Dicionário Nheengatu - Português
Dicionário Nheengatu - Português
Dicionário Nheengatu - Português
nheengatú-kariwa nheenga
Nível: Doutorado
Assim que chegaram ao litoral das terras que constituem atualmente o Brasil, os
colonizadores europeus depararam-se com povos que falavam, em sua maioria, variantes
dialetais do idioma que ficaria conhecido como tupi, inicialmente nomeado, também, como
língua brasílica. Esse foi o idioma vigente em algumas das primeiras povoações e
aldeamentos coloniais em solo brasileiro e deu origem a, pelo menos, duas línguas gerais –
a língua geral paulista e a língua geral amazônica (LGA)1 –, cujos usos se expandiram por
vastos territórios.
1
Há indícios de que teria se formado também uma língua geral de base tupi no sul da Bahia. Para mais
informações sobre esse assunto, cf. LOBO, Tânia C. Freire et al. Indícios de língua geral no sul da Bahia
na segunda metade do século XVIII. In: LOBO, Tânia et al. (Org.). Para a história do português
brasileiro. VI: novos dados, novas análises. Salvador: EDUFBA, pp. 609-630.
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Neste trabalho, os termos tupi, LGA – ou simplesmente língua geral – e nheengatu serão utilizados
como nomeações que se acumulam ao longo dos períodos evolutivos do idioma, ou seja, o nheengatu
poderá ser chamado de tupi ou LGA, mas o tupi antigo não será nunca referido por LGA ou nheengatu.
tanto os moradores quanto os missionários organizassem o ensino do português aos índios
(FREIRE, 2011, p. 122). As políticas de “portugalização” da Amazônia acentuaram-se no
período pombalino, culminando com a proibição do idioma em 1757, medida que,
entretanto, não surtiu o efeito pretendido no Grão-Pará, onde a língua continuou pujante e
seu uso expandiu-se, ainda, por novos territórios.
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Após alguns anos, a Lei 145/2002 foi regulamentada pela Lei 210/2006. Para mais informações, cf.
SILVA, Fabiana Sarges da. A lei de cooficialização das línguas tukano, nheengatu e baniwa em São
Gabriel da Cachoeira: questões sobre política linguística em contexto multilíngue. 2013. 193f.
Dissertação (Mestrado) – Universidade Federal do Amazonas, Manaus, 2013.
Tapajós, onde a língua deixou de ser falada no século 20, há projetos em andamento
para que o idioma seja reaprendido por populações indígenas.
O avanço dos trabalhos de tradução literária para o nheengatu, por sua vez,
depende, em alguma medida, da disponibilidade de instrumentos auxiliares, que
permitam não apenas o aprendizado satisfatório dos idiomas envolvidos na tradução,
mas possibilite também consultas pontuais para a depuração das escolhas tradutórias. O
projeto aqui proposto, que consiste na compilação de um dicionário bilíngue de léxico
geral nheengatu-português, vem, portanto, prestar importante auxílio àqueles que se
debruçam na tarefa de traduzir textos entre esses dois idiomas. Além disso, uma
compilação lexical atualizada será também de grande valia para os que pretendem
desenvolver outros tipos de estudo ou atividade frente ao nheengatu, como aprender o
idioma, compor textos nessa língua, estudar sua estrutura, sua fonética, sua morfologia e
até mesmo suas variações diacrônicas ou sua história.
2. Objetivos
Um importante propósito a ser perseguido por este trabalho, que vale ser
comentado com mais delonga, é o resgate linguístico. A LGA esteve em permanente
contato com o idioma português, o que resultou em inúmeras influências da língua
românica no idioma do tronco tupi, seja a nível morfológico, fonológico, sintático ou
semântico. Os registros antigos do nheengatu, ou mesmo da LGA do século 18,
mostram que o vocabulário do idioma já contava com empréstimos do português na
época de suas composições. A maioria, no entanto, referenciava elementos alheios ao
contexto natural ou cultural da Amazônia pré-colonial, e os empréstimos costumavam
sofrer alterações que os adaptavam ao sistema fonológico da língua franca. Atualmente,
devido à grande pressão exercida pela língua portuguesa, os falantes do nheengatu
recorrem frequentemente ao vocabulário português, mesmo que tal fenômeno ocorra em
diversas gradações. Variando de um falante para outro e dependendo do contexto e do
assunto tratado, ouve-se virtualmente qualquer palavra da língua portuguesa em meio a
um discurso em nheengatu. Os falantes bilíngues em nheengatu e português,
logicamente, recorrem com mais frequência aos empréstimos e muitos jovens já não
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Cf. ÁVILA, Marcel Twardowsky. Estudo e prática da tradução da obra infantil A terra dos meninos
pelados, de Graciliano Ramos, do português para o nheengatu. 2016. 199f. Dissertação (Mestrado) –
Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas, Universidade de São Paulo, São Paulo, 2016.
