de Afonso Henri‑
ques, os Crúzios patrocinavam curiosas práticas com o corpo régio, em determinadas festas:
Santos e demónios no Portugal medieval · 181
“... Conservando‑se até aquelle tempo seu corpo inteiro embalsamado em forma que o asentavão
em hua cadeira aos oficios divinos nas festas mais solenes”181; ( ) avendo estado hasta entonces en
un sepulcro de madera, em que se mostrava un cierto dia del ano al pueblo, que concoria a besarle la
mano con respecto i devoción como a Rey, e como a santo’’182.
A este grande conjunto de iniciativas segue‑se uma mudança de estratégia, por parte de
Santa Cruz, na promoção sacra dos “santos reis”. Apesar da escassez de indícios, parece‑nos
ser possível pressupor que, na segunda metade do século XV, se procurava no mosteiro a
canonização formal do Rei Fundador. Com efeito, sabemos que D. João Galvão, prior do
mosteiro de 1459 a 1460, defendia a formalização da santidade de Afonso Henriques, tanto
a partir das escrituras de Santa Cruz, como das obras do rei183. É o início de um longo pro‑
cesso, cujas várias etapas estão ligadas por um significativo protagonismo: o de uma espécie
de “lobby” familiar‑cortesão, constituído pela família dos Galvões. Através destes, mudam‑se
o sentido e o proveito da sacralidade afonsina em benefício da Coroa, e não já de Santa Cruz.
Reflexo de uma tendência geral, uma vez que o mosteiro crúzio estava cada vez mais domi‑
nado pelo Monarca patrono184.
Com efeito, na segunda etapa, que corresponde às iniciativas manuelinas, encontramos
Duarte Galvão, irmão daquele Prior, a escrever a Crónica de El‑Rei D. Afonso Henriques
(1502‑1505). Um escrito cronístico sobre a vida da personagem a canonizar era um dos
requisitos dos processos de canonização, tal como o eram os actos que D. Manuel leva a cabo
ao mesmo tempo, em torno de Afonso Henriques: abertura do túmulo e trasladação do corpo
para um sepulcro mais solene. Depois, Duarte Galvão era cunhado do Arcebispo de Braga D.
Diogo de Sousa, que em 1513 procede em Braga à solene trasladação dos Condes D. Hen‑
rique e D. Teresa185. Por fim, em finais do século XV, seria cónego crúzio ainda um quarto
familiar, Manuel Galvão, que em 1556, com mais de oitenta anos, é um dos “cónegos antigos”
chamados a testemunhar no inquérito para o processo de canonização então iniciado. Tinha
então a seu cargo o cartório conventual, função que talvez desempenhasse desde há muito,
dada a familiaridade e a autoridade que possui sobre todas as “escrituras antigas” que cita e
entrega a Bispo de Coimbra para serem inseridas no processo186.
As iniciativas manuelinas em torno da sacralidade de Afonso Henriques vão constituir
de novo uma etapa de grande investimento. O interesse de D. Manuel pelo prestígio do Rei
Fundador terá começado por volta de 1502187, e a sua primeira manifestação visível data do
ano seguinte quando, ao passar por Santa Cruz de Coimbra numa peregrinação a Santiago
de Compostela, manda construir túmulos mais dignos dos seus antepassados.
É importante referir que durante esta peregrinação D. Manuel visitou outros santuários,
neles deixando uma marca da sua actividade organizativa: em Dume presta homenagem a
São Martinho188, no Porto manda oferecer uma arca de prata a São Pantaleão189. Todas estas
acções devem ser enquadradas na política manuelina de “reformas”, que canaliza em benefí‑
cio da Monarquia as heranças do passado, do nível administrativo ao religioso e ao simbólico,
organizando espaços desordenados em função de realidades unificadoras por ele definidas190.
Neste contexto, deve ser aqui acrescentadas uma vasta série de iniciativas manuelinas desti‑
nadas a “arrumar” os campos religioso e simbólico, indispensáveis para o correcto enquadra‑
mento do “episódio Afonso Henriques”.
