Conceito de Angústia PDF
Conceito de Angústia PDF
Conceito de Angústia PDF
MESTRADO ACADÊMICO
São Paulo
2010
FACULDADE DE SÃO BENTO
MESTRADO ACADÊMICO
São Paulo
2010
Rosângela Ribeiro dos Santos
BANCA EXAMINADORA
________________________________ ______________________________
Prof (a) Dr (a) Silvia Saviano Sampaio Prof. Dr. Franklin Leopoldo e Silva
Pontifícia Universidade Católica de São Universidade de São Paulo
Paulo Orientador
________________________________
Prof. Dr. José Carlos Bruni
Universidade Estadual Paulista
A Ozorino e Nair.
A Marilzam, Ângela,
Marivaldo e Elisângela.
A Cídio.
AGRADECIMENTOS
Sou profundamente agradecida à Faculdade de São Bento de São Paulo, nas pessoas de
Dom Abade Mathias Tolentino Braga e de Dom Carlos Eduardo Uchôa Fagundes Jr., pela bolsa
de estudo concedida; aos Professores Dr. Elias Humberto Alves e Dr. Djalma Medeiros,
e solicitude com as quais sempre me atendeu; ao Prof. Dr. Franklin Leopoldo e Silva,
conduziu e orientou a pesquisa; ao Prof. Dr. Luiz Roberto Monzani que, no início deste
trabalho, sugeriu-me um caminho para pesquisar e o tema; a Profa. Dra. Silvia Saviano
Sampaio e ao Prof. Dr. José Carlos Bruni pela participação em banca examinadora de
Marivaldo Ribeiro dos Santos por, um dia, ter me falado de Kierkegaard; a José Carlos
especialmente, Ivânia Hebling Martins e Renata Bastos Cunha; a Nanci Oliveira e Ana
Faculdade. Também sou grata ao Pe. Carlo Faggion, ao Sr. Bruno Rossotti e a Dom
Aldo Gerna, bispo emérito da Diocese de São Mateus-ES, se este trabalho tornou-se
possível foi porque um dia pude contar com a ajuda de todos eles; por fim, àqueles e
àquelas cujos nomes não foram citados, mas que em meus pensamentos jamais deixarei
RESUMO
dinamarquês Sören Aabye Kierkegaard. Para isso, recorremos à sua obra de 1844, O
compreender o que o ser humano é, por que a angústia não lhe abandona e em que
consisti sua ambiguidade. Nos capítulos seguintes, a angústia e a liberdade, como ambas
que o nosso trabalho procurou seguir o movimento proposto por Kierkegaard na obra;
se em alguns momentos, em nosso trabalho, esse movimento parece não fluir é porque,
ABSTRACT
This paper intends to address the concept of anxiety in the Danish philosopher
Søren Aabye Kierkegaard. For this, we turn to his work in 1844, The Concept of Dread.
We seek, in a first chapter, dealing with the Individual, understand what man is, why the
anxiety did not leave and what the ambiguity. In the following chapters, the anguish and
freedom, as both relate to coexist and the apparent lack of freedom, distress is
abolished, even if it is troubled or not a human imperfection. It should be noted also that
our study sought to follow the motion proposed by Kierkegaard in the works, in a few
moments in our work, this movement seems to flow is because then we could not follow
him move.
INTRODUÇÃO ..............................................................................................................8
CAPÍTULO I: O INDIVÍDUO
1. 1. O percurso existencial ............................................................................................13
1. 2. Os equívocos na compreensão do percurso: “as imperfeições” na narrativa e nas
interpretações ...................................................................................................................50
BIBLIOGRAFIA
INTRODUÇÃO
Indivíduo uma vez que a tradição racionalista parece desconsiderar esse elemento como
Kant –, grosso modo, assume um caráter apenas de vida interior ou de interioridade incapaz
subjetividade nada pode revelar acerca do mundo em que vivemos, não gera conhecimento,
está inclinada apenas à sensibilidade; faz com que os seres humanos acerquem-se dos
objetos segundo os seus quesitos individuais não conferindo, portanto, para o conhecimento
espera do Indivíduo.
Para Kierkegaard a grande tarefa do ser humano não está em erigir sistemas por
meio da razão, mas em tornar-se Indivíduo ou nas palavras do próprio filósofo “tornar-se
objetivo no ser humano, pois é ela que revela o que cada ser humano é, um Indivíduo. Os
“multidão”, o “público” como o autor mesmo afirma, isto é, nada comunicam ao Indivíduo,
isoladamente, na rua ou na praça [...] para que este ou aquele se afaste da assembleia e vá
8
Ser testemunha da verdade é converter-se em Indivíduo. Os “sistemas” separaram
Deus do homem e este a busca na multidão, nos discursos, nas Igrejas, ou seja, através de
não ser aquele que está dentro do Indivíduo mesmo, a saber: a angústia.
Assim sendo, nada o que é “geral” ou “válido para todos” pode levar o homem a
tornar-se um Indivíduo. Por isso, segundo Chestov, Kierkegaard se decidiu por um lado a
suspender a ética – o que conseguiu até certo ponto – expressão da submissão (CHESTOV,
reminiscência – “repousa imanente em si mesma sem nada de exterior que seja seu telos,
sendo ela mesma telos de tudo o que lhe é exterior e logo que a ética o integrou, não vai
que tem seu telos no geral e esta é sua tarefa ética, que consiste em exprimir-se
(ibidem).
encontramos angústia no animal, porque este em sua naturalidade não está determinado
9
porque em boa parte de seus escritos1 utiliza a comunicação indireta. Inspirado em Sócrates
(c. 470-399 a.C.) o qual, segundo VALLS, Kierkegaard elegeu seu herói intelectual, faz uso
da ironia, constantemente utilizada pelo filósofo grego, para falar aos seus ouvintes.
Indivíduo.
autor. Empreendemos, para atenuar este fato, várias leituras de O Conceito de Angústia em
diferentes traduções2. Esta é uma das obras que por seu estilo e pelos recursos que o autor
utiliza soa apaixonante e faz parecer, ao leitor, que cada palavra tenha sido, especialmente,
cunhada para ele. Segundo Gouvêa, nela, Kierkegaard expõe sua teoria de angústia, propõe-
se a dizer por que não cabem à Psicologia e à Ética o desvelar de tal “conceito”. Portanto,
se esperávamos que a Psicologia pudesse fazer-nos dar conta com mais clareza do que seja
campo ao qual mais próximo a angústia pode ser discutida, o campo da Dogmática. O
1
Segundo Gouvêa, o recurso à comunicação indireta inclui as obras: A Alternativa, Temor e Tremor,
Repetição, datadas de 1843; De Omnibus Dubitandum Est (1842-1843), Migalhas Filosóficas, O Conceito de
Angústia e Prefácios, de 1844; Estações na Estrada da Vida (1845) e Post-Scriptum Não-Científico
Concludente, 1846 (GÔUVEA, 2006, grifo nosso).
2
A portuguesa por João Lopes Alves, 2ª ed., Ed. Presença, s/d e a espanhola, direta do danês, por Demetrio
G. Rivero, Alianza Editorial, 2007 e, quando estávamos já no fim, tivemos a oportunidade de ter em mão e de
utilizar, ainda, neste trabalho a edição brasileira traduzida por Álvaro Luiz Montenegro Valls, editada pela
Editora Vozes, 2010.
10
conceito está intrinsecamente ligado ao conceito de angústia, pois a angústia é também
desespero, oculta-se no desespero. Deste modo, estudiosos como Gouvêa, entre outros,
Julgamos que para se compreender um filósofo nada mais conveniente do que ater-
se à leitura das obras do próprio filósofo mesmo que essas não sejam feitas em língua
original como é o nosso caso. Para se ler Kierkegaard isso se faz ainda mais necessário
porque o recurso do qual o autor faz uso, a comunicação indireta dá margens, a quem o lê,
divergência entre seus comentadores e suas publicações, que são bem mais do que
imaginávamos, o cuidado em ler atenta e pacientemente a obra referência para este trabalho
1979, p. 195). Por síntese Kierkegaard compreende algo bem específico. Ela não é apenas a
relação entre dois termos distintos, é uma relação que se caracteriza particularmente por se
implica numa tarefa nada simples porque ainda imbuídos de uma tradição que privilegia o
conhecer e o progresso pela razão a qual atribui-se toda objetividade julgamos, muitas
vezes, que qualquer idéia que destoe dessa linha seja dispensável de uma atenção acurada
por parte dos acadêmicos ou, em outros termos, pouco digna de estudos. Kierkegaard não
11
excelência humana não reside nem no dever cumprido, nem na sensualidade dos prazeres.
Em Kierkegaard a angústia é vista como uma força positiva, pois ela nos guia à fé e
de volta a Deus, ajuda-nos a tornar quem devemos ser. Na sociedade do plus ou da euforia
que aliena nossa condição no mundo investigar o conceito angústia nos lança a uma estrada
que poderá dar ao encontro e ao conhecimento de nós mesmos, de quem e o quê somos, de
nas instituições. Tornou-se número, não é mais responsável por nada, porque não se
tornando Indivíduo, os seus atos são tomados a partir dos parâmetros da massa. Por seu
turno, a multidão tornou-se o tribunal do Indivíduo, é ela que agora detém a verdade, que
nos foi de grande auxílio o texto do filósofo Jean-Paul Sartre. Procuramos traçar o percurso
que o Indivíduo percorre na existência, bem como, para entender melhor este percurso, o
12
CAPÍTULO I
O INDIVÍDUO
1. 1. O percurso existencial
que mais interessa ao Indivíduo apareça: o seu existir. Trata, portanto, de discorrer sobre a
condição dos seres humanos. Para isso, retorna à origem dessa espécie a qual, segundo ele,
próprio nome indica (gênese = começo) o livro conta as origens do mundo e o início da
portanto, que como condição, da angústia não se pode escapar. Logo, o que nos resta?
Resta-nos aprender a angustiar-nos, ou, como diz Kierkegaard, educar-nos para a angústia,
para essa força que suscita em nós uma tensão, a qual amamos e da qual queremos fugir.
Como podemos nos compreender, compreender nossa existência a partir dessa ambigüidade
psicológica que é a angústia, dessa, como nomeará Kierkegaard, uma antipatia simpática e
trazer à tona, nesse percurso investigativo, situações como a do pecado original. A ideia
corrente é que somos tal como somos ou por que, como dirá o pensamento socrático,
ignoramos que sabemos e por isso agimos de modo contrário ao saber, ou porque somos
13
herdeiros e herdeiras de Adão e Eva, os responsáveis por introduzir no mundo o erro, o
diverso a essas duas concepções. À primeira porque o contrário de pecado não é virtude
anterior ao pecado de Adão que teria desaparecido com esse. Se esse estado “existiu”
anterior a Adão e com ele já não existe mais seria Adão um descontínuo na história? O que
Kierkegaard indaga é se esse estado figurado, anterior ao pecado de Adão, chegou mesmo a
alguma vez “existir”, condição pela qual poderia ter desaparecido como se pretende
argumentar.
14
Não obstante, a inconsistência da argumentação acerca de um estado ideal anterior
ao pecado, Adão foi expulso da história como se não nos dissesse a respeito. Quando se
trata de utilizar a Bíblia, adverte-nos Kierkegaard, em alguma explicação, para que sua
influência não resulte prejudicial, “melhor será seguir em tudo um rumo mais natural [...].
Desta maneira nunca se chegará à absurda posição de ter que entender uma explicação
antes de entender o que se trata de explicar; nem tampouco se chegará a ocupar uma
tradução nossa; s/d, p. 61) para se proteger. Cientes disso, a ação de buscar nas Escrituras –
nós mesmos parte da convicção de nela encontrarmos mais que mitos e odisséias, mas a
“O pecado não reside no ser; não se encontra no que saiu das mãos do Criador. O
pecado, o vício, o defeito residem em nosso „saber‟. O primeiro homem teve
medo da vontade, por nada limitada, do Criador; viu nela essa „arbitrariedade‟,
para nós tão terrível, e buscou proteção no saber, o qual, tal como lhe havia
sugerido o tentador, o igualava a Deus ou, dito de outra maneira, o colocava junto
com Deus, na mesma dependência com respeito às verdades eternas, incriadas,
pois assim descobria „a unidade das naturezas divina e humana‟. E esse „saber‟
achatou, aniquilou sua consciência, introduzindo-a no plano das possibilidades
limitadas que determinam agora, para ela, seu destino terrestre e eterno. Deste
modo descreve a Escritura a queda do homem.” (CHESTOV, 1965, p. 31-
32, tradução nossa)
Adão, portanto, nos diz respeito e se não consideramos assim é porque julgamo-lo a
origem e fonte de toda mazela passada, atual e futura. A despeito disso, segue-se que:
15
“Consistirá, pois, a diferença entre o conceito de pecado original e o conceito de
primeiro pecado em que o indivíduo somente tem parte naquele por sua relação
com Adão e não por sua relação primitiva com o pecado? Neste caso volta-se a
situar Adão, fantasticamente, fora da história. Então o pecado de Adão é algo
mais que passado, é un plus quam perfectum.[3]” (KIERKEGAARD, 2007,
p. 62, tradução nossa; s/d, p. 39)
Se participássemos do pecado apenas por causa de nossa relação com Adão e não de
uma relação primeira com o pecado, como se explicaria o sentimento de culpa que
carregamos tão arraigado em nós, que se faz presente mesmo quando nos sabemos
inocentes? Participamos do pecado, também, por causa de nossa relação com Adão, pois o
“indivíduo é ele próprio e o gênero humano”; a ascendência nos legou a culpa quando, ao
primeiro pecado de qualquer outro homem argumentando que “o pecado de Adão tem
Kierkegaard observa que se fosse assim, “Adão ficaria realmente fora da espécie humana e
esta não começaria com ele, mas sim que teria um começo fora de si mesma, o que é
16
Adão seria o único homem em que não houve pecabilidade ainda que esta fosse introduzida
por ele” (KIERKEGAARD, 2007, p. 63, tradução nossa; s/d, p. 39-40); a responsável por
tão grande equívoco, o qual confunde o pecado de Adão com o pecado original, é a
Teologia que “não demonstrou o menor empenho por esclarecer o pecado de Adão, porém
que “„o pecado original é uma corrupção da natureza tão profunda e horrenda que não pode
ser compreendido por nenhuma inteligência humana, senão admitido e crido em virtude da
revelação bíblica‟.”4 (In: KIERKEGAARD, 2007, p. 63, tradução nossa; s/d, p. 40). Para
mesmo dentro dela, de maneira que não haja palavras suficientemente duras como para
Neste sentido, nas diversas confissões nosso autor vê uma gradação ascendente
verificando como, ao final, a piedade protestante alça voz. Assim, teríamos: a Igreja grega,
4
Em O Conceito de Angústia esse trecho encontra-se em latim, traduzido para o espanhol por Demetrio G.
Rivero, em nota. O trecho, citado por Kierkegaard, participa dos artigos de Esmalcalda (na tradução
espanhola) ou Schmalkalden (na tradução portuguesa) de “redação pessoal de Lutero e logo aprovados – em
1537 – pela famosa Liga que em 1530 formaram os protestantes para defender também suas crenças contra
Carlos V”. (Nota da edição espanhola, p. 65, tradução nossa)
5
“A Igreja grega chama ao pecado original: „pecado do primeiro pai‟. Isto significa que aquela Teologia não
conta em modo algum com um conceito, visto que essas palavras não encerram mais que uma simples
etiqueta histórica, uma etiqueta que não assinala o presente como faz o conceito, a não ser somente o
historicamente concluído. Tertuliano o chama vitium originis [pecado original], o qual é sem dúvida um
conceito, mas com a dificuldade de que essa forma de expressão permite que o histórico possa seguir
considerando-se em última instância como o decisivo. Santo Agostinho o chama peccatum originale [“mal de
17
“Rejeitadas ambas as coisas, o protestantismo começa a avançar por esse clímax
entusiástico que se soma em palavras como vitium, peccatum, reatus, culpa. Aqui
o único que importa é deixar que se desborde a eloquência da alma destroçada,
com o que não é nada estranho que mais de uma vez irrompam algumas ideias
totalmente contraditórias no meio do discurso acerca do pecado original, como
quando se diz: [...] „também agora isso atrai a ira divina sobre aqueles que
pecaram conforme o exemplo de Adão‟. Outras vezes, àquela eloquência dolorida
não lhe interessa nem um pouco nada que tenha relação com o pensamento e
despacha-se a seu gosto afirmando coisas espantosas em torno ao pecado original,
como é o caso da Formula Concordiae quando declara o seguinte: „O que faz que
todos nós sejamos odiados por Deus a causa da desobediência de Adão e Eva‟.”[6]
(KIERKEGAARD, 2007, p. 64-65, tradução nossa; s/d, p. 41-42)
culpado para o qual não há remissão, eis o que se configura como astúcia da razão7 que nos
um único homem.
p. 11-38). Além disso, Kierkegaard constitui o próprio testemunho dessa odisséia a qual
origem”] [...], e isto supõe o conceito, o qual fica ainda muito mais claramente definido mediante a distinção
agostiniana do peccatum originans [“pecado das origens” ou “originante”, o pecado de Adão que o Gênesis
relata] e o originatum [“pecado original” ou “originado”, que afeta a humanidade em seu conjunto].
(KIERKEGAARD, 2007, p. 64, tradução nossa; s/d, p. 40-41)
[6]
“Esta Formula Concordiae [Fórmula de Concórdia] é um escrito confessional luterano que data de 1577.”
(Nota da edição espanhola, p. 65, tradução nossa)
7
No pensamento hegeliano, a astúcia da razão é uma categoria “graças à qual Hegel explica que os
indivíduos, cujos móbiles são as paixões, criam automaticamente uma obra racional (universal e livre)”
(D‟HONDT, 1965, p. 54). Ironicamente, a astúcia da razão, para Kierkegaard, consiste em, a razão, criar
definições para esquivar-se ao reconhecimento do pecado.
18
Kierkegaard introduz-nos em um paradoxo, eis o que afirma o existencialista
francês. Esse paradoxo consiste, em um primeiro instante, na seguinte questão: Como pode
alguém permanecer presente quando o seu tempo já se extinguiu? Ou, em palavras pouco
ainda vive e a contradição mesmo está em saber de que modo, ainda, vive.
recuperamos e iluminamos com uma luz nova (SARTRE, 2005, p. 11). Recuperado e
localizado, mas onde quer que uma subjetividade faça de Sören uma idéia, um raciocínio
determinado lugar, em uma época definida, com estes ou aqueles atributos, entretanto, se
manifesta na história mais que um objeto ao qual possa se dirigir nossa atenção. “Ao não
poder ser compreendido mais que como essa imanência que não deixou Kierkegaard
8
Um estudo etimológico foi realizado por Monique Trédé. Segundo CESAR, ao examinar os sentidos da
palavra, Trédé aponta os vários usos do termo, considerando-os em relação ao tempo, ao espaço e à ação.
Relacionando-o “ao tempo, Kairós é o instante crucial, decisivo, a ocasião, o ápice (acmé) de uma época ou
situação, bem como os dias críticos, os momentos de crise histórica [...] ao espaço, sobretudo com referência
ao corpo do homem, Kairós é o ponto nevrálgico, a parte vulnerável, que, se atingido, configura o golpe
mortal [...] à ação, Kairós representa o sucesso ou insucesso, a decisão, o ponto de ruptura. Está ligado à
noção de cortar, decidir, julgar, discriminar.” (In: CESAR, 2008, p. 57-58).
Desse modo, ao denominarmos Sören com a palavra Kairós, pretendemos atribuir-lhe o caráter que a
expressão carrega enquanto aquilo que no tempo, no espaço e na ação se descobre e por que não dizer,
sobrevive. Assim ele, no tempo, revela uma crise; no espaço, uma dor, por ser frequentemente
incompreendido e na ação, um corte em relação ao Sistema e, especialmente, à Cristandade.
9
Irmão de Kairós são filhos de Aion, a eternidade, o grande tempo. Cronos e Kairós estão sempre em luta.
São imagens opostas do reflexo da eternidade no tempo. Representam, desse modo, as duas ressonâncias da
eternidade no mundo sensível. Cronos significa o tempo como repetição, regularidade e Kairós, o tempo
como ruptura e inovação, mudança qualitativa da consciência, das situações (idem, p. 62).
19
escapar para sempre [...] o paradoxo denunciado por este morto consiste em que, mais além
de sua abolição, um ser histórico pode comunicar-se ainda, enquanto não-objeto, enquanto
sujeito absoluto, com as gerações que seguem à sua” (SARTRE, 2005, p. 12, tradução
nossa), ou seja, que Kierkegaard “permanece” no mundo como quem não se separou dele
mesmo após a morte podendo, desse modo, ser denominado objeto o que parece simples
constatar. No entanto, Sören relaciona-se mais que um objeto com o sujeito que o coloca
Uma subjetividade somente atravessa o seu tempo se se faz para as que a sucedem
mais que um assunto relevante ao pensamento, mas se se torna um sujeito que pode e que
tem o que ainda comunicar. Kierkegaard colocou-nos a par disso e fez a razão olhar para a
humanidade. Por isso, Adão, Abraão, Jó provavelmente nos interessarão. Pois, também
“esses”, tornaram-se sujeitos absolutos, passaram a atuar como sujeitos trans-históricos. Eis
a questão observada por Kierkegaard, recuperada e iluminada por Sartre que passa a
p. 12, tradução nossa). A partir daí desenvolve-se a reflexão sartreana bem como a
desaparição? Note-se, “escapar ao saber”, pois uma existência pode apresentar-se ao nosso
raciocínio como mais que um objeto, como sujeito absoluto. É possível que a subjetividade
de uma pessoa possa se dar por algum outro meio que não seja a do conhecimento?
constitui uma autoconsciência cada vez maior desse Espírito, esta é a certeza hegeliana.
20
Hegel mediante o Espírito Absoluto. Ainda, se existe alguma outra coisa digna de nossa
atenção na história que não seja o puramente histórico e se, com bases em um saber
afirmação-negação-superação o que faz com que Kierkegaard, por exemplo, possa “saltar a
puramente especulativa tentara superá-la, porém, a única coisa que conseguira foi
apresentar-lhe oposição e classificá-la como não-saber ou um falso saber uma vez que, ao
absoluto. Assim prevê o Sistema, todavia, isto não sucedera aos patriarcas, a Jesus Cristo
mundiais. Quiçá, o Sistema não conseguirá superar cada um de nós. Assim, a partir desse
modo geral, os Patriarcas, o que “sabe” Kierkegaard para que deles queiramos saber?
a sua posteridade é importante afinal, no que diz respeito a Kierkegaard, por exemplo, “é
que ele não contradiz, em sua vida pessoal, o conteúdo do Saber, mas [...] desqualifica o
saber do conteúdo” (SARTRE, 2005, p. 14, tradução nossa). Sören não contesta o
“conteúdo do Saber” porque entende que há algo no conteúdo, isto é, o próprio saber, do
21
qual o ser humano não deve prescindir talvez por admitir que o saber é o que permite ao
gênero humano viver segundo sua própria natureza distanciando-o assim do puramente
instintivo do qual os demais animais não aspiram separar-se. Talvez Sören concordasse
com a idéia segundo a qual “não agir com a razão é agir contra a natureza de Deus” 10. Não
obstante, Sören desclassifica o “saber do conteúdo” o que nos remete ao típico conteudista.
de coisas inúteis. Mas, teriam os entulhos inutilidade em si mesmos? Não, o “dono” dos
consegue realizar a síntese entre sua existência e eles. De modo paradoxal, a existência não
do poder-se e entregou-se à vida da razão. Eis o que “sabe” Adão, foi o primeiro a
bases numa Razão castradora da possibilidade no gênero humano, com poucas exceções,
outros tantos seres humanos entregaram-se dia após dia à aparentemente tranqüila
justificativa da razão, também como Adão preferiram saber a acreditar que tudo é possível,
a viver na fé, a existir como a racionalidade jamais os permitirá que existam, em um pleno
possível.
A opção pelo saber desobriga a humanidade da escolha pela fé, pelo impossível,
pela repetição. Deixa a humanidade angustiada e confusa na busca pela síntese finito-
infinito, temporal-eterno. Kierkegaard nos exorta, já que é impossível existir sem angústia,
10
Essa afirmação é do imperador Manuel II Paleólogo (1350-1425). Da dinastia dos Paleólogos, reinou sobre
o Império Bizantino de 1391 a 1425. Foi autor de muitas obras, dos mais variados assuntos: cartas, poemas,
vidas de santos, tratados teológicos e retórica.
22
a aprendermos a nos angustiar. A partir dessa assertiva, indaga-se: O saber é, entre outros, o
afastando-nos desta tarefa, o aprendizado? A essa questão cada ser humano poderá
responder com sua existência, o que não quer dizer que Kierkegaard não tenha aplainado o
ontológicas (SARTRE, 2005, p. 14). Os Indivíduos são variações do Ser, Nele tudo
converge e para Ele todos acorrem. Tudo no Ser está determinado e no que se refere ao
gênero humano seu papel será o de um coadjuvante que corre, sem alcançar, para o papel
de protagonista, mas esse cabe somente ao que É; essa relação será, precisamente, de
Em Kierkegaard a relação é outra, não há nem sujeito que conhece e nem objeto a
tradução nossa), ou, apenas o subjetivo. E eis o que Abraão tem a nos dizer: o Indivíduo é a
condição necessária de sua existência – o que não equivale dizer que a vida e a criação não
tenham sido outorgadas pelo Criador. Existir como condição de si significa, a nosso ver,
escolher. Enquanto que numa ontologia do ser, os entes estão nele predeterminados e
qualquer esforço do ente “privilegiado” homem é o de quem deseja retornar à fonte, sem
fonte criadora é opcional, isto é, a relação que o Indivíduo estabelece com o Criador além
de pessoal, é livre, pois essa é oriunda de sua liberdade, de sua escolha. A criatura não
contrário, opta pela relação, pois a partir dessa opção poderá existir verdadeiramente. Na
relação entre o Criador e a sua criatura não há nada para ser superado ou qualquer síntese
23
para ser realizada, há o Indivíduo e Deus, o primeiro acorre ao segundo por liberdade e não
ponto mais alto ao qual um Indivíduo pode chegar e assim poder estar em sua não-verdade.