conhecem vocabulários básicos do idioma materno, utilizando exclusivamente seus
correspondentes portugueses. A linguista Françoise Grenand já havia notado isso há
mais de 25 anos:
3. Pressupostos Teóricos
Uma questão básica que é suscitada pela proposta de pesquisa contida nesse
projeto diz respeito à filiação dessa atividade à área dos Estudos da Tradução: compete
ao estudioso da Tradução a elaboração de ferramentas lexicográficas? Se a resposta a
essa indagação for afirmativa, cabe ainda responder a questões complementares: que
tipos de pesquisas e instrumentos lexicográficos podem ser satisfatoriamente
desenvolvidos por tais pesquisadores? A compilação de dicionários bilíngues de léxico
geral é da alçada de tais estudiosos, ou apenas a elaboração de glossários de léxico
específico o seria?
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Segundo Holmes (2000, p. 183), seu artigo foi composto em agosto de 1972.
trabalho no campo dos “estudos da tradução aplicados”. Em sua opinião, contudo, “os
materiais de auxílio lexicográficos ficam frequentemente aquém das necessidades da
tradução” (HOLMES, 2000, p. 182, tradução nossa)6, o que poderia ser resolvido, ao
menos em parte, pela ação de pesquisadores filiados aos Estudos da Tradução.
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[...] lexicographical aids often fall far short of translation needs [...].
O tradutor que lida com uma língua sem tradição literária, que não possui uma
gramática normativa e nem mesmo uma grafia oficial, deve levar às últimas
consequências a multidisciplinaridade característica ao ato tradutório. As traduções que
envolvem tais línguas ocorrem, frequentemente, em paralelo a pesquisas linguísticas,
lexicais, filológicas, históricas e antropológicas. Da mesma forma, é de se esperar que o
estudioso da Tradução que empreenda pesquisas lexicográficas com idiomas de tradição
ágrafa transponha algumas barreiras interdisciplinares que poderiam, eventualmente, se
mostrar mais rígidas no caso de línguas-culturas de forte tradição escrita e literária, para
as quais a especialização das atividades de pesquisa é mais flagrante.
4. Metodologia de Pesquisa
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Dentre essas publicações, a mais ambiciosa é o Vocabulário português-nheengatu, nheengatu-
português, de Ermanno Stradelli (2014 [1929]). Trata-se de uma valiosa obra enciclopédica, pontilha,
entretanto, por equívocos ou imprecisões. Após a primeira publicação da compilação de Sradelli, apenas
um material lexicográfico foi publicado sobre o nheengatu, o Pequeno dicionário da língua geral, de
Grenand e Ferreira (1989). Essa obra tem sua relevância, mas é uma compilação consideravelmente
limitada.
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Trata-se da tradução da obra A terra dos meninos pelados, de Graciano Ramos, do português para o
nheengatu. Para mais informações a respeito do episódio aqui relatado: cf. ÁVILA, Marcel Twardowsky.
Estudo e prática da tradução da obra infantil A terra dos meninos pelados, de Graciliano Ramos, do
português para o nheengatu. 2016. 199f. Dissertação (Mestrado) – Faculdade de Filosofia, Letras e
Ciências Humanas, Universidade de São Paulo, São Paulo, 2016 (pp. 56-8).
antigas palavras do nheengatu – pois a indagávamos sobre muitos termos que ela ouviu
apenas quando menina ou, então, escutou dos lábios de falantes muito idosos –, a professora
também passou a nos questionar sobre palavras que lhe causavam dúvida. Em certa ocasião,
sem que houvéssemos jamais lhe questionado sobre essa palavra, a Prof.ª Celina nos
perguntou sobre o significado do verbo pitimú (ou pitimũ), que ela lembrava-se de ouvir,
quando pequena, na fala de sua finada avó. Ela recordava-se de ouvir esse verbo em certos
contextos específicos que foram então relatados.
