A Intolerancia Religiosa Como Impedimento A Aplicacao Da Lei N o 10639 03 Nos Anos Finais Do Ensino Fundamental I

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A INTOLERÂNCIA RELIGIOSA COMO IMPEDIMENTO À APLICAÇÃO DA LEI Nº

10. 639/03 NOS ANOS FINAIS DO ENSINO FUNDAMENTAL I.

Grazielli Salvador de Oliveira1


Vivian Renata da Silva dos Santos2

RESUMO: O presente texto tem como objetivo discutir o papel da intolerância


religiosa como fator de impedimento a aplicação da lei 10.639/03, para tanto foram
observadas as práticas de alguns professores de uma escola de Ensino
Fundamental em Cariacica, Espírito Santo. Através dessas observações
apontaremos algumas iniciativas para diminuir esse problema. Concluiu-se que os
fatores religiosos ainda é um importante fator de impedimento à aplicação da lei.
PALAVRAS-CHAVE: Intolerância. Racismo. Educação Étnico-Racial. Lei nº
10.639/03.

ABSTRACT: This paper aims to discuss the role of religious intolerance as a


deterrent factor of the application of Law 10.639 / 03, for both were observed the
practices of some teachers of a school of Primary Education in Cariacica, Espírito
Santo. Through these observations we will point out some initiatives to reduce this
problem. It was concluded that religious factors is still an important deterrent factor to
law enforcement.
KEYWORDS: Intolerance. Racism.Ethnic-Racial Education.Law 10.639 / 03.

1. INTRODUÇÃO

Ultimamente estão sendo noticiados inúmeros casos de racismo e intolerância


religiosa envolvendo crianças e adolescentes, sobretudo no âmbito escolar.
Observa-se que esses casos de racismo e intolerância que são relatados pelos
meios de comunicação. O objetivo desse trabalho é analisar qual é o impacto da
intolerância religiosa na aplicação efetiva da lei 10.639 nos anos finais do ensino
fundamental.

Diante do contexto desse aumento de notícias relacionadas à intolerância religiosa,


busca-se compreender a importância da religião na cultura africana surgindo assim,
os seguintes questionamentos: a intolerância pode ser fator preponderante ao

1
Graduanda de Pedagogia pela Faculdade Multivix Cariacica.
2
Graduanda de Pedagogia pela Faculdade Multivix Cariacica.
2

planejar aulas com conteúdos sobre heranças africanas? Em que medida o


professor como mediador laico no processo ensino-aprendizagem trabalha
efetivamente ou não a lei 10.639/03 e se os seus valores religiosos o impedem de
ensinar sobre a cultura africana dentro da sala de aula.

Para a realização desta pesquisa procedeu-se a uma pesquisa bibliográfica com


base em livros e artigos dos autores (Souza, 2007 e Santos 1997) que fundamentam
o tema. A coleta de dados se deu por meio de pesquisa de campo utilizando o
procedimento observação participante, dentro da qual foram realizadas visitas e
observações das aulas de quatro professores dos anos finais do ensino
fundamental.

Com este estudo será possível avaliar as dificuldades de professores e alunos, e o


papel da escola no combate a discriminação racial e apontar caminhos que ajudem
professores e futuros professores a lidarem melhor com a diversidade religiosa
presente nas escolas, fazendo assim com que entendam que informar, ensinar e
conscientizar sobre as religiões de matrizes africanas em nada tem a ver com
doutrinação religiosa, e assim tornar a lei 10.639/03 realmente efetiva.

2. CONTEXTUALIZANDO A LEI 10.639/03


Quando se pensa nos caminhos a serem trilhados para a garantia de cidadania a
todos e na construção de um diálogo que respeite as diferenças, é preciso ter em
mente que a escola tem um papel importante para efetivar isso em nossa sociedade.

