Caderno Semana 2011 - Volume II (P - 108-KER-Esperanta - Ekzameno) PDF
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da Semana
de Letras
Ano 2011
PRESIDENTE
Eduardo Nadalin (DELEM/Vice-Coordenador do Curso de Letras)
VICE-PRESIDENTE
Márcio Renato Guimarães (DLLCV/Coordenador do Curso de Letras)
SECRETARIA GERAL
Rodrigo Tadeu Gonçalves (DLLCV)
COMITÊ CIENTÍFICO
João Arthur Pugsley Grahl (DELEM)
Nylcéa Thereza de Siqueira Pedra (DELEM)
Camila de Oliveira Afonso (discente)
Carlo Giacomitti (CAL)
Elisa Tisserant de Castro (CAL)
José Olivir de Freitas Junior (CAL)
EDITOR
Eduardo Nadalin
COMITÊ DE PUBLICAÇÃO
João Arthur Pugsley Grahl
Marcio Renato Guimarães
Nylcéa Thereza de Siqueira Pedra
Camila de Oliveira Afonso
Carlo Giacomitti
Elisa Tisserant de Castro
José Olivir de Freitas Junior
Rodrigo Tadeu Gonçalves
NORMALIZAÇÃO BIBLIOGRÁFICA
José Olivir de Freitas Junior
PRODUÇÃO GRÁFICA José Olivir de Freitas Junior
ÍNDICE DE AUTORES
481
Cadernos da Semana de Letras UFPR Ano 2011 Volume II – Trabalhos Completos
Apresentação
1
Esta discussão se desenvolveu a partir de apontamentos originados neste ano (2011) no Grupo de
Pesquisa “Linguagem e cultura” (UFPR-CNPq), GRÁFICO
liderado1pela Dra. Elena Godoi.
2
Realizada no dia 23 de maio na Semana de Letras 2011 da UFPR.
8
Cadernos da Semana de Letras UFPR Ano 2011 Volume II – Trabalhos Completos
Pensamento sistêmico4
3
Nas seções seguintes, essas correlações (TR e cognitivo, TP e sociológico, PS e
biológico/ontogênico) serão explicitadas.
4
O pensamento aqui exposto é o de MATURANA (2002).
5
O conversar (na acepção de MATURANA), como ação, pertence ao âmbito emocional
(MATURANA, 2002:174).
6
Dentre as emoções, o amor está no centro dos fatos históricos que dão origem ao homem; “é a
emoção que constitui o espaço de ações no qual aceitamos o outro na proximidade da convivência”
(MATURANA, 2002:174-5).
9
Cadernos da Semana de Letras UFPR Ano 2011 Volume II – Trabalhos Completos
Assim, para MATURANA, deve haver, como condição necessária (mas não
suficiente), um acoplamento estrutural recíproco entre os homens para que os
rudimentos de uma linguagem possam surgir, homens esses que recebem o
estatuto de homens ao surgir a linguagem, considerada um comportamento especial
num domínio consensual. Quando os domínios de coordenações consensuais de
conduta se tornam recursivos, os homens começam a operar na linguagem
(MATURANA, 2002:172). Bastante expressiva é esta outra colocação do autor:
7
O emocionar é um aspecto fundamental do operar animal (MATURANA, 2002:170).
8
Ontogenia diz respeito à historicidade de cada organismo individual (MATURANA, 2002:173).
9
Nesse sentido, digno de nota é a concepção de linguagem assumida aqui: “a linguagem, como
processo, não tem lugar no corpo (no sistema nervoso) de seus participantes, mas no espaço de
coordenações consensuais de conduta que se constitui no fluir recursivo nos seus encontros
corporais recorrentes” (MATURANA, 2002:168).
10
A recursividade é a capacidade que um sistema qualquer tem de recombinar os componentes que
o constituem de forma virtualmente infinita.
11
Autopoiese é a capacidade que os organismos vivos têm para manterem a si mesmos
(MATURANA, 2002).
12
Linguajar é um termo que se refere ao ato de estar na linguagem (MATURANA, 2002:168).
10
Cadernos da Semana de Letras UFPR Ano 2011 Volume II – Trabalhos Completos
ESQUEMA 1
13
A realidade é o domínio de coisas, e, nesse sentido, aquilo que pode ser distinguido é real
(MATURANA, 2002:156).
11
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Teoria da relevância14
14
A orientação de TR que apresentamos aqui é a de SPERBER e WILSON.
12
Cadernos da Semana de Letras UFPR Ano 2011 Volume II – Trabalhos Completos
uma teoria pragmática cognitiva que pretende analisar como os enunciados são
compreendidos na perspectiva do ouvinte; para isso, observa como os fatores
contextuais e as propriedades linguísticas interagem na interpretação dos
enunciados. Em outros termos, como os fatos sobre a audiência, o tempo e o lugar
do enunciado se combinam com a estrutura fonológica, sintática e semântica da
sentença enunciada como material sobre o qual se faz uma interpretação particular.
A TR aponta que o significado de uma sentença ultrapassa seu significado
linguístico, ou seja: haveria um aspecto da estrutura linguística que se mantém
constante em todos os enunciados, o qual é esquemático ou incompleto, e que deve
ser completado ou enriquecido em contexto para definir se a proposição gerada
pode ser tida como verdadeira ou falsa. Nesse sentido, o significado para cada
falante é sempre o que cada um pretendeu comunicar pela enunciação de uma
sentença. Ou seja, uma mesma sentença tem diferentes significados, conforme os
variados objetivos de falantes diversos. Em relação ao ouvinte, essa teoria sugere
que caberia a ele o papel de usar a variedade de processos pragmáticos de que
dispõe para completar e enriquecer o significado esquemático da sentença e gerar
sua hipótese interpretativa sobre o significado que o falante pretendeu passar.
No que se refere ao que a TR toma como contexto, além da situação ou
ambiente físico da enunciação e do texto ou do discurso precedente, em uma
abordagem cognitiva, leva-se em consideração que o ouvinte é capaz de recuperar,
ou derivar da memória, percepções ou inferências que auxiliam na identificação
aproximativa do significado do falante. Para a teoria ora em referência, o contexto
deve ser o conjunto de suposições mentalmente representado (à parte da suposição
do enunciado no momento produzido), que é utilizado na interpretação, incluindo
suposições projetadas da interpretação do texto precedente e da observação que
recai no falante e no ambiente imediato. O critério de interpretação da TR
desenvolve-se de uma suposição básica sobre a cognição humana: a de que a
cognição humana é orientada para a relevância.
Uma vez que explicar como os ouvintes atribuem o significado tendo em vista
a pretensão dos falantes, num processo bem ou malsucedido, é a meta de uma
teoria pragmática cognitiva. A TR defende ainda que há um critério único para a
avaliação das interpretações possíveis. Contudo, esse critério, mesmo quando
13
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Teoria da polidez
16
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Do continuum biológico-cognitivo-sociológico
GRÁFICO 2
17
V.n.13.
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Considerações finais
Referências bibliográficas
19
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ANDRADE, Thalita R.
FRANZONI, Guilherme A.M.C.
GARCEZ, Simone B.G.M.
SCHREINER, Vanessa
SOUZA Jr., Lourival M.
21
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A hipótese inicial
Levantamento do corpus
1
Considerando como enunciado a formação de uma frase entre duas pausas, preenchidas
(presença de hesitação) ou não preenchidas (silenciosa).
23
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(grupo inter-perceptual center) para a medição, a qual está delimitada pelo onset
(acusticamente definido) de uma vogal até o offset da vogal seguinte, em termos de
alongamento homogêneo. Essa unidade GIPC, composta pela rima de uma sílaba e
o ataque da sílaba seguinte, quando esta é presente, nos permitiu realizar esta
pesquisa. Quaisquer pausas foram desconsideradas e foi medida manualmente a
duração dos eventos acústicos – GIPCs absolutos – obtidos em cada enunciado do
grupo investigado e do grupo controle. Em seguida, foram realizados os cálculos dos
GIPCs relativos de cada enunciado, a fim de obter-se uma análise quantitativa dos
resultados; um exemplo está exposto logo abaixo.
Demonstrativo dos cálculos de GIPCs relativos
a b c d e f g h i j k l
Eles pegaram uma corda e ficaram segurando com força pra ela cair.
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Considerações Finais
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Referências bibliográficas
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29
região selvagem1. Estava minimamente equipado – contava apenas com um saco de
menos de cinco quilos de arroz, um rifle Remington semi-automático, munição para
400 tiros, um livro sobre flora local, vários livros de literatura e alguns itens para
acampar (não tinha bússola e há controvérsias sobre se teria levado um mapa da
região) –, além de não ter qualquer experiência ou instrução acerca de como
sobreviver no Alasca selvagem.
Durante três meses, McCandless viveu em um ônibus abandonado próximo
ao Parque Nacional de Denali, até que, surpreendido pela cheia do rio Teklanika,
viu-se impossibilitado de cruzá-lo e retornar à civilização. Foi encontrado morto em
seu refúgio, após 113 dias passados no mais completo isolamento, pesando cerca
de trinta quilos apenas. A causa oficial da morte: inanição. Christopher, que vinha se
alimentando de frutas silvestres e pequenos mamíferos (roedores, principalmente),
não conseguiu arranjar comida suficiente para sobreviver e simplesmente definhou
de fome.
A história, que assim recontada provavelmente reverbera em tons que vão do
trágico ao patético, recebeu um tratamento literário por parte de Jon Krakauer,
jornalista que publicou, em 1996, a obra Into the wild, na qual, num misto de
biografia e jornalismo literário, reconstrói a trajetória de McCandless a partir de
depoimentos de pessoas que o conheceram e de registros que o próprio
McCandless deixou (enquanto esteve no Alasca, Christopher manteve um diário,
escrito no verso das páginas de um livro sobre flora local, que cobre praticamente
todos os dias que passou lá).
Baseado no livro de Krakauer, o ator e diretor de cinema Sean Penn dirigiu
um filme de mesmo título2, lançado em 2007, que explora, com a falta de pudor e a
1
“Two years he walks the earth. No phone, no pool, no pets, no cigarettes. Ultimate freedom. An
extremist. An aesthetic voyager whose home is the road. Escaped from Atlanta. Thou shalt not return,
'cause "the West is the best." And now after two rambling years comes the final and greatest
adventure. The climactic battle to kill the false being within and victoriously conclude the spiritual
pilgrimage. Ten days and nights of freight trains and hitchhiking bring him to the Great White North.
No longer to be poisoned by civilization he flees, and walks alone upon the land to become lost in the
wild. — Alexander Supertramp. May 1992.” Inscrição encontrada numa tábua dentro do ônibus onde
McCandless se refugiou por três meses,em Stampede Trail, próximo ao Parque Nacional de Denali.
Fonte: <http://movies.digihitch.com/intothewild/chris-mccandless/quotes> Acesso em: 3 fev. 2011.
2
“Na Natureza Selvagem” é o título com que foi lançado no Brasil.
30
grandiloquência tipicamente hollywoodianas, tanto a beleza e a exuberância das
paisagens quanto a romantização da figura de McCandless.
A essa heroicização, resultado de uma abordagem em certa medida
“mitificadora” da história, costuma se levantar uma reação supostamente realista e
investigativa que procura desconstruir a imagem de herói idealista atribuída a
McCandless e apontar a falta de sentido e de moralidade na sua experiência. O
embate viceja especialmente na polêmica em torno da causa da morte do andarilho:
enquanto a corrente “romântica”, endossada por Krakauer e Sean Penn, prefere a
versão (adotada pelo livro e pelo filme) da morte pela ingestão acidental de
sementes venenosas, a corrente “realista” insiste na morte por inanição (causa
oficial e legalmente declarada), esmerando-se inclusive em apresentar provas do
fato3. Parece que a morte por inanição sustenta melhor a imoralidade da experiência
de McCandless, uma vez que a aproxima mais do suicídio do que a outra hipótese.
E apontar essa dita imoralidade parece ser uma preocupação bastante forte
de certas (e não poucas4) manifestações que se declaram inimigas e fatigadas da
3
No site da produtora responsável por um documentário acerca da aventura de McCandless (“The
call of the wild”, 2007, de Ron Lamothe) encontra-se inclusive um gráfico que procura reconstituir,
com base no que McCandless registrou em seu diário, o déficit calórico da sua dieta e a progressiva
perda de massa corporal que o levou à morte por inanição. Ver:
<http://www.tifilms.com/wild/call_debunked.htm> Acesso em: 1 fev. 2011.
4
Uma rápida olhada nos comentários que se espalham nos sites contendo textos acerca de
McCandless revela a significativa presença dessa necessidade de “desconstruir o mito” do
aventureiro idealista. Veja-se, nesse sentido, alguns desses comentários:
1) “This is what bothers me – that Christopher McCandless failed so badly, so harshly, and yet so
famously that his death has come to symbolize something admirable, that his unwillingness to see
Alaska for what it really is has somehow become the story so many people associate with this place, a
story so hollow you can almost hear the wind blowing through it. His death was not a brilliant fuck-up.
It was not even a terribly original fuck-up. It was just one of the more recent and pointless fuck-ups.”
Sherry Simpson, escrevendo no Anchorage Press.
<http://en.wikipedia.org/wiki/Christopher_McCandless> Acesso em: 1 fev. 2011.
2) “When you consider McCandless from my perspective, you quickly see that what he did wasn’t
even particularly daring, just stupid, tragic, and inconsiderate. First off, he spent very little time
learning how to actually live in the wild. He arrived at the Stampede Trail without even a map of the
area. If he [had] had a good map he could have walked out of his predicament [...] Essentially, Chris
McCandless committed suicide.” Peter Christian, guarda florestal no Alasca.
<http://en.wikipedia.org/wiki/Christopher_McCandless> Acesso em: 1 fev. 2011.
3) “There is nothing fucking romantic and wonderful about stumbling off into the wilderness and
starving to death. What is great about the Christopher McCandless story is that it proves, in Alaska at
least, natural selection is alive and well. McCandless was a fucking utterly stupid and reckless cunt,
who actually had a history of doing ridiculous and reckless things that nearly killed him long before he
dragged his fatally incompetent ass into the swamp lands of Denali Park. He was asking to die as
31
romantização dos fatos, como se a história de McCandless carregasse, por trás de
um óbvio e simples pateticismo, um potencial desconstrutivo, questionador, ou no
mínimo um sentimento de incômodo que é oportuno evitar.
A abordagem talvez um tanto ingênua e glamourizante de Krakauer e Sean
Penn me parece, no entanto, menos problemática que certas visões perigosamente
conservadoras5 que encontrei a respeito da história. Contudo, entre a visão mais
idealizada – que nos apresenta Christopher como o aventureiro visionário, leitor de
Tolstói, Thoreau, Jack London e outros, “um viajante esteta cujo lar é a estrada”
(conforme ele mesmo em algum momento se definiu), um inconformado com a
sociedade insuportavelmente materialista e hedonista que decidiu buscar a elevação
espiritual longe da corrupção do convívio humano – e a visão supostamente realista
– para a qual o nosso viajante não passava de um arrematado idiota, um suicida ou,
pelo menos, alguém que drasticamente carecia de bom senso (como levar a sério
alguém que se rebatiza Alexander Supertramp6?!) – acredito que a abordagem mais
interessante é justamente aquela que parte da fissura gerada pela confusão e pelo
conflito entre as visões que agrupei, com alguma dose de arbitrariedade, nessas
duas perspectivas. Parece-me que é somente a partir dessa abertura que temos
espaço para pensar as questões pertinentes àquilo que poderíamos chamar de uma
“condição humana” e sobre a qual gostaria de refletir mais pontualmente a partir das
elaborações de Blanchot (comentando Bataille) acerca da experiência-limite.
(Qualquer uma das duas perspectivas, se tomada de modo único e exclusivo,
institui um fechamento que, já usando a terminologia de Bataille-Blanchot, estanca a
paixão do pensamento negativo, o que em última análise significa a morte do ser.)
Lembremos, de início, do que se trata a experiência-limite. No comentário de
Blanchot, temos que:
much as someone who decides they're going to climb Everest, alone.” <http://f-ckingc-
nts.com/people/10-true-facts-about-chris-mccandless/> Acesso em: 1 fev. 2011.
5
Louvar a “seleção natural” por ter eliminado uma vida que se considera incompetente e moralmente
reprovável me parece de um reacionarismo agressivo e alarmante.
6
Algo como “Alexander, o Super Andarilho” ou “o Super Vagabundo” – Krakauer aponta a referência
à obra do poeta galês, W. H. Davies, The Autobiography of a Super-Tramp.
32
compromete todo ser exprime a possibilidade de jamais deter-se em
qualquer consolação ou em qualquer verdade que seja, nem nos
interesses ou nos resultados da ação, nem nas certezas do saber e
da crença. (BLANCHOT 2007: 185)
A partir daqui, gostaria de fazer um recorte mais definido para verificar se há,
e em que medida, ecos dessa experiência-limite no itinerário de Christopher
McCandless.
Parece-me que a incursão a uma terra selvagem, sozinho, sem planejamento,
sem experiência, preparação ou equipamentos, sem avisar ninguém e sem a
possibilidade de se comunicar com quem quer que seja, numa atitude que contradiz
qualquer princípio de sobrevivência, contém algumas ressonâncias evidentes
daquela dissipação, do dispêndio que se opõe ao afã produtivo e triunfante e cujo
limite se dá justamente na “experiência interior”.
Como Ron Lamothe, produtor do documentário “The call of the wild”, a meu
ver acertadamente coloca, importam menos as razões pelas quais Chris
McCandless não conseguiu sair do Alasca do que as razões pelas quais ele chegou
até lá7. Jon Krakauer, numa formulação talvez superficial e sensacionalista, assume
7
“Why he didn’t walk out, perhaps, is less important in the big scheme of things, than why he walked
in. The former is fleeting, and peripheral, whereas the latter is timeless, and profound.”, Ron
Lamothe.< http://www.tifilms.com/wild/call_intro.htm> Acesso em: 2 fev. 2011.
33
que McCandless, desejando encontrar um terreno inexplorado, um blank spot no
mapa, e deparando-se com a infelicidade de não existirem mais regiões fora do
mapa no final do século vinte, arranjou uma solução inusitada: se livrou do mapa, de
modo que, ao menos para ele, a terra se tornava então desconhecida8.
Em que pese o grau de anedota da afirmação de Krakauer – os detetives de
plantão, num esforço investigativo (e produtivo!), fazem questão de levantar a lista
de pertences9 encontrados junto ao corpo de McCandless, dentre os quais estaria,
sim, um mapa –, o desejo, apontado pelo autor, de adentrar uma região que não
está no mapa me parece fundamental para, senão compreender, ao menos se
aproximar de alguma forma do que foi a aventura de Christopher no Alasca.
Este desejo de um blank spot, diferentemente de outras incursões
aventureiras de que temos notícia ao longo da história, está despojado daquela
exigência produtiva e triunfante que leva o homem a conquistar a terra a fim de
demarcá-la como sua, num afã apropriativo e reprodutivo (uma vez que a terra é
necessária à reprodução da sua existência e à perpetuação da sua linhagem). A
aventura de Christopher encontra-se, antes, muito mais próxima daquele estado em
que o fazer se consuma e cria-se espaço para uma “negatividade sem emprego”,
para aquilo que sobra, que transborda depois que se esgota a “negatividade
produtiva” pela qual o homem nega a natureza e constrói o mundo. Essa
“negatividade sem emprego”, esse “excesso de nada” faz com que o homem, nas
palavras de BLANCHOT (2007: 188), deixe-se tomar pelo infinito do fim e passe
então a responder a uma outra exigência: “(...) não mais de produzir, mas de
despender, não mais de triunfar, mas de fracassar, não mais de realizar obras e falar
utilmente, mas de falar em vão e tornar-se ocioso, exigência cujo limite está dado na
‘experiência interior’”.
8
"In coming to Alaska, McCandless yearned to wander uncharted country, to find a blank spot on the
map. In 1992, however, there were no more blank spots on the map – not in Alaska, not anywhere.
But Chris, with his idiosyncratic logic, came up with an elegant solution to this dilemma: He simply got
rid of the map. In his own mind, if nowhere else, the terra would thereby remain incognita.", Jon
Krakauer, Into the Wild. <http://www.metroactive.com/papers/metro/02.15.96/krakauer-9607.html>
Acesso em: 2 fev. 2011.
9
No site da produtora do documentário “The call of the wild”, há inclusive uma imagem (uma
fotografia) do que seria a lista dos pertences de McCandless elaborada pela polícia alasquiana – nela
consta um road map. Ver: <http://www.tifilms.com/wild/call_debunked.htm> Acesso em: 2 fev. 2011.
34
Esse desejo de um blank spot, nas circunstâncias das quais McCandless
provinha – situação econômica confortável, família presente, educação e futuro
profissional assegurados, um capitalismo de consumo estruturado sobre a ilusão de
que todo desejo pode, e deve, ser satisfeito –, remete ao “desejo da impossibilidade
do desejo” de que fala Blanchot, desejo da indiferença e da falta infinita que é o
desejo, e que pulsa sempre no interior da paixão do pensamento negativo.
Christopher foi em busca do seu blank spot no Alasca, mas poderia ter sido em
qualquer outro lugar, inclusive em sua própria casa ou, talvez mais propiciamente,
na cela de um mosteiro – ou mesmo em plena rua e perto do coração selvagem! –,
porque o que estava em jogo era menos a curiosidade meramente aventureira e
“adrenalística” (o que ainda estaria na ordem do fazer, do produzir) em conhecer
novos lugares e mais a pulsão gerada por aquele excesso de vazio, aquela falta
essencial que confere ao homem “o direito de se colocar a si próprio sempre em
questão”10.
Daí que a experiência de Christopher McCandless não caiba inteiramente em
nenhuma daquelas duas perspectivas que apontamos há pouco: nem a sua
idealização como aventureiro entusiasta dos ideais de liberdade e vida pura
(proposta que não deixa de carregar uma moral de matriz rousseauniana: a
sociedade corrompe o homem, portanto é preciso buscar os valores verdadeiros
dentro de nós mesmos, longe do convívio humano) e menos ainda a abordagem
supostamente crítica e realista, pela qual McCandless em última análise não passa
de um sujeito socialmente desadaptado (e de quebra temos aí umas desagradáveis
formulações moralistas que flertam com um darwinismo social assustador) cujo
empreendimento é um verdadeiro desserviço à sociedade e àqueles que labutam
por pertencer honradamente (e produtivamente!) à sociedade, nenhuma dessas
duas perspectivas, infalivelmente carregadas de poder, de saber, de potencial
construtivo, poderia abarcar inteiramente uma experiência em que vibram fortemente
10
Em formulação magnífica, Blanchot assim fala dessa “pura falta”, desse excesso de vazio que
conduz a paixão do pensamento negativo: “Não se trata de extorquir uma última recusa a partir do
descontentamento vago que nos acompanha até o fim; não se trata tampouco desse poder de dizer
não, pelo qual tudo se faz no mundo, cada valor, cada autoridade sendo derrubada por outra, cada
vez mais extensa. O que está implícito em nossa proposição é absolutamente outra coisa,
exatamente isto: que ao homem, tal como é, tal como será, pertence uma falta essencial de onde
lhe vem esse direito de se colocar a si próprio sempre em questão.” (Grifo meu) BLANCHOT
2007: 187
35
os ecos de um não-poder, um não-saber, um dispêndio que significa inclusive a
abertura à morte. Uma morte, porém, que não chega a ser buscada como fim, como
forma desejada de reintegração à Unidade e ao Absoluto (uma vez que a
experiência-limite é também a superação do absoluto como totalidade), mas que
simplesmente decorre da abertura, em última análise, ao impossível, àquilo “que
escapa a nosso próprio poder de prová-lo, mas à prova do qual não poderíamos
escapar” (BLANCHOT 2007: 190).
Aliás, a morte física, o fato da morte, é de certa forma responsável pelo
excesso que, através da experiência interior, afirma aquela negação radical que não
tem mais nada a negar. Ou, como diz BLANCHOT (2007: 188), “o homem dispõe de
uma capacidade de morrer que ultrapassa em muito e de certo modo infinitamente o
que lhe é necessário para entrar na morte (...) sobra-lhe a todo momento como que
uma parte de morrer que não pode investir na atividade”. Parece-me que é esta
capacidade infinita de morrer que Chris McCandless, diferentemente de boa parte de
nós, que não temos, senão vontade, ao menos tempo ou as circunstâncias para
descobrir e provar, é justamente essa capacidade infinita e inutilizável de morrer que
Christopher pressentiu e buscou explorar, tanto no período em que viveu como
andarilho como, de forma aguda, durante o isolamento no Alasca.
“Se admitimos que a existência humana pode ser governada pela razão,
então toda possibilidade de vida é destruída”11. A frase que parafraseia Tolstoi,
atribuída a Christopher no filme “Na Natureza Selvagem”, pode ser posta em diálogo
com o movimento da experiência interior, o movimento de afirmação dessa negação
radical que não tem mais nada a negar. Tal movimento, entretanto, não consiste na
negação daquele outro movimento constante pelo qual o homem procurar criar e
atribuir sentido, mas sim numa superação dele. Numa superação do fechamento
imposto pela razão, fechamento acusado na frase de Tolstoi. O não-poder não é
apenas a negação do poder e o não-saber não é apenas a negação do saber – a
experiência-limite é, antes, uma “prodigalidade de afirmação” que escapa inclusive à
lógica produtiva da razão dialética, pois é “afirmação na qual tudo escapa e que
escapa ela própria à unidade” (BLANCHOT 2007: 193).
11
"If we admit that human life can be ruled by reason, then all possibility of life is destroyed."
Paráfrase de Tolstoi, em Guerra e Paz, atribuída a Christopher McCandless no filme de Sean Penn.
36
Daí a experiência de Christopher rechaçar radicalmente – o que vem ilustrado
pela paráfrase de Tolstoi – a razão como totalidade, uma vez que, tornamos a
afirmar, a experiência-limite extrapola toda a totalidade.
Na leitura de Blanchot, a experiência-limite não chega a ser vivenciada por
nenhum eu individual e nem pelo “Eu” como uma espécie de consciência universal:
o único sujeito da experiência-limite é a ignorância encarnada no Eu-que-morre e em
que, morrendo, não o faz nunca como eu pessoal. É por isso que, ao sobrepor a
experiência de Chritstopher McCandless ao que Bataille vislumbrou como a
experiência-limite, tomei o cuidado de me referir às aproximações que fiz entre as
duas como ecos de uma experiência-limite12. Ainda, gostaria só de
mencionar uma ressonância quase irresistível desse tema que me parece existir na
inscrição com a qual São João da Cruz, místico carmelita, arremata o seu mapa do
“Monte da Perfeição”13: “Para vir a gostar, a saber, a possuir, a ser tudo, não queiras
nem gostar, nem saber, nem possuir, nem ser nada. Deves prosseguir o teu
caminho sem gostar, sem saber, sem possuir; deves ir por onde nada és.”
O caminho do nada14, único que conduz ao iuge convivium, ao “banquete
infindável”, esse caminho é, na mística de São João da Cruz, o do desprendimento
mais radical, que culmina no desprendimento do próprio eu (“deves ir por onde nada
és”). Sem desejar anular as diferenças que se estendem entre as duas proposições,
e sem ignorar que a paixão do pensamento negativo de Bataille impõe de entrada a
recusação de qualquer certeza espiritual implicada nas disposições e experiências
místicas15, me parece haver (e é tentador apontar) pontos de contato entre a
12
E não como uma realização pessoal da experiência-limite em si. Daí a metáfora do eco: uma
espécie de presença sem presença ou, no limite, uma presença da ausência.
13
O “Monte da Perfeição”, esboço feito por São João da Cruz para a obra Subida do Monte
Carmelo, ilustra três caminhos possíveis para o homem: o dos bens da terra, o dos bens do céu e o
caminho do nada, sendo que apenas este leva até o iuge convivium, a esfera celeste.
14
Tenho consciência de que falo da experiência mística de São João da Cruz muito ligeiramente, em
virtude da falta de vivência pessoal do tema – a qual, a meu ver, seria indispensável a uma análise
mais substancial –, mas também devido ao limite de extensão deste texto. Para mais informações
sobre o assunto, sugiro consultar a obra Subida do Monte Carmelo, de São João da Cruz, publicada
no Brasil pela Editora Vozes.
15
Isto, a meu ver, se deve ao fato de Bataille e Blanchot recusarem terminantemente qualquer
repouso na Unidade, o que necessariamente exclui a ideia de um Deus que é unidade e apenas
unidade. Contudo, a lógica da fé cristã num Deus uno e ao mesmo tempo trino não representa
forçosamente um fechamento incompatível com esse movimento de superação do absoluto de que
temos falado até então. Pois esta fé pode representar justamente a superação da ideia de um Deus
37
experiência interior descrita por Bataille e Blanchot e o caminho do nada abraçado
por São João da Cruz. Ambos pressupõem o dispêndio, ambos partem do desejo do
homem sem desejo, do homem que, tendo sido tudo, ainda lhe sobra ser nada. Não
à toa, São João da Cruz foi alcunhado o Doutor do Nada, sendo célebre a sua
seguinte frase: “Nada, nada, nada, até deixar a própria pele e o resto, por Cristo”.
A diferença16 talvez esteja em que, enquanto para Bataille e Blanchot a
experiência interior culmina na nova soberania de uma espécie de “entre-ser”, de
“um ser sem ser no devenir sem fim de uma morte impossível de morrer”
(BLANCHOT 2007: 193), que é no final uma impessoalidade, o caminho do nada de
São João da Cruz culmina sempre numa Pessoalidade – o Deus uno e trino17.
Enfim, mas no que diz respeito à experiência de McCandless, esse “caminho
do nada” também parece de algum modo ressoar, ao lado dos ecos da experiência-
limite, ressaltando os traços de ascetismo e abnegação contidos no seu trajeto.
Retomando aquelas constatações que formulei, talvez um tanto precipitada ou
descompromissadamente, no início deste texto, gostaria de desenvolver algumas
considerações, à guisa de conclusão, acerca da repercussão e importância que a
ideia da experiência-limite pode ter num mundo que se acha numa “crise de
certezas”.
Vimos que a experiência-limite pressupõe a transgressão de toda e qualquer
relação de pertencimento, em suma, de toda certeza. Aqui lançarei mão das
formulações de Michel Maffesoli a respeito do nomadismo e do que ele chama de
“enraizamento dinâmico”. A ideia do enraizamento dinâmico manifesta um
antagonismo paradoxal da existência: é necessário pertencer a algum lugar, ter
ligações (ter certezas), contudo, para que essas ligações e esse pertencimento
que é apenas unidade, ao transformar a multiplicidade e a relação (lembrar que este Deus trino é
pessoa e, como tal, é relação) num modo de ser original. Ver, nesse sentido: RATZINGER, Joseph.
Introdução ao Cristianismo. 3. ed. São Paulo: Ed. Loyola, 2009, principalmente pp. 121-142.
16
Além do fato de que o caminho do nada de São João da Cruz, ao contrário da proposta da
experiência-limite, pode – e deve – ser pessoalmente trilhado, isto é, percorrido por um indivíduo que
efetivamente o experimenta, como indivíduo.
17
Uma pessoalidade, contudo, inteiramente diferente daquilo que normalmente consideraríamos uma
pessoa. Pois enquanto para nós, criaturas, a relação nos é algo por assim dizer “acrescentado”, o
Deus cristão, como pessoa, existe originariamente como relação, sem deixar, contudo, de ser
unidade. Quer dizer, nele, ser pessoa é ser relação.
38
tenham significado é necessário que sejam, de modo real ou simbólico, negados,
superados, transgredidos. “O limite só pode ser compreendido em função da
errância, como esta tem necessidade daquele para ser significante” (MAFFESOLI
2001: 84). Essa tensão, esse antagonismo paradoxal, dá-se de modo permanente,
isto é, não há superação sintética, como propõe a razão dialética. Toda a
estruturação social, e também a individual, baseia-se nessa tensão entre o lugar e o
não-lugar.
O movimento da errância, da desterritorialização, que leva a sair do
fechamento (seja ele territorial, político ou identitário) e que compõe essa tensão
necessária e insuperável em toda estrutura, me parece que dialoga com o
movimento da experiência-limite, na medida em que, tal como ela, acena com a
possibilidade de instituição de uma nova soberania, marcada pela ética da “liberdade
do apátrida”18. Essa liberdade não é uma liberdade isenta de responsabilidade, mas,
ao contrário, existe apenas sob o signo da responsabilidade pelo próximo, uma vez
que, para quem vive uma condição de apatridade, a única pátria possível são os
homens pelos quais se assume responsabilidade19.
A história de McCandless me parece conter os arquétipos da viagem, da
iniciação e do estrangeiro – um garoto disposto a acolher o outro, o outro empírico e
o Outro transcendente, sai em peregrinação, buscando-o (encontrando-o?)
finalmente em um blank spot, um ponto inexplorado e inexistente no mapa –,
arquétipos esses que subjazem ao movimento do enraizamento dinâmico.
Movimento que, como paradoxo fundador que é, me parece urgente, num contexto
percebido como de crise, resgatar e iluminar. Afinal de contas, como MAFFESOLI
(2001: 187) coloca, “não há instituído sem instituidor, estática sem dinâmica. De um
18
Para mais considerações e análise das implicações dessa “liberdade da apatridade”, ver:
FLUSSER, Vilém. “Habitar a casa na apatridade (Pátria e mistério – Habitação e hábito)”, In:
Bodenlos: uma autobiografia filosófica. São Paulo: Annablume, 2007, pp. 221-236.
19
“(...) ‘pátria’, para mim, são os homens pelos quais eu tenho responsabilidade. Conseqüentemente,
a liberdade adquirida na apatridade não é exatamente filantropia nem cosmopolitismo ou humanismo.
Não sou responsável pela totalidade da humanidade, como por exemplo pelos milhões de chineses.
É a liberdade da responsabilidade pelo próximo. É essa liberdade que está subentendida nas
doutrinas judaico-cristãs, ao exigirem o amor ao próximo e ao dizerem que o homem seria um
expatriado no mundo, e que sua pátria seria em um outro lugar a se procurar.” (Grifei) FLUSSER
2007: 232.
39
modo metafórico, pode-se dizer que o território não é possível a não ser por sua
negação”.
Trazer à luz20 o movimento da experiência-limite e a necessidade do
enraizamento dinâmico pode vir a abrir espaço para uma ética da liberdade baseada
na responsabilidade pelo próximo, bem como para a ressignificação constante das
relações de pertencimento. E por isso a experiência de Chris McCandless no Alasca
selvagem é uma incursão que grita aos nossos tempos: é urgente que
empreendamos o aprendizado do imprevisível, que acolhamos o imprevisível nas
nossas relações (aliás, como poderia existir verdadeira relação sem o imprevisível?
a relação pressupõe o outro – e o Outro –, que é sempre imprevisível) e, com isso,
saibamos constantemente ressignificá-las, para que sobrevivam. Para que
sobrevivamos.
Referências bibliográficas:
20
Em que pese o que possa haver de paradoxal na proposta de “trazer à luz” algo da ordem da
experiência-limite, que aponta para o incomunicável.
40
Cadernos da Semana de Letras UFPR Ano 2011 Volume II – Trabalhos Completos
1
Todas as citações da obra são da seguinte edição: VISCONDE DE TAUNAY. Inocência. 5.
ed. São Paulo: Editora FTD, 1999. Limitar-me-ei a indicar a página em que a citação se
encontra.
41
Cadernos da Semana de Letras UFPR Ano 2011 Volume II – Trabalhos Completos
certa altura, ficamos sabendo que, em realidade, a moça sofre uma tremenda e
profunda transformação: o amor por Cirino (e talvez, primeiramente, o amor de
Cirino por ela) como que a arranca da sua inocência2 em relação ao mundo,
fazendo-a despertar para a sua individualidade. Vejamos:
2
Nesse sentido, é interessante mencionar como Francisco Maciel Pereira, em prefácio à
edição da obra em que me baseei para este estudo, atenta para o fato de a moça ser sempre
chamada pelo pai de Nocência, o que poderia ser um indicativo do mal que (ao menos na
perspectiva dos valores patriarcais) está arraigado na personagem (lembrar dos comentários
depreciativos de Pereira às mulheres), ou então da nocência (o aspecto danoso) que o seu
destino amoroso (trágico) representa.
42
Cadernos da Semana de Letras UFPR Ano 2011 Volume II – Trabalhos Completos
(...)
- Não trepe, Alice, não é bonito; estraga as mãos e pode
romper o seu vestido, disse Adélia.
Mário limitou-se a sua habitual ironia:
- Ora!... Deixe trepar, não faz mal! É filha de barão... não cai...
tem muito dinheiro!... (p. 16-17)3 (Grifei)
3
Todas as citações da obra são da seguinte edição: ALENCAR, José de. O tronco do ipê.
São Paulo: Editora Três Ltda. [s. d.]. Limitar-me-ei a indicar a página em que a citação se
encontra.
4
Pois a Fazenda de Nossa Senhora do Boqueirão, onde Mário vive como agregado,
originalmente era propriedade de seu avô, tendo passado às mãos do pai de Alice, O Barão da
Espera, devido a desentendimentos familiares entre o pai e o avó de Mário, num episódio um
tanto quanto obscuro (que envolve inclusive a morte de José Figueira, pai de Mário), mas em
que a má-fé do Barão parece ter atuado. O mal-estar perante a sua condição de agregado
provém também do fato de Mário desconfiar ter sido vítima de uma grande injustiça (a
espoliação das terras que deveriam lhe pertencer) por parte do Barão da Espera.
44
Cadernos da Semana de Letras UFPR Ano 2011 Volume II – Trabalhos Completos
ele despreza (que, por vezes, inclusive odeia), dá-se um prenúncio do poder
conciliador e redentor do amor.
Alice, figura feminina central da obra, e o amor como elementos
conciliadores dos impasses sociais e materiais: esta talvez seja uma
interpretação proveitosa da obra de Alencar.
Contudo, há ainda um outro aspecto a se considerar: é que essa
conciliação inter-classe (entre um dependente ressentido e o seu protetor) não
é bem tal coisa, mas sim uma reposição do status quo ante de proprietário a
que Mário tem direito (como neto do Comendador Figueira, proprietário original
da Fazenda de Nossa Senhora do Boqueirão, Mário seria um herdeiro
espoliado). Quer dizer, essa aparente conciliação inter-classe, operada pelo
casamento e pelo amor, é na verdade a restauração de uma condição
proprietária anterior (E, diante disso, poderíamos formular a hipótese de que a
solução ao impasse amoroso é possível aí, diferentemente do que ocorre nos
demais romances analisados, justamente porque nesse caso o obstáculo social
– o fato de Mário ser um agregado e Alice a filha de um proprietário – já está
anteriormente resolvido: Mário é, por direito, também um proprietário). De toda
forma, o amor romântico e a figura da mulher ocupam posição central nessa
restauração e também contribuem para um deslocamento do problema: de um
conflito de natureza social (agregado x senhor) para um conflito de natureza
moral (amor x obrigação/honra familiar).
5
Todas as citações da obra são da seguinte edição: TÁVORA, Franklin. O Cabeleira. Curitiba
HD Livros Editora, 1999. Limitar-me-ei a indicar a página em que a citação se encontra.
45
Cadernos da Semana de Letras UFPR Ano 2011 Volume II – Trabalhos Completos
6
Como é o caso da problemática família de José Gomes, o Cabeleira: “Joana, a mãe boa e
fraca, viveu em luta incessante com Joaquim, o pai sem alma nem coração. José foi sempre o
motivo, a causa desse combate sem tréguas, José, filho sem sorte que estava fadado a legar à
posteridade um eloqüente exemplo para provar que sem educação e sem moralidade é
impossível a família; e que a sociedade tem o dever, primeiro que o direito, de obrigar o pai a
proporcionar à prole, ou de proporcioná-lo ela quando ele o não possa, o ensino que forma os
costumes domésticos nos quais os costumes públicos se firmam e pelos quais se modelam.”
(p. 38)
46
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47
Cadernos da Semana de Letras UFPR Ano 2011 Volume II – Trabalhos Completos
7
Todas as citações da obra são da seguinte edição: PAIVA, Manoel de Oliveira. Dona
Guidinha do Poço. São Paulo: Ática, 1981. Limitar-me-ei a indicar o número da página em que
a citação se encontra.
8
Isto é, do demônio.
48
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9
Outra desmistificação da suposta “bondade natural feminina” se dá na seguinte passagem:
Guida leva a vingança a cabo não como mulher, mas como indivíduo
dotado do poder (inclusive material, econômico) para tal. E, do ponto de vista
do enredo ao menos, falha, é presa, levada à justiça e hostilizada pela
população que antes louvava a sua benevolência.
Quanto ao envolvimento amoroso entre Guida e Secundino, parece
quase desnecessário dizer que ele passa muito longe das convenções
românticas de amor que vimos nos outros três romances. A começar que este
é o único relacionamento que é explicitamente sexualizado. Depois, está
presente aí o aspecto do desencanto na relação amorosa, quando Secundino
perde parte do interesse que inicialmente tivera pela “tia” Guida, quando esta o
seduzira. Nessa sedução, aliás, atua como elemento importante o exercício do
favor, pois o que atrai Secundino é a tríade indissociável que a Guida
representa para ele: amante-senhora-protetora. Vejamos:
50
Cadernos da Semana de Letras UFPR Ano 2011 Volume II – Trabalhos Completos
pelos “encantos” da tia Guida em grande parte por causa das oportunidades de
ascensão social que a proteção da fazendeira representa. Contudo, note-se
que, novamente, o favor não é exercido, por parte de Guida, na sua expressão
simbólica máxima, uma vez que está revestido, está imbricado ou, em última
análise, está mesmo a serviço do interesse sexual. Quer dizer, se a sua
condição de mulher é determinante para o modo como ela exerce os privilégios
da sua condição social (sempre de forma mascarada), a mesma dinâmica se
transporta para as relações com o amante: a condição de proprietária também
não se revela aí na sua expressão simbólica mais evidente, mas está sempre
velada pela sua condição feminina e pelo que seria próprio a ela: a atitude
protetora em relação ao ser amado.
Referências bibliográficas
ALENCAR, José de. O tronco do ipê. São Paulo: Editora Três Ltda. [s. d.].
PAIVA, Manoel de Oliveira. Dona Guidinha do Poço. São Paulo: Ática, 1981.
51
Cadernos da Semana de Letras Ano 2011 Volume II – Trabalhos Completos
{ΟΡΕΣΤΗΣ}
ὅρα, φυλάσσου μή τις ἐν στίβωι βροτῶν.
{ΠΥΛΑΔΗΣ}
ὁρῶ, σκοποῦμαι δ' ὄμμα πανταχῆι στρέφων.
{Ορ.} Πυλάδη, δοκεῖ σοι μέλαθρα ταῦτ' εἶναι θεᾶς,
1
LEY (2007) inicia seu importante estudo sobre o ‘playng space’ do drama ático discutindo a questão
da relação entre o script verbal como índice de sua possível performance.