A cada vez que o ser humano age por liberdade, não coagido pelas realidades nem
estética e nem ética, mas, unicamente, pela liberdade ele se encontra na verdade. Aqui há
não pode ser mais que acontecendo” (2005, p. 16, tradução nossa).
A partir disso é que podemos pensar num “Kierkegaard vivo” ou num Adão
continuam a comunicar. O modo pelo qual vivem esses Indivíduos é o modo daqueles que
subsistem através dos tempos porque, como dito acima, forjaram suas existências em atos
de liberdade.
24
O sujeito pode ser assim pensado porque, para Kierkegaard, há distinção entre o ser
do saber e o ser do sujeito vivente (SARTRE, 2005, p. 17). O ser do saber é “o ser objetivo,
o ser como exterioridade”; o ser do sujeito é “o ser como interioridade”. Conforme Sartre o
ser objetivo ao pretender tecer conhecimentos sobre o ser subjetivo produz não menos que
encarnado” entenda-se, em quais termos, Sören distingue objetivo e subjetivo. Para nós,
paradoxo, todo sujeito há de um dia converter-se em objeto do saber, eis a face do paradoxo
Finito, Sören quer se transmutar num absoluto trans-histórico; a essa ambiguidade responde
11
Para Frederico Schwerin Secco da UENF, de modo geral, o que leva alguém a dedicar uma vida inteira à
reflexão é a paixão. “No caso de Kierkegaard, trata-se de uma paixão infinita, pois ele não dedicou apenas a
própria vida a esta tarefa, mas a vida que deveras viveu somada à vida de todos os seus pseudônimos. O
conjunto de sua reflexão, sob o próprio nome ou sob outras rubricas, tinha como questão fundamental a
existência. Embora ele tivesse afirmado em seu escrito Ponto Explicativo de Minha Obra Como Escritor que
a tarefa de sua vida tinha sido refletir sobre o tornar-se cristão, poderíamos afirmar, sem contradizer suas
palavras, que a sua tarefa teve um alcance muito maior. Esse autor pretendeu pensar a existência tanto a partir
da tradição do pensamento ocidental como da sua própria experiência pessoal, dentro de um horizonte
dialético que privilegiava a descrição das esferas da existência com referência a uma finalidade (telos)
específica, qual seja, o tornar-se consciente da própria vida a partir da revelação cristã. (SECCO, 2005, p. 88)
25
O dinamarquês desejava mostrar a Hegel que é impossível que o ser exterior supere
2005, p. 16, tradução nossa) e ao final da aventura resta, ainda que a autora desta
Sören Aabye Kierkegaard é irrepetível e para o pensador francês mesmo que outras
confirmá-la com a morte (SARTRE, 2005, p. 19) não conseguirá reproduzir a maneira
com sua existência mesma. Crê-se que Sören tenha fracassado na tentativa de estabelecer-
se sujeito absoluto.
“Os ateus poderão, ou bem [...] rejeitar toda relação com esse absoluto e optar
firmemente por um relativismo, ou bem definir de modo distinto o absoluto na
história, ou seja, ver em Kierkegaard o testemunho de um falso absoluto ou o
falso testemunho do absoluto. Os crentes declararão que o absoluto pretendido é,
certamente, o que existe, mas, que logo como Kierkegaard quer estabelecer a
relação do homem histórico com a trans-historicidade, essa relação fica desviada,
se perde, apesar dela mesma, no céu do ateísmo. Tanto em um caso como no
outro, o intento é denunciado como fracasso.” (SARTRE, 2005, p. 19,
tradução e grifos, em negrito, nossos)
uma queda do sujeito no objetivo absoluto” (SARTRE, 2005, p. 20, tradução nossa). Mas,
mediante seus escritos, Sören “se apresenta como significante”, coloca-se no horizonte de
26
nosso olhar, entrega-se à nossa interpretação e permite que a nossa existência encontre a
“[...] enquanto não-ser, possui o caráter absoluto da negação [...] pelo fato de que
uma pretensão não se tem realizado na objetividade, nos remete à subjetividade.
Ou mais exatamente: mediante negações moderadas [...] as interpretações do
fracasso tendem a reduzi-lo ao positivo, a fazê-lo desaparecer diante da realidade
afirmativa de vitória do Outro – quem quer que este seja” (SARTRE, 2005, p.
20-21, tradução nossa).
conseguir capturar a subjetividade como absoluto histórico senão como “fracasso” confere-
lhe o caráter de falso saber. O que não é “objetivo”, o que é dado na negação é considerado,
portanto, como um absoluto negativo. Não obstante, Kierkegaard (ou outro Indivíduo)
quando “ressuscitado”, isto é, interpretado nos permite descobrir “o que nenhum saber pode
dar diretamente, porque nenhum progresso histórico pode recuperá-lo: o fracasso vivido na
desesperação. [...] a subjetividade não é nada para o saber objetivo, pois é não-saber; e,
contudo, o fracasso mostra que aquela existe absolutamente” (SARTRE, 2005, p. 21,
tradução nossa). Kierkegaard existiu e fora capturado pela morte, porém a história a qual
Sören escapa, pois não é objetividade acabou, paradoxalmente, tornando-o por causa de sua
vida, de seu pensamento, de sua práxis enfim, por sua existência, um “ser” histórico, isto é,
um agente da história (SARTRE, 2005, p. 21). Um histórico universal que por causa de sua
27
O “recado” dessas consciências infelizes ou desses “mortos”, “é escandaloso por si
mesmo” (SARTRE, 2005, p. 21), pois em meio ao saber o pensamento que, ainda,
expressam constitui-se como não-saber e, pela dialética dual kierkegaardiana na qual não é
possível nenhuma síntese, segundo Sartre “ou bem nossa interrogação [acerca do
pergunta do não-saber ao não-saber. Isto significa que o que interroga é posto em questão,
em seu ser, pelo interrogado” (SARTE, 2005, p. 21, tradução nossa), ou seja, ao
inquirirmos um Universal singular, como Kierkegaard, somos por ele mesmo inquiridos; a
nossa subjetividade é posta em questão e a indagação retorna ao sujeito que a fez não mais
como uma indagação que se dirige para o exterior, mas que se converte em interioridade no
indagador.
parecer neste campo um antifilósofo. Mas, uma importante observação faz a Professora
France Farago que pensamos corrobora com essas reflexões até o momento, tecidas:
radical, mas carente de racionalidade. Contudo, o “absurdo” é mesmo irracional, pois não é
dado à objetivação. A matéria a qual a razão deveria regular mergulha nas profundezas de
28
um irracional, o qual Kierkegaard chama “paradoxal” (FARAGO, 2006, p. 70). Ainda,
conforme France Farago, para que o ser humano possa chegar ao sentido existencial não
pode pensar em termos de racionalidade. Para ilustrar, recordemos Abraão que não fora
„racional‟ ao escolher sacrificar Isaac. Ou, recorde-se o próprio Kierkegaard que apesar de
amar Régine e ser por ela correspondido deixa-a e se faz parecer, diante dos olhos da
partir dos dogmas cristãos não pretende negá-los, como fariam as ciências, nem pretende
– observa Sartre,
“não pode ser objeto de saber, mas é, pelo contrário, uma certa relação absoluta
da imanência à transcendência, que não se pode estabelecer mais que no vivido e
pelo vivido. E, claro está, isto vale para os crentes. Mas para o incrédulo que eu
sou, isto significa que a verdadeira relação do homem com seu ser não pode ser
vivida na história mais que como uma relação trans-histórica.” (SARTRE,
2005, p. 22, tradução e grifo nossos)
um “em-si” irrealizável.
Porém, em Kierkegaard, o ser humano se realiza na opção pela fé que tal como a
existência não pode oferecer mais que incerteza. A existência compreendida pela fé é pura
possibilidade. Diante disso, o que sucederá ao que existe na fé é impossível precisar, pois
12
Pelo menos não a Dogmática de Vigilius Haufniensis, o “autor” de O Conceito de Angústia. Para ele, a
Dogmática é uma “teoria da Redenção, cuja explicação dogmática esclarece o pressuposto da pecabilidade”
(KIERKEGAARD, s/d, p. 89). “Se a Dogmática começa por querer explicar a pecabilidade ou provar a sua
realidade, nenhuma Dogmática sairá daí, toda a sua existência será vaga e problemática.” (ibidem, nota)
29
mediante a fé tudo é possível ou indeterminado. Não existindo na fé o ser humano é um
esteta ou um ético e conhecemos quais os caminhos que as escolhas pelo estético ou pelo
“nada” que o sujeito é transforma-se em “tudo” que Sartre somente pode pensá-lo na
Como crente que é Kierkegaard insiste que a fé e suas implicações são vivenciadas
existência somente a fé pode ser sua expressão possível já que o saber é precisão e
delimitação.
testemunho do saber e por ele é dissolvido (SARTRE, 2005, p. 23). Por isto é que de Hegel
só restou o Sistema enquanto que de Sören, após sua desaparição, o seu pensamento
aparecido insiste em dar testemunho do pensador (ibidem, p. 22). Isso para dizer que o
absoluto não se dá fora do mundo. Ele é compreendido pelo existente ao modo como sua
mesmo do Indivíduo e não ao final de um percurso. Por isso mesmo, não podemos acusar o
13
“Contra o começo não-humano e fixo de Hegel, Kierkegaard propõe um início móvel, condicionado-
condicionante, cujo fundamento é muito parecido ao que Merleau-Ponty [1908-1961] chamava a „envoltura‟.
Estamos envoltos: o ser está detrás de nós e diante de nós. O vidente é visível e não vê mais que em razão de
sua visibilidade. „o corpo – disse Merleau-Ponty – está preso na tela do mundo, mas o mundo está feito do
tecido de meu corpo‟.” (SARTRE, 2005, p. 23, tradução nossa)
30
tempo – o cristianismo, mais concretamente, a comunidade cristã da Dinamarca em suma,
“o ser que o faz” (SARTRE, 2005, p. 23, tradução nossa) e ao definir seu pensamento como
históricas: “Tudo é”, em uma situação particular “Alguma é”; e a necessidade geral, “É
necessário que...” converte-se em contingência “Pode ser que...”. Ao sermos envolvidos por
algumas determinações outras tantas nos escapam de modo que o homem histórico somente
ser mais que um “acaso”, isto é, as condições históricas dadas anteriores ao e em nosso
existir. Eis o que incomoda o filósofo dinamarquês, eis o seu e o nosso “ferrão na carne” –
no fundo, o que angustia Sören é o fato de não conseguir resposta para seus conflitos no
saber donde se pode inferir que o saber não prevê o Indivíduo e que a verdade não pode ser
mais que subjetiva dado o “acaso” no qual o Indivíduo é envolvido. Desse modo, da
possibilidade de uma certeza eterna, Sartre responde por Kierkegaard afirmando que: “não
há absoluto histórico mais que se está enraizado no acaso” (SARTRE, 2005, p. 27, tradução
nossa). “A necessidade hegeliana não é negada, mas não pode encarnar-se sem fazer-se
necessidade universal nos termos que propõe Hegel, pois ela é pura casualidade.
31
Mas o quê acontece a Kierkegaard? Não é ele mesmo “universal”? Por seu existir
não se tornara universal? Sim. Conforme Sartre, o universal vem ao mundo pelo homem
singular e o acaso toma este homem singular como necessidade pelo qual ele possa
existindo ele atribui significado. O maior e mais autêntico sentido que o ser humano pode
atribuir à sua existência é o significado religioso ou de “como” irá “se deixar elevar do
“Deixar-se elevar” é tarefa árdua. Nessa tarefa a angústia encontra o seu fomento.
Essa “aparece como interiorização do ser, ou seja, de sua contradição” (SARTRE, 2005, p.
28, tradução nossa). Anterior à síntese, há o estado de ignorância não obstante, uma leve
ignorância ou inocência o ser humano é alma, corpo e potencialmente espírito, pois este
ainda não se deu. Quando o espírito estabelece a síntese, sem a qual o ser humano é apenas
imediatidade, o conflito oriundo dos opostos, alma e corpo, aparece. O primeiro dos
elementos, a alma aponta o ser humano para o infinito enquanto que o segundo, o corpo
dela o homem é consciente de si, o seu eu é mediatizado pela reflexão. A partir de então,
angústia instala-se, portanto, no gênero humano mediante a consciência que ele tem dessa
contradição.
que se fazer, pois a síntese ainda não havia se dado, um perturbar na alma, que ainda não é
32
propriamente angústia, se assenhora de Adão e de Eva. O disposto para o qual o ser
humano fora criado – “ser fecundo e prolífico, encher a terra e dominá-la, submeter os
peixes do mar, os pássaros do céu e todo animal que rasteja sobre a terra” (Gen. 1, 28) –
sugere ao homem, mesmo em estado de inocência, mesmo que ele não saiba precisar o que
é14, que a existência exigirá dele mais que a imediatidade. Contudo, veio a síntese e o ser
humano passou a existir pelo espírito e Deus, desejoso de mostrar que a liberdade está no
do que seja bom ou mau” (Gen. 2, 17). “Bom” ou “Mau” é modo como a consequência de
nossa liberdade, de nossa escolha se apresenta donde se pode inferir que Deus não intenta
limitar as escolhas humanas mas apenas demonstrar que “ser” pelo espírito equivale a
existir em meio à angústia. Portanto, o homem somente é quando faz escolhas, ainda que
fazer-se Adão seja Deus, mas se Deus proíbe e/ou sugere a Adão tal coisa não estaria Deus
a escolher pelo ser humano? Adão não entendera plenamente o que Deus proibira e
prescrevera como punição afinal, o que existe somente é compreendido no vivido, antes
disso há somente o nada ou alguma coisa que não se sabe bem o que é. Apresentam-se as
“condições” divinas no existir de Adão e Eva e tudo o que estas condições descobrem é a
escolhem fazer a experiência da “morte” perante outros possíveis. Existir ou fazer-se livre é
14
Esse não saber precisar o que é, é a “angústia peculiar da inocência, que por certo não é outra coisa que a
reflexão da liberdade em si mesma e sem sair de sua possibilidade.” (KIERKEGAARD, 2007, p. 111,
tradução nossa)
33
fato, isto é, o “vivido não pode ser previsto” porque a existência é em ato, ou, porque “a
É certo que a independência humana não pode coexistir com a “dependência divina”
ou, em outras palavras, ao optar por fazer-se Adão o ser humano passa a existir por “sua
conta e risco”; não que Deus tenha se retirado da constituição do homem, contudo retirou-
se do horizonte de sua liberdade, isto é, a “Onipotência” não será mais “alvo” da liberdade
restabelecimento de sua relação com Deus soa, não menos, que absurda e a fé, torna-se
sinônimo de loucura. Será que pode ser diferente? Por mais insana que a relação com Deus
possa parecer, é necessário considerar que Abraão por ousar escolher mais que o “previsto”
ganhou uma “nação” inteira (Gen. 17, 5); Jó, por sua não-resignação teve elevado ao dobro
Como ele, escolhemos ser humanos, nada mais, nada menos. Para Sartre, este é o acaso do
qual padecemos: “a trama da vida subjetiva, o que Kierkegaard chama paixão – e Hegel,
pathos – não é outra coisa que a liberdade instauradora do finito e que é vivida na finitude
consiste em ser si mesmo e a espécie inteira, de maneira que toda a espécie participa no
34
indivíduo é si mesmo e a espécie. Esta é a perfeição do homem vista como
estado.” (KIERKEGAARD, 2007, p. 67, tradução nossa)
espécie, radica uma contradição, isto é, “o indivíduo tem história, e se a tem o indivíduo
indivíduos possuem a mesma perfeição, por isso não podemos separá-los uns dos outros
como números, caso contrário o que seria do conceito de espécie? Um fantasma, responde
demais indivíduos [...] como na sua própria. Por isso a perfeição intrinsecamente consiste
Por mais que a história do gênero humano progrida, o Indivíduo começa sempre do
início – por ser si mesmo e a espécie – o que faz dele o motor constante da história da
“Adão é o primeiro homem, ele é por sua vez ele mesmo e a espécie. Nós não nos
vinculamos a ele em virtude da beleza estética; nem nos associamos com ele em
virtude de um sentimento valoroso [...] nem tampouco é a força do entusiasmo da
simpatia e a persuasão da piedade que nos faz decidir participar a culpa com ele
[...] nem tampouco, finalmente, é a força de uma compaixão obrigada a que nos
ensina a tolerar o que não temos mais que tolerar. Não, nada disso, senão que é a
força do pensamento a que nos impele a não nos separar dele. [...] Adão não é
essencialmente distinto da espécie, pois neste caso não existiria a espécie; nem
tampouco é a espécie, já que também neste caso deixaria de existir a espécie: ele
é si mesmo e a espécie. Por isso o que explica Adão explica à espécie, e vice-
versa.” (KIERKEGAARD, 2007, p. 68, tradução nossa)
Designamos Adão como o autor do primeiro pecado, mas qual a diferença entre o
35
pecado é o pecado se, ao contrário, significasse numericamente “um” pecado, então não
haveria história correspondente, isto é, ele não nos diria a respeito, quiçá nossa história, se
houvesse, seria outra. Por ser o primeiro pecado uma determinação qualitativa, o pecado
tem história no Indivíduo e na espécie. “Porque a condição para isso sempre é a mesma,
mas não por isso a história da espécie seja enquanto tal a do indivíduo, nem a do indivíduo
a da espécie, a não ser na medida em que a contradição nunca deixa expressar o problema”,
Não é necessário que Adão tivesse pecado várias vezes, tantas quantas conseguisse,
para que algo novo se produzisse. As coisas são a partir do instante em que adquirem
existência. Para adquirir existência não é necessário que o fenômeno, por várias vezes, se
repita, pois no instante em que existe ele é. O primeiro pecado, o de Adão, não é diferente
do primeiro pecado de qualquer outro homem; “o pecado veio ao mundo pelo primeiro
Indivíduo.
cada vez que um ser humano peca porque está em nossa condição existencial pecar; é
como a lógica faz a Adão. O conceito fixa a realidade num já sido, o pecado, portanto, não
vê em Adão, “não são mais que determinações quantitativas que não explicam nada, a não
ser que se suponha que um só indivíduo é a espécie inteira, em vez de admitir que cada
s/d, p. 48)
36
Pretendendo qualificar, o pensamento quantifica os Indivíduos numa escala de
importância. Com isso, somente Adão teria importância na história e todos os que vieram
após seriam apenas cópias vivenciando uma história que esse os legou. Mas, o movimento
por um dinamismo. Para Kierkegaard, a narração genesíaca do primeiro pecado – ainda que
por muitos seja considerada um mito – é a concepção do assunto que encerra consequência
dialética, expressa do seguinte modo: “o pecado veio ao mundo por meio de um pecado”
(KIERKEGAARD, 2007, p. 72, tradução nossa; s/d, p. 48). Em outros termos, a liberdade
assim não fosse, o pecado teria surgido de forma acidental para o qual não haveria nenhuma
explicação, mas como a existência não admite acidentes, já que se encontra circunscrita
que essa anteceda ao pecado, pois teríamos que concordar que a pecabilidade apareceu no
mundo mediante uma coisa distinta do pecado; em vez disso, se apareceu mediante o
pecado, então é este o que a precedeu. Para o nosso autor, “esta contradição é a única que
revela consequência dialética e guarda as rédeas tanto no que se refere ao salto como no
que se refere à imanência – queremos dizer: à imanência posterior” (2007, p. 73, tradução
força do exemplo e a propagação do gênero – com as quais não pode contar Adão e o que
isto significa? Significa que por meio delas, as determinações, podemos nos aproximar do
37
duas passagens que, segundo ele, nos aproximam das fontes da filosofia existencial
O substrato máximo da existência não é nem a razão e nem a ética – pelas quais
orientamos nossa vida pessoal e social – mas a fé porque essa é a única que depende
com Deus e dá testemunho Dele. Por outro lado, se a sua escolha não provém da fé, é
pecado – já que se entregou à razão e à ética – e o Indivíduo estabelece uma relação com o
explicação: o pecado entra no mundo subitamente, isto é, mediante um salto; este salto põe
qualidade tem lugar o salto na qualidade” – a mudança que esse novo na existência provoca
15
Por cegueira entende-se, no trecho transcrito, a cegueira moral ou intelectual.
38
(KIERKEGAARD, 2007, p. 72, tradução nossa; s/d, p. 48-49), com outras palavras, o novo
do pecado pressupomos a qualidade, pois ambos existem por causa da liberdade: há pecado
o qual Hegel não teria, plenamente, alcançado com as unidades denominadas Tese, Antítese
e Síntese porque não se trata apenas “de um movimento pelo qual realidades novas se
(NÓBREGA, 2005, p.43). Trata-se de algo que se institui a cada momento cuja finalidade
individual e singular; observa Kierkegaard que para compensar o mito que é um escândalo
para a inteligência, “a mesma inteligência inventa um novo mito, negando o salto e fazendo
do círculo uma linha reta [...] começa por fantasiar um pouco sobre como seria o homem
antes da queda, e à medida que aquela desata a falar sobre o particular sem mais nem
obrigatoriamente, o pecado sem nos deixar escolha; supor isso implica considerar uma
imperfeição divina na criação do homem, o homem teria sido criado imperfeito. Ademais,
39
com exclusividade aquele primeiro pecado. Será acaso Adão o único indivíduo que não tem
história? Então a espécie começaria com um indivíduo que não é um indivíduo, com o qual
O gênero humano terá começado de algum Indivíduo histórico, portanto, que este
seja Adão não por arbitrariedade, mas “se qualquer outro indivíduo da espécie pode
significar com sua história algo para a história da raça humana, então também Adão pode
fazê-lo” (KIERKEGAARD, 2007, p. 74, tradução nossa; s/d, p. 50), contudo o significado
de Adão para a história não deve restringir-se ao primeiro pecado, do qual é autor, senão “a
história haveria passado no mesmo momento de iniciar-se” (2007, p. 74, tradução nossa;
s/d, p. 51). O significado de Adão deve ser esse o qual consiste em a espécie não começar
de novo com cada Indivíduo, mas cada Indivíduo começar de novo com a espécie (2007, p.
75; s/d, p. 51), naturalmente não se trata aqui de abandonar o geral, mas a principiá-lo num
espécie tem uma história. Não obstante, esta história vai avançando segundo determinações
quantitativas, enquanto o indivíduo participa nela com o salto da qualidade. Esta é a razão
porque a espécie não comece de novo com cada indivíduo, pois neste caso não existira a
espécie” (ibidem).
Vê-se, então, que a história não surgiu de algo geral e abstrato (Ideia) do qual se
um particular que se singulariza, por isso o Indivíduo importa ao gênero humano e esse
importa ao Indivíduo, pois enquanto ele começa o gênero progride. Do fato o qual cabe ao
40
pecabilidade do gênero humano tem uma história no Indivíduo que a atualiza ou não
através do salto.
qualidade produz a não ser por força do Indivíduo, portanto não devemos dar à
descendência uma importância a qual ela não tem, pois essa “não é mais que a expressão da
indivíduo” (KIERKEGAARD, 2007, p. 75, tradução nossa; s/d, p. 52), mas supondo que
não descendêssemos de Adão o quê nos ocorreria? “Se o segundo homem não descendesse
de Adão, não seria o segundo homem, senão uma repetição vazia e, em consequência,
tampouco haveria daí surgido a espécie nem o indivíduo” (KIERKEGAARD, 2007, p. 76,
tradução nossa; s/d, p. 52), pois estaria o ser humano naquela condição a qual seria apenas
“estátua isolada, sem mais definição que a da indiferente categoria do número [...] cada
indivíduo teria sido no mais alto grau si mesmo, não si mesmo e a espécie; nem tampouco
uma qualidade. O gênero humano existe mediante uma qualidade. Adão foi um Indivíduo
logo, a humanidade originada a partir dele produz-se como qualidade o que equivale a dizer
que tem uma história da qual participa, afeta e é afetada. Uma determinação quantitativa
41
está lá onde ele deveria começar na História.” (KIERKEGAARD, 2010, p.
37; s/d, p. 53)
fazer, fazendo-se o gênero humano continua a história. Isto nos revela o mito adâmico:,
estabelece uma Ética da qual lhe dependerá a vida e o sentido que a essa atribuirá, pois
nada na existência humana é imediato, como dissemos tudo é fruto de uma escolha, da
Ética. “O conceito de imediatidade tem seu lugar na Lógica, mas o conceito de inocência na
Ética, e cada conceito deve ser tratado a partir da ciência a que pertence, quer o conceito
pertença à ciência e nesta se desenvolva, quer venha a ser exposto ao ser pressuposto”
“Ora, é antiético dizer que a inocência deva ser superada, pois ainda que o fosse
no instante em que viesse a ser mencionada, a ética não permite esquecer que a
inocência não pode ser anulada senão pela culpa. Se alguém fala, pois, da
inocência como de algo imediato, e com a rudeza indiscreta da lógica deixa
desaparecer esta coisa volátil, ou com a sensibilidade da estética comove-se por
ela ter sido e ter desaparecido, está sendo apenas [“espirituoso”], esquecendo-se
do essencial.
42
Portanto, como Adão perdeu a inocência pela culpa, assim a perde todo e
qualquer homem. Se não foi pela culpa que a perdeu, tampouco foi a inocência o
que perdeu, e se ele não era inocente antes de tornar-se culpado, então jamais se
tornou culpado.
No que concerne à inocência de Adão, não há falta de toda sorte de
fantásticas representações [...]. Quanto mais se vestia Adão com roupagem
fantasiosa, mais se tornava inexplicável que pudesse pecar e mais horrível ficava
o seu pecado. [...] mas não se captava o essencial da questão em termos éticos.”