Ao considerarmos as especificidades que compõem a diversidade cultural e


os caminhos que precisam ser trilhados para a construção do diálogo e para
a garantia da cidadania a todos, independentemente das diferenças, não
podemos esquecer-nos de uma instituição muito importante em nossa
sociedade: a escola. (GOMES, 1999, p.03)

Ao compreender essa importância da escola, não se deve esquecer-se da


diversidade de sujeitos que integram esse ambiente. A instituição tem o dever de
valorizar as diferentes culturas dos sujeitos envolvidos no processo de ensino-
aprendizagem. A constituição Federal assegura esse direito em seu Art. 242 § 1º “O
ensino da História do Brasil levará em conta as contribuições das diferentes culturas
e etnias para a formação do povo brasileiro.” (BRASIL, 1988).
3

É importante que as crianças negras tenham referências positivas de seu povo, de


sua cultura, para que com isso aflore nela um sentimento de pertencimento racial,
uma identidade racial.

Se a pessoa acumula na sua memória as referências positivas do seu povo,


é natural que venha à tona o sentimento de pertencimento como reforço à
sua identidade racial. O contrário é fácil de acontecer, se se alimenta uma
memória pouco construtiva para sua humanidade. (ANDRADE, 2005, p.04)

Buscando promover este sentimento de pertencimento e a valorização da cultura


negra, os movimentos negros brasileiros conseguiram junto ao governo do
Presidente Lula a homologação da lei 10.639 que em 2003 tornou obrigatório o
ensino de História e Cultura Afro-Brasileira nos estabelecimentos educacionais do
país.

A lei citada altera a Lei no 9.394, de 20 de dezembro de 1996, que estabelece as


diretrizes e bases da educação nacional, para incluir no currículo oficial da Rede de
Ensino a obrigatoriedade da temática "História e Cultura Afro-Brasileira", e dá outras
providências.

O texto da lei 10.639/03 diz que o conteúdo programático deve abranger todos os
aspectos da cultura da África, em seu artigo 1º diz que:

Art. 1º- A Lei no 9.394, de 20 de dezembro de 1996, passa a vigorar


acrescida dos seguintes arts. 26-A, (79-A vetado) e 79-B.
Art. 26-A. Nos estabelecimentos de ensino fundamental e médio, oficiais e
particulares, torna-se obrigatório o ensino sobre História e Cultura Afro-
Brasileira.
o
§ 1 O conteúdo programático a que se refere o caput deste artigo incluirá o
estudo da História da África e dos Africanos, a luta dos negros no Brasil, a
cultura negra brasileira e o negro na formação da sociedade nacional,
resgatando a contribuição do povo negro nas áreas social, econômica e
política, pertinentes à História do Brasil.
§ 2o Os conteúdos referentes à História e Cultura Afro-Brasileira serão
ministrados no âmbito de todo o currículo escolar, em especial nas áreas de
Educação Artística e de Literatura e História Brasileira. (BRASIL, 2003).

Essa lei foi modificada pela Lei nº 11.645 de 2008, que altera os artigos 26 A em
seus parágrafos primeiro e segundo:

Art. 26-A. Nos estabelecimentos de ensino fundamental e de ensino médio,


públicos e privados, torna-se obrigatório o estudo da história e cultura afro-
brasileira e indígena.
4

§ 1º O conteúdo programático a que se refere este artigo incluirá diversos


aspectos da história e da cultura que caracterizam a formação da população
brasileira, a partir desses dois grupos étnicos, tais como o estudo da história
da África e dos africanos, a luta dos negros e dos povos indígenas no Brasil,
a cultura negra e indígena brasileira e o negro e o índio na formação da
sociedade nacional, resgatando as suas contribuições nas áreas social,
econômica e política, pertinentes à história do Brasil.
§ 2º Os conteúdos referentes à história e cultura afro-brasileira e dos povos
indígenas brasileiros serão ministrados no âmbito de todo o currículo
escolar, em especial nas áreas de educação artística e de literatura e
história brasileiras. (BRASIL, 2008)

No ano de 2004 o Conselho Nacional de Educação instituiu as Diretrizes


Curriculares Nacionais para a Educação das Relações Étnico-Raciais e para o
Ensino de História e Cultura Afro-Brasileira e Africana, diretrizes essas que são
destinadas:

Aos administradores dos sistemas de ensino, de mantenedoras de


estabelecimentos de ensino, aos estabelecimentos de ensino, seus
professores e a todos implicados na elaboração, execução, avaliação de
programas de interesse educacional, de planos institucionais, pedagógicos
e de ensino. Destina-se, também, às famílias dos estudantes, a eles
próprios e a todos os cidadãos comprometidos com a educação dos
brasileiros, para nele buscarem orientações, quando pretenderem dialogar
com os sistemas de ensino, escolas e educadores, no que diz respeito às
relações étnico-raciais, ao reconhecimento e valorização da história e
cultura dos afro-brasileiros, à diversidade da nação brasileira, ao igual
direito à educação de qualidade, isto é, não apenas direito ao estudo, mas
também à formação para a cidadania responsável pela construção de uma
sociedade justa e democrática. (BRASIL, 2004)

O Parecer nº 003/2004, de 10 de março de 2004 oferece uma resposta, na área da


educação regulamentando políticas de ações afirmativas, políticas de reparações, e
de reconhecimento e valorização da história, cultura e identidade do povo negro.

3. A FORMAÇÃO DO PROFESSOR E A APLICABILIDADE DA LEI 10639/03


Com a homologação da lei 10.639/03 a formação continuada de professores torna-
se extremamente importante para que a educação atenda ao que é explicitado no
texto da lei: o reconhecimento e a valorização da história, cultura e identidade dos
diferentes povos que habitam o Brasil, em particular os descendentes de africanos.

A formação de professores deve exercer na prática o trabalho das questões éticas,


políticas e sociais, abordar também as temáticas étnicas e culturais. Assumindo
assim um compromisso social, no sentido de melhor desenvolver a igualdade
5

sociocultural que deve acompanhar o compromisso docente que, de acordo com


Freire (1996, p.36), significa: “rejeitar qualquer forma de descriminação, referente à
raça, classe, gênero. Que possa ofender a personalidade humana e negar a
democracia”.

Espera-se que o currículo dos cursos de formação de professores que contemplem


a História e cultura Afro-brasileira e Africana seja sustentado por bases que
contemplem as habilidades prático-reflexivas do professor.

Quanto mais complexas se tornam as relações entre educação,


conhecimento e cotidiano escolar; cultura escolar e processos educativos;
escola e organização do trabalho docente, mais o campo da Pedagogia é
desafiado a compreender e apresentar alternativas para a formação dos
seus profissionais. (GOMES, 2008, p.19)

No geral, em nossas escolas os conteúdos de História do Brasil contam apenas a


versão dos fatos históricos baseada na visão eurocêntrica, apresenta a história do
negro apenas através do negro escravo, do tráfico negreiro, das senzalas e muito
pouco do modo de vida e da ascendência africana, colaborando para a manutenção
do mito da democracia racial3. Os professores precisa trabalhar de modo a quebrar
esses paradigmas, planejar e executar aulas que visem à desconstrução desses
padrões eurocentrados.

Outro ponto que precisa ser providenciado pelos sistemas de ensino é que os
processos de formação inicial e continuada dos educadores sejam realizados em
articulação com as instituições de ensino superior, os centros de pesquisas, os
Núcleos de Estudos Afro-Brasileiros (NEABs), as escolas, a comunidade e os
movimentos sociais, com a criação de grupos de trabalho nos diferentes sistemas
que debatam e coordenem o planejamento e a execução. Além disso, é necessário