52
ἔνθ' Ἀργόθεν ναῦν ποντίαν ἐστείλαμεν;
{Πυ.} ἔμοιγ', Ὀρέστα· σοὶ δὲ συνδοκεῖν χρεών. 2
2
Em todos os trechos citados da peça, tradução nossa: OR. Olhe, amigo meu, se não há no caminho
algum mortal. / PI. Olho, examino, voltando meu olhar para todas as direções. / OR. Não te parece
que este é o templo da Deusa / Para o qual movemos nossa nau desde Argos? / PI. A mim sim,
Orestes, e você também deve crê-lo.
53
significativas dos personagens. Após o seu prólogo, Ifigênia entra no templo e lá
permanece durante todo o primeiro diálogo entre Orestes e Pílades e durante o
párodo (66-144), saindo de lá após a primeira intervenção do coro, acompanhada
por servas e entoando uma bela monodia coral. Quando Orestes e Pílades chegam
conduzidos pelos guardas, Ifigênia ordena a entrada dos guardiões no templo, para
que estes tragam o que é necessário para a realização do sacrifício (470). Ifigênia
busca dentro do templo a carta utilizada na cena do reconhecimento e também a
estátua da deusa no momento da fuga com Orestes e Pílades, e estes se escondem
dentro do templo pouco antes da fuga (1079).
Porém, de todas as entradas e saídas da peça, a de maior impacto cênico é a
descrita no final da peça, em que Ifigênia elabora um estratagema para a fuga,
pedindo que Toante entre no templo no mesmo momento em que os estrangeiros
saírem, orientando o rei para que este, ao cruzar com os estrangeiros, cubra sua
cabeça para não contaminar-se com a impureza de Orestes e Pílades, que Ifigênia
diz estarem contaminados por causa do matricídio (1160-1220). Como a cena
pressupõe que este cruzamento entre as personagens seja visível cenicamente, e
como o ator que interpreta Toante também faz o papel de Pílades, depreende-se
uma rápida entrada de Toante com a cabeça coberta, cruzando com Orestes à
entrada da skene. Em seguida, o mesmo ator que entrou no papel de Pílades, com a
mudança de máscara, sai no papel de Pílades, em uma cena de extrema
dinamicidade dramática.3
O altar em Ifigênia entre os Tauros é um elemento cenográfico impactante,
composto pelos crânios dos estrangeiros mortos nos sacrifícios ministrados por
Ifigênia (ela mesma, salva anteriormente de um sacrifício) e dos despojos de suas
vítimas (72-75). Como nota WILES (1997: 202), há uma rica tradição iconográfica
descrevendo esta cena da peça de Eurípides, o que indica que este altar deve ter
causado uma forte impressão na recepção de sua primeira performance. Estes
elementos sombrios que compõem o altar podem ter sido representados através da
pintura em tecido ou através de objetos cenográficos.
3
Temos a seguinte distribuição dos papéis na peça: o protagonista interpretava Ifigênia e a deusa
Atena; o deuteragonista, Orestes, o vaqueiro e o mensageiro; e por fim, o tritagonista interpretava
Pílades e o rei Toante. também haviam personagens mudos, como os guardas e as servas de
Ifigênia.
54
Como na maioria das tragédias, os objetos utilizados em cena são poucos,
mas de profunda significação dramática. Um deles relaciona-se à cena de
reconhecimento (anagnorisis): Ifigênia entrega uma carta a Pílades para que este,
ao retornar à Grécia, entregue a Orestes, que ela supõe estar em território ático.
Após a longa explanação de Ifigênia, indicando a Pílades o que deveria fazer
quando chegasse à Grécia, Pílades apenas estende a tabuinha para Orestes e diz:
“ἰδού, φέρω σοι δέλτον ἀ ποδίδωμι τε, / Ὀρέστα, τῆσδε σῆς κασιγνήτης
4
Eis aqui, Orestes, trago a carta e te entrego/ da parte de sua irmã.
55
interessante desta performance de Atenas é que a deusa ordena as ações futuras
de todos os personagens, inclusive de Orestes, Pílades e Ifigênia, que não estão em
cena, pois no momento de sua performance na mechane estão no palco apenas os
integrantes do coro, o mensageiro e Toante. Esta performance cria um interessante
jogo entre o espaço visível da cena e um espaço imaginário da representação, em
que as personagens principais do drama navegam para a Grécia sob os auspícios
do deus Posêidon.
5
Usamos o termo música aqui no sentido grego, a Mousiké , entendida como uma união entre palavra, sons e
dança.
6
Sobre a Música, cap. 20, apud ROCHA, 2006: 96-97.
56
compararmos as primeiras peças de Ésquilo com as peças de Eurípides, veremos
que os cantos corais foram diminuindo em comparação com as falas dos atores.
Porém, ao invés de entendermos esse fenômeno como uma diminuição da
importância das funções corais, pode-se pensar na assimilação das funções corais
pelos personagens não corais, permanecendo, em toda a história da tragédia
clássica ateniense, uma predominância das funções corais nas performances dos
textos dramáticos.
Em Ifigênia entre os Tauros, este aspecto fica bastante claro, a começar pelo
prólogo de Ifigênia, em que são relatados todo o seu passado e os motivos que a
conduziram até a terra dos tauros. Esta função narrativa da tragédia, nas peças de
Ésquilo, era responsabilidade do coro, mas nos tragediógrafos posteriores temos
uma assimilação desses elementos narrativos nas falas dos agentes não corais.
Como vemos, entender a importância do coro implica na compreensão das
relações entre agentes corais e não corais na performance dramática. Porém,
mesmo nos estudos da performance do teatro grego, alguns autores ainda relegam
a atividade coral a um papel secundário.
The chorus will inevitably receive comparatively little attention in this book, since it is
not a rule closely involved in the action and plot of the tragedies. There are
exceptions, especially in Aeschylus, but it is – to put it very roughly – the place of
choral into to move into a different world, a different register, distinct form the specific
events of the plot. (TAPLIN, 1978: 13)
57
only we knew more of their choreography, then the tragic chorus might find a larger
place; but, as it is, my glass will inevitably focus on the actors” (1978: 13). Como
sabemos, os únicos registros de notações musicais das tragédias de Eurípides são
os da Ifigênia em Áulis e de Orestes, e mesmo nestes dois casos há muita
discussão entre os estudiosos sobre a autoria destas composições. Sobre a música
na Ifigênia entre os Tauros, as fontes são escassas. Porém, Eurípides se utiliza
profusamente dos efeitos musicais para configurar o sofrimento do exílio e a
nostalgia pela pátria distante sofridos por Ifigênia e pelas escravas estrangeiras
integrantes do coro, especialmente no párodo (vv. 123-235), no reconhecimento
entre Orestes e Ifigênia (vv. 827-899) e no último estásimo (vv. 1089-1152).7
Após o prólogo de Ifigênia, em que são narradas as causas de sua presença
na região, e a chegada de Orestes e seu amigo Pílades no templo de Ártemis,
acontece o párodo da peça, totalmente antistrófico e composto integralmente por
anapestos líricos. Segundo GEVAERT (1881: 547), o párodo dessa peça pode ser
divido em três movimentos distintos, organizados em uma gradação que confere
extrema beleza ao canto, apesar de sua uniformidade métrica: primeiro, um ‘andante
sostenuto’, nas falas iniciais do coro. Na primeira monodia de Ifigênia e na réplica do
coro, temos um ‘piu mosso’. E, finalmente, um ‘allegro agitato’ no canto final de
Ifigênia.
As referências musicais encontradas neste párodo são significativas. Nos
versos 143-145, Ifigênia descreve sua situação como a de alguém abandonada a
“lamentos (θρήνοις)”, a “um canto de falsas musas (τἆ ς οὐ κ εὐ μουσου μολπά ς)” e
O θρή νος ou lamento fúnebre é uma forma lírica bastante utilizada nas
tragédias, tanto nas monodias quanto nos cantos corais. Segundo Platão8, as
harmonias utilizadas para os lamentos fúnebres são a mixolídia e a sintonolídia, o
que nos permite conjecturar que talvez estas melodias sejam utilizadas neste
párodo.
ἐ λέγος, por sua vez, é utilizado pela designar um dos nomoi auléticos, o que
Ifigênia, em sua descrição das agruras sofridas durante o exílio, descreve sua
9
Cf. PEREIRA, 2001, pp. 125-126.
10
É interessante notar que o treno é dirigido como um lamento por Orestes, que Ifigênia julgava
morto, mas que aparece em cena antes do párodo
59
do período clássico. É muito difícil imaginar como era a dança desenvolvida pelo
coro, e temos poucas referências sobre esse tema. Para Platão, por exemplo, a
dança na Grécia Clássica era predominantemente mimética, com os movimentos
coreográficos imitando (no sentido aristotélico do termo) as ações descritas pelos
cantos corais. Para Aristidides Quintiliano, a música imita o ethos através do ritmo e
dos movimentos do corpo,11 o que nos leva a crer que a dança tivesse como função
a exposição corporal das ações e sentimentos do coro.
Na Ifigênia entre os Tauros, os movimentos corporais deveriam acentuar o
ethos geral da peça, principalmente a dor pela distância da Grécia causada pelo
exílio. Um dos momentos mais significativos da relação entre os agentes corais e
não corais na peça, em que podemos supor a presença de uma forte gestualidade
relacionada a esse ‘ethos do exílio’, é o momento em que Ifigênia pede ao coro (que
representa as mulheres gregas exiladas) para que contribua com seu estratagema
de fuga (1056-1074). Ifigênia diz tocar as mãos, os joelhos e o rosto das mulheres
do coro, em uma atitude característica de súplica, que convencionalmente era
12
realizada em torno ao altar localizado no centro da orchestra. A proximidade da
sacerdotisa do altar repleto de vítimas dos sacrifícios dos quais ela fora a artífice,
aliada à gestualidade de sua condição de suplicante, é uma cena de intensa
densidade performática.
Contrariando as teorias que atribuem uma função secundária ao coro no
desenvolvimento da ação dramática, o coro das mulheres gregas da Ifigênia entre os
Tauros participa efetivamente de seu desenlace, respondendo positivamente ao
pedido de ajuda de Ifigênia. Quando o mensageiro procura pelo rei Toas para
relatar-lhe a fuga da sacerdotisa, o coro mente sobre o seu paradeiro, facilitando o
plano de fuga elaborado por Ifigênia. Assim, o coro desta peça de Eurípides é um
elemento constitutivo da ação dramática, um índice de sua importância central no
teatro do último dos grandes tragediógrafos gregos e, consequentemente, em toda a
história da performance da tragédia ática clássica.
11
Sobre a Música, Livro 2, cap. 4.
12
Para Arnott (1962. p.38), a proximidade de Ifigênia dos agentes corais pode não ser concretizada
na performance, tratando-se apenas do uso de fórmulas verbais características das cenas de súplica
na tragédia ática.
60
Referências bibliográficas
ARISTÓTELES. Poética. Trad. Eudoro de Souza. São Paulo: Abril Cultural, 1979.
ARNOTT, Peter. Public and performance in the Greek theatre. London: Routledge,
1991.
DIGGLE, J. Euripidis Fabulae: Tomus II. Oxford Classical Texts. Oxford University
Press, 1981.
GEVAERT, F.A. Histoire et théorie de la Musique de l’antiquité. Vol. II. Paris: Gand,
1881.
LEY, Graham. The theatricality of Greek tragedy: playing space and chorus.
Chigago: University of Chigago Press, 2007.
PEREIRA, Aires Manuel Rodeia dos Reis. A Mousiké: das origens ao drama de
Eurípides. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 2001.
TAPLIN, Oliver. Greek Tragedy in Action. Berkeley and Los Angeles: University of
California Press, 1978.
61
Cadernos da Semana de Letras UFPR Ano 2011 Volume II – Trabalhos Completos
Introdução
O aristocrata desterrado
63
um alívio para os seus males. Pois “também os Gregos sofreram agudamente a dor
da caducidade e o peso da Moira cruel. Simplesmente, optaram por aceitar com
altivez o destino que lhes era imposto (COELHO 1998: 36).
Mas mesmo toda a disciplina à qual se submete não o impede de trair-se em
alguns momentos, deixando entrever outra realidade: todo o seu empenho parece
estar em valer-se desses ideais a fim de mascarar o tédio e a inconformidade que o
consomem. Em determinados momentos, até mesmo a busca pela paz à qual tanto
aspira e toda a perturbação de espírito que procura evitar acabam evidenciando-se
na inconstância que o persegue: ora afirma ser preciso beber e aproveitar o instante,
ora diz que não vale a pena cansar-se com absolutamente nada e o que resta ao
homem é apenas aceitar.
Arrancado de seu falso paganismo, como conta Pessoa na carta a Casais
Monteiro, mesmo entre a família heteronímica, Reis levanta suspeitas. Na visão de
seu “irmão”, Frederico Reis, “resume-se num epicurismo triste toda a filosofia da
obra de Ricardo Reis” (PESSOA,1990: 140, ênfase nossa).
Segundo Ricardo Reis, cada um deve viver a sua própria vida, buscando
“dentro de uma sobriedade individualista” (PESSOA 1990: p.140), aquilo que lhe
apraz. Buscando um mínimo de dor, o homem deve distanciar-se dos prazeres
violentos, sem procurar fugir às sensações dolorosas, desde que não sejam
extremas, e aceitá-las. Mas sobretudo deve buscar a calma e a tranqüilidade,
esquivando-se de qualquer tipo de esforço e atividade útil (PESSOA 1990: p.140).
De certa forma, tal postura deveria funcionar como um remédio aos males
que tanto o consomem. Todavia, a adoção do ideal epicurista, mesmo à sua
maneira, parece surtir efeito contrário, o que leva Frederico Reis a ser ainda mais
categórico: “a obra de Ricardo Reis, profundamente triste, é um esforço lúcido e
disciplinado para obter uma calma qualquer” (PESSOA 1990: p.140, ênfase nossa).
Mesmo toda a sua disciplina não o impede de ser afetado pela voragem. Esse modo
de encarar a realidade já fora apontado por Haquira Osakabe nos seguintes termos:
“é que, ao retomar o mote da caducidade das coisas, Reis, ao contrário do
distanciamento clássico que vê naquela condição motivo para a serenidade, em
raríssimos momentos, conseguirá esse calmo olhar sobre o mundo (OSAKABE
2002: p. 109, ênfase nossa).
64
Em um de seus versos mais conhecidos, “Sábio é o que se contenta com o
espetáculo do mundo” (PESSOA 1977: 259), Reis manifesta o ideal de
contemplação epicurista. Pois, para o filósofo, o mundo é mesmo um espetáculo
onde melhor é ser espectador do que ator, melhor é o conhecimento do que a ação.
Sendo a moderação fonte da qual o sábio deve beber, o verdadeiro prazer, para
Epicuro, consiste na satisfação e na ausência de sofrimento, pois não são as
riquezas, nem glórias ou poder que trazem a felicidade, e sim a ausência de dores e
perturbações da alma (EPICURO 1980: 17).
Vítima de um insuportável vazio existencial, o poeta procura distanciar-se,
subjugando os sentimentos em favor de uma racionalidade que funcionaria apenas
como paliativo à sua carga emocional interior. Ainda nas palavras da pesquisadora,
“Ricardo Reis tenta reduzir o vazio subjetivo ao ‘nada’ da condição humana em
geral, numa racionalização que dói menos do que o sentir individual. Distanciado,
altivo, Reis é a ficção da renúncia” (MOISÉS 2001: 120, ênfase nossa). Tal
renúncia parece estar intimamente ligada a uma “arte de querer nada” que,
conforme aponta Teresa Rita Lopes, é “bem diferente de <<não querer nada>>”
(LOPES 1990: 245). Isso porque “o conceito de liberdade em Reis tem a ver com
esse cortar dos laços que ligam o homem ao que deseja ou detesta ou teme”
(LOPES 1990: 245).
Tentando sintetizar a filosofia presente na obra do “irmão”, Frederico Reis
esboça o panorama adotado pelo poeta das odes:
Tal perfil, que parece desnudar tão cruamente o cerne da obra de Ricardo
Reis, todavia, apenas levanta novas e inquietantes suspeitas: Aparentemente, Reis,
o “nascido na alma” de Pessoa, foi concebido para ser o hedonista por excelência. É
para Reis que Pessoa concede a companhia constante das musas, Lídia, Cloe e
65
Neera. É Reis o poeta que vai colher o perfume das rosas e embriagar-se de vinho,
à maneira de Horácio (TRINGALI 1995) e, inclusive, de Omar Kayyam (FEITOSA
1998). É Reis quem vai alicerçar sua obra na sólida tradição greco-romana, em
oposição à fragmentação e esfacelamento do mundo moderno.
Sendo assim, por que o heterônimo, aparentemente criado para ser o mais
feliz de todos, simplesmente não o é? Qual a causa desse “epicurismo
profundamente triste” de que fala seu irmão? Discípulo de um epicurismo às
avessas, de que maneira ele se configura nas odes e reflete sua visão de mundo?
Examinemos, pois, tais questões mais atentamente.
Como poeta neoclassicista que se diz ser, Reis procura seguir o ideal
herdado dos antigos, seguindo uma linha entre o estoicismo e o epicurismo,
perpassado pelo carpe diem horaciano, devendo sempre prezar a moderação, quer
no prazer, quer na dor, sem perder o instante que passa. Para o poeta, a
moderação, a tranquilidade e a calma devem ser as grandes regras do homem. Não
valem a pena grandes agitações, já que ao tempo atroz que a tudo devora nada
escapa:
A mágoa de Reis em relação aos deuses está em que eles, enquanto deuses,
são imortais, ao passo que ele, por ser humano, não o é. Assim, mesmo a elevação
advinda deles não é assimilada serenamente e sem ressentimentos. Outra vez é a
consciência, desta vez das naturezas distintas entre homens e deuses, que o aflige.
Em seu íntimo, o poeta gostaria de ser como os deuses, pois assim também seria
eterno. Todavia, sabedor dessa impossibilidade, a ele apenas resta resignar-se com
o fato de que nem mesmo livre o homem é, senão quando cativo por vontade própria
ao domínio dos deuses:
67
Só esta liberdade nos concedem
Os deuses: submetermo-nos
Ao seu domínio por vontade nossa.
Mais vale assim fazermos
Porque só na ilusão da liberdade
A liberdade existe (PESSOA 1977: 262).
Tendo em mente esse ideal é que Reis vai desenrolando um drama que se
afirma na negação. Tomemos por exemplo o amor de suas musas, por ele recusado,
e que serve apenas como pretexto de manter a serenidade e evitar o cansaço. Ao
convidar Lídia a sentar-se com ele à beira do rio afirma que os sentimentos não
fazem nada mais do que turvar a serenidade do espírito, por isso, das mãos
enlaçadas pede que:
Se acaso o sucedido é algo que não se espera ou que não se gostaria que
acontecesse, o que resta é resignar-se passivamente. Como exemplo disso estão os
jogadores de xadrez que, diante do horror e do massacre que assola a cidade,
permanecem “impassíveis” em seu jogo, aparentemente sem se importar com tudo o
quanto ocorre:
69
Inda que nas margens do ermo vento
Lhes viessem os gritos,
E, ao refletir, soubessem desde a alma
Que por certo as mulheres e as tenras filhas violadas eram
Nessa distância próxima,
Inda que, no momento que o pensavam,
Uma sombra ligeira
Lhes passasse na fronte alheada e vaga,
Breve seus olhos calmos
Volviam sua atenta confiança ao tabuleiro velho (PESSOA 1977:
267).
Por maior que seja a tragédia, o estóico deve se manter imperturbável, sem
demonstrar nenhum tremor na alma, tal qual os jogadores do poema. Porém, nessa
ode, o médico-poeta termina por trair esse ideal, porque ainda que tentem a todo
custo manter a calma, “uma sombra ligeira” demonstra o quanto sentem dentro de
si. Mesmo que tenham à mão um púcaro de vinho para os entreter os jogadores
refrescam-se “sobriamente”. Mesmo aparentando total indiferença e aceitação, não
poderiam, mesmo que quisessem, se desligar totalmente dos acontecimentos. Em
relação a essa atitude, Osakabe afirma que “(...) tanto a aceitação estóica da
desgraça quanto a ‘indiferença’ epicurista, que resulta na complexa ausência da
emoção, são formas disfarçadas do forte sentimento de tédio a que se associa o
espírito finissecular” (OSAKABE 2002: 115).
71
Ressalte-se que Reis canta, porém jamais assimila a tranquilidade dos rios e
das flores. Para aproveitar o momento, seria necessário livrar-se do peso de saber-
se efêmero tal qual o próprio momento, as flores que o enfeitam e o vinho que o
ilude. Mas para o poeta das odes isso não parece algo possível, por mais que tente.
Se nem mesmo os deuses, com toda a sua divindade, escapam aos desígnios do
Fado, quanto mais os homens. Em Reis o mal não está em findar, mas saber-se
finito.
72
Referências bibliográficas
MOYSÉS, Leyla Perrone. Fernando Pessoa, aquém do eu, além do outro. São
Paulo: Martins Fontes, 2001.
PESSOA, Fernando. Obras em Prosa. Rio de Janeiro: Editora Nova Aguilar, 1990.
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Cadernos da Semana de Letras UFPR Ano 2011 Volume II – Trabalhos Completos
Apresentação
Assim, em Platão, vemos que a contenda que a filosofia mobiliza e à qual a poesia
responde se pacifica a partir do momento em que ele estabelece essa cisão no banimento
dos poetas da sua cidade ideal com o posterior oferecimento de uma reconciliação, desde
que a poesia fosse submetida aos desígnios filosóficos. Agora ela é apenas uma mímese
voltada ao prazer que não deve infirmar nem subverter a verdade alcançada pelos
1
Será o caso de todas as citações em língua estrangeira ou antiga.
75
Cadernos da Semana de Letras UFPR Ano 2011 Volume II – Trabalhos Completos
pensadores. O antes dono do cão agora é seu cativo, o que dá à filosofia a autoridade
necessária para delimitar os espaços aos quais pode se dedicar a poesia:
Os homens que ligam a poesia ao metro nomeiam uns elegíacos, outros
épicos, não segundo a imitação feita, mas indiscriminadamente segundo o
metro com que declaram. Assim foram acostumados a designar, mesmo
que se publicasse algo médico ou físico através dos metros. Entretanto,
nada, além do metro, é comum a Homero e a Empédocles, por isso é justo
chamar um poeta; o outro, antes fisiólogo que poeta.
Aristóteles, Poética, 1447b
Destaque-se essa delimitação empreendida por Aristóteles. O filósofo prefere
negar que obras como a de Empédocles ou de Parmênides sejam chamadas de poesia.
Isso porque, após a cisão platônica, cabe à poesia a imitação e o deleite. Não é à toa que
a poética aristotélica se desenvolverá em torno desses dois pólos: as formas métricas que
convêm a cada tipo de imitação e o gozo da poesia, especialmente do drama trágico, que
é analisado em função do conceito de κάθαρσις. A poesia finalmente pode ser
desenvolvida e estudada sob o aspecto puramente estético, e torna-se assim
desenraizada de uma função social, política ou religiosa. “A atitude estética em relação à
arte – diz-nos Heidegger (2008: 166-7) – começa no momento em que a essência da
ἀλήθεια [verdade/desvelamento] é transformada em ὁμοίωσις [verdade/correspondência]”.
Diz ainda o filósofo alemão que antes de Platão “uma consideração ‘sobre’ a arte não
existia”, posto que, “por razões essenciais”, a verdade poética não necessitava de um
metadiscurso estético-filosófico que a subsidiasse.
Ora, se entre os pré-socráticos havia uma rivalidade em pé de igualdade entre
filosofia e poesia – e não uma consideração filosófica sobre o fazer poético, como em
Platão e Aristóteles – isso comprova que anteriormente a poesia ocupava o lugar da
verdade agora pretendido pela filosofia, pois só pode haver disputa na rivalidade sobre
um objeto comum. Porém agora, após Aristóteles, quando ela é usada para o estudo
filosófico, para essa investigação da verdade, passa a ser tratada, conforme Agamben,
como um discurso que não conhece aquilo que representa, de forma que a crítica poética
acaba diluindo seu objeto individual no universal filosófico. A poesia passa a ser, por
exemplo sob a abordagem alegorista, uma prova fortuita ou uma manifestação aparente
da verdade. É por isso que Sócrates, ao final do Mênon de Platão, diz, referindo-se
também aos poetas, que os políticos bons
são guiados não pelo conhecimento ou pela sabedoria (φρόνησις) mas por
uma espécie de inspiração semelhante à do vidente e do poeta, que
[citando Platão] ‘no seu êxtase dizem muitas coisas verdadeiras mas não
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Cadernos da Semana de Letras UFPR Ano 2011 Volume II – Trabalhos Completos
sabem o que querem dizer’. Não têm inteligência (νοῦς) mas estão
‘possuídos de inspiração divina’. (CORNFORD 1981: 96-7)
Assim, Platão e Aristóteles apresentam-se como ponto culminante de uma tradição
que, até eles, lutava para se formar e se afirmar. Trata-se do momento decisivo da
conhecida passagem do pensamento ocidental do mythos para o lógos, consumada por
Teofrasto (MOST 1999: 333). É, enfim, uma nova forma de chancela do discurso humano à
forma de acesso à verdade, não mais submetida à inspiração do vidente, do rei de justiça
e do poeta, tal como mostrado por, dentre outros, Detienne (1988), Cornford (1981) e
Vernant (1992 e 2009), mas ao pensamento lógico e racional.
Porém, é preciso destacar justamente o fato de Platão e Aristóteles aparecerem
como o apogeu de uma tendência que lhes antecede e que não dependeu somente dos
hoje conhecidos como filósofos pré-socráticos, mas também da própria condição de
possibilidade dada à filosofia pela poesia (lembremos: ela era o dono do cão). Ora, a
filosofia não nasceu feita. Para se estabelecer, necessitou justamente da forma do
discurso poético, por imperativos da memória numa cultura protoletrada e pelo lugar do
discurso público na Grécia Arcaica (HAVELOCK 1996). Compreende-se, sobretudo com
Havelock e com Snell (1982), que a constituição paulatina da filosofia só permitiria a
emancipação realizada por Platão e Aristóteles quando o pensamento ganhou recursos
que foram se sedimentando na formação do espírito grego e quando a crescente
alfabetização do povo se consolidou, liberando o discurso para modelos cada vez menos
dependentes de uma imagética pedagógica e aos quais está disponível uma linguagem
abstrata.
Ora, vista assim, a velha inimizade entre poesia e filosofia fica matizada. Apesar de
ataques de gente como Xenófanes – mais conhecido como filósofo pré-socrático que
propriamente como poeta elegíaco – e Heráclito a Homero e Hesíodo, eles não
prescindiram de recursos poéticos (principalmente o metro em Xenófanes e a inspiração
quase órfica ou oracular em Heráclito) para filosofar. Em verdade, representam passos a
mais num caminho já sedimentado pela tradição antecedente, e sua filosofia só se vê
possível se referenciada a esse passado épico. Atesta-o o fato de que as críticas
filosóficas quanto às ideias teológicas mais antigas são partilhadas por quem ficou
conhecido apenas como poeta, como Píndaro2.
2
Confrontem-se, por exemplo, as seguintes passagens, no que tem de similar na tentativa de racionalizar a
ideia do divino, limpando-a das implicações negativas dos mitos mais antigos: “ἐμοὶ δ' ἄπορα γαστρίμαρ- /
γον μακάρων τιν' εἰπεῖν· ἀφίσταμαι· / ἀκέρδεια λέλογχεν θαμινὰ κακαγόρους.” (Para mim é impossível
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3
Quanto aos trechos de Parmênides que serão citados, recorremos à tradução de Fernando Santoro
[2007], com modificações para adequação aos nossos fins.
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4
ἐπεὶ οὔτι σε μοῖρα κακὴ προὔπεμπε νέεσθαι / τήνδ' ὁδόν (ἦ γὰρ ἀπ' ἀνθρώπων ἐκτὸς πάτου ἐστίν). (Porque
nenhuma Moira ruim te enviou a trilhar este caminho, pois é um caminho batido apartado dos homens.)
5
Ἐχθαίρω τὸ ποίημα τὸ κυκλικόν, οὐδὲ κελεύθῳ / χαίρω, τίς πολλοὺς ὧδε καὶ ὧδε φέρει· (Odeio os poemas
cíclicos, e não me contento com a estrada que leva tantos para cá e para lá.)
6
Conforme Maria Teresa Schiappa de Azevedo, em nota ao Parmênides de Platão (PLATÃO 2000: 123).
80
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custa do óbvio. Pois o que é mais óbvio em Parmênides, segundo ele, são os ecos de
Homero e de Hesíodo.
Por exemplo, leiamos os versos que abrem o poema do eleata (Fr. 1DK, vv. 1-5):
Demódoco, o poeta da corte dos feáceos, do rei Alcínoo, que fez chorar a Odisseu
pela verdade de seus versos quanto à guerra de Troia foi impelido pelo deus, colocado a
caminho do canto, assim como Hesíodo no Monte Hélicon. Os poetas se colocam como
indo a um novo ponto, atingindo um certo lugar. Assim também o filósofo eleático, uma
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vez que “em Parmênides, os portões da Noite e do Dia são abertos para que seu carro os
atravesse, para que ele possa aprender a verdade que formará a matéria do seu poema”
(WEST 2007: 43). Nos dois exemplos citados, os poetas são postos no caminho da
verdade - em Hesíodo referente a preceitos morais do trabalho, em Homero aos fatos
bélicos - por entes divinos, como a deusa do poema de Parmênides, identificada por
Heidegger (2008) como Ἀλήθεια, a própria Verdade. Essa constatação leva Havelock a
ver em Parmênides ecos muito claros das viagens de Telêmaco e de Odisseu, guiados
também por uma deusa, Atena, (1958: 136):
Portanto, o que se desenha aqui, nesse pôr-se a caminho, é uma nova Odisseia:
essa imagem poética é indispensável para a compreensão do filósofo, segundo quem é
necessário certo esforço sobre-humano para perscrutar o intempestivo nas concepções
herdadas. É preciso viajar para além do comum: o pensamento não é a passividade de
uma pedagogia que só interioriza o dado.
Porém, cabe-nos aqui apontar uma diferença marcante entre o poema de Homero
e o de Parmênides. Odisseu, em sua viagem, percorre um caminho que o leva para além
das civilizações cultivadas da Grécia. Odisseu é definido como comedor de pão, de um
povo que cultiva seus campos. Porém, o herói atravessa fronteiras, cujo termo de
transição é o reino dos Feácios, para percorrer espaços não-socializados, como o dos
lotófagos (definidos pelo esquecimento), dos monstruosos lestrigões e dos ciclopes
(antropófagos, bebedores de vinhos sem mistura e desprovidos de campos cultivados), a
ilha do deus Éolo, cujos filhos praticam o incivilizado incesto, além das terras das deusas
misantropas Circe, pouco hospitaleira, e a isolada Calipso. Mesmo os feácios, mais
próximos da civilização grega, “são sim mortais, mas gozam de um estatuto um pouco
particular: encontram-se ainda próximo dos deuses e conservam traços da idade de ouro”
(HARTOG 2004: 35).
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Referências bibliográficas
_________. Parmenides and Odysseus. In: Harvard Studies in Classical Philology. Vol.
63. Boston: Department of the Classics, Harvard University, 1958, pp. 133-143.
MOST, G. W. The poetics of early Greek philosophy. In: LONG, A. A. (org.). The
Cambridge companion to early Greek philosophy. Cambridge: Cambridge University;
1999.
85
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MUNIZ, F. A Odisseia de Parmênides. In: UFRJ. Ousia: Anais de Filosofia Clássica. Vol.
I, n. I, 2007, pp. 37-44.
SANTOS, J. T.. Introdução. IN: PLATÃO. Parménides. Trad. Maria José Figueiredo.
Lisboa: Instituto Piaget, 2001.
SNELL, B. The discovery of the mind in Greek philosophy and literature. Trad.: T. G.
Rosenmeyer. New York: Dover Publications, 1982.
VERNANT, J.-P. Entre mito e política. Trad.: Cristina Murachco. 2 ed. São Paulo:
EDUSP, 2009.
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1
Mestrando em História na PGHIS/UFPR, vinculado à linha de pesquisa Cultura e Poder e ao
grupo de pesquisa História intelectual, história dos intelectuais e historiografia. O artigo trata-se
de um desdobramento da pesquisa de mestrado, em caráter inicial, sobre o desenvolvimento
dos conceitos de temporalidade e consciência histórica na obra buarquiana entre 1920-1936.
2
HOLANDA, S. B. Perspectivas. In: Estética: 1924-1925. Ed fac-símile. Rio de Janeiro:
Gernasa, 1974, p. 273-77.
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3
Embora o modernismo não seja fenômeno exclusivo de São Paulo, como bem demonstrou,
por exemplo, Ângela de Castro Gomes, em trabalho sobre o modernismo em outras regiões do
Brasil. O próprio Sérgio Buarque de Holanda, paulista de nascença, permanecia no Rio de
Janeiro durante os tempos mais efusivos do movimento modernista. Cf. GOMES, A. C. Essa
gente do Rio... Modernismo e nacionalismo. Rio de Janeiro: Ed. FGV, 1999.
91
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4
Por exemplo, em 1928 surge o ensaio de Paulo Prado, que, ao analisar o caráter brasileiro,
defende a existência de uma tristeza própria, decorrente da cobiça e licenciosidade dos tempos
coloniais. Cf. PRADO, P. Retrato do Brasil: ensaio sobre a tristeza brasileira. São Paulo: Cia.
das Letras, 1997.
5
É interessante, neste ponto, retomar a reflexão de Koselleck acerca da temporalidade: “o
moderno conceito de história extrai sua ambivalência da obrigação de ter que ser pensado
como um todo (ainda que por razões estéticas), mas que ao mesmo tempo jamais pode ser
dado como terminado, pois o futuro permanece desconhecido, ainda que de forma conhecida”.
In: KOSELLECK, R. Futuro Passado: contribuição à semântica dos tempos históricos. Rio de
Janeiro: PUC/Contraponto, 2006, p. 132.
92
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Referências bibliográficas
DIAS, Maria Odila Leite da Silva (Org.). Sérgio Buarque de Holanda. São
Paulo: Ática, 1985. Col. Grandes Cientistas Sociais.
HOLANDA, Sérgio Buarque de. “Entrevista”. In: Revista do Brasil. Ano 3, no.
6/87, RJ, RioArte, 1987.
93
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94
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1
Departamento de Engenharia Elétrica, UFPR.
2
Evidentemente, no Brasil há diversidade cultural e linguística; segundo Bianchini (2010), em nosso
país são faladas cerca de 180 línguas indígenas e 30 línguas de imigrantes. O português, no entanto,
desempenha muito bem o papel de língua comum.
3
O mérito de elaborar-se um quadro de referências já havia sido discutido em um simpósio
intergovernamental em 1991, Rüschlikon, Suíça (UEA, 2007, p. 10).
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4
Quadro Europeu Comum de Referência para as Línguas - Aprendizagem, ensino, avaliação.
Porto: Edições ASA, 2001.
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5
Conforme os documentos: COUNCIL OF EUROPE, 2001; CONSEIL DE L’EUROPE, 2001;
CONSEJO DE EUROPA, 2002; KONSILIO DE EŬROPO, 2007.
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de survie
B1 Threshold Niveau seuil Umbral Salto
Niveau avancé
B2 Vantage Avanzado Flugo
ou indépendent
Niveau autonome
Effective
ou de compéten- Dominio operativo
C1 operational Aŭtonomeco
ce opérationelle eficaz
proficiency
effective
C2 Mastery Maîtrise Maestría Pinto
6
Ver referência KONSILIO DE EŬROPO, 2007.
7
Albanês, alemão, árabe, armênio, basco, búlgaro, catalão, chinês, coreano, croata, dinamarquês,
eslovaco, esloveno, espanhol, esperanto, estoniano, finlandês, francês, friulano, galego, georgiano,
grego, holandês, húngaro, inglês, italiano, japonês, lituano, moldávio, norueguês, polonês, português,
russo, sérvio, sueco, tcheco e ucraniano. O esloveno foi a última a ser incluída. Atualmente,
preparam-se versões em macedônio e em romeno. Observe-se que o escopo abrange não apenas as
grandes línguas europeias, mas também línguas minoritárias, línguas não originárias da Europa e
uma língua planejada, que é o esperanto.
8
Essa instituição é responsável, a cada ano, pela aplicação de 100.000 testes de proficiência na
Hungria, em mais de trinta línguas. Essas provas são bilíngues (húngaro – língua-alvo). Desse total,
5.000 são os que se submetem aos exames de proficiência em esperanto (é a terceira língua mais
procurada). A proficiência em esperanto, naquele país, pode ser utilizada para cumprir parte dos
requisitos para conclusão do ensino médio ou do ensino superior.
111
Cadernos da Semana de Letras UFPR Ano 2011 Volume II – Trabalhos Completos
9
Obviamente, os números são ainda modestos, mas me permito fazer a seguinte digressão a
respeito da distribuição observada até o momento. O esperanto chegou cedo ao Brasil. As bases do
idioma foram lançadas pelo médico oftalmologista Lázaro Luís Zamenhof (Łazarz Ludwik, Lejzer
Ludwik, Lazaro Ludoviko Zamenhof, 1859-1917) no livro Lingvo Internacia, em 26 de julho de 1887,
na cidade de Varsóvia (Polônia – na época essa região estava ocupada pela Rússia czarista). Os
pioneiros do esperanto em nosso país foram imigrantes europeus: Rudolfs G. Libeks, da Letônia, que
aqui chegou em 1890, e o tcheco Francisco Valdomiro Lorenz [František Vladimír Lorenc], em 1893
(VAZ, 2006). O Brasil tem uma tradição de estudiosos do idioma e vários brasileiros foram membros
da Academia de Esperanto (atualmente, o segundo membro mais antigo da Academia é o
Prof. Geraldo Mattos, ex-professor titular de Linguística da UFPR, cujo ingresso ocorreu em 1970). A
Liga Brasileira de Esperanto (Brazila Esperanto-Ligo) foi fundada em 1907 e em nosso país há
113
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instituições de renome, como a Fazenda-Escola Bona Espero, em Alto Paraíso de Goiás e a Editora
Fonto, em Chapecó (SC). Na França ocorreu o primeiro Congresso Mundial de Esperanto, na cidade
de Boulogne-sur-Mer, em 1905. O francês Gaston Waringhien foi redator-chefe do PIV [Plena Ilustrita
Vortaro de Esperanto, Dicionário Completo Ilustrado de Esperanto], e co-autor do PAG [Plena Analiza
Gramatiko, Gramática Analítica Completa], obras que, apesar das críticas, continuam sendo
referências. Em Paris fica a sede da SAT - Sennacieca Asocio Tutmonda (Associação Mundial
Anacionalista), em Gray está o Museu Nacional do Esperanto e em Baugé o Château Grésillon.
Alguma pressão na França também pode ter vindo em consequência do decreto de 31/05/2010, que
exige dos professores da educação básica e média proficiência em língua estrangeira (HURSTEL,
2011). Na Alemanha tem-se um movimento bastante forte; um exemplo é a cidade de Herzberg am
Harz, que em 12 jul. 2006, por decisão do Stadtrat adicionou oficialmente a seu nome o título “die
Esperanto-Stadt” (A Cidade do Esperanto). Quanto aos Países Baixos, é em Roterdã que está
situada a sede da Associação Mundial de Esperanto (UEA), havendo portanto facilidade de acesso
não apenas a cursos, mas a bens culturais e a eventos esperantistas. Em Haia funciona o Internacia
Esperanto-Instituto. A Polônia é o berço do esperanto, e onde se mantém uma tradição de 52 anos de
emissões radiofônicas no idioma. É natural, pois, que figure entre os países de destaque. Na cidade
polonesa de Bialistoque localiza-se a Fundação Ludoviko Zamenhof; em Bydgoszcz há cursos nas
áreas de Cultura e Turismo em colaboração com a Academia Internacional de Ciências de San
Marino; a Universidade Adam Mickiewicz, de Poznań, oferece o Curso de Pós-Graduação em
Estudos Interlinguísticos, cuja língua de trabalho é o esperanto e cujo objeto principal de estudo
também é o esperanto (UEA, 2011; UAM, 2011).Tenho uma hipótese para entender a razão de a
quantidade de candidatos da Alemanha, dos Países Baixos e da Polônia se situar em um patamar
sensivelmente tão abaixo do Brasil e da França: a desmobilização causada pela Segunda Guerra
Mundial. Observação: na estatística não estão contabilizados os húngaros que se submetem ao
exame bilíngue, conforme mencionado anteriormente.
10
Saliento que os dados referentes à sessão 18 foram obtidos por interpolação.
11
Tal sessão de exames ocorreu durante o 5o Congresso de Esperanto do Estado de São Paulo.
Foram aplicadas somente as provas escritas para um total de 32 candidatos (11, 10 e 11
respectivamente para os níveis B1, B2 e C1). A sessão ocorreu graças à colaboração entre o
Prof. Leysester Miró (presidente da Seção Brasileira da ILEI – Internacia Ligo de Esperantistaj
Instruistoj – Liga Internacional de Professores Esperantistas), o autor deste artigo (docente da
Universidade Federal do Paraná e presidente da Associação Paranaense de Esperanto), o Sr. José
Roberto Tenório (presidente da Associação de Esperanto de São Paulo) e a Dra. Katalin Kováts
(redatora do portal Edukado.net e principal responsável pelos exames); parte dos custos do exame foi
financiada por um colaborador italiano que prefere permanecer no anonimato. A grande maioria dos
candidatos eram provenientes do Estado de São Paulo, mas também houve participantes de Minas
Gerais, Rio de Janeiro, Paraná e Santa Catarina. Os candidatos tinham idades na faixa de 20 a 71
anos; a idade média foi de 46,9 anos. Em Piracicaba, a preferência dos mais jovens foi por exames
mais avançados. As idades médias por nível foram: 54,5 (B1); 44,7 (B2) e 40,2 (C1).
12
Entenda-se: “esperantistas residentes no Brasil”.
114
Cadernos da Semana de Letras UFPR Ano 2011 Volume II – Trabalhos Completos
caba, o Brasil desolcou-se para o topo da lista. Posteriores sessões na Europa pro-
moveram novamente a França à situação anterior. A 21a sessão teve lugar em São
Paulo, no período de 11 a 13 de julho de 2011; ela foi a continuação da sessão ocor-
rida em Brasília nos dias 02 e 03 do mesmo mês. Foi então que se estabeleceu o
recorde de número de candidatos: 79 exames em duas semanas13 (KOVÁTS,
2011a), visível pela mudança de inclinação no gráfico da fig. 2a e também no
segundo salto na fig. 2b. A última sessão ocorrida até o momento teve lugar em
Copenhague14; na ocasião foram realizados 47 exames (dentre os candidatos esta-
vam quatro brasileiros).