(KIERKEGAARD, 2010, p. 38-39; s/d, p. 54-55)
O que passou despercebido aos teólogos para negligenciar o ponto mais importante,
a respeito de Adão e da “mãe de todos os viventes”, Eva. Mas este lugar, de espectadora da
culpa, explicita uma contradição quando o ser humano lança mão de uma conjunção
condicional “se” a fim de especular como seria se Adão não tivesse pecado. Para
Kierkegaard, um inocente jamais faria tal pergunta por que ignora a culpa. Somente o
culpado pode formulá-la e ao fazê-la peca, pois pretende esquivar-se da culpabilidade e que
ele tenha perdido a inocência pela culpa (KIERKEGAARD, 2010, p. 39; s/d, p. 55-56).
“A inocência não é, pois, como o imediato, algo que deva ser anulado, cuja
destinação é ser anulado, algo que para falar propriamente não existe, e que só
vem a existir pelo fato de ser anulado, isto é, vem a existir como aquilo que
existia antes de ser anulado e que, agora, está anulado. [...]. A inocência é algo
que se anula por uma transcendência, justamente porque ela é algo (ao contrário,
a expressão mais correta para o imediato é a que Hegel usa para o puro ser, é
nada), e, por isso, quando a inocência é anulada por uma transcendência, surge
daí algo de completamente diferente, enquanto que a mediatidade é precisamente
a imediatidade. A inocência é uma qualidade, é um estado que pode muito bem
perdurar, e por isso a pressa lógica para vê-la anulada não significa nada [...]. A
inocência não é uma imperfeição, na qual não se possa permanecer, pois sempre
se basta a si mesma [...]”. (KIERKEGAARD, 2010, p. 39-40; s/d, p. 56-
57)
43
A inocência, portanto, é o estado de quem ainda não pecou, não se fez culpado. Por
isso, somente se tem consciência dela a partir do momento em que está destruída, à medida
que a culpa não é mais ignorada, porque o ser humano tornou-se culpado. O Pensador
chama a atenção para a ação de se desejar retornar ao estado de inocência. O desejo 16, aqui,
constitui um doce engano porque somente pode desejar a inocência quem a perdeu, isto é,
esconda ao Indivíduo, mas porque o ser humano não tem a consciência em si de que ela
existe, ou, de que ele seja liberdade. Em nada a ignorância em Kierkegaard se compara à
ignorância socrática, pois nada tem a ver com ignorância, aquilo que observado de fora,
expressão mais apropriada, justificar por que Deus não teria destruído Sodoma e Gomorra
(Gen. 18-19) se lá houvesse, ao menos, dez justos (Gen. 18, 32). Deus se isentaria de
destruir as cidades não somente por causa da intercessão de Abraão, tio de Lot, habitante
em Sodoma, mas e principalmente, pelo fato de que existindo na cidade alguns justos,
16
Do ponto de vista ético, “[...] o pecado de desejar voltar para antes da realidade do pecado não é um pecado
no geral, e jamais ocorreu um desta espécie”. A Ética “não visa à situação, mas sim em como esta se converte
no mesmo momento em um novo pecado”, ou seja, a Ética olha, apenas, para o desfecho da situação.
(KIERKEGAARD, 2010, p. 121 e nota)
[17]
Tal como a tradução portuguesa Valls opta por pecaminosidade na tradução. Nós optamos por
pecabilidade, porém tanto um como o outro significam a mesma coisa: capacidade de pecar.
44
necessariamente, estes justos são inocentes, ignorantes. Mediante o salto o Indivíduo
inconsciência no Indivíduo, ou seja, que o Indivíduo é inconsciente de si, pois, ainda, não
se determinou como espírito. “É bem verdade que uma pessoa pode dizer, com profunda
seriedade, que nasceu na miséria e que sua mãe a concebeu em pecado; mas, a rigor, só
poderá afligir-se com razão quando ela mesma tiver trazido o pecado ao mundo”
Kierkegaard pretende dar relevância, diz respeito a como o ser humano perde o estado de
determinado instante e que como tudo o que é transitório não cabe definir. Porém, em se
Deus torna-se para aquele objeto de medo e vergonha perante o Criador e de fraqueza
diante dos seus. “Na inocência, o ser humano não está determinado como espírito, mas
No estado de inocência, quando o ser humano ainda não é consciente de si, quando
“não está ainda determinado como espírito”, a liberdade estabelece com ele uma relação
confusa, já que o ser humano não a vê claramente presente em sua existência. Este estado
de indeterminação do espírito gera no ser humano uma angústia, a qual Kierkegaard atribui
45
A angústia psicológica é aquela na qual o homem põe diante de si um projeto que,
por definição, não é uma realidade efetiva, mas – conforme a acepção da palavra em nossa
língua – uma “ação de lançar para frente, de se estender”; uma “extensão”, sem, contudo,
sair do lugar, é um vir-a-ser. Neste estado da realidade humana a angústia se apresenta sob
efetiva do espírito se apresenta sempre como uma figura que tenta sua possibilidade, mas se
evade logo que se queira captá-la, e é um nada que só pode angustiar. Mais ela não pode,
possui ambiguidade psicológica, ou seja, que a angústia é: uma antipatia simpática e uma
simpatia antipática (2010, p. 46; s/d, p. 64). Ao mesmo tempo em que o ser humano deseja
se aproximar também deseja fugir da angústia, quando a atrai também a rejeita; quando a
estado de inocência é bom ressaltar que a angústia que aí se encontra, “primeiro não é uma
culpa e, segundo, não é um fardo pesado, um sofrimento que não se possa harmonizar com
apresentar-se de modo ambíguo a angústia deve ser explicada pela Psicologia visto que esta
“é a parte da filosofia que trata da natureza e da alma como tal, como origem dos
(JAPIASSÚ; MARCONDES, 1996, p. 224). Mesmo que as relações dos estados d‟alma na
46
existência com seus respectivos objetos: angústia-nada, inocência-culpa, sejam por vezes
sugeridas de maneira ambíguas, há uma coisa que está fora de toda ambiguidade: o salto
qualitativo. Porém, “aquele que pela angústia torna-se culpado é contudo inocente, pois não
foi ele mesmo, mas a angústia, um poder estranho, que se apoderou dele, um poder que ele
não amava, diante do qual, pelo contrário, se angustiava – e, não obstante, indubitavelmente
homem é uma síntese do psíquico e do corpóreo. Porém uma síntese é inconcebível quando
os dois termos não se põem de acordo num terceiro [...] o espírito. Na inocência, o homem
não é meramente um animal. [...]. O espírito está, pois, presente, mas como espírito
imediato, como sonhando” (2010, p. 47), contudo, ansioso para estabelecer a síntese.
O ser humano é uma síntese, uma unificação de alma, corpo e espírito. Destes
os outros seres, os animais; e que, também, o coloca numa relação íntima e indissociável
com a angústia.
O espírito é esta parte integrante e fundamental do homem que lhe permite fazer-se
não foi preciso fazer-se evidente; “não há nenhum saber sobre bem e mal etc., mas a
Contudo, quando o espírito faz a síntese, ou seja, quando precisa fazer-se manifesto
ou presente de modo mediato a angústia não admite mais como objeto o nada, mas a
47
liberdade. A angústia toma como presa a liberdade. “O que tinha passado desapercebido
pela inocência como o nada da angústia, agora se introduziu nele mesmo, e aqui de novo é
p. 68).18
imediata circunscreve o homem num estado no qual ele ainda não tem que decidir-se, onde
liberdade mediada, isto é, que se estabelece mediante um terceiro elemento, o espírito exige
do Indivíduo o salto.
entanto, tentamos previamente saber das escolhas as consequências precisas. Isto é obra da
Ética que como tudo que é racional pretende, também, tomar a dianteira dos atos. A Ética
de ser-capaz-de que lança o ser humano à frente sem precisão alguma; a Ética, “„tal como
nada criando‟.” (KIERKEGAARD. In: ALMEIDA; VALLS, 2007, p. 43). Além disso, há a
fé que não oferece ao ser humano nenhuma certeza, mas que ao contrário da Ética não quer
nem discipliná-lo e nem repreendê-lo, por causa disso a liberdade se apresenta muito mais
possibilidade que por ocasião, apenas, de seu aparecimento já suponha juízos de valor. A
18
Para o “ser-capaz-de” da edição brasileira, a edição portuguesa e a edição espanhola utilizam “poder”.
48
salto. A qualidade deste salto, por sua vez, não se dará no objeto, isto é, não é o objeto que
muda. Ao fazer juízo de alguma coisa, temos por hábito lhe atribuir um valor, pelo qual ao
comparar-se com outro, se sofrer de incompatibilidade, será melhor ou pior, bom ou mau,
certo ou errado dando a entender que o que se julga tem sobre tudo e todos um poder ou um
valor absoluto. Na existência não ocorre deste jeito; vejamos, por exemplo, Adão.
se torna existente por força da liberdade, no ato, no salto qualitativo. Por isso, é possível à
fé de Abraão que Deus queira o sacrifício do filho Isaac, mesmo que esse “querer” não seja
racional.
fé, irracionalidade que tanto é rechaçada pela razão, mas que permite ao Indivíduo o salto, a
49
1. 2. Os equívocos na compreensão do percurso: “as imperfeições” na narrativa e nas
interpretações
O teólogo suíço Hans Urs von Balthasar (1905-1988) escreve na introdução do seu
livro O cristão e a angústia editado pela Fonte Editorial, a seguinte afirmação: “Pode dizer-
se sem medo de errar, que o estudo tão profundo e apesar disso tão claro de Kierkegaard,
que tem por título O Conceito de Angústia (Begrebet Angest, 1844), foi a primeira e a
última tentativa para tratar desse tema sob o ponto de vista teológico” (BALTHASAR,
2004, p. 11).
Kierkegaard (2004, p. 7) tem a contribuir com este trabalho não só por que a história do
Indivíduo encontra-se revelada na Escritura bem como, pelo fato de a angústia, objeto
investigativo desta dissertação, não encontrar campo fértil nem na ciência e nem na
Psicologia.
filosófico o qual tem por finalidade esta dissertação que contribuição, podemos indagar,
Segundo GOUVÊA,
50
Na esperança de recuperarmos para a filosofia a noção de angústia, noção esta pela
qual somos todos afligidos, é que a perspectiva teológica pretende, neste trabalho
mas o autor desta consideração, Kierkegaard, parte não de um “conceito” senão de uma
Ao partir da Escritura Kierkegaard pede ao leitor que deixe de lado a ideia de que a
narrativa genesíaca seja um mito. “Repassemos então mais de perto a narrativa do Gênesis,
tentando deixar de lado a ideia fixa de que se trata de um mito e recordando-nos de que
nenhuma época foi tão ágil em produzir mitos do entendimento quanto a nossa, que produz
mitos enquanto pretende extirpar todos os mitos” (KIERKEGAARD, 2010, p. 49; s/d, p.
corremos o risco de não entender por que Kierkegaard, para uma reflexão acerca da
existência, parte do livro do Gênesis no qual confere especial atenção à passagem “os
51
como Deus, no meio das nações, forma para si um povo sobre a terra para dar
testemunho dele.” (Gênesis. In: TEB, 1997, p. 21)
O relato da criação não será transcrito aqui, é possível encontrá-lo com toda sua
no seu tempo e por que não dizer ainda hoje para, ao menos, uma boa parte das pessoas.
Eva fora criada, pois dentre os seres na criação o homem não encontrara para si a
companhia que lhe fosse adequada. “Eva travou com ele a relação mais íntima que pode,
mas, apesar disso, tratava-se de uma relação externa” (KIERKEGAARD, 2007, p. 94,
tradução nossa); Adão e Eva eram apenas repetições numéricas daquilo que na criação
natureza; não é difícil imaginar, portanto, o motivo pelo qual a serpente escolhera-a e não
ao homem.
que a mulher aparece em toda a sua imperfeição. Ela foi a primeira a ser seduzida, sendo,
em seguida, quem seduz o homem; muitos desejam acreditar que a ordem dos
52
acontecimentos revela o quanto o sexo feminino é frágil e quão danosa pode ser sua
existência no mundo.
mulher é o sexo fraco essa expressão deve ser compreendida no sentido de que a mulher é
mais sensual que o homem, como mais adiante veremos. Há ainda o fato de a angústia
participar mais da sua natureza que da natureza do homem, a qual muitos insistem em
que embora a angústia seja mais própria da mulher do que do homem, “angústia não é, de
maneira alguma, um sinal de imperfeição. Se há que falar de imperfeição, esta reside num
outro ponto, ou seja: no fato de que ela, na angústia, prefere pendurar-se em outro ser
constantemente irrompe pelo salto qualitativo do indivíduo” (2010, p. 50; s/d, p. 71). Não
apresenta-se sob a forma de propagação, pois encontra seu locus no gênero humano, o
“salto” é singular, pois o ato livre é sempre o ato de um Indivíduo. “A natureza de ser
A predisposição para o pecado em nós, seres derivados, existe por que existimos a
partir de Adão, o Indivíduo? Sim, porque existir enquanto ser humano implica existir
enquanto liberdade, jamais haveria “história” se o ser humano não tivesse acontecido – ser
53
derivado de um macaco, por exemplo, nos desobrigaria desse fardo. Não, porque Adão não
“consequência tal como é contada naquela narrativa” (KIERKEGAARD, 2010, p. 52; s/d,
p. 73).
proibição: “no Gênesis, Deus diz a Adão: „mas os frutos da árvore do bem e do mal não
Conforme Kierkegaard, Adão não poderia compreender a diferença entre bem e mal antes
de fazer a opção pela qual a ação o faria distinguir, ou seja, antes de degustar o fruto. No
campo do agir não há uma distinção a priori, a vida humana se afasta deste ideal a priori
metafísico e lógico, segundo o Prof. Dr. Franklin Leopoldo e Silva em aula, legado das
poderia ter sido Deus a proibir Adão comer os frutos senão Adão mesmo. O ser humano
trarão, consequências em sua maioria funestas. Transmitir a Deus a tarefa daquele que
proíbe, significa colocar Deus no lugar da Ética que Kierkegaard tanto critica. Através da
Ética o ser humano obedece sem dar-se conta de modo consciente por que obedece ou por
que tal coisa se lhe faz proibida. Vale lembrar aqui onde reside a liberdade, isto é, não se
encontra em nada exterior ao Indivíduo e é por isso que o ser humano pode estabelecer uma
54
Compreensão semelhante se aplica ao castigo. Adão não sabia o que era morrer,
somente sentia a angústia que a proibição lhe causava bem como a angústia que a
Quanto ao aparecer da serpente na narrativa, sua ação foi a de seduzir a mulher para
que essa experimentasse os frutos; é justamente nesse ponto que a serpente parece
O ser humano, origem e fonte de desejos, vontades e paixões não tem por “motor”
de seu existir nada que seja externo a si. São os desejos, as vontades e a paixões os
Por fim, a queda referida no relato; ela é o salto qualitativo. A consequência desse
salto sugerida pela narrativa no Gênesis foi dupla e ambas são tidas por inseparáveis: a
sexualidade. Este caráter dual na consequência da queda revela o estado original do ser
humano: se o homem não fosse a síntese de alma e corpo apoiado no espírito19, se fosse
19
“Na inocência, Adão, como espírito, era um espírito em estado de sonho. Portanto, a síntese não era real,
uma vez que o ligame é justamente o espírito e o espírito ainda se não instituíra como tal. No animal, a
diferenciação dos sexos pode desenvolver-se instintivamente; não é esta porém a maneira de existir no
55
uma unidade não haveria dualidade, ou seja, a consequência é dual porque o ser humano é
uma dualidade; se o homem não fosse alma e corpo sustentados pelo espírito, mas apenas
alma ou apenas corpo, o sexo não se estabeleceria no mundo como capacidade de pecar.
Com isto não queremos dizer que antes do pecado ele não existisse mas que, com o pecado,
a sua qualidade mudou; o que o filósofo de Copenhague pretende nos dizer é que, a
contragosto de muitos, o pecado não advém dos sentidos 20, isto é, da sensibilidade ou
sensualidade do ser humano, mas que o pecado instaurou nesta uma qualidade nova. No
feminino. Não cogitava Adão, por exemplo, o significado de existir como homem, nem a
diferença. Ela era vivida, experienciada, mas não era posta em questão; bastava-lhes
sexualidade, essa certa estranheza do Outro, que tanto nos vem do olhar como do Outro, o
homem e justamente porque o homem é uma síntese. No instante em que o espírito se institui a si próprio,
institui a síntese, mas, para a instituir, deverá primeiro penetrá-la como agente diferenciador, e o cume da
sensualidade reside precisamente no sexo. O homem não pode atingir este ponto extremo senão no instante
em que o espírito se realiza. Antes, não era um animal, mas no fundo também não era um homem; só no
momento de se tornar homem é que se torna homem precisamente porque também é, ao mesmo tempo,
animal.” (KIERKEGAARD, s/d, p.74)
20
A sensualidade, em si mesma, não é pecabilidade. A degradação da sensualidade em pecabilidade ocorreu e
continua a ocorrer sempre que o pecado entra no mundo.
56
qual seria impossível deixar de encarar; o que significa dizer que a existência do Outro se
natureza física como o corpo e nem “sopro vital” destinado a animar o corpo, ou seja, a
filosofia cartesiana, mas com uma ressalva. Enquanto que para a filosofia de Descartes
para o conhecimento do outro e do mundo enquanto objetos; daquele que conhece, o sujeito
e daquilo que é conhecido, o objeto; em Kierkegaard ainda que o espírito estabeleça esta
relação de estranheza com o mundo, como no cartesianismo, não vai aos mesmos
patamares e pelas mesmas vias. A filosofia cartesiana é uma filosofia do Cogito e para o
21
Comte-Sponville (1952) observa que “[...] os pais da geração 68 [do slogan: „É proibido proibir‟, „Viver
sem tempos mortos, gozar sem entraves...‟], têm tanto medo quanto nós, e não apenas da aids. Eles têm medo
da sexualidade, como todo o mundo, é o que chamamos de pudor: medo diante de si, e diante do outro.”
(COMTE-SPONVILLE, 2006, p. 73, grifo nosso)
57
apenas enquanto possibilidade o modo, mais razoável, para dela podermos falar faz-se por
intermédio da angústia,
entanto, é impossível não questionar por que Kierkegaard se ocuparia de escrever um livro
para tratar da angústia quando a liberdade parece ser, no livro, o tema mais evidente.
Porque,
O ser humano terá que fazer-se. Porque existe terá que se fazer, pois que não está
determinado, é uma síntese apoiada no espírito significando que, para existir, deverá
sempre escolher; o ser humano não foi dado de antemão: moldou-lhe um corpo, insuflou-
ainda não se encontrou pronto ao contrário, ao término da sua criação, ele se encontrava
angústia está neste senso de incompletude, de ser inacabado com o qual nós nos
58
por meio da angústia, na escolha, o ser humano faz a experiência da fé – diante de todos os
motivo pelo qual o ser humano convive com a angústia e nela vive. Com as palavras do
filósofo: “A angústia é o possível da liberdade e só essa angústia forma, pela fé, o homem,
ilusões” (KIERKEGAARD, s/d, p. 232). Portanto, não deixa de ser curioso o fato de a
angústia ser continuamente constrangida pela Razão. O homem de Razão julga-se livre e
verdadeiro quando não se sente molestado por esta simpatia antipática-antipatia simpática,
quando para esquivar-se dela ou para abandoná-la tece fantasias, ergue sistemas em sua
59
CAPÍTULO II
A ANGÚSTIA
latinos utilizados por Kierkegaard. Para o Prof. Dr. Ricardo Quadros Gouvêa, Vigilius
diverso do dinamarquês e de cada um dos outros heterônimos. Em suma, Gouvêa afirma ser
“Um dos menos definidos dos personagens-autores de Kierkegaard, ele mal pode
ser chamado de verdadeiro heterônimo, mas também não é exatamente um nom-
de-plume. Seu estilo é muito peculiar, de um professor de dogmática. Ele é o
primeiro representante do estágio religioso [22], mas não completamente genuíno,
pois parece faltar-lhe interioridade, olhando para as doutrinas do cristianismo
ainda um tanto objetivamente, como conhecimento a ser alcançado, mais do que
uma vida a ser vivida. O livro, não obstante, parece funcionar como sua própria
educação para uma maior interioridade.” (GOUVÊA, 2006, p. 312)
1844, ano mesmo de O Conceito de Angústia. Como o próprio nome sugere, o “autor” é um
22
Os outros representantes são: Frater Taciturnus (o Irmão Reservado ou o Frade Silencioso, 1845), “o
personagem-editor-e-autor de Culpado/Inocente [Culpado? – Não-Culpado?] terceira parte de Estações na
Estrada da Vida (1845) e Anti-Climacus, “o tardio personagem-autor criado por Kierkegaard para representar
a „Religiosidade B‟, o cristianismo.” (GOUVÊA, 2006, p. 313 e s.)
60
O Vigia de Copenhague não é um “pedante solitário”, ao contrário, é “quem se
por isso, “uma flexibilidade humana universal que o põe em condições de prontamente ser
capaz de formar seu exemplo, o qual, se não possui a autoridade da facticidade, tem
observador para ver, com mais frequência, o fenômeno, o qual se pretende estudar.24 “Se só
raras vezes ele é visto na vida [...] é porque ele se deixa esconder, e ainda porque com
sabedoria de vida para expulsar este que é um embrião da vida suprema”, sem o qual o ser
qual consegue de algum modo “entrar na pele das pessoas e imitar seus gestos”; um
escapulir a coisa oculta; uma originalidade poética na alma, “para prontamente conseguir
criar o total e o regular a partir daquilo que no indivíduo geralmente só está presente de
maneira parcial e irregular” (2010, p. 60). Mas, como e onde o observador captura os seus
“conseguirá pescar suas observações bem frescas, recém-saindo da água, ainda pulando e
prestar atenção a alguma coisa” (ibidem), pois é capaz de formar prontamente aquilo de que
23
Segundo Almeida e Valls é através desses exemplos, inautênticos materialmente, que “Kierkegaard
personificava os problemas, hipostasiando-os em figuras conhecidas (Don Juan, Fausto, o Judeu Errante e
Abraão). Haufniensis [o autor de O Conceito de Angústia] trabalha com a figura de Adão e dos homens
posteriores, estuda a liberdade, condição de possibilidade daquilo que os teólogos costumam chamar
„pecado‟.” (ALMEIDA; VALLS, 2007, p. 19)
24
A saber, a consequência do pecado.
61
precisa ou tê-lo à mão rapidamente em virtude de sua prática ordinária (idem, ibidem). “Se
ele ficasse em dúvida, já estaria tão orientado na vida humana e o seu olhar seria tão
inquisitoriamente agudo, que ele saberia onde procurar e facilmente descobrir uma
60). O observador sabe que sua “observação deve permanecer confiável, digam os outros o
que quiserem, mesmo que ele não a documente com nomes ou citações eruditas”, ou,
mesmo que não busque os “seus exemplos nos repertórios literários” ou, ainda, coloque no
em tudo o que acontece a cada dia, contanto que o observador esteja presente” (2010, p.
perspectiva, isto é, de encontrar e utilizar aquela que mais convém à pesquisa. Porém, não
observador, outra que ele denomina de poética, visto que o observador não pretende, a
partir de seu experimento, explicar, argumentar, convencer e definir aspecto algum extraído
de suas observações, intenta: comunicar, transmitir e relacionar-se com o seu estudo, com a
existência mesma.
interesse da realidade efetiva, quando ele emprega a precaução de controlar sua observação.
Para essa finalidade, imita em si mesmo cada tonalidade afetiva, cada estado de alma que
descobre numa outra pessoa” (ibidem), se não for assim como conseguirá criar um laço de
empatia?25 “Depois verifica se pode iludir o outro com a imitação, se consegue lançá-lo a
25
“Desde que se preste bem atenção a respeito de si mesmo, cinco homens, cinco mulheres e dez crianças já
serão suficientes para o observador descobrir todos os estados possíveis da alma humana. O que eu poderia ter
62
uma realização mais extremada, a qual é sua própria criação pela força da ideia. Assim,
quando se quer observar uma paixão, escolha-se o seu indivíduo” (idem, ibidem); para
espionar-lhe importa, agora, a calma, o silêncio e não se fazer notar. “Depois se exercita o
paixão, que é mostrada a ele na grandeza sobrenatural da paixão. Se tudo for feito
experimentador. Além disso, é importante notar o que Vigilius Haufniensis tem a intenção
angústia, pecado e fé, entre outros, somente podem ser descobertos no ser humano, in
concreto, pois não são alheios e externos ao Indivíduo. Por fim, supondo que o observador
não seja bem-sucedido em sua pesquisa, “o motivo pode estar num erro de operação, mas
pode ser também porque esse indivíduo” – aquele, o qual escolheu para observar uma
a dizer talvez pudesse ser de alguma importância, especialmente para os que se ocupam de crianças ou têm
alguma relação com elas. É de infinita importância que a criança seja educada com a noção do mutismo
superior, e que seja libertada do equivocado. No aspecto exterior é fácil de ver quando chega a hora em que
podemos ousar deixar a criança caminhar sozinha; no que se refere ao espiritual não é tão fácil. No sentido
espiritual a tarefa é muito difícil, e não nos alforriamos dela contratando uma babá ou adquirindo um andador
de vime. A arte reside em estar sempre presente e, contudo, não estar presente, a fim de que se permita à
criança, desenvolver-se por si própria, enquanto se mantém a supervisão bem clara do que acontece. A arte
consiste, no seu grau mais elevado, em deixar a criança entregue a si mesma segundo o padrão maior possível,
e conferir a este aparente abandono uma forma tal que sem ser percebido se esteja informado de tudo. Para
isto sempre se pode arranjar tempo, mesmo que seja funcionário do rei, basta querer. Quando a gente quer
mesmo, a gente pode tudo. E o pai ou o educador que tudo fez em favor daquele que lhe foi confiado, porém
não impediu que a criança se tornasse hermeticamente fechada, incorreu sem dúvida em todo caso numa
pesada responsabilidade” (KIERKEGAARD, 2010, p. 134). Eis o método de educar kierkegaardiano!