3
A democracia racial é um termo usado por algumas pessoas para descrever relações raciais no
Brasil. O termo denota a crença de alguns estudiosos que o Brasil escapou do racismo e da
discriminação racial [...] Os críticos que se opõem à ideia da democracia racial, afirmando que ela
seja um mito, frequentemente usam como base a alegação genérica de que não seria possível
impossível definir com exatidão à qual raça uma pessoa pertença realmente, visto que os próprios
indivíduos não são capazes de se definir. Muitos pesquisadores relatam estudos em que demonstram
a discriminação generalizada nos campos do emprego, educação e política eleitoral. O uso
aparentemente paradoxal da democracia racial para obscurecer a realidade do racismo tem sido
referido pelo estudioso Florestan Fernandes (1978) como o "preconceito de não ter preconceitos". Ou
seja, porque o Estado assume a ausência de preconceito racial, ele não consegue fazer cumprir o
que existem poucas leis para combater a discriminação racial, pois acredita que tais esforços sejam
desnecessários.
6

realizar a formação do outros sujeitos da prática educativa como destaca Silva


(2012, p. 44-45), “Fala-se muito da formação dos professores para executar as
orientações do Parecer CNE/CP 3/2004, mas igual ênfase não tem sido dada ao
preparo dos gestores, dos coordenadores pedagógicos [...]”.

Sabe-se que a religiosidade dos africanos que para o Brasil foram trazidos é
inseparável dos seus modos de organizar a vida e as comunidades onde vivem.

Além dos traços físicos, talvez seja na música e na religiosidade que a


presença africana esteja mais evidente entre nós. [...] a religião tem lugar
central nas culturas africanas, sendo a esfera de onde vem toda orientação
para a vida, a garantia do bem-estar, da harmonia e da saúde. (SOUZA,
2007, p.176).

Consciente desta importância das religiões na cultura africana e na formação da


cultura afro-brasileira é importante que o docente dispa-se de toda sua religiosidade
e consiga falar das religiões africanas dentro do seu aspecto cultural sem
preconceitos e achismos.

4. CONCEITOS FUNDAMENTAIS

Antes de começar essa discussão se faz necessário retomar alguns conceitos.

4.1 Racismo

Consiste em uma atitude depreciativa e discriminatória não baseada em critérios


científicos em relação a algum grupo social ou étnico. É dirigido diretamente a toda
uma raça ou povo.

O racismo é, por um lado, um comportamento, uma ação resultante da


aversão, por vezes, do ódio, em relação a pessoas que possuem um
pertencimento racial observável por meio de sinais, tais como: cor da pele,
tipo de cabelo, etc. Ele é por outro lado um conjunto de ideias e imagens
referente aos grupos humanos que acreditam na existência de raças
superiores e inferiores. O racismo também resulta da vontade de se impor
uma verdade ou uma crença particular como única e verdadeira. (Gomes,
2005, p.52)

4.2 Preconceito Racial

O preconceito está introjetado em quem o comete e pode acontecer até por meio de
um pensamento, não é sempre que o preconceito é efetivado em algum ato
discriminatório.
7

O preconceito é um julgamento negativo e prévio dos membros de um


grupo racial de pertença, de uma etnia ou de uma religião ou de pessoas
que ocupam outro papel social significativo. Esse julgamento prévio
apresenta como característica principal a inflexibilidade, pois tende a ser
mantido sem levar em conta os fatos que o contestem. Trata-se do conceito
ou opinião formados antecipadamente, sem maior ponderação ou
conhecimento dos fatos. O preconceito inclui a relação entre pessoas e
grupos humanos. Ele inclui a concepção que o indivíduo tem de si mesmo e
também do outro. (Gomes, 2005, p.54)

4.3 Discriminação Racial

A discriminação é originada em um preconceito, e por isso estes dois conceitos,


apesar de estarem relacionados, são distintos. O preconceito não pressupõe o ato
de tratar diferentemente uma pessoa, pode fazer parte apenas de uma estrutura
mental. A discriminação é fruto desse preconceito, a concretização dessa forma de
pensamento. A discriminação acontece quando há uma atitude adversa perante uma
característica específica e diferente.