250 5
200 0
14 15 16 17 18 19 20 21 22 14 15 16 17 18 19 20 21 22
sessão sessão
(a) (b)
13
Em Brasília foram 25 candidatos, todos brasileiros. Em São Paulo a sessão ocorreu durante o
congresso triplo (Kongresego – “Supercongresso”: 8o Congresso Pan-Americano, 46o Congresso
Brasileiro e 31o Congresso da Juventude Esperantista Brasileira). Foram 54 os candidatos: cinquenta
brasileiros, um alemão, um cubano, um colombiano e um chileno (entre eles os presidentes das
Associações de Esperanto de Cuba e da Colômbia, o dicionarista Túlio Flores e o Delegado da UEA
James Piton). Para a aplicação dos exames veio a Dra. Katalin Kováts (Hungria/Países Baixos). Com
ela compuseram as bancas examinadoras os professores Josias Barboza (Brasil), Paulo Nascentes
(Brasil) e Duncan Charters (Estados Unidos). Petra Smidéliusz (Hungria) e o autor deste artigo
receberam treinamento como examinadores do QECR. A participação da Dra. Kováts foi custeada
por quatro colaboradores brasileiros. (KOVÁTS, 2011a.)
14
Durante o 96o Congresso Mundial de Esperanto, 23-30 jul. 2011.
115
Cadernos da Semana de Letras UFPR Ano 2011 Volume II – Trabalhos Completos
25 25 25 25
0 0 0 0
B1 B2 C1 B1 B2 C1 B1 B2 C1 B1 B2 C1
Fig. 3 – Distribuição dos candidatos segundo os níveis do exame (B1, B2 e C1). O eixo
vertical representa o percentual. A linha pontilhada corresponde à distribuição geral.
dez países com maior número de candidatos16, três não são daquele continente;
37,0% do total de países e 36,7% do total de candidatos não são europeus. Obvia-
mente, o Brasil tem assumido um papel de liderança em termos quantitativos para a
internacionalização do QECR em esperanto. Em minha opinião, isso indica que o
exame tem atendido a um anseio da comunidade por um exame feito nesses
moldes. Cumpre salientar que no modelo do QECR, dá-se mais ênfase à capaci-
dade comunicativa e à habilidade em desembaraçar-se em situações de uso do
idioma, do que ao conhecimento da história e da cultura da língua, exigidos por
outros tipos de exame (ILEI/UEA, 2008; NASCENTES, 2011). Enquanto os outros
exames são respeitados e reconhecidos dentro do âmbito do movimento esperan-
tista, o caráter oficial do QECR dota-o de aceitabilidade maior fora do movimento.
Ainda não tive notícia de um reconhecimento no Brasil, mas sou de opinião de que
devemos caminhar para que isso ocorra. Com o progresso da tramitação da Lei
Cristovam (Projeto de Lei 6162/2009, de autoria do Senador Cristovam Buarque,
que dispõe sobre a inclusão facultativa do esperanto no ensino médio), tem surgido
interesse maior por certificados de proficiência (ainda que somente o certificado, em
tese, não qualifique o portador a lecionar o idioma).
Não enfoquei no presente artigo a estrutura dos exames, nem os itens gra-
maticais correspondentes a cada nível. Isso foi feito em outra ocasião, em evento
destinado a professores de esperanto (COLLING, 2011). No entanto, incluo algumas
referências para eventuais candidatos. Farto material, incluindo exemplos de provas
e gravações para o exame de compreensão auditiva, está disponível no portal
<www.edukado.net>. O livro Esperanto de nivelo al nivelo (KÓRÓDY, 2008) é exce-
lente fonte de informações. A prova de compreensão auditiva costuma ser a mais
exigente; o livro e o CD de Smidéliusz (2009) foram preparados especificamente
para esse fim. Recomenda-se também ouvir emissões radiofônicas em esperanto
(por ondas curtas ou pela internet), participar de rodas de conversação e manter
uma atividade de leitura (periódicos, livros, internet). Para conhecer melhor a estru-
16
Após os cinco países da tabela 2, tem-se: Itália, Espanha, Estados Unidos, Bélgica e Cuba.
117
Cadernos da Semana de Letras UFPR Ano 2011 Volume II – Trabalhos Completos
Agradecimento
118
Cadernos da Semana de Letras UFPR Ano 2011 Volume II – Trabalhos Completos
Desejo expressar meu agradecimento à Dra. Katalin Kováts , por sua ajuda,
apoio e disponibilidade para responder a meus questionamentos, e também pela
confiança em nomear-me seu representante na primeira sessão de exames de espe-
ranto segundo o QECR ocorrida no Brasil.
Referências
119
Cadernos da Semana de Letras UFPR Ano 2011 Volume II – Trabalhos Completos
O grupo KI-
Kio estas kato? Kato estas besto./ Kio estas tablo? Tablo estas meblo. (2)
O que é gato? Gato é um animal. / O que é uma mesa? Mesa é um móvel.
1
Departamento de Engenharia Elétrica, UFPR.
95
Cadernos da Semana de Letras UFPR Ano 2011 Volume II – Trabalhos Completos
Dos exemplos acima, pode-se depreender que kiu corresponde a “quem”, kio
a “o quê”. Antes que se conclua apressadamente que kiu se refira a pessoas e kio a
animais ou objetos, apresento os exemplos (3) e (4), no intuito de deixar claro que,
de fato, kiu indica individualidade, especificidade, enquanto kio indica categoria
(CHERPILLOD, s.d., p. 1).
Kiu, kio e outras palavras da família ki- servem também para introduzir
perguntas indiretas e exclamações [v. exemplo (20), mais adiante]; podem também
ser usadas como pronomes relativos. Veja-se o exemplo (5), baseado na fig. 1.
La kato,
kiu estas sur la hundo,
kiu estas sur la seĝo,
kiu estas sur la tablo,
estas de Marta.
(5)
O gato
que está sobre o cachorro
que está sobre a cadeira
que está sobre a mesa
Fig. 1 – Ilustração:emprego de é da Marta.
“kiu” como pronome relativo.
(SAT AMIKARO, 1979, p. 3)
Referências a qualidades, atributos, tipos, são feitos com kia (6), que pode ser
traduzido por “como”, “de que jeito” e traz como resposta adjetivos. Se a resposta for
adverbial, emprega-se kiel (7), (18).
96
Cadernos da Semana de Letras UFPR Ano 2011 Volume II – Trabalhos Completos
Analisaram-se até o momento cinco correlativos (kiu, kio¸ kia¸ kiel e kie). Qua-
tro são os elementos faltantes a fim de se completar o grupo ki-. Eles são apresen-
tados nos exemplos (9) a (12). Observe-se que ao interrogativo kial (“por que”)
corresponde ĉar (“porque”) na resposta [ver também o exemplo (24)]. Já kiam
(“quando”) é utilizado com ambas as funções [exemplo (10)]. Dos nove vocábulos
apresentados, kies apresenta maior dificuldade de assimilação pelos falantes de
português (em português utilizamos uma construção preposicionada, “de quem”). O
grupo ki- encontra-se sumariado na fig. 2.
97
Cadernos da Semana de Letras UFPR Ano 2011 Volume II – Trabalhos Completos
2
Veja-se também o exemplo (22).
98
Cadernos da Semana de Letras UFPR Ano 2011 Volume II – Trabalhos Completos
O grupo ĈI-
Ĉi- dá ideia de “totalidade”: ĉie significa “em todos os lugares” e ĉiam, “todo o
tempo”, “sempre”:
Lingvo internacia, same kiel lingvo nacia, estas ĉies propraĵo. (18)
Uma língua internacional, da mesma maneira que uma língua nacional,
é propriedade de todos.
O grupo NENI-
99
Cadernos da Semana de Letras UFPR Ano 2011 Volume II – Trabalhos Completos
O grupo I-
Foram apresentados até o momento quatro grupos (ki-, ti-, ĉi- e neni-). Todos
eles contêm a letra “i” como finalização3. Quando, no entanto, nada há antes do “i”,
sendo ele sozinho o elemento anterior, é como se houvesse uma “placa branca”, um
espaço não completado. Essa é a ideia neste grupo: indefinição, indeterminação. Ou
seja, um morfema zero de forma bastante coerente indica essa indefinição. Assim, iu
é “alguém”, io significa “alguma coisa”, “algo”:
Tabela 1 – Os correlativos.
KI- TI- ĈI- NENI- I-
Quem, que,
-U Esse, essa Cada Ninguém Alguém
qual
-O O quê Isso Tudo Nada Algo
Dessa De toda De nenhum De alguma
-A Como (adj.)
espécie espécie tipo, nenhum espécie
Em todo Em nenhum Em algum
-E Onde Lá
lugar lugar lugar
Dessa De todas as De nenhuma De alguma
-EL Como (adv.)
maneira formas maneira maneira
Por
Por essa Por todas as Por alguma
-AL Por quê nenhuma
razão razões razão
razão
-AM Quando Então, Sempre Nunca Em algum
3
Aliás, a letra “i” é tônica em todos os correlativos, pois em esperanto as palavras são paroxítonas.
100
Cadernos da Semana de Letras UFPR Ano 2011 Volume II – Trabalhos Completos
naquele momento
momento
Nada,
Tudo, toda a
-OM Quanto Tanto nenhuma Um pouco
quantidade
quantidade
-ES De quem Dele, dela De todos De ninguém De alguém
Indefinidos
A Qualidade } Adjetivos
} Adjetivos e
U Indivíduo pronomes
}
Interrogativos e
relativos
K O Categoria
Pronomes
ES Posse
Demonstrativos T I E Lugar
EL Modo
Coletivos/
Totalizadores
C AM Tempo Advérbios
OM Quantidade
Fig. 3 – Os correlativos do esperanto. A vogal “i” pode ser vista como um elemento de união
entre a parte anterior e a parte posterior dos vocábulos. Neste esquema,
o morfema zero indica indefinição. Adaptado de: COSTA, 1987, p. 28.
Plural e acusativo
101
Cadernos da Semana de Letras UFPR Ano 2011 Volume II – Trabalhos Completos
4
O mais comum é o acusativo indicador de objeto direto. Didaticamente, pode-se ainda definir o
acusativo de direção, a substituição de preposição e a indicação de mudança de estado, mas em
última análise estes últimos três podem ser agrupados na categoria de substituição de preposição. O
acusativo de direção ocorre quando se emprega um verbo de movimento com uma preposição que
por si só não indica movimento (“estática”): la knabo kuras sub la arbo: “o menino corre embaixo da
árvore”; la knabo kuras sub la arbon: “o menino corre para baixo da árvore”. Na última oração, é o
acusativo que indica a mudança do espaço em que ocorre a ação de correr (antes o menino não
estava embaixo da árvore; depois do processo, ele lá estará).
102
Cadernos da Semana de Letras UFPR Ano 2011 Volume II – Trabalhos Completos
103
Cadernos da Semana de Letras UFPR Ano 2011 Volume II – Trabalhos Completos
Obviamente, a língua não é perfeita (se fosse perfeita, não seria humana, v. Piron,
1997). Ele procurou, na medida do possível, fornecer elementos que facilitassem a
comunicação entre pessoas com línguas maternas diferentes e o resultado é uma
língua viva, plenamente funcional e com possibilidade de expressão artística em
poesia, prosa, teatro, música, evoluindo naturalmente conforme a época em que é
empregada. A elaboração da tabela dos correlativos certamente se baseou na ob-
servação sistematizações produzidas por falantes de várias línguas étnicas5. Na
tabela 4, verifica-se que, em português, o som /k/ está presente em oito palavras ou
expressões correspondentes ao grupo ki-, e sons de /n/ (palatal ou velar) estão em
todas aquelas associadas ao grupo neni-. Encontram-se também elementos comuns
entre vocábulos agrupados conforme os elementos finais. Na tabela 5, está o grupo
-u, evidenciando-se a ocorrência do som /e/ nasalizado no final.
5
Apesar de serem denominações correntes na Linguística, a maioria dos esperantistas não nos
sentimos à vontade com a distinção língua natural / língua artificial; prefiro utilizar língua étnica /
língua planejada (v. CHERPILLOD, 2006).
6
Fontes de consulta: BENSON, 1995; CONROY, 1999; KRAUSE, 1999 e 2007; KOZYRA, 2009.
104
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Imprecisão maior pode ser conferida pelo uso da palavra ajn em esperanto,
traduzível por “quer que seja” em português. Veja-se a tabela 7.
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Cadernos da Semana de Letras UFPR Ano 2011 Volume II – Trabalhos Completos
Saindo da tabela
Referências
7
Nova Plena Ilustrita Vortaro de Esperanto: Novo Dicionário Ilustrado Completo de Esperanto, a
maior referência do idioma.
8
Se ali- fosse plenamente incorporado na tabela, uma contradição passaria a existir: alie perderia o
sentido original já consolidado para significar “em outro lugar” (expresso hoje por aliloke).
106
Cadernos da Semana de Letras UFPR Ano 2011 Volume II – Trabalhos Completos
107
Cadernos da Semana de Letras UFPR Ano 2011 Volume II – Trabalhos Completos
De forma geral o ser humano está numa constante busca por conhecimento.
Esse conhecimento se demonstra em diversos aspectos da sociedade, sejam eles
de cunho ético, moral ou religioso. Muitos conhecimentos se baseiam em
elucubrações que, de antemão, podem parecer um pouco espalhafatosas e sem
embasamento mas, que depois se provam reais e completamente viáveis por um
ponto de vista lógico. É antiga a convivência do homem com a busca da sua
verdadeira identidade. Relatos de diversas épocas tentam de uma forma ou outra
estabelecer um ponto norteador para essa questão que intriga filósofos e
humanistas de várias épocas e vertentes. Na filosofia – tendo em vista a formação
da nossa alteridade – encontramos o pensamento que afirma, conforme TELES
(1972:13): “Tudo era um caos até que surgiu a mente e pôs ordem nas coisas”.
Assim sendo, é perceptível que a busca do ser humano por entender-se como
indivíduo na sociedade nos leva aos primórdios da caminhada humana sobre a
Terra.
É notável também que a literatura, em suas variadas vertentes, se debruça
nessa jornada. Inúmeros são os autores e textos que abordam, de forma simples ou
aprofundada, a busca por identidade e as suas implicações na sociedade e,
principalmente, no indivíduo. Com esse panorama estabelecido podemos, de forma
clara, compreender a inscrição do conto ‘A Estranha Morte do Professor Antena’ de
Mário de Sá-Carneiro como um escrito que visa ilustrar a relação do ser humano
com essa constante busca por sua identidade, seja utilizando-se de conceitos reais
e lógicos ou lançando mão de recursos que trabalhem com uma realidade aspirada
ou surreal. Em todo caso, é inerente durante o conto que o tema norteador e latente
diz respeito a identidade e a sua formação no indivíduo e os meios que ele utilizou
para alcançá-la.
O professor Antena, reconhecido e renomado em sua época, começa uma
busca por entender perfeitamente a formação da alteridade. Para essa jornada ele
empreende uma série de estudos e ponderações que visavam comprovar
121
Cadernos da Semana de Letras UFPR Ano 2011 Volume II – Trabalhos Completos
cientificamente que a nossa formação como ‘ser’ nos dias de hoje, tinham relação
direta com algum tipo de ‘ser’ que fomos em outra época ou período. Como cientista
que era, buscou através dos estudos exatos comprovar a sua teoria. Entretanto, vale
ressaltar que a formação da identidade e a forma como ela se apresenta a nós,
seres dotados de racionalidade, pode apresentar caminhos que fogem, em alguns
momentos, da racionalidade e lógica que estamos acostumados a ter e a
desenvolver em nossa sociedade.
Assim sendo, o professor Antena se viu defronte a um grande abismo: o
real x o fantasioso. É de conhecimento geral que esse abismo é transposto
constantemente pela humanidade, porém a forma como o fazemos continua sendo
um grande mistério. Para tentarmos entender esses dois lados, podemos nos
ancorar nas palavras de FRYE (2000:167):
O que Frye aponta de forma bem clara é o que o professor Antena percebe
em sua viagem por entender o indivíduo. Como habitante desse ‘duplo mundo’ o ser
humano se vê diariamente frente a frente com realidades díspares, que muitas
vezes excluem resoluções e soluções palpáveis de um ‘mundo’ no outro. Em nossa
imaginação – ou no mundo que criamos – todas as coisas se tornam mais
acessíveis e práticas, já que ela desconhece leis ou regras que possam impedir um
resultado de se tornar real. Dessa forma, o professor Antena se lança como morador
permanente do mundo da imaginação, criando até elementos concretos no mundo
‘real’ para que pudesse ultrapassar o limite que se estabelece entre os mundos.
É relatado durante o conto que o professor Antena acreditava que a
imaginação era algo limitado, que a prova viva disso seria que um artista só
conseguiria criar num número restrito de artes: pintura, poesia, música e etc, e que
se de fato a imaginação fosse livre não haveriam restrições e o artista acumularia
outras obras de outras Artes. Ele se baseia nessa teoria para tentar nos provar que
a fantasia se apoia em reminiscências, ou conforme ele nos fala:
122
Cadernos da Semana de Letras UFPR Ano 2011 Volume II – Trabalhos Completos
A sua crença se baseava no fato que a nossa vida, como indivíduo nos dias
de hoje, se baseava de forma irrefutável numa outra vida do nosso ‘eu’ num ‘outro-
mundo’ da nossa existência, ou: “Não somos mais, na vida de ontem e na de hoje,
do que as sucessivas metamorfoses, diferentemente adaptadas, do mesmo ser
astral. O homem é uma crisálida que se lembra” (SÁ-CARNEIRO 1915:240).
Para comprovar essa teoria o professor utilizou-se de cálculos exatos e
instrumentos que pudessem dizer o exato local onde no espaço, o nosso ‘ser’ de
hoje pudesse vir a ocupar o mundo do nosso ‘ser de ontem’ ou ‘ser de outro-mundo’.
Seus cálculos estavam corretos, sua teoria também. Porém o que ele não pode
prever é o fim que essa busca ‘insana’ o levaria. Ao estabelecer a ponte entre os
dois mundos, que já citamos, é necessário não esquecermos que o mundo
fantasioso só existe por causa da nossa vivência no mundo real, caso fôssemos
moradores permanentes do outro mundo nada mais seríamos que fantasias de um
‘ser’ que estaria estabelecido no mundo tido como real. O fim do professor Antena,
em sua busca por conhecer a fundo a formação da identidade foi a morte. Não a
morte das ideias, mas a morte física, o que nos leva a tentar compreender um outro
conto que também trabalha a questão da busca da identidade.
No conto ‘O Golem’ de António Vieira, dois cabalistas se propõem uma tarefa:
a criação de um golem. O golem, esse ser mítico que povoa a imaginação da
humanidade em suas diversas aparições literárias (orais ou escritas), é a
materialização da busca do homem por se entender como indivíduo, posto que ao se
colocar no papel criador, o ser humano opta por controlar/dominar algo do qual ele
não possui controle nem domínio, a sua própria formação como ser. Baseando-se
em leituras profundas aos textos sagrados do livro Yetsirá 1, Azriel e Ezra começam
sua jornada na magnífica construção desse ser que, nas palavras de Ezra:
1
NA: Antigo texto sagrado pertencente ao corpus da cabala judaica, contém em suas
páginas a real forma da criação do universo por YHWH.
123
Cadernos da Semana de Letras UFPR Ano 2011 Volume II – Trabalhos Completos
Percebe-se claramente que a função do golem nada mais é que ser uma
cobaia, ou um instrumento pelo qual seria possível entender e perceber a formação
daquele que o está criando. Ao criar, o criador está concedendo à sua criatura
particularidades e essências intimamente ligadas ao seu modo de pensar e agir, a
sua forma de perceber o Mundo, ou de tentar percebê-lo. A criação nada mais é que
uma metamorfose do nosso próprio ‘eu’, uma crisálida envolta pela bruma do
desconhecimento provocado pela nossa não percepção do que realmente somos.
Norbert Elias, em ‘A Sociedade dos Indivíduos’ nos faz uma perguntar que ecoa de
forma randômica na nossa certeza de falarmos que entendemos o conceito de
sociedade: será que realmente nos entendemos? (ELIAS 1994:13)
O embate entre o real (exato) e o surreal (imaginário) está presente na
busca pela formação do golem e nas discussões entre os personagens. De um lado,
a exatidão dos trabalhos materiais, seja na configuração do molde para o corpo ou
na busca por descobrir as sefirot – palavras sagradas escondidas na Torah que
contém a força criadora de Deus. No oposto, elucubrações sobre a possível vivência
desse ser entre nós, sua percepção do Mundo e principalmente, a forma como iria
se portar. Por mais forte que seja esse embate, não existe uma anulação entre
esses opostos, como ocorre muitas vezes entre um conceito de razão exata quando
confrontado com um conceito de razão humana. Pelo contrário, ambos se equilibram
para um bem maior, se balizam em comum acordo para a formação e criação
daquele que seria uma manifestação perpiscaz de todo o conhecimento e imaginário
humano.
Assim sendo, é possível perceber que tanto a busca do professor Antena,
como a tentativa de criação de Ezra e Azriel se baseiam em uma única verdade:
ultrapassar os limites humanos em relação ao seu autoconhecimento.
De toda forma, a nossa busca está maculada. Como seres humanos
estamos em constante contato com teorias, ideais e pressupostos que provêm de
outros tempos e que, de uma forma positiva ou negativa influenciam a nossa forma
de enxegarmos a nós ou o que buscamos compreender.
124
Cadernos da Semana de Letras UFPR Ano 2011 Volume II – Trabalhos Completos
Vale pararmos um pouco e lermos o que Elias nos diz sobre isso:
125
Cadernos da Semana de Letras UFPR Ano 2011 Volume II – Trabalhos Completos
Sem essa percepção pessoal, o ser humano nada mais é que um golem
sem vida plena caminhando entre outros. É essencial que nossa alteridade, em suas
diversas manifestações cotidianas e constantes, seja despertada. Porém, a busca
por conhecimento de si se faz impregnada por uma série de relações que a
humanidade fez ao longo de sua existência, colocando certos valores e questões
acima de outros.
Partindo da consideração que como humanos nos esquecemos, e
relembrando a visão de Norbert Elias sobre os temores e desejos que perpassam a
nossa fundamentação como indivíduos, podemos chegar a conclusão que a busca
pela identidade está intimamente ligada a uma libertação da mente dos padrões, que
aqui chamaremos de nocivos, que permeiam toda a nossa formação como
sociedade. Assim, a libertação plena é demonstrada pelo retorno as questões que
todos possuem, porém buscando uma interpretação e análise que fuja dos
estereótipos tão tenazmente marcados ao longo dos séculos em toda humanidade.
Esse descortinar busca não apenas reescrever paradigmas e conceitos, mas sim
apontar para um caminho de entendimento e aceitação pessoal.
O golem, assim como o professor Antena, também possui um fim trágico,
aliás nem é um fim já que ele nunca chegou a vida plena. Sua criação parte do Caos
e chega no Vazio.
O caos e o vazio (ou Tohu e Bohu, como utilizado no conto ‘O Golem’)
estão presentes na busca pela identidade e também são latentes no fim trágico dos
personagens. A partir do caos a nossa formação de identidade parte, e é no vazio
que ela se completa. Esses elementos estão inteiramente ligados a todos os seres
humanos, seja na criação ou seja na morte, que é o fim para qual todos
caminhamos, seja buscando a nossa alteridade ou não.
Nossa jornada de conhecimento se estabelece, produzindo um resultado
satisfatório quando nos percebemos indivíduos expresssando de forma coerente
nossa alteridade, ou nos levando a destruição quando partimos do pressuposto que
nossa identidade é formulada única e exclusivamente pelo nosso ‘eu-próprio’. A
126
Cadernos da Semana de Letras UFPR Ano 2011 Volume II – Trabalhos Completos
constituição da nossa identidade está intimamente ligada com a nossa relação com
o ‘eu-outro’ que se estabelece e é percebido na relação com ‘o outro’ que, da
mesma forma que eu, busca sua alteridade através de mim.
Referências bibliográficas
ELIAS, Norbert. A sociedade dos indivíduos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor,
1994
Alexandria, 2000
TELES, Antônio Xavier. Introdução ao estudo de filosofia. 8. ed. São Paulo: Ática
VIEIRA, António. Contos com monstros. São Paulo: Globo, 2001. p. 29-58.
127
Cadernos da Semana de Letras UFPR Ano 2011 Volume II – Trabalhos Completos
1
Para detalhes sobre as várias etapas da ADL, ver “O percurso de Ducrot na teoria da argumentação
na língua” (CAMPOS 2007).
2
Texto original publicado em 1993
3
Segundo Ducrot, as relações associativas não são de tipo linguístico, já que “para estabelecê-las, é
preciso que sejam dadas as condições de verdade das frases (...) e não é o nosso conhecimento da
língua que nos pode ensinar isso'” (op. cit.: 3).
128
Cadernos da Semana de Letras UFPR Ano 2011 Volume II – Trabalhos Completos
com outras frases no encadeamento do discurso, notando, por exemplo, o que pode
seguir ou preceder um enunciado desta frase” (DUCROT 1999: 3).
Essa perspectiva rejeita a ideia de que a argumentação é constituída por
argumentos e conclusões definidos como tal a priori, o que faria supor que esses
dois constituintes têm existências independentes. Ao contrário disso, a adotar a
noção de encadeamento argumentativo implica considerar que “se a conclusão pode
determinar semanticamente o argumento, o inverso também aparece'' (op. cit.: 8;
grifo meu), formando assim uma unidade de sentido.
CAREL & DUCROT (2001)4 exemplificam essa determinação semântica
mútua entre argumento e conclusão. Considerem-se dois enunciados possíveis em
uma reunião:
(1a) A questão das promoções apresenta problemas, eu proponho, então, adiar sua
discussão.
4
Texto original publicado em 1999
129
Cadernos da Semana de Letras UFPR Ano 2011 Volume II – Trabalhos Completos
(1b) A questão das promoções apresenta problemas, portanto vamos adiar sua
discussão.
5
Encadeamentos argumentativos e argumentações são considerados sinônimos. (cf. DUCROT &
CAREL 2008 [2006]: 9)
6
“Não há problemas na questão das promoções, no entanto Pedro propõe adiar a discussão”
130
Cadernos da Semana de Letras UFPR Ano 2011 Volume II – Trabalhos Completos
Se, por outro lado, o enunciado fosse, por exemplo, “mesmo a questão das
promoções não apresentando problemas, Pedro quer adiar sua discussão”, teríamos
outro encadeamento argumentativo e, consequentemente, outro seria o aspecto:
(4)
c. problema NE adiamento7
(3b) A questão das promoções não apresenta problemas, portanto vamos adiar
sua discussão.
131
Cadernos da Semana de Letras UFPR Ano 2011 Volume II – Trabalhos Completos
8
Texto original publicado em 2006.
9
Apresentada por Ducrot em “Um esboço de uma teoria polifônica da enunciação” (DUCROT 1984:
161-221).
132
Cadernos da Semana de Letras UFPR Ano 2011 Volume II – Trabalhos Completos
10
Exemplos adaptados de DUCROT & CAREL (2008)
11
O termo “impor” parece estar sendo usado, não só em sua primeira acepção “tornar (algo)
obrigatório ou indispensável (para alguém ou para si mesmo); forçar(-se)” (HOUAISS 2001), mas
também no sentido de “fazer(-se) reconhecer, fazer(-se) considerar” (idem). Essa distinção é
fundamental para a apreensão do conceito de assunção.
133
Cadernos da Semana de Letras UFPR Ano 2011 Volume II – Trabalhos Completos
12
Ainda assim, esse objeto não é completamente estranho à proposta da ADL. Cf. “Sémantique
linguistique et analyse de textes” (Ducrot, 1998).
13
“Pecadoras da UNESP apedrejadas”, por Marion Minerbo. Publicado em 09 de novembro de 2010
na Folha de S. Paulo.
134
Cadernos da Semana de Letras UFPR Ano 2011 Volume II – Trabalhos Completos
também por razões morais. Uma mulher magra contava às amigas igualmente
magras ter assistido a uma cena indecorosa. Pegou fulana no flagra comendo um
doce enorme, com recheio de creme e cobertura de brigadeiro. ‘O pior’, dizia ela, é
que o fazia em público, sem pudor nem culpa. ‘E é gorda’.
Cria-se continuamente a tentação de comer, pano de fundo sobre o qual se
destaca a "virtude" de quem resiste. A magreza, como antes a castidade, é vista
como virtude, embora nenhuma das duas tenha qualquer relação com praticar o
bem.
Inversamente, a gordura é interpretada como prova de que a mulher caiu em
tentação, comeu demais, não se controlou, entregou-se compulsivamente à comida,
enfim, transgrediu os atuais preceitos morais.
Nesse contexto, o funesto ‘rodeio de gordas’ foi um apedrejamento. As alunas
foram tratadas como pecadoras que não merecem respeito. No dia 28 de outubro,
dois estudantes da UNESP atiraram a primeira pedra.”
14
Cf. Vogt & Ducrot (1980)
135
Cadernos da Semana de Letras UFPR Ano 2011 Volume II – Trabalhos Completos
mas
(y’) “Rodeio de gordas” NE bullying e preconceito – L
(y’’) “Rodeio de gordas” PT forma grotesca de agressão – L
Os enunciadores E2 e E3
136
Cadernos da Semana de Letras UFPR Ano 2011 Volume II – Trabalhos Completos
Podemos identificar, para além de L e E1, outras duas vozes que são
introduzidas no discurso do locutor, ambas como objeto de oposição.
No quarto parágrafo do texto, L apresenta o ponto de vista que chamaremos de
E2, esse enunciador caracteriza uma voz conservadora:
Os tempos mudaram...
15
“Que tende a atribuir importância exagerada ao aspecto estético das coisas, em detrimento do seu
conteúdo ou significado.” (HOUAISS 2001)
137
Cadernos da Semana de Letras UFPR Ano 2011 Volume II – Trabalhos Completos
Considerações finais
138
Cadernos da Semana de Letras UFPR Ano 2011 Volume II – Trabalhos Completos
Referências bibliográficas
VOGT, Carlos; DUCROT, Oswald. De magis a mas: uma hipótese semântica. In:
VOGT, Carlos. Linguagem, Pragmática e Ideologia. São Paulo: Hucitec;
Campinas: Funcamp, 1980, p. 103-128.
139
Cadernos da Semana de Letras UFPR Ano 2011 Volume II – Trabalhos Completos
Introdução
O objetivo deste trabalho é apresentar uma análise textual, com base nas
sequências textuais de Adam (2008) e na classificação de argumentos proposta por
Perelman e Olbrechts-Tyteca (1996), de 60 textos de alunos de diferentes séries de
uma escola particular de Curitiba para uma mesma proposta de produção textual.
Ele pretende averiguar de que maneira os estudantes do segundo e do sexto ano do
Ensino Fundamental e do terceiro ano do Ensino Médio atendem à chamada
estrutura prototípica de um gênero de caráter argumentativo, e se atendem, quais
são as categorias de argumentos utilizadas por eles. Todo esse estudo tende a
verificar até que ponto uma experiência semelhante, feita por Leitão e Pinheiro
(2007), confirma-se com esses alunos.
A hipótese levantada a partir da análise é que crianças, representadas pelo
segundo e pelo sexto ano do Ensino Fundamental, se utilizariam de argumentos
menos abstratos e mais ligados à estrutura do real para fundamentar seus
raciocínios, enquanto os jovens e adultos, representados pelo terceiro ano do Ensino
Médio, se utilizariam de argumentos de caráter mais lógico e menos pragmático.
Isso se dá pelo fato de que, supõe-se, quanto maior o desenvolvimento cognitivo,
maiores são as possibilidades de controle da situação e da voz do outro. Porém, a
dificuldade em inserir a tese contrária e utilizar-se de contra-argumentos para
enriquecer o texto e persuadir o leitor, por exemplo, foi eminente nas três séries
analisadas.
Para fundamentar a hipótese derivada dos dados, utilizamos a proposta do
artigo de Leitão e Pinheiro (2007) intitulado: Consciência da “Estrutura
Argumentativa” e Produção Textual. Nele, as autoras procuram demonstrar, a partir
de alunos do ensino fundamental e da graduação, a relação existente entre a
consciência metatextual de um gênero argumentativo e a propensão desses alunos
a inserir elementos constituintes do “esquema argumentativo prototípico” em seus
140
Cadernos da Semana de Letras UFPR Ano 2011 Volume II – Trabalhos Completos
141
Cadernos da Semana de Letras UFPR Ano 2011 Volume II – Trabalhos Completos
142
Cadernos da Semana de Letras UFPR Ano 2011 Volume II – Trabalhos Completos
enquanto tal, como uma estratégia de grande valor para a produção de textos
argumentativos.
Sequência argumentativa
Ao propor uma análise textual dos discursos, Adam no livro A linguística
textual: introdução à análise dos discursos leva em consideração o texto através do
discurso em que ele está inserido e através disso, também os elementos
extratextuais do ato de escrever. Na sequência argumentativa, sequência enfocada
nesse trabalho, o escritor sugere que o autor do texto deve persuadir o seu leitor
para que o mesmo tenha chegado ao seu propósito final, utilizando-se de
determinados métodos argumentativos para isso. Através de um programa que
deixe lugar para a contra-argumentação, o autor propõe um esquema, em ordem
não linear, que pode comportar: tese anterior (princípio argumentativo 0), fatos
(princípio argumentativo 1), apoios ou argumentos (princípio argumentativo 2),
contra-argumento (princípio argumentativo 4) e (nova) tese (princípio argumentativo
3), que sugere ser o esquema da estrutura prototípica da sequência argumentativa.
Através dessa sequência, os textos dos alunos foram analisados de modo a
verificar quais dos princípios argumentativos eram encontrados em cada um deles, e
se todos os princípios eram utilizados em maior ou menor grau por todas as séries.
Os resultados mostraram que isso nem sempre acontecia, pois, nenhum dos textos
analisados da segunda série, por exemplo, trazia o princípio 0 ou o princípio 4, a
tese anterior e a contra-argumentação, respectivamente.
Tipologia argumentativa
Para Perelman e Olbrechts-Tyteca (1996), se argumenta para persuadir.
Assim, o leitor é induzido pelo autor a aceitar determinado ponto de vista. Mais ou
menos como para Adam (2008), os argumentos levam a determinada inferência, e
eles podem ser construídos de diferentes maneiras para levar a determinadas
conclusões. Eis o que o estudo do trabalho mostra, quais argumentos são utilizados
por determinadas séries, e consequentemente por determinadas idades, para
chegar ao seu propósito persuasivo no texto. Retomando o quadro de Wachowicz
(2010),o qual sintetiza a tipologia argumentativa de Perelman e Olbrechts-Tyteca
143
Cadernos da Semana de Letras UFPR Ano 2011 Volume II – Trabalhos Completos
(1996), podemos perceber que os tipos de argumentos podem ser formados por
processos de dissociação ou de ligação. Já que estes são os que provocam uma
inferência avaliativa através da relação de elementos, e não de uma dissociação dos
mesmos, são os que foram levados em consideração na análise, através de
argumentos quase-lógicos, dos baseados na estrutura do real e nos que
fundamentam a estrutura do real. Logo abaixo, a tabela referida:
Contradição e
incompatibilidade
Identidade e
definição
I - Os quase lógicos
Transitividade
Tipos de argumentos
Comparação
Por ligação Inclusão ou divisão
Probabilidade
II – Os baseados na Por sucessão
estrutura do real Por coexistência
III – Os que Exemplo
fundamentam a
Ilustração
estrutura do real
Por dissociação
144
Cadernos da Semana de Letras UFPR Ano 2011 Volume II – Trabalhos Completos
Análise
Sessenta textos foram analisados para este trabalho, 20 de segundo e 20 de
sexto ano do ensino fundamental, e 20 do terceiro ano do ensino médio. O recorte
se baseou, como já dito, no artigo de Leitão e Pinheiro (2007), mas como o corpus já
existia, sofreu algumas modificações, os alunos do primeiro ano dos cursos de
graduação foram cotejados com os alunos do terceiro ano do ensino médio, por
145
Cadernos da Semana de Letras UFPR Ano 2011 Volume II – Trabalhos Completos
Resultados
No segundo ano do ensino fundamental pôde-se perceber que as posições
argumentais 0 e 4 não aparecem em nenhum dos textos observados. Isso pode
acontecer pelo fato de crianças, numa média de idade que pode variar entre sete e
oito anos, tem ainda dificuldade em dominar as posições de controle dialógico.
Também não é à toa que esses alunos façam uso apenas de argumentos que
baseiam e que fundamentam a estrutura do real. Dos vinte alunos, apenas dois
utilizaram-se de argumentos quase-lógicos. Os argumentos de ilustração, exemplo e
sucessão foram destaque nos resultados, o que nos leva a inferir que quando os
argumentos têm como base a observação da realidade em que vivem, e não uma
146
Cadernos da Semana de Letras UFPR Ano 2011 Volume II – Trabalhos Completos
espécie de lógica sobre a mesma, eles são entendidos como muito mais
convincentes ao leitor de seu texto e até aos próprios pequenos autores. Os
resultados também mostraram que nem todos os alunos dessa série souberam
escrever uma sequência argumentativa, visto que alguns disseram apenas que
concordavam com a proibição dos celulares em sala de aula, trazendo apenas a
tese, mas foram minoria, apenas 20%. Logo abaixo, trazemos um dos textos
analisados, o texto de número 7 (todos os textos analisados foram transcritos de
acordo com os originais):
como você ficar doende ou passar muito mal mesmo você poderá 7falar com seus
pais, mas a cordenação exite para isso ligar para seus pai em 8hora de urgencia, então
sou a favor há proibição dos celulares nas escolas.
9 Os alunos que disem que não concordo com a proibição de celulares nas
10escolas não tem bom senso, eu já disse a um dos meus colegas que o uso do
11celular nas escolas não tem motivos serios que sejão de urgências. Acho um
12desperdicio o uso do celular nas escolas.
A partir da apresentação do fato e da tese logo no início, temos um
argumento por sucessão ainda no primeiro parágrafo. Logo depois, temos no início
do segundo parágrafo um argumento de contradição, iniciado por por outro lado e
um de probabilidade, indicado pela conjunção condicional, se. No começo do
terceiro parágrafo, o aluno apresenta então o princípio argumentativo 0 e o 4,
partindo da tese do outro e da contra-argumentação para defender a sua maneira de
considerar o assunto proposto. Por fim, reafirmando sua tese, apresenta um
argumento de sucessão, quando julga o uso dos celulares nas escolas um
desperdício.
Partindo para o terceiro ano do ensino médio, não teremos uma diferença
considerável dos textos produzidos por esses alunos em relação ao uso dos
princípios argumentativos se comparados aos do sexto ano. Os resultados
mostraram que mesmo os alunos mais avançados do ensino básico não dominam
as posições de controle dialógico. Esses resultados, se comparados ao artigo que
serviu de fundamento para esse trabalho, mostram que tanto aqui quanto lá, a
diferença de domínio textual não é tão grande por alunos que terminam o ensino
médio ou estão entrando numa universidade se comparados com os alunos de
séries menos avançadas. Os alunos terão um maior repertório de palavras, de
construções, mas na maioria das vezes o texto ainda é superficial e não atinge o
essencial que a sequência argumentativa exige, ou seja, convencer o leitor do que
você diz. Uma das diferenças, se comparados às outras séries, é que esses textos
se utilizarão de mais argumentos quase lógicos, porém se destaca em primeiro lugar
um argumento baseado na estrutura do real, o argumento por sucessão, ou seja, o
que traz uma relação de causa e conseqüência. Logo depois, vemos o argumento
de probabilidade sendo também bastante utilizado por esses estudantes, seguido
pelo argumento exemplo. Mesmo que não tão significativo, uma parcela de mais ou
148
Cadernos da Semana de Letras UFPR Ano 2011 Volume II – Trabalhos Completos
menos 15% já se utiliza de argumentos que estão no início da tabela proposta por
Wachowicz (2010), como os de contradição, os de definição e os de comparação. A
seguir, o texto 12 do corpus do terceiro ano do ensino médio:
149
Cadernos da Semana de Letras UFPR Ano 2011 Volume II – Trabalhos Completos
4. Considerações finais
A partir da análise dos textos, pode-se perceber que os alunos do segundo
ano do ensino fundamental não têm domínio das posições de controle dialógico, e
mesmo que alguns alunos do sexto ano do ensino fundamental e até do terceiro ano
do ensino médio possuam esse domínio, o número ainda é pequeno, uma média de
30% e 35%, respectivamente. Porém, a utilização dos argumentos vai crescendo de
acordo com o que sugere o quadro das tipologias argumentativas já referido.
Enquanto os alunos menores utilizam-se de argumentos que retomam determinada
realidade para fundamentar seus argumentos, os maiores conseguem fazer uso de
argumentos ligados à relação lógica com o mundo. Isso não significa
necessariamente uma maior persuasão do leitor, mas muitas vezes, apenas um
texto um pouco mais rebuscado. Se comparados com o artigo de Leitão e Pinheiro
150
Cadernos da Semana de Letras UFPR Ano 2011 Volume II – Trabalhos Completos
5. Referências
151
Cadernos da Semana de Letras UFPR Ano 2011 Volume II – Trabalhos Completos
Apresentação
1
Pesquisa de mestrado, com o título provisório Qual é a significação do fenômeno da denegação
no campo da linguística?, sob orientação da Dra. Lígia Negri e do Dr. Eduardo Vicenzi, na linha de
pesquisa “Texto, discurso, pragmática: teorias e interfaces”, na área de concentração de Estudos
Linguísticos na UFPR, mediante bolsa CAPES.
2
Os conceitos e noções que aparecem nesta seção serão explicitados adiante.
152
Cadernos da Semana de Letras UFPR Ano 2011 Volume II – Trabalhos Completos
PORTNER (2005) afirma que não dá para fazer semântica ou pragmática sem
que, de alguma maneira, uma se apóie na outra. Em alguns momentos, não se pode
153
Cadernos da Semana de Letras UFPR Ano 2011 Volume II – Trabalhos Completos
3
No texto de PORTNER (2005), significado semântico e significado literal são expressões
sinônimas. Fazemos o mesmo neste trabalho.
4
Aqui, estamos tomando as expressões significado do falante e significado pragmático para
designar o mesmo fenômeno, embora possamos discutir essa decisão, no sentido de distinguir a
sutileza que pode separá-los conceitualmente. No entanto, essa é uma questão secundária para os
propósitos deste trabalho.
154
Cadernos da Semana de Letras UFPR Ano 2011 Volume II – Trabalhos Completos
GRÁFICO 1 — Significados
5
Trecho original e completo “Formal semanticists are in a way a misnamed breed, since they are all
constantly and deeply involved in various aspects of pragmatics” (PORTNER, 2005:176).
155
Cadernos da Semana de Letras UFPR Ano 2011 Volume II – Trabalhos Completos
6
Para mais sobre significado pragmático e significado do falante, tomados distintamente, ver
VICENZI (2010), DASCAL (2006).
7
Denegação é uma tradução corrente para Verneinung, designação alemã original. Também
encontramos traduzida como negativa ou negação na literatura psicanalítica em língua portuguesa.
8
Uma vez que a conceituação do inconsciente é ampla e que sua discussão não cabe aqui,
tomemos, segundo os propósitos deste trabalho, o inconsciente como um lugar (do sujeito
inconsciente) de processos, pensamentos e conteúdos mentais que estão fora da reflexão consciente
(sujeito consciente). Para mais detalhes, remetemos o leitor a FREUD (1900/2006, 1914/1996b) e
LACAN (2008, 1999), para citar uns dos textos mais importantes sobre o tema.