Para além da já mencionada peregrinação, refira‑se, entre as mais significativas, em primei‑
ro lugar, a promoção do culto ao Anjo Custódio (1504), por ser uma devoção que propõe um
defensor nacional, presidindo a um determinado número de duplos seus, os “anjos custódios”
182 · Maria de Lurdes Rosa
das vilas e cidades do País. Estas últimas são informadas de que devem realizar procissões ao
seu anjo em simultâneo com a do Anjo Custódio do Reino, seguindo um único regimento,
idealizado por D. Manuel191. Em segundo lugar, a beatificação de Isabel de Aragão (1516),
acompanhada de uma iniciativa semelhante à que é feita para Afonso Henriques e Sancho I: a
conclusão do túmulo em Santa Clara de Coimbra192. Por fim, duas acções já acima referidas: a
oficialização do mito de que Afonso Henriques era descendente de Santo Estêvão193 e a inter‑
venção no culto de D. João II, enquadrando a devoção popular194. Várias outras iniciativas de D.
Manuel neste campo terão de ser deixadas de lado, desde a reforma das capelas e resíduos (o rei
defendendo os bens das almas)195, até às cartas a igrejas e santuários para que recolham relíquias
dispersas e abandonadas (o caso mais conhecido é o de São Torcato)196, passando pelo início de
uma grande reforma das ordens religiosas igualmente subordinada a ideais “centralizadores”197
e por esse núcleo fundamental que foram todas as tentativas para “sacralizar” a sua pessoa e
colocar o seu reinado sob o signo das eras messiânicas198.
O ciclo iniciado em 1503 com o refazimento dos túmulos termina em 1520, quando estes
são abertos e os corpos trasladados para o novo monumento. D. Manuel manda encenar uma
cerimónia que, tal com antes as de D. Gonçalo, se destinava a canalizar em benefício próprio
a sacralidade do Rei Fundador. Existem duas versões da mesma, o que complica um pouco o
seu estudo199. Tanto uma como a outra são concordes quanto ao estado de incorruptibilidade
do corpo e do perfume que dele exala, logo após a abertura. Este sinais de santidade por
excelência são anunciados a todo a assistência. Depois, a versão mais sóbria e mais antiga
refere que D. Manuel mostrou o corpo à nobreza e ao povo de Coimbra, estando junto dele
em pé, de cabeça descoberta e com um círio na mão; todos os nobres e os cónegos de Santa
Cruz empunhavam tochas acesas. Canta‑se um responso e coloca‑se o corpo na sepultura,
após o que se seguem vários ofícios litúrgicos. Nicolau de Santa Maria apresenta uma ver‑
são bastante ampliada do acontecimento. Desde logo, D. Manuel manda realizá‑lo no dia
da tomada de Lisboa de 1147. Depois, antes do episódio das tochas, fizera tirar o corpo do
ataúde, vestir‑lhe o manto de Avis e sentá‑lo numa cadeira. De seguida, o corpo é coroado e
feito empunhar a espada e o escudo que se guardavam no mosteiro como seus. Por fim, com
D. Manuel à cabeça, procede‑se a um beija‑mão do cadáver, por todos os senhores e povo
presentes.
Tenha sido de um modo ou de outro, a cerimónia e o novo epitáfio nela inaugurado mar‑
cam de forma indelével o culto doravante prestado, como pretenderia D. Manuel. Segundo o
já referido testemunho de Severim de Faria, os cónegos deixam de retirar o corpo de Afonso
Henriques e de o apresentar ao povo. A memória do grande rei é agora cultivada em função
da monumentalidade arquitectónica construída pelo seu Venturoso descendente.