63
2. 2. A progressão da angústia na perspectiva do “autor”
Como dito, a liberdade é pura possibilidade, mas concretamente ela não pode ser
faz cientes de que perante todos os possíveis apenas um possível é realizável enquanto os
da angústia, mas não puderam dar-se conta de sua progressão. Adão, ao fazer-se, institui
uma qualidade na criação outrora inexistente. Principiada com Adão, esta qualidade nova é
o pecado; a partir dela, portanto, ficou demonstrado que a realidade da angústia ou a sua
consequência para o Indivíduo pode fazer derivar o pecado. Este, uma experiência singular,
jamais pode ser estabelecido pelo gênero humano a título de Indivíduo e, muito menos, por
de Adão consiste justamente nisto: o pecado que instituíra em si produziu como efeito a
pecabilidade aos outros a qual, obviamente, não conheceu, pois se trata de uma
determinação quantitativa que tem nele o seu início. A angústia que produzira a entrada do
26
Em relação ao tempo, a angústia é a liberdade diante da liberdade. Em relação ao conteúdo, a angústia é a
não liberdade, é o demoníaco, o hermeticamente fechado, como veremos mais adiante.
27
“[...] a distinção entre angústia objetiva e subjetiva pertence a uma nova consideração, a que precisamente
se tem em conta o mundo e o estado de inocência do indivíduo posterior” (KIERKEGAARD, 2007, p. 111,
tradução nossa). Ao distinguir em objetiva e subjetiva “a angústia aparece justamente como o que é, isto é,
como algo subjetivo.” (ibidem)
64
À angústia na natureza28 Sören designou angústia objetiva a qual “entendemos o
aos Romanos 8, 19 do seguinte modo: “[...] a criação espera com impaciência a revelação
retornar a uma expressão29 procurando “desvelar a verdade que ela encerra apesar de todas
importante notar a consideração que Kierkegaard faz desta sentença, pois ela “deixa Adão
a qualidade que ela manifesta; “Adão põe o pecado em si mesmo, mas também para toda a
uma categoria tão concreta como a do pecado, justamente instituída porque o indivíduo a
28
O quê Deus qualificara de “ajuda [ao ser humano] que lhe seja adequada” (Gen. 2, 18 b).
29
De acordo com a tradução espanhola direta do danês por Demetrio G. Rivero, a expressão aparece,
primeiramente, no capítulo I (“La angustia como supuesto del pecado original y como médio de su
esclarecimiento, precisamente retrocediendo en la dirección de su origen”) na parte dois (“El concepto del
„primer pecado‟”).
30
Para Sören: “Esta mudança de perspectiva é necessária uma vez que foi posta a geração. Porque o conceito
de indivíduo estaria eliminado se a pecabilidade da espécie tivesse sido introduzida com o pecado de Adão no
mesmo sentido que o foi, por exemplo, o modo ereto de andar dos homens” (KIERKEGAARD, 2007, p. 112,
tradução nossa), isto é, segundo a evolução do gênero humano. Em outras palavras, a pecabilidade foi
introduzida com o caráter de qualidade na existência, ou seja, Adão põe o pecado para toda a espécie, mas
não o põe na espécie ou não peca por ela.
65
institui a título de indivíduo”31 (ibidem). Assim, na qualidade que a sentença exprime, é
que podemos encontrar a verdade a ser descoberta além de nela poder enxergar a
significação32 que Adão representa na espécie humana; isto terá que conceber, segundo o
“dogmático” Vigilius Haufniensis, “qualquer ortodoxia que busque compreender bem seu
próprio encargo, já que a ortodoxia ensina que tanto a espécie humana como toda a
p.113, tradução nossa). Ao vir ao mundo o pecado assume, para a criação, a importância de
nela estabelecer uma qualidade não a partir dela mesma, mas como efeito da liberdade do
Indivíduo; é este efeito do pecado na existência não humana que Kierkegaard designa com
nos reporta à Epístola aos Romanos 8, 19 a qual, segundo ele, está apontada a ânsia ou a
angústia da criação pela revelação dos filhos de Deus. Para o nosso dogmático, se nesta
passagem a Sagrada Escritura fala de um “ansiar das criaturas” é porque estas se encontram
anseio; anseio, desejo, espera, entre outras expressões, implicam um estado anterior, mas
que, por consequência, não deixa de estar presente e de adquirir certo valor no desenvolver
da nostalgia. A nostalgia, “o estado em que se encontra o que está à espera, não é um estado
em que aquele se colocou por casualidade ou algo parecido, de maneira que o que espera o
31
“Por esta razão, a pecabilidade na espécie nunca passará de uma aproximação quantitativa, a qual, desde
logo, começa com Adão” (KIERKEGAARD, 2007, p. 113, tradução nossa). É importante observar que
começa, mas da qual Adão não participa.
32
“[...] maior que a de nenhum outro indivíduo”, Kierkegaard completa.
33
No que se refere à espécie humana, o pecado entra como pecado, mas no que se refere “à natureza o pecado
não pode entrar na qualidade de pecado” porque a qualidade somente é estabelecida pelo Indivíduo por força
da liberdade.
66
encontre completamente desconhecido” (KIERKEGAARD, 2007, p. 113 e s., tradução
nossa), ou seja, uma vez que a natureza não se apóia numa síntese como o ser humano, a
nostalgia na qual ela se encontra somente pode lhe ter sido imputada pelo Indivíduo
mediante suas escolhas. Vê-se, portanto, mais uma vez que a angústia é eminentemente
subjetiva, humana e o que antes na natureza pensávamos ser apropriado chamar de angústia
objetiva será mais bem considerada se a denominarmos nostalgia: “produto, não das
criaturas, mas daquela mudança de iluminação que estas sofreram quando o pecado de
deseja sair, e precisamente se anuncia porque somente o desejo não é suficiente para
poderia explicá-la. Contudo, Sören nos recorda que as explicações dadas por ela não vão
muito longe. Assim, impõe-se a ciência cujo “ponto de arranque” é o cerne de nosso
67
Acerca desta teoria, da Redenção, é bom pôr em relevo a Dogmática de Vigilius
“Enquanto deveria reinar sobre os homens, transformar a vida deles cada dia e
não só aos domingos, enquanto deveria intervir categoricamente em todas as
circunstâncias da existência, é visto como simples doutrina científica à distância:
mostra-se a concordância de seus diversos dogmas; mas a minha vida e a tua
vida, a conformidade ou a não-conformidade da vida dos homens com esta
doutrina, é indiferente.” (KIERKEGAARD, Discours chrétiens,
“Pensées qui attaquent dans le dos”. In: FARAGO, 2006, p. 209).
realidade” (KIERKEGAARD, s/d, p. 89, nota), pois quando intenta provar a realidade dos
FARAGO, 2006, p. 209) porque, no Cristianismo, o que importa é a atitude do ser humano
em relação a ele: “Um homem pode ser instruído em toda a sua doutrina, explicá-la,
desenvolvê-la, expô-la. Mas se ele considera indiferente sua relação com o cristianismo, é
pagão” (ibidem).
diverge da de seus coetâneos dogmáticos racionalistas, ela envolve “uma negação evidente
todos nós somos, isto é, possuímos um corpo físico dotado de sentidos pelos quais
recebemos impressões causadas pelos objetos externos nisto não há nenhuma qualidade
68
nova logo, a sensualidade, em si mesma, não pode ser pecabilidade 34. Acontece, e é o que
pretende desconstruir a ideia de substancialidade fixada e tão cara aos essencialistas sobre a
sensualidade humana, bem como evidenciar que esta somente é convertida em pecabilidade
quando o Indivíduo a institui como Indivíduo. É sabido que do pecado de Adão devém a
capacidade de pecar – a pecabilidade – que não a experimentara Adão por essa se tratar de
todas as vezes que o ser humano, pelo pecado, rebaixá-la o que implica instaurar-lhe uma
qualidade nova.
“A angústia tal como era em Adão jamais reaparecerá, porque Adão introduziu a
pecabilidade no mundo. Donde que essa angústia tem, hoje, duas analogias graças
ao último fato assinalado: a angústia objetiva na natureza e a angústia subjetiva
no indivíduo; das quais a segunda contém „um mais‟ com respeito àquela
angústia adâmica e a primeira „um menos‟.” (KIERKEGAARD, 2007, p.
117, tradução nossa)
34
Em que sentido a sensibilidade é pecabilidade ou em que sentido a sensibilidade coincide com pecabilidade,
conforme tradução espanhola, Kierkegaard esclarece nesta passagem: “A sensibilidade se fez pecabilidade
uma vez que o pecado veio ao mundo e cada vez que o pecado vem ao mundo, mas o que aquela chega a ser
não o foi anteriormente. [...] Na progressão quantitativa da espécie – isto é, de uma maneira que não toca à
essência mesma – a sensibilidade é pecabilidade; em vez disso, no o é em relação ao indivíduo, senão até o
momento em que este, pecando pessoalmente, volta a fazer da sensibilidade pecabilidade” (KIERKEGAARD,
2007, p. 115, tradução e grifo nossos), ou seja, a “essência mesma” da existência é o Indivíduo, portanto,
somente quando ele peca é que a sensibilidade devém pecabilidade porque é o Indivíduo quem estabelece a
qualidade.
69
Segundo Kierkegaard, quanto mais profunda é nossa reflexão sobre a angústia mais
fácil se torna convertê-la em culpa, mas a culpa, adverte-nos o dinamarquês, é apenas uma
determinação aproximativa que não produz o salto e que apesar de “mais fácil” não facilita
“Por mais que a angústia se torne cada vez mais reflexiva, não por isto deixa de
conservar a culpa – que brota em meio da angústia com o salto qualitativo – o
mesmo grau de responsabilidade que a de Adão, continuando a angústia no
mesmo grau de ambiguidade que a caracteriza desde o princípio.”
(KIERKEGAARD, 2007, p. 117-118, tradução nossa)
mais refletida, não obstante, ela continua a preservar a culpa tal como em Adão com os
qualitativamente ambas permanecem idênticas. Cada ser humano é dono de uma existência
singular, ou, como disse Sartre, nenhum ser humano consegue reproduzir o modo como
outro ser humano colocou-se ou coloca-se diante de sua própria consciência infeliz;
somente Adão existiu como Adão, em outros termos, como dissemos, Indivíduo algum
pode existir ao modo de outro Indivíduo, mas ainda que pudéssemos existir apenas como
conseguiríamos nos despojar: da culpabilidade porque ela é própria do ser humano.35 O que
faz a culpabilidade uma determinação própria do Indivíduo? Para que possamos delinear
mentalmente esta questão uma outra se antecede: Onde está a causa da angústia? 36 A causa
35
Do ser humano posterior a Adão, é bom lembrar.
70
da angústia está tanto no ser humano como na existência. Se o ser humano não tivesse
existido! Se o ser humano não tivesse que existir! A angústia é “vertigem da liberdade, que
abismo das suas possibilidades e se agarra à finitude para não cair” (KIERKEGAARD, s/d,
possibilidades não consegue existir;38 então, tudo muda: quando um Indivíduo faz da
(KIERKEGAARD, 2007, p. 118, tradução nossa). Aparece, então, o salto: entre a infinitude
da liberdade e a finitude à qual, mediante o Indivíduo, ela se agarra para não cair; para
prover com exemplo, sigamos Abraão40: aos olhos de Deus, Abraão fez a melhor escolha,
36
Antecede-se porque a culpa “brota em meio da angústia com o salto qualitativo”; querer saber da culpa é
perguntar-se, primeiramente, pela angústia.
37
Isto é, ao escolher. “No abismo das suas possibilidades” a liberdade precisa agarrar-se a uma possibilidade
para fazer-se valer.
38
Eis até onde alcança e quer ir a Psicologia: até a finitude, a escolha.
[39]
A primeira “incorporação” da liberdade é aquela em que ela aparece sob a forma de múltiplas
possibilidades, como: poder-se.
40
Em Gênesis 22, 1-14, narra-se que “[...] Deus pôs Abraão à prova e lhe disse: „Abraão‟; ele respondeu:
„Eis-me aqui‟. Ele prosseguiu: „Toma o teu filho, o teu único, Isaac, que amas. Parte para a terra de Moriá, e
lá o oferecerás em holocausto sobre uma das montanhas que eu te indicar‟. Abraão levantou-se de manhã
cedo, encilhou o jumento, tomou consigo dois de seus criados e seu filho Isaac. Rachou as achas de lenha para
o holocausto. Partiu para o lugar que Deus lhe havia indicado. No terceiro dia, ergueu os olhos e viu de longe
esse lugar. Abraão disse aos criados: „Fica aqui, vós, com o jumento; eu e o jovem iremos lá adiante
prosternar-nos; depois voltaremos a vós‟.
Abraão tomou as achas de lenha para o holocausto e as pôs aos ombros de seu filho Isaac; tomou a
pedra-de-fogo e o cutelo, e os dois se foram juntos. Isaac falou a seu pai Abraão: „Meu pai‟, disse ele, e
Abraão respondeu: „Aqui estou, meu filho‟. Ele continuou: „Aqui estão o fogo e a lenha; onde está o cordeiro
para o holocausto?‟ Abraão respondeu: „Deus saberá ver o cordeiro para o holocausto, meu filho‟. Os dois
continuaram a andar juntos.
Ao chegarem ao lugar que Deus lhe havia indicado, Abraão ergueu ali um altar e arrumou as achas
de lenha. Amarrou seu filho Isaac e o pôs em cima da lenha. Abraão estendeu a mão para apanhar o cutelo e
imolar seu filho. Então o anjo do SENHOR chamou do céu e exclamou: „Abraão! Abraão!‟ Ele respondeu:
„Aqui estou‟. Ele prosseguiu: „Não estendas a mão contra o jovem. Não lhe faças nada, pois agora sei que
temes a Deus, tu que não poupaste teu filho, teu único filho, por mim‟. Abraão ergueu os olhos, observou, e
eis que um carneiro estava preso pelos chifres num denso espinheiro. Ele foi apanhá-lo para oferecê-lo em
71
“no abismo das suas possibilidades” agarrou-se à melhor finitude, isto, repetindo, aos olhos
movem em uma realidade cujas determinações não são apenas religiosas, mas também
estéticas e éticas, deste modo é impossível escapar da culpa porque se, efetivamente, não se
possível” (KIERKEGAARD, 2007, p. 118, tradução nossa). Por causa disso, para Sören
porque a angústia “é uma liberdade travada, onde a liberdade não é livre em si mesma”42
(KIERKEGAARD, 2007, p. 99, tradução nossa), pois está travada pela finitude. Além
disso,
holocausto, em lugar do seu filho. Abraão chamou aquele lugar „o SENHOR vê‟; por isso se diz hoje em dia:
„É sobre a montanha que o SENHOR foi visto‟.” (grifo nosso)
O capítulo 22 do livro do Gênesis que se estende do versículo 1 ao 24, “é atribuído, no essencial, à
tradição „eloísta‟.* Este relato célebre, geralmente denominado „o sacrifício de Isaac‟, inclui implicitamente
uma condenação dos sacrifícios de crianças em Israel e evidencia a fé de Abraão, a quem Deus pede o que ele
tem de mais caro**. O patriarca se tornará na tradição bíblica o modelo do justo que obedece pela fé. O
„amaramento‟ de Isaac desempenhará um grande papel na piedade e no rito judaico; os Padres verão no
sacrifício de Isaac uma prefiguração do sacrifício de Jesus Cristo; o Corão alude a esta cena sem nomear o
filho que Abraão deve imolar; para a tradição muçulmana, é Ismael que Deus pede a Abraão.”
* Fragmentos narrativos que se distinguem pela utilização do nome genérico “Elohim” para falar de Deus nas
narrativas que precedem a revelevação do nome YHWH (pronunciado Iahvé ou Iahô). Daí o nome eloísta
dado a essa camada, com a inicial E. Existem ainda as tradições: sacerdotal (P), deuteronômica (D) e javista
(J) com a qual os vários fragmentos narrativos da camada E se combinam. (Gênesis. In: TEB, 1997, p. 51)
** “Praticava-se entre os semitas do oeste o sacrifício dos primogênitos, por exemplo, em certos casos de
aflição: o homem oferecia o que possuía de mais caro. A questão não podia apresentar-se para Abraão, que
vinha do leste, onde sacrifício semelhante não era praticado; segundo este relato, desde a época patriarcal a
vítima humana devia ser substituída pelo animal.” (Gênesis. In: TEB, 1997, p. 51)
41
Enquanto que o fator quantitativo – a geração – faz-nos participar da culpabilidade, o fator qualitativo –
aquele que somente é instituído pelo Indivíduo a título de Indivíduo – nos oferece, em sentido estrito, a culpa.
“[...] o indivíduo só pode tornar-se culpado em virtude de uma decisão pessoal; o fator quantitativo da geração
atinge aqui, contudo, o grau máximo, a ponto de, por vezes, confundir todo o problema, caso não consigamos
conservar bem firme a diferença já indicada entre o fator quantitativo e o salto qualitativo.”
(KIERKEGAARD, s/d, p. 82)
42
Onde a liberdade é “não liberdade”. A não liberdade faz de si mesma prisioneira. “A liberdade é sempre
comunicante [...] a não liberdade torna-se cada vez mais fechada e não quer a comunicação.”
(KIERKEGAARD, 2010, p. 132)
72
“A queda, falando em termos psicológicos, sempre acontece em meio de uma
grande impotência [impotência, porque o ser humano existe na finitude]. E,
ademais, a angústia é uma das coisas que maior egotismo encerra [egotista,
porque volta-se sobre si mesma]. Neste sentido nenhuma manifestação concreta
da liberdade é tão egotista como a possibilidade de qualquer concreção [é o
Indivíduo realizando-se como Indivíduo]. Esta é, uma vez mais, a opressão que
trás consigo o comportamento ambíguo do indivíduo, sua situação de simpatia e
antipatia simultâneas. Na angústia reside a infinitude egotista da possibilidade, a
qual no lhe tenta de uma vez como uma escolha que tenha que fazer, senão que o
angustia seduzindo com sua doce ansiedade.” (KIERKEGAARD, 2007, p.
118-119, tradução nossa)
homem posterior a Adão é mais refletida, isto é, mais consciente; segue-se, desta realidade,
a seguinte constatação: “o nada – que é o objeto da angústia – parece que se torna mais e
mais algo” (KIERKEGAARD, 2007, p. 119, tradução nossa). Mas, o que significa este algo
nisto, o mais curioso é que este complexo de pressentimentos autorrefletidos que, ainda,
nada significam na angústia não se trata de “um nada que seja indiferente ao indivíduo, mas
94), pois o Indivíduo não se fez, ainda, culpado. “Estes reflexos constituem uma
predisposição que, antes que o indivíduo se faça culpado, significa essencialmente nada”
(s/d, p. 94), pois somente significará alguma coisa quando, mediante o salto qualitativo, o
Indivíduo fizer-se culpado; a partir de então, os reflexos “constituem o suposto desde o qual
o indivíduo se remonta além de si mesmo, uma vez que o pecado se autopressupõe. Claro
que este não se pressupõe antes de ser posto, o que seria uma predestinação..., mas sim
73
A par do que corresponde o algo no qual converte-se o nada da angústia, Sören
Kierkegaard põe-se a analisar o que esse algo pode significar no Indivíduo posterior a Adão
ou que valor ele pode ter. Conforme o autor de O Conceito de Angústia, este algo, o qual
trata de algo que pode ocupar aos médicos, como enfermidades de nascença. Tão pouco se
poderá obter um resultado por meio de quadros estatísticos. O importante, nesta como em
s/d, p. 95; 2007, p. 120, tradução nossa), ou seja, dispor-se do meio adequado acompanhado
43
Em seu livro, originalmente em francês com o título Impromptus, traduzido para o português como Bom
dia, angústia! Comte-Sponville faz a distinção entre “a crise de angústia, com suas manifestações somáticas
tão espetaculares, da angústia existencial, que o mais das vezes é desprovida delas.” O autor afirma que a
saúde não está, exclusivamente, do lado da diversão e que a angústia nem sempre é patalógica: “A sanidade
mental não poderia medir-se apenas pelo bem-estar. A angústia do soropositivo, a angústia do condenado à
morte, a angústia da mãe cujo filho está doente, quem as julgará patológicas? E quem não vê que a nossa de
certo modo se parece com a deles? Qual dentre nós escapará da morte? E qual de nossos filhos? Que podem
os ansiolíticos contra uma ideia verdadeira? Isso não impede de utilizá-los, quando é preciso, quando a vida
seria muito mais insuportável ou atroz. Mas é preciso sempre? E não será pagar caro, muito amiúde, só
suprimir o sofrimento – mediante medicação ou diversão – em troca da coragem e da lucidez? Será a saúde
que se quer, ou o conforto? A capacidade de enfrentar o real, ou a possibilidade de fugir dele? [...] Que é a
sanidade psíquica? Talvez a capacidade de enfrentar o real e o verdadeiro sem perder toda a força, toda a
alegria, toda a liberdade. Onde há margem para a angústia, e é isso que distingue a sanidade da sabedoria. [...]
É o estado, esta definição não é inferior a outra, que torna a filosofia possível e, aliás, necessária. Dirão que
houve filósofos loucos. Mas, se o fossem deveras, não teriam filosofado; tendo-o ficado completamente
(Nietzsche), deixaram de filosofar. Que um filósofo, às vezes, tenha necessidade de um psiquiatra, isso não
poderia, pois, dispensar os psiquiatras de filosofar. É isso que a angústia lembra a uns e aos outros, marcando
os limites da filosofia, quando a angústia é patológica, bem como da medicina, quando ela não o é. Que tais
limites sejam imprecisos, que por vezes se invadam mutuamente (onde termina o normal? onde começa o
patológico?), isso é uma evidência, mas que não poderia suprimi-los. A angústia existencial não é uma
doença; a neurose de angústia não é uma filosofia.” (COMTE-SPONVILLE, 1997, p. 15 e ss.)
74
atingir apenas 2 ¼, contra 3 7/8 na Bretanha?” (KIERKEGAARD, s/d, p.
96)
mesmo que se tenha boa intenção, de não fazê-lo um dito espirituoso que debilita o
conceito de mal e o adorna com uns tons quase humorísticos (KIERKEGAARD, 2007, p.
120, tradução nossa). O efeito do pecado no mundo foi ter convertido a sensualidade em
pecabilidade, porém o que isto significa? Isto significa duas coisas: primeiro, que com o
pecado se torna pecabilidade a sensualidade; segundo, que com Adão veio o pecado ao
original”. Sabemos que o aspecto quantitativo não estabelece nenhuma qualidade e que a
única coisa que ele exprime é a progressão do gênero, aliás, em O conceito de angústia ele
essencialmente tão original como o primeiro. A diferença está para todos os indivíduos
por seu turno, significar algo mais ou algo menos” (KIERKEGAARD, 2007, p. 122-123,
tradução nossa; s/d, p. 97); se, para cada Indivíduo em particular, a derivação pode
44
“Ambas as afirmações devem equilibrar-se mutuamente em todo momento, pois do contrário se expressa
algo que não é verdade. O fato da sensualidade se converter um dia em pecabilidade constitui a história da
geração; mas que hoje a sensualidade se torne pecabilidade, isto é o salto qualitativo do indivíduo.”
(KIERKEGAARD, 2007, p. 122, tradução nossa)
45
“E o derivado nunca é tão perfeito como o original” (KIERKEGAARD, 2007, p. 122, tradução nossa).
Conforme Kierkegaard, naturalmente, isto só é válido para a espécie humana, em que o indivíduo se
determina como espírito (ibidem, nota).
75
significar algo mais ou menos, para Eva ou para qualquer outra pessoa posterior do sexo
Para o nosso autor, a condição de derivação da mulher explica em que sentido ela é
mais frágil que o homem46 não obstante, “por mais que sejam as diferenças, nunca se
123, tradução e grifo nossos); qual é, então, a “expressão da diferença” entre o homem e a
“mais em Eva do que em Adão”; porque a mulher é mais sensual que o homem 47 – segundo
homem, a síntese na mulher excede um dos termos – o corpo – fazendo-a, desse modo,
mais sensual.
46
“Isto é algo que se tem admitido em todos os tempos com plena unanimidade por parte dos homens, tanto
por um „paxá‟ como por um cavaleiro romântico.” (KIERKEGAARD, 2007, p. 123, tradução nossa; s/d, p.
98)
47
Na tradução espanhola, lê-se: “a mulher é mais sensível que o homem.” (KIERKEGAARD, 2007, p. 123,
tradução e grifo nossos)
48
O homem e a mulher são uma síntese. “Uma síntese é a relação de dois termos. [...] Numa relação de dois
termos, a própria relação entra como um terceiro, como unidade negativa, e cada um daqueles termos se
relaciona com a relação, tendo cada um existência separada no seu relacionar-se com a relação; assim
acontece com respeito à alma, sendo a ligação da alma e do corpo uma simples relação. Se, pelo contrário, a
relação se conhece a si própria, esta última relação que se estabelece é um terceiro termo positivo, e temos
então o eu.” (KIERKEGAARD, 1979, p. 195)
76
Disto podemos ver, conforme nosso autor, que há uma correspondência entre a
sensualidade e a angústia, pois desde que se iniciara a geração “o que se diz de Eva não
passa de um sinal da própria relação com Adão de todos seus descendentes, a saber, que a
„um mais‟ de que não se pode eximir nenhum indivíduo. Isto é o „plus‟ de todos os
descendentes a respeito de Adão, mas de tal sorte que isso nunca possa constituir por si
termos da síntese – corpo – sobrepesando-o, a qual não conheceu Adão50, “o original”, mas,
Indivíduos posteriores, sem discriminação de sexo; logo, em que sentido a mulher tem mais
tradução nossa) Não será por causa de sua constituição física; a tese kierkegaardiana
ângulo ideal, a Beleza”; eticamente, examinando-a “sob o seu ângulo ideal, a procriação”,
49
Se há uma diferença entre o Indivíduo posterior e Adão, no âmbito da relação da geração, esta é somente
quantitativa que, por seu turno, nada modifica na relação.