9
Para mais, v. VICENZI (2010), seção 3.3; THÁ (2007), primeira parte.
156
Cadernos da Semana de Letras UFPR Ano 2011 Volume II – Trabalhos Completos
10
Alertamos o leitor para o fato de que um evento de denegação pode ocorrer em qualquer momento
de fala, seja informal, seja formal. A situação do exemplo, portanto, poderia ser outra qualquer, e a
opção que fizemos do exemplo é para apenas aludir à linguagem ordinária, cotidiana.
11
Cf. LACAN ([s.d.]b:222-3, [s.d.]a:305).
157
Cadernos da Semana de Letras UFPR Ano 2011 Volume II – Trabalhos Completos
Para melhor entender esta atitude — aceitar o que antes era negado — antes
de prosseguirmos, peguemos um exemplo de denegação em VICENZI (2010:180),
em que um psicanalisado retratado em dado momento diz, sem qualquer cogitação
prévia desta ideia por parte do psicanalista: “Eu não estou com a consciência
pesada”. Frente a essa denegação, podemos supor que o analista, na direção do
tratamento, induza (não diretivamente) o analisando a pensar sobre esse momento,
trazendo a possibilidade de haver alguma aceitação inicial e intelectual do que antes
negava. Conforme HIPPOLITE (1998), se a afirmação também for afetiva, já não há
denegação, isto é, o sujeito acede ao que estava recalcado, inconsciente, e se deixa
de haver negação da negação.
LACAN (1998b) comenta a exposição de HYPPOLITE (1998), que nos mostra
que a denegação é um ato concreto envolvido na formação mostrada, isto é,
explícita no linguístico do processo de negação do que, na verdade, é uma
afirmação positiva no inconsciente. Esse conhecimento torna-se importante ao
campo dos estudos linguísticos na medida em que sinaliza a contradição, no
linguístico, entre o consciente e o inconsciente do falante, conhecimento este sem o
qual as inferências e as interpretações que incidem no discurso enquanto objeto de
estudo ficam francamente insuficientes em sua tarefa, o que não tem razão de ser,
haja vista a dimensão do sujeito estar, atualmente, numa ordem de considerações
de destaque e necessidade para o avanço da compreensão dos fenômenos gerais
da linguagem em uso.
Ainda reitera LACAN (1998b) que a afirmação primária (primária porque
capacidade que vem antes do seu contrário, da negação) se opõe à denegação, que
constitui como tal aquilo que é expulso do campo do consciente do sujeito.
Sintetizando o pensamento de FREUD e das colocações de HYPPOLITE no tocante
à denegação, LACAN12 diz que é somente pela negação da negação que o discurso
humano permite voltar à fala inconsciente.
Observando o aspecto formal do fenômeno da denegação, atrelado ao eu do
sujeito, LACAN (1998a:180-1) diz que este eu
12
Op. cit.
158
Cadernos da Semana de Letras UFPR Ano 2011 Volume II – Trabalhos Completos
Formal porque presente na fala do sujeito. “Não vá pensar que eu sou gay,
hein?!” pode ser outro bom exemplo. Contextualizando para melhor situá-lo, esse
enunciado (cujo enunciador, homem, convencionemos aqui como E1) pode ter saído
da seguinte situação: E1 diz: “Olá, Francisco. Senti saudades de você.” E2 replica,
com um jeito de desconfiado: “Ah é...” E1: “Não vá pensar que eu sou gay, hein?!”
Aqui, há elementos que apontam para um possível caso de denegação. Assumindo,
então, que seja, E1 poderia ser homossexual sem aceder a esse fato.
13
O linguista BENVENISTE o prova, a exemplo do entendimento a respeito da psicanálise que
evidenciava ter: Freud era levado “a refletir sobre o funcionamento da linguagem nas suas relações
com as estruturas infraconscientes do psiquismo e a perguntar-se se os conflitos que definem esse
psiquismo não teriam imprimido a sua marca nas próprias formas da linguagem”. (BENVENISTE,
2005:85).
159
Cadernos da Semana de Letras UFPR Ano 2011 Volume II – Trabalhos Completos
14
Isso faz parte dos componentes visados por nossa pesquisa, que já enunciamos (v.n.1).
15
Evocamos esses tipos de negação consoante o que dissemos na comunicação individual na
Semana de Letras da UFPR no dia 23 de maio deste ano (2011), i.e., “embora tenham motivações de
aparecimento distintas, ajudarão a armar nosso olhar”, muito pela razão de se mostrarem como
fenômenos linguísticos mais aproximados da denegação.
16
Cf. DUCROT (1981, 1987).
160
Cadernos da Semana de Letras UFPR Ano 2011 Volume II – Trabalhos Completos
17
V.n.1.
18
À parte as considerações que tocam o não-verbal da interação conversacional, digno de nota é o
fato de que, quando o falante percebe que o interlocutor não reconhece sua ironia, ele o faz notar
dizendo, por exemplo, “Estou brincando...”, ou expressão variante que o valha, a menos que haja um
terceiro sujeito visado para ser o único a entender a ironia, pressupondo que ironia somente para o
que a produz seja outra coisa que não ironia. Além disso, há efetiva ironia quando o enunciado é
produzido pelo falante consciente desse propósito irônico desde o início, o que prototipicamente
afasta, portanto, o equívoco, a inocência etc.
19
Esse é um caso de negação descritiva, desde que o entendamos como não recuperando um
enunciado correspondente positivo para negá-lo, pois, assim, seria um caso de negação polêmica.
Para um caso de negação metalinguística, o enunciado teria de ser, p.ex., “Ele não é bom, ele é
ótimo”.
20
Semelhantemente aos exemplos de denegação que FREUD (1925/1996a) nos oferece, nesse se
faz uma negação que não se motiva por outra coisa senão pela vontade inconsciente que o
consciente rejeita. Se assim não fosse, o respondente diria “França”, por exemplo, sem, portanto, a
necessidade de negar coisa alguma em seu discurso.
161
Cadernos da Semana de Letras UFPR Ano 2011 Volume II – Trabalhos Completos
falará de algo, mas que será revelado sutilmente; a lítotes é uma afirmação
mediante a negação do contrário; e o acismo é uma recusa dissimulada.
No particular da ironia e da denegação, para refinarmos a reflexão que lhes é
pertinente, observamos que a denegação diz respeito à negação no enunciado, ao
passo que, ao afirmar na enunciação (como a ironia), afirma o recalcado (o conteúdo
no inconsciente), captável, frequentemente, como já sabemos, considerando-se,
recuperando-se a enunciação. Isso é um passo na compreensão de fatos de
linguagem que (in)diretamente se fundam na interseção consciente-inconsciente.
Considerações finais
Felizmente, vislumbramos que ainda há muito a ser feito e que podemos fazer
para contribuir aos estudos linguísticos acerca da denegação, dialogando com
outros campos de saber para isso. Áreas do conhecimento que veem a importância
de se considerar o falante nos fatos de linguagem e que o têm como objeto de
estudo quase sempre nos ensejam avanços nos estudos da linguagem. Para prová-
lo, estão aí a teoria da polidez, a teoria da relevância, as teorias da enunciação, a
linguística da enunciação, a análise de discurso crítica, a análise de discurso de
linha francesa e tantas outras. No tocante ao “servir-se de”, como sabemos, ciências
formais também se põem em diálogo com outros saberes, tal como as semânticas
formais corroboram, uma vez que se servem de sistemas lógicos e de matemática,
além de contar com influências pragmáticas, como vimos brevemente aqui na seção
“Significado semântico e significado pragmático”. Vemos que, com o espírito de
“servir-se de”, muito se pode fazer aos estudos linguísticos, especialmente àqueles
que procuram descrever e explicar os fatos de linguagem, como eles se dão, suas
motivações e seus efeitos, francamente impactando, pois, os conhecimentos que se
referem à significação do que se diz.
Referências bibliográficas
162
Cadernos da Semana de Letras UFPR Ano 2011 Volume II – Trabalhos Completos
_____. “O papel da negação na linguagem comum”. In: Provar e dizer. São Paulo:
Global, 1981.
_____. “A psicologia dos processos oníricos”. In: A interpretação dos sonhos (II) e
sobre os sonhos. Ed. Standard Brasileira. Vol. V. Rio de Janeiro: Imago,
1900/2006.
164
Cadernos da Semana de Letras UFPR Ano 2011 Volume II – Trabalhos Completos
Introdução
Partindo-se da ideia de que a leitura não é um mero processo de
compreensão textual, mas uma atividade que requer a mobilização de uma série de
mecanismos para a produção de sentido, o objetivo deste trabalho é apresentar
algumas atividades e resultados do PIBID1 – subprojeto Letras/ Português que tem
como foco o trabalho com a leitura na sala de aula.
Esse projeto veio ajudar a complementar a formação dos estudantes da área
de licenciatura. Assim, os alunos bolsistas agem diretamente nas salas de aula nas
escolas públicas e a função principal dessa atuação é resgatar na escola a
valorização de um aspecto essencial do conhecimento como atividade funcional e
crítica que é a leitura. Sabe-se que este aspecto é crucial na formação dos alunos,
mas muitas vezes não tem merecido a devida atenção nas aulas de língua. Um dos
focos principais do PIBID é, portanto, trabalhar a leitura de forma com que a mesma
seja prazerosa ao aluno, por isso há um esforço para a escolha de textos cujo
conteúdo esteja no horizonte de consideração discente. Para isso também há uma
priorização no trabalho com uma variedade de gêneros, fazendo com que o aluno
entre em contato com a diversidade da produção escrita e oral na sociedade.
Esse conhecimento da diversidade dos gêneros é a questão chave utilizada
na preparação das aulas que os bolsistas ministram. A possibilidade de contato com
as variadas esferas de comunicação existentes leva os alunos das escolas a
desenvolver suas próprias capacidades comunicativas, o que é extremamente
importante para a adequada atuação em sociedade.
De forma a embasar e reforçar a importância desses aspectos, a primeira
atividade a ser apresentada trata justamente do desenvolvimento da chamada
1
O PIBID é um projeto fruto da parceria entre a Universidade Federal do Paraná (UFPR), a Coordenação de
Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (CAPES) e a Secretaria de Estado da Educação do Paraná (SEED).
165
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Cadernos da Semana de Letras UFPR Ano 2011 Volume II – Trabalhos Completos
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Cadernos da Semana de Letras UFPR Ano 2011 Volume II – Trabalhos Completos
consequente construção de sentido. Por isso, a atividade proposta foi a de pedir aos
alunos que eles escrevessem um texto comentando como o conto quebra a visão
geral que as pessoas têm da violência e qual era a opinião deles sobre essa
conclusão, a que eles tinham chegado inicialmente, mesmo que ela já tivesse sido
exposta oralmente por eles.
O que se pretendeu verificar com tal questão foi como os alunos relacionam
um conhecimento de mundo já tido como verdade social (a violência está na
pobreza) com o fato apresentado no texto (a violência na classe social alta) e
também a própria questão do tema tratado de forma diferente pelo autor.
Como esta foi a primeira atividade feita com os alunos, o foco do processo
ficou por parte da leitura/ discussão de elementos do texto. Portanto, a redação
realizada ficou sendo mais como um motivador e não foi pretendido desconsiderá-la,
pelo contrário. Ela serviu como processo de verificação da compreensão do conto e
das discussões feitas pelos estudantes.
170
Cadernos da Semana de Letras UFPR Ano 2011 Volume II – Trabalhos Completos
Resultados
As atividades descritas foram aplicadas para um público específico – alunos
de Ensino de Jovens e Adultos (EJA) – o que demandou um trabalho diferenciado
em sala de aula. Embora houvesse em uma mesma sala alunos de diferentes idades
e diferentes realidades sociais2, as leituras foram realizadas de forma bastante
eficiente. Os alunos foram receptivos ao projeto e com o passar do tempo foram
participando mais das atividades.
Como já foi mencionado, a leitura não é um processo que pode ser ensinado,
por isso é difícil a identificação imediata dos resultados desse processo. É
complicado chegar ao final de um projeto como esse e afirmar com dados que os
alunos se tornaram leitores eficientes. O que realmente o projeto proporciona é
“plantar a semente” do gosto pela leitura nos alunos e também oferecer instrumentos
necessários à compreensão eficaz. O resultado disso pôde sim ser reconhecido,
pois os alunos passaram a participar das aulas, mostrando que estavam adquirindo
a tão importante “familiaridade” com a leitura.
Considerações finais
2
Os dados foram obtidos através de um questionário socioeconômico aplicado aos estudantes.
171
Cadernos da Semana de Letras UFPR Ano 2011 Volume II – Trabalhos Completos
Referências bibliográficas
172
Cadernos da Semana de Letras UFPR Ano 2011 Volume II – Trabalhos Completos
KOCH, I. G.V.; ELIAS, V.M. Ler e Compreender os sentidos do texto. São Paulo:
Contexto, 2009.
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1
Graduanda em Letras – Português e Alemão (Bacharelado em Estudos da Tradução) pela UFPR.
2
Graduanda em Letras – Português e Inglês (Bacharelado em Estudos Literários) pela UFPR.
3
Fragmento de “Boris Godunóv”, tragédia de Púchkin.
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Cadernos da Semana de Letras UFPR Ano 2011 Volume II – Trabalhos Completos
Chega!
De vergonha
para mim
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Patrões,
Para o ô,
Para o oco
Patrões
etc.
Pára, barbudo!
Repara:
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Cadernos da Semana de Letras UFPR Ano 2011 Volume II – Trabalhos Completos
Rázin!
etc.
Estrofes estacam
(...)
Ei-la
a cavalaria do sarcasmo
minha arma favorita
alerta para a luta
Rimas em riste,
sofreando o entusiasmo,
eriça
suas lanças agudas.
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Cadernos da Semana de Letras UFPR Ano 2011 Volume II – Trabalhos Completos
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operária (“O inimigo da colossal classe obreira, é também meu inimigo figadal”) e
defende o socialismo, fruto da luta política e militar, como o ponto culminante da
história (“Partilhemos a glória, – entre nós todos, – o comum monumento: o
socialismo, forjado na refrega e no fogo”).
A sua concepção poética está, portanto, fortemente atrelada à sua concepção
política. Nesse sentido, veja-se o seguinte trecho do ensaio “Como fazer versos”:
Nos últimos tempos, aqueles que estão irritados com meu trabalho
literário e jornalístico dizem, com muita freqüência, que eu
simplesmente esqueci como se escrevem versos, e que os pósteros
vão dar-me uma coça por isto. Um comunista me disse: “Que importa
a posteridade! Você vai responder perante ela, mas meu caso é
muito pior: tenho de responder perante o comitê de bairro. E isto é
bem mais difícil.” Sou uma pessoa decidida e quero eu mesmo
conversar com os pósteros, sem esperar o que vão contar-lhe no
futuro meus críticos. Por isto, eu me dirijo diretamente à posteridade,
no meu poema “A Plenos Pulmões” (MAIAKÓVSKI 2008: 25).
O poema era para ser a introdução a uma obra mais vasta, que seria
dedicada ao Plano Quinquenal, daí a epígrafe que se segue ao título, “Primeira
Introdução ao Poema”. De toda forma, “A Plenos Pulmões” se constitui como um
monumento independente, cuja força sobrevive ao momento histórico e político em
180
Cadernos da Semana de Letras UFPR Ano 2011 Volume II – Trabalhos Completos
que foi concebido. O trabalho com a linguagem, que Haroldo de Campos soube
recriar de modo magistral, passa tanto pelo nível fonético, sintático (a alternância
entre enunciados diretos, de tom imperativo, como “Professor, jogue fora as lentes-
bicicletas!”, e frases de ordem sintaticamente invertida, como “Ao ouvido não diz
blandícias minha voz”, aproximam o poema da oralidade, seja da fala espontânea,
seja do discurso “inspirado”), como pelo nível semântico (a criação de imagens
bélicas associadas à atividade poética, por exemplo). O trabalho exaustivo e
cuidadoso, em todos os níveis da linguagem, faz com que o poema adquira luz
própria.
A análise dos aspectos formais que procuramos desenvolver acima encontra
lastro nas concepções políticas e estéticas que Maiakóvski explicita em seus textos
teóricos, e que os futuristas de um modo geral defendem. Não esqueçamos que,
para Maiakóvski, a arte deve sempre estar associada a algum “encargo social”, isto
é, o trabalho poético deve partir da existência, na sociedade, de algum problema
cuja única solução concebível seja uma obra poética. A partir disso, do encargo
social, juntamente com a percepção da vontade da classe à qual o poeta pertence, é
que se constitui o objetivo a alcançar na obra poética em questão, o qual, por sua
vez, deverá orientar todos os recursos poéticos empregados.5 É neste sentido que
MAIAKÓVSKI (apud SCHNAIDERMAN 1971: 175) afirma, humoradamente:
5
Tais considerações, acerca das regras gerais para o início do trabalho poético, estão
detalhadamente desenvolvidas em “Como fazer versos”.
6
Sigla de Náutchaia Organizátzia Trudá (Organização Científica do Trabalho), talvez uma espécie de
Inmetro da URSS.
181
Cadernos da Semana de Letras UFPR Ano 2011 Volume II – Trabalhos Completos
Diante disso, busca apontar a contribuição de sua obra para a construção dessa
nova sociedade: “Por vós, geração de saudáveis, – um poeta, com a língua dos
cartazes, lambeu os escarros da tísis.”7
Tendo em vista a ideia do encargo social, percebemos melhor a função das
metáforas bélicas e militares: Maiakóvski emprega tais imagens para falar de sua
própria obra. Em: “Desdobro minhas páginas – tropas em parada, e passo em
revista o front das palavras”, o poeta compara as páginas de suas obras a tropas
militares, e a organização do poema à organização de um exército. E a mesma
imagem do exército pronto para o assalto está presente em: “Estrofes estacam
chumbo-severas, prontas para o triunfo ou para a morte”.
Na sequência: “Poemas-canhões, rígida coorte, apontando as maiúsculas
abertas”, temos uma imagem bastante rica, que a tradução não consegue recriar
inteiramente: no verso original, os títulos dos poemas é que são comparados às
bocas dos canhões, pois estão apontados na linha de frente, tal como os canhões
num campo de batalha. Na tradução essa imagem é recriada através da expressão
“maiúsculas abertas”, uma referência aos títulos que são escritos em letras
maiúsculas.
“Ei-la, a cavalaria do sarcasmo, minha arma favorita, alerta para a luta.” Aqui
o poeta toma uma de suas características marcantes, o sarcasmo, associa-a a uma
organização militar, a cavalaria, e compara-a a uma arma de guerra. O termo
sarcasmo, utilizado pela tradução, se afasta um pouco do termo original, vertido
para o inglês como witticisms, uma espécie de ironia inteligente e sagaz, cujo
sentido está mais próximo da palavra em russo.
“Rimas em riste, sofreando o entusiasmo, eriça suas lanças agudas.”
Novamente a atividade poética é associada à atividade bélica: as rimas são como
lanças pontudas, armas cujo intuito é ferir.
“E todo este exército aguerrido, vinte anos de combates, não batido, eu vos
dôo, proletários do planeta, cada folha até a última letra.” Aqui há uma referência aos
vintes anos da carreira de Maiakóvski como poeta, carreira que ele oferece,
materializada em seus livros (“cada folha, até a última letra”), à classe proletária, ou
7
Devido ao limite de espaço que o artigo deve observar, abrimos mão da disposição espacial
proposta por Maiakóvski dos versos que a seguir comentamos. Tal disposição, contudo, pode ser
observada no trecho do poema que vem em anexo, ao final.
182
Cadernos da Semana de Letras UFPR Ano 2011 Volume II – Trabalhos Completos
8
“A arte deve ligar-se estreitamente com a vida (como função intensiva desta). Fundir-se com ela ou
perecer.” MAIAKÓVSKI. Resumo da Palestra “Abaixo a arte, viva a vida!”. Apud SCHNAIDERMAN
1971: 114.
183
Cadernos da Semana de Letras UFPR Ano 2011 Volume II – Trabalhos Completos
Referências bibliográficas
PEIXOTO, Fernando. Maiakóvski: vida e obra. Rio de Janeiro: José Álvaro Editor,
s.d.
9
TROTSKI, Apud PEIXOTO, Fernando. Maiakóvski: vida e obra. Rio de Janeiro: José Álvaro Editor,
s.d., p. 14.
184
Cadernos da Semana de Letras UFPR Ano 2011 Volume II – Trabalhos Completos
Anexo
185
Cadernos da Semana de Letras UFPR Ano 2011 Volume II – Trabalhos Completos
Lingua e Cultura
A globalização facilitou o acesso entre as culturas, transformando o mundo
de vez em uma “aldeia global”, fazendo com que a expressão “o mundo ficou
pequeno”, se tornasse uma realidade. Sabemos o que acontece do outro lado do
mundo numa velocidade espantosa e estamos muito mais expostos a compartilhar
modos de vida diferentes do nosso. Nas palavras de K. Rajagopalan (2003) estamos
vivendo um tempo cujas principais características incluem migrações de grande
número de pessoas em escala global e uma miscigenação de etnias e culturas
jamais vista na história. Por isso, há necessidade urgente de se repensar as
questões relacionadas aos vínculos entre língua, pensamento e cultura. Para
Rajagopalan as mudanças impostas pelo cruzamento cultural são inevitáveis e, nos
obrigam como lingüistas, a tentar repensar as questões sobre língua, cultura e
pensamento buscando novos caminhos ou interfaces para respondê-las.
alguns aspectos que vamos destacar no decorrer deste trabalho que agem nessa
identificação, além da cultura. A importância desses fatores é que eles nos
identificam enquanto comunidade linguística e cultural, e também na maneira como
nos comportamos socialmente. Compartilhamos com outras culturas uma herança
lingüística lusófona, mas apesar da mesma herança lingüística, somos diferentes por
diversos fatores: nossa trajetória histórica, nossos hábitos, nossos valores, os
processos migratórios que favoreceram a mistura com outros povos, enfim, somos
resultado de tudo isso, um “caldo” (Meyer,1999) que nos distingue como brasileiros
e não outro povo qualquer. E nisso, a língua, a cultura e o pensamento têm um
papel fundamental, principalmente, na forma como usamos a Língua Portuguesa no
Brasil.
Quando Hall (1988) afirma que “cultura é comunicação”, demonstra que entre
cultura e língua existe uma relação muito estreita. Embora a língua seja considerada
como o maior meio de comunicação, para o autor, cerca de 80% da informação que
recebemos ocorreria de modo não-verbal, além de quase sempre ocorrer fora da
nossa percepção. Para Hall, cultura é um sistema de criar, enviar, emitir, armazenar
e processar informações.
Nesse sentido, as comunicações culturais são muito mais profundas e mais
complexas do que simplesmente a forma correta de se falar ou escrever uma
mensagem:
Comunicações culturais são mais profundas e complexas do que as
mensagens faladas ou escritas. A essência da comunicação inter-
cultural tem mais a ver com a liberação de respostas do que com o
envio de mensagens.É muito mais importante liberar a resposta certa
187
Cadernos da Semana de Letras UFPR Ano 2011 Volume II – Trabalhos Completos
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192
Cadernos da Semana de Letras UFPR Ano 2011 Volume II – Trabalhos Completos
Referências bibliográficas
HALL, E.T. "The power of hidden differences". In: BENNETT, M. J. (Ed.). Basic
concepts of intercultural communication – selected readings. Yarmouth: Intercultural
Press, p. 53-67, 1998.
HOLANDA, S.B. "O homem cordial" In: Raízes do Brasil, 26a. ed. São Paulo:
Companhia das Letras, 1982. Pp. 139-151
194
Cadernos da Semana de Letras UFPR Ano 2011 Volume II – Trabalhos Completos
Sobre os advérbios –mente, Ilari et alii (1990), afirma que sua colocação
tende para a posição periférica na cláusula, com uma forte predominância da
posição inicial sobre a final. Também segundo Ilari (2007), a posição habitual
do advérbio de negação por excelência é a imediatamente pré-verbal; os
intensificadores os encontramos, de modo absolutamente predominante,
imediatamente à direita do verbo, assim como nos qualitativos, que, na maioria
dos casos, apresentam-se pospostos ao elemento modificado.
1
Entenda-se como advérbio não tão somente o advérbio, mas também o adjunto adverbial ou
equivalentes.
196
Cadernos da Semana de Letras UFPR Ano 2011 Volume II – Trabalhos Completos
197
Cadernos da Semana de Letras UFPR Ano 2011 Volume II – Trabalhos Completos
16 31
6 508 1043 31 ago
out maio
23
7 511 21 jun 1049 12 out
out
30
8 517 02 ago 1051 26 out
out
20
11 522 06 set 1055 23 nov
nov
27
12 527 11 out 1058 14 dez
nov
1998 2008
EDIÇÃO DATA EDIÇÃO DATA
1528 07 jan 2043 16 jan
1532 04 fev 2046 06 fev
1536 04 mar 2050 05 mar
1541 08 abril 2054 02 abril
1545 06 maio 2059 07 maio
1549 03 jun 2064 11 jun
1554 08 jul 2069 16 jul
1558 05 ago 2074 20 ago
1563 09 set 2081 08 out
1567 07 out 2091 17 dez
Tabela 2: Edições da revista utilziadas na pesquisa (continuação)
198
Cadernos da Semana de Letras UFPR Ano 2011 Volume II – Trabalhos Completos
1. Demais advérbios:
a) Antes do termo modificado;
b) Depois do termo modificado.
Resultados
199
Cadernos da Semana de Letras UFPR Ano 2011 Volume II – Trabalhos Completos
200
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201
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16
14
12 Advérbios terminados
10 em - mente, antes do
termo modificado
8
Advérbios terminados
6 em - mente, depois do
4 termo modificado
2
0
1968 1978 1988 1998 2008
Gráfico 1: Resultados
202
Cadernos da Semana de Letras UFPR Ano 2011 Volume II – Trabalhos Completos
500
450
400
350 Demais advérbios, antes
300 do termo modificado
250
Demais advérbios,
200 depois do termo
150 modificado
100
50
0
1968 1978 1988 1998 2008
Gráfico 2: Resultados
CONCLUSÕES
203
Cadernos da Semana de Letras UFPR Ano 2011 Volume II – Trabalhos Completos
Referências
ILARI, R. et alii. 1996. Considerações sobre a posição dos advérbios. In: CASTILHO,
Ataliba Teixeira de. Gramática do português falado: a ordem. Vol. I. São Paulo:
Editora da UNICAMP/ FAPESP.
204
Cadernos da Semana de Letras UFPR Ano 2011 Volume II – Trabalhos Completos
ser moderno por inteiro” (BERMAN 2007: 25-26). Nesta época, é reforçado o
interesse na investigação da individualidade do ponto de vista subjetivo. O homem
se encontra numa dicotomia entre a negação e a vontade de viver em meio à
experiência moderna: cidades cada vez maiores, fábricas, ferrovias, jornais,
telégrafos, enfim, um mundo em crescente expansão. Berman utiliza dois
pensadores para analisar este período, Marx e Nietzsche. Eles são aparentemente
opostos, já que o primeiro se interessa diretamente pela relação entre o indivíduo e
a sociedade e o segundo está preocupado com o fortalecimento do indivíduo como
tal, deslocando-o, portanto, da sociedade. Porém, para Berman, ambos descrevem
de forma semelhante as contradições do ambiente em que vivem, mas querem
interagir com este ambiente, pois sabem que ele propiciará grandes mudanças.
Pela divisão de Berman, o século XX é a terceira fase da Modernidade. Nele,
“o processo de modernização se expande a ponto de abarcar virtualmente o mundo
todo”, mas, por outro lado, “à medida que se expande, o público moderno se
multiplica numa multidão de fragmentos, que falam linguagens
incomensuravelmente confidenciais”. As “visões abertas da vida moderna” do século
XIX foram desbancadas por “visões fechadas: Isto e Aquilo substituídos por Isto ou
aquilo” (BERMAN 2007: 26). Há dois tipos de homens que vivem nesta época, os
entusiastas e os negadores da vida moderna. Berman afirma que, mesmo com o
crescimento do pensamento moderno, o interesse de pensar a Modernidade
regrediu.
Além das ideias de Berman sobre a Modernidade, é importante considerar a
noção de sujeito moderno, já que o foco principal desta pesquisa é a maneira como
os modernistas portugueses o representaram, relacionando estas representações
com as raízes deste sujeito e com a forma com que a Modernidade literária
portuguesa, a partir do século XVI, representou este sujeito que faz um exame de si
a partir do outro.
O início da noção de sujeito moderno é atribuído geralmente ao pai da
filosofia moderna, René DESCARTES, importante filósofo do século XVII. Em seu
Discurso do método, de 1637, Descartes coloca tudo em dúvida, mesmo as coisas
mais evidentes, pois segundo ele há possibilidade de engano. Porém, depois de ter
lançado tudo à dúvida, ele se questiona sobre quem duvida e conclui:
Enquanto queria pensar que tudo era falso, era necessário que eu,
que o pensava, fosse alguma coisa. E, notando que esta verdade eu
207
Cadernos da Semana de Letras UFPR Ano 2011 Volume II – Trabalhos Completos
penso, logo existo era tão firme e certa que não seriam capazes de
abalá-la nem as mais extravagantes suposições dos cépticos, julguei
que poderia aceitá-la sem receio como o princípio de filosofia que eu
procurava. (DESCARTES apud MONDIN 1981, v. 2: 69)
208
Cadernos da Semana de Letras UFPR Ano 2011 Volume II – Trabalhos Completos
entre sujeito e predicado nos juízos, [...] que é atividade sintética ou judicante,
espontaneidade cognitiva, portanto consciência, autoconsciência” (ABBAGNANO
2003: 930). O sujeito kantiano tem a possibilidade empírica de conhecer a si mesmo,
de praticar sua liberdade e autonomia. É o encontro entre a subjetividade e a
objetividade da razão.
Ao longo do século XIX, outros pensadores também contribuíram para
enriquecer e problematizar a ideia de sujeito. Soren KIERKEGAARD, por exemplo,
traz a primazia da subjetividade, ao dar mais importância à verdade subjetiva do que
à objetiva. Indo além da visão filosófica, ele aborda a psicologia do homem,
afirmando a sua liberdade de escolha como constitutiva do sujeito. Além disso,
rejeita a ideia de um indivíduo como ser, o que existe é um estado de constante vir-
a-ser, dado pelo uso que faz desta liberdade. Segundo KIERKEGAARD (apud
MONDIN 1981, v. 3: 69), para o sujeito,
209
Cadernos da Semana de Letras UFPR Ano 2011 Volume II – Trabalhos Completos
conclui que o homem não governa sua subjetividade, seu psiquismo inconsciente é
que determina o consciente.
Estes são apenas alguns dos pensadores que analisaram a noção de sujeito
moderno, e o mais significativo de todas estas ideias é a visão que o homem passou
a ter de si mesmo. Desde a virada para o século XX, ele se vê, consciente ou
inconscientemente, como um sujeito singular e dividido em instâncias antagônicas,
um sujeito múltiplo em constante transformação. Porém, é importante relembrar que,
antes de qualquer estudo filosófico, é no interior de textos literários que há a
representação de sentimentos modernos que estão se estabelecendo.
Os modernistas portugueses da Geração de Orpheu, Almada NEGREIROS,
Mário de SÁ-CARNEIRO e Fernando PESSOA, estão entre os escritores de todas
as épocas e lugares que mais se preocuparam com a questão do sujeito. Os três
apresentaram visões diferentes sobre esta questão, mas ela é um dos principais
focos nas obras de todos eles. Pessoa fala de um “eu multiplicado”, que contém
dentro de si multidões. Em “Consciência da pluralidade”, ele declara: “Sinto-me
múltiplo. Sou como um quarto com inúmeros espelhos fantásticos que torcem para
reflexões falsas uma única anterior realidade que não está em nenhuma e está em
todas” (PESSOA 1974: 81). Sá-Carneiro trabalha com um “eu dividido”, que não
consegue chegar a um equilíbrio entre o eu e o outro que também está dentro de si.
Esta divisão sempre o inquietou, como relata em carta a Pessoa, em 3 de fevereiro
de 1913:
210
Cadernos da Semana de Letras UFPR Ano 2011 Volume II – Trabalhos Completos
[o] próprio isolamento, [a] própria solidão. Seja qual for o século em
que fale o génio, todos os génios coincidem no mesmo. E quanto
mais a Terra vai se enchendo de gente, quanto mais a Humanidade
se multiplica, maior se vai tornando ainda a solidão de cada um dos
seus indivíduos. (NEGREIROS 1997: 761)
211
Cadernos da Semana de Letras UFPR Ano 2011 Volume II – Trabalhos Completos
O indivíduo está tão longe de si mesmo que para chegar até si tem
primeiro que dar a sua volta ao mundo, completa, até o ponto de
partida. E todo aquele que queira encontrar dentro de si mesmo a
sua própria personalidade, ficará romanticamente sozinho no meio
das multidões, na mais terrível solidão de todos os tempos, uma
solidão onde o próprio deserto está cheio de arranha-céus e as ruas
inundadas de gente! O indivíduo nunca pertenceu a si mesmo.
Pertence em absoluto à sua colectividade [...] É um jogo simultâneo
da colectividade para os seus indivíduos e de cada indivíduo para a
sua colectividade.
Esta relação entre o sujeito e as outras pessoas é indispensável para que ele
se compreenda em sua pluralidade. Ao viajar, é mais fácil o contato do indivíduo
com outros seres humanos que não seguem os mesmos valores e tradições, já que
“a viagem expõe ao desconhecido, à diferença (em vez da identidade) e à
incerteza”, ela leva “à descoberta do Outro” (GIL; MACEDO 1998: 18 e 198). Este
outro faz com que o sujeito moderno coloque seu próprio eu em perspectiva e o
repense. No texto “Modernismo”, de 1926, NEGREIROS (1997: 736) diz que foi
Portugal que iniciou o mundo moderno com suas descobertas marítimas do século
XV. Esta expansão ultramarina realmente fez com que o mundo fosse
redimensionado, não apenas em seu território, mas também em relação aos seus
valores: os portugueses, e demais europeus, saíram da serenidade do conhecido ao
se depararam com culturas muito diferentes da sua.
Os escritores da Geração de Orpheu, como dito anteriormente, têm no
autoconhecimento uma das temáticas mais relevantes para suas obras. Este “novo”
sujeito moderno representado por eles – e que é o foco principal desta pesquisa –
tem raízes numa tradição de representação do sujeito moderno pela literatura
portuguesa, pois, tudo o que é novo se baseia no que o antecedeu, como afirma
PESSOA (1974: 147), no texto “Considerações sobre o novo”: “a novidade, em si
mesma, nada significa, se não houver nela uma relação com o que a precedeu”.
Para Berman, é impossível pensar a Modernidade sem o esteio ininterrupto
da tradição, e, segundo Negreiros, primeiro o homem deve conhecer todo o mundo,
o seu continente e o seu país, para então conseguir chegar ao autoconhecimento.
Esta pesquisa propõe relacionar essas duas ideias. Não é possível pensar no sujeito
moderno representado pelos modernistas da Geração de Orpheu sem considerar a
tradição moderna de representação deste sujeito pela literatura portuguesa. Da
mesma forma, é impossível representar o interior deste sujeito moderno
multifacetado sem que antes tenha havido um percurso de contato entre ele e o
212
Cadernos da Semana de Letras UFPR Ano 2011 Volume II – Trabalhos Completos
mundo, o seu continente e o seu país. A experiência da viagem colabora para que o
sujeito conheça pessoas diferentes, que o fazem analisar sua própria
individualidade. A literatura portuguesa da Modernidade, que utiliza diversas vezes a
temática da viagem, segue basicamente o caminho sugerido por Negreiros: o
mundo, o continente, o país e o próprio sujeito.
Para pensar a Modernidade do século XX, Berman se volta ao passado, pois
acredita que há uma tradição desta Modernidade, que teve início no século XVI.
Este é um período em que Portugal se encontrava em plena expansão ultramarina.
Durante todo o século XVI e ainda no XVII, multiplicaram-se descrições e relatos
dessas viagens. E a literatura se apropriou deles e criou obras ficcionais que
representam como este encontro com o até então desconhecido afetou o indivíduo
português e os valores que ele seguia. Há inúmeros textos de ficção deste período
que tratam de viagens: além do célebre Os Lusíadas (1572), de Luís de Camões,
convém citar as experiências, ficcionais ou não, de Fernão Mendes Pinto pelo
oriente, apresentadas em Peregrinação (1614) e os diversos relatos de naufrágios
reunidos, já no século XVIII, na História trágico-marítima (1735-1736). Percebe-se
que, nesta fase, o sujeito moderno português entra em contato com o mundo, que
acabara de ampliar suas fronteiras. A dispersão geográfica permitiu a dispersão da
individualidade.
A segunda fase da Modernidade proposta por Berman tem início com a
Revolução Francesa. Esta revolução não afetou somente a França mas toda a
Europa, assim como ocorreu, logo em seguida, com a tomada do poder francês por
Napoleão Bonaparte. Em Portugal, esses acontecimentos acarretaram a vinda da
família real para o Brasil e a independência econômica desta que era a principal
colônia, trazendo inúmeras mudanças para a sociedade portuguesa e seus
indivíduos. Todo o século XIX, período pelo qual se estende a segunda fase da
Modernidade, foi uma época de profundas transformações em todas as áreas, sejam
elas tecnológica, científica e mesmo artística. Na literatura, principalmente depois do
advento do Romantismo e da importância adquirida pelo romance, diversas
alterações se apresentaram. Portugal voltou-se novamente para si próprio e para a
Europa, lugar que estava sendo rapidamente remodelado, principalmente no que diz
respeito às grandes cidades. Esta mudança de foco afetou diretamente a produção
literária. Livros como Viagens na minha terra (1846), de Almeida Garrett, A queda
213
Cadernos da Semana de Letras UFPR Ano 2011 Volume II – Trabalhos Completos
dum anjo (1866), de Camilo Castelo Branco, A morgadinha dos canaviais (1868), de
Júlio Dinis, os livros de viagens de Ramalho Ortigão e A cidade e as serras (1901)
de Eça de Queirós são apenas alguns exemplos de como a temática da viagem
continuou presente na literatura, mas de forma diferente do que no período anterior.
Neste momento, as viagens representadas, que eram ultramarinas, passaram a ser
no continente e mesmo dentro do próprio país.
O século XX é, para Berman, a terceira fase da Modernidade. Como esta
pesquisa terá a primeira geração modernista portuguesa como foco e ponto de
chagada, não será considerado todo o século XX, apenas suas primeiras décadas.
O autoconhecimento passa a ser a principal temática, portanto as viagens, que eram
externas, passam a ocorrer dentro do próprio sujeito. Porém, essas viagens externas
– ou mesmo passeios em metrópoles, lugares em que se concentram uma grande
diversidade de culturas – continuam colaborando para que o indivíduo e sua
pluralidade sejam colocados em perspectiva. Pode-se citar, como exemplo, o conto
“Eu-próprio o outro”, de Sá-Carneiro. Nele, é notável a necessidade do narrador de
sair de sua terra e o quanto isso o afeta. No início, em Lisboa, ele se sente
deslocado, na sociedade e consigo mesmo – “É lamentável como me erro
continuamente. Em mim e entre os mais” (SÁ-CARNEIRO 1998: 147) –, além de
demonstrar insatisfação com relação aos outros, a quem chama de “miseráveis”. Já
em Roma, depois de seis meses viajando, a melhor forma de “cerrar os olhos” e fugir
de si mesmo, o eu se mostra menos angustiado, já que consegue olhar para fora de
si mesmo. Em Paris, ele passa a se ver com admiração – “Ah! Se eu fosse quem
sou... Que triunfo!” (SÁ-CARNEIRO 1998: 148) – e se sente plural.
Esta pesquisa não pretende fazer um levantamento completo e exaustivo de
textos literários portugueses, do século XVI ao início do século XX, que apresentam
o sujeito moderno fazendo um exame de si próprio a partir de experiências de
viagens. Pretende sim elencar e analisar textos que constituam uma tradição de
representação do sujeito moderno pela literatura portuguesa de ficção, e que
formam a base para os modernistas da Geração de Orpheu, desde relatos de
viagens ultramarinas até experiências de viagens no interior do próprio indivíduo.
Referências bibliográficas
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Cadernos da Semana de Letras UFPR Ano 2011 Volume II – Trabalhos Completos
SÁ-CARNEIRO, Mário de. Eu-próprio o outro. Céu em fogo. Lisboa: Assírio e Alvim,
1998.
215
Cadernos da Semana de Letras UFPR Ano 2011 Volume II – Trabalhos Completos
Entre fins dos anos 80 e começo dos anos 90 o referente social da narrativa
cubana estava voltado quase que exclusivamente para a realidade imediata, a
realidade sociocultural cubana com seus emblemas e tipologias direcionadas para o
seu receptor natural e, de certo modo, seu único receptor: o leitor cubano e alguns
poucos leitores acadêmicos estrangeiros. No início dos anos 90 ocorre a
desintegração das sociedades socialistas européias e logo após inicia-se em Cuba o
chamado Período Especial (1991 - 1993), período este marcado pela crise
econômica advinda do colapso da União Soviética e, consequentemente, da quebra
do Comecon. O período que se estende de 1995 a 1997 será importante na
reestruturação da economia cubana e proporcionará uma expansão temática e
territorial de sua literatura.
É neste cenário que surge o autor Atilio Jorge Caballero (Cienfuegos, 1959).
O autor é licenciado em dramaturgia, poeta e narrador. Publicou “La suela del
216
Cadernos da Semana de Letras UFPR Ano 2011 Volume II – Trabalhos Completos
zapato” (Extramuros, 1985); “La arena de las plazas” (Abril, 1998), que recebe o
Prêmio Calendario de Poesia”; “El sabor del agua (Letras Cubanas, 1991); “Las
canciones recuerdan lo mismo” (Letras Cubanas, 1995); “El azar y la cuerda” (Letras
Cubanas, 1996); “La última playa” (Unión, 1998), que recebe o Premio UNEAC
“Cirilo Villaverde” e no ano 2001 esta narrativa é publicada pela editora espanhola
Akal Literaria em Madrid; “Naturaleza muerta con abejas” (Letras Cubanas, 1999);
“Tarántula” (Letras Cubanas, 2000); “Escribir el teatro” (Reina del Mar, 2004) y “La
máquina de Bukowski” (2007).
La última playa
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Cadernos da Semana de Letras UFPR Ano 2011 Volume II – Trabalhos Completos
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Cadernos da Semana de Letras UFPR Ano 2011 Volume II – Trabalhos Completos
Cayo Arenas, lugar que será visto como “... ya no quedaba nadie. Ni nada.”
(CABALLERO, 1998: 10) é atravessado por diferentes momentos que serão
analisados desde a perspectiva anterior, ou seja, a relação existente entre os
processos naturais ou não de modificação da ilha com as transformações dos
processos psicológicos e físicos do protagonista. Para que esta análise seja
realizada, será necessário que consideremos a interconexão com o tempo e a sua
percepção, assim como a caracterização da construção temporal da narrativa que se
constitui em um contínuo ir e vir e, em seu extremo, caracteriza-se por um tempo
circular.