O quarto e último momento deste longo processo é constituído pela realização de um
inquérito com vista à canonização formal de Afonso Henriques. O facto de ter sido leva‑
do a cabo apenas em 1556, revela que as intenções dos cónegos demoraram mais tempo a
realizar‑se do que parecia pressupor o activo interesse de D. Manuel. No entanto, o corpo das
declarações feitas no inquérito vem demonstrar que durante esse período se deu uma grande
e permanente reelaboração das tradições relativas aos reis, em relação aos testemunhos das
“memórias” quatrocentistas200. A presença de elementos novos e a queda de milagres antigos
denota que o conjunto das crenças e formas de culto praticadas era actualizado – e que,
portanto, tinha funcionalidade prática. Numa análise mais aprofundada da que seria possível
realizar aqui – dado que este inquérito extravasa o âmbito temporal do nosso, estudo201 –
Santos e demónios no Portugal medieval · 183
Nota final
Em relação ao conjunto de práticas relacionadas com o corpo do chefe guerreiro defunto
(ponto 2.1.1 do texto), gostaríamos de referir algumas hipóteses, que poderiam ser consi‑
deradas num alargamento do tema. Assim, pensamos que se devem incluir ainda na análise
outras virtudes específicas e acrescidas do corpo dos reis, não directamente ligadas com a
força guerreira, mas sim com a fertilidade, a incorruptibilidade e os poderes taumatúrgicos,
também sinais de uma supremacia de origem sobrenatural. No uso medieval e moderno
destas crenças, intervêm outras influências, como o culto ao corpo dos santos202. Vêm refor‑
çar referenciais anteriores, e o conjunto é utilizado em benefício político da monarquia. É
conhecido o milagre da cera na morte de D. João I, difundido pela dinastia de Avis, e que
afinal implica um dom de abundância do corpo, em cujas exéquias não se consome cera,
apesar de arderem velas203. Numa nota marginal de um tratado de nobreza quinhentista,
refere‑se que começou a chover quando nasceu um dos filhos de D. João III204. Mas foi em
torno do corpo de D. João II, que mais rumores circularam, e mais vezes se abriu a sepultura.
A morte do rei deu azo a grandes cerimónias fúnebres, e os poetas de corte – tinham‑no ce‑
lebrado como um ser de excepção: “rey santo, rey justo, rey dino de ser canonyzado na igreja por
santo”205. A um nível bem diferente – mas que cedo seria apropriado pela Corte – gerara‑se
junto ao seu túmulo, em Silves, um movimento devocional envolvendo a habitual “terra do
sepulcro”. De tal modo que, logo em 1497, o Bispo do Algarve manda fazer uma inquirição
aos ditos milagres, comprovando‑se seis deles206. D. Manuel não tarda a deslocar‑se ao local,
talvez precavendo‑se contra uma popularidade que poderia escapar ao seu controlo – e inicia
uma série de acções destinadas a enquadrar o prodígio na tentativa mais global de engrade‑
cimento da sua Monarquia. Em 1499, o túmulo é aberto e o corpo encontrado incorrupto.
184 · Maria de Lurdes Rosa
Notas
1 Este trabalho beneficiou muito das discussões sobre o tema com Diogo Ramada Curto, com
quem esteve pensado em termos de projecto conjunto, com enquadramento temporal mais am‑
plo; e das sugestões de José Mattoso sobre os primeiros rascunhos, bem como da sua leitura do
texto final. Agradeço ainda a M. Viegas Guerreiro e a Aliete Galhoz as facilidades de consulta da
biblioteca do Centro de Estudo da Tradição Popular Portuguesa (FLL) e a grande amabilidade
com que sempre aí me receberam.
2 Vejam‑se, entre os principais trabalhos, e por ordem cronológica, AZEVEDO, 1942; SARAIVA,
1950, Vol.1; CINTRA, 1951: CCCLXIII‑CCCLXX e CCCLXXXVI‑CCCXCI, e CINTRA,
1957; CASTELO‑BRANCO, 1965; BLÖCKER – WALTER, 1966; NASCIMENTO, 1978;
SARAIVA, 1979; BUESCU, 1987; CINTRA, 1989; MAURÍCIO, 1989; MAURÍCIO, 1990;
MATTOSO, 1992.
3 CINTRA, 1951: XL.
4 PEDRO, Conde D. (1990): 229.
5 CINTRA, 1951: CCCLXIII‑CCCLXX.
6 Sobre a descoberta”, e a caracterização da lenda, cfr. as obras destes autores citadas na nt. 1; mais
recentemente, cfr. as observações de MAURÍCIO, 1989:11 e MATTOSO,1992:34.
7 CINTRA, 1951: CCCLXII‑CCCLXX.
8 CINTRA, 1951: CCCLXXVI.
9 CINTRA, 1951: CCCLXXXVIII‑CCCLXXXIX.
10 CINTRA, 1951: CCCLVII.
11 CINTRA, 1951: CDLXXXV (sublinhados nossos).
12 PEDRO, Conde D. (1990): 5‑6.
13 CINTRA, 1951: CCXXIV‑CCXXV.
14 Carlos C. Maurício atribui à Crónica Geral de Espanha uma leitura do brasão influenciada pela
simbologia da Paixão (MAURÍCIO, 1989:17). A hipótese não nos parece isenta de críticas por‑
que: 1) a grande difusão das devoções cristocêntricas da Paixão é posterior; 2) as referências
da Crónica Geral de Espanha entendidas como defendemos não fazem com que esta proponha
exclusivamente – crie mesmo, segundo uma hipótese do mesmo Autor – a interpretação da cruz.