A palavra discriminar significa “distinguir”, “diferençar”, “discernir”. A


discriminação racial pode ser considerada como a prática do racismo e a
efetivação do preconceito. Enquanto o racismo e o preconceito encontram-
se no âmbito das doutrinas e dos julgamentos, das concepções de mundo e
das crenças, a discriminação é a adoção de práticas que os efetivam.
(Gomes, 2005, p.55)

5. PESQUISA

Acompanhou-se o trabalho de quatro docentes durante um período de 60 dias e


estes, apesar de terem concordado em participar da pesquisa, o que se pode notar
foi que toda a equipe pedagógica foi um tanto arredia com a mesma, os professores
se negaram a responder o questionário que foi proposto, aceitaram apenas que
fossem feitas observações de suas aulas e responderam todos os questionamentos
em conversas informais.

Quando foram perguntados sobre a temática, tanto professores quanto a equipe


pedagógica da escola pesquisada alegaram que não trabalham profundamente o
tema pelo mesmo ser de difícil aceitação tanto de alunos quanto de seus pais e toda
comunidade escolar. As religiões de matriz africanas são tradicionalmente “mal
vistas” e tudo que é ligado a elas é ignorado. Ressalte-se que os professores
entrevistados são de religiões cristãs e alegaram que não se deve falar de religiões
em sala de aula, porém quando questionados sobre os ensinamentos sobre páscoa,
8

natal e outras datas cristãs que são ensinadas na escola eles se negaram a
responder.

O que se percebe é que, apesar de serem distantes, a escola pesquisada neste


trabalho e as escolas pesquisadas por Pereira (2011) apresentam conclusões e as
observações feitas foram praticamente as mesmas:
A questão da intolerância religiosa merece ser motivo de amplo debate.
Podemos afirmar que esta parece ser uma das dificuldades mais incisivas
nos relatos coletados na região pesquisada (Metropolitana de BH). Os
pesquisadores obtiveram relatos de abaixo-assinados para retirada de
professores de suas respectivas turmas, boicote familiar a atividades
promovidas pelas escolas e também abordagem a professores e
pedagogos, por familiares preocupados com a exposição de seus filhos a
‘rituais’ de origem afro-brasileira (como congados, por exemplo),
considerados como prática de ‘macumba e magia negra’. (PEREIRA,
2011)

Os professores entrevistados alegaram que trabalham com o conteúdo somente nas


aulas de História e em datas específicas como 13 de maio e 20 de novembro, nestes
dias a equipe repete todos os anos a mesma metodologia: o tema é tratado como
um “projeto” no qual os alunos participam de atividades que envolvem a música
(samba) esporte (capoeira) e concurso de beleza negra. Durante o restante do ano
letivo em apenas um capítulo do livro didático de História (capítulo esse que é
seguido ao pé da letra), o conteúdo é tratado, e de forma superficial falando somente
de como os negros vieram para o Brasil e de suas contribuições, porém sem dar
detalhes dessas contribuições e sem falar da importância delas para a formação do
povo brasileiro. E no livro de língua portuguesa uma única unidade trata das
contribuições linguísticas africanas para o português brasileiro.

O que foi possível observar é que até mesmo para conversar informalmente sobre o
assunto os professores se mostraram arredios e houve até um professor que se
mostrou surpreso com a existência da Lei 10639/03 e, quando questionado sobre
África e cultura africana, o mesmo perguntou qual a real necessidade de ensinar
esse tema para as crianças? O que dialoga perfeitamente com o relato de Santos
(1997), apesar de serem escolas distintas e em estados distintos a fala dos docentes
é a mesma:

Em diferentes encontros com educadores do ensino fundamental e médio,


das redes públicas e privadas, depois de informar sobre a existência de um
vasto material bibliográfico, a respeito dessa temática, produzido nos
últimos vinte anos, escutei de alguns educadores indagações sobre qual
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seria a importância de tratar desses conteúdos em sala da aula, onde a


maioria dos alunos é de tradição religiosa judaico-cristã. Diante desse tipo
de indagação, sempre evitei uma resposta imediata, devolvia a pergunta
para compreender a posição do educador sobre o assunto. Quase sempre,
o educador começava afirmando que era católico e que estava acostumado
a ouvir horrores sobre terreiros de candomblés e centros de Umbanda,
como espaço onde as pessoas eram possuídas por entidades diabólicas,
mas nunca tivera muito interesse por esse tipo de manifestação religiosa.
Como se pretendesse desculpar-se, diante do meu interesse e
conhecimento sobre o assunto, a pessoa concluía sua fala dizendo que não
tinha nada contra aos adeptos das religiões de matriz africana no Brasil
(SANTOS, 1997, p.03/04).