219
Cadernos da Semana de Letras UFPR Ano 2011 Volume II – Trabalhos Completos
Em seguida, nos conta como ocorreu à aceitação de Andy Simons por parte
das forças armadas americanas, US Air Force, na Primeira Guerra Mundial
(1914/1918). Aqui o narrador explicita a admiração do protagonista pelo país, seja
ela uma admiração confessional ou conveniente, ressalta que os Estados Unidos
travam luta com os alemães e japoneses, sendo os espanhóis os aliados.
220
Cadernos da Semana de Letras UFPR Ano 2011 Volume II – Trabalhos Completos
incitará a (re) construir o desejo de que: “... sigo pensando que Cayo Arenas merece
otra mirada. No debe ser, sobre todo, un lugar aislado, y no me refiero a sus
inevitables características geográficas... (…) y la única forma de lograrlo es tender
brazos hacia la tierra firme.” (CABALLERO, 1998: 28) Surge assim a idéia de
construção da ponte, incitada pelo padre Froilán que, através de sua fala, promove
um desejo que determinará a forma de vida de Andy.
222
Cadernos da Semana de Letras UFPR Ano 2011 Volume II – Trabalhos Completos
Hubo alguien que a finales del siglo pasado quiso hacer algo
parecido, respondió el padre Froilán. ¿No has visto esos pilotes que
entran en el mar, allá, al sur, mirando hacia La Milpa? Son los restos
de lo que debió haber sido un puente. Dicen que el hombre estaba
loco. Yo no lo conocí, pero tampoco lo creo. Gracias a él tuvimos la
primera red de acueductos colgantes, el único que ha habido en este
lugar, y el primer generador de corriente alterna para las pocas casas
que entonces existían. Él descubrió el lugar preciso donde había
agua dulce en este pedazo de roca caliza. Si preguntas a los más
viejos, seguro que alguno te contará de la manada de gatos que
tenía, de cómo ellos lo ayudaron a descubrir el punto exacto por
donde pasaba la corriente submarina, y de cómo también olfateaban
con exactitud los bancos de camarones (…) Pero lo del puente no
era una idea disparatada...” “_Después vino todo ese revuelo con el
cambio de siglo y ese primer año en el que aún no se sabía muy bien
de qué parte habíamos quedado, toda la pasión y la excitación y el
furor elementales que despiertan los nacimientos, así sea de un niño
o de una república, y en el frenesí se olvidaron de él. Desaparecieron
los préstamos. Dicen que empeñó en el puente hasta el último
centavo que le quedaba de una herencia, pero esto solo dio para
avanzar un par de metros más. Y allí quedó. Luego el mar fue
haciendo lo suyo, hasta dejar esas sombras clavadas que ahora
puedes ver. (..) (CABALLERO, 1998: 28;29)
223
Cadernos da Semana de Letras UFPR Ano 2011 Volume II – Trabalhos Completos
que quedó después del ciclón, el famoso ciclón de aquel año famoso.
Pero era un esfuerzo demasiado grande para un hombre solo. Dijo
que la rabia y la impotencia – dos sensaciones o sentimientos que
hasta entonces no conocía – estuvieron a punto de enloquecerlo,
porque estaba convencido de poder terminar el puente, de unir los
dos extremos.” (CABALLERO, 1998: 41; 42)
225
Cadernos da Semana de Letras UFPR Ano 2011 Volume II – Trabalhos Completos
vai além da simbologia do Cayo e que transcende, quiçá, os limites da ilha cubana.
Entretanto nada disso foi suficiente para levar a cabo a tão sonhada
edificação. Novamente o coletivo arruinará a finalização do projeto e, de certa forma,
com a própria vida de Simons:
Estamos parados sobre un dolmen que nadie sabe ver, una antigua
piedra de culto que se desmorona rendida ante la indiferencia. Sé
que puede parecer patético, pero yo intento retardar su desaparición
y salvar lo que sea rescatable. (…) Este país tiene muy mala
memoria: entre el calor, la abulia y la escasez de archivos, uno puede
quedarse incluso sin constancia de haber nacido. Podría llegar el
momento en que el cayo ni siquiera aparezca en las cartas
náuticas.”, também através da memoria, ou de sua falta, como
elemento constituinte da destruição: “una condena al olvido que la
indolencia y la desidia se encargarían de hacer cumplir, acelerando
su ruina, o su desaparición. (CABALLERO, 1998: 25)
Nesta perda de memória coletiva o mar também tem papel importante e será
227
Cadernos da Semana de Letras UFPR Ano 2011 Volume II – Trabalhos Completos
Referências bibliográficas
Gott, Richard. Cuba: uma nova história. Tradução: Renato Aguiar. Rio de Janiero,
Jorge Zahar Editora, 2006.
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Cadernos da Semana de Letras UFPR Ano 2011 Volume II – Trabalhos Completos
Introdução
Resultativas adjetivais são construções causativas formadas por verbo matriz
intransitivo, DP Acusativo (DPAcc) e adjetivo (seguindo KRATZER, 2005). O verbo
matriz aciona o evento, cuja causatividade é caracterizada por algum tipo de
afetação sofrida pelo DPAcc, sendo tal afetação denotada pelo adjetivo. Em (1a-d)
temos exemplos do alemão:
(1) a. Maria hat ihren Bruder krank geflötet.
Maria teve [seu irmão]Acc doente tocado-flauta
‘Maria deixou seu irmão doente, tocando flauta para ele.’
(1) b. Das Kind hat das Bettchen voll gekotzt.
A criança teve a caminha cheio vomitado
‘A criança vomitou por toda a caminha.’
(1) c. Er hat das Papier naβ geniest.
Ele teve o papel molhado espirrado
‘Ele molhou o papel, espirrando sobre ele./ Ele espirrou, molhando o papel.’
(1) d. Der Clown hat das Kind fröhlich getanzt.
O palhaço teve a criança alegre dançado
‘O palhaço alegrou a criança, dançando para ela.’
Em (1a), o evento acionado pelo verbo intransitivo flöten (tocar flauta) causa o
irmão (acusativo) ficar doente. Notamos que o DPAcc ihren Bruder (seu irmão) não
pode ser objeto do verbo (intransitivo). Em (1b), a criança vomitou e como resultado
da ação a caminha ficou cheia de vômito. Em (1c), temos um evento de espirrar,
cujo resultado é o estado molhado adquirido pelo papel. Em (1d), o palhaço dança
para a criança, que fica alegre como resultado desta dança. Novamente, notamos
que em (1b-d), os DPAccs a caminha, o papel e a criança não são objetos dos
verbos (intransitivos) vomitar, espirrar e dançar, respectivamente.
O objetivo deste trabalho é verificar algumas instâncias de modificação
aceitas ou não nas resultativas adjetivais do alemão. Verificando a restrição ou não
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Cadernos da Semana de Letras UFPR Ano 2011 Volume II – Trabalhos Completos
O verbo matriz das resultativas adjetivais é sempre intransitivo (cf. (1)). Assim,
KRATZER (2005) concebe o DPAcc como argumento interno do adjetivo. Da sua
posição de origem (complemento de A), o DP sobe para checar Caso Acusativo.
Vale notar que, neste tipo de construção (cf (1)), a ausência do adjetivo gera dados
agramaticais: sem o adjetivo, o falante interpreta o DPAcc como argumento do verbo,
rejeitando o dado.
A relação de causa das resultativas adjetivais, em KRATZER (2005), é dada
por um afixo nulo e mais afixal [cause].1 Esse afixo seria o responsável por tornar os
adjetivos eventivos. Nesta abordagem, [cause] é o núcleo de um sintagma (que eu
chamo de CausingP). Esse núcleo toma como complemento um AP, cujo núcleo A
CausingP AP
toma como complemento um DP. Esquematicamente, temos: [[cause] [A
DP]]. O adjetivo (ou a raiz adjetival) se incorpora ao afixo para satisfazer as
necessidades afixais de [cause]. O DP se move de dentro de CausingP, subindo na
estrutura para checar Acc.
Para a autora, o evento denotado por uma resultativa adjetival é definido em
termos de cadeias causais. O ‘evento maior’ se refere à soma de todas as
eventualidades integrantes de uma cadeia causal linearmente ordenada pela
‘relação de causa’, que, por sua vez, é definida como o inverso da relação de
causação (causa direta). Seguindo LEWIS (1973), causação é o fechamento
transitivo da relação de dependência causal. O elemento máximo da cadeia causal é
o estado denotado pelo adjetivo.2
3
Se o escopo da modificação for sobre o VP, as sentenças em (a) e (d) são aceitas, e o sentido para
(d), por exemplo, é de que o palhaço não mais pratica a ação de deixar a criança triste, dançando
para ela. Nesse caso, o modificador estaria adjungido ao VP e não dentro de CausingP.
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Cadernos da Semana de Letras UFPR Ano 2011 Volume II – Trabalhos Completos
4
Imagine a cena: roupas molhadas penduradas no varal pela manhã. Após um dia de sol, posso dizer
que as roupas estão secas, não mais molhadas ou ex-secas. Também posso dizer que, pela manhã,
pendurei as roupas então molhadas no varal, e essas roupas estão não mais molhadas.
5
Chomsky (1981, 1986, 1995), Chomsky e Lasnik (1993), Rizzi (1990), Lasnik e Uriagereka (1988),
inter alia.
6
Em LARSON (1988, 1990), o autor representa adjuntos (do ponto de vista da estrutura argumental)
em posição de complemento (irmão de V).
7
TRUSWELL (2007a: 2) traz um exemplo: em (i), houve extração a partir de um constituinte em
posição de complemento, e as sentenças são aceitáveis. Em (ii), a extração foi feita a partir de um
adjunto, e os dados são agramaticais.
(i). Who did Mary [VP [VP kiss t] [PP after John went home]]?
(ii). *Who did John [VP [VP go home] [PP after Mary kissed t]]?
8
As sentenças em (4) também são boas em alemão e PB (traduções minhas):
(i) Das ist die Sinfonie, die Schubert [VP starb [VP ohne zu vollenden t]].
essa é a sinfonia que Schubert morreu sem acabar
‘Essa é a sinfonia, que Schubert morreu sem acabar.’
(ii) Wen bist du [VP [VP nach Girona gegangen], [XP um zu treffen t]]?
quem é você para Girona ido para encontrar
‘Quem você foi para Girona encontrar?’
231
Cadernos da Semana de Letras UFPR Ano 2011 Volume II – Trabalhos Completos
9
Adaptei a tradução para o PB. O sentido original de (5)a seria algo como: John dançou assobiando
hornpipes, em que hornpipes é um tipo de clarinete inglês, ou a música advinda da dança que se faz
a partir do instrumento.
10
Exemplo de TRUSWELL, 2007b: 1357-1358. Tradução para o PB minha. No meu julgamento, a
aceitabilidade ou não dos dados do inglês se mantém para o PB.
11
Como CED (Condition on extraction domains): “A phrase A may be extracted out of a domain B
only if B is properly governed” ((HUANG, 1982:505), apud TRUSWELL, 2007b).
232
Cadernos da Semana de Letras UFPR Ano 2011 Volume II – Trabalhos Completos
TRUSWELL (2007b)) intervindo entre o verbo fix (consertar) e a sentença matriz (cf.
6b) tornaria a extração a partir da sentença encaixada ainda mais difícil de ocorrer,
devido a restrições de localidade.
O autor parte, então, para uma abordagem semântica, no sentido de haver
uma restrição na composicionalidade semântica com base na constituição
temporal/aspectual das sentenças matriz e encaixada, e da relação de causa e
precedência temporal entre sentenças matriz e encaixada. Assim, coloca a ‘condição
para a extração de dentro de um adjunto’ (que o autor se refere como predicado
secundário), sendo que o constituinte extraído do adjunto é um complemento dentro
do adjunto:
12
O autor não traz uma definição formal de Operação de Identificação de Eventos, mas admite algo
parecido com o que KRATZER (1996) coloca.
13
Em LEWIS (1973), causação é o termo técnico para causa direta, e consiste no fechamento
transitivo da relação de dependência causal.
233
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14
Exemplo e forma lógica de TRUSWELL (2007b: 1362).
15
Forma lógica em TRUSWELL (2007b: 1363).
16
TRUSWELL (2007b: 1366), tradução para o PB minha.
17
TRUSWELL não traz uma definição formal para THEN, mas remete o Leitor a KAMP (1979), em
que uma definição explícita faria referência a “a salient event e1 (or an event that can be
accommodated as salient) immediately preceding the matrix event e2, as defined by Kamp’s (1979)
work on linguistic encoding of temporal relations.” (TRUSWELL, 2007b: 1365).
234
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18
Por sobreposição de eventos, leia-se algum momento de V se sobrepondo temporalmente a A,
mesmo que apenas o estágio mais inicial de A.
19
Leia-se dançar não no sentido habitual.
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Considerações finais
Referências bibliográficas
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Cadernos da Semana de Letras UFPR Ano 2011 Volume II – Trabalhos Completos
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CHOMSKY, N. The Minimalist Program. Cambridge, Mass.: The MIT Press, 1995.
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et al. (eds.). Syntax: An international Handbook of Contemporary Research.
Berlin: de Gruyter, 1993.
KRATZER, A. Severing the external argument from its verb. In: ROORYCK, J.;
ZARING, L. (orgs.). Phrase structure and the lexicon. Dordrecht: Kluwer. p.109-
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SZABOLCSI, A. Strong vs. Weak Islands. In: EVERAERT, M.; VAN RIEMSDIJK, H.
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TRUSWELL, R. Extraction from Adjuncts and the Structure of Events. Lingua, 117,
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BEAUVOIR, Simone de. O segundo sexo. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1980.
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________. O método crítico de Sílvio Romero. Rio de Janeiro: Ouro sobre azul,
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CARDOSO, Patrícia da Silva. Posfácio. In: Ficção reunida. Curitiba: UFPR, 2006.
LUKÁCS, Georg. Die Seele und die Formen. Berlin: Egon Fleischel & Berlin, 1911.
MARTINS, Wilson. A crítica literária no Brasil. Vol.1 e2. Rio de Janeiro: Francisco
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OBALDIA, Claire de. The essayistic spirit: literature, modern criticism, and the
essay. New York: Oxford, 1995.
PEREIRA, Lucia Miguel. Prefácio. In: Ensaístas ingleses. Clássicos Jackson, vol.
XXVII. Rio de Janeiro: Editora Brasileira, 1950.
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PINTO, Manuel da Costa. Albert Camus: um elogio do ensaio. São Paulo: Ateliê,
1998.
251
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Introdução
Sprache und Weisheit der Inder (Sobre a língua e a sabedoria da Índia) de Schlegel.
Foi nessa obra também que, pela primeira vez, notou-se que o estudo da morfologia
seria de suma importância para esclarecer a relação entre as línguas. O método
empregado agora não mais se assemelhava ao já defasado método da filologia
clássica que buscava os parentescos das línguas pelas dissemelhanças entre as
palavras, na verdade era um método quase intuitivo. Diferente desse, o método
histórico-comparativo (doravante MHC), firmava-se em leis de parentescos e
transformações fonéticas mais ou menos regulares; por exemplo as leis propostas
por Rasmus Rask ou por Jacob Grimm (a famosa Lei de Grimm). Ainda, por outro
lado, chama-se também histórico o método, por sua natureza diacrônica. Ou seja, os
adeptos de tal método acreditavam piamente que estudando a história
comparativamente entre as línguas, chegariam eles à língua-mãe. Fato importante
foi que também pela primeira vez começa-se a tratar as mudanças linguísticas não
como corrupções, mas como fatores de ordem natural.
Caro, inclusive, aos adeptos do MHC era a metalinguagem que, depois das
quase irrefutáveis comparações de Schleicher, assemelhava-se cada vez mais a dos
estudos biológicos. Foi Schleicher que propôs estudar as línguas pelo viés
biologizante. Segundo ele, uma língua não só se assemelhava, como era de fato um
organismo vivo que nasce, se desenvolve e morre. Foi ele também que pela primeira
vez procurou separar as línguas do mundo segundo suas características internas
em: aglutinantes, isolantes e flexionais, classificação essa que ficou conhecida como
sistema morfológico. Por muito tempo chegou-se a acreditar que a linguística
poderia mesmo ser reduzida aos estudos biológicos. Aqui no Brasil, um dos
gramáticos que mais veementemente levou tal ideia a cabo foi justamente Ernesto
Carneiro Ribeiro (doravante ECR), segundo ele:
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Cadernos da Semana de Letras UFPR Ano 2011 Volume II – Trabalhos Completos
Por outro lado, a orientação que até então regiam os estudos linguísticos no
Brasil, bem como ainda em algumas gramáticas europeias, de cunho mais
racionalista, inspirada pelos preceitos cartesianos, foram as chamadas gramáticas
filosóficas ou gramáticas arrazoadas. Este modelo que foi produzido até, pelo
menos, 1881 em língua portuguesa, tinha como importante guia a Grammatica
Philosophica da Lingua Portugueza de Jerônimo Soares Barbosa, publicada
postumamente em 1822, mas finalizada antes, muito provavelmente na primeira
década do século XIX. Esses modelos eram guiados pela famosa Gramática
Arrazoada de Port-Royal, publicada em 1666. Nelas, a língua é pensada como
produto da racionalidade humana, podendo, dessa forma, ser sistematizada em
proposições comuns que se encontravam em todas as línguas. Ironicamente, os
adeptos do MHC que tanto combatiam os modelos das gramáticas arrazoadas,
partiram justamente da premissa básica dos racionalistas de que todas as línguas
guardam em seu cerne algo que lhes é comum. Diferente desses, no entanto, o
MHC estava pretensamente calcado em leis e experimentos e não nas puras e
ingênuas observações ligeiras de outrora, ou como queria Júlio Ribeiro: “As antigas
grammaticas portuguezas eram mais dissertações de metaphysica do que
exposições dos usos da lingua.” (RIBEIRO 1881: 14)
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Cadernos da Semana de Letras UFPR Ano 2011 Volume II – Trabalhos Completos
Adolfo Coelho publicara alguns ensaios isolados, liberto assim do modelo fixo da
gramática, no Brasil os intelectuais que aprofundavam seus estudos na linguagem
não tinham outra opção senão a produção desses compêndios escolares que, vez
por outra, em algumas passagens mais salientes, traziam à tona as novas
descobertas e mesmo discussões bastante particulares e originais acerca da língua.
No Brasil, a primeira gramática dita científica veio a ser, segundo a maioria dos
historiadores dessa área, a Grammatica Portugueza de Júlio Ribeiro, publicada em
1881. Embora segundo verificação anterior nossa (LEAL 2010), já a Grammatica
Philosophica da Lingua Portugueza de Ernesto Carneiro Ribeiro, também de 1881,
apresenta traços indeléveis do MHC.
Investigação
Durante muito tempo a gramática normativa tem fins quase que estritamente
pedagógicos e presta-se ao papel de apresentar regras sistematizadas da língua, ou
ao menos de uma parte dela. Na nossa sociedade ocidental, desde o princípio da
produção gramatical; situado no século II a. C. com Dionísio, numa colônia grega na
África, chamada Alexandria; no entanto, tais regras têm o peso de lei ou mesmo de
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Cadernos da Semana de Letras UFPR Ano 2011 Volume II – Trabalhos Completos
Devemos aqui ressalvar aqui que ciência não era propriamente atributo das
gramáticas, portanto ciência aqui estaria mais ligado à faculdade mental, do que o
conjunto de métodos e técnicas empregados modernamente sobre a alcunha de
ciência. Veja-se que isso confere segundo outra de Ernesto Carneiro Ribeiro (1881:
390):
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Cadernos da Semana de Letras UFPR Ano 2011 Volume II – Trabalhos Completos
Por outro lado, ainda, a gramática agora não é mais o lugar onde as regras do
“bem falar” e do “bem escrever” são impostas, mas é antes, nos dizeres de Júlio
Ribeiro (1881: 1):
Agora, tinha-se uma noção mais clara do que era gramática, não se tratava
de apenas um compêndio; mas à partir do século XIX, começa-se a ver a gramática
como instrumentos descritivos da língua também, para além de mero responsório de
regras, assim como era praxe nas introduções desses compêndios após 1881,
tiramos o exemplo de João Ribeiro (1889: 1):
A grammatica divide-se em geral e particular.
Grammatica geral é a que expõe os principios logicos communs a
todas as linguas.
Grammatica particular é a que expõe os principios e as
particularidades especiaes de um idioma.
Das quatro tradicionais partes em que eram divididas uma gramática, aquelas
que mais mudaram com a introdução do MHC foram, naturalmente, a fonética ou
fonologia. Enquanto que antes de 1881 tal parte sequer existia ou quando muito,
brevemente explicitada dentro da ortografia, isso quando muito se falava em
encontros vocálicos. Além disso, as leis de mudanças fonéticas são expostas em
comparação do português com outras línguas, tanto o latim quanto outras línguas
neolatinas, bem como, em raros casos com o inglês.
Mesmo a classe das palavras é, por vezes, e quando isso é possível, deslocada de
sua classe “original”.
Conclusão
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se mantém estática; mas incorpora, mesmo que a seu modo, os novos preceitos que
vão sendo descobertos nos seio dos estudos da linguagem, mais recentemente, das
várias vertentes da linguística.
Referências Bibliográficas:
FARACO, Carlos Alberto. Norma culta brasileira: desatando aluns nós. São Paulo:
Parábola, 2006.
ORLANDI, Eni. Língua e conhecimento linguístico – para uma história das ideias
no Brasil. São Paulo: Cortez, 2002.
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1
Por vezes, parece aconselhável acrescentar a um romance uma nota prévia advertindo que
tanto a história e as personagens são inteiramente fictícias – por estas ou outras palavras. Desta vez,
porém, parece justificar-se uma outra ressalva. Quase tudo o que acontece nesta história se baseia
em fontes factuais. Com uma excepção insignificante, todas as personagens existiram realmente. (...)
usei, no entanto, a liberdade de romancista ao representar aquilo que pensavam, sentiam e diziam
umas às outras; e imaginei certos acontecimentos (...). (LODGE 2004: 1) As traduções concernenetes
a Author, Author, constantes deste trabalho, serão as de Ana Maria Chaves, conforme consta nas
Referências, com menção da página em que se localiza.
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Cadernos da Semana de Letras UFPR Ano 2011 Volume II – Trabalhos Completos
O primeiro dos grandes realistas psicológicos da nossa era e uma das figuras
mais profícuas da história da literatura de língua inglesa, Henry James escreveu de
modo contínuo durante meio século. (EDEL 1960: 11) Irmão de William James, –
precursor da psicologia moderna e criador do termo stream of consciousness (fluxo
da consciência) – Henry James, a partir das análises psicológicas das personagens
de seus romances, influenciou autores famosos dentre os quais Virginia Woolf e
James Joyce.
Não é novidade que um texto literário só existe na sua materialidade a partir
do momento em que há uma voz responsável por produzir um universo ficcional:
personagens, eventos, descrições de espaço, tempo e ações e a consequente
organização e controle de todo esse universo; bem como a presença de um leitor. O
narrador tanto pode assumir a função de interpretar ficcionalmente o mundo narrado,
quase sempre em terceira pessoa, como também fazer parte desse mundo – o que
ocorre geralmente em primeira pessoa. Contudo, o grande organizador incumbido
de reunir, de modo harmonioso, narrador e leitor numa obra literária é o autor.
Uma saída exemplar para o impasse existente entre autor e narrador é a de
Umberto Eco, a partir da criação do termo trindade narrativa, ou seja, a união do
autor-modelo, o narrador e o leitor, para que o texto literário se efetive. Eco enfatiza
que essas três instâncias só se revelam uma para a outra no momento da leitura.
(ECO 2002: 30) Porém, a proposta do crítico italiano não é suficiente para abarcar a
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complexidade que permeia essas duas entidades, que parecem ter uma conexão
estreita com o ponto de vista na narrativa de ficção.
Nesse sentido, o ângulo de visão a partir do qual o narrador conta a história
tem relevância especial na estrutura de uma narrativa, sobretudo na ficção
contemporânea. As discussões acerca do foco narrativo são relativamente recentes.
Os teóricos da literatura Ligia C. M. LEITE (2002) e Alfredo L. C. de CARVALHO
(1981) sinalizam que elas tiveram início a partir dos prefácios escritos por Henry
James para suas próprias obras, na última década do século XIX, como parte
integrante da Edição de Nova York, como foi chamada por James. (EDEL 1960: 67)
Em linhas gerais, James defende a existência de um ponto de vista único, uma
espécie de inteligência central, para a qual o foco narrativo se volta e da qual os
reflexos emanam. Considera que as interferências da voz narrativa na fabulação
podem quebrar a ideia de ilusão que a obra literária se propõe a construir.
Argumenta que a intervenção do narrador – caso seja imprescindível – deve ocorrer
de modo muito discreto a ponto de o leitor sentir que a história conta-se por si.
O objetivo deste trabalho é investigar como se constitui e se desenvolve o
ponto de vista em Author, Author, à luz daquilo que a tradição da crítica literária
entende por foco narrativo. A voz que emerge do texto de Lodge parece ser de
extrema importância para a criação da atmosfera de verossimilhança dos aspectos
factuais abordados pela ficção e contribuir para a figuração de Henry James, sujeito
da história literária, no mundo ficcional. Todavia, essa mesma voz em alguns
momentos demonstra compactuar e, em outros, subverter aquilo que James
considerou como ponto de vista em seus textos críticos e nos prefácios de suas
obras.
A voz narrativa criada para Author, Author assemelha-se àquelas criadas
por Henry James para seus romances na medida em que, por exemplo, faz com que
as características psicológicas das personagens surjam a partir dos diálogos entre
elas. Não por acaso, boa parte do romance se desenvolve no desenrolar das
conversas entre Henry e George Du Maurier ou entre Henry e Constance Fenimore
Woolson, os amigos mais próximos do protagonista, hoje praticamente esquecidos
pela crítica e pelo público, por oposição ao que ocorre com Henry James, sobretudo
a partir da segunda metade do século XX. Cabe salientar que a experiência como
dramaturgo forneceu subsídios preciosos a James na elaboração de diálogos entre
264
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2
Percy Lubbock, em A técnica da ficção (1921), parte dos prefácios (1907-1909) de Henry
James, para ajudar a traçar esse panorama a respeito do ponto de vista na narrativa de ficção.
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Author, Author tem início com menção de lugar e data e com forte indício da
voz autoral: “LONDON, December 1915. In the master bedroom (never was the
estate agent’s epithet more appropriate) of Flat (...), the distinguished author is dying
(…).” (LODGE 2004: 3)4 A expressão master bedroom pode remeter o leitor tanto ao
quarto principal da residência, como ao quarto do mestre. Henry James entra para
a história da literatura como O Mestre para muitos escritores do final do século XIX
e início do XX.
Wayne C. BOOTH (1980) é o responsável por cunhar o termo autor implícito
para designar a criação – por intermédio da escrita – de uma entidade que seja um
substituto perfeito, um alter ego, do autor biográfico. Em linhas gerais, ele trata da
distância e da aproximação do foco narrativo ao centro de interesse e manifesta-se
em favor das intrusões autorais – desde que elas sejam feitas de modo inteligente, e
proporcionem mais vivacidade à narrativa –, contudo, não discute a mescla do
documental e do ficcional. Considera que o autor não desaparece da narrativa –, “o
3
O estudo do romance Author, Author foi o objeto da minha monografia, elaborada para a
obtenção do grau de Bacharel em Letras Inglês, com ênfase em Estudos Literários, na Universidade
Federal do Paraná, no ano de 2009, sob a orientação da Professora Doutora Liana de Camargo
Leão.
4
“LONDRES, Dezembro de 1915. No quarto principal (e nunca o epíteto dos agentes
imobiliários foi mais apropriado) do apartamento (...), o ilustre autor está a morrer (...).” (LODGE 2005:
13)
266
Cadernos da Semana de Letras UFPR Ano 2011 Volume II – Trabalhos Completos
juízo do autor está sempre presente (...) se a forma particular que assume vem
prejudicar ou auxiliar é uma questão complexa, (...).” (BOOTH 1980: 38) – ele
apenas lança mão de disfarces, ocultando-se atrás de um personagem ou do
narrador. Pondera, ainda, que existem vários modos de se contar uma história e que
mais relevantes do que não quebrar a ilusão da realidade – o que James não admite
– são os efeitos que a obra propõe provocar no leitor. A impressão que fica, após a
leitura do texto de Booth, é a de que Lodge é o próprio autor implícito por criar um
Henry James ficcional a sua imagem e semelhança e por esconder-se ora atrás de
um narrador onisciente inominado, ora atrás dos outros personagens – sujeitos
empíricos, figurados ficcionalmente – fazendo com que o protagonista seja visto e
avaliado a partir de vários ângulos.
Jean POUILLON (1974) adota como critério de organização do ponto de vista
três grupos de visões: visão com (vision avec); visão por detrás (vision par
derrière) e visão de fora (vision par dehors). Na visão com, a visão observada pelo
leitor é a da personagem central que é central não por estar no centro dos
acontecimentos e sim porque é a partir da visão dela que o leitor vê as outras
personagens. Desse modo, os sentimentos experimentados pela personagem
tornam-se muito mais vivos e presentes aos olhos do leitor e fazem com que o leitor
crie um grau elevado de identificação com ela. Na visão por detrás, a voz narrativa
coloca-se a certa distância da personagem com o propósito de observá-la e ouvir,
em alguma medida, o que ela diz. Todavia, os aspectos psicológicos da personagem
são considerados de maneira objetiva. Na visão de fora, a voz narrativa observa os
aspectos exteriores da personagem, restringe-se a descrever os episódios e isenta-
se de fazer comentários, de modo a deixar a cargo do leitor a construção do caráter
e da interioridade das personagens.
A impressão que se tem é que exceto, em parte, pela visão com, as visões
de Pouillon não são suficientes para caracterizar a mobilidade do foco narrativo em
Author, Author. Isso porque o narrador coloca-se com o protagonista, mas também
explora não só a complexidade do seu mundo interior como também o ritmo do seu
fluxo de consciência.
Norman FRIEDMAN (1967) estabelece um percurso histórico para a questão
do ponto de vista nas narrativas de ficção e discorre acerca do impasse no qual o
ficcionista se coloca entre “mostrar o que uma coisa é e dizer como se sente a
267
Cadernos da Semana de Letras UFPR Ano 2011 Volume II – Trabalhos Completos
respeito dela” (FRIEDMAN 1967: 168). O escritor precisa ser consistente, habilidoso
e coerente ao procurar o ponto de equilíbrio entre os dois posicionamentos para
estar apto a transmitir a história ao leitor. No mesmo estudo, Friedman sistematiza
os possíveis pontos de vista que um escritor pode adotar para a sua narrativa.
O autor onisciente intruso é aquele narrador que tem liberdade total tanto
na colocação em relação ao centro de interesse – visões, para Pouillon – como nas
intrusões autorais, que se configuram como ensaios, ou “capítulos separados dentro
do corpo da obra.” (FRIEDMAN 1967: 173). É possível supor que Lodge adote parte
dessa postura em Author, Author, sobretudo no capítulo IV, em que ele escreve um
longo ensaio para discutir a obra de James e apontar para as perspectivas futuras;
buscar contrapontos no seu próprio processo criativo e convidar o leitor a participar
da discussão, assumindo-se em primeira pessoa num texto que até então tinha sido
escrito em terceira pessoa. Em outro momento, o leitor se depara com outro ensaio
que claramente reflete a respeito do modo como James percebe a construção da
instância narrativa na prosa de ficção.
É oportuno lembrar que esse fragmento aparece nas horas que antecedem a
estreia malograda da peça “Guy Domville” em que Henry está com o pensamento
5
Na sua prática de romancista e contista, Henry tinha desenvolvido uma fé inabalável na
superior expressividade e verossimilhança do ponto de vista restrito. Estava convencido de que o
autor de narrativas ficcionais devia representar a vida tal como ela era experienciada na realidade,
por uma consciência individual, com todas as lacunas, enigmas e erros de percepção e reflexão que
uma tal perspectiva inevitavelmente implicava; e se esta função ia ser partilhada por várias
personagens ao longo do romance, devia ser passada de umas para as outras, como o testemunho
numa corrida de estafetas, de forma consistente e de acordo com um plano prévio. (LODGE 2005:
257)
268
Cadernos da Semana de Letras UFPR Ano 2011 Volume II – Trabalhos Completos
tomado por uma mistura de esperança, medo, apreensão e angústia. Isso denota,
para o então dramaturgo, a total impossibilidade de reconstruir a própria história,
principalmente por saber que outras histórias desenrolam-se paralelamente e fogem
por completo do seu controle.
O narrador onisciente neutro, para Friedman, assemelha-se ao autor
onisciente intruso, contudo priva-se de fazer comentários, como explicitado na
visão de fora, de Pouillon. Essa categoria tem suas origens em Henry James, para
quem a história deve contar-se por si própria, sem interferências. (FRIEDMAN 1967:
174-175) É interessante observar que Lodge compactua com essa forma de
construção do ponto de vista e a adota parcialmente em Author, Author. Ele
constitui um narrador de terceira pessoa que descortina a consciência do
protagonista, sem, contudo, desvendar a complexidade do ser humano. Para David
LODGE (1992), James acreditava que a experiência humana fosse inesgotável, por
isso, desenvolveu uma técnica narrativa que preenchesse as lacunas deixadas pela
existência.
Ainda de acordo com FRIEDMAN (1967), o “Eu” como testemunha e o
Narrador-protagonista são pontos de vista de primeira pessoa, todavia, o primeiro
é um personagem secundário que observa de dentro da narrativa aquilo que
acontece e transmite ao leitor de forma organizada; enquanto o segundo conta a
história de um ponto fixo, limitando-se a descrever as próprias percepções,
sentimentos, ideias e pensamentos, que, muitas vezes, podem parecer
desordenados, mas apresentam uma lógica interna. O outro ponto abordado por
FRIEDMAN (1967) é a onisciência seletiva múltipla, na qual desaparece a
entidade que conta a história e aquilo que chega ao leitor vem pelas consciências
dos personagens, por intermédio das impressões que os episódios e os outros
personagens deixam nelas. A onisciência seletiva assemelha-se à onisciência
seletiva múltipla, mas a história é contada pelo olhar de um só personagem. É
possível que, em Author, Author, Lodge aproprie-se, em parte, da onisciência
seletiva múltipla na medida em que o protagonista é avaliado sob múltiplos
ângulos, por intermédio do olhar de vários personagens: os empregados, os amigos,
os parentes, a secretária, isso para não falar do próprio personagem central
avaliando-se e revendo posturas.
269
Cadernos da Semana de Letras UFPR Ano 2011 Volume II – Trabalhos Completos
(…) why the biographical novel should have recently attracted so many
writers as a literary form is an interesting question, to which there are several
270
Cadernos da Semana de Letras UFPR Ano 2011 Volume II – Trabalhos Completos
Marilene WEINHARDT (2006) sugere que uma das tendências que tem se
repetido com certa frequência nos textos de criação literária é a que se refere à
refiguração de sujeitos empíricos que participaram da História e da história da
literatura. Na Literatura Brasileira, o primeiro exemplar desse recorte da ficção
contemporânea emerge no romance Em liberdade: uma ficção de Silviano
Santiago (1981), de Silviano Santiago. Nesse romance, o autor elabora um discurso
baseado nos recursos estilísticos de Graciliano Ramos, inventa uns originais que
teriam sido publicados postumamente e cria ficcionalmente o sujeito que marcou
época na história literária brasileira. Tanto na Nota do editor, quanto em Sobre esta
edição – elementos textuais que antecedem o romance e ambos assinados por
Silviano Santiago – é possível observar uma argumentação tão convincente que
aquele leitor menos atento é capaz de acreditar que Graciliano teria mesmo mantido
um diário enquanto estava na prisão.
Na Literatura de Língua Inglesa – embora o processo da criação ficcional de
sujeitos da história literária tivesse começado antes –, em 2004, a vida privada e o
percurso literário de Henry James foram retomados e recriados em, pelo menos, três
romances: The Line of Beauty, de Alan Hollinghurst, no qual um jovem escreve
uma tese de pós-graduação sobre a vida e a obra de Henry James; The Master, do
6
Por que o romance biográfico tem atraído tantos autores como uma forma de expressão
literária é uma pergunta interessante, para a qual há algumas respostas possíveis. Poderia ser um
sintoma do declínio da fé ou da perda da confiança no poder da narrativa ficcional puro e simples;
numa cultura na qual somos bombardeados, em vários sentidos, pelas narrativas factuais em forma
de notícias. Poderia ser uma característica motivada pelo pós-modernismo, na qual os ficcionistas
incorporam a arte do passado ao próprio processo de reinterpretação e pastiche. Poderia ser visto,
ainda, como um sinal de decadência e esgotamento na ficção contemporânea, ou como uma
habilidade positiva que pode ser tomada como uma maneira inteligente de negociar com a “angústia
da influência”. Essa tradução foi feita por mim, a partir de LODGE, David. The Year of Henry James:
The story of a novel. (LODGE 2006: 9-10)
271
Cadernos da Semana de Letras UFPR Ano 2011 Volume II – Trabalhos Completos
escritor irlandês Colm Tóibin, e Author, Author, do inglês David Lodge, nos quais
James é o protagonista7.
Pelo que se pôde observar, a partir das questões aqui levantadas, a tradição
de crítica literária mais recente ainda não procedeu ao aprofundamento das
reflexões naquilo que diz respeito ao foco narrativo na ficção contemporânea,
sobretudo no que se refere à movimentação do ponto de vista, às reflexões
metaficcionais e ao caráter autorreflexivo que parecem estar atrelados à focalização,
dentro do subgênero romance biográfico, como acontece em Author, Author. É
possível que, na ficção contemporânea, a criação de sujeitos empíricos, sobretudo
aqueles que fizeram parte da história da literatura, requeira uma mobilidade maior do
foco narrativo; ou, talvez, seja a miscigenação do ponto de vista uma condição para
causar o efeito de verossimilhança nos episódios buscados na história ou inventados
pelo ficcionista; ou, ainda, quando da escolha de um sujeito da história literária para
se criar um romance biográfico a seu respeito, o ficcionista tenda a construir uma
personagem à sua imagem e semelhança, deixando transparecer as similaridades
entre criador e criatura. A tentativa de descortinar essas novas vertentes da literatura
contemporânea demandaria mais pesquisas o que demonstra que esse terreno está
longe de se esgotar.
Referências bibliográficas
AGUIAR E SILVA, Vítor Manuel de. Teoria da Literatura. 8 Ed. Coimbra: Almedina,
2002.
CARVALHO, Alfredo Leme Coelho de. Foco narrativo & fluxo da consciência:
questões de teoria literária. São Paulo: Pioneira, 1981.
ECO, Umberto. Sobre a literatura. Trad. Eliana Aguiar. Rio de Janeiro: Record,
2003.
EDEL, Leon. Henry James. Trad. Alex Severino. São Paulo: Livraria Martins
Editora, 1960.
7
No livro de ensaios The year of Henry James: the story of a novel, 2006, Lodge
menciona alguns trabalhos que surgiram sobre a vida e a obra de Henry James, no ano de 2004.
Revela o processo de pesquisa documental que deu origem à criação de Author, Author e inclui
ensaios sobre a composição e a recepção de romances não só de James, mas também de outros
romancistas.
272
Cadernos da Semana de Letras UFPR Ano 2011 Volume II – Trabalhos Completos
LODGE, David. The Year of Henry James: The story of a novel. London: Harvill
Secker, 2006.
_____. Autor, Autor. Trad. Ana Maria Chaves. Lisboa: ASA Editores S.A., 2005.
LUBBOCK, Percy. A técnica da ficção. Trad. Octavio Mendes Cajado. São Paulo:
Cultrix, Ed. Da Universidade de São Paulo, 1976.
273
Cadernos da Semana de Letras UFPR Ano 2011 Volume II – Trabalhos Completos
Questões preliminares
A trajetória da Teoria
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Cadernos da Semana de Letras UFPR Ano 2011 Volume II – Trabalhos Completos
Segundo FIORIN (2006), após observar que existe uma certa divergência
freqüente entre a significação das frases e o sentido da comunicação e que, deste
modo, alguns enunciados comunicam mais do que os próprios elementos que o
compõe, Grice formulou a Teoria Inferencial das implicaturas (WILSON e SPERBER,
2002: 600); este é um modelo estruturado composto por quatro máximas de
conversação, e que foi nomeado Princípio da Cooperação: “Dê a sua contribuição
conversacional tal como requerida, na altura em que ocorre, pelo propósito ou
direção aceite da troca verbal na qual você está envolvido”. As quatro máximas
foram estruturadas como: 1) Máxima da Qualidade, "faça sua contribuição
verdadeira", "não diga o que você acredita ser falso" e "não diga o que não tem
evidência adequada"; 2) Máxima da Quantidade: "faça sua contribuição tão
informativa quanto necessário" e "não a faça mais informativa que o necessário"; 3)
Máxima da Relação: "seja relevante, diga somente o que convém à situação" e 4)
Máxima de Modo: "seja claro, evite obscuridade na expressão", "evite a
ambigüidade", "seja breve, evite a prolixidade inútil" e "seja ordenado".
Estas máximas concebem um modelo de conversação sem mal-entendidos,
forma referencial para a boa comunicação, onde o ouvinte procura no enunciado um
sentido literal, que esteja de acordo com as máximas citadas. Não havendo tal
sentido no enunciado, que corresponda ao cumprimento das máximas, é preciso
encontrá-lo, surgindo daí os processos inferenciais, onde o ouvinte tenta solucionar
a quebra das máximas, a fim de perceber o que está implícito naquele enunciado.
Como exemplo, pode se pensar na frase "Pedro parou de fumar", em que se nota
um conteúdo explícito "Pedro não fuma atualmente" e um conteúdo implícito "Pedro
fumava antes".
A partir do modelo inferencial de Grice, Dan Sperber e Deirdre Wilson
desenvolveram sua teoria da comunicação voltada para a compreensão de
enunciados, uma abordagem pragmática-cognitiva que toma por base uma
característica inerente à cognição humana: a atribuição de relevância. A Teoria da
Relevância (SPERBER e WILSON, 1986/1995) pode ser vista como uma tentativa
de resolver em detalhes uma das afirmações centrais de Grice: a de que uma
275
Cadernos da Semana de Letras UFPR Ano 2011 Volume II – Trabalhos Completos
Relevância e cognição
276
Cadernos da Semana de Letras UFPR Ano 2011 Volume II – Trabalhos Completos
A TR afirma que o que faz um input ser reconhecido dentre uma massa de
estímulos competidores não é somente que ele seja relevante, mas que ele seja
mais relevante que algum input alternativo disponível ao mesmo tempo. Em termos
teóricos, em contextos idênticos: 1) quanto maiores forem os efeitos cognitivos
positivos alcançados pelo processamento de um input, maior será a relevância do
input para o indivíduo nessa situação e 2) quanto maior for o esforço requerido de
percepção, de memória e de inferência, menor será a recompensa pelo
processamento do input e por isto, um menor merecimento de atenção.2 Assim,
relevância pode ser calculada em termos de efeitos cognitivos e esforços de
processamento.