Tabela 1 – Registros antigos do verbo pitimú com os significados atribuídos por seus
autores
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Os registros indicados na tabela servem como exemplificação de uma ou mais ocorrências do termo nas obras dos
respectivos autores, mas não indicam, necessariamente, as únicas ocorrências desses vocábulos em tais obras.
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Na seção nheengatu → português de seu Vocabulário, Stradelli traduz todos os temas verbais tupis por
formas de particípio, anotando, portanto, no verbete pytumun os termos “auxiliado” e “ajudado”.
O verbo pitimú caiu em desuso, não sendo mais veiculado entre os falantes de
nheengatu do Alto Rio Negro, que, para acessar seus significados, utilizam empréstimos
do português, como o verbo ajudari (ou wajudari), oriundo do português “ajudar”. Os
registros antigos da língua possibilitam, contudo, a recuperação de termos pouco
veiculados ou mesmo a de alguns completamente esquecidos, o que pode servir ao
enriquecimento lexical do nheengatu. Na realidade, tal como pitimú, muitos vocábulos
aparentemente olvidados por completo entre os falantes do Rio Negro persistem como
vagas reminiscências nas memórias de alguns poucos. Muitos exemplos poderiam ser
arrolados: puité (mentira), yasí-tatá (estrela), ipeka (pato), yusé (gostar) etc.
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Um desses poucos estudos trata-se de um trabalho de mestrado concluído a poucos anos: SCHWADE,
Michéli Carolíni de Deus Lima. Descrição fonético-fonológica do nheengatu falado no Médio Rio
Amazonas. 2014. 109f. Dissertação (Mestrado) – Universidade Federal do Amazonas, Manaus, 2014.
Estudaremos, por fim, a possibilidade de fornecer, na compilação, sugestões de
neologismos que possam enriquecer o vocabulário da língua. Essas palavras seriam
criadas para abarcar conceitos e objetos que não possuem significantes tradicionais em
nheengatu, como produtos da tecnologia ou termos técnicos que, por não fazerem parte
do contexto tradicional amazônico, não possuem vocábulos correspondentes no idioma.
Tais palavras poderiam servir a futuros tradutores ou escritores que queiram compor
textos em língua geral. Convém, entretanto, que esses vocábulos sejam avaliados
criticamente por diferentes falantes do idioma e, tratando-se de termos que não são
amplamente veiculados, seus verbetes devem indicar que eles não passam de sugestões12.
5. Cronograma
1º 2º 1º 2º 1º 2º
Atividades semestre semestre semestre semestre semestre semestre
de 2017 de 2017 de 2018 de 2018 de 2019 de 2019
Obtenção dos créditos obrigatórios nas
disciplinas
X
Levantamento e aprofundamento
bibliográfico X X
Estudo das obras escritas em nheengatu X X X X
Compilação preliminar X X X
Trabalhos de Campo X X X
Revisões e melhorias da compilação X X X
Redação da dissertação X
Exame de Qualificação X
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O próprio título deste projeto contém uma proposta de neologismo, a saber, nheenga rirú, termo
composto utilizado aqui com referência ao “dicionário”, mas que, segundo seu significado literal, poderia
ser traduzido como “receptáculo da língua” ou “recipiente da palavra”. Essa criação lexical foi inspirada
pelo termo análogo que é utilizado atualmente no guarani paraguaio para se nomear o dicionário: ñe’ẽ
ryru.
6. Bibliografia
ÁVILA, Marcel Twardowsky. Estudo e prática da tradução da obra infantil A terra dos
meninos pelados, de Graciliano Ramos, do português para o nheengatu. 2016. 199f.
Dissertação (Mestrado) – Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas,
Universidade de São Paulo, São Paulo, 2016.
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