Santos e demónios no Portugal medieval · 185
É preciso ainda não esquecer que a Crónica Geral de Espanha, não é um produto clerical, devoto,
mas de uma corte nobre. O próprio Carlos C. Maurício, de resto, num texto muito rico mas algo
contraditório, parece propor noutro local que tenha sido o tópico das cinco feridas a provocar o
das chagas; a introdução da cristofania teria acelerado o processo (“se é que não o desencadeou
de facto” (p18), acrescenta – o que não nos permite muito bem estabelecer afinal o que causa o
quê).
15 MAURÍCIO, 1989: nt. 24, p.8 e p. 17.
16 Martinho, Dom (1891): 511‑12.
17 Existe ainda o passo transmitido por ZURARA, 1915: 35‑36 (Crónica da Tomada de Ceuta, cap.
XI), que reproduziria o parecer dos letrados antes da conquista da praça africana: “Mas pera que
lembro eu muito exçellemte primçipe, outros nehuus rex nem senhores, apartados de uossa senhoria, pois
teemos amte nossos olhos a memoria do muy notauelle fiell e cathollico christaao el Rey Dom Affomsso
Amrriquez, cujas rrelliquias trautamos amtre as nossas maãos. Veede senhor os signaaes que trazees em
uossas bamdeiras, e pregumtaae e sabee como e per que guisa forom gaanhados, os quaaes çertamente de
todallas partes mostram a paixom de nosso Senhor Jesu Christo, por cuja rreueremça e amor o bem aue
mturado Rey ofreçeo seu corpo em no campo dOurique ueemdo aquelles çimquo rrex como uossa merçee
sabe.” (sublinhados nossos). Existem porém dúvidas sobre a parte a atribuir a trabalho posterior
do Cronista deste parecer: MAURÍCIO, 1989:22 nt. 24. Cfr. ainda BUESCU, 1987:86‑8. Este
trecho é também discutido por SARAIVA, 1990:240, dando‑o como contemporâneo da prepa‑
ração para a conquista de Ceuta; quanto à referência ao milagre de Ourique, considera‑a confusa,
“não se percebe ainda se abrange o milagre”.
18 NASCIMENTO, 1978:367 (sublinhados nossos).
19 O Autor salienta, sobre o trecho dos cincos escudos no braço de Afonso Henriques: “Deste modo,
parece claro que o sentido do passo não é outro senão o de referir as marcas deixadas no corpo
do rei pelo embate das armas. Contudo, é também manifesto que o valor referencial e com ele a
informação que daí possamos recolher se esbate perante o valor simbólico heráldico sublinhado
pela própria repetição de índole formular. Repare‑se, porém, que a Crónica de 1419 e muito menos
a Crónica Geral de Espanha de 1344 nada referem neste particular O desenvolvimento narrativo e a
explicitação informativa ficaram condicionadas pelo código heráldico no De Ministerio Armorum.
Mas não será difícil admitir‑lhe uma existência real anterior ainda que não possamos balizá‑la
e defini‑la” (NASCIMENTO, 1978:371). MAURÍCIO, 1989:27, nt. 77, diz sobre este trecho:
“Esclarece o autor que a referência aos escudos quebrados no braço do rei são a expressão heráldi‑
ca dos ferimentos recebidos por ele em combate” (pp. 371 e 374). O que nos permite aproximá‑la
da versão consignada pelo bispo D. Martinho, 30 anos antes.
20 MATTOSO, 1987:227.
21 MAURÍCIO, 1989:18‑20 e nt. 89; MAURÍCIO, 1990, pp.9‑l0.
22 LUCENA: 20. Sobre esta fonte cfr. as observações de BUESCU, 1987: 86 e pp.124‑125.
23 MAURÍCIO, 1989: 27, nt.78.
24 DE LA MARCHE, 1847:104‑112; cfr. ainda cf. CINTRA, 1957:6‑7; BUESCU, 1987:85‑86 e
124; MAURÍCIO, 1989: 27, nt.78.
25 Sobre a evolução das interpretações do escudo, cfr. ROIG, 1994.
26 Cfr.infra, para esta caracterização. Uma visão geral do tratamento que é dado nesta Crónica ao
reinado de Afonso Henriques pode ver‑se em FIGUEIREDO, 1994.