De acordo com os autores, a cognição humana tende a ser dirigida para uma
tendência universal: a maximização da relevância. Esta tendência torna possível (em
alguma medida) predizer e manipular estados mentais de outros indivíduos; desde
que se conheçam suas tendências para escolher os inputs mais relevantes e
processá-los de modo a maximizar sua relevância, é possível produzir um estímulo
que provavelmente atraia atenção, ative um apropriado conjunto de suposições
contextuais e aponte na direção de uma conclusão pretendida pelo falante.
Devido à característica de intencionalidade que envolve a comunicação, a TR
se apresenta como uma teoria de comunicação ostensivo-inferencial dividida em: 1)
intenção informativa: a intenção de informar algo a uma audiência e 2) intenção
comunicativa: a intenção de informar uma intenção informativa a uma audiência.
Assim, a comunicação ostensivo-inferencial envolve o uso de um estímulo ostensivo,
projetado para atrair a atenção de uma audiência e focá-la no significado do
comunicador. Isto nos leva a um dos princípios fundamentais da TR: o Princípio
Comunicativo da Relevância, em que todo estímulo ostensivo comunica a presunção
de sua relevância ótima (SPERBER e WILSON, 1986/2005: 58). Ou seja, o uso de
um estímulo ostensivo cria uma presunção de relevância, sendo significativa a
noção de relevância ótima para esclarecer o que a audiência de um ato de
comunicação tem o direito de esperar em termos de esforço e efeito. Um estímulo
2 É importante notar que também é conclusão destes princípios que um maior processamento ou
esforço pode ser feito caso o ouvinte ou recipente perceba que maiores efeitos positivos serão
resultantes do esforço adicional.
277
Cadernos da Semana de Letras UFPR Ano 2011 Volume II – Trabalhos Completos
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Cadernos da Semana de Letras UFPR Ano 2011 Volume II – Trabalhos Completos
efeito, por exemplo), 2) gerar processos inferenciais a partir de tal estímulo ou input,
e 3) levar o ouvinte a uma interpretação estrita que desperte o desejo e/ou gere o
comportamento originalmente pretendido pelo comunicador.
Um grande complicador na publicidade e produção de campanhas parece ser
o fato de que, em um ambiente saturado de estímulos (onde existem outras peças
publicitárias concorrentes, por exemplo) torna-se cada vez mais difícil chamar a
atenção da audiência. Pode-se dizer, tentativamente, que é cada vez mais difícil
fazer com que um estímulo ou input seja de fato ostensivo, já que pode existir -
como se observa contemporaneamente - uma tendência da audiência de fugir ou se
esquivar de comerciais ou propagandas; a comunicação publicitária deixa de
presumir sua própria relevância, contrariando o princípio básico da TR. É notável,
por exemplo, que no caso de comerciais televisivos a audiência tende a utilizar o
tempo "do comercial" para realizar outras atividades (ir ao banheiro, providenciar
petiscos, falar com outras pessoas no ambiente, trocar de canal, etc) ao invés de
prestar atenção nos comerciais. Para o ouvinte, existe pouca ou nenhuma relevância
em tal estímulo, já que ele claramente dirige sua atenção para outras ofertas de
input do ambiente.
Ao se deparar com tal problema, o expediente adotado pelos publicitários foi
notavelmente científico: tornar o estímulo novamente ostensivo ou relevante para a
audiência, disponibilizando-o para processamento e interpretação em uma nova
"embalagem". Uma das maneiras mais eficientes de tornar o input publicitário
novamente relevante foi pareá-lo com outros estímulos naturalmente relevantes para
o ouvinte. Assim, surgiram por exemplo os "infomerciais", onde o produto
comercializado é veiculado ao mesmo tempo que se apresentam informações
potencialmente relevantes para a audiência, como fatos científicos, dicas de saúde e
bem-estar, informação privilegiada a um grupo seleto de consumidores, etc. Na
concepção da TR, é como se o publicitário ofertasse junto com o input publicitário
uma informação pré- processada e, portanto, com efeitos positivos garantidos para o
ouvinte.
Outra forma de revestir o conteúdo comercial de relevância é colocá-lo contra
um fundo de estímulos não-canceláveis pela audiência, ou seja: o telespectador não
possui a opção de cancelar o estímulo ou dirigir a sua atenção para longe dele. Isto
280
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4 “Ativo” refere-se às cotas de participação adquiridas pelo investidor em uma empresa com capital
aberto na bolsa de valores. A compra de um ativo é um investimento na empresa que o ofertou,
sinalizando com o pagamento de dividendos a curto ou longo prazo. Comumente também referido
como “ações da empresa”.
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Cadernos da Semana de Letras UFPR Ano 2011 Volume II – Trabalhos Completos
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Cadernos da Semana de Letras UFPR Ano 2011 Volume II – Trabalhos Completos
Referências bibliográficas
GRICE. Herbert Paul. Logic and Conversation. In COLE, Peter. e MORGAN, Jerry L.
(Eds). Syntax and Semantics. New York, Academic Press: 1975, 41-58.
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Cadernos da Semana de Letras UFPR Ano 2011 Volume II – Trabalhos Completos
Introdução
SN
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Cadernos da Semana de Letras UFPR Ano 2011 Volume II – Trabalhos Completos
Eles indicam que o universo de coisas denotadas pelo nome está definido
dentro do discurso, e a propriedade caracterizada pelo predicado será atribuída a
estas entidades que o determinante seleciona.
É importante notar que, independente desta distinção que foi proposta, os
determinantes têm tanto função quantificadora como dêitica, o que às vezes os
tornam difíceis de classificar. Uma das maneiras de visualizar este fato é através dos
exemplos com ‘algum’:
(4) Alguns dos cachorros sumiram Some of the dogs are gone
Todo
1
Ou talvez sejam determinantes aplicados a outras categorias de palavras que não são nomes, mas não
faremos esta discussão aqui.
287
Cadernos da Semana de Letras UFPR Ano 2011 Volume II – Trabalhos Completos
Há razões para se acreditar que este ‘todo o’ das sentenças não sejam
determinantes. A sentença (7), por exemplo, poderia ser parafraseada por
Every / All
O uso destes determinantes nestes dois primeiros casos (every e all + nome
plural), assim como no português brasileiro, parece intercambiável. As diferenças
que podem ocorrer entre (11) e (12) pertencem ao âmbito da intenção do falante, o
que não faz parte da abstração feita neste trabalho.
(16) I waited for you all day Eu esperei por você o dia todo
(17) All I want is the money Tudo que eu quero é o dinheiro
All of + dêitico
Todo / Todos + dêitico / Todo +dêitico Every / All + (dêitico) / All of + dêitico
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Cadernos da Semana de Letras UFPR Ano 2011 Volume II – Trabalhos Completos
Todo homem
Todo homem pensa Every man thinks Every man thinks
pensa
Algum / Um
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Cadernos da Semana de Letras UFPR Ano 2011 Volume II – Trabalhos Completos
Some / A
ALGUM / UM SOME / A
Alguns homens
Alguns homens
Some men run Some men run correm
correm
Uns homens correm
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Cadernos da Semana de Letras UFPR Ano 2011 Volume II – Trabalhos Completos
corre runs
Alguns dos homens Some of the men Some of the Alguns dos homens
correm run men run correm
Nenhum / No / None of
‘Nenhum’ pode ser traduzido por ‘no’, e só é usado com nomes no singular.
Ele pode preceder ou suceder o nome. Se ele ocorre com ‘de’ + dêitico, a tradução é
‘none of the’, e só acompanha nomes no plural:
‘No’ é um dos poucos determinantes que não podem ser usados dentro do
sintagma nominal sem o nome, ou seja, não pode funcionar como um pronome.
Para isto usa-se ‘none’ ou ‘no one’.
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Cadernos da Semana de Letras UFPR Ano 2011 Volume II – Trabalhos Completos
A tradução para ‘muitos’ ou ‘muito com nomes contáveis é ‘many’ ou ‘a lot of’.
Para o uso com nomes não-contáveis, a mais adequada é ‘a lot of’ ou ‘much’2.
‘Muito’ também pode ser usado como advérbio ou pronome, o que exclui a
possibilidade de ser um determinante3:
2
Much geralmente não é usado em afirmativas. Uma das exceções é much of.
294
Cadernos da Semana de Letras UFPR Ano 2011 Volume II – Trabalhos Completos
‘Pouco’ também pode ocorrer, da mesma maneira que ‘muito’, como advérbio
ou pronome.
‘Few’ e ‘a few’ são determinantes usados com nomes contáveis. Parece haver
uma diferença de intencionalidade relevante entre eles:
3
Da maneira como definimos determinantes aqui
295
Cadernos da Semana de Letras UFPR Ano 2011 Volume II – Trabalhos Completos
PORTUGUÊS INGLÊS
296
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INGLÊS PORTUGUÊS
Referências bibliográficas
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Cadernos da Semana de Letras UFPR Ano 2011 Volume II – Trabalhos Completos
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Cadernos da Semana de Letras UFPR Ano 2011 Volume II – Trabalhos Completos
Delimitação do corpus
FRANCÊS I
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302
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FRANCÊS
INTERMEDIÁRIO III
discordante em relação ao que lhe foi passado: “Tenho a impressão de que são
arrogantes [os franceses], porém não acredito que o são de fato”; “Pessoas muito
elegantes com grande universo cultural, bastante educados, apesar de ouvir dizer o
contrário”. Ou ainda este depoimento em que o aluno entende que sua forma de
avaliar não é correta: “São um pouco esnobes, mas sei que faço um juízo
equivocado”. Ou este outro em que o aluno reconhece que há uma representação
estereotipada negativa e preconceituosa sobre a língua francesa e ele acaba
reforçando isso: “acho uma língua normal, nem gay, nem bonita”. Quanto aos termos
“gay” e “bonita”, o aluno se posiciona aqui apontando que os estereótipos mais
comuns sobre a língua francesa são esses, e que o termo língua “gay” pode de
alguma forma se opor ao termo “bonita” e seu conceito de língua dita “normal” não
se encaixa nesses termos citados.
Verifica-se aqui, deste modo, que esses alunos parecem em alguns
momentos compartilhar do senso comum descrito por RUBEM ALVES (2003), que
diz que o mundo de cada um parece sempre lógico do seu ponto de vista, assim
como demonstra também que estamos diante de sujeitos fragmentados e
contraditórios de acordo com HALL (2005). Porém, em outros momentos, isso não
acontece. Entretanto, se por um lado estes alunos não chegam a relativizar o
estereótipo, por outro, aparece o não-estereótipo em suas declarações, visto que
não é uma crença rígida como nos moldes dos autores MOSCOVICI (2003) e ABRIC
(1996), que seria o pensamento único, estabelecendo características rígidas sobre
pessoas, fatos ou eventos. E neste caso, o sentido da frase ou da palavra dentro do
discurso não está nela mesma, mas encontra-se dentro das condições de produção
do aluno, bem como do que ele traz na memória do seu discurso no momento em
que responde ao questionário.
No depoimento: “Eu os admiro por serem amigos”, aparece uma
representação mais positiva, diferente da anterior. Estas frases foram aqui
destacadas pela sua diversidade de opiniões em relação às outras da pesquisa,
porém elas não representam o que a maioria dos alunos pesquisados pensa a
respeito da língua e cultura francesas.
Como já foi dito antes, os estudos sobre representações sociais são bastante
amplos, e isso se deve ao fato de que eles são realizados em diversas áreas, com
suas diferentes tradições de pesquisa, em que o próprio conceito do que venha a ser
304
Cadernos da Semana de Letras UFPR Ano 2011 Volume II – Trabalhos Completos
representação encerra em si uma complexidade que lhe possibilita ser analisada sob
vários olhares, de natureza psicológica ou social. Como lembra SPINK (1993: 90), “é
consenso entre os pesquisadores da área que as representações sociais, enquanto
produtos sociais têm que ser sempre referidas às condições de sua produção”.
Da mesma forma, para a ADF não é o dizer ou a intenção de quem produz o
discurso que faz aparecer a representação estereotipada e sim as condições de
produção dentro de um contexto específico, ou seja, as relações que o aluno
estabelece e mantém com sua memória que são remetidas nesses discursos, pois
os sentidos não estão nas palavras por elas mesmas, mas vão além delas. Exemplo
disso está no fato de um determinado aluno declarar que os franceses “são
educados, mas ao contrário do que pensava não se vestem bem”. Aqui, considero
que o aluno demonstra ter uma impressão mais positiva dos franceses, por um lado
e, por outro, ele passa a ter uma outra noção do referencial. É interessante observar
que sua concepção de que os franceses são educados, não mudou; sua
representação, que acredito ser positiva, permaneceu neste caso. Porém, o que
alterou, acredito eu, foi de sua visão mais positiva – vestir-se bem, para uma visão
mais negativa – não se vestem bem. Essa declaração traz consigo uma ideologia
que a sustenta: a idéia de que todo francês é chique e por isso se veste bem. É
interessante observar, que alguns professores incorporam este estereótipo do
chique, do vestir bem de modo tão extravagante que dificilmente o aluno terá outra
visão do nativo francês que não essa.
Neste trecho a seguir, um dos alunos afirma que os franceses “Não gostam
de falar outra língua (acho isso um erro)”. Será que todos os franceses são assim?
De onde vem esta afirmação? Que discurso estaria determinado pelas posições
ideológicas colocadas em jogo no processo sócio-histórico? De fato, os franceses de
certo foram e ainda são um pouco resistentes ao estrangeirismo e isso se explica
por que falar francês estava na moda na época do Classicismo francês em que se
pode destacar, por exemplo, a criação das academias financiadas e reguladas pelo
rei Luiz XIV; o salto alto foi criado por ele, assim como as regras da língua e talvez
seja por isso que os franceses são tão afeiçoados a sua língua, e se impõem como
tal ao estrangeiro. Devido ao processo de globalização, isso também está mudando.
Em Paris, os garçons, hoje em dia, só querem falar em inglês.
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no ambiente local e que está culturalmente construída, o que para Moscovici (1978,
p. 289), é a própria representação que emerge e tem origem na objetivação e na
ancoragem.
Assim, quando um aluno do francês III revela que “a França é linda, apesar de
não conhecê-la, onde se podem encontrar ótimos vinhos e queijos”, esses conceitos
passam para esquemas ou imagens concretas; e pela generalidade de seu emprego
se transformam em reflexos do real, pois passam a ter valor de verdade segundo o
próprio aluno que está apoiado pela ancoragem e sua rede de significações, em
torno do que foi dito, relacionando assim este objeto a valores e práticas sociais.
A representação passa então a se enraizar socialmente e se integrar
cognitivamente no sistema preexistente e se transforma nesta relação enraizamento-
integração, insere-se no pensamento constituído e que terá como resultado o
núcleo figurativo, e este por sua vez será capaz de orientar percepções e
julgamento sobre a realidade.
Portanto, para compreender, intervir, modificar ou relativizar determinada
representação estereotipada com relação aos comportamentos determinados no
discurso dos alunos do Celin, e com o objetivo de provocar mudanças em uma
representação social e, portanto, nas práticas de sala de aula, só se terá êxito -
principalmente no que diz respeito à estabilidade e consistência – quando se chegar
a um trabalho no sentido de descrever, analisar e compreender como uma
determinada representação está organizada. Para isso, é preciso antes de tudo
penetrar no núcleo figurativo (MOSCOVICI, 2003) ou núcleo central de acordo
com JEAN-CLAUDE ABRIC (1996) ou ainda o que está presente no Interdiscurso,
segundo a ADF, e sendo assim, ele não só aparece como a parte mais sólida e
estável da representação, como também é dele que depende o significado do que
seja representação. E como penetrar nesse núcleo figurativo ou central dos
alunos? Tentando entender o processo da representação estereotipada que recusa
a diferença do outro negando o próprio processo relacional da construção da
identidade, que nega o jogo da diferença, que simplifica e representa uma falsa
realidade e, com isso, nega a necessidade da alteridade e do hibridismo na
construção da identidade, pressupondo que haja identidades puras, não-híbridas.
(Bhabha, 2004, p.123).
307
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1
Aqui, entende-se discurso como efeito de sentido, pois é no discurso que se configura a relação
entre língua, cultura e ideologia. Vale lembrar que, para cada momento em que se dê uma
investigação, o discurso produzido em sala de aula é específico, isto é, será sempre diferente.
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alunos deveriam ser levados a olhar, não apenas para o outro, mas também para si
próprios numa visão introspectiva que lhes permita perceber que o indivíduo
moderno é hoje fragmentado, globalizado, está conectado por computador, TV a
cabo e que há uma certa crise de identidade que é parte de um processo mais
amplo de mudança que desloca estruturas das sociedades modernas. Isso já vem
ocorrendo há algum tempo e as referências passam a ser outras, pois antes
estávamos ancorados por uma estabilidade confortável no mundo social.
Portanto, visto que este trabalho tem como finalidade investigar a
representação que os alunos do Celin têm da língua e cultura francesas, há de se
considerar que esses alunos estão inseridos num contexto de sujeito pós-moderno,
fragmentado, de várias identidades, contraditório, assumindo identidades diversas
em determinados momentos (temos exemplo disso em seus depoimentos). Hoje,
mais do que nunca, no discurso desses alunos, há indícios dessa fragmentação
devido ao próprio meio social ou cultural no qual eles estão inseridos e que assim
determinará suas crenças sobre outras culturas e linguagem, sendo determinante na
formação do seu caráter e na sua maneira de ver o mundo.
Por fim, a palavra chave é mudança, que nem sempre é um passo fácil,
mesmo quando a necessidade da “inovação” parece bastante óbvia. Um bom
exemplo disso é o fato de que tanto a França como a língua francesa são vistas
como “chiques” e, o desafio é poder mostrar talvez outra França ou outra realidade
diferente da realidade francesa, com seus problemas tais quais os de outros países,
como, por exemplo, de países francófonos como o Senegal, Marrocos, Togo etc.,
onde se utiliza o francês como língua oficial, porém com particularidades em seus
modos e costumes. E para isso é preciso ser criativo e audacioso já que o Celin se
propõe a trabalhar a interculturalidade e ser um espaço onde esse tipo de reflexão e
de pesquisa é possível. Também nós professores podemos fazer a nossa parte,
caso contrário não terá sentido este desafio. Isso com certeza contribuirá para uma
mudança, ainda que não seja solução para o problema da intolerância entre os
povos, mas poderá ser um começo. Poderemos, para isso, além de questionar
nosso trabalho e tentar melhorá-lo, testar novas metodologias e materiais,
desenvolvendo novas atitudes para com os alunos e engajando-nos em diversas
atividades de desenvolvimento pessoal e profissional.
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Referências bibliográficas
ALVES, Rubem. Filosofia da Ciência: introdução ao jogo e suas regras. São Paulo:
Loyola, 2003.
NUNAN, David. Action research in language education. In: EDGE, J.; RICHARDS, K.
(Eds.). Teachers develop teachers research: papers on classroom research and
teacher development. Oxford: Heinemann, 1993. p. 39-50.
SPINK, Mary J. O estudo empírico das representações sociais. In: SPINK, Mary J.
(Org). O conhecimento no cotidiano: as representações sociais na perspectiva da
Psicologia social. São Paulo: Brasiliense, 1993. p. 85-108.
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Cadernos da Semana de Letras UFPR Ano 2011 Volume II – Trabalhos Completos
Criando um nome
nome. A personagem argumentará que “agora não seria decente” (DEFOE S/D: 11)
dizê-lo e o melhor seria esperar sua morte. A preocupação com sua reputação é,
assim, relativa, e nos parece que há algo a perder ainda em vida. Ao analisar a
situação econômica de Moll Flanders e seus temores em relação a ela, podemos
supor que suas preocupações atuais repousam na ideia de ter seus bens
confiscados, ou a alguma herança que possa vir a deixar ou receber, e sua
prudência prefira deixá-la no anonimato a fim de proteger-se de novos julgamentos.
Não poderemos, entretanto, afirmar com plena certeza os motivos pela ocultação do
nome.
Mais à frente, diferentemente do que a ideia dessa apresentação nos dá, Moll
Flanders se mostrará conhecida por sua alcunha e não pelo nome verdadeiro,
embaraçando ainda mais a questão.
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Cadernos da Semana de Letras UFPR Ano 2011 Volume II – Trabalhos Completos
A alegação de sua inocência frente aos vícios e crimes que cometeu se inicia
por uma crítica ao sistema educacional inglês que, diferentemente da “nação
vizinha, não sei se a França”, não abandona os filhos de criminosos como ela fora
abandonada, mas “toma imediatamente conta deles (...), os criam, vestem,
alimentam, educam e, quando estão aptos para isso, os colocam em profissões ou
empregos” (DEFOE S/D: 11), podendo, portanto tornarem-se pessoas honestas e
trabalhadoras, o que ela não pôde. Suas atitudes estiveram ligadas, assim, à sua
situação de pobreza que é a “perdição infalível da virtude” (DEFOE S/D: 148), como
a define, e afirma claramente que “fora a pobreza que me arrastara para aquela
situação e era a pobreza que me prendia a ela” (DEFOE S/D: 96).
Suas defesas não terminam aí, mas ainda acrescenta que se tivesse a
chance de ter um bom marido, sua situação seria diferente:
Conclui, desse modo, que foi a porta da necessidade que a levou à vida de
crimes, afinal ela “não era perversa ao ponto de praticar uma má ação apenas por
vício” (DEFOE S/D: 86). Sua ingenuidade e ignorância também teriam contribuído
para as escolhas erradas que fez, já na juventude, quando carecia de orientação e
educação, deixando-se levar pelo primeiro homem por quem se apaixonou e que lhe
oferecia dinheiro para conquistá-la. “O dinheiro confundiu-me mais que o amor”,
afirma Moll Flanders e inicia um discurso educador, para possíveis leitores de seu
relato: “Gostaria que, se ela fosse lida por jovens inocentes, lhes ensinasse a
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1
Existem no romance outros trechos, mas seria inviável citar todos, por isso efetuamos uma seleção
procurando, de todo modo, demonstrar a grande quantidade em que aparecem, reforçando nossa
linha de argumentação.
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Cadernos da Semana de Letras UFPR Ano 2011 Volume II – Trabalhos Completos
A partir dessa constatação, Watt analisou Moll Flanders como vítima de uma
circunstância “que qualquer um poderia ter experimentado” (WATT 2007: 101),
iniciada no século XVII, que é o individualismo econômico. Sua personalidade, em
meio a isso, surge como a de uma solitária, de visão pragmática, a quem as
relações pessoais pareciam aleatórias (WATT 2007: 100). Virginia Woolf, ao
escrever sobre o romance em análise, dirá sobre essa última qualificação que as
relações de Moll não eram casuais ou transitórias despropositadamente, mas
justifica que “she has no time to waste upon the refinements of personal affection,
one tear is dropped, one moment of despair allowed, and then ‘on with the story’”
(WOOLF 2002: XIV). Essa consideração de Woolf nos aponta para a abrangência da
personagem, ou seja, não há uma única razão ou motivação para suas ações e
discursos, ela encontra-se mergulhada, ao mesmo tempo, em suas próprias
discrepâncias e dúvidas internas, e nas de sua época e circunstâncias que culminam
na constante necessidade de on with the story. Não haverá tempo, nos desafios
diários, para construir uma visão coerente de si mesma, será preciso seguir o fluxo
das exigências atuais. Aproximando-se da interpretação de Watt, Virginia Woolf dirá
que Moll Flanders “was a woman on her own account” (WOOLF 2002: XIV), e
acrescenta:
She has to depend entirely upon her own wits and judgement, and to
deal with each emergency as it arises by a rule-of-thumb morality
which she has forged in her own head (WOOLF 2002: XIV).
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Cadernos da Semana de Letras UFPR Ano 2011 Volume II – Trabalhos Completos
Nada impressiona mais que sua energia (...). Tudo acontece com
Moll Flanders e nada deixa marcas; o próprio tom de suas
reminiscências nos garante que nenhuma vicissitude consegue
abalar-lhe a vitalidade (...). Na verdade o livro inteiro consiste de uma
série de variações sobre o eterno desafio do individualismo à
ortodoxia do presente e à sabedoria do passado (WATT 2007: 117).
Criando jogos
Mais uma vez aludiremos ao primeiro homem por quem Moll Flanders
apaixonou-se. Dos catorze até os dezoito anos de idade, Moll foi morar com uma
família rica que a acolheu após a morte da ama que tomava sua conta. Nessa casa
havia dois irmãos, de idade próxima a sua, e o mais velho deles foi por quem a
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Cadernos da Semana de Letras UFPR Ano 2011 Volume II – Trabalhos Completos
femininas. Isso se evidencia quando ela descreve a relação da prostituta com seu
amante de modo a colocar em questão a sagacidade masculina:
Referências bibliográficas
WOOLF, Virginia. Defoe. In DEFOE, Daniel. Moll Flanders. New York: The
Modern Library, 2002.
324
Cadernos da Semana de Letras UFPR Ano 2011 Volume II – Trabalhos Completos
Além de diretor e gravurista, Burton também atuou como escritor. Até agora,
sua única obra publicada, The Melancholy Death of Oyster Boy & Other Stories, foi
lançada em 1997 e reúne 23 pequenas histórias em verso, que, como alguns de
seus filmes, foram criadas a partir de ilustrações suas feitas ao longo dos anos. A
versão brasileira só foi publicada dez anos depois, em 2007, e o tradutor, Márcio
1
As informações de cunho biográfico se baseiam no livro Burton on Burton (2006), que consiste em
uma série de conversas entre o diretor e o jornalista Mark Salisbury, e na cronologia apresentada
pelo livro Tim Burton: Interviews (2005), com entrevistas compiladas por Kristian Fraga.
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Cadernos da Semana de Letras UFPR Ano 2011 Volume II – Trabalhos Completos
326
Cadernos da Semana de Letras UFPR Ano 2011 Volume II – Trabalhos Completos
Em nossa leitura do livro, notamos ser possível fazer uma distinção das
histórias a partir de um eixo temporal. Enquanto que algumas delas se organizam a
partir de um tempo que é o da narrativa, ou seja, de uma sequência cronológica de
eventos, a maioria das histórias é mais curta e se organiza a partir de um tempo que
é o do evento, do acontecimento num dado instante. Outras três histórias parecem
integrar ambos os grupos ao mesmo tempo. São narrativas, na medida em que
fazem ressurgir personagens de outras histórias, mas são episódicas, na medida em
que mostram apenas uma situação específica na vida daquele personagem.
327
Cadernos da Semana de Letras UFPR Ano 2011 Volume II – Trabalhos Completos
Talvez possamos pensar que, nas histórias que aqui chamamos de narrativas
(na falta de termo mais apropriado), o narrador se concentre na organização mais
cronológica da narrativa, distanciado até mesmo nos raros momentos em que se faz
presente: na forma de uma primeira pessoa, mas do plural, marcando aí uma
proximidade com o personagem que, no entanto, não é apenas desse narrador em
particular, é nossa (portanto, talvez também do leitor). Assim, essa passagem para
uma voz de narrador na primeira pessoa do plural construiria uma certa proximidade,
mas sem quebrar a perspectiva organizadora do narrador em terceira pessoa.
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Cadernos da Semana de Letras UFPR Ano 2011 Volume II – Trabalhos Completos
centralmente para a construção de uma proximidade entre essa voz que narra e as
personagens a que se refere. Nesse sentido, talvez pudéssemos pensar que se
trata, aqui, da explicitação de um olhar que não constrói esses personagens como
meras bestialidades. Não se trataria, portanto, de compor um bestiário, no sentido
tradicional de coleção de monstruosidades, o que nos remeteria à dimensão
espetacular que esses indivíduos bizarros alcançam nas mais variadas formas de
espetáculos de horror, sempre cruelmente exploradas por um apresentador ou dono
de circo. Ao contrário, o que essas variações na voz do narrador parecem explicitar
é justamente uma intimidade com esses personagens, um pertencimento a esse
mesmo mundo. Em última análise, cada um desses personagens seria não uma
curiosidade, mas sim, apenas mais "um de nós". De perto, temos todos esses traços
de monstruosidade, somos todos dignos desse pequeno show de horrores.
329
Cadernos da Semana de Letras UFPR Ano 2011 Volume II – Trabalhos Completos
Foi com base nisso que partimos então para uma leitura da tradução de
Suzuki, na terceira fase do trabalho. Nosso objetivo era realizar um exercício de
leitura crítica desse trabalho enquanto texto traduzido, para verificar em que medida
a leitura de Suzuki se aproximava ou se distanciava daquela que realizamos nas
fases anteriores. Para isso, realizamos uma análise da tradução das mesmas quatro
histórias com que trabalhamos na segunda fase deste trabalho.
330
Cadernos da Semana de Letras UFPR Ano 2011 Volume II – Trabalhos Completos
A análise das quatro histórias que analisamos nos permite afirmar que a
tradução de Suzuki se mostrou bastante consistente do ponto de vista da coerência
interna. Ao confrontarmos a tradução à nossa leitura, as diferenças que
encontramos não se mostraram como um problema de tradução, mas como uma
perspectiva de leitura diferente da nossa, igualmente justificável e plausível. Sem,
portanto, tentar julgar a tradução de uma perspectiva do “bom” ou do “ruim”, mas sim
no intuito de realizar um exercício de crítica produtiva, conforme os conceitos de
Berman e Schlegel, as diferenças de leitura apontaram para um eixo de organização
de outro projeto de tradução.
331
Cadernos da Semana de Letras UFPR Ano 2011 Volume II – Trabalhos Completos
Referências bibliográficas
BERMAN, Antoine. Pour une Critique des Traductions : John Donne. Paris:
Gallimard, 1995.
BURTON, Tim. O Triste Fim do Pequeno Menino Ostra e Outras Histórias.
Tradução de Márcio Suzuki. São Paulo: Girafinha, 2007.
BURTON, Tim. The Melancholy Death of Oyster Boy & Other Stories. Nova York:
Harper Collins, 1997.
BURTON, Tim; SALISBURY, Mark (org.). Burton on Burton. 2. ed. Londres: Faber
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CARDOZO, Mauricio Mendonça. O Significado da Diferença: A Dimensão Crítica da
Noção de Projeto de Tradução Literária. Tradução e Comunicação – Revista
Brasileira de Tradutores. Nº 18, Ano 2009. Disponível em
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Acesso: 23 jul. 2011.
DOONAN, Jane. The Modern Picture Book. In: HUNT, Peter (ed.). International
Companion Encyclopedia of Children’s Literature. Nova York: Routledge, 1996.
FERREIRA, Aurélio Buarque de Holanda. Novo Dicionário Aurélio Eletrônico v.
5.11a. Curitiba: Positivo, 2004.
FRAGA, Kristian (org.). Tim Burton: Interviews. 1. ed. Jackson: University Press of
Mississippi, 2005. Coleção Conversations with Filmmakers.
MAGLIOZZI, Ron; HE, Jen. Tim Burton. Nova York: MoMA, 2010.
THOMPSON, Frank. Tim Burton’s The Nightmare Before Christmas. Nova York:
Disney Press, 2009.
332
Cadernos da Semana de Letras UFPR Ano 2011 Volume II – Trabalhos Completos
The End
(Allen Ginsberg, 1960)
1 I am I, old Father Fisheye that begat the ocean, the worm at my
own ear, the serpent turning around a tree,
2 I sit on the mind of the oak and hide in the rose, I know if any
wake up, none but my death,
3 come to me bodies, come to me prophecies, come all
foreboding, come spirits and visions,
4 I receive all, I’ll die of cancer, I enter the coffin forever, I close
my eye, I disappear,
5 I fall on myself in winter snow, I roll in a great wheel through
rain, I watch fuckers in convulsion,
6 car screech, furies groaning their basso music, memory fading
in the brain, men imitating dogs,
7 I delight in a woman’s belly, youth stretching his breasts and
thighs to sex, the cock sprung inward
8 gassing its seed on the lips of Yin, the beasts dance in Siam,
they sing opera in Moscow,
9 my boys yearn at dusk on stoops, I enter New York, I play my
jazz on a Chicago Harpsichord,
10 Love that bore me I bear back to my Origin with no loss, I float
over the vomiter
11 thrilled with my deathlessness, thrilled with this endlessness I
dice and bury,
12 come Poet shut up eat my word and taste my mouth in your
ear.
O Fim
(tradução: Claudio Willer)
1 Eu sou Eu, velho Pai Olho de Peixe que procriou o oceano, o
verme no meu próprio ouvido, a serpente enrolada na árvore,
2 Eu me sento na mente do carvalho e me oculto na rosa, eu sei
se alguém desperta, ninguém a não ser minha morte,
3 vinde a mim corpos, vinde a mim profecias, vinde a mim
agouros, vinde espíritos e visões,
4 Eu recebo tudo, eu morro de câncer, eu entro no caixão para
sempre, eu fecho meu olho, eu desapareço,
5 Eu caio sobre mim mesmo na neve de inverno, rolo em uma
grande roda pela chuva, observo a convulsão dos que fodem,
6 carros guincham, fúrias gemem sua música de fagote, memória
apagando-se no cérebro, homens imitando cães,
7 Eu gozo no ventre de uma mulher, a juventude estendendo
seus seios e coxas para o sexo, o caralho pulando para dentro
8 derramando sua semente nos lábios de Yin, feras dançam em
Sião, cantam ópera em Moscou,
9 meus garotos excitados ao crepúsculo nas varandas, chego a
Nova York, toco meu jazz num Clavicórdio de Chicago,
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Cadernos da Semana de Letras UFPR Ano 2011 Volume II – Trabalhos Completos
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Cadernos da Semana de Letras UFPR Ano 2011 Volume II – Trabalhos Completos
como que indica uma leve suspensão no ato sexual retratado, o que pode ser lido
como o momento entre a penetração e o orgasmo.
Após a leitura inicial do poema e da busca pelos aspectos formais,
considerando que a poesia de Allen é freqüentemente alusiva e faz referência
muitas vezes música, pinturas, escritores pré-geração Beat e também seus
companheiros nesse movimento, e correntes religiosas, é perceptível que certo
background é necessário ao leitor para compreender o texto. O entendimento que o
leitor tem do contexto do escritor influencia no entendimento que tem do texto.
Assim, passamos à identificação das referências e das significações possíveis para
elas no poema.
No verso 1, Ginsberg inicia dizendo “I am I”1 (GINSBERG, 1960), e logo em
seguida despeja uma seqüência de caracterizações para o seu eu do poema. Ele se
define como “old Father Fisheye that begat the ocean”2 (GINSBERG, 1960), ou seja,
uma criatura poderosa o suficiente para gerar a imensidão de água salgada. Fisheye
pode se referir à fotografia, atividade que Ginsberg exercia utilizando uma câmera
Canon com lentes Fisheye. Essas lentes eram capazes de registrar imagens
hemisféricas e distorcidas, e uma citação referente a elas, provavelmente seu
slogan, era “sees out of all eyes differently at once”3. Ou seja, além de ter a
capacidade de gerar o oceano, também enxergava através de todos os olhos. Ele é
“the serpent turning around a tree”4 (GINSBERG, 1960), em uma clara referência
bíblica: ele é a tentação.
No verso 2, essa caracterização prossegue: ele consegue tocar a mente do
carvalho e se esconder na rosa, ou seja, ele está ligado à natureza de uma maneira
única. O eu tem uma percepção única em relação às coisas que despertam no seu
meio, embora neste momento o único despertar é o da morte. A criatura poderosa
percebe que é finita.
Contudo, no verso seguinte, esse eu de Ginsberg no poema está invocando
“bodies” (GINSBERG, 1960), “prophecies” (GINSBERG, 1960),“spirits and visions”5
(GINSBERG, 1960), elementos que podem ser lidos como externos a ele, e no verso
1
A tradução dos versos será dada nas notas de rodapé. A versão para o português brasileiro é de
Claudio Willer. Aqui, temos “Eu sou eu”.
2
“Velho Pai Olho de Peixe que procriou o oceano”.
3
“Vê de todos os olhos de maneira diferente ao mesmo tempo” (tradução nossa).
4
“A serpente enrolada na árvore”.
5
“corpos”, “profecias”, “espíritos e visões”.
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Cadernos da Semana de Letras UFPR Ano 2011 Volume II – Trabalhos Completos
4, fala que está aberto a receber essas iluminações. Aqui, Allen se utiliza de um
elemento muito comum em seu texto: essas invocações do incorpóreo funcionam
como uma apologia do uso de drogas como modo de expandir a consciência. Esta
era uma postura seguida pelos Beats. Também expressa, de maneira um pouco
mais velada, o desejo que tinha de ser um profeta de sua geração. Estes dois
aspectos do Beat influenciam a leitura de maneira profunda, pois temos de lidar com
a perspectiva de que toda a caracterização seja uma mera fantasia alucinada de
uma mente sob efeito de narcóticos, e não tem, necessariamente, o sentido que
estamos atribuindo.
No verso 4, temos a única alteração em termos de tempo verbal do poema
todo, que até então apresentava apenas conjugações no tempo presente, indicando
um acontecimento que se dá com o eu em tempo real. Logo após afirmar que está
aberto a receber os espíritos e visões, o eu afirma que morrerá de câncer6. Isso
provavelmente indica uma forma de realismo em relação ao fim que sua vida
desregrada conduzirá. Este verso contém um dos dois problemas de tradução que
encontramos na versão de Claudio Willer, que por algum motivo não manteve essa
alteração no tempo verbal. Ele também enfatiza que, uma vez que tenha entrado no
caixão para a eternidade, ele desaparecerá. A idéia de morte como
desaparecimento é recorrente nos escritos desse poeta.
No verso 5, o eu entra em uma “great wheel”7 (GINSBERG, 1960) e começa a
experienciar aspectos mundanos que até então lhe eram desconhecidos. Essa
grande roda pode ser lida como o Tao, roda do equilíbrio na cultura Taoísta, sendo
uma referência a essa cultura que se sustentaria no contexto do poeta. Porém, no
contexto do poema, é mais provável que essa roda seja uma engrenagem que o
leva às experiências retratadas nos versos seguintes – a engrenagem que o leva
através do movimento Beat. A primeira coisa que ele presencia é o sexo. A liberação
sexual em relação, principalmente, a sexo casual e a sexo homossexual, era uma
das bandeiras defendidas pelos Beats, e era um grande tabu na sociedade
americana moralista e conservadora da época. Muitos livros escritos pelos
integrantes da geração Beat sofreram processos por serem considerados
pornográficos e ofensivos, e a publicação de alguns foi até proibida.
6
Ironicamente, o óbito de Ginsberg de fato se deu por câncer.
7
“Grande Roda”.
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8
“nos lábios de Yin”.
337
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9
“Clavicórdio”.
10
Vomitório”. Ver parágrafo seguinte sobre problemas da tradução de Claudio Willer.
11
“Poeta”.
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Dedicated
to Peter Orlovsky
in
Paradise.
12
“Dedicado / a Peter Orlovsky / no/ Paraíso / ‘Prova minha boca em teu ouvido’”.
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Cadernos da Semana de Letras UFPR Ano 2011 Volume II – Trabalhos Completos
Referências bibliográficas
GINSBERG, Allen. Howl, Kaddish and Other Poems. Londres: Penguin Books,
2009.
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Cadernos da Semana de Letras UFPR Ano 2011 Volume II – Trabalhos Completos
Quando se fala em Edgar Allan Poe há uma vasta obra a seu respeito. Vários
autores já trataram sobre seus poemas, seu fazer poético, seus contos, enfim, a
escritura de Poe em geral. São muitas as interpretações que se dá para seus poemas e
contos e muitas as abordagens que norteiam análise de sua obra. Aqui será
apresentada uma reflexão sobre as diferentes interpretações de um de seus poemas:
Sonnet – Silence. Será, também, colocada em questão a origem de tais interpretações,
ou seja, serão abordadas interpretações não somente de reconhecidos estudiosos da
obra poética de Poe, bem como de leitores que, por vezes, podem não possuir um
vasto conhecimento de teoria literária. As interpretações desses leitores, doravante
leitores comuns, foram encontradas na internet e, em sua maioria, publicadas
anonimamente. Contudo, mesmo sendo escassas as informações no tocante à
procedência de tais interpretações, essas não carecem de riqueza e embasamento.
Antes de apresentar os diferentes entendimentos dessa obra, apresentar-se-á um breve
panorama sobre a obra de Poe.
Edgar Allan Poe foi um escritor norteamericano que viveu entre 1809 e 1849.
Toda sua vida foi dedicada às letras, chegando até a afirmar que esse era o único ofício
apropriado a um homem: “[...] Literature is the most noble of professions. In fact, it is
about the only one fit for a man. For my own part, there is no seducing me from the
path.” (POE, 1849).
Segundo Dufrenne há dois grupos de poetas: o poeta artesão ou o poeta
inspirado. Os pertencentes ao primeiro grupo são “artesãos da linguagem” (1969: 124),
eles constroem o poema de forma deliberada e calculada. Já ao segundo grupo
pertencem poetas que são “menos ciosos de seu ato do que propriamente de seu
estado” (idem: 219), isto é, ocupa-se mais do “estado poético” do que da construção do
poema.
Das obras de Poe são amplamente conhecidos os contos, bem como poemas
como o célebre The Raven, cuja primeira publicação ocorreu em 1845. Como muitos
341
Cadernos da Semana de Letras UFPR Ano 2011 Volume II – Trabalhos Completos
outros autores, falou sobre o seu fazer poético em The Philosophy of Composition, no
qual é bem visível que seu modo de escrever o enquadra como participante do primeiro
grupo.
“I select The Raven, as the most
generally known. It is my design to
render it manifest that no one point in
its composition is referable either to
accident or intuition – that the work
proceeded, step by step, to its
completion with the precision and
rigid consequence of a mathematical
problem.” (POE, 1846: 164)
Parafraseando Lima e Aissa Poe estava correto ao dizer que trabalhos como The
Philosophy of Composition são “desideratum”, ou seja, algo que faltava e que era
necessário, é um processo de reconstrução do processo criador de um poema
terminado. Esses trabalhos não eram e não são comuns. E também o fato de ele haver
escolhido o número de versos antes de começar a escrever The Raven acaba com a
visão de inspiração. Essas características que descrevem Poe como um poeta artesão.
Tenso isso em vista a obra de Poe – principalmente sua obra poética – não pode ser
vista meramente como uma confissão emocional.
Poe antes de até mesmo determinar o número de versos que haveria no poema
decide o assunto sobre o qual sua obra tratará. E para ele qualquer que sejam os
recursos ou estratégias usadas serão feitas em função do conteúdo. Essa visão vai ao
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Cadernos da Semana de Letras UFPR Ano 2011 Volume II – Trabalhos Completos
No único poema publicado por Poe em 1840 há a distinção entre dois silêncios:
“o do mar e o da praia, do corpo e da alma” (idem). Poe era um estudioso do seu efeito
sobre o ser humano, segundo Quinn e Shawn há um contraste entre “the merely
passive silence that hovers over those resting places of human souls (...) and that
shadow cast by silence upon the soul” (1997: 294-295) nessa distinção é que haverá
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Cadernos da Semana de Letras UFPR Ano 2011 Volume II – Trabalhos Completos
diversos olhares interpretativos. No poema os são eles: “nunca mais” que “é o silêncio
corpóreo” e que “”nenhum poder do mal ele tem” e, em contra partida, aquele que Poe
chama de “elfo sem nome”. Ao analisar esse soneto, Quinn e Shawn dirão que o
primeiro é o silêncio passivo “that hovers upon those resting places of human souls we
have loved” (1997: 294) e portanto inofensivo. Já o “elfo sem nome” (POE, 1999: 48) é
por eles descrito como uma sombra projetada pelo silêncio sobre a alma e que esse é
“an active breeder of terror” (1997: 295). Seguindo essa mesma análise tem-se o
veredicto de que Poe traz não estados, mas a natureza desses por processo de
negação, ativando o papel do leitor no poema “thus he leaves to the imaginative reader
a frame into which he may fit any fear he desires” (idem). Para concluir essa análise os
escritores fecham dizendo: “the harmless silence is called “No More” – but the evil
silence is nameless” (idem).