Os docentes alegam que devido à grande ligação da religiosidade com a cultura


africana fica difícil desenvolver um trabalho sem ferir a laicidade4 da escola que deve
ser respeitada, no entanto, no decorrer desses diálogos informais, ao caminhar
pelos diversos ambientes da escola foi possível observar vários cartazes com
dizeres religiosos cristãos, e todos os dias em que foram feitas as observações, os
alunos foram obrigados a fazer uma oração cristã antes do início das aulas. O que
propõe a seguinte reflexão: se a intenção é garantir a laicidade no processo de
ensino-aprendizagem, porque tantos elementos religiosos no ambiente escolar?

Em conversa com os alunos perguntou-se sobre o que eles sabiam sobre a história
dos negros e a fala dos mesmos mostrou o quanto é necessário que haja uma
desmistificação da história dos negros e de toda sua cultura quando questionados
sobre as religiões de matrizes africanas as falas vieram carregadas de preconceitos,
as crianças ainda tem uma visão “demonizada” dessas religiões.

6. O RACISMO FUNDAMENTADO NA RELIGIÃO

Pode-se afirmar que com as ações afirmativas que ocorrem dentro das políticas
públicas de promoção da igualdade racial, que foram implantadas nos últimos anos,
foram denunciadas diversas formas de discriminações e o racismo silencioso que faz
parte da sociedade brasileira tornou-se visível. Portanto, a Lei 10.639/2003 é uma
das ações que buscam diminuir as desigualdades entre os brasileiros,

4
Em julho de 1997, passou a vigorar uma nova redação do artigo 33 da LDB 9394/96 (a lei n.º 9.475):
“O ensino religioso, de matrícula facultativa, é parte integrante da formação básica do cidadão e
constitui disciplina dos horários normais das escolas públicas de ensino fundamental, assegurado o
respeito à diversidade cultural religiosa do Brasil, vedadas quaisquer formas de proselitismo. § 1º Os
sistemas de ensino regulamentarão os procedimentos para a definição dos conteúdos do ensino
religioso e estabelecerão as normas para a habilitação e admissão dos professores. § 2º Os sistemas
de ensino ouvirão entidade civil, constituída pelas diferentes denominações religiosas, para a
definição dos conteúdos do ensino religioso [...]”.
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especialmente na escola. Essa lei destaca o estudo da história da África e dos


africanos, de modo geral, incluindo assim a história das religiões de matriz africana
presentes no Brasil.

Para melhor entender como os aspectos religiosos tornaram-se alvo de racismo, é


necessário voltar ao passado para iluminar a realidade atual. É preciso identificar a
origem do ódio e repugnância que cercam as religiões dos orixás. Antes de os povos
africanos serem capturados e trazidos como escravos para o Brasil eles praticavam
sua religião a partir dos cultos ligados a suas famílias. Assim em algumas regiões
praticavam o culto a Oxum e a sua representação era associada ao Rio Oxum; outra
região cultuava Ogum e sua representação estava no ferro; a região que cultuava
Yansã fazia reverência aos ventos e às tempestades. Os três exemplos citados
servem para mostrar, ainda que de maneira genérica, a associação das religiões de
matriz africana com os elementos da natureza e não a infinidade de satanizações
que ainda permeiam grande parte do imaginário social, as práticas e manifestações
culturais africanas foram e são mal compreendidas.