27 BASTO, 1945: 74‑78 (Crónica dos Cinco Reis de Portugal, cap.14). Na edição de C. Silva Tarouca
a partir do manuscrito Cadaval, este capítulo foi, com três outros, excluído do corpo do texto e
186 · Maria de Lurdes Rosa
42 A origem celta dos romances arturianos é há muito aceite; cfr., entre os estudos principais, S.
LOOMIS, 1967.
43 PALACIOS MARTIN, 1975; PALACIOS MARTIN, 1976; LINEHAM, 1987:229‑244;
MATTOSO, 1987; cfr.infra, para o estudo do caso de Afonso Henriques e Santa Cruz de Coim‑
bra.
44 LEVILLAIN, SALLMAN, 1984; KEYES 1982. Seria talvez esclarecedor analisar este aspecto
a contrário com efeito, se possui a capacidade de sacrifício perante a morte, o chefe tem em
contrapartida de possuir um corpo saudável, forte e perfeito durante a vida, o que exclui os de‑
ficientes físicos do poder. Na sociedade medieval portuguesa, estas práticas apresentam‑se sob
a forma de “vestígios” em diferentes fontes. A perfeição do corpo dos herdeiros, por exemplo,
era uma condição imposta aos morgados pelos instituidores de morgadios (cfr. ROSA, 1988:
1069‑1074 e ROSA, 1995:188‑191). Ainda no século XVII, as tradições nobiliárquicas con‑
servam a memória do herdeiro maneta dos Teles da Silva a quem, por tal defeito, se considerava
poder abster‑se com dignidade da participação na jornada de África. Ele, porém, negando‑se a
ficar desonrado, exercitara‑se até poder manejar a lança, e estivera na batalha de Alcácer Quibir,
onde acaba por morrer com o irmão, “pelejando como honrados cavaleiros” (episódio narrado por
Jerónimo de Mendonça, citado e analisado em SAMPAIO, 1984:44,). Também a cronística nos
transmite relatos veiculando ideias semelhantes. A morte honrosa em situações politicamente
difíceis envolvia, de facto, o sacrifício do corpo, como testemunha o caso exemplar de Álvaro
Vaz de Almada, tal como é narrado por Rui de Pina na Crónica de D. Afonso V. Antes da batalha,
faz, com o Duque D. Pedro, um juramento sobre a hóstia, que é afinal o próprio corpo de Deus,
e cuja profanação resultava em sangria real, como testemunha um dos milagres mais difundidos
pela Cristandade, o da missa de São Gregório (cfr. GONZÁLEZ NOVALÍN, 1975. Sobre o
juramento, cfr. MARTINS, 1983). Depois, ao tombar, oferece o corpo aos golpes, transformando
‑o assim na prova clara da sua fidelidade ao Duque de Coimbra (PINA, 1977:748) (Rui de Pina,
Crónica de D. Afonso V, cap. CXXII). Uma análise em termos diversos, integrada com numerosos
exemplos, no sentido das utilizações propagandísticas da morte pela dinastia de Aviz pode ver‑se
em FONSECA 1993:527‑528). Um outro relato afim, presente no mesmo cronista, mas já antes
transmitido pela Crónica de 1419, diz respeito ao modelo de perfeita fidelidade no seio de uma
crise tão grave como a deposição de Sancho II. Martim Freitas, alcaide de Coimbra, vai a Toledo
e manda abrir o túmulo do rei deposto. Só depois de se certificar da sua morte, e de depositar as
chaves junto do cadáver considera cumprida a sua missão. As chaves que o rei lhe confiara em
vida pertenciam agora ao corpo morto, e apenas então o alcaide se desliga do compromisso que
assumira (PINA, 1977: 149) (Rui de Pina, Crónica de D. Sancho II, cap. XII).
45 Sobre os funerais régios, cfr. GOMES, 1995:304‑306, e CURTO, 1994, Vol. 1: 212‑228.
46 GOMES, 1995:322, nt. 50.
47 Não é, portanto, uma cerimónia da Monarquia, resultante do processo de crescente curialização
da mesma que, em termos de cerimoniais envolvendo a morte de um rei e a entronização do seu
sucessor, implicasse criações artificiais de cerimónias, cada vez mais majestosas. Por outro lado, a
sua origem não reside em manipulações, em proveito de uma “monarquia teatral” da Época Mo‑
derna, sobre a tradição coimbrã do escudo. É uma prática quase decerto anterior – ou pelo menos
exterior – às monarquias peninsulares, relacionada com a veneração pelos guerreiros das armas do
seu chefe morto.