Partindo para a interpretação dos leitores comuns é interessante observar as
inferências que são feitas. A análise que segue é de autoria anônima e aqui
chamaremos o autor de Leitor 1. Tal análise propõe que Poe esteja tratando dos
perigos do isolamento. E faz relação com a teoria do inconsciente apresentada por
Freud. Diz o Leitor 1: “Poe is explaning the dangeres of isolation. what the unconsious
side of the mind will do to you if you break your line of demarcation (The Term Freud
used to represent the barrier between the consious and the unconsious).” [sic] (Sonnet –
Silence Analysis, 2008). É interessante tratar a obra poética de Poe psicanaliticamente.
Para Leitor 1 o problema é ultrapassar a barreira do inconsciente, pois nesse momento
o “silêncio corpóreo (...) que nenhum poder do mal ele têm” (Poe, 1999: 48) torna-se o
“elfo sem nome” (idem) fazendo com haja dano. Para Freud inconsciente
“refere-se ao material não disponível
à consciência ou ao excrutínio do
indivíduo. No entanto o ponto
nuclear da abordagem psicanalítica
de Freud é a convicção da existência
do inconsciente como: receptáculo
de lembranças traumáticas
reprimidas; um reservatório de
impulsos que constituem fonte de
ansiedade, por serem socialmente
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Cadernos da Semana de Letras UFPR Ano 2011 Volume II – Trabalhos Completos
Um terceiro leitor, doravante Leitor 3, apresenta uma terceira hipótese. Para ele
o tema central do poema é o medo da morte. “The corporate silence is death and he
says ‘He is the corporate silence, dread him not’. Edgar Allan Poe then continues to say
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Cadernos da Semana de Letras UFPR Ano 2011 Volume II – Trabalhos Completos
‘No power hath he of evil in himself’ meaning death has no power over your life” (idem).
Para esse leitor a morte em si não é o problema, mas o medo que ela causa no ser
humano.
Como pode ser percebido Sonnet – Silence é uma obra que permite variadas
interpretações. Cada abordagem traz olhares distintos sobre essa obra de Poe. É
interessante como cada peculiaridade em cada uma das visões do poema são
embasadas na obra desde seu ponto de partida até sua conclusão, tornando-as
plenamente plausíveis. Sendo Poe um poeta artesão cuja obra é intencional pode-se
coligir que essa amplitude na interpretação tenha sido pensada pelo autor.
O objetivo desse trabalho ao trazer essas diferentes interpretações provenientes
de diferentes leitores é refletir sobre a validade das mesmas tento em vista o indivíduo
que analisou a obra, trazer, também, um questionamento de se a carreira acadêmica é
o único fator que importa ao validar determinada interpretação. Será que apenas
literatos detém o poder de julgar qual a correta visão ao analisar uma obra, ou os
leitores comuns podem tirar suas próprias conclusões baseados em seu conhecimento
de mundo?
Referências bibliográficas
LIMA, Dhandara Soares de; AISSA, José Carlos. O Fazer Poético de Edgar
Allan Poe e Fernando Pessoa. In: Anais do I Colóquio Internacional de Estudos
Linguísticos e Literários; 09, 10, 11/jun/2010; Paraná: Universidade Estadual de
Maringá, 2010.
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Cadernos da Semana de Letras UFPR Ano 2011 Volume II – Trabalhos Completos
POE, Edgar Allan. Tales of Grotesque and Arabesque. In: E.A.POE Society of
Baltimore. 1839. Disponível em: <http://www.eapoe.org/works/editions/tgavolI.htm>
Último Acesso em: 29/jul/2011.
______________. The Philosophy of Composition. Graham’s Magazine,
Boston, Vol. XXVIII, No.4, Abril 1846, p. 163-167. Disponível em:
<http://www.eapoe.org/works/essays/philcomp.htm> Último Acesso em: 29/jul/2011.
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Introdução
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O que Locke descarta por ser demasiado específico, Funes descarta por
parecer-lhe exatamente o oposto, ou seja, demasiado vago. Eis sua obsessão pelo
detalhe. É importante no contexto do conto a referência feita ao filósofo inglês, a
qual analisaremos a seguir.
Locke, em seu Ensaio sobre o entendimento humano (LOCKE, 2000: 20),
apesar de partir de um empirismo, segundo o qual todos os pensamentos e noções
são reflexo daquilo que um dia já sentimos ou percebemos através dos sentidos,
não se desliga de um conhecimento racional da realidade, prosseguindo em muitos
aspectos a linha cartesiana. Através dos sentidos, alguém só pode obter o que ele
chama de idéias sensoriais simples, as quais serão retrabalhadas pelo pensamento,
gerando as idéias de reflexão, que são o verdadeiro conhecimento. Essas
impressões simples que temos pelos sentidos são classificadas como qualidades
sensoriais primárias e secundárias. As qualidades primárias são inerentes aos
objetos, mensuráveis, e não dependem da observação do sujeito (extensão, peso,
forma, número), enquanto as secundárias só existem na impressão que causam aos
sentidos (gosto, cheiro, etc.) e, por isso, são variáveis conforme a acuidade desses.
Assim, Locke também determina, da mesma forma que René Descartes, que a
realidade possui características que o homem capta com a razão (primárias), e não
com os sentidos (secundárias).
Relacionando a filosofia de Locke com a aproximação à realidade
empreendida por Irineo Funes, vemos que este não chega a efetuar muitas idéias de
reflexão, que deveriam advir de sua superexperimentação dos objetos, decorrente
de sua sensoriedade apurada. Além disso, ele de fato perde a capacidade de
perceber as qualidades primárias no momento em que tem aguçada a capacidade
dos sentidos: a própria perda, já mencionada, da capacidade de dizer as horas
exatas e os nomes próprios, que, nesse sentido, são dados primários, pois a hora e
o nome não dependem de uma percepção, sendo fatos averiguáveis.
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Conclusão
Podemos concluir nosso trabalho retornando ao seu início, isto é, justificando seu
título: Funes: a experiência sem fim. Ele diz respeito, certamente, à essa experiência
da realidade que, de tão minuciosa e quantitativa, tende ao infinito. Mas não é só
isso. Também relaciona-se com a ausência de fins práticos, já que Funes não é
capaz de apresentar uma síntese de suas análises totalizantes. Desse modo, nos
parece que há uma função dessa personagem apontando para o extra-literário,
servindo como imagem literária dos perigos do excessivo naturalismo empírico em
voga nos séculos XIX e XX, o qual a figura de Borges no conto trata de rechaçar.
Referência bibliográfica
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(...)
o importante é reconhecer que a modalidade sinalizada funciona
também como meio primário de expressão da linguagem. As línguas
sinalizadas não dependem de outras línguas ou outras modalidades
– elas são línguas humanas totalmente independentes.
(...)
As palavras que as pessoas utilizam freqüentemente restringem sua
compreensão das coisas. Usar o termo língua de sinais parece
implicar que sinais é uma língua (Veja, por exemplo, o excelente livro
Vendo Vozes por Oliver Sacks [1989], em que ele usa o termo sinais
para referir-se às línguas de sinais em geral e à ASL em particular).
É importante que os estudantes entendam e se lembrem que a
sinalização é apenas uma forma de produzir uma língua em
particular, tanto quanto a fala é um modo de se produzir uma língua.
Língua de sinais está tão distante de se referir a uma língua em
particular quanto língua falada. As pessoas não falam língua falada;
elas falam determinadas línguas faladas, tais como grego, espanhol
ou alemão. A distinção é muito importante. Embora o termo língua de
sinais possa servir como um atalho conveniente para referir-se à
língua de sinais americana, o termo é perigoso porque ele incentiva
os estudantes a ignorar essa distinção. Por esse motivo, nós
preferimos usar o termo geral língua sinalizada quando nós não
estamos nos referindo a nenhuma língua de sinais em particular.
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palavra. Como exemplo no português, temos a substituição do fonema ‘m’ por ‘s’ nas
palavras ‘mala’ e ‘sala’. Na Libras, a alteração no uso do espaço que vai produzir
este efeito. Por exemplo, alterando-se a locação do sinal, mas, mantendo a mesma
configuração de mão e de movimento irá produzir palavras diferentes. Cite-se as
palavras ‘chave’ e ‘África’; ‘rei’ e ‘sentir’:
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Note-se como a flexão verbal utiliza o espaço para alterar o verbo. E é o uso
do espaço também que irá configurar o aspecto do verbo. Por exemplo, ‘ele fala
insistentemente’.
Por fim, a marcação do plural também decorre do uso do espaço. Vejamos a
frase: “Há vários livros na estante”:
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Cadernos da Semana de Letras UFPR Ano 2011 Volume II – Trabalhos Completos
Por fim, cumpre destacar que o ‘tempo’ está intimamente ligado ao uso do
espaço. É que a Libras não tem em suas formas verbais a marca do tempo como
ocorre com o português, de modo que, para marcar o tempo, muitas vezes, ela lança
mão do espaço para significar ‘passado’, ‘presente’ e ‘futuro’.
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Referências bibliográficas
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para Shelley. Seu Prometheus Unbound1 consiste num poema dramático – o que o
poeta chamava de drama lírico, e o período convencionou como closet drama, i.e.,
peças feitas para serem lidas em vez de encenadas – de 2.606 versos divididos em
4 atos, composto durante os anos de 1818 e 1820, sendo uma das poucas obras
lançadas ainda dentro do período de vida do poeta, que morre em 1822. Sua
principal inovação sobre o mito consiste na sua alteração, especialmente no que diz
respeito ao desfecho, o qual Shelley sentiu a necessidade de justificar explicitamente
em seu prefácio ao poema: em vez da reconciliação, Prometeu resiste por mais de
três mil anos2, quando finalmente, por não revelar o segredo que causaria a queda
de Jove, a profecia em torno do destronamento de Jove se cumpre, e o deus é
destronado por um filho muito mais poderoso do que ele próprio. Prometeu é
libertado, e ocorre aquilo que Harold BLOOM (1957: 59) chama de um “apocalipse
humanista”, que estabelece uma utopia terrena, caracterizada, principalmente, pela
completa abolição de qualquer forma de poder, representado por Jove (CURRAN,
2007: 605). Por consequência, toda a mensagem do mito é alterada.
Mas, antes de tentarmos compreender o que se passa dentro do Prometeu
Desacorrentado de Shelley (doravante P.D.), é importante prestarmos atenção no
Prometeu Acorrentado de Ésquilo (doravante P.A.), observando sobretudo o
funcionamento de sua estrutura.
Primeiramente, notemos os acontecimentos de P.A.: a peça se abre com a
cena da crucificação de Prometeu no Cáucaso realizada por Kratos (Poder) e Bias
(Força, personagem mudo), enquanto Hefesto lamenta. Após a saída de seus
torturadores, o titã, monologando, esbraveja sua raiva contra o mundo e é ouvido, a
princípio, por ninguém senão a natureza inanimada, realçando sua solidão (KITTO,
1972: 113) e atraindo, mais tarde, a atenção de um coro de oceânides, que tentam
lhe consolar. Eventualmente, entra em cena o próprio Oceano, pai das ninfas, que
vem dialogar com Prometeu e lhe sugere que deixe de resistência e se submeta a
Zeus. Prometeu, no entanto, resiste.
1 Em minha tradução em curso do poema, optarei por traduzi-lo como Prometeu Desacorrentado,
observando a relevância dos negativos empregados por toda a sua linguagem, notavelmente, no
título o un– em unbound., conforme Timothy WEBB (2007: 694). Também é assim que serão feitas
as referências ao poema ao longo deste artigo.
2 O que o colocaria, mais ou menos, em nosso período, cronologicamente, se é que se pode tentar
pensar o tempo dessa forma dentro do contexto do mito, considerando-se, como Bernard KNOX
(1986: 10) lembra, como é complicado pensar-se em medição de tempo exata e correlação com o
tempo histórico dentro do contexto do pensamento mítico.
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Cadernos da Semana de Letras UFPR Ano 2011 Volume II – Trabalhos Completos
3 Se Héracles é quem liberta Prometeu e é descendente de Io por algumas gerações, então pode-
se observar que muitas décadas se passam no decorrer da trilogia de Prometeu.
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Cadernos da Semana de Letras UFPR Ano 2011 Volume II – Trabalhos Completos
4 O conceito de mutabilidade, inspirado por Spenser (mencionado nas primeiras estrofes de The
Fairie Queene, por exemplo) também era muito caro a Shelley, dando título, inclusive, a um de
seus poemas menores, “Mutability”, além de permear outro de seus grandes poemas mitopeicos,
“The Sensitive Plant” (BLOOM, 1959: 162-3).
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Cadernos da Semana de Letras UFPR Ano 2011 Volume II – Trabalhos Completos
curioso, que permite traçar um paralelismo entre as duas peças que vai além do
tema, mas não é algo limitado a essas duas obras somente. Sansão Agonista de
John Milton (1671), Fausto de Goethe (parte I 1808, parte II 1832) e Manfred de
Byron (1817) todos compartilham essa mesma característica, como compartilham o
rótulo de closet drama. É claro, eles apresentam heróis mais móveis do que uma
divindade ancestral agrilhoada numa montanha, mas, em todas as situações, a
impressão que se tem é a de que os eventos que ocorrem não desencadeiam
necessariamente os eventos posteriores. Manfred5, por exemplo, herói do drama
homônimo byroniano – cronologicamente muito próximo de P.D.6 – atormentado por
uma aparente imortalidade e pela morte prematura de sua amada, é salvo de uma
avalanche (que ele próprio causa) por um caçador, no primeiro ato, encontra seres
sobrenaturais, como a bruxa dos Alpes e o sombrio rei Arímanes, no segundo, e
enfrenta demônios e morre, no terceiro, mas todos são episódios isolados e
fragmentados, não apresentando uma relação direta um com o outro, nem outra
função aparente no enredo senão a de realçar os sentimentos de desespero e
solidão do herói – o que nos leva novamente à noção de KITTO de um drama focado
no que o herói é e sente, não no que ele faz. Sua própria morte nos versos finais
parece não fazer sentido, visto que ele mesmo afasta o perigo mais iminente – o dos
demônios que surgem, também inexplicavelmente:
5 BLOOM (1959: 62) também glosa a relação entre Manfred e P.D., na medida em que Manfred une
a “hubris da pulsão pelo conhecimento ilimitado” com a “convicção (…) de que os homens são
iguais aos deuses”.
6 Vale lembrar também a relação biográfica entre Byron e Shelley, conforme observável nas notas
de Mary Shelley aos poemas de 1816 na edição de 1914 de suas obras completas, compilada por
Thomas Hutcheon.
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Cadernos da Semana de Letras UFPR Ano 2011 Volume II – Trabalhos Completos
7 Para BLOOM (1994: 223), é precisamente a estranheza trazida por esses “mitos compostos”,
como ele chama, inventados e sem relação direta, que dá força mitopeica e canônica ao poema,
ao contrário de elementos pré-estabelecidos como a aposta de Fausto com Mefistófeles ou sua
procura incessante pelo momento perfeito.
8 É importante lembrar como, na época de Shelley, nenhum teatro londrino encenava peças gregas
(MULHALLEN, 2010: 148). No entanto, quando o poeta compôs seu drama The Cenci, sobre a
tragédia do corrupto e infame conde Cenci, assassinado após estuprar a própria filha, adotou uma
estrutura e uma apresentação mais convencional, tendo em mente a apresentação para o público
– inclusive com determinados atores já em mente (ibid: 91). No entanto, o tema polêmico aliado a
sua fama como poeta de closet dramas fez com que a peça não fosse encenada até o ano de
1959 (ibid: 85, 92). Quanto ao Fausto, embora a parte I seja até hoje encenada, a parte II é,
estranha e monstruosa demais até mesmo para o cinema (BLOOM, 1994: 211)
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Cadernos da Semana de Letras UFPR Ano 2011 Volume II – Trabalhos Completos
9 Que o nosso modelo favorito de governo tenha o mesmo nome que o deles – democracia – é uma
ironia curiosa.
10 O que, se lembrarmos de que uma das condenações contra Sócrates era justamente a de ser
ateu, seria algo bem perigoso para qualquer um que não estivesse disposto a beber cicuta.
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Cadernos da Semana de Letras UFPR Ano 2011 Volume II – Trabalhos Completos
11 A noção do mundo como um lugar vivo, do confronto de vida contra vida, é também como BLOOM
compreende a poesia mitopeica (1959: 2-5), um gênero poético sob o qual ele enquadra boa parte
da grande poesia de Shelley, incluindo P.D.
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Cadernos da Semana de Letras UFPR Ano 2011 Volume II – Trabalhos Completos
12 E consegue, visto a influência exercida sobre todo o período romântico tardio posterior, bem como
a observável em poetas como Yeats e Wallace Stevens (BLOOM, 1959: 165, 200), além de uma
gama de poetas menores, imitadores, da virada do século (REIMAN & HEIL, 2007: 544).
13 Vide como Camões, que morreu recebendo uma pensão razoável do governo por conta dos
Lusíadas, foi reimaginado pelos românticos da língua portuguesa como tendo morrido em miséria,
para se encaixar sob o ideal romântico de rebeldia idealista e martirização (SALGADO JÚNIOR,
2005: LIII-LV).
14 A conclusão a que o poeta chega é a de que Prometeu é um personagem mais “poético”, porque
não tem as falhas morais de Satã, sendo da “mais perfeita natureza intelectual e moral”. Ele não
reconhece como defeito a arrogância que ROMILLY encontra no titã.
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Cadernos da Semana de Letras UFPR Ano 2011 Volume II – Trabalhos Completos
15 Para um comentário sobre como a linguagem ideológica colabora para preservar estruturas de
poder através da repetição e limitação de valores polissêmicos, vide STEINER, 1975: 35.
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Cadernos da Semana de Letras UFPR Ano 2011 Volume II – Trabalhos Completos
pacífica Mahatma Gandhi (NICHOLS, 2008: 24). A multidão revoltosa que enfrentou
desarmada a cavalaria real, assim, é comparável a Prometeu em sua própria
resistência. Mesmo a poesia de juventude de Shelley, como Queen Mab (1813), já
articulava essas ideias, apesar de, no entanto, fazê-lo de modo menos eficaz, pela
inexperiência poética que o faz cair nos problemas gerados ao se combater a
linguagem ideológica do poder com linguagem ideológica (CURRAN, 2007: 600-1) –
problemas que P.D. consegue, felizmente, evitar. No entanto, sua discussão
proposta acerca do ateísmo, vegetarianismo e amor livre foram o suficiente para
chocar a sociedade do período, ao ponto de o poema ser banido – e seus editores,
perseguidos – e fazer com que Shelley perdesse a guarda de seus filhos, ao mesmo
tempo em que inspirou o movimento político do Cartismo (REIMAN & HEIL, 2007:
15).
Ao que tudo indica, a sociedade ocidental do século XIX em diante, ou pelo
menos a porção dela associada à produção artística, não só passa a aceitar com
mais facilidade obras que questionam e põem em xeque tradições, convenções e
estruturas hierárquicas de poder, como parece incentivá-las, mesmo enfrentando
oposição de entidades do próprio poder associadas à censura. Shelley foi censurado
e perseguido, mas foi lido apesar (ou, talvez, justamente por causa) disso, e a leitura
de suas obras gerou novas obras de uma mesma linhagem poética 16. Nisso, há
semelhanças e afastamentos com a sociedade ateniense: em todo caso, não
partimos rumo a uma sociedade que aceite plenamente transgressões artísticas –
visto que a própria noção de “transgressão” não existiria se tudo fosse considerado
aceitável – mas houve certamente um abrandamento, pelo menos no aspecto de
punição e rejeição. Em contrapartida, houve uma diluição do público consumidor. Se
uma elite determinada por certos traços – ser homem, livre e ateniense – era
consumidora de poesia (dramática ou de outra variedade) antiga, nas sociedades
modernas, em que as barreiras que determinam a elite são transponíveis via poder
econômico, era de se esperar que a poesia passasse a ser consumida por uma
camada maior da população – o que, no entanto, não ocorre, e a prova disso
repousa na baixa rentabilidade da poesia como objeto de consumo, em comparação
com livros de contos, romances, auto-ajuda, etc (TEZZA, 2003: 71). Ela é, como diz
Octavio PAZ (apud TEZZA), inexistente para a burguesia (elite econômica) como
16 BLOOM (1959: 149, 202) reconhece o traço de uma linhagem poética que começa em Spenser,
passa por Milton e, então, Blake e Shelley, Browning, Yeats e Stevens.
378
Cadernos da Semana de Letras UFPR Ano 2011 Volume II – Trabalhos Completos
Referências bibliográficas
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BYRON, George Gordon Lord. Manfred: a Dramatic Poem. In: BYRON, George
Gordon Lord & MCGANN, Jerome. Lord Byron: The Major Works. New York:
Oxford University Press, 2008.
CURRAN, Stuart. Shelley and the End(s) of Ideology. In: REIMAN, Donald H. & HEIL,
379
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Fraistat (org). Shelley's Poetry and Prose: A Norton Critical Edition. New York:
Norton Press & Co, 2007.
HALL, Edith. The sociology of Athenian tragedy. in: EASTERLING, P.E. The
Cambridge Companion to Greek Tragedy. Cambridge: Cambridge Press, 1997.
KNOX, Bernard MacGregor Walker. Word and action: essays on the ancient
theather. Baltimore: The Johns Hopkins University Press, 1986.
ROMILLY, Jacqueline de. A Tragédia Grega. Trad. Ivo Martinazzo. Brasília: UnB,
1998.
SALGADO JÚNIOR, Antônio. Biografia de Luís de Camões. In: CAMÕES, Luís de.
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REIMAN, Donald H. & HEIL, Fraistat (org). Shelley's Poetry and Prose: A Norton
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STEINER, George. After Babel: aspects of language and translation. New York:
Oxford UP, 1975.
380
Cadernos da Semana de Letras UFPR Ano 2011 Volume II – Trabalhos Completos
381
Cadernos da Semana de Letras UFPR Ano 2011 Volume II – Trabalhos Completos
Sei Shônagon ficou conhecida por ter escrito o famoso livro de crônicas
Makura no Sôshi, geralmente traduzido para o português como O Livro de
Cabeceira, por volta do ano 1002. Não se sabe o verdadeiro nome de Sei
Shônagon, o que era comum entre as mulheres de sua época. Esse nome fora
adotado quando ela passou a trabalhar na corte imperial japonesa como nyôbô -
espécie de dama de companhia da imperatriz.
Sei Shônagon nasceu em uma família nobre, mas sem muitos recursos
financeiros; entretanto, ela foi privilegiada com um brilhante talento literário. Sua
família já possuía um histórico considerável, pois o bisavô, Kiyohara-no-Fukayabu, e
seu pai, Kiyohara-no-Motosuke, foram poetas famosos. A data do nascimento de Sei
Shônagon não é conhecida ao certo, mas sabe-se que, desde a infância, ela
aprendeu a gostar de poemas e textos literários em chinês, os quais somente
podiam ser apreciados pelos intelectuais da época.
Sei Shônagon foi casada com Tachibana no Norimitsu, e com ele teve um
filho, Norinaga, o qual também se destacou como poeta. Após um período de
casamento, separou-se do marido e entrou para a corte, a fim de servir a imperatriz
Teishi. Shônagon passou a servir na corte recebendo um tratamento diferenciado,
tratamento esse muito mais afortunado do que aquele concedido normalmente à sua
classe. Esse diferencial para com Sei Shônagon devia-se ao fato da imperatriz
Teishi ser uma mulher culta e amante de grandes talentos. Sei Shônagon viveu
durante sete anos um período de grande requinte, mas após a morte da imperatriz
Teishi acabou por deixar a corte imperial. Não se sabe como ela viveu após a morte
de sua protetora, mas supõe-se que tenha vivido uma vida sem grandes recursos
até sua morte, com mais de 60 anos, idade bastante avançada para a época.
cabeça a fim de os penteados das mulheres não se estragarem. A escolha por esse
título por Andrei dos Santos Cunha se deu em função de um episódio narrado pela
própria Sei Shônagon:
“Um dia em que Korechika, então Ministro do Centro, trouxe à Imperatriz um maço de
folhas de papel para escrever, ela me perguntou: ‘E agora, o que escrever aqui? As
Crônicas do Império já foram copiadas em outro caderno, por ordens do Imperador...’
‘Muito bem, então toma o maço para ti’, sentenciou minha senhora. E foi assim que eu
ganhei essa resma de papel.
Com tanto papel em mãos, decidi escrever sem me importar muito com a forma ou limite,
deixando o pincel correr, movida pelo simples objetivo de usar todas as folhas, anotando
acontecimentos do passado, recordações, ou histórias interessantes deste mundo.”
(SHÔNAGON, 2008, p. 12)
A obra
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Cadernos da Semana de Letras UFPR Ano 2011 Volume II – Trabalhos Completos
A obra de Sei Shônagon comporta-se ora como diário, ora como ensaio e
ora como miscelânea, podendo ser classificada, grosso modo, como “coisas que [a
autora] odeia”, “coisas de que [a autora] gosta”, além de reflexões diversas, incluindo
conjuntamente episódios dentro da corte. Para se ter um pouco da ideia do
repertório cultural de Sei Shônagon, em Makura no Sôshi ela faz o uso de diversos
jogos de palavras em suas citações, utilizando trocadilhos entre palavras japonesas
e chinesas, além dos símbolos e jargões de sua época ao descrever objetos e
incidentes.
Fazendo-se uma análise da obra num todo, tal como afirmava Murasaki
Shikibu, o leitor percebe uma personalidade que aparenta ser egocêntrica e
arrogante em alguns pontos. Esses aspectos percebidos seriam descrições
explícitas sobre a opinião de Sei Shônagon acerca de diversos assuntos, os quais
geralmente tendem a desprezar alguma coisa, ou vangloriar-se de sua posição
social um pouco mais avantajada. As opiniões descritas por Sei Shônagon, em sua
maioria, sempre trazem de forma intrínseca um ligeiro uso de sarcasmo e humor:
25 Coisas desoladoras
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Cadernos da Semana de Letras UFPR Ano 2011 Volume II – Trabalhos Completos
A neve sobre os tetos dos pobres. Ainda mais imprópria se torna quando brilha sob a lua.
387
Cadernos da Semana de Letras UFPR Ano 2011 Volume II – Trabalhos Completos
Quando, numa noite em que estamos esperando alguém, o som da chuva que o vento joga
nas janelas, de repente nos assusta.
Em um dia chuvoso, em que se decide mexer nos papeis velhos para passar o tempo,
encontrar as cartas de um homem que outrora se amou.
91 Também é encantador
Um homem elegante que passa, deixando ver as fitas penduradas em sua espada.
28 Coisas detestáveis
Um homem, com que se está tendo um caso de amor, que fala incessantemente de outra
mulher, com quem teve uma relação anterior. Mesmo que sejam águas passadas, isso pode
ser muito irritante, sobretudo se ainda há resquícios... Bem, pensando bem, nem sempre é
assim tão desagradável.
De fato, o que sentimos por um homem depende muito da elegância com a que ele se
despede. Se ele salta da cama, corre à volta do quarto, amarra a faixa, arregaça as mangas,
enfia suas coisas no quimono e o fecha rapidamente, passamos a detestá-lo.
388
Cadernos da Semana de Letras UFPR Ano 2011 Volume II – Trabalhos Completos
O Paraíso.
A rota de um barco.
Makura no Sôshi não só foi escrito durante os sete anos em que a autora
serviu a imperatriz Teishi, mas uma considerável parte também foi compilada após
Sei Shônagon deixar a corte. Os últimos escritos de Makura no Sôshi permitem ao
leitor perceber a melancolia, saudade e nostalgia da autora. Esses trechos, mais ao
final da obra, carregam um pesar que, se comparados a outros trechos do início,
podem levar o leitor a perceber uma certa mudança no constante tom do humor e
sarcasmo:
260 A compaixão
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Cadernos da Semana de Letras UFPR Ano 2011 Volume II – Trabalhos Completos
CONSIDERAÇÕES FINAIS
A obra Makura no Sôshi pode ser considerada uma importante fonte literária,
pois diversos recursos utilizados por Sei Shônagon no século X só surgiram na
Europa muitos séculos depois. Além da riqueza cultural da obra, o registro histórico
que ela oferece contribui para uma compreensão mais apurada sobre o Japão da
Era Heian.
391
Cadernos da Semana de Letras UFPR Ano 2011 Volume II – Trabalhos Completos
Referências bibliográficas
DOBAL, Susana M. O Livro de Cabeceira. In LOPES, Denilson (org.). Cinema dos Anos
90. Chapecó: Argos, 2005, p. 141-143.
MILAN, Betty. O Que é Amor. São Paulo: Círculo do Livro, 1994, p. 20-22
RIMER, Thomas J. The Pillow Book. In: A Reader’s Guide to Japanese Literature. New
York: Kodansha, 1988, p. 44-47.
SHÔNAGON, Sei. O Livro de Travesseiro. Trad. Andrei dos Santos Cunha. Porto Alegre:
Escritos, 2008.
SUZUKI, Eico. Literatura Japonesa 712- 1868. São Paulo: Editora do Escritor, 1977, p. 9-
20.
392
Cadernos da Semana de Letras UFPR Ano 2011 Volume II – Trabalhos Completos
393
Cadernos da Semana de Letras UFPR Ano 2011 Volume II – Trabalhos Completos
poeta consegue o que pode ser chamado de “desagregação da metáfora”, que aqui
se torna possível a partir do desenvolvimento das comparações propostas
envolvendo os quatro elementos da natureza. Terra, fogo, ar e – no caso do poema
em questão – água acabam se revezando durante todo o livro, estabelecendo uma
relação com a teoria bachelardiana sobre os quatro elementos. João Cabral, então,
destina cada um deles para “metaforizar” o tipo feminino pretendido. Assim, fogo
surge como paixão, rapidez, ardor, ferocidade, enquanto terra se fixa como rígidez e
imobilidade. Ar aparece como representante da leveza, do efêmero e, finalmente,
água se encarrega daquilo que é maleável, mutável. A “onda”, a que se associa a
mulher na “Imitação da água”, estabelece, como o próprio título já diz, a relação da
mulher com a água e sua maleabilidade. Cabral sugere o maleável, inclusive, ao
lançar mão de alguns recursos formais como, por exemplo, a assonância – figura de
linguagem em que vogais se repetem e que é bastante utilizada por João Cabral –,
que surge aqui com as vogais “a” e “i” percorrendo o poema todo e intensificando as
propriedades da água.
395
Cadernos da Semana de Letras UFPR Ano 2011 Volume II – Trabalhos Completos
figura da mulher é retomada por metonímia, fazendo com que as duas imagens –
mulher/onda – caminhem sempre lado a lado e dependendo uma da outra.
e se fizesse montanha
(por horizontal e fixa),
mas que ao se fazer montanha
continuasse água ainda.
Gostaria de atentar, por fim, para outro ponto da poesia de João Cabral; ao
falar do feminino, a poesia cabralina geralmente envolve dois movimentos: o de
envolver e o de penetrar. Esses movimentos estão, inclusive, na própria concepção
dos quatro elementos da natureza. A terra, por exemplo, surge muitas vezes
envolvendo o corpo – como acontece, por exemplo, em Morte e Vida Severina, em
que os mortos são literalmente engolidos pela terra. Isso mostra, aliás, que as
temáticas em Cabral de Melo Neto funcionam como teias. Em alguns poemas –
como o já mencionado “Morte e Vida Severina” – o feminino surge não apenas como
figura erótica, mas também como figura social, que abraça não só o ser amado, mas
todo e qualquer ser vivo, como é o caso da própria terra, que surge aqui como uma
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Cadernos da Semana de Letras UFPR Ano 2011 Volume II – Trabalhos Completos
espécie de figura feminina por excelência – daí, aliás, o fato de ela ser o elemento
que mais aparece na obra cabralina. Essa relação terra/feminino se torna possível
pelo fato de que ambas possuem uma espécie de movimento que envolve, que tira e
que dá a vida. Ela envolve, como útero ou cova, toda e qualquer criatura. Por tudo
isso é que vemos, por exemplo, que não é apenas em Quaderna que o feminino é
trabalhado. Como já dito, em “Os três Mal-amados”, a relação entre os três e a
ausência do feminino já é possível de ser notada. A partir daí, o feminino vai
aparecendo na poesia cabralina gradativamente. O surgimento no mundo onírico
também acontece. A mulher distante, enevoada, num mundo surreal e ainda não
muito concreto. Ausência, não concreto, concreto. Temos uma gradativa
concretização da mulher, assim como também temos uma gradativa concretização
de basicamente qualquer tema na poesia de João Cabral.
e em sua imobilidade,
que precária se adivinha,
o dom de se derramar
que as águas faz femininas
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Cadernos da Semana de Letras UFPR Ano 2011 Volume II – Trabalhos Completos
Referências bibliográficas
LIMA, Luiz Costa: Lira e antilira: Mário, Drummond, Cabral. Rio de Janeiro:
Civilização Brasileira, 1968.
MELO NETO, João Cabral de. Obra Completa: volume único / João Cabral de
Melo Neto. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 1994. Marly de Oliveira
NUNES, Benedito: João Cabral de Melo Neto. Coleção poetas modernos do Brasil,
vol. 1 Petrópolis: Vozes, 2ª Edição, 1974
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Cadernos da Semana de Letras UFPR Ano 2011 Volume II – Trabalhos Completos
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Cadernos da Semana de Letras Ano 2011 Volume II – Trabalhos Completos
Texto de partida
Esse poema, que abre o livro primeiro dos Amores, de Ovídio, funciona como
uma recusa (recusatio) da produção de poesia épica, lugar comum do gênero
elegíaco. Conforme mostra Georg Luck em The Latin Love Elegy (1959), o estilo
elegíaco é definido pelo uso do metro próprio, o dístico elegíaco, e pela
especificidade do uso da mitologia, que ocorre sem deixar com que o caráter
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Cadernos da Semana de Letras Ano 2011 Volume II – Trabalhos Completos
pessoal e emocional do poema seja perdido. A temática poderia ser variada, mas
durante a época de Augusto foi dada preferência aos temas amorosos. A questão de
esse tema não ser considerado "sério" separa os autores elegíacos de outros como
Horácio e Virgílio, que passaram, em determinada fase de sua obra, a tratar de
temas sérios em odes e na épica. Esta é um gênero considerado mais elevado, trata
de temas cívicos, enquanto a elegia é ligada a temáticas individuais e prega a
recusa em fazer carreira cívico-militar, como mostra Paul Veyne em A elegia erótica
romana: o amor, a poesia e o ocidente (1985).
Entretanto, como assinala McKeown (1989), comentador da obra de Ovídio, a
forma mais comum de desenvolver essa recusa é utilizar como justificativa a falta de
habilidade do poeta em escrever no gênero épico, mas aqui isso se dá pela
intervenção do deus Cupido a favor dos versos elegíacos – o que ecoa a proibição
de Apolo na abertura dos Aetia de Calímaco, na Bucólica 6 de Virgílio e no poema
3.3 de Propércio, em que o poeta é proibido pelo deus de beber da fonte épica.
O principal exemplo de poema épico em língua latina é a Eneida, de Virgílio.
A palavra inicial do poema, arma, remete o leitor à abertura desse épico: Arma
uirumque cano Trojae qui primus ab oris. Na tradução apresentada, a palavra “arma”
mantém a posição inicial, para evidenciar essa retomada. Segue o poema afirmando
que era produzida matéria em um ritmo que condizia ao tema, ou seja, a abertura de
um poema épico em um verso épico, que é o hexâmetro datílico, formado por seis
pés dátilos – uma sílaba longa e duas breves –, que admitem substituição por pés
espondeus – duas longas – exceto no quinto pé (–x –x –x –x –uu –x).
A intenção era manter esse ritmo em todos os versos do poema, mas o ladrão
Cupido rouba um pé do verso par, transformando-o em pentâmetro datílico, um
verso formado por dois pés dátilos, que aceitam substituição por espondeus, um
meio pé formado por sílaba longa, cesura, dois pés obrigatoriamente dátilos e novo
meio pé (–x –x – || –uu –uu –). A partir disso, o poeta inicia uma recusatio às
avessas, isto é, quer abandonar a elegia para escrever épica, e não o contrário,
como era o usual. Porém, é importante lembrar que essa recusa se presta à recusa
padrão da épica, já que o poeta será vencido pelo deus.
A argumentação utilizada é mostrar que cada deus tem a sua “jurisdição” e a
estranheza de uma troca de atribuições, que é precisamente o que Cupido tem feito
403
Cadernos da Semana de Letras Ano 2011 Volume II – Trabalhos Completos
com Apolo desde que se tornou arqueiro também, como salienta McKeown (1989).
O resultado é uma série de trocas de papéis que beira o cômico, com destaque para
Minerva ardendo de amores e Marte utilizando a lira, o que é um bom argumento
para sustentar a posição de Veyne (1985) de que a chave de leitura para a elegia é
justamente o cômico, que as cenas de amor e sofrimento comuns ao gênero não
são feitas para se levar a sério. O poeta ainda acrescenta que Cupido insiste em
roubar-lhe o pé, mesmo que o resultado do verso em metro épico seja bom, e
também que ele não pode compor elegias porque não está apaixonado por menino
ou menina qualquer, o que diverge novamente da recusatio padrão, que traz como
justificativa a incapacidade de compor bom versos épicos.
Por outro lado, o deus Cupido, cujos poderes dobram mesmo a vontade dos
outros deuses, aparece e, depois de longa descrição do movimento rápido de atirar
com o arco, zomba do “vate” e o atinge com sua flecha apaixonante, o que tornará o
poeta em um apaixonado, mesmo que ele ainda não tenha um objeto para sua
paixão. McKeown (1989) destaca que a fala de Cupido, “‘quod’que ‘canas, vates,
accipe’ dixit ‘opus!’”, apresenta duas quebras que adiam o lançamento da flecha,
representado pela exclamação no final: pelo menos uma dessa quebras foi possível
de manter no texto em português. Por fim, é aceita a formulação em dístico elegíaco
(hexâmetro e pentâmetro datílico), abandonando o metro da guerra (hexâmetros
somente). Sua Musa em onze pés ficará então ornada com mirto, planta ligada à
deusa Vênus.
Considerando, assim, a importância rítmica e métrica para a distinção dos
gêneros épico e elegíaco na época de Ovídio, foi utilizado também um esquema
métrico nesta tradução poética, que obrigatoriamente pudesse manter o número de
versos. A partir daí, houve o problema de escolher uma forma que, em português,
pudesse funcionar como o dístico elegíaco em latim, já que a métrica opera de forma
diferente em cada uma dessas línguas. Em português, os versos são classificados
de acordo com o número de sílabas e seu ritmo é construído tendo por base
alternâncias de tonicidade. Já em latim, os versos são construídos por meio da
alternância entre sílabas longas e breves, a base rítmica é o pé e eles são
classificados pela quantidade de pés. Além disso, a estrutura do verso latino permite
a substituição de um pé por outro, um dátilo por um espondeu, por exemplo, o que
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Cadernos da Semana de Letras Ano 2011 Volume II – Trabalhos Completos
Referências bibliográficas
406
Cadernos da Semana de Letras Ano 2011 Volume II – Trabalhos Completos
McKEOWN, J.C. Ovid: Amores. Text, prolegomena and commentary in four volumes.
v.2. Great Britain: Francis Cairns (Publications), 1989.
CAMPOS, Haroldo de. “Da tradução como criação e como crítica”, In:
Metalinguagem & outras metas. São Paulo: Perspectiva, 1992, pp. 31-48.
LUCK, Georg. The latin love elegy. New York, Barnes & Noble: 1960.
VEYNE, Paul. A elegia erótica romana: o amor a poesia e o ocidente. Trad. Milton
Meira do Nascimento e Maria das Graças de Souza Nascimento. São Paulo:
Brasiliense, 1985.
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Cadernos da Semana de Letras UFPR Ano 2011 Volume II – Trabalhos Completos
Introdução
Coelho Neto” e o “romance ameno e picante, feito com alma de cronista para distrair
e embalar o leitor” (CANDIDO 1976: 114). CANDIDO (1976: 113-114) ainda afirma
que o regionalismo se reduz a um
Pathé-Baby
Aspecto estético
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Cadernos da Semana de Letras UFPR Ano 2011 Volume II – Trabalhos Completos
Aspecto crítico
Diretor do Jornal do Comércio, Mário GUASTINI (apud LARA 1982: 12) diz
que os “autores das epístolas agressivas escreviam no anonimato e escreviam com
os pés... Esbravejam esses anônimos contra a rudeza com que Antônio aludia a
certas regiões por ele visitadas”.
A controvérsia era justamente causada pela perspectiva singular adotada por
Alcântara Machado, que não hesitou em mostrar a Europa em seus aspectos menos
decorosos. Isso se revela, por exemplo, quando visita Portugal (ALCANTARA
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Cadernos da Semana de Letras UFPR Ano 2011 Volume II – Trabalhos Completos
MACHADO 1983:50):
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Cadernos da Semana de Letras UFPR Ano 2011 Volume II – Trabalhos Completos
Assim como o poeta romântico que cita, Alcântara Machado sente saudades
de sua terra – lembremos o trecho autoexplicativo intitulado “saudades”. Como
Gonçalves Dias, é um viajante melancólico e intransigente – o resto de sua obra
comprova que talvez seja o modernista mais liberto dos “ismos europeus”. Podemos
dizer, enfim, que Alcântara Machado é um dos primeiros autores do período
modernista a resgatar explicitamente a herança da poesia nacionalista romântica. E
na Europa, assim como o romântico, assemelha-se mais a um exilado que a um
viajante.
Referências bibliográficas:
BOSI, Alfredo. História Concisa da Literatura Brasileira. São Paulo: Cultrix, 2006.
CANDIDO, Antonio. Literatura e Sociedade. São Paulo: Ed. Nacional, 1976.
LARA, Cecília de. Comentários e notas à edição fac-similar de Pathé-Baby. São
Paulo: Imprensa oficial: Arquivo do Estado, 1982.
SEVCENKO, Nicolau. Literatura como Missão: tensões sociais e criação cultural
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Cadernos da Semana de Letras UFPR Ano 2011 Volume II – Trabalhos Completos
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Cadernos da Semana de Letras UFPR Ano 2011 Volume II – Trabalhos Completos
“CODA”, termo que identifica hoje os filhos ouvintes de pais surdos, tem na
sua origem uma Organização sem fins lucrativos criada nos EUA, em 1983, com a
finalidade de aproximá-los e ampliar a tomada de consciência dos surdos em
relação aos filhos ouvintes.