50
Adão não conheceu a sensualidade porque esta é posta na relação deste com seus “derivados”.
77
estas duas circunstâncias provam ser a mulher mais sensual que o homem”
“Sempre que a beleza reina, produz uma síntese de onde é excluído o espírito.
Este é o segredo de todo o helenismo. [...]. A exclusão do espírito explica essa
despreocupação característica da Beleza grega, mas também o motivo de sua
profunda aflição inexplicável. Isto não quer dizer que a sensualidade seja
pecabilidade, mas sim um certo enigma insondável que nos enche de angústia. E,
por isso mesmo, a ingenuidade sempre vai acompanhada de um nada inexplicável
como é o da angústia.” (KIERKEGAARD, 2007, p. 125, tradução
nossa; s/d, p. 99)
igualdade grega, subjaz uma diferença: a diversidade no rosto, ou, que “o espiritual
“[...] limitarei [-me] a mostrar a diversidade aludida com uma única referência.
Vênus[51] é igualmente bela mesmo que se a represente dormindo, é assim até
mais bela que nunca, e, não obstante, é justamente o sono a expressão da ausência
de espírito. A isto se deve que o homem dormindo seja tanto menos belo quanto
mais velha e espiritualmente desenvolvida se encontre a sua individualidade. A
criança, ao contrário, nunca é mais bela que quando está dormindo. Vênus
emerge das águas do mar e é representada em uma atitude de repouso, ou em uma
atitude que sirva para relegar a um plano de dispensabilidade a importância da
expressão de seu rosto. Se, pelo contrário, se trata de representar um Apolo [52] –
ou mesmo um Júpiter[53] –, não lhe ocorreria representá-lo dormindo. Neste caso
Apolo apareceria feio, e Júpiter ridículo. Com Baco,[54] poderia abrir-se uma
[51]
Vênus, a deusa do amor e da beleza, é equivalente a Afrodite na mitologia grega. A deusa Vênus era
esposa de Vulcano, porém mantinha relações extraconjugais com Marte, o deus da guerra, com quem gerou:
Harmonia, Cupido, Deimos e Fobos. Vênus era o ideal da beleza feminina; de quem os romanos se
consideravam descendentes. (Adaptação nossa)
[52]
O belíssimo e ambíguo deus portador da saúde e de terríveis epidemias, patrono da música e das letras,
dava a conhecer seu valor através de respostas enigmáticas, os oráculos. Era venerado, sobretudo, em Delfos e
Delos, mas também tinha grandes templos em Corinto, Figaléia, Termos e Dídimo. (DURANDO, 2005, p. 70)
[53]
Júpiter, para os romanos; Zeus, para os gregos, era o rei dos deuses e dos homens.
[54]
Relativo a Dionísio na mitologia grega, é filho de Júpiter e da mortal Sêmele; era o deus do vinho e
representava a embriaguez, porém também era um promotor da civilização, legislador e amante da paz.
Segundo a lenda, Sêmele pediu para Júpiter mostrar-lhe todo o seu esplendor. Júpiter tentou dissuadi-la,
78
exceção, mas este constitui justamente dentro da arte grega a indiferença entre a
beleza masculina e a feminina, e por esta razão suas formas são também
femininas.” (KIERKEGAARD, 2007, p. 126-127, tradução nossa; s/d,
p. 100)
Romantismo55 repete-se, outra vez, “a mesma diversidade [no rosto], e, novamente, dentro
não teme manifestar-se na face do homem porque a revelação de sua face, contanto os seus
traços sejam claros e nobres, é suficiente para que esqueçamos todo o resto de seu corpo
Do ângulo da Ética, a mulher atinge o apogeu na procriação por isso, o seu desejo,
deve sempre visar o homem, afirma a Sagrada Escritura, segundo nosso autor. Apesar de à
mulher dever-se dirigir o desejo do homem, a vida, do homem, não deve culminar no
porém ela insistiu, fazendo com que o deus mostrasse todo seu esplendor, o que provocou sua morte, pois
Sêmele era apenas uma mortal. Com sua morte, Júpiter pegou o feto, Baco, das cinzas e o colocou em sua
perna, gerando assim, o deus do vinho. (Disponível em: http://www.brasilescola.com/mitologia/baco.htm.
Acesso em: 14 de janeiro de 2010)
55
Movimento artístico-literário irrompido na Europa no século XVIII abrangeu, praticamente, todos os países
europeus estendendo-se, a seguir, por outras partes do mundo; teve sua fase áurea no decorrer da primeira
metade do século XIX, ao fim da qual foi, gradualmente, perdendo terreno para o Realismo. (AZEVEDO,
1999, p. 402 e s.)
56
“este é justamente o segredo do espírito que nunca careça de história”, ou seja, o espírito tem sempre
história. (KIERKEGAARD, 2007, p. 126)
79
desejo pela mulher – nem mesmo no matrimônio57 – restando, apenas, “os casos em que o
Quanto a declarar que a mulher sente mais angústia que o homem Sören
Kierkegaard assegura que isto não se deve ao fato que ela tenha menos forças físicas, “já
que aqui não se trata em absoluto de semelhante angústia”. 59 A mulher sente mais angústia
porque ela é mais sensual e porque, ao mesmo tempo, está essencialmente determinada pela
espiritualidade como está o homem (KIERKEGAARD, 2007, p. 126; s/d, p. 101), ou seja,
57
O matrimônio é a expressão do estádio ético da existência. Para Pierre Mesnard, o estádio ético muito mais
fácil de caracterizar que o estádio estético trata-se “a priori de um saber unitário e de uma vida coerente
governada por normas morais”. Em A Alternativa, escrito de 1843, Kierkegaard nos apresenta o herói deste
plano moral, a saber: o HERÓI DA VIDA CONJUGAL representado pelo conselheiro Wielhem que “defende
a sua própria causa, a do casamento feliz, num eloquente discurso. [...]. Entre a teoria do amor romântico,
caracterizada pela paixão, e a teoria de um acordo econômico e social em que a realidade fisiológica (porém
ignorada pela jovem) deve forçosamente trazer o amor consigo, Kierkegaard traça a efígie do amor cristão,
dádiva generosa de duas pessoas que reconheceram perante Deus a sua predisposição recíproca. Içada a este
nível, a defesa do casamento confunde-se indissoluvelmente com a exaltação do amor. A vida conjugal, digna
deste nome, não poderá ser senão a vontade de guardar para o primeiro amor toda a graça da Primavera no
momento mesmo em que se provam os frutos saborosos do Outono. Assim entendido, o casamento é
essencialmente uma escolha perante Deus, em que cada um se escolhe a si mesmo na escolha do outro esposo:
o casamento introduz assim a vida real, põe lastro na personalidade enfim consciente da seriedade da ética,
permite ao homem moral construir o seu destino lutando doravante pro aris et focis (pelos altares e pelos
lares). Mas este admirável elogio do casamento empreendido em A Alternativa confronta-se com objeções de
fato que As Etapas no Caminho da Vida [1845] divulgam. Tal como no plano estético, as objeções provêm
em grande parte da presença da mulher, esse ser caprichoso que é tão difícil de fixar-se numa relação
definida. Dificuldade que atinge aqui o paroxismo se é verdade, como nos diz Kierkegaard, que a mulher se
situa ela própria no plano da estética e só se revela plenamente no plano religioso. [...] é necessário, para que
uma relação funcione bem, que o homem aceite, no que lhe diz respeito, o heroísmo moral da vida quotidiana,
único meio de desviar a sua esposa de oscilações demasiado perigosas entre fruição estética e a renúncia
religiosa. [...]. O casamento não poderia passar, segundo o desejo do assessor Wilhelm, por uma solução
geral. É necessário reservar ao lado do caso típico a possibilidade de soluções excepcionais, e é bem evidente
que aquele que renuncia à vida conjugal para responder ao apelo do gênio religioso [como fez Kierkegaard?!],
„comprando pelo mais alto preço a vida mais penosa‟, atinge um plano de existência superior à do marido
mais perfeito.” (MESNARD, 2003, p. 29e s.)
58
A que se vive no estádio estético da existência. Nesse estádio, “o indivíduo singular deixa-se guiar pelos
momentos aleatórios que se apresentam, é incapaz de um projeto e de uma decisão que comportem a
radicalidade da doação como compromisso e responsabilidade, antes pauta sua vida no e com o efêmero, o
acidental, passa o tempo que lhe foi destinado inebriado e prisioneiro das vaidades proporcionadas pelos
„meios financeiros, da força física e exuberante da juventude‟.” (ALMEIDA; VALLS, 2007, p. 34)
59
A angústia tratada aqui não é aquela em que o Indivíduo se consome por falta, mas aquela em que o
Indivíduo se perde em “excesso” de possibilidades.
80
“Eis por que motivo o refrão acerca do sexo fraco me é completamente
indiferente, uma vez que esta fraqueza não impediria que a mulher
experimentasse menos angústia que o homem. Mas aqui sempre tratamos da
angústia na direção da liberdade. E assim, quando contra toda analogia a história
genesíaca nos apresenta a mulher seduzindo o homem, não temos de ver nisso,
precipitadamente, uma pura arbitrariedade, contanto que meditando-o a fundo se
nos revela como o mais normal do caso. Definitivamente, aquela sedução foi
justamente uma sedução feminina enquanto Adão de fato somente pela
intervenção de Eva se deixou seduzir pela serpente. Nos demais casos, sempre
que se fala de sedução, semelhante linguagem – encantar, persuadir, etc. –
concede sem exceção a iniciativa ao homem.” (KIERKEGAARD, 2007, p.
126-127, tradução nossa; s/d, p. 101-102)
O ser humano que se determina mais como espírito, pouco ou nada se consome com
contrário tem delas, em certa medida, pudor. Por quê? É o que veremos a seguir.
81
sexual” – numa atmosfera em que a sexualidade adquiria ar de pecabilidade também o sexo
passa a figurar como tal –; quando o ser humano não o conhece diz-se que é ingênuo ou
ainda muito pior, a um ocultamento dos prazeres correspondentes”. O que tudo isso
significa? Significa que, fatalmente, o homem peque quando deixa de ser ingênuo?
Absolutamente. “Estes não são mais que insípidos galanteios com os que se pretende iludir
Assim, cientes dos adornos com os quais – o teatro e o púlpito – pretendem nos
sexual e sua significação nas diversas esferas particulares? Falar sobre essa questão de
somente ao animal “por isso mesmo, este sempre se encontra atado à cegueira do instinto e
sempre marcha às cegas” (KIERKEGAARD, 2007, p. 129, tradução nossa; s/d, p. 104);
outra ignorância acerca do sexual – que não está, como no animal, realmente presente –
que “implica também um ignorar o que não é”, o que não existe, pois ainda não está
60
Talvez por não ter a companhia de alguém com quem pudesse compartilhar as idéias, com quem pudesse
confrontar antes de as apresentar ao grande público, Sören Kierkegaard evoca Sócrates: “[...] tenho a certeza
de que se Sócrates vivesse hoje não haveria deixado de meditá-lo [o problema do sexual] a fundo [...] estou
convencidíssimo de que em tal caso – apesar de que ele poderia fazer muito melhor que eu e, por assim dizer,
de uma maneira muito mais divina – me teria dito: „Oh, amigo meu, que bem fazes em pensar estas coisas tão
dignas de ser meditadas! Sim, poderia passar as noites inteiras em diálogo e, não obstante, sem chegar nunca a
penetrar inteiramente o admirável prodígio da natureza humana‟. Esta convicção é para mim de um valor
infinitamente mais alto que todos os „hurras‟ da contemporaneidade; pois tal convicção me converte a alma
em uma rocha inquebrantável, enquanto os aplausos a fariam vacilar.” (KIERKEGAARD, 2007, p. 129,
tradução nossa)
82
“A inocência é um saber que equivale a ignorância. Sua diferença da ignorância
moral é bem notória, já que aquela está determinada na direção de um certo saber.
Com a ignorância começa um saber cuja primeira determinação é a ignorância.
Este é o conceito de pudor – Schaam –. O pudor entranha angústia precisamente
porque no ápice da diferença da síntese que é o homem, o espírito não só se
encontra determinado como pertencendo ao corpo, mas também como corpo com
determinada diferença sexual. ” (KIERKEGAARD, 2007, p. 130,
tradução nossa)
Por não haver ainda um Eu – do que se pode depreender que o espírito, na síntese,
não tenha ainda se estabelecido como um terceiro termo positivo – o ser humano se acha na
ignorância mais, especificamente, como corpo onde se mostram as diferenças dos sexos. O
pudor, este saber, ainda ignorante daquele que começará com o ápice da síntese – o saber
que fará o Indivíduo refletir sobre si mesmo – introduz profunda angústia no ser humano,
no homem e na mulher, uma angústia em que impera a vergonha na qual não há nada de
quê se envergonhar, uma angústia em que o simples saber acerca da diferença dos sexos é
“O pudor, certamente, é um saber acerca da diferença dos sexos, mas não implica
uma relação com essa diferença sexual. O que significa que o impulso não se fez,
enquanto tal, ato de presença. O autêntico significado do pudor está em que o
espírito, por assim dizer, não as tem todas consigo nesse ápice extremo da síntese.
Por isso é tão enormemente ambígua a angústia do pudor. Para começar, não há
nele nem o mais mínimo sinal de prazer sensual; e, todavia, impera uma certa
vergonha. De quê? De nada! E, contudo, o indivíduo pode morrer de vergonha; e
o pudor ferido é a mais profunda das dores, precisamente porque é a mais
inexplicável de todas.” (KIERKEGAARD, 2007, p. 130, tradução
nossa; s/d, p. 104-105, grifo nosso)
Para o nosso autor, este é o motivo porque a angústia do pudor seja capaz de
despertar por si mesma (ibidem) uma vez que não pode ser o espírito a despertá-la já que
não se estabeleceu, ainda, na síntese; que seja assim, que seja aquela angústia capaz de
83
autodespertar-se, que “não seja o prazer o que pretenda desempenhar esse papel”
A diferença sexual está posta no pudor, mas sem a orientação do sexo masculino
para o sexo feminino que somente acontece com o impulso que nos animais é dado pelo
instinto. No ser humano, o impulso não é o mesmo que ou não é só instinto (ibidem); o
impulso ou o movimento de um ser humano para o outro tem um telos: a propagação que
faz com que se movam orientados um para o outro;61 sem a propagação como telos só há o
erotismo62 que cessa a partir do instante em que o espírito se instaura enquanto tal, isto é,
não só como um termo da síntese, mas como espírito que ao reunir os constituintes, corpo e
“A suprema expressão pagã deste processo [este em que o espírito se instaura não
só como constituinte da síntese mas como espírito cessando todo o erotismo] nos
a dá a afirmação clássica de que o erótico é o cômico. Isto, naturalmente, não há
que entendê-lo no sentido da interpretação que lhe dá um libertino qualquer,
confundindo o erótico e o cômico e empregando-o como matéria estupenda de
suas brincadeiras lascivas; ao contrário, o que aqui decide é a força e
preponderância da inteligência, neutralizando tanto o erótico como a
correspondente relação moral na indiferença do espírito. Por certo que esta é uma
consideração de profundo entalhe. A angústia do pudor consistia em que o
espírito se sentia estranho, mas agora o espírito venceu totalmente e encara o
sexual como algo estranho e cômico.” (KIERKEGAARD, 2007, p. 131,
tradução nossa; s/d, p. 105)
61
Na edição espanhola, direta do danês, há uma observação feita pelo tradutor que nos parece relevante.
Segundo Kierkegaard, o impulso ou movimento de um sexo para o outro que não tem por fim a propagação,
ao contrário, é “estático”, equivale a amor, a erotismo puro. Conforme RIVERO, trata-se esse amor “do amor
correspondente ao „estádio estético‟, amor imediato puramente instintivo e erótico, submetido totalmente ao
prazer, à sensibilidade e ao instante passageiro. Não é nenhum amor „decisivo‟, como o que corresponde ao
„estádio ético‟ [...] e está infinitamente distante do amor – caridade – [...].” (KIERKEGAARD, 2007, p. 131,
nota, tradução nossa)
62
A expressão que o espírito dá do erótico é que este é, ao mesmo tempo, o belo e o cômico. (ibidem, p. 132)
84
O pudor, afirma Kierkegaard, jamais poderia atingir a liberdade que o espírito tem
contradição que radica no fato de que o espírito imortal esteja determinado como genus63.
Esta contradição se manifesta como um pudor profundo que oculta esse fato e não se atreve
graças à beleza, “pois a beleza é cabalmente a unidade do psíquico e do corporal. Mas esta
contradição que o erotismo chega a esclarecer no meio da beleza representa para o espírito
duas coisas ao mesmo tempo: a beleza e a comicidade” (ibidem); a partir de então, o que se
vê, é o amadurecimento do espírito, motivo pelo qual “já não há nenhum reflexo dos
indiferença”.64 Por isso dissemos, que o Indivíduo que se determina mais como espírito,
pouco ou nada se consome com as manifestações corpóreas e psíquicas, nem com as suas e
nem com as dos outros que chegam a lhe parecer, tanto uma como a outra, cômicas. 65
É importante notar que o espírito ao encarar o erotismo belo e cômico não quer
torná-lo desnecessário – o que nos parece impossível já que o espírito se determina como
genus cujo modo de se exprimir, entre outros, é erótico – e menos ainda anulá-lo; no
Freud – ao invés de neutralizá-lo pela ironia argumentando fazer, assim, o espírito avançar.
63
Raça.
64
Para Kierkegaard, Sócrates é um dos poucos homens que foi indiferente ao erotismo.
65
Pertinente e bastante atual é a observação que Kierkegaard faz acerca da indiferença ao erotismo. Para ele,
raras vezes se conserva toda a beleza sublime desta ideia, para tal “seria necessário que coincidissem de um
modo admirável tanto uma feliz evolução histórica como umas extraordinárias qualidades originais. Porque
neste ponto, tão logo aparecem as objeções, por mais distantes que sejam, nos encontramos eo ipso metidos
em uma concepção repugnante e afetada.” (KIERKEGAARD, 2007, p. 133-134, tradução nossa)
66
“No cristianismo, o religioso suspendeu o erotismo, não precisamente em virtude de uma incompreensão
ética, como se fora o pecado, mas sim considerando-o como algo indiferente, já que o espírito não estabelece
diferença entre o homem e a mulher.” (KIERKEGAARD, 2007, p. 134, tradução nossa; s/d, p. 108)
85
“Enquanto no meio do pudor o espírito sentia angústia e medo ao apropriar-se a diferença
sexual, agora, em vez disso, a individualidade salta de repente fora dela mesma e, em vez
de aprofundar eticamente nela, a sujeita a uma explicação tomada das mais altas esferas
espirituais” (KIERKEGAARD, 2007, p. 134, tradução nossa); a alguns cristãos mais vale
sublimar e/ou negar o erotismo – que junto ao pudor nos dá o saber acerca da diferença dos
complexo o qual não sabem bem o que é e que, portanto, lhes causam grande temor.67
Disse-se que o sexual enquanto tal não é pecado e, reafirmamos, não é, apesar da
angústia – do mesmo modo que está posta no meio do pudor – estar presente em todo gozo
erótico. A angústia, segundo nosso autor, está presente em todo gozo erótico,
“Não porque este gozo seja pecaminoso, de nenhuma maneira! Por isto mesmo,
tampouco serve de nada – neste sentido, se entende – que o pároco bendiga dez
vezes seguidas ao casal recém-casado. Até quando o erótico se expresse da
maneira mais bela, pura e moral que seja possível, sem o menor rastro de reflexão
voluptuosa que denigra sua alegria..., até então estará presente a angústia, mas
não perturbando a alegria do gozo, senão como formando parte integrante com
todo ele.” (KIERKEGAARD, 2007, p. 134-135, tradução nossa)
“Porque o espírito não pode estar presente no momento culminante do erótico. [...] Porque
sem dúvida que o espírito está ali presente, já que é ele quem constitui a síntese; mas,
2007, p. 135, tradução nossa); o espírito sente-se estranho porque não tem nenhuma função
a desenvolver no erotismo muito menos em seu momento culminante, o sexual, assim – por
não ser traço de união, por não ser o mediato – se oculta até quando ele durar. Por isso, por
67
“Este é um dos aspectos peculiares da concepção monacal, importando muito pouco, ao fim de contas, que
se a considere dentro de um rigorismo ético ou como uma contemplação meditativa.” (KIERKEGAARD,
2007, p. 134, tradução nossa; s/d, p. 108)
86
ter o espírito que se ocultar – mesmo quando o erótico se exprime da maneira mais bela,
doce (KIERKEGAARD, 2007, p. 136, tradução nossa) muito maior na mulher que no
homem uma vez que o espírito se oculta mais na síntese do indivíduo do sexo feminino que
na síntese do indivíduo do sexo masculino, porque aquela é mais sensual que esse a quem o
temos que pôr à conta de qualquer dos indivíduos posteriores ao compará-los com Adão”
plus comum da geração que quanto mais angústia tem, tanto mais sensual se torna.
pela primeira vez, o cume da angústia na mulher; o novo Indivíduo se cria, precisamente,
no seio desta angústia. A segunda vez em que a angústia atinge o seu auge é no instante do
nascimento, momento no qual vem ao mundo o novo ser humano e por quê? Porque é
durante o parto, que a mulher atinge de novo o ápice de um dos extremos da síntese e, por
isso, o espírito treme cumulando-a de angústia, o que é natural “já que nesse instante o
(KIERKEGAARD, 2007, p. 136, tradução nossa). A partir disso, vê-se que muito longe de
humana e é por isso que só nas raças humanas inferiores se encontram analogias de um dar
68
“Isto é cabalmente a angústia e o que, definitivamente, também constitui o pudor; na verdade, como é
imbecil acreditar-se que basta a benção da Igreja ou a fidelidade do marido à mulher para salvaguardar uma
união! Já se tem visto mais de um casamento profanado sem a menor contribuição de terceiros.”
(KIERKEGAARD, s/d, p. 109)
69
O momento relativo à concepção entendida como ato de conceber ou ser concebido; geração.
87
à luz tão fácil como a que se dá nos animais.” (KIERKEGAARD, 2007, p. 136, tradução
nossa)
sensual. O “mais”, efeito da conseqüência da geração, é o plus “que temos que por à conta
137, tradução nossa). Este plus – de angústia e sensualidade – que todos os Indivíduos
menos; de acordo com nosso autor, a vida proclama isto, ao tornar autênticas as palavras da
Sagrada Escritura as quais nos ensina, que “Deus castiga nos filhos as iniquidades dos pais
“De nada serve querer esquivar o espantoso desta declaração precipitando-se com
a insinuação de que essas palavras encerram uma doutrina judia. O cristianismo,
por seu lado, nunca reconheceu em nenhum indivíduo particular o privilégio de
que este começara a partir de um princípio no sentido da exterioridade [de pai
para filho]. Porque todo indivíduo começa na realidade dentro de um nexo
histórico e, neste aspecto, as consequências naturais seguem tendo hoje o mesmo
valor que sempre tiveram. A única diferença [no tempo de Kierkegaard e quiçá
em nosso tempo] está em que o cristianismo nos ensina superficialmente a elevar-
nos desse „mais‟ e julga que quem assim não o faz é porque não quer fazê-lo.”
(KIERKEGAARD, 2007, p. 137-138, tradução nossa)
Talvez por isso, pelo ensino superficial com o qual se deseja que aprendamos a
elevar-nos, é que “a angústia do espírito – ao ter que assumir a sensualidade – é maior que
2007, p. 138, tradução nossa), cujo ponto máximo é este em que “a angústia diante do
pecado gera o pecado”. Nisto, reside a ambiguidade na qual o Indivíduo se faz, ao mesmo
70
Exo. 20, 5 e Deut. 5, 9.
88
tempo, culpado e inocente;71 na impotência da angústia – impotência porque o Indivíduo
nada pode fazer quanto ao fato de que o espírito não tenha nenhuma função a desenvolver
tanto culpado – por escolher a concupiscência, a paixão, a luxúria, etc. – como inocente.
posterior, significa a consequência da relação histórica. O plus que temos que por à conta
nossa). De acordo com Kierkegaard, este fato contém, simultaneamente, três coisas:
“um obscuro saber do que, por outro lado, o pecado pode significar”; terceiro e último,
este fica sem mais confundido com a espécie e a correspondente história” (ibidem, p. 138-
Quando se diz que a sensualidade pode significar pecabilidade, parece óbvio que
sensualidade enquanto tal não é pecabilidade, mas o pecado a converte em tal coisa;
“pensando nos indivíduos posteriores a Adão, não cabe dúvida de que cada um deles se
encontra em um meio histórico dentro do qual é notório que a sensualidade pode significar
pecabilidade” (KIERKEGAARD, 2007, p. 139, tradução nossa; s/d, p. 112) não para o
71
A ambigüidade desapareceria se, no Indivíduo, fosse verdadeiro que os maus apetites, a concupiscência,
entre outros, são inatos.
89
Indivíduo mesmo, mas para o saber do meio histórico que acrescenta à angústia um mais.