O Estado através de suas políticas tem regulamentado o ensino da história de todos


os povos que formam o Brasil, porém essas normatizações vêm gerando tensões,
tendo em vista que ao longo da história, alguns grupos foram privilegiados pela
maneira como as leis e os materiais didáticos abordam a temática. Na maioria das
vezes a humanidade e a cidadania retratadas no livro didático são representadas
pelo homem branco e de classe média, enquanto que a mulher, os negros, os povos
indígenas, entre outros, são descritos pelo gênero ou pela cor da pele, para informar
sobre sua existência. Mulheres, negros e indígenas são tratados como seres
inferiorizados, sem humanidade e sem qualquer direito, permitindo que uma parcela
dos professores transforme a sala de aula em espaço para evangelizar e para
proselitismo. E Isso fortalece o desrespeito religioso e os ataques às religiões de
matriz africana, na medida em que os alunos negros não se reconhecem na
educação formal brasileira.

Os 13 anos da promulgação da Lei 10.639/2003 têm mostrado alguns avanços


como: maior visibilidade para os temas relativos à cultura africana e afro-brasileira
no ambiente escolar, maior disponibilidade de material didático, cursos de formação
11

de professores para educação étnico-racial, maior participação dos alunos nas


atividades propostas.

Entretanto, tanto as conversas informais quanto os dados disponíveis relativos à


implantação da lei vêm mostrando que ao lado dos avanços há também retrocessos,
e também há resistência, já que alguns temas dentro da lei despertaram muitos
preconceitos, em especial a religião, que em muitas escolas não faz parte dos
conteúdos porque quando o assunto é sobre religiões de matriz africana muitas das
vezes esta é considerada “religião de satanás”, assuntos de bruxaria. Esses fatos
são agravados a cada dia, pois muitas crianças praticantes de Candomblé e
Umbanda são alvo de preconceito, desrespeito religioso e até mesmo violência.

O preconceito e o desrespeito relativo às concepções e manifestações da população


negra existem desde a chegada dos africanos ao Brasil, e persiste até os dias atuais
e o uso de palavras pejorativas colabora para a construção negativa do candomblé,
umbanda, dentre outras denominações. Palavras como feiticeiro, pembero,
mandingueiro, macumbeiro, resumem as violências sofridas pelos adeptos das
matrizes africanas.

O espaço da escola também vem sendo palco de desrespeito. Alunos relatam que
ao manifestarem sua fé no ambiente escolar são muitas das vezes agredidos
verbalmente por colegas, são motivos de piadas e “brincadeiras”, e estas quase
sempre são tratadas pela equipe docente como bullying5 ou então são ignoradas, o
que é um erro, a escola precisa ao se deparar com essas situações entender que se
trata de racismo, e encarar esses fatos como uma oportunidade para intervir e
efetivar a aplicação da lei 10.639/03.

O preconceito religioso ainda é muito presente no ambiente escolar, e os


professores parecem não se lembrar de que seu papel é informar sobre todas as
religiões exercidas no Brasil; e as religiões de matriz africana fazem parte deste

5
Bullying é um termo da língua inglesa (bully = “valentão”) que se refere a todas as formas de
atitudes agressivas, verbais ou físicas, intencionais e repetitivas, que ocorrem sem motivação
evidente e são exercidas por um ou mais indivíduos, causando dor e angústia, com o objetivo de
intimidar ou agredir outra pessoa sem ter a possibilidade ou capacidade de se defender, sendo
realizadas dentro de uma relação desigual de forças ou poder.
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conjunto, por isso é importante que os mesmos ao menos conheçam os símbolos


mais expressivos das principais religiões brasileiras.

Cada religião tem símbolos que a representam e utilizam estes significados para
expressar-se, porém, o uso de tais símbolos referentes às religiões de matriz
africana como, por exemplo, fios de conta e turbantes, são entendidos como
afrontas; assim relatam alunos que foram impedidos de entrar na escola portando
seus fios de conta. Isso só mostra que os alunos e alunas, além de não terem os
conteúdos referentes à sua religião, ou os terem de forma superficial ainda têm seus
corpos desrespeitados e sua liberdade de crença cerceada, levando à evasão de
educandos praticantes das religiões de matriz africana.