48 Boa descrição e análise do costume em ESPAÑOL I BELTRÁN, 1984:163‑168.
49 MENÉNDEZ PIDAL DE NAVASCUÉS, 1965:135‑137; S. PAYO, 1965: 222; reprodução e
análise em GÓMEZ BARCENA, 1988:42‑43.
50 S. PAYO, 1965: 226‑227; sobre o personagem e o seu testamento, de uma forma mais completa,
DALCHÉ, 1978.
188 · Maria de Lurdes Rosa
74 Sobre esta forma de ordália cfr. MELO, 1961:129‑131; BARTHÉLEMY, 1988: 3‑25.
75 CORPSE, 1949; LOWENSTIMM, 1905:86.
76 SALLMANN, 1984:81.
77 Análise destes processos em PASQUALINO, 1992:15‑16.
78 ZUMTHOR, 1987:37‑83, SARAIVA, 1991:56‑68. Já L. E Lindley Cintra fizera notar que a
parte de que nos chegou do grande corpus de epopeias castelhanas medievais é íntima CINTRA,
1989:69).
79 CINTRA, 1951:CCCLXIX. O mesmo estudioso volta a referir a importância deste autor em
CINTRA, 1989:73.
80 Exemplo encontrado por L. F. Lindley Cintra num dos códices da Crónica de 1344, e referido em
CINTRA, 1951: CCCXC‑CCCXCI, nt 206.
81 Neste pormenor, e precisamente sobre “romances de tema histórico” que representariam a cultura
popular, cfr. as observações de SENA, 1868. Entre outras coisas, o romance sobre Afonso Hen‑
riques é retraçável ao fim do século XVI, e contém correcções provenientes de uma obra erudita
impressa em Francoforte em 1596 (SENA, 1967:151 – 161).
82 Sobre este método, cfr. BOGGS, 1949; THOMPSON, 1949: 753, e KRAPPE, 1949.
83 Para a “gesta” ou “lenda” de Afonso Henriques, cfr. nota 1. Para a de Egas Moniz, MATTOSO,
1984c; aí, tal como em artigos seguintes, o A. defende que a lenda não é propriamente um cantar
épico, mas antes “a história exemplar da fidelidade vassálica e de uma astúcia compensadora”
MATTOSO, 1993:237; em relação ao episódio de Cárquere, presente apenas na Crónica de 1419,
põe a hipótese de se tratar de um “produto de mentalidade clerical”, mas não exclui que tenha
constituído o primeiro episódio da gesta de E. Moniz, no que seria uma tentativa de a unir com
a de Afonso Henriques, pois a doença das pernas prenunciaria o desastre de Badajoz (p. 410).
Como veremos no texto, propomos uma origem algo diversa para este episódio. Para a Crónica de
1419, BASTO, 1959 onde se resumem as polémicas e se encontra a bibliografia das mesmas, bem
como um estudo de L. E. Lindley Cintra sobre o assunto; cfr. ainda para o reinado de D. Afonso
Henriques nesta Crónica, o estudo acima citado de Fernando Figueiredo.
84 CALADO, 1998: 6‑7 (Crónica de Portugal de 1419, capítulo 3).
85 CASTELO‑BRANCO, 1970, e CASTELO‑BRANCO, 1955‑1956; DIAS, 1976; foi lido nesta
chave, mas atribuido à falsificação clerical, por FERNANDES, 1946; é uma das hipóteses de
MATTOSO, 1984c:411.
86 São variantes do motivo principal da “crueldade desnaturada”, em torno do sacrifício – consciente
ou inconsciente – dos filhos pelos pais (cfr. THOMPSON, Stith (1955‑1958), Vol. 5: 314‑318; e
JEPHATHATH’S, 1949; PROMISED 1949; IPHIGENIA, 1949.
87 Cfr. EXPOSURE, 1949 e FATAL, 1949.
88 Este assume formas negativas em vários dos motivos acima referidos, mas pode também ser o
ente providencial que tomará conta da criança, muitas vezes um velho criado ou companheiro
do pai: cfr. Motivo P361, “Senhor e servo”, Motif‑index, 1930, vol. 5: 168‑169, e FAITHFUL,
1949.