Por causa disso, sucede ao espírito que ele tem que fazer ao Indivíduo posterior mais do
que ele fez a Adão, ou seja, “não somente tem que fazer frente à oposição da sensualidade,
p. 112)
significar um mais ou menos quantitativo, por quê? Porque aqui também há a ambiguidade
da angústia a qual “o indivíduo precisamente não é culpado ao estar angustiado, mas por sê-
lo quando é culpado”; (ibidem, p. 140) tudo isto dependerá do salto qualitativo quando o
espírito tiver que colocar a síntese porque apenas um mais – de sensualidade e angústia –
não é suficiente para gerar uma qualidade. Esse mais quantitativo pode ser também
traduzido, numa palavra, como “o poder do exemplo” que, segundo nosso autor, não deixa
de ter influência inclusive nas crianças, 73 ou seja, para que alguém se torne,
por mais angustiado que esteja não é culpado; essa categoria não é, nem em primeira e nem
inocente.74 Adão pecou não porque estava nos planos divinos que ele pecasse e, mais, cada
72
“[...] é uma coisa clara que o indivíduo inocente não chega ainda a compreender esse saber, pois isto
somente sucede quando se o compreende qualitativamente.” (KIERKEGAARD, 2007, p. 139, tradução nossa)
73
“[...] se começa por supor que a criança é um anjo, mas que o ambiente corrompido o precipitou na
corrupção. Segue-se falando, sem acabar nunca, do enormemente corrompido que está o ambiente..., e assim,
sem que haja outra coisa por meio, já temos a criança corrompida. Não obstante, quem poderá por em dúvida
que o conceito fica anulado se se chega a tal corrupção por um simples processo quantitativo? [...] tampouco é
raro que se comece por supor que a criança era como a maioria das crianças, ou seja, nem boa nem má, mas se
encontrou com boas companhias e resultou bom, ou se juntou com más companhias e resultou mau. O que
fizeram das categorias intermediárias? Onde estão as categorias de enlace?” (KIERKEGAARD, 2007, p. 142-
143, tradução nossa)
90
um de nós pecamos não porque Adão pecou, mas porque “a possibilidade da liberdade se
anuncia na angústia” (KIERKEGAARD, 2007, p. 140, tradução nossa) categoria sem a qual
não existiríamos humanos e pela qual herdamos uma outra categoria: a Redenção ou a
Salvação.
O saber do meio histórico nos revela, portanto, que a qualidade, essa que é posta
pelo Indivíduo através da liberdade em meio à angústia, não pode ser concebida como
consequência da relação histórica porque o mais que essa relação subentende é um mais
inocente, vejamos Adão: ele habitava um jardim em Éden, onde tudo parecia correr
tranquilo e em harmonia, e o quê fez Adão? Pecou e jamais conseguiu retornar ao estado
em que vivia anterior ao pecado isto para dizer que “sempre que se põe o pecado, tanto ao
princípio como daqui para frente, este nunca deixa de converter a sensualidade em
74
“[...] é imprescindível lançar mão de uma categoria intermediária que tenha a ambiguidade suficiente para
poder abrigar a ideia – sem isto, sem dúvida, a salvação da criança é uma ilusão – de que a criança, em
quaisquer circunstâncias, sempre é capaz de fazer-se tanto culpada como inocente. Se não se tem à mão e com
a devida claridade estas categorias de enlace, então se podem dar por perdidos – e com eles a mesma criança –
os conceitos de pecado original, pecado, espécie humana e indivíduo.” (KIERKEGAARD, 2007, p. 143,
tradução nossa)
91
CAPÍTULO III
A LIBERDADE
tradução nossa); no seu sentido mais lato é “o instante na vida do indivíduo” (ibidem, p.
nas investigações lógicas como nas que se referem à Filosofia da História a categoria de
transição76 (KIERKEGAARD, 2007, p. 151); com Hegel e sua escola, além da categoria de
movimento no pensamento hegeliano” (ibidem) que, para nosso autor, não passam de “três
agentes – agentia – camuflados, suspeitos e secretos que vêm por em marcha todos os
enquanto que na Lógica, de acordo com Kierkegaard, ela é e sempre será pura
engenhosidade, uma vez que por ela não compreendemos o seu conteúdo77; a transição é
75
Capítulo II.
76
“Passagem” na tradução portuguesa.
77
A transição não é, para Kierkegaard, uma categoria como para “os modernos”. Por isso a Lógica – a qual,
grosso modo, ocupa-se em investigar as categorias e os princípios do pensamento – não explica o seu
conteúdo.
92
uma situação, uma realidade e para entendê-la será necessário retomarmos e progredirmos
Anteriormente dissemos que Kierkegaard concebe o ser humano como uma síntese
de alma e corpo apoiada e sustentada pelo espírito sem o qual o ser humano seria pura
imediatidade78; mas ao mesmo tempo em que é uma síntese de alma e corpo, o ser humano
também é uma síntese do temporal e do eterno. Esta síntese abarca dois fatores: o temporal
e o eterno. “Onde está aqui o terceiro?”79 Será esta, como parece sugerir, uma segunda
síntese? “O que é o temporal?” Para começar, não há aqui o terceiro.80 Quanto ao temporal:
este é o instante, “essa coisa ambígua em que se tocam o tempo e a eternidade – tal contato
imaginação o tempo se define como uma sucessão infinita de presente, passado e futuro
definição, “contudo, inexata tão logo se considere que radica no tempo mesmo, já que
somente aparece enquanto o tempo se relaciona com a eternidade e enquanto esta se reflete
78
“Nesta [...] constituíam a alma e o corpo os dois momentos da síntese e o espírito era o terceiro, com a
particularidade de que somente se podia falar propriamente de síntese senão no momento em que se
instaurava o espírito” (KIERKEGAARD, 2007, p. 157, tradução nossa; s/d, p. 129), ou seja, no momento em
que o espírito não estava mais como que sonhando, uma vez que se estabeleceu.
79
Segundo os princípios lógicos “[...] se não há nenhuma terceira coisa, então tampouco há realmente síntese,
já que uma síntese que encerra uma contradição nunca pode chegar a ser perfeita sem um terceiro. Neste caso,
afirmar que a síntese encerra uma contradição é exatamente o mesmo que dizer que não há tal síntese. Isto nos
obriga a fazer-nos a seguinte pergunta: o que é o temporal?” (KIERKEGAARD, 2007, p. 157, tradução
nossa; s/d, p. 129-130, grifo nosso)
80
Segundo FARAGO, “Kierkegaard substituiu [...] a dialética resolutiva de um Hegel por uma dialética com
dois termos em que nenhuma síntese definitiva poderia lhe fazer encontrar o repouso na graça [...].”
(FARAGO, 2006, p. 70)
93
no tempo” (KIERKEGAARD, 2007, p. 157, tradução nossa; s/d, p. 130), ou seja, o tempo
considerado ad infinitum fazendo-se perceber através dos modos temporal; o que seria
tempo é um avançar de momentos, um processo no qual não há nem presente, nem passado
e nem futuro e se cremos que é possível manter aquela divisão é porque não fazemos mais
que espaciar um momento – “sem considerar de que com isto fica freada a sucessão
presente enquanto sucessão abolida, isto é, sem passado e sem futuro, simplesmente,
presente representado como progressão, mas uma progressão que não avança uma vez que
O tempo é a sucessão infinita – sem presente, sem passado e sem futuro como ficou
evidente –, é a vida “que é no tempo e que por referir-se somente ao tempo não tem
que não se trata da vida sensual – pela qual se distingue o esteta – uma vez que para defini-
81
“Mas, ainda quando assim se proceda, incorremos em erro, pois até para a representação é a infinita
sucessão do tempo um presente infinitamente vazio. Isto é uma paródia do eterno. Os hindus falam de uma
dinastia que reinou setenta mil anos. Dos distintos reis não se sabe nada, nem sequer, segundo suponho, seus
nomes. Se tomamos este exemplo como um símbolo do tempo, esses setenta mil anos são para o pensamento
um infinito desaparecer; para a representação, ao contrário, se estendem e se dilatam até converter-se na
ilusória intuição de um nada infinitamente vazio.” (KIERKEGAARD, 2007, p. 158, tradução e grifo nossos)
82
“Para a representação o eterno é um avançar que apesar de tudo não se move do lugar, já que o eterno
equivale para ela ao infinitamente pleno. No eterno tampouco se dá nenhuma discriminação do passado e
futuro, pois o presente está posto como a sucessão abolida.” (KIERKEGAARD, 2007, p. 159, tradução nossa;
s/d, p. 131)
94
la dizemos que esta se vive no instante e somente no instante entendido como abstração do
designa o presente como algo que não tem nem passado e nem futuro, portanto
absolutamente inconsequente, motivo pelo qual dizemos que essa vida é imperfeita, mas o
eterno também designa o presente sem passado e sem futuro, ao contrário do outro,
estar em considerar apenas o presente – eterno – o qual prescindi a vida sensual, mas não
determinação temporal porque “esta somente consiste em passar, de tal maneira que o
tempo não será mais que tempo passado se para defini-lo não temos outras categorias que
83
Contudo, “se pretende empregar o instante para designar o tempo, fazendo que o primeiro signifique a
eliminação puramente abstrata do passado e do futuro e que assim seja o presente, então temos de afirmar
taxativamente que o instante não é de modo algum o presente, pela simples razão de que semelhante
intermediário entre o passado e o futuro, concebido de um modo meramente abstrato, não existe em
absoluto.” (KIERKEGAARD, 2007, p. 160, tradução nossa; s/d, p. 132)
95
O instante, segundo nosso autor, se compara a uma mirada. “Nada há tão rápido
como a mirada e, não obstante, é comensurável com o conteúdo do eterno” (ibidem; s/d, p.
“um suspiro, uma palavra [...] encerrariam sem dúvida com sua sonoridade uma
maior determinação temporal; estariam mais perto de ser o presente a ponto de
desaparecer e não significariam tão acentuadamente a presença do eterno..., mas
também é verdade que um suspiro, uma palavra, etc., têm a virtualidade de
aligeirar a carga que pesa sobre a alma, precisamente porque basta que se
mencione a pena que a oprime para que somente com isso comece a ser uma
coisa do passado. Por isso uma mirada é algo que serve para designar o tempo;
mas, entenda-se bem, enquanto o tempo se encontra nesse conflito fatal que
provoca o entrar em contato com a eternidade.” (KIERKEGAARD, 2007, p.
161, tradução nossa; s/d, p. 133)
A arte grega, de acordo com Kierkegaard, culmina numa arte na qual falta
justamente a mirada: a escultura. Isto porque os gregos desconheciam, em seu sentido mais
(ibidem, nota); é claro que este “sentido mais profundo” significa aquele que Kierkegaard
empreende aos conceitos supracitados, mas referir-se aos conceitos – espírito, sensualidade,
temporalidade – desse modo, tem uma razão de ser e esta razão está em o instante sempre
nossa) que
“Para o grego não podia ser de outra maneira, já que concebia de um modo
igualmente abstrato o tempo e a eternidade, uma vez que lhe faltava o conceito da
temporalidade e, em última instância, lhe faltava o conceito de espírito. Em latim
se diz momentus, que enquanto derivado do verbo movere não expressa de seu
outra coisa que o mero desaparecer.” (KIERKEGAARD, 2007, p. 161-
162, tradução nossa; s/d, p. 133-134)
84
Em contraposição absoluta com a arte grega, o cristianismo “nos oferece a representação plástica de Deus
como um grande olho.” (KIERKEGAARD, 2007, p. 161, tradução nossa; s/d, p. 133, nota)
96
Em perpétua relação com a categoria do invisível o instante é, na perspectiva do
primeiro intento da eternidade para frear o tempo. Por isso o helenismo não chegou a
entender o instante [...]. Os gregos não o definiam mirando para adiante, mas sim para
trás”85 (ibidem) como aquilo que era e que, por sua entrada no mundo, não é mais.
passemos àquela questão a qual a síntese do temporal e do eterno pela qual, também, o ser
humano se define constitui ou não uma segunda síntese. Não. Com as palavras de Sören
Kierkegaard, a “síntese do temporal e do eterno não é uma segunda síntese, mas sim a
expressão daquela mesma síntese em virtude da qual o homem é uma síntese de alma e
corpo, sustentada pelo espírito” (KIERKEGAARD, 2007, p. 163, tradução nossa; s/d, p.
o ser humano isso, talvez, deva-se ao fato de tendermos a pensá-lo para fora da existência
ou para fora da vida mesma a partir de uma “crença” dogmática mui talentosa segundo a
qual a “verdadeira” vida encontra-se distante e além do Indivíduo ou em outro lugar senão
na existência mesma. “O instante existe assim que fica posto o espírito” e o ser humano é o
único capaz de vivê-lo, pois que a “natureza não radica no instante.” (ibidem)
97
Com os devidos esclarecimentos acerca do temporal, faz ainda sentido falar das
começa a ter sentido a divisão mencionada: o tempo presente, o tempo passado e o tempo
“[...] nos damos conta com esta divisão de que o futuro significa de certo modo
muito mais que o presente e que o passado, posto que o futuro é em certo sentido
a totalidade da qual o passado não é mais que uma parte; e ademais, o futuro pode
significar, também em certo sentido, a mesma totalidade. Isto se deve a que o
eterno significa primariamente o futuro; ou, com outras palavras, a que o futuro é
o incógnito em que o eterno, incomensurável com o temporal, quer manter
todavia suas relações com o tempo.” (KIERKEGAARD, 2007, p. 163-
164, tradução nossa; s/d, p. 135-136)
– não tiveram um conceito do eterno e tampouco um conceito do futuro, por isso não
futuro está tudo aquilo que o Indivíduo quer ser, seu projeto. Neste sentido, o presente não
86
Segundo RIVERO, em função da plenitude da eternidade, para Kierkegaard, “os três êxtase do tempo” –
presente, passado, futuro – somente adquirem sentido quando o tempo e a eternidade se tocam no instante.
(RIVERO. In: KIERKEGAARD, 2007, p. 158, nota, tradução nossa)
87
Em que perspectiva a temporalidade e a sensualidade eram tomadas ingenuamente, veja-se a seguir. “A
filosofia grega e a filosofia moderna se instalam do seguinte modo: tudo nelas gira movido pelo afã de que o
não-ser chegue a existir; ainda que eliminá-lo e fazê-lo desparecer se estima que seria uma coisa demasiado
fácil. Em vez de, a perspectiva cristã se situa nesta posição: o não-ser existe em todas as partes como o nada
de que foram feitas as coisas, como aparência e vaidade, como pecado, como sensualidade afastada do
espírito, como temporalidade esquecida da eternidade; e, em consequência, importa muitíssimo tirá-lo do
meio para que apareça o ser. Somente nesta direção se concebe com exatidão histórica o conceito da
redenção, tal como o cristianismo o trouxe ao mundo. Se concebe-se na direção contrária – partindo o
movimento de que o não-ser não tem existência –, então fica a redenção como evaporada e posta do
contrário.” (KIERKEGAARD, 2007, p. 153-154, tradução nossa; s/d, p. 125-126, nota)
98
é mais importante que o futuro, uma vez que nele ressoam as consequências das decisões
humanas algumas até previsíveis, mas nenhuma delas concisas; neste sentido, o futuro
aparece, no tempo, desconhecido e temeroso mais, também, como uma fonte de onde
jorram influências para o presente. Revela-se aqui o ponto de interseção entre o instante e o
futuro, esses dispõem por seu turno o passado, “não enquanto este se define em relação
com o presente e o futuro, mas sim definido como simples passar, que é em si a definição
geral do tempo” (KIERKEGAARD, 2007, p. 164, tradução nossa; s/d, p. 136). Tal como o
instante – o qual os gregos definiam não apontando para frente, mas para trás – a eternidade
nos gregos também é o passado, ambos os conceitos totalmente abstratos; mas quanto à
eternidade, “tanto se a definição [...] fica delimitada mais proximamente com perfis
filosóficos – é o caso desse „morrer ao mundo‟ enquanto falam disso os filósofos – como se
A eternidade é “o que será” e “o que foi”. Por este último, sabemos que Adão pecou
e pelo primeiro, sabemos que o futuro do ser humano é possibilidade de pecado, a qual
88
“„em frente ao viver no superficial, dissipado e atomizante „agora‟ [...].” (RIVERO. In: KIERKEGAARD,
2007, p. 165, tradução nossa)
99
Adão foi o primeiro a constatar89; “todo indivíduo posterior começa de um modo
tradução nossa; s/d, p. 138), não obstante, a diferença quantitativa o instante, segundo
Kierkegaard, existe para Adão tal como para o homem que lhe sucede (ibidem) porque a
síntese a qual define o primeiro homem também define aqueles que se seguem. O espírito
institui a síntese da alma e do corpo; o espírito é o eterno que somente existe quando o
instante não existe enquanto não é posto o eterno, ou no máximo existe como discrímen.
Desta maneira – e uma vez que o espírito se define dentro do estado de inocência como um
espírito que está sonhando – o eterno se manifesta como o futuro, já que esta, segundo
166-167, tradução nossa; s/d, p. 138), ao contrário, quando é posto o espírito – quando este
não está mais sonhando – o eterno deixa de se manifestar como futuro passando a
manifestar-se como presente nos quais, contudo, não deixa de se mostrar a angústia.
“Por isso [...] do mesmo modo que o espírito, enquanto era possibilidade do
espírito – isto é, da liberdade –, se expressava na individualidade como angústia
ao ter que ser posto com a síntese ou, com maior exatidão, ao ter ele mesmo que
por a síntese..., assim também agora o futuro, enquanto possibilidade do eterno –
isto é, da liberdade –, é por sua vez angústia no indivíduo. Esta é a razão de que a
liberdade se enche de calafrios ao manifestar-se a possibilidade da mesma ante
seus próprios olhos, aparecendo nesse momento a temporalidade com o mesmo
adorno que tinha a sensualidade, isto é, no sentido da pecabilidade.”
(KIERKEGAARD, 2007, p. 167, tradução nossa; s/d, p. 138)
89
“A diferença entre Adão e o indivíduo posterior consiste em que o futuro é mais reflexivo para o segundo
que para Adão. Este „mais‟ – falando em termos psicológicos – pode significar algo espantoso, mas a respeito
do salto qualitativo seu significado é o de uma coisa inessencial. A mais alta diferença com relação a Adão
estriba agora em que o futuro parece antecipado pelo passado; ou em que se tem a angústia de haver perdido a
possibilidade antes que esta tenha existido.” (KIERKEGAARD, 2007, p. 167, tradução nossa; s/d, p. 138-139)
100
A angústia na vida individual refere-se a que “o possível corresponde por completo
(ibidem); por isso que, para Kierkegaard, não há sentido em dizer “que nos angustiamos do
passado”. Porém, reflete o filósofo dinamarquês, se observarmos melhor, não veremos que
ao falar em uma angústia do passado a única coisa que fazemos é enfocar, de um jeito ou de
outro, o futuro? Sim, é. “Porque para que o passado me cause angústia é necessário que
esteja em uma relação de possibilidade comigo. Se me angustio por uma desgraça passada”
– tal como, a queda de Adão90 – “não é precisamente enquanto passada, mas sim enquanto
pode repetir-se, isto é, fazer-se futura” (2007, p. 168, tradução nossa; s/d, p. 139).
Conceito de Angústia, a saber: A angústia como hipótese do pecado original e como meio
estado psicológico que precede ao pecado, encontrando-se tão perto dele, tão
angustiosamente perto dele, que já não pode estar mais. Isto não quer dizer que a angústia
explique o pecado, pois este brota justamente com o salto qualitativo” (ibidem; s/d, p.
140)92 o que significa que a disposição da alma do ser humano, neste caso, somente importa
90
“Se tenho angústia por uma má ação passada, então é que não a relacionei essencialmente comigo enquanto
passado, mas sim que há algo em minha vida que de uma maneira mais ou menos subreptícia lhe impede de
ser passada. Pois se realmente fosse passada, então não poderia angustiar-me, mas sim somente arrepender-
me. Se não o faço, é precisamente porque com anterioridade me foi permitido converter em dialética minha
relação com ela, e assim aquela má ação se tornou em si mesma uma possibilidade e não algo passado”
(KIERKEGAARD, 2007, p. 168, tradução nossa). A seguir o que há de mais atual da queda de Adão em nós,
ou seja, a culpa que sentimos mesmo quando não há nada aparente de que se culpar: “Se me angustio pelo
castigo é porque este foi posto imediatamente em relação dialética com a culpa – do contrário suportaria meu
castigo –, o que significa que me angustio por algo possível e futuro.” (ibidem)
91
Título do Capítulo I de O Conceito de Angústia sugerido pela tradução espanhola.
92
Ou, ainda com as palavras do filósofo: “a angústia é o último estado psicológico do qual irrompe o pecado
mediante o salto qualitativo [...].” (KIERKEGAARD, 2007, p. 170, tradução nossa; s/d, p. 142)
101
no que se refere ao temor e ao tremor os quais lhe propicia a angústia, porém nenhuma
qualidade nova se origina daí a não ser por força do salto qualitativo do Indivíduo.
Quando o pecado entrou no mundo trouxe com ele a pecabilidade. Essa, por sua
claro “desde o momento em que o pecado torna-se posto” (ibidem), isso explica por que
peca quem vive somente no instante,93 uma vez que abstrai-se do eterno. “Se Adão não
tivesse pecado – permitindo-me outra vez somente por alguns instantes o emprego de uma
eternidade”,94 mas uma vez introduzido o pecado de nada vale o se cuja finalidade é
significar pecabilidade.
multidão”95 – das quais não emerge o salto qualitativo do pecado; mas que, nem por isso,
93
Como é o caso de quem vive no estádio estético da existência.
94
É importante enfatizar que Adão – e não a sua linhagem – teria passado, instantaneamente, à eternidade se
não tivesse pecado.
95
Expressão tomada da “Nota I: Sobre a Dedicatória „Ao Indivíduo‟”; “„a multidão‟ é o número, o numérico;
um número de nobres, de milionários, de grandes dignatários, etc.; a partir do momento em que agem pelo
número, tornaram-se „multidão‟, „a multidão‟. [...] A multidão, não esta ou aquela, atual ou de outrora,
composta de humildes ou de grandes, de ricos ou de pobres, etc..., mas a multidão considerada no conceito, a
multidão, é a mentira; porque, ou ela provoca uma total ausência de arrependimento e de responsabilidade,
ou, pelo menos, atenua a responsabilidade do indivíduo, fracionando-a.” (KIERKEGAARD, 2002, p. 112,
nota, p. 113)
102
configura-se um estado de inocência, já que “considerado desde o ponto de vista do
tradução nossa; s/d, p. 142), por que? Porque ao mover-se com essas determinações
quantitativas tanto o paganismo quanto o cristianismo esticam o tempo, sem nunca chegar
ao pecado em seu sentido mais profundo e o pecado é isso mesmo (2007, p. 171; s/d, p.
142); ainda que, para Kierkegaard, quando se trata do paganismo dentro do cristianismo,
isso mude ainda mais: “a vida dos pagão-cristãos não é nem culpável nem tampouco
inocente, é uma vida que na realidade desconhece toda diferença entre o presente, o
passado, o futuro e a eternidade (ibidem) que ao olharmos, “com olhos estéticos”, resulta
eminentemente cômica – afinal, não damos boas risadas quando um esteta nos fala de suas
aventuras e/ou um ético quando diz poder dormir em paz porque, naquele dia, cumpriu
todos os seus deveres? –, para o nosso autor, “que coisa mais cômica que o espetáculo de
(2007, p. 171, tradução nossa; s/d, p. 143). Aqui aparece, através do discurso de
Kierkegaard, uma verdade que por mais chocante que seja é mister admitir:96 “Eu não sei se
a Filosofia poderá fazer uso desta plebe como de uma categoria que lhe sirva de substrato
para uma grandeza superior, como é o caso, por exemplo, dessa confusão vegetal
encharcada que vai convertendo-se pouco a pouco em terra e em seguida começa a ser
turba[97] e logo outras coisas” (ibidem). Ao contrário, olhando essa existência “com os
olhos do espírito”, toda ela é pecado, “e isto é o menos que podemos fazer por ela, já que
[97]
Turba, em espanhol, tanto é combustível de origem vegetal, como esterco misturado com carvão vegetal e
multidão, por isso mantemos a palavra em espanhol.
103
(KIERKEGAARD, 2007, p. 171-172, tradução nossa; s/d, p. 143, grifo nosso) que,
pode encontrar-se dentro do cristianismo”, pois “quanto mais alto se determina o espírito,
tanto mais profunda se manifesta sua perda, e quanto mais elevados estavam os que se
perderam” – a bem dizer, “os pagão-cristãos” –, “tanto mais desgraçados são em seu
todas; isso porque o mal da in-espiritualidade98 é estar em relação com o espírito, relação
que em si mesma não é nada (ibidem), já que sobre o espírito estabelece-se, com maior
“Por isso a in-espiritualidade de que estamos falando pode possuir até certo ponto
todo o conteúdo da espiritualidade, mas – note-se bem! – não como coisa
espiritual, mas sim como brincadeira, galimatias, frases feitas, etc. Também pode
possuir a verdade, mas – note-se bem! – não como verdade, mas sim enquanto
rumor e mexerico.” (KIERKEGAARD, 2007, p. 172, tradução nossa;
s/d, p. 143-144)
que, segundo o nosso autor, se expressa em sua própria linguagem, mas como? Ora,
dizendo – o homem sem espiritualidade – absolutamente o mesmo que o espírito mais rico,
só com a diferença que não o diz em virtude do espírito; ora, convertendo-se – ainda o
mesmo homem – em uma máquina falante motivo pelo qual “não há nada de estranho que
possa aprender de memória uma série de textos filosóficos tão bem como uma confissão de
98
Na tradução portuguesa, temos: a-espiritualidade, ou seja, o “a” enquanto prefixo negativo e não o “in”.