Com o objetivo de extinguir a discriminação racial que além de todos os males que
provoca, promove ainda o preconceito religioso, especialmente em relação às
religiões de matrizes africanas precisa-se compreender que o desafio que temos
hoje é saber quais as concepções, os conteúdos e as metodologias podem
promover a igualdade entre os povos, esses desafios podem ser expandidos para a
criação de livros e materiais didáticos respeitosos, bem como a formação de
professores que os permitam entenderem o seu verdadeiro papel enquanto
educador.

Enquanto existirem grupos racialmente subordinados e politicamente excluídos não


haverá integração nacional. O mito da democracia racial promove a ideia de que há
harmonia racial e, se há harmonia, não se tem motivo para combater o racismo,
portanto a Lei 10.639/2003 não faz qualquer sentido. E, infelizmente muitos
docentes pensam dessa forma.

Durante essa pesquisa foi possível observar que alguns educadores, especialmente
os evangélicos, reduzem a Lei 10.639∕2003 apenas à questão religiosa, e se
esquecem de que a aplicação da lei diz respeito a um conjunto de temas
relacionados ao continente africano e à sociedade brasileira, pois os negros
africanos e brasileiros precisam ser entendidos em sua totalidade; e a religião é
apenas uma das dimensões, dentre outras formas para enxergar o mundo.
13

7. CONSIDERAÇÕES FINAIS
O processo de construção de uma sociedade que seja verdadeiramente democrática
precisa levar em conta a diversidade racial, de classe e de gênero e o inicio desse
processo de construção social se faz no ambiente escolar.

A implantação da lei é uma das formas de diminuir o espaço deixado pelo sistema
educacional no que diz respeito às religiões de matriz africana e com ela se
reconhece as contribuições religiosas como ferramentas importantes na construção
e reconstrução da identidade. As religiões foram e são essenciais na escrita da
história do negro brasileiro e foi por meio dela que muitos afrodescendentes deram
partida para a sua liberdade e deixaram sua marca social, como, por exemplo, Mãe
Menininha, Joãozinho da Gomeia, Eduardo de Paula, Mãe Senhora, dentre outros.

Nesse sentido, a efetiva aplicação da lei citada, em todos os seus aspectos não
acontecerá enquanto não houver uma mudança em toda a estrutura educacional, e
cabe à escola fazer uma revisão da postura dos profissionais envolvidos. Essa
revisão deve considerar alteração curricular não só do ensino fundamental I que foi o
pesquisado aqui, mas em todos os níveis do ensino, na medida em que o racismo
ocorre em todo o sistema educacional e social.

É claro que as sutilezas do racismo são os aspectos mais difíceis de serem


combatidos, pois elas acontecem de forma velada tornando assim, menos visível a
violência sofrida por meninas e meninos negros na escola nossa de cada dia. O
racismo tratado muitas vezes como bullying, não pode ser negligenciado nessa
revisão curricular, sobretudo quando falamos das religiões de matrizes africanas.

Outra possibilidade de intervenção é a integração das instituições família e escola.


Essa parceria com a família pode possibilitar maior respeito à cultura africana e suas
manifestações, sobretudo as religiosas, tendo em vista que as religiões ajudam na
construção identitária dos sujeitos. A escola necessita realmente assumir uma
postura laica e despir-se dos preconceitos que estão arraigados em sua concepção
de ensino.
Conclui-se que a intolerância é um fator preponderante a não aplicabilidade da lei
10.639, mas não é o único. O despreparo e o desconhecimento de toda a equipe
14

escolar, sobretudo dos docentes também é um fator marcante, vimos que não existe
esforço para desmistificar os aspectos religiosos e culturais da história de negros e
negras do Brasil, e por isso os professores se acomodam e continuam a repetir
discursos errôneos, ensinando sempre aos alunos através do olhar branco.

Dizem que o diabo veio nos barcos dos europeus.


Desde então o povo esqueceu
Que entre os meus todo mundo era deus. (EMICIDA)

REFERÊNCIAS

AMÂNCIO, Iris Maria da Costa; GOMES, Nilma Lino; JORGE, Miriam L. dos Santos.
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