89 Cfr., para tudo, a nota anterior.
90 Motivos F311.2 (“Fairy foster‑father guardian to mortal”).
91 Ambas as histórias são contadas por BRITO, 1602:1ª p., fls. 289v‑291v, e 310v‑311, mas aceites
e corroboradas documentalmente por BRANDÃO, 1973:III, fls. 95v‑97v e 40‑41v.
92 Motivo L112.3 (“deformed child as hero”), 112.8 (“Lame child as hero”).
93 GINZBURG, 1995:200‑249.
190 · Maria de Lurdes Rosa
145 Argumento defendido, de forma nem sempre clara quanto à relação causa‑efeito, por MAURÍ‑
CIO, 1989:7‑8, 17‑18 e 27, nt. 75; cfr. ainda, quanto à difusão desta devoção e a sua celebração,
ROCHA, 1983:1441‑1443.
146 Sobre o papel fundamental desta devoção numa das principais figuras religiosas do século XV
português, a Princesa D. Joana, cfr. ROSA, 2001‑2002, 443‑447; outras expressões contemporâ‑
neas da devoção, ROSA, 1995:129‑130; aspectos teológicos em DERVILLE, 1986.
147 Este caso parece‑nos importante no que pode funcionar como paralelo para o estudo das trans‑
formações de Afonso Henriques: VAQUERO, 1990. L F. Lindley Cintra, de resto, aponta para
uma quase inequívoca influência textual da lenda de Fernão Gonçalves na “devotização” operada
por Santa Cruz em torno de Afonso Henriques (CINTRA, 1957:45‑51).
148 CINTRA, 1957:51; CINTRA, 1989:72; MAURÍCIO, 1989:10‑11.
149 Análise do processo em BUESCU, 1987:128‑133.
150 Caracterização de todo este panorama em MARTINS 2003: 536 ss .
151 KRUS, 1984:22‑23; este Autor já chama a atenção para o culto de Afonso Henriques em Sta.
Cruz (p.24, nt.9), sendo, tanto quanto sabemos, o primeiro a fazê‑lo, dentro de uma visão histo‑
riográfica renovada.
152 Para a sua caracterização, CRUZ, 1964:280‑300.
153 Livro das Lembranças, ed. CRUZ, 1968:101 e 121‑123
154 Livro das Lembranças, ed. CRUZ, 1968:102 e 122 (ligeiramente deferente: “leixaaos vos andar
Com os Rex mortos E nos andamos com Rex uiuos que maJs podem”). Sobre este milagre ver também
KRUS, 1984).
155 Livro das Lembranças, ed. CRUZ, 1968:103 e 123 (com ligeiras diferenças).
156 GOLINELLI, 1991; GOODICH, 1988.
157 Livro das Lembranças, ed. CRUZ, 1968:117‑118.
158 Livro das Lembranças, ed. CRUZ, 1968:119.
159 Livro das Lembranças, ed. CRUZ, 1968:104.
160 Livro das Lembranças, ed. CRUZ, 1968:117.
161 SANTA MARIA, 1668, p.II:511 (inquérito de 1556).
162 Livro das Lembranças, ed. CRUZ, 1968:116‑117.
163 Cfr. nt. 125.
164 MARTINS 2003: 732.
165 MARTINS 2003: 732
166 MARTINS 2003: 719 ss.
167 Livro das Lembranças, ed. CRUZ, 1968:104 e 124. A fonte data a visita de 1450, o que é mani‑
festamente impossível. Hipoteticamente, talvez tenha significado especial que a visita tenha sido
realizada em dia de S. Miguel, anjo depois associado pela dinastia de Aviz‑ pelo menos D. João II
e D. Manuel – ao poder monárquico – cfr. nt. 139.
168 Publicado por BRAGANÇA, 1976. Sobre o Ritual cfr. ainda MARTINS 2003: 720 ss.
169 BRAGANÇA, 1976:31‑35.
170 IOGNA‑PRAT, 1990:467‑471, na esteira dos trabalhos de E. Kantorowicz.
171 Sobre o seu culto no Mosteiro de Santa Cruz, cfr. KRUS, 1984.
172 Cfr. p. 178.
Santos e demónios no Portugal medieval · 193
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