104
distinguir entre o que entende e o que não entende – apenas aprende de cor – é a falta da
mesmo em cada um de nós. Ele que queira outras provas talvez logre fazer um acúmulo
enorme delas, mas de pouco lhe servirão, pois já está rotulado como „desprovido de
não há nele nenhuma angústia,99 o que não deve ser motivo de alegria, pois “a diferença
(2007, p. 174, tradução nossa; s/d, p. 145). Para nós, contudo, o mais curioso nesta
afirmação está em, “se assim se quer, o paganismo é simples ausência do espírito e neste
sentido é muito distinto da positiva falta de espírito. E por isso mesmo é aquele
infinitamente preferível” (ibidem) uma vez que, em seu seio – se por causa disto
julgávamo-lo desafortunado –, se quer aparece o espírito, mas para o qual pode caminhar,
idealidade”, motivo pelo qual o espírito foi e está de volta, já que a relação de quem é in-
espiritual com o espírito, em si mesma, não significa nada (ibidem); além disso, se tratando
ainda de uma curiosidade para nós, a falta de espírito, segundo Kierkegaard, não é
“precisamente estupidez quando nos vem com todas as suas séries, mas sim que o é,
sobretudo, no sentido em que se diz do sal na Sagrada Escritura: „se o sal tornou-se
99
“é um homem demasiado feliz e está demasiado satisfeito e desprovido de espírito para poder angustiar-se.”
(KIERKEGAARD, 2007, p. 174, tradução nossa; s/d, p. 145)
105
s/d, p. 145), isto para dizer que diante dos sentimentos de fracasso, derrota, angústia e
completa ausência de sentido para a vida, o que poderão fazer os sistemas e as idéias
filosóficas? Uma vez insípidas, para quê servem? E, ainda: Onde e como encontrar sabor?
também ela, ficou excluída do mesmo modo em que está o espírito; mesmo assim, de
acordo com o nosso autor, a angústia está à espreita. O espírito é um credor que ninguém
nunca iludiu; assim, a partir desta perspectiva, há angústia na falta de espírito, contudo
3. 3. 1. Pecado e Providência
tem certa relação com o espírito, sem que este tenha sido, todavia, instituído como espírito
angústia” (KIERKEGAARD, 2007, p. 176, tradução nossa; s/d, p. 146-147), a qual tem por
objeto o nada.
“fica eliminada assim que aparece deveras a realidade da liberdade e do espírito” – já que
deixam de ser apenas possibilidade –; então, “que significa mais precisamente o nada da
angústia dentro do paganismo? Resposta: esse nada é o destino.” (2007, p. 176, tradução
100
Conforme João Lopes Alves, o tradutor da edição portuguesa, a cita encontra-se em Mat. 5, 13: “Vós sois
o sal da terra. Se o sal perde seu sabor, como tornará a ser sal? Não serve mais para nada; jogam-no fora e é
calcado aos pés pelos homens.” (Mateus. In: TEB, 1997, p. 1863-4)
106
Que relação pode o destino estabelecer com o espírito? Uma relação externa, “uma
relação entre o espírito e algo que não é espírito, mas com o que o espírito mantém apesar
de tudo uma relação espiritual. O destino pode significar as coisas mais opostas, já que é a
unidade da necessidade e da casualidade”101 (2007, p. 177, tradução nossa; s/d, p. 147) que,
para o nosso autor, significa dizer: “o destino é cego”. Não parece sensato afirmar que
“quem avança às cegas se move tanto necessária como casualmente”? Sim. “Uma
necessidade que não esteja consciente de si é eo ipso pura casualidade em relação com o
momento seguinte” – é bom lembrar que não é necessário ser pagão para viver ao modo de
pura necessidade e casualidade, ou seja, ao bom e velho estilo “ao Deus dará” –; deste
modo, “o destino é nada da angústia” (ibidem), no qual o espírito parece habitar uma
inércia, não mirando em direção nenhuma; “um nada”, pois basta que o espírito entre em
cena para que a angústia desapareça e o destino também, já que o seu lugar vem ocupar a
Disse-se que o destino pode significar as coisas mais opostas. No paganismo quem
se prestava a descobrir o destino era o oráculo, tão ambíguo como o próprio destino e com
quem o consulente, no momento da consulta, se acha com ele em uma relação ambígua de
simpatia e antipatia. O oráculo, segundo nosso autor, podia dar a entender também as coisas
mais opostas. “Por isso, a relação do pagão com o oráculo volta a ser a da angústia”
(KIERKEGAARD, 2007, p. 178, tradução nossa; s/d, p. 148). Assim – permitindo-nos uma
digressão –, a relação do “espírito imediato” – aquele para o qual uma vida toda é virada
101
“Com frequência se tem falado do fatum [destino] pagão [...] como se este fora a necessidade. Inclusive se
tem conservado um resto desta necessidade na mesma concepção cristã, entendendo por destino o casual, o
incomensurável com a ideia da Providência. As coisas, não obstante, não são assim, visto que o destino é
precisamente unidade de necessidade e casualidade.” (KIERKEGAARD, 2007, p. 177, tradução nossa; s/d, p.
147)
107
para o exterior – com os Meios de Comunicação é de angústia porque se estes, ao contrário
do oráculo, não dão a entender as coisas mais opostas, em certa medida, contribuem para
mas apenas acenar com uma consideração que, salvaguardas as devidas diferenças, não
diverge, até certo ponto, das acenadas até então. O sentido é este, o qual apresenta Sartori;
segundo ele:
vivência da liberdade, das tarefas, parece não ser ao ser humano a mais simples; contudo,
uma contradição, a qual o homem torna-se culpado por obra do destino;102 bem entendida,
102
“O paganismo não alcança compreender semelhante contradição, pois procedia com demasiada ligeireza
na determinação do conceito de culpa.” O conceito de pecado e de culpa determina o indivíduo enquanto
108
essa contradição nos oferece, com o dizer do filósofo, o verdadeiro conceito, o qual deixa a
salvo a proposição de que o Indivíduo é si mesmo e a espécie e, além disso, que o Indivíduo
destino, já que neste o objeto da angústia é o nada – do qual o gênio não consegue sair –;
condição de culpável. Eis, para o nosso autor, a angústia em seu momento mais importante:
quando não é, todavia, a culpa – onde o Indivíduo tornou-se culpável sem ser culpado –;
isto, para mostrar que o “pecado não sobrevém, pois, nem como uma necessidade nem
Providência” (ibidem); enquanto que o destino não é mais que uma antecipação da
Providência, uma antecipação que revela o quanto essa é necessária para a compreensão do
pecado.
educação, “sem que por isso eu [Kierkegaard] venha a negar a importância da educação”;
“O destino é o limite de todo espírito imediato, coisa que sempre é o gênio” – que,
enquanto tal, é uma preponderante subjetividade, na qual o espírito está presente, mas sem
que tenha sido, ainda, essencialmente posto enquanto espírito – “e por certo que em um
sentido eminente com respeito a todos os demais espíritos dessa categoria”, para os quais
Indivíduo. Na tradução portuguesa, lê-se: “É este conceito de culpa e de pecado que transforma cada
indivíduo no Isolado.” (KIERKEGAARD, 2007, p. 178, tradução nossa; s/d, p. 148-149)
109
nada supera o temporal (KIERKEGAARD, 2007, p. 180; s/d, p. 150); enquanto que a
Providência, somente aparece no horizonte do pecado, motivo pelo qual “o gênio tenha que
sustentar uma luta gigantesca antes de alcançar esse nível” (ibidem). Mas, o que é o gênio?
“O gênio é como uma onipotência à parte que conseguiria abalar o mundo inteiro. Por isso,
para que haja certa ordem, aparece juntamente com o gênio outra figura, a saber, a do
destino. Este não é nada, é o gênio mesmo o que o descobre, e quanto maior seja o gênio,
O gênio é aquele que levará a cabo as façanhas mais assombrosas – se reduz-se a ser
isso que a sua existência seja sempre uma aventura, e nunca deixará de sê-la enquanto não
O gênio pode tudo e, não obstante, é dependente de uma bagatela, a qual ninguém
chega a ver, mas à que o mesmo gênio confere um poderoso significado. As coisas
exteriores em si mesmas não significam nada para o gênio; por isso não pode ser
proximidade de seu amigo secreto o destino. Tudo pode estar perdido; mas o gênio sabe
que ele é mais forte que o mundo inteiro, importa-lhe não descobrir um comentário que
encerre alguma dúvida em torno ao texto invisível em que lê a vontade do destino. Se o que
lê é à medida de seus desejos, então segue adiante; e pode ser que triunfe em todos os
campos, mas no momento mesmo em que recebe tão faustas notícias, talvez mencione uma
palavra cuja significação não entenda nenhuma das criaturas, sequer Deus dos céus – já que
em certo sentido nem Deus entende o gênio –, e baste para que o gênio caia completamente
110
O gênio está situado fora do comum, é grande graças a sua fé no destino, e o é tanto
admira-se somente sua grandeza quando triunfa, mas na realidade nunca é maior que
quando cai diante de si mesmo – no sentido de que o destino não se anuncia de uma
tudo está ganho, é quando o gênio descobre o texto suspeito e fatal, caindo completamente
vencido. Vendo-lhe caído, exclamam: “Que gigante não seria preciso para o abater!”. Por
isso nenhum outro pode fazer isto – desafiar o destino – a não ser o gênio mesmo. Aquela
fé que pôs a seus pés reinos e países, de maneira que os homens criam estar vendo o
152-153).
Assim, o gênio sente angústia em horas bem distintas daquelas em que se sentem
passar o perigo; o gênio, ao contrário, nunca é mais forte que no momento do perigo; a
angústia lhe assalta em um momento antes e um momento depois, ou seja, nesses dois
momentos de oscilação em que tem que haver-se com esse grande desconhecido que é o
destino. Talvez sua angústia seja maior exatamente no momento depois, já que a
impaciência da certeza cresce em razão inversa à pequenez da distância, pois que há sempre
mais a perder à medida que se está mais perto da vitória e, mais do que nunca, no mesmo
momento da vitória. Mas o motivo decisivo de tal angústia está em que a lógica do destino
chega ao pecado nem à Providência; permanece sempre nessa relação de angústia com o
111
destino. Jamais existiu um gênio sem está angústia, a menos que tenha sido também,
religioso. Se se mantém fixo nos limites de sua própria imediatez e de sua direção
centrífuga o gênio, será então grande e suas façanhas assombrosas, mas nunca alcançará e
nem será grande para si mesmo. Todas as suas obras se polarizam para fora, mas o núcleo
planetário das irradiações peculiares do gênio nunca terá existência própria. A importância
que o gênio tem para si mesmo sempre será nula ou, no máximo, suspeitamente nostálgica;
nunca chega a ser significativo para si mesmo no sentido mais profundo da palavra e, em
todo caso, sua significação nunca ultrapassará os limites que o destino tem assinalados na
esfera da sorte ou das categorias temporais: a desgraça, a glória, a honra, o poder e a fama
eterna; e é inútil buscar outras categorias de mais profundo porte dialético para delimitar a
angústia que sobressalta o gênio. Nesta ordem, o último motivo de sua angústia seria o que
se lhe tivesse por culpado, mas de tal maneira que a angústia não se refira então à culpa
mesma, mas sim a uma aparência dela, como uma mera questão de honra. Coisas
semelhantes podem suceder a qualquer homem, mas o gênio as tomaria em seguida tão a
sério que já não o teríamos lutando com os homens, mas sim com os mistérios mais
Portanto, será preciso muita coragem para entender que semelhante existência
genial é, apesar de todo o seu brilho, sua glória e sua importância, um pecado. Dificilmente
o compreenderá assim quem não tenha aprendido com anterioridade a aplacar a fome da
alma cheia de nostalgias. E, não obstante, é assim. E não é nenhuma demonstração contra, o
fato possível de que tal existência seja feliz até certo ponto. Na realidade, podem-se
considerar seus dotes excepcionais como um meio de distração sem que nos elevemos um
instante só, ao manejá-los na realidade, acima das categorias temporais; apenas mediante
112
Seguir as categorias da pura imediatez sempre é uma coisa fácil na vida, seja-se grande ou
desprovido da suficiente madurez espiritual, não compreenda que inclusive uma glória
imortal através de todas as gerações da história não é mais que um valor temporal; nem
compreenda que tais coisas são bem míseras em comparação com a verdadeira imortalidade
que está destinada a todo homem, e que se somente estivesse reservada a um só seria o
bastante para que todos os demais sentissem uma autêntica inveja, esse homem, sem
dúvida, não chegará muito longe em sua explicação do espírito e da imortalidade, uma vez
3. 3. 2. Culpa e Redenção
com efeito, aqui o nada, objeto da angústia, passa a significar algo ou deixa de se
maior, uma vez que a culpa é algo o qual o objeto da angústia pode se tornar, mas que
enquanto seja somente objeto da angústia não é nada. “Esta ambiguidade se funda na índole
mesma da relação correspondente; já que uma vez que apareça a culpa como o que
tradução nossa; s/d, p.156). Desse modo, se ao conceito de angústia do pecado corresponde
correspondências que somente ocorrem, é bom lembrar, em uma relação interna, aquela a
103
Ainda, apenas para fazer notar, em Ponto de vista explicativo da minha obra de escritor, à p. 179-197 tem-
se acesso ao texto Sobre a diferença entre um gênio e um apóstolo, datado de 1847 do filósofo.
113
qual o espírito encontra-se instituído enquanto tal, isto é, com que o espírito não apenas
mantém uma relação espiritual, mas na qual o espírito está instituído enquanto espírito pelo
espírito mesmo. Se a angústia da culpa não desaparece para em seu lugar obter lugar o
como de antipatia” (2007, p. 187, tradução nossa; s/d, p. 156), ou seja, a angústia
mantendo uma comunicação astuta com seu próprio objeto não podendo e nem querendo
afastar a vista dele; a não ser que o Indivíduo o queira fazer para então dar lugar ao
“A não poucos parecerá muito difícil de entender o que estamos dizendo. Que
vamos fazer! Ao contrário, a coisa não será nada obscura para aqueles que com
imperturbável ânimo tenham sido capazes de fiscalizar divinamente – se é que
posso expressar-me assim – não tanto o comportamento dos demais quanto o seu
próprio. De resto, a mesma vida apresenta bastantes casos nos quais o indivíduo
angustiado fixa a culpa com um olhar quase ávido ao mesmo tempo que a receia.”
(KIERKEGAARD, 2007, p. 187, tradução nossa; s/d, p. 156-157)
Ainda, conforme o filósofo, a culpa que tem sobre os olhos do espírito o poder de
conquista apenas através do pecado, mas, como já dissemos, pelo fator quantitativo da
geração: a culpabilidade – ainda que essa culpa não corresponda à culpa enquanto tal – que
difere daquela que ocorre no instante mesmo da decisão, isto é, quando o espírito imediato
se põe como espírito mediante o espírito (2007, p. 187; s/d, p. 157); não obstante, tanto essa
expande por todas as partes e, não obstante, esse poder envolver a existência mesma
114
que somente a dará uma coisa que seja de natureza idêntica à culpa, tal como o oráculo
suplantar a culpa, mas esse não lhe serve de nada; ele precisaria que “a relação da angústia
com a culpa se anulasse, e se estabelecesse uma relação efetiva. Já que isso não ocorre, o
sacrifício torna-se ambíguo, o que se expressa em sua repetição, cuja extrema consequência
estabelecida a relação real do pecado – que não se repete: a Redenção. Assim, a afirmação
segundo a qual somente com o pecado se dá a Providência ressurge com maior vigor nesta
enquanto não se estabelecer a relação real do pecado [...] assim é como o sacrifício que se
repete indubitavelmente dentro do catolicismo, se bem que, por outra parte, se reconheça a
sua perfeição absoluta” (KIERKEGAARD, 2010, p. 112; 2007, p. 189) que evidentemente
está no sacrifício mesmo e não em sua repetição numérica; o sacrifício, repetido várias
vezes no catolicismo funcionaria como um remédio com o qual se pretende prevenir uma
doença – a doença do espírito –, ou, seus sintomas antes mesmo de começar a aparecer e
mesmo antes de se descobrir a sua causa; a fim de “fazer memória” o catolicismo esvazia,
não poucas vezes, o sacrifício de sua mensagem principal: a Redenção. Deste modo,
também no cristianismo nos deparamos com aquele distinto indivíduo: o gênio, que
“somente se distingue em geral de qualquer outro homem pelo fato de que conscientemente
começa, dentro de seu pressuposto histórico, tão primitivamente quanto Adão” (2010, p.
112; 2007, p. 189), em que sentido? Cada vez que nasce um gênio, este recorre e revive
tudo o que ficou atrás, até que ao fim se alcança a si mesmo, motivo pelo qual, segundo
115
Kierkegaard, “o saber que um gênio tem do passado é completamente distinto do que nos
Para o filósofo, toda vida humana está disposta religiosamente. 104 Negar isto é
estão fixados problemas dificílimos, a saber: como minha existência religiosa entra em
relação e se expressa em minha existência exterior, ou, como uma existência religiosa
penetra e transforma uma existência exterior (2007, p. 190-1, tradução nossa; s/d, p. 159;
2010, p. 113).
Ainda que, segundo o nosso autor, tal assunção – referindo-se à do ator cômico –
seja realizável, já que a esfera do religioso é mais maleável que o ouro e dona de uma
comensurabilidade absoluta com todas as coisas, temos que ver o que falta ao ator cômico
para que não consiga realizar tal movimento. Kierkegaard dizia, supondo-o, evidentemente,
no século XIX, que “os homens nascem hoje com a inteligência muito mais esclarecida que
104
“Se cada ser humano não participa, essencialmente, no absoluto, então tudo acaba. Por isso, na esfera do
religioso, não se deve falar do gênio como de um talento especial dado só a alguns; pois o talento aqui
consiste em querer, e, a quem não quer, convém que, ao menos, demos a honra de não o lamentar.”
(KIERKEGAARD, 2010, p. 122)
116
nos tempos passados, mas também são, em sua grande maioria, cegos de nascimento a
O gênio que não quer paralisar-se dentro dos limites de sua própria imediatez – o
gênio religioso – prorroga, cada vez mais para adiante a questão: Chegarei algum dia a
voltar-me para fora? Já que, primeiramente, o que faz é voltar-se para si mesmo. Neste
mesmo, por esse fato se volta em direção a Deus, “e definitivamente é uma regra protocolar
a que impõe que todo espírito finito que queira ver a Deus comece sentindo-se culpado”
(2007, p. 193, tradução nossa), mas ao voltar-se para si mesmo, já não está descobrindo a
culpa? Sim, está. E “quanto maior seja o gênio, com tanta maior profundidade descobrirá a
culpa” (ibidem).
O gênio religioso, de acordo com o nosso autor, não é como a maioria da gente, nem
tampouco lhe satisfaz a ideia de chegar a ser um entre tantos. Isto não é porque o gênio
despreze os homens ou porque seja atacado de misantropia, mas sim porque, de uma
bem como o conceito contrário a esse: o da inocência, está presente em sua mente.
Interiorizando-se, o gênio descobre a liberdade – não uma liberdade para fazer isto ou
aquilo no mundo, para chegar a ser rei e imperador, mas sim a liberdade de saber
conscientemente que em si mesmo é liberdade (grifo nosso) – “não teme ao destino, pois
117
para ele não existem tarefas na direção da exterioridade, constituindo a liberdade sua bem-
Quanto mais se eleva um Indivíduo, tanto mais caro se compra para si as coisas, que
acabam por reivindicar que junto com esta liberdade essencial apareça uma segunda figura:
a culpa; figura a qual o gênio teme – como o gênio imediato temia o destino –. “Contudo, o
temor do gênio não é aqui [...] um temor de aos olhos dos demais ser considerado culpado,
mas sim que o que se teme é sê-lo”105 (2007, p. 195, tradução nossa), já que a culpa pode
que nos fala Sören Kierkegaard “não é de jeito nenhum desafio, nem liberdade egoísta no
sentido finito”, com a qual tantas vezes se procurou explicar o surgimento do pecado.
segundo a tradução de VALLS (2010, p. 116), ou, “dentro de uma categoria puramente
reconhecer culpada quando o é, mas o que teme é tornar-se culpada. Por isso que, uma vez
105
No caso anterior, a saber: do gênio imediato, o momento decisivo de sua angústia era o de ser considerado
culpado; mas essa angústia não corresponde à angústia aludida do gênio religioso, na qual o temor existe em
função da possibilidade de se ser, verdadeiramente, culpado.
118
posta a culpa, a liberdade reaparece como arrependimento; “a relação da liberdade com a
culpa é, primeiramente, uma possibilidade”. E assim, “se revela de novo o gênio, ao não
pular fora da decisão primitiva, não procurar a decisão fora de si, junto a fulano e beltrano,
ao não se satisfazer com o regatear usual”; somente dentro de si mesma pode a liberdade
Qual relação tem a liberdade com a culpa? A relação de angústia, porque tanto a
“à medida que a liberdade fixa seu olhar sobre si mesma desse modo tão
característico seu, isto é, com toda sua paixão e ardendo em desejos, não
querendo por nada do mundo que se aproxime-lhe a culpa [...] nesse mesmo
momento e sem que o possa evitar a encontramos olhando também fixamente a
mesma culpa, e este seu olhar fixo constitui a ambiguidade da angústia.
Exatamente da mesma maneira que a renuncia de uma coisa representa dentro da
possibilidade o desejo correspondente.” (KIERKEGAARD, 2010, p. 116;
2007, p. 196)
“mais” na angústia que o domina e que não existia na de Adão. 106 Na relação da
possibilidade, “sempre que o arrependimento aparece com o pecado real, ele tem como seu
objeto o pecado real” e não possível. Por fim, tal como o destino que apoderando-se do
gênio imediato culmina naquele momento em que tal gênio desmorona-se intimamente por
obra do destino e ante seus próprios olhos; a culpa apodera-se do gênio religioso e este é
106
O mais da “consciência reprimida do pecado”. (KIERKEGAARD, 2007, p. 196, nota, tradução nossa)
119
3. 4. O salto qualitativo
que é o salto qualitativo? É a realidade efetiva, na qual “o objeto da angústia é agora algo
determinado, o seu nada é alguma coisa efetiva, já que a diferença entre bem e mal está
posta in concreto, e por isso a angústia perdeu sua ambiguidade dialética”; isto tanto para
Adão quanto para qualquer indivíduo posterior, pois pelo salto qualitativo são
completamente iguais (2010, p. 119-120). Mas, “o que é o bem”? Para Kierkegaard, temos
que ser cautelosos ao pretender dar a resposta, “o bem não admite que se o defina” (2007,
p. 200, nota, tradução nossa); pois deixar-se definir, é não existir. Ao afirmar que o bem
não admite definição, Kierkegaard chama a atenção para que não passe, a ninguém,
despercebido que esse não existe e nunca existirá como objeto do pensamento 108, visto que
entre bem e mal existe, diferença que nunca existirá in abstracto – esse um mal-entendido
pensamento –, mas somente in concreto. Disso provém, segundo o filósofo, “o que perturba
quem não é tão experiente no método socrático quando este de um instante para outro
reconduz o bem, que parece infinitamente abstrato, ao que há de mais concreto. O método é
107
“O pecado significa aqui o concreto, naturalmente; pois jamais se peca por atacado ou na generalidade.”
(KIERKEGAARD, 2010, p. 121)
108
“[...] diante dos conceitos da existência, o abster-se das definições sempre mostra um tato seguro, porque é
impossível que se possa inclinar-se a querer captar na forma da definição – com o que tão facilmente surge
um estranhamento e o objeto se transforma em outra coisa: aquilo que essencialmente deve ser compreendido
de outro modo, que a gente mesma compreendeu de modo diferente, o que a gente amou de um modo
totalmente diferente. Quem ama de verdade, dificilmente poderá encontrar prazer, satisfação, para nem dizer
crescimento, em ocupar-se com uma definição do que é propriamente amor. Quem vive numa relação diária, e
contudo festiva, com a ideia de que existe para nós um Deus, dificilmente poderá desejar estragar ele mesmo
isso, ou vê-lo ser estragado, para conseguir costurar com suas próprias mãos, como um remendão, uma
definição do que seria Deus.” (KIERKEGAARD, 2010, p. 154)
120
totalmente correto, e apenas falhava [...] ao conceber o lado exterior do bem (o útil, o
instante para escolher entre o bem e o mal, sem que ela mesma esteja empenhada em uma
das partes”, aí ela “não é liberdade, mas uma reflexão sem sentido”, pura especulação.
Ainda, supondo que a liberdade permaneça no bem, “não sabe absolutamente nada do mal”.
Para Sören, é com esse sentido que deve-se reconhecer que “Deus nada sabe a respeito do
mal. Com isto não digo, de modo nenhum, que o mal é apenas o negativo, „o que deve ser
superado‟; mas o absoluto castigo do mal consiste em que Deus o desconheça, que nada
possa nem queira saber dele” (KIERKEGAARD, 2010, p. 119; 2007, p. 200, nota, tradução
nossa). Vigilius Haufniensis, nota que a expressão “„para longe de‟” no Novo Testamento
“Quando se concebe Deus de modo finito, poderia ser cômodo para o mal se
Deus quisesse desconhecê-lo, mas, já que Deus é o Infinito, o ignorar dele
corresponde à sua viva destruição, pois o mal não pode prescindir de Deus nem
mesmo para subsistir como o mal. Citarei uma passagem das Escrituras 2 Tes. 1,
9, onde se diz daqueles que desconhecem Deus e não obedecem ao Evangelho:
[...] „Sofrerão como castigo uma perdição eterna, longe da face do Senhor e da
glória do seu poder‟.” (KIERKEGAARD, 2010, p. 119; 2007, p. 200-
201, nota)
entre bem e mal; portanto, é insano pensar que o ser humano “tem de pecar”; o nosso autor,
sempre protestou “contra todo saber apenas experimental” e afirma: “o pecado pressupõe a
si próprio do mesmo modo como a liberdade, e não se deixa explicar por meio de algo
121
necessidade, cujo modo de se exprimir é: ter de. Para Vigilius Haufniensis, nenhuma
explicação acerca da liberdade é possível se começa afirmando que essa “entra em cena
como um liberum arbitrium [livre arbítrio] que tanto pode escolher o bem como o mal.