Os CODAs são sujeitos que vivem na zona fronteiriça entre duas modalidades
de língua em tudo distintas, e o seu estudo enriquece tanto uma como outra. Neste
sentido, Ronice Muller e Mara Massutti (MULLER e MASSUTTI 2007: 240):
Nosso estudo, por amor à delimitação de campo, irá se pautar no CODA que
é filho de ambos os pais surdos. As perguntas que gostaríamos de responder são
essencialmente estas: Quais as dificuldades com que se depara este CODA em
especial; quais as vantagens que terá este indivíduo em relação a nós ouvintes;
como este indivíduo se constitui enquanto sujeito; como é afetada a sua relação com
o outro; qual a visão de mundo que terá este ouvinte que recebe como primeira
língua uma língua que não usa o aparelho auditivo e nem o aparelho fonador, uma
língua que não é linear como o são as línguas faladas, uma língua que se articula
por meio do corpo, das expressões não manuais e pelo uso do espaço.
Antes de adentrarmos no tema propriamente dito, abre-se a necessidade,
porém, de traçarmos algumas linhas distintivas entre as duas modalidades de língua
- uma oral auditiva, a outra, visoespacial - em que está imerso este sujeito. Primeira
diferença marcante está em que, enquanto a língua oral é uma modalidade que se
utiliza da audição como canal de entrada da língua e do aparelho articulatório-
fonador como canal de saída, as línguas de sinais são modalidades visoespaciais,
que se estruturam através do corpo do sujeito falante e do uso espaço em que está
inserido este corpo. Outras diferenças estão nos campos afetivo, identitário, cultural
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Cadernos da Semana de Letras UFPR Ano 2011 Volume II – Trabalhos Completos
E aqui um ponto que deve desde logo ser realçado. Nós, participantes da
modalidade oral auditiva podemos compreender muito sobre nós mesmos, o modo,
a intensidade, e em que medida a língua nos constitui enquanto sujeitos através da
compreensão do individuo que, sendo ouvinte, não tem na língua falada a sua
primeira língua. No ponto, THOMA (2004: 66) nos remete à importância de
compreendermos a diferença albergada nas várias identidades culturais imersas em
nosso mundo contemporâneo e sobre a importância de realizarmos a inversão
epistemológica sobre o problema habitual das diferenças:
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Cadernos da Semana de Letras UFPR Ano 2011 Volume II – Trabalhos Completos
Pois bem. A mensagem que fica destas reflexões, entre várias, é a de que a
visão logofonocêntrica, termo empregado por Mara Massutti, professora do Curso de
Letras Libras da UFSC, isto é, aquela visão que põe o som no centro do processo da
linguagem e da comunicação, precisa ser revista.
A desconstrução de um modelo centrado na perspectiva do som, dada pela
língua de sinais, traz para o centro do processo, não mais o som, mas, duas noções
bastante esquecidas da sociedade contemporânea, quais sejam, as noções de olhar
e de corpo.
Não o corpo posto na vitrine ou o corpo para consumo, mas o corpo
presentificado e que, segundo Foucault (FOUCAULT 1988: 143), é molde para a
construção da subjetividade.
Já a dimensão do olhar, não um olhar qualquer, mas um olhar a partir de
dentro, a que também nos remete a língua de sinais é traço estético que leva o
sujeito a um outro locus de enunciação, locus a muito perdido pela sociedade
contemporânea, cujos indivíduos são educados a se deixar atravessar pelo olhar do
outro, entregando, a esse outro a chave do principal compartimento de si mesmo.
Vale dizer, ao evitar transportes indevidos, como, por exemplo, aquele
segundo o qual somente a língua falada pode “dar conta do recado”, e ao apropriar-
se de tudo que dissemos acima, o CODA, que tem como língua natural a língua de
sinais, pode tranqüilizar o seu imaginário e começar a tirar vantagens da experiência
que vivencia.
Importa, em suma, a todos, a compreensão clara de que, em grande medida
isso que, atravessado pelo nosso olhar logofonocêntrico, percebemos como algo
falho, nada mais é do que uma representação social formada por muitos
estereótipos negativos.
Referências bibliográficas:
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[...] nos seus contos e romances, sobretudo entre 1880 e 1900, nós
encontramos, disfarçados por curiosos traços arcaizantes, alguns
dos temas que seriam característicos da ficção do século XX. O fato
de sua obra encontrar atualmente certo êxito no exterior parece
mostrar a capacidade de sobreviver, isto é, de se adaptar ao espírito
do tempo, significando alguma coisa para as gerações que leram
1
Artigo encomendado por Novo Mundo, revista publicada em Nova Iorque, de 1870 a 1879, para
distribuição no Brasil – os artigos eram escritos em português.
2
ASSIS, Machado de. Notícia da atual literatura brasileira - Instinto de nacionalidade (1873).
Disponível em: <http://www.ufrgs.br/cdrom/assis/massis.pdf>. Acesso em: 15/01/2011.
3
Grifo do texto original.
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Der Sandmann. Isso nos servirá como uma importante pista para estabelecer
correlações com esse autor e outras possíveis referências do início do século XIX.
Antes de entrarmos na análise em si, revisemos algumas características da
literatura fantástica. Remo CESERANI (2006: 68-77) identifica dez procedimentos
narrativos e retóricos frequentes no modo fantástico. São estes: a) experimentalismo
narrativo; b) narração em primeira pessoa; c) uso criativo e projetivo da linguagem;
d) envolvimento do leitor em emoções fortes; e) transposição de fronteiras; f) elipses;
g) teatralidade; h) figuratividade; i) evidenciação do detalhe; j) objeto mediador. Mais
adiante, checaremos como Sem olhos emprega isso.
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Maria do Céu era uma mulher bela, ainda que baixinha, ou talvez por
isso mesmo, porquanto as feições eram consoantes à estatura: tinha
uns olhos miúdos e redondos, uma boquinha que o bacharel
comparava a um botão de rosa, e um nariz que o poeta bíblico só por
hipérbole poderia comparar à torre de Galaad. A mão, que essa, sim,
era um lírio dos vales — lilium convalium —, parecia arrancada a
alguma estátua, não de Vênus, mas de seu filho; e eu peço perdão
desta mistura de coisas sagradas com profanas, a que sou obrigado
pela natureza mesma de Maria do Céu. Quieta, podiam pô-la num
altar; mas, se movia os olhos, era pouco menos que um demônio.
Tinha um jeito peculiar de usar deles que enfeitiçou alguns anos
antes a gravidade de Bento Soares, fenômeno que o bacharel
Antunes achava o mais natural do mundo.4
4
ASSIS, Machado de. Sem olhos. In: Obra completa. Disponível em: <http://machado.mec.gov.br/
images/stories/pdf/contos/macn051.pdf>. Acesso em: 03/03/2011.
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ocorre essa transição, sabemos que voltamos ao tempo presente, à casa dos
Vasconcelos, onde os seis companheiros discutem a existência de fantasmas.
As mudanças de foco narrativo empregadas por Machado nesse conto
lembram As mil e uma noites, em que há várias histórias, uma dentro da outra, feito
uma matrioshka (boneca russa) complexa. Tal experimentalismo narrativo, que
suscita uma multiplicidade de formas e discursos, marcou o século XIX, na
consolidação do romance como gênero híbrido, mas também em histórias curtas.
Lembramos aqui a inspiração fundamental do trabalho de Laurence Sterne nesse
processo. Tal qual o cavalheiro Tristam Shandy divaga sobre seus métodos de
escrita, narradores de contos fantásticos eventualmente se miram no espelho,
explicitando e comentando suas técnicas. “A narrativa fantástica carrega esta
ambiguidade: há a vontade e o prazer de usar todos os instrumentos narrativos para
atirar e capturar o leitor dentro da história, mas há também o gosto e o prazer de lhe
fazer recordar sempre de que se trata de uma história” (CESERANI, 2006: 69).
Não é porque estamos pisando em terrenos bizarros que não poderemos
necessariamente sentir empatia ou comoção. Pelo contrário, o envolvimento do
leitor em emoções fortes é premissa básica na literatura fantástica. Esta atua no
campo do subconsciente, do afetivo e do imaginativo, oferece a possibilidade de um
mundo diferente daquele a que o leitor está acostumado. O grotesco romântico, no
século XIX, vem para questionar valores como: “racionalismo sentencioso e estreito,
autoritarismo do Estado e da lógica formal, aspiração ao perfeito, completo e
unívoco, didatismo e utilitarismo dos filósofos iluministas, otimismo ingênuo ou banal
etc.” (BAKHTIN, 1993: 33). Pela insinuação do estranho e pela inspiração de temor,
o grotesco causa desorientação, atropelando a imagem cartesiana de que a
realidade seria constituída de unidade e lógica. Kayser usa a expressão “mundo
alheado” para se referir a essa ideia. Escreve o teórico alemão:
Para pertencer a ele [ao mundo alheado], é preciso que aquilo que
nos era conhecido e familiar se revele, de repente, estranho e
sinistro. Foi pois o nosso mundo que se transformou. (...)
Concomitantemente, sentimos que não nos seria possível viver neste
mundo transformado. No caso do grotesco, não se trata de medo da
morte, porém de angústia de viver. (KAYSER, 1986: 159)
Lucinda, que gemia de modo a cortar o coração. ‘Vê, disse ele, só lhe castiguei os
olhos’. O espetáculo que se me revelou então, nunca, oh! nunca mais o esquecerei!
Os olhos da pobre moça tinham desaparecido”5. Também é ilustrativa a descrição de
Damasceno: “A cara angulosa e descarnada, os olhos cavos, o cabelo hirsuto, as
mãos peludas e rugosas, tudo fazia dele um personagem fantástico” 6. Algo
semelhante ocorre nesta passagem: “[...] algumas velhas o supunham ligado ao
diabo. Esta crença, comparada com a idéia que o homem tinha a respeito do
Canhoto, dava bem para uma anedota romântica, que eu podia escrever logo depois
que voltasse a S. Paulo”7. Trata-se de metalinguagem, uma reflexão sobre a criação
ficcional. Cruz observa que elementos ao seu redor parecem fantásticos ou típicos
de uma anedota romântica, mas aquilo de que ele desconfia é para o leitor uma
certeza: aquilo é ficção. É como se o personagem, por um instante, suspeitasse de
sua condição de personagem em um universo insólito. O mesmo efeito esse recurso
pode causar no leitor, suscitando indagações como: o que é real e o que é ficção; o
grotesco existe só na arte; qual é o limite entre a narrativa e a vida.
Sigamos com as características listadas por Ceserani. Por uso projetivo e
criativo da linguagem, ele se refere a certa plasticidade que a palavra adquire na
narrativa fantástica. Este período de Sem olhos ilustra bem o conceito. Observa-se
que, na ambientação, o ar chega a se tornar palpável, de tão tenso: “Fez-se grande
silêncio; só se ouvia o tic-tac do relógio e o movimento do leque de Maria do Céu”8.
A metáfora é um recurso amplamente utilizado para a obtenção desse efeito. A título
de ilustração, relembremos a descrição de Maria do Céu, bastante figurada,
transcrita longamente acima. Noutra fala de Damasceno, também se encontram
estas sugestivas metáforas: “A morte é um verme, de duas espécies, conforme se
introduz no corpo ou na alma. Mata em ambos os casos”9 e “A cólera fazia dele uma
Medusa”10, entre outras.
A evidenciação do detalhe e a figuratividade (noção tomada emprestada
do teatro; é o posicionamento estratégico dos elementos em cena) trabalhadas
juntas resultam em uma narrativa bastante simbólica. Na obra de Machado, cada
5
Ibidem.
6
Ibidem.
7
Ibidem.
8
Ibidem.
9
Ibidem.
10
Ibidem.
431
Cadernos da Semana de Letras UFPR Ano 2011 Volume II – Trabalhos Completos
minúcia diz algo – como os nomes próprios, conforme vimos. No relato de Cruz,
também se encontram muitas referências bíblicas (além das tantas que já vimos
evidenciando até aqui) nas nomenclaturas dos lugares: São Paulo, Cantagalo (o
canto do galo marca os momentos em que Pedro nega Jesus), rua da Misericórdia.
Com isso, o narrador cria uma ambientação mística que culminará na aparição do
fantasma, fato desacreditado inicialmente por seus interlocutores, mas que depois,
graças ao modo imersor como o relato é construído, impressiona-os bastante.
Um elemento que satura o conto do começo ao fim é a imagem de olhos. A
primeira referência aparece ainda no plano presente, quando o narrador em terceira
pessoa descreve Maria do Céu. Começa de forma mais neutra (“tinha uns olhos
miúdos e redondos”), depois acrescenta elementos sinistros (“se movia os olhos, era
pouco menos que um demônio”) que a aproximam, assim, de Lucinda, que teve
seus olhos vazados por olhar para outro homem. A palavra “olho”, em suas formas
singular e plural, aparece 42 vezes (!) no conto, isso sem contar palavras do mesmo
campo semântico, como ver, olhar, enxergar etc. Observemos esta passagem
retirada do clímax, na qual destacamos as palavras relacionadas a olhos:
11
Ibidem. Embora destaquemos apenas palavras relacionadas a olhos, é interessante observar
também a recorrência dos termos próximos à fala: voz, silêncio, falava, quieta etc.
432
Cadernos da Semana de Letras UFPR Ano 2011 Volume II – Trabalhos Completos
12
Ibidem.
13
HOFFMANN, E. T. A. O homem de Areia. In: CALVINO, Ítalo (org.). Contos fantásticos do século
XIX. São Paulo: Companhia das Letras, 2004.
14
Ibidem.
433
Cadernos da Semana de Letras UFPR Ano 2011 Volume II – Trabalhos Completos
não faltasse o brilho da vida, quer dizer, se não lhe faltasse o sentido da visão” 15, diz
Sigmund), mas Natanael está cego de paixão, não percebe nada de errado nela. No
final do conto, quando ele descobre a verdade, esta será a impressão registrada
sobre a amada: “Tinha visto claramente que, em vez de olhos, havia duas negras
cavidades no pálido rosto de cera de Olímpia; era uma boneca sem vida” 16. O
destino do protagonista será a loucura, seguida pela morte trágica.
As semelhanças entre este trabalho de Hoffmann e o de Machado de Assis
são autoevidentes. A citação mais longa acima, que reproduz a fala de uma criada,
lembra muito de perto este devaneio de Damasceno Rodrigues: “A lua, meu rico
vizinho, não existe, a lua é uma hipótese, uma ilusão dos sentidos, um simples
produto da retina dos nossos olhos. É isto que a ciência ainda não disse; é isto o
que convém proclamar ao mundo”17. A descrição de Olímpia, quando já revelada
como uma boneca, também é similar à do fantasma de Lucinda: “De pé, junto à
parede, vi uma mulher lívida, a mesma do retrato, com os cabelos soltos, e os
olhos... Os olhos, esses eram duas cavidades vazias e ensangüentadas”18.
Se fizéssemos uma comparação mais detida, certamente outros paralelismos
entre os dois contos surgiriam. O objetivo aqui, no entanto, é apenas evidenciar que
Machado de Assis sofreu grande influência de E. T. A. Hoffmann, o maior nome no
fantástico romântico alemão. Particularmente em Sem olhos, isso acontece por meio
das várias referências mais sutis, mas em outro conto fantástico, Os óculos de Pedro
Antão, o nome do alemão chega a ser escrito com todas as letras: “Apenas vimos
sobre uma mesa um cachimbo alemão, que necessariamente devia ter pertencido
ao Cavaleiro Teodoro Hoffmann, pois a sua forma era de todo fantástica”19.
Embora a influência de Hoffmann apareça de forma predominante, é possível
encontrar em Sem olhos elementos que remetem a outros autores fantásticos do
século XIX. Um deles é o americano Edgar Allan Poe. Na descrição do quarto de
Damasceno, em Sem olhos, destaca-se na desordem um busto de Hipócrates. O
objeto talvez seja mero indicativo da formação da personagem em medicina, mas
também pode ter a função de rememorar outro busto famoso na literatura do século
15
Ibidem.
16
Ibidem.
17
ASSIS, Machado de. Sem olhos. In: Obra completa. Disponível em: <http://machado.mec.gov.br/
images/stories/pdf/contos/macn051.pdf>. Acesso em: 03/03/2011.
18
Ibidem.
19
ASSIS, Machado de. Os óculos de Pedro Antão. In: Obra completa. Disponível em:
<http://machado.mec.gov.br/images/stories/pdf/contos/macn051.pdf>. Acesso em: 03/03/2011.
434
Cadernos da Semana de Letras UFPR Ano 2011 Volume II – Trabalhos Completos
XIX: “And the raven, never flitting, still is sitting, still is sitting / On the pallid bust of
Pallas just above my chamber door; / And his eyes have all the seeming of a
demon's that is dreaming.”20 Considerando que Machado de Assis fez uma tradução
do poema “O corvo”, a relação torna-se provável. Um segundo elemento que
sustenta tal hipótese está contido no verso seguinte ao que cita o busto de Palas
Atena: o olhar do corvo é comparado ao de um demônio, mesma adjetivação que
recebe a personagem Maria do Céu.
Outro autor que pode ter sido referência para Machado de Assis é Prosper
Mérimée – aqui entramos um pouco no campo da especulação; há poucas
evidências no conto Sem olhos que indiquem tal relação, embora, na biblioteca
remanescente do fundador da ABL haja oito volumes de obras desse autor francês,
indicando que ele, ao menos, conhecia-o enquanto leitor. Para estabelecer a relação
entre ambos, evoquemos novamente a expressiva descrição de Maria do Céu, na
qual o narrador observa que a mão dela “parecia arrancada a alguma estátua, não
de Vênus, mas de seu filho”. Em Vênus de Ille, de Merimée, a estátua da deusa
grega teria ganhado vida e estrangulado o jovem que colocara uma aliança no dedo
dela – a única testemunha do caso é dada por louca, portanto, não se tem certeza
do acontecido. Há, portanto, uma possibilidade de correlação entre os contos.
Até este ponto, as características destacadas no conto Sem olhos, de
Machado de Assis, confirmam que este se inseriu na grande corrente fantástica que
perpassou a literatura do século XIX, em especial a romântica. Não se tratou de uma
produção isolada do autor, de exceção; pelo contrário, ela aflora em quantidade (há
mais de dez contos dessa vertente) e maturidade. O autor brasileiro foi fiel aos
elementos básicos, leu e dialogou com os grandes mestres do gênero e ainda
conseguiu manter seus traços pessoais, como a metalinguagem e o sarcasmo. Seu
conto traz, ainda assim, traços nacionais. Não pinta um Brasil de índios, sertanejos e
matas virgens, mas carrega no plano de fundo elementos próprios da sociedade
burguesa de seu tempo, como a papel feminino inferiorizado no casamento e o
embate entre super valorização da ciência e os resquícios de superstição e
fanatismo. Esses são exemplos de questões que não definiriam sozinhas “a cara” do
Brasil, mas que estão presentes nele naquele momento e, por isso, não deixam de
serem importantes para sua caracterização.
20
POE, Edgar Allan. The raven. Publicado pela primeira vez em 1845. Disponível em:
<http://www.insite.com.br/art/pessoa/coligidas/trad/theraven.php>. Acesso em: 03/03/2011.
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Cadernos da Semana de Letras UFPR Ano 2011 Volume II – Trabalhos Completos
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
CALVINO, Ítalo (org.). Contos fantásticos do século XIX. São Paulo: Companhia
das Letras, 2004.
CANDIDO, Antonio. Esquema de Machado de Assis. In: Vários escritos. São Paulo:
Duas Cidades, 1970. (p. 15-32)
436
Cadernos da Semana de Letras UFPR Ano 2011 Volume II – Trabalhos Completos
De acordo com o autor, esta cena ilustra a ideia de que a prática docente não
traz respostas; no entanto, ela é capaz de nos dar algumas alternativas para superar
os desafios que se impõem ao longo do processo.
Nesse sentido, a experiência serviu de base para diversas reflexões,
sobretudo, na tentativa de aliar a teoria à prática vivenciada no Projeto. A formação
docente deve se aliar à prática e articular a tríade ensino/pesquisa/extensão. A
prática docente deve dialogar com o que a teoria diz, deve complementar,
questionar e criticar, buscando assim, a superação de obstáculos que se impõem ao
trabalho do professor e à educação como um todo. Assim, o Projeto vem a ser uma
experiência de prática de docência e vem a complementar a tríade ensino/pesquisa,
438
Cadernos da Semana de Letras UFPR Ano 2011 Volume II – Trabalhos Completos
440
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441
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A abordagem metodológica
442
Cadernos da Semana de Letras UFPR Ano 2011 Volume II – Trabalhos Completos
Contudo, por mais que se tenha consciência de que é preciso dar aos alunos
o prazer pelo acesso ao conhecimento, para que se tenha o exercício crítico e
autônomo, a abordagem tradicional parece ser uma opção política, pois não é
interessante para o Estado emancipar pessoas enquanto sujeitos críticos e
autônomos. Nas relações de poder que se estabelecem em nossa sociedade, é
interessante que a sociedade permaneça como está, e para isso, a abordagem
tradicional vem a contribuir, pois é interessante não emancipar os indivíduos.
443
Cadernos da Semana de Letras UFPR Ano 2011 Volume II – Trabalhos Completos
mundo que os cerca e sobre a língua que estudam, e é no ambiente escolar que
busca-se formalizar estas discussões para que elas permaneçam válidas. Este, é um
dos papeis da escola. Da mesma maneira, a francofonia é apresentada aos alunos e
é buscada uma comparação entre estas diversas realidades do mundo francófono e
a própria realidade dos alunos, fazendo com que eles abram seus horizontes e
percebam as possibilidades que têm ao aprenderem uma língua que se faz muito
mais rica quando articulada na perspectiva de todos os seus falantes.
Essa aproximação final das culturas – e dos estereótipos que recaem sobre
elas – foi especialmente importante no sentido de valorizar o conhecimento prévio
do aluno e propor uma relação entre a Língua Materna e a LE, sem torná-lo “uma
tábula rasa”, como menciona CORACINI (2003). Nesse sentido, é de extrema
relevância quebrar esse estigma em sala, buscando sempre atividades que
aproximem e agreguem saberes, e não o contrário.
Os resultados
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Referências bibliográficas
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Muito já foi dito que o nosso poeta era estoico e epicurista. O que vemos,
nesse texto, entretanto, é um poeta extremamente angustiado com a brevidade da
vida e com um temor grandioso da morte, sentimento que não condiz com nenhuma
das duas correntes filosóficas. De acordo com Eduardo Lourenço, crítico português,
Reis “aceita seu fado, mas o faz angustiadamente” (LOURENÇO in Pessoa
Revisitado).
449
Cadernos da Semana de Letras UFPR Ano 2011 Volume II – Trabalhos Completos
Cada qual de nós – opina o Poeta – deve viver a sua própria vida,
isolando-se dos dos outros e procurando apenas, dentro de uma
sobriedade individualista, o que lhe agrada e lhe apraz. [...] Buscando
o mínimo de dor ou [...], o homem deve procurar sobretudo a calma,
a tranqüilidade, abstendo-se do esforço e da atividade útil. (REIS,
Frederico in Obra Poética de Fernando Pessoa, 1915?:141)
A partir deste trecho, podemos até chegar a assemelhar Reis com Horácio,
pois o que encontramos é a descrição de uma poética mais amena e não angustiada
ou apavorada como demonstra o poema, o que nos leva a desconfiar desse discurso
tranquilo. Reis não procura aproveitar as pequenas chances ou os pequenos
prazeres de uma existência mais branda, como um bom epicurista. De fato, o que
fica claro é que Reis foge do incomum e prefere sua paz alienada: “Tudo quanto me
ameace de mudar-me/ para melhor que seja, odeio e fujo.” Além disso, sofrer
previamente do medo do fim é em absoluto estóico. Um adepto dessa filosofia é
apático e resignado quanto ao seu destino. Já Ricardo Reis sofre de uma angústia
crônica com relação ao seu destino, a sua entrega para uma vida mais plena. Ele,
portanto, prefere manter-se recolhido e evita o sofrimento, porque não o aceita, mas
sim o teme. “Deixem-me os deuses minha vida sempre/ Sem renovar”, ou seja, a
rotina cômoda e sem novidades é o que mantém a paz do poeta.
Como prefere uma vida costumeira, solitária, sem amor ou dor, seus dias
passam como o sol que sempre efetua o mesmo ritual. Isso se torna evidente na
última estrofe do poema
O poeta dorme e acorda como o sol morre e renasce todos os dias, sempre de leste
a oeste. Não há mudanças, apenas o conforto de algo conhecido e nada assustador
(afinal o dia sempre retorna junto com o astro).
O poeta latino não foge de seu destino e muito menos sofre por antecipação
(“Como é melhor sofrer quanto aconteça!”). A angústia de viver todas as provações
que a vida lhe impõe inexistem na poética de Horácio e esse é um de seus textos
mais famosos e certamente se encaixa como o oposto do que disse Ricardo Reis
em várias odes, incluindo a que está neste texto.
1
Tradução de Bento Prado de Almeida Ferraz
451
Cadernos da Semana de Letras UFPR Ano 2011 Volume II – Trabalhos Completos
Ou seja, o poeta apenas vive, mesmo que com prudência. No entanto, deixa
seu destino nas mãos dos deuses e não se preocupa com o amanhã, não indaga.
Colhe o que o dia presente oferece. É com essa mesma atitude que Horácio trava
um diálogo com Lídia em outro texto
Horácio
Enquanto inda me amavas,
e nenhum jovem estendia os braços
sobre teu colo branco,
eu vivi mais feliz que o rei dos Persas.
Lídia
Enquanto nenhuma outra
te abrasava, nem Lídia a Cloe cedia,
a tão famosa Lídia,
eu vivi mais famosa que Ília em Roma.
Horácio
Mas Trácia Cloe me reina,
douta nos modos, sábia em doce cítara,
por quem não temo a morte,
desde que os Fados poupem minha amada.
Lídia
Num mútuo fogo me arde
Cálais, o filho Órnito Turino,
e sofro duas mortes,
desde que os Fados poupem meu menino.
Horácio
Se volta a antiga Vênus,
e à força nos reúne em brônzeo jugo,
se some a loira Cloe,
e abrem-se as portas da largada Lídia?
Lídia
Se ele é mais belo que astros,
e tu mais leve que cortiça e mais
iroso que o Adriático:
amaria viver, morrer contigo.2
2
Tradução de Guilherme Gontijo Flores
452
Cadernos da Semana de Letras UFPR Ano 2011 Volume II – Trabalhos Completos
3
Eduardo Lourenço in Pessoa Revisitado, p.49
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Cadernos da Semana de Letras UFPR Ano 2011 Volume II – Trabalhos Completos
Lídia e Horácio (“se volta a antiga Vênus”, “amaria viver, morrer contigo.”). Ou seja,
ao longo das três partes, os dois demonstraram carinho pelo passado, mas nada
angustiante que não impedisse o presente satisfatório com amantes diferentes e,
muito menos, dispensam um futuro incerto com a volta do antigo amor. Sendo
assim, o que reina é o desapego. Viver e aproveitar o presente, apreciar o passado
e não temer o que o futuro reserva.
A visão amorosa que aparece na seguinte ode de Ricardo Reis vai no
extremo oposto do que propõe o diálogo entre Lídia e Horácio.
Vem sentar-te comigo Lídia, à beira do rio.
Sossegadamente fitemos o seu curso e aprendamos
Que a vida passa, e não estamos de mãos enlaçadas.
(Enlacemos as mãos.)
Reis evita uma possível paixão vivida com Lídia. O poeta prefere uma relação
mais infantil (“Amemo-nos tranquilamente, pensando que podíamos,/ Se
quiséssemos, trocar beijos e abraços e carícias,/ Mas que mais vale estarmos
sentados ao pé um do outro”), impede um contato mais físico (“desenlacemos as
mãos”), justamente para não sofrer. A relação entre Lídia e Reis é mais fria e
distante, enquanto Horácio vive plenamente sua relação com Cloe (“Mas Trácia Cloe
me reina, /douta dos modos, sábia em doce cítara,/ por quem não temo a morte”) e
muito menos descarta uma volta a sua Lídia (“Se volta a antiga Vênus,/ e à força nos
reúne em brônzeo jugo, se some a loira Cloe,/ e abrem-se as portas da largada
Lídia”).
Fica claro, então, que os dois poetas divergem tanto na maneira de encarar a
morte e o amor. O poeta português afasta-se do amor para se esquivar do
sofrimento, porém sofre por se angustiar com o medo da morte e da dor por se
apaixonar. Ao impedir uma maior aproximação com sua amada, Ricardo Reis
acredita que ao chegar ao fim será privado de lamentos. Portanto, ao fugir de todas
as emoções e sofrimentos que a existência possa causar, o heterônimo não é
verdadeiramente estóico ou epicurista.
Em um ensaio que Reis publicou em resposta à definição de Álvaro de
Campos sobre “o que é poesia”4, ele elucida que “um poema é a projeção de uma
idéia em palavras através da emoção. A emoção não é a base da poesia: é tão-
somente o meio de que a idéia se serve para se reduzir a palavras”. O que é
interessante observar nessa colocação é que Ricardo Reis crê em uma poesia fria,
que usa a emoção apenas para expressar uma idéia. Ou seja, “quanto mais fria a
poesia, mais verdadeira”, visto que é a projeção da idéia, da razão. Ao escrever isso
4
Álvaro de Campos in Obra em Prosa, 142
455
Cadernos da Semana de Letras UFPR Ano 2011 Volume II – Trabalhos Completos
mais uma vez o heterônimo se afasta de seu propósito inicial de reconstrução pagã
nos moldes de Horácio e Caeiro. Isso não significa que a poesia destes seja visceral
como a de Álvaro de Campos, entretanto não nos deparamos com uma atmosfera
mais falsa e superficial como a que rodeia a obra de Ricardo Reis. Sendo assim, a
pergunta que deve ser respondida ao lermos as odes do médico lisboeta é: ele
falhou com seu propósito poético?
Como vimos, o próprio Fernando Pessoa clareia que a gênese do seu
heterônimo foi em uma briga que ele travou com a Modernidade. Logo, Ricardo Reis
é um personagem que tenta combater seu tempo, contudo não consegue se
desprender dele, tornando-se, então, não uma cópia de um poeta antigo, mas uma
recriação ficcional de um poeta com valores antigos e referências modernas. Como
diz Lourenço, “o que sobressai no seu ar de imitar a Antiguidade é um fundo de
angústia moderna, é a resposta para a não-resposta de onde nasce e extravasa”.
Concluindo isso, fica mais fácil entender que uma análise mais apurada da
poesia de Ricardo Reis se faz necessária. Procurar em seus textos de que maneira
Horácio é revisitado e como Pessoa faz para manter seu heterônimo um homem que
pertence ao próprio tempo. De que forma a filosofia antiga e os filósofos,
antropólogos e sociólogos contemporâneos a Pessoa influenciam e aparecem nas
odes e ensaios de Reis é, também, um modo de reavaliar e propor outras leituras
dessa obra tão peculiar.
Referências bibliográficas
Livro
PESSOA, Fernando. Obra Poética. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 2008, vigésima
segunda reimpressão da terceira edição.
PESSOA, Fernando. Obra em Prosa. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 1986, quarta
reimpressão da primeira edição.
LOURENÇO, Eduardo. Fernando Pessoa Revisitado. Leitura Estruturante do
Drama em Gente. Porto: Editora Inova, 1973.
456
Cadernos da Semana de Letras UFPR Ano 2011 Volume II – Trabalhos Completos
WIELER, Rodrigo1
Introdução
1
Bacharel em Estudos Literários pela UFPR.
457
Cadernos da Semana de Letras UFPR Ano 2011 Volume II – Trabalhos Completos
Morte na Literatura
Tão certo quanto o nascer e o pôr do sol de todos os dias, apenas ela, a
morte. Assim como o sol, que brilha por algumas horas e depois se despede ao cair
da tarde, a vida, em algum momento, faz sua derradeira apresentação – seja ela
dramática, espetacular ou trágica – e sai do palco, para permitir que a protagonista
invada a cena e fulgure soberana.
Para Santa Bárbara (2005: p.1), “A morte é, sem dúvida, uma das questões
que mais afecta o ser humano. O seu desconhecimento, o facto de poder ser o fim
da vida, ou uma passagem para outra, são questões sem resposta definitiva”.
A morte, talvez, seja a temática que mais gere debates na humanidade, visto
ser ela um dos pilares dos dogmas e crenças religiosos. Especulações, fé, ciência –
o homem tenta entendê-la e desvendá-la desde o início das civilizações, quando
celebrava cultos e ritos a deuses diversos, sempre com o intuito de estabelecer
algum contato com o além ou sentir algum conforto pelo luto. A cultura ocidental, de
um modo geral, impinge um ar ainda mais impenetrável ao acontecimento,
considerando-o como definitivo e lamentando-o como um fim.
458
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Especificamente
459
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2
Trechos retirados de HOMERO. Ilíada. Tradução de Odorico Mendes, prefácio e notas verso a
verso de Sálvio Nienkötter. São Paulo/Campinas: Ateliê Editorial/UNICAMP, 2008.
460
Cadernos da Semana de Letras UFPR Ano 2011 Volume II – Trabalhos Completos
Porém – prova maior de que sua morte foi determinante para alçá-lo à
condição de herói –, para os troianos, Heitor deve ter um funeral com as cerimônias
de um grande homem. Já no Canto XXIV, Príamo vai ter com Aquiles e o próprio
assassino do filho do rei concorda em entregar o corpo e conceder uma interrupção
de 10 dias na batalha, para que seus adversários chorem a morte de seu herói.
Ilíada acaba com a descrição das honras que teve Heitor, que com sua morte
alcançou a eternidade:
Consoada
3
Poema retirado de BANDEIRA, Manuel. Antologia poética. Nova Fronteira: Rio de Janeiro, 2001.
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Cadernos da Semana de Letras UFPR Ano 2011 Volume II – Trabalhos Completos
podemos pensar que o medo se apossa dele. Porém, apesar do medo por não saber
se a morte viria de maneira “dura ou caroável”, o interlocutor nos indica que ela será
bem recebida e até “Encontrará lavrado o campo,/a casa limpa,/A mesa posta,/Com
cada coisa em seu lugar.”
Isso nos indica que o poeta encara a vida como fugaz, dando a entender que
tem consciência de sua própria efemeridade. Ao enfrentar a morte e seus receios,
“convidando-a” para um jantar, uma atividade relacionada à vida, aceita-a, como
sugere Leon (2005):
464
Cadernos da Semana de Letras UFPR Ano 2011 Volume II – Trabalhos Completos
O Decote
A Dama do Lotação
4
Os contos analisados foram retirados da seguinte edição: RODRIGUES, Nelson. A vida como ela
é.... Rio de Janeiro: Agir, 2006.
465
Cadernos da Semana de Letras UFPR Ano 2011 Volume II – Trabalhos Completos
Conclusão
ser bem recebido. O que refuta de forma veemente a ideia de que a morte é vista
com tristeza ou como fim nela mesmo.
Por isso, versando especificamente a respeito dos contos de Nelson
Rodrigues – nosso maior interesse neste estudo –, concluímos que em ambos os
contos a morte tem um maior valor do que simplesmente tirar de cena determinadas
personagens.
Primeiramente, as duas vítimas são cônjuges: se em O Decote, Clara fora a
adúltera, sendo o marido traído seu algoz, em A Dama da Lotação, Carlinhos
padece duas vezes – além de traído, é ele também que simbolicamente sacrifica a
própria vida após descobrir as mentiras da esposa. Nos dois casos, a morte é fruto
de uma vingança masculina e promovida para retomar, paradoxalmente, as rédeas
da vida, já que o homem teve a reputação penhorada pelo comportamento leviano
feminino. Contudo, se em O Decote o fim é trágico e revela a mácula familiar, bem
ao gosto rodrigueano, em A Dama da Lotação, a morte, até por não ser
concretizada, é irônica e debochada, escancarando, igualmente, o humor mórbido e
bilioso do autor, especialista em patologias da alma humana.
Assim, mesmo sem ter tido grandes pretensões em relação ao descerramento
da temática tanto na Literatura Ocidental quanto na literatura de Nelson Rodrigues,
nossa análise aparenta, ao menos em parte, ter apresentado contornos importantes
da obra rodrigueana para uma melhor compreensão desse tema na prosa do grande
dramaturgo, com o que imaginamos desempenhada ao menos a maior parte do
proposto para este estudo.
Referências bibliográficas
BORBA, José César. in: RODRIGUES, Nelson. Teatro quase completo. Tempo
Brasileiro: Rio de Janeiro, 1965. Vol. 1.
0DE%20AUTORES%20DA%20LITERATURA%20BRASILEIRA%20-
%20UMA%20ABORDAGEM%20LINGUISTICO-COGNITIVA.pdf. Acesso em
29.jul.2011
RODRIGUES, Nelson. A vida como ela é.... Rio de Janeiro: Agir, 2006.
468
Cadernos da Semana de Letras UFPR Ano 2011 Volume II – Trabalhos Completos
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ele mostra a intenção de obedecer ou não às tradições históricas, jogo inicial com o
conteúdo a ser revelado do qual ele é a vitrine ou o anúncio, o chamariz ou o selo de
qualidade.
No caso da peça em questão, a utilização do gênero “Auto” parece estar bem
de acordo com o conteúdo geral da peça pela evidente relação deste gênero com
toda a região nordestina que prontamente se estabelece como uma forma com que
o autor se coloca sob a bandeira cultural do Nordeste e seus famosos autos.
O Auto, segundo o Dicionário do teatro brasileiro (2006), é uma denominação
popular genérica dada às representações teatrais na Península Ibérica desde o
século XIII. Aplicava-se indistintamente a composições dramáticas de caráter
religioso, moral e burlesco. As peças religiosas alegóricas que tratavam de
problemas morais e teológicos (o sacramento da eucaristia) e eram apresentadas
sobre carroças para um público eminentemente popular eram chamadas de autos
sacramentais (PAVIS, 2005:31).
1
Entrevista concedida por Marcos Barbosa em 14 de setembro de 2009 na Universidade Federal da Bahia.
472
Cadernos da Semana de Letras UFPR Ano 2011 Volume II – Trabalhos Completos
tudo o que possa sugerir algum tipo de atitude artificial para que seja representado
como algo “natural”, conforme a verdade dos modelos levados ao palco integrando
objetos e materiais diretamente tirados da realidade de maneira a prescindir dos
habituais truques ilusionistas. O exemplo paradigmático em apresentar o real em
cena em estado bruto, é o caso dos pedaços de carne em Os açougueiros (1888),
de Fernand Icres (ROUBINE, 2003:115).
O espetáculo segue o seu ritmo morno até quase o momento final da peça
quando em que ouve-se o latido de um cachorro e a seguir um tiro, ambos em off.
Os cangaceiros se levantam para a posição vertical, sacam de suas armas, e em
meio de um forte tiroteio, separadamente ficam se deslocando de um lado para o
outro do palco. Então acontece um black out no meio de um grande barulho causado
pelo som das rajadas de metralhadora. Quando as luzes voltam a ficar acesas,
Lampião está morto no meio do palco. Maria parece enlouquecer e passa a gritar até
que o som de um tiro solitário a faz calar. A diretora encerra o espetáculo sem
retomar as falas de Lampião e Maria Bonita conforme vimos na análise sobre o
texto-fonte, o que como veremos na analise comparativa das duas produções
determina fortemente a matriz dramática da sua obra.
A segunda montagem de Auto de Angicos foi desenvolvida por Amir Haddad,
que tal como na dramaturgia medieval, busca um teatro sem arquitetura, sem palco
e sem papel, o que já torna possível antever que a montagem do diretor diferirá
substancialmente da produção de Elisa Mendes. Haddad vai elaborar o seu
espetáculo a partir de uma série de modelos, incluindo a forma do “auto”, que
segundo Ligia Vassallo (1993:114), vincula-se com as danças de morte medievais, o
que permite caracterizá-lo como a fórmula de conciliação entre a criação do poeta
culto e a criatividade de base para equacionar uma mensagem dirigida à massa
heterogênea de receptores.
Apesar, desta aproximação, Haddad elabora Virgolino e Maria: Auto de
Angicos3 de uma forma contemporânea, abandonando a forma rígida do drama no
que diz respeito, principalmente, à existência de uma quarta parede e da convenção
da ilusão dramática. Ele explora formas que desenvolveu nos seus trabalhos
3
No decorrer deste trabalho nos referiremos a Virgolino e Maria: Auto de Angicos simplesmente
como Virgolino e Maria.
474
Cadernos da Semana de Letras UFPR Ano 2011 Volume II – Trabalhos Completos
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Entrevista concedida por Paula Salles em 28 de março de 2008.
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Entrevista concedida por Amir Haddad em 22 de agosto de 2009.
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O espetáculo todo é construído com o movimento livre com que os atores vão
se conduzindo ao redor do palanque/barco traz a percepção de que no palco estão
atores realizando suas performances, pois eles expõem as suas próprias
existências. Além disso, Haddad prioriza o “silêncio em formato de pausa”, que é
utilizado diversas vezes no texto. Estas pausas se tornaram muito mais do que
simples figuras da retórica, para se transformar em momentos de reflexão da plateia.
O casal continua o jogo dramático até que na sequencia final da peça, a
platéia ouve in off o barulho de cães e de tiros de metralhadora. Lampião saca a
arma e começa a cantar a música Muié rendera, sendo rapidamente assassinado.
Maria, ao perceber a morte do companheiro, passa a caminhar desorientada em
volta do palanque/barco até que ocorre um rápido black out.
Na volta da iluminação, bem no centro do palanque/barco jazem os corpos de
Virgolino e Maria com música de fundo. Maria está em cima do corpo do marido e
diferentemente do texto-fonte, os corpos não estão decapitados, nem o cadáver de
Maria está com uma vara de pau enfiada na vagina.
Durante a execução da música os contra-regras entram em cena e começam
a empacotar o palanque junto com os corpos dentro dele. Eles iniciam por unir as
duas laterais, o que pode ser entendido como um livro que se fecha no fim da
história. Depois os contra-regras levantam e dobram a lona frontalmente sobre o
palanque e terminada a operação, se posicionam ao lado do cenário empacotado.
O casal de personagens sai então de traz do pacote/cenário com roupas de
cangaceiros. Maria Bonita se aproxima da frente do cenário empacotado pela
esquerda enquanto Lampião vem pela direita. Ambos já estão municiados com os
seus rifles e recebem dos contra-regras os chapéus de cangaceiro. A lente direita
dos óculos de Lampião está agora escura..
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A seguir, os dois atores ganham o meio do palco e ficam lado a lado de frente
para a plateia, estão estáticos, assim como os artesanatos de barro de Mestre
Vitalino, como pode der visto na figura 7, consolidando o mito conhecido.
.
membros, pele, olhar, numa exibição que transborda presença e energia numa
personagem que não é o “Lampião” e sim muitos “Lampiões”.
Referências bibliográficas
BRECHT, Bertolt. Estudos sobre teatro. Trad. Fiama Hasse Pais Brandão. São
Paulo: Nova Fronteira, 2005.
PAVIS, Patrice. Análise dos espetáculos. Trad. Sérgio Sálvia. São Paulo.
Perspectiva, 2005