Falar do bem e do mal como objetos de liberdade equivale a tornar finitos tanto a liberdade
Acima foi dito que o bem é a liberdade que, por sua vez, “é infinita e aparece do
nada. Por isso, querer dizer que o homem peca de maneira necessária, é querer esticar numa
linha reta o círculo do salto” (2010, p. 120); a vida de cada ser humano individual caminha
para adiante em um movimento de estado a estado,109 o qual aparece por meio de um salto.
O pecado entrou no mundo por um Indivíduo e, se não é parado, continua a entrar todas as
vezes que um Indivíduo peca; mas, poderíamos pensar que cada uma das repetições do
“Cada uma de suas repetições não é, apesar de tudo, uma simples consequência,
mas sim um novo salto. A cada um destes saltos precede-lhe, como sua máxima
aproximação, uma situação [ou “estado”, segundo a edição brasileira e
portuguesa]. Esta situação é o objeto da Psicologia. Em toda situação está
presente a possibilidade e, por conseguinte, a angústia. Assim acontece desde que
foi introduzido o pecado, pois somente no bem se dá a unidade da situação e da
passagem.” (KIERKEGAARD, 2007, p. 202, tradução nossa)
O pecado, ao entrar no mundo, trouxe com ele uma qualidade nova: a pecabilidade
acima – somente se oferecem na liberdade (bem). Vê-se, mais uma vez, agora com maior
109
“de situação a situação”, na edição espanhola (KIERKEGAARD, 2007, p. 202, tradução nossa)
122
clareza, que o quê antecede ao salto110 é algo concreto: uma situação, não uma reflexão ou
(liberdade), como fica esta última, a angústia, diante do pecado posto? Fica uma
possibilidade anulada, mas também uma realidade indevida ou injustificada. “Até aí, a
angústia pode relacionar-se com ela. Já que ela é uma realidade indevida, deve ser negada
outra vez. A angústia assumirá esse trabalho” (KIERKEGAARD, 2010, p. 121); também é,
novo estado. Por mais fundo que um indivíduo tenha afundado, sempre pode afundar ainda
mais fundo, e este „pode‟ constitui o objeto da angústia” (ibidem). Para o nosso autor, tanto
“mais a angústia afrouxa, tanto mais quer dizer que a consequência do pecado penetrou no
direito de cidadania na individualidade” (ibidem), motivo pelo qual justifica-se, ainda mais,
Angústia que é mais perceptível uma vez que o pecado é posto, mas que, à medida que a
Indivíduo desta vez, por fora. Não obstante, do ponto de vista do espírito, a angústia, neste
caso, é maior do que qualquer outra, visto que a angústia “se depara com a possibilidade de
pecar ainda mais”, isto é, com “a possibilidade extrema do pecado”. Se aqui a angústia
110
“O salto, que é de ordem qualitativa, permite que o indivíduo passe de uma esfera a outra da existência,
por uma decisão pessoal. Porque não é certamente a largura material do fosso que impede o salto, mas a
paixão dialética interior que dá ao salto sua largura infinita. Ter estado tão perto de uma coisa, já tem seu lado
risível; mas, ter estado tão perto de efetuar o salto, é sem importância, justamente porque o salto é a categoria
da decisão”. (KIERKEGAARD. In: SAMPAIO, 2001, p. 168)
123
(KIERKEGAARD, 2010, p. 122); portanto, na existência, a angústia se compara a um
instante atrasado, pelo arrependimento que “se obriga a contemplar o terrível”, a partir do
qual a angústia alcança o seu ponto máximo; observemos, entre tantos, um destes
“Mas Adão e Eva choraram por terem de sair do jardim, a sua primeira habitação.
E, certamente, quando Adão olhou para sua carne, que estava alterada, chorou
amargamente, ele e Eva, pelo que haviam feito. E eles caminharam e desceram
docilmente para a Caverna dos Tesouros. E ao chegarem Adão lamentou-se e
disse a Eva: „Olha para esta caverna que será nossa prisão neste mundo, é um
lugar de castigo! Que é isto comparado com o jardim? Que é esta estreiteza
comparada com o espaço do outro? Que é esta rocha ao lado destas grutas? Que
são as trevas desta caverna comparadas à luz do jardim? Que é esta lápide de
rocha suspensa para nos abrigar comparada à misericórdia do Senhor que nos
acolhia? Que é o solo desta caverna comparado à terra do jardim? Esta terra,
coberta de pedras, e aquela plantada com deliciosas árvores frutíferas?‟ E Adão
disse a Eva: „Olha para teus olhos e para os meus, que dantes viam anjos no céu
louvando; e eles, também, sem cessar. Mas agora nós não vemos como víamos:
nossos olhos são de carne; não podem ver da mesma maneira como viam antes.‟
Adão disse novamente a Eva: „Que é nosso corpo hoje comparado ao que era em
dias passados, quando habitávamos no jardim‟? Após isso, Adão não gostou de
ter de entrar na caverna, sob a rocha suspensa, nem entraria nela jamais por
vontade própria. Mas curvou-se às ordens de Deus, e disse a si mesmo: „A não
ser que eu entre na caverna, serei novamente um desobediente‟. Então Adão e
Eva entraram na caverna e permaneceram em pé orando, em sua própria língua,
desconhecida para nós, mas que eles bem conheciam.” (O Primeiro Livro de
Adão e Eva, Cap. 4, 1-12; 5, 1. In: PROENÇA, 2005, p. 15-16)111
111
Aqui, a descrição de Vigilius Haufniensis: “O arrependimento perdeu a razão e a angústia ficou potenciada
em arrependimento. A consequência do pecado avança, arrasta atrás de si o indivíduo como a uma mulher que
o carrasco vai arrastando pelos cabelos enquanto ela grita no desespero. A angústia vai à frente, ela descobre a
consequência antes que esta chegue, como se pode pressentir em si mesmo que uma tempestade está a se
formar; ela se aproxima, e o indivíduo treme como um cavalo que estanca, fremente, no lugar onde uma vez
se assustou. O pecado triunfa. A angústia atira-se desesperada nos braços do arrependimento. O
arrependimento arrisca sua derradeira cartada. Concebe a consequência do pecado como o padecimento de um
castigo, a perdição como a consequência do pecado. Ele está perdido, sua sentença já foi lida, sua condenação
está garantida, e o agravamento da pena reside em que o indivíduo será arrastado através da existência, até o
local da execução. Em outras palavras: o arrependimento enlouqueceu.” (KIERKEGAARD, 2010, p. 123)
124
O estado de arrependimento, nota Kierkegaard, “raramente se encontra entre aquelas
medida adequada. Porém, não nos enganemos; decerto que “quanto mais profundo é o
lo” (2010, p. 124). Contudo, há uma coisa que consegue, como diz Kierkegaard, desarmar
pecado, a coragem de renunciar sem angústia à angústia, o que só a fé consegue, sem que,
contudo, com isso elimine a angústia, mas, ela mesma sempre eternamente jovem, se
Uma vez posto aí, fica penitenciando-se no pecado. E, no mesmo instante, do ponto de vista
“retarda a ação, e é esta última o que a Ética propriamente exige. Por fim, o arrependimento
125
tem então de tomar a si mesmo como objeto, na medida em que o instante do
está em que “uma vez posto, este quer anular a si próprio por meio de novo
3. 5. O demoníaco em Kierkegaard
que se fala é a servidão do pecado” (2010, p. 126); contudo, “a servidão do pecado ainda
Em algumas linhas anteriores foi dito que são possíveis duas formações quando o
pecado é uma vez cometido e o Indivíduo permanece nele. A primeira, “o indivíduo está no
no mal e se angustia diante do bem. A escravidão do pecado é uma relação forçada com o
mal, mas o demoníaco é uma relação forçada com o bem”, o qual significa, naturalmente,
“reintegração da liberdade, redenção, salvação ou como quer que se chame” (2010, p. 127).
e “reais”. Foi considerado, por exemplo, sob um ponto de vista estético-metafísico. Neste,
112
No entanto, para o nosso autor, “de uma perspectiva mais elevada, esta formação radica no bem, e é por
isso que o indivíduo se angustia frente ao mal.” (KIERKEGAARD, 2010, p. 127)
126
Em relação a este, bem como aos demais pontos de vista, Kierkegaard é taxativo ao
“Não ousamos no sentido mais profundo meditar sobre tais coisas e então nos
salvamos pela compaixão. Só quando o compassivo em sua compaixão se
relaciona com o padecente de tal maneira que compreende no sentido mais
rigoroso que é de sua causa que se trata, só quando sabe identificar-se com o que
padece de tal maneira que, lutando por uma explicação, luta por si mesmo,
abjurando de toda irreflexão, tibieza e covardia, só então a compaixão adquire
significado e só aí encontra talvez o sentido, pois nisso o compassivo se
diferencia do que padece, que o primeiro padece de uma forma mais elevada.”
(KIERKEGAARD, 2010, p. 127-128)
alcançar qualquer um. [...]. Daí resulta que, em nosso tempo, chega-se a saber tão pouco
dos mais elevados conflitos espirituais, enquanto por outro lado sabe-se tanto mais de todos
os frívolos conflitos, entre os homens e entre o homem e a mulher, que uma refinada vida
sofrimentos humanos será necessário, afirma Kierkegaard, verificar até que ponto o
demoníaco é destino e até que ponto é culpa; verificação que deverá ser concluída com a
113
“[...] os fenômenos possuem a característica comum de serem demoníacos, mesmo que sua diversidade de
resto seja fantástica”. Contudo, “o que decide se o fenômeno é demoníaco é a postura do indivíduo diante da
revelação: se ele quer impregnar de liberdade aquele fato, assumi-lo em liberdade. Toda vez que não o queira,
o fenômeno será demoníaco.” (KIERKEGAARD, 2010, p. 135 e s.)
127
toda a paixão preocupada e enérgica da liberdade de maneira que se ouse mantê-la, ainda
Sob o ponto de vista ético o demoníaco é concebido como algo condenável. “É bem
conhecido com que espantoso rigor ele foi perseguido, descoberto e castigado. Em nosso
tempo estremecemos ao simples relato desses fatos, ficamos sentimentais, emotivos ante a
ideia de que em nossa época esclarecida já não se age mais assim” (idem, ibidem). 114 Mas,
Aqui, o nosso autor não se autoriza julgar e condenar, porém, apenas, observar. “O fato de
que outros tempos foram eticamente tão severos revela justamente que sua compaixão era
outra explicação senão a de que se tratava de culpa” (2010, p. 129), por isso o
endemoninhado acabaria desejando por si mesmo que contra ele se procedesse com toda
crueldade e rigor, pois naquele que “não é, no sentido forte, eticamente desenvolvido”,
nada lhe causa maior consolo e alívio do que saber que sofre por culpa e não por destino.115
“Juntarem-se, pois, o farmacêutico e o doutor. O paciente foi afastado para não atemorizar
114
Em nosso tempo, isto é, no tempo desta dissertação, um comentário assim somente é feito quando se faz
referência ao Tribunal da Inquisição adotado pela Igreja de Roma.
115
Cf. nota em O Conceito de Angústia, edição brasileira de 2010, p. 129.
128
os outros. Em nossos bravos tempos, não se ousa dizer a um paciente que ele há de morrer,
não se ousa chamar o pastor [...] não se ousa dizer a um paciente que no mesmo dia morreu
padecente, ninguém vai mais lhe visitar – mandam perguntar por seu estado –; para
fornecer uma média, pela qual está tudo explicado, o médico promete-lhe um quadro com
tabela e estatística; o demoníaco, sob esse ponto de vista, tornou-se algo puramente físico e
somático (ibidem).
pneumática”, as quais indicam que o demoníaco tem um alcance muito maior do que se
supõe, “em razão de o homem ser uma síntese de alma e corpo mantida pelo espírito, razão
“Na inocência não faz sentido falar do demoníaco. Por outro lado, há que abandonar toda
representação fantástica de alguém que se vende ao mal [...]. Se se perguntar aqui até que
estado”, do qual pode sair, continuamente, cada um dos atos pecaminosos (ibidem, grifo
nosso); porém, é bom ressaltar, o estado “é uma possibilidade, ainda que comparando com
a inocência seja, é claro, uma realidade colocada pelo salto qualitativo” (idem, ibidem),
foi dito, “a liberdade não estava posta como liberdade, sua possibilidade era angústia”
(2010, p. 130). No estado demoníaco, a relação se inverte: “A liberdade está posta como
não liberdade; pois a liberdade está perdida. A possibilidade da liberdade é aqui de novo
129
angústia. A diferença é absoluta, pois a possibilidade da liberdade apresenta-se aqui em
relação com a não liberdade, a qual é diametralmente oposta à inocência, que é uma
demoníaco um monstro, que leva a gente a estremecer de horror, para em seguida ignorá-
lo” (2010, p. 143) em detrimento de uma aparente compaixão. Para o nosso autor, “talvez
jamais ele tenha estado tão espalhado quanto em nossos tempos, só que hoje em dia mostra-
coadjuvante, sempre que o corpo se revolta, sempre que a liberdade conspira junto com ele
2010, p. 144); decerto que a angústia também aqui está presente, mas como “angústia
diante do mal, não como angústia diante do bem” (ibidem). O demoníaco, segundo
algébrico (ibidem). Uma nuance deste tipo é a perdição bestial. “O demoníaco neste estado
se mostra no fato de que ele, tal como aquele demoníaco do NT [116], diz, com referência à
salvação: [„Que tens a ver comigo?‟]. Ele evita por isso todo e qualquer contato, seja que
[116]
NT é a sigla para Novo Testamento. A passagem acima, segundo Kierkegaard, encontra-se em Mar. 5, 7.
130
este então de fato o ameace ao querer auxiliá-lo para a liberdade, seja que o contatou de
qual ele diz não haver mais salvação, o que consiste um equívoco. Mas mesmo que ela lhe
apareça ele a rejeita, por causa da angústia que ela lhe provoca, pedindo para ser deixado
em paz, na miséria em que está ou lamenta-se dizendo que se afundou ainda mais porque, já
que o auxílio não lhe chegou oportunamente, não pode ser mais salvo. “Nenhum castigo,
nenhum discurso tonitruante o angustia, mas sim, ao contrário, qualquer palavra que o
queira pôr em relação com liberdade que se afundou na não liberdade” (2010, p. 145).
Outro modo como a angústia tem de se apresentar por toda a esfera da perdição
bestial é o da “socialidade”. Há entre os demoníacos uma coesão “em que se agarram uns
interioridade. [...] A socialidade, tão só, já contém uma certeza de que o demoníaco está
presente” (ibidem), pois não podemos esquecer que para Kierkegaard a multidão é a
que quer pensar mais um pouquinho; como curiosidade que nunca chega a ser mais do que
busca de novidades; como auto-engano desonesto; como moleza feminina que se confia aos
outros; como um nobre ignorar; como estúpida azáfama, etc.” (2010, p. 145-146).
131
Considerado sob uma perspectiva intelectual, o conteúdo da liberdade é verdade, “e
a verdade torna o ser humano livre”, motivo pelo qual, segundo Kierkegaard, a verdade é a
mas de qual “verdade” quer falar o nosso autor? Da verdade que só existe para o Indivíduo
“Se a verdade está de algum outro modo para o indivíduo, e é impedida por ele de
estar deste modo para ele, temos aí um fenômeno do demoníaco. A verdade
sempre teve muitos que a proclamaram em altos brados, mas a questão é saber se
um homem quer, no sentido mais profundo, conhecer a verdade, quer deixá-la
permear todo o seu ser, assumir todas as consequências, e não ter um esconderijo
para si, em caso de necessidade, e „um beijo de Judas‟ para as consequências.”
(KIERKEGAARD, 2010, p. 146)
conteúdo”, isto é, diante da verdade (idem, ibidem). Apesar dos esforços metafísicos e
imortalidade da alma” (2010, p. 147), a certeza interior diminui constantemente, pois não
não estiver convencida ela mesma, experimentará “a angústia diante de qualquer fenômeno
que queira tocá-la de tal modo que a force à compreensão mais extrema do que significa
no qual um sectário da mais rigorosa doutrina pode ser demoníaco. “Ele conhece tudo e
132
mais um pouco, faz mesuras diante do sagrado, para ele a verdade consiste no conjunto de
todas as cerimônias, ele fala de se encontrar diante do trono de Deus e sabe quantas vezes
se deve inclinar a cabeça, ele sabe tudo” (KIERKEGAARD, 2010, p. 147) e não se
angustiará se a cada vez que ouve algo esse seja literalmente igual.
certeza, zomba (2010, p. 148). Assim, outros se atarefam em conseguir desenvolver uma
prova completa da existência de Deus, mas no mesmo grau em que cresce a excelência da
Deus é algo com que a gente só se ocupa ocasionalmente, de modo erudito e no âmbito
metafísico, mas a ideia de Deus se imporá em qualquer ocasião” (ibidem), de tal modo
constrangedora, por quê? Porque falta a esta individualidade a interioridade. Mas à direção
oposta, o beato, também pode faltar a interioridade, pois quando “não é livre em relação à
sua devoção, isto é, carece de interioridade, então, visto de maneira puramente estética, ele
que não seja beato como ele, reconfortando-se em observar “que o mundo odeia o sujeito
117
Certeza e interioridade, “é seriedade”, a qual brota da fonte de interioridade e jorra para a vida eterna. A
seriedade “é uma coisa tão séria que até mesmo uma definição sua já constitui uma leviandade”. Não
obstante, Kierkegaard trata, como ele mesmo diz, de expor algumas observações orientadoras. Nessas,
seriedade e Gemüth (caráter) se correspondem, mutuamente, de tal forma “que a seriedade é uma expressão
mais elevada e a mais profunda do que seja Gemüth. O Gemüth é uma determinação da imediatidade,
133
incerta quanto a objetividade, ambas sem interioridade. “A ausência da interioridade é
concreto o importante é saber como se deve compreender este compreender”, ou seja, com
interioridade. Não obstante, Kierkegaard observa que “o demoníaco pode ter nas esferas
religiosas uma semelhança bastante enganadora com a dúvida religiosa. Jamais se pode
decidir esta questão in abstracto” (ibidem, nota). Uma dúvida religiosa é aquela que se
mostra na relação do Indivíduo com a angústia, por exemplo, “um cristão que crê com
devoção pode ser presa da angústia, sentir angústia de ir à comunhão. Essa é uma dúvida
religiosa” (idem, ibidem). O demoníaco, “ao contrário, pode ter chegado tão longe, sua
134
consciência religiosa ter-se tornado tão concreta que a interioridade diante da qual ele se
compreensão sacramental”, com a qual ele “só quer relacionar-se pelo saber, quer, de um
consciência pode ter. Uma autoconsciência que é ato, mas um ato que é de novo
pneumática da liberdade se dá uma atividade mesmo que esta comece por uma passividade.
O que acontece é que os fenômenos que começam com atividade são mais fáceis de
visualizar e por causa disso, ser concebidos; porém, mesmo esses fenômenos que começam
com atividade há neles passividade e se se quer demonstrar o demoníaco tem que se tomar
plenamente, ambas carecem da interioridade, só que descrença é passiva por meio de uma
atividade, o escândalo por uma passividade. [...] Ambos carecem de interioridade e não
135
atividade, covardia por uma passividade; de resto, são idênticos, pois há na covardia
3. 6. “O eterno na individualidade”
Segundo Kierkegaard, diz-se muito do eterno, ora é rejeitado, ora é aceito, “e tanto o
primeiro caso quanto o último (levando em consideração o modo como isso ocorre)
indicam carência de interioridade. Mas aquele que não entendeu corretamente o eterno, ou
Kierkegaard a este respeito não entra em minúcias, mas salienta alguns aspectos. O
expressar-se das mais diversas maneiras: como zombaria, como prosaica embriaguez da
razão comum, como azáfama, como entusiasmo pela temporalidade, etc.” (2010, p. 160).
eterno, em Kierkegaard, é “a fronteira da temporalidade, porém aquele que vive com todas
as forças na temporalidade não chega até a fronteira” (ibidem). No terceiro aspecto, “verga-
se a eternidade para dentro do tempo, em prol da fantasia”. Aqui, a “ideia do eterno torna-
se uma ocupação fantástica, e a atmosfera de alma é sempre esta: sou eu que sonho, ou é a
eternidade que está sonhando comigo?”, ou, concebe-se a, ainda, “pura e sem mistura, para
a fantasia, sem aquela ambiguidade coquete” (idem, ibidem). Por fim, há aquele aspecto no
119
Cf. em O Conceito de Angústia, à p. 153, edição 2010, a nota 286, na qual Kierkegaard observa a
importância de se saber se o primeiro é o positivo ou o negativo.
136
porque, como disse Kierkegaard, se tem medo dela, “e a angústia inventa centenas de
137
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Talvez, agora, estejamos esperando por aquele momento em que aparece breve e
clara a definição do problema deste trabalho: a angústia. Parece-nos, ser suficiente dizer, ou
melhor, dizer novamente porque Kierkegaard já o disse que “aprender a angustiar-se é uma
aventura pela qual todos têm de passar”; uma aventura que tememos e por temê-la,
pecamos. Um aprender, que para ser verdadeiro deve dispensar qualquer intermediário, de
modo que reste apenas o Indivíduo diante dele mesmo e de Deus. Diante disto,
Interessará a todo aquele que falta interioridade; que sucumbe ao temporal, que vive na não
liberdade. Interessa a todo aquele que por causa de um instante julga toda a existência
perdida e se afunda ainda mais na angústia, portanto, a todo aquele que pensar que um
instante constitui toda a realidade. Por fim, é bom ressaltar que a angústia não consiste uma
imperfeição da e na vida humana. Se esta imperfeição existe está em alguém não ter estado
jamais angustiado ou, como dissemos antes, em nos afundar na angústia; contudo,
experimentará a mais doce alegria aquele que, segundo Kierkegaard, “aprendeu a angustiar-
desse modo, na existência é que a liberdade é uma liberdade formadora, isenta de equívocos
gratificante. Por isso, o ser humano terá que cada vez menos se entregar ao quantitativo, ao
numérico, à “multidão” e convencer-se cada vez mais que somente se torna um Indivíduo
isoladamente, coisa que tão bem, nos parece, Kierkegaard se tornou. A propósito do
138
uma pergunta que, durante a pesquisa e escrita do trabalho, sempre nos fazíamos era: Se
Kierkegaard é tão oportuno aos tempos de hoje por que os cursos acadêmicos não lhe
dedicam tanta atenção? Porque, parece-nos, os cursos acadêmicos padecem daquele mal
que o próprio Kierkegaard enfatiza, aquele o qual está tão atento à exterioridade que não se
mas tudo isso, entre outros, sempre nos comunicou muito pouco, porque como disse Sartre
esses são, e isto tem o seu valor, é óbvio, saber de conteúdo; ao contrário, Kierkegaard e os
demais existencialistas, de modo geral, não somente nos comunica como também nos
provocam e nos instigam e isto, recorrendo mais uma vez a Sartre, porque eles nos
139
BIBLIOGRAFIA
ALMEIDA, Jorge Miranda de; VALLS, Alvaro L. M. Kierkegaard. Rio de Janeiro: Jorge
Zahar Editor, 2007, 78 p. (Col. Filosofia Passo-a-Passo).
BALTHASAR, Hans Urs von. O Cristão e a Angústia. Trad. Antônio Alves Guerra. São
Paulo: Fonte Editorial, 2004, 87 p.
BÍBLIA: Tradução Ecumênica. São Paulo: Ed. Loyola, 1994, 2480 p. (TEB).
CHESTOV, Léon. Kierkegaard y la Filosofía Existencial. 3ª ed. Trad. José Ferrater Mora.
Buenos Aires: Editorial Sudamerica, 1965, 308 p. (Col. Piragua).
______________. Bom Dia, Angústia! Trad. Maria Ermantina Galvão G. Pereira. São
Paulo: Martins Fontes, 1997, 149 p.
Conhecimento Prático, Revista de Filosofia, Nº 18, São Paulo: Ed. Escala Educacional,
Ano 2009, 66 p.
DURANDO, Furio. A Grécia Antiga. Trad. Carlos Nougué. Barcelona: Ed. Folio, 2005, 288 p.
(Grandes Civilizações do Passado).
GOUVÊA, Ricardo Quadros. Paixão pelo paradoxo: Uma introdução aos estudos de Sören
Kierkegaard e de sua concepção da fé cristã. São Paulo: Fonte Editorial, 2006, 320 p.
KIERKEGAARD, Sören A. O Conceito de Angústia. 2ª ed. Trad. João Lopes Alves. Santa
Maria de Lamas: Editorial Presença, s/d, 245 p. (Col. Divulgação e Ensaio).
140
______________. El concepto de la angustia. Trad. Demetrio G. Rivero. Madrid: Alianza
Editorial, 2007, 284 p.
______________. Ponto de vista explicativo da minha obra de escritor. Trad. João Gama.
Lisboa: Edições 70, 2002, 207 p. (Col. Textos Filosóficos).
MATOS, Henrique Cristiano José. Estudar teologia: iniciação e método. Petrópolis: Ed.
Vozes, 2005, 60 p. (Col. Iniciação à Teologia).
MESNARD, Pierre. Kierkegaard. Trad. Rosa Carreira. Lisboa: Edições 70, 2003, 86 p.
(Col. Biblioteca Básica de Filosofia).
NÓBREGA, Francisco Pereira. Compreender Hegel. 2ª ed. Petrópolis: Ed. Vozes, 2005, 76
p. (Série Compreender).
VALLS, Alvaro Luiz Montenegro. Entre Sócrates e Cristo: Ensaios sobre a ironia e o amor
em Kierkegaard. Porto Alegre: EDIPUCRS, 2000, 232 p. (Col. Filosofia, nº 113).
141
VÁRIOS AUTORES. Kierkegaard vivo. Una reconsideración. Vários Tradutores. Madrid:
Ediciones Encuentro, 2005, p. 11-